5
Canto litúrgico e canto secular na Idade Média Canto romano e liturgia Ao estudar a historia da música é, evidentemente, necessário adquirir algumas noções acerca dos estilos e géneros musicais dos diversos períodos históricos, mas é ainda mais essencial conhecer a música propriamente dita. Os factos são apenas um esqueleto; a música lhes dá vida e sentido. É especialmente importante ter isto em conta ao estudar o cantochão, pois trata-se de um tipo de música com que muita gente não está familiarizada. Os cânticos deverão ser ouvidos e cantados até a pessoa se acostumar à sonoridade, e em cada etapa desde processo de conhecimento deverá ter¬ -se presente não apenas a beleza intrínseca das peças, mas ainda a relação dos cânticos com os dados relevantes de carácter histórico, Htúrgico e analítico que o presente capítulo se propõe expor. Este conselho é tanto mais pertinente quanto desde a substituição do latim pelas línguas vernáculas, com o Concilio Vaticano H, de 1962-1965, o cantochão pratica- mente desapareceu dos serviços regulares da igreja católica. Na Europa continua a usar-se em certos mosteiros e em determinados serviços de algumas das maiores igrejas paroquiais; na América é muito menos cultivado. Se bem que, em teoria, o latim continue a ser a língua oficial e o cantochão a música oficial da Igreja, na prá- tica os cânticos tradicionais têm vindo a ser, em grande medida, substituídos por mú- sica considerada própria para ser cantada por toda a congregação: versões simplifica- das das melodias mais familiares, canções de composição recente, experiências ocasionais no campo dos estilos populares. Quando as melodias autênticas são adap- tadas ao vernáculo, o carácter musical do canto fica inevitavelmente alterado. O reportórío do cantochão e as liturgias a que esse reportório pertencia desenvol- veram-se ao longo de muitos séculos e continuaram a evoluir e a modificar-se, embora 50 certos rituais tenham permanecido bastante estáveis. A maior parte dos cânticos tive- ram origem na Idade Média, mas mantiveram-se vivos e foram ininterruptamente cantados desde esse tempo, se bem que muitas vezes em versões abastardadas. Por isso, o cantochão é, ao mesmo tempo, uma instituição histórica, um reportório de música cantada nos concertos de música antiga e um tipo de música cerimonial ainda hoje em uso. O historiador fica dividido entre, por um lado, o desejo de o apresentar em versões autênticas e em enquadramentos funcionais que correspondam à variabi- lidade das práticas medievais e, por outro, a forma como o reportório surge em edições recentes e nos usos da Igreja. Uma vez que as versões do cantochão ao dispor do estudante e as gravações delas efectuadas se baseiam nas publicações oficialmente aprovadas pelo Vaticano, na sua grande maioria editadas pelos monges da abadia beneditina de Solesmes, parece-nos prudente abordar o reportório do cantochão par- tindo das convenções utúrgicas observadas em épocas recentes, muito embora tal abordagem obscureça a sucessão cronológica dos estilos e das práticas. Correndo o risco de violarmos a distância entre o passado e o presente, mergulharemos, pois, no reportório tal como foi reconstruído no final do século xrx e início do século xx e tal como foi amplamente executado até há bem pouco tempo; assim partilharemos, pelo menos em certa medida, a experiência dos monges e dos leigos da Idade Média. A LITURGIA ROMANA As duas categorias principais de serviços religiosos são o ofício e a missa. Os ofícios, ou horas canónicas, codificados pela primeira vez nos capítulos 8 a 19 da Regra de S. Bento (c. 520), celebram-se todos os dias, a horas determinadas, sempre pela mesma ordem, embora a sua recitação pública só seja geralmente obser- vada nos mosteiros e em certas igrejas e catedrais: matinas (antes do nascer do Sol), laudas (ao alvorecer), prima, terça, sexta, nonas (respectivamente pelas 6 da manhã, 9 da manhã, meio-dia e 3 da tarde), vésperas (ao pôr do Sol) e completas (normal- mente logo a seguir às vésperas). O ofício, celebrado pelo clero secular e pelos membros das ordens religiosas, compõe-se de orações, salmos, cânticos, antífonas, responsos, hinos e leituras. A música para os ofícios está compilada num livro litúr- gico chamado Antiphonale, ou Antifonario. Os principais momentos musicais dos ofí- cios são o canto dos salmos, com as respectivas antífonas, o canto dos hinos e dos cânticos e a entoação das lições (passagens das Escrituras), com os respectivos responsórios. Do ponto de vista musical, os ofícios mais importantes são as matinas, as laudas e as vésperas. As matinas incluem alguns dos mais antigos cantos da Igreja. As vésperas compreendem o cântico Magnificat anima mea Dominum («A minha alma glorifica o Senhor», Lucas, 1,46-55); e, na medida em que este oficio era o único que desde os tempos mais remotos admitia o canto polifónico, adquire especial impor- tância para a história da música sacra (v. a análise de NAWM 4, segundas vésperas do Natal, mais adiante neste capítulo). Aspecto característico das completas é o canto das quatro antífonas da Santa Virgem Maria, as chamadas antífonas marianas, uma para cada uma das divisões principais do ano htúrgico 1 : Alma Redemptorís Mater 1 As principais épocas do ano litúrgico são o Advento, que começa no quarto domingo antes do Natal, o Natal, que inclui os doze dias até à Epifanía (6 de Janeiro) e as semanas seguintes; a Qua- resma, da quarta-feira de Cinzas até à Páscoa; o tempo da Páscoa, que inclui a Ascensão (quarenta 51

Canto romano e liturgia.pdf

  • Upload
    vibessa

  • View
    64

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

  • Canto litrgico e canto secular na Idade Mdia

    Canto romano e liturgia

    Ao estudar a historia da msica , evidentemente, necessrio adquirir algumasnoes acerca dos estilos e gneros musicais dos diversos perodos histricos, mas ainda mais essencial conhecer a msica propriamente dita. Os factos so apenas umesqueleto; s a msica lhes d vida e sentido. especialmente importante ter isto emconta ao estudar o cantocho, pois trata-se de um tipo de msica com que muita genteno est familiarizada. Os cnticos devero ser ouvidos e cantados at a pessoa seacostumar sonoridade, e em cada etapa desde processo de conhecimento dever ter-se presente no apenas a beleza intrnseca das peas, mas ainda a relao doscnticos com os dados relevantes de carcter histrico, Htrgico e analtico que o presente captulo se prope expor.

    Este conselho tanto mais pertinente quanto desde a substituio do latim pelaslnguas vernculas, com o Concilio Vaticano H, de 1962-1965, o cantocho pratica-mente desapareceu dos servios regulares da igreja catlica. Na Europa continua a usar-se em certos mosteiros e em determinados servios de algumas das maioresigrejas paroquiais; na Amrica muito menos cultivado. Se bem que, em teoria, o latim continue a ser a lngua oficial e o cantocho a msica oficial da Igreja, na pr-tica os cnticos tradicionais tm vindo a ser, em grande medida, substitudos por m-sica considerada prpria para ser cantada por toda a congregao: verses simplifica-das das melodias mais familiares, canes de composio recente, experinciasocasionais no campo dos estilos populares. Quando as melodias autnticas so adap-tadas ao vernculo, o carcter musical do canto fica inevitavelmente alterado.

    O reportro do cantocho e as liturgias a que esse reportrio pertencia desenvol-veram-se ao longo de muitos sculos e continuaram a evoluir e a modificar-se, embora

    50

    certos rituais tenham permanecido bastante estveis. A maior parte dos cnticos tive-ram origem na Idade Mdia, mas mantiveram-se vivos e foram ininterruptamentecantados desde esse tempo, se bem que muitas vezes em verses abastardadas. Porisso, o cantocho , ao mesmo tempo, uma instituio histrica, um reportrio demsica cantada nos concertos de msica antiga e um tipo de msica cerimonial aindahoje em uso. O historiador fica dividido entre, por um lado, o desejo de o apresentarem verses autnticas e em enquadramentos funcionais que correspondam variabi-lidade das prticas medievais e, por outro, a forma como o reportrio surge em ediesrecentes e nos usos da Igreja. Uma vez que as verses do cantocho ao dispor doestudante e as gravaes delas efectuadas se baseiam nas publicaes oficialmenteaprovadas pelo Vaticano, na sua grande maioria editadas pelos monges da abadiabeneditina de Solesmes, parece-nos prudente abordar o reportrio do cantocho par-tindo das convenes utrgicas observadas em pocas recentes, muito embora talabordagem obscurea a sucesso cronolgica dos estilos e das prticas. Correndo o risco de violarmos a distncia entre o passado e o presente, mergulharemos, pois, noreportrio tal como foi reconstrudo no final do sculo xrx e incio do sculo xx e talcomo foi amplamente executado at h bem pouco tempo; assim partilharemos, pelomenos em certa medida, a experincia dos monges e dos leigos da Idade Mdia.

    A LITURGIA ROMANA As duas categorias principais de servios religiosos so o ofcio e a missa.

    Os ofcios, ou horas cannicas, codificados pela primeira vez nos captulos 8 a 19 da Regra de S. Bento (c. 520), celebram-se todos os dias, a horas determinadas,sempre pela mesma ordem, embora a sua recitao pblica s seja geralmente obser-vada nos mosteiros e em certas igrejas e catedrais: matinas (antes do nascer do Sol),laudas (ao alvorecer), prima, tera, sexta, nonas (respectivamente pelas 6 da manh,9 da manh, meio-dia e 3 da tarde), vsperas (ao pr do Sol) e completas (normal-mente logo a seguir s vsperas). O ofcio, celebrado pelo clero secular e pelosmembros das ordens religiosas, compe-se de oraes, salmos, cnticos, antfonas,responsos, hinos e leituras. A msica para os ofcios est compilada num livro litr-gico chamado Antiphonale, ou Antifonario. Os principais momentos musicais dos of-cios so o canto dos salmos, com as respectivas antfonas, o canto dos hinos e doscnticos e a entoao das lies (passagens das Escrituras), com os respectivosresponsrios. Do ponto de vista musical, os ofcios mais importantes so as matinas,as laudas e as vsperas. As matinas incluem alguns dos mais antigos cantos da Igreja.As vsperas compreendem o cntico Magnificat anima mea Dominum (A minhaalma glorifica o Senhor, Lucas, 1,46-55); e, na medida em que este oficio era o nicoque desde os tempos mais remotos admitia o canto polifnico, adquire especial impor-tncia para a histria da msica sacra (v. a anlise de NAWM 4, segundas vsperasdo Natal, mais adiante neste captulo). Aspecto caracterstico das completas o cantodas quatro antfonas da Santa Virgem Maria, as chamadas antfonas marianas, umapara cada uma das divises principais do ano htrgico1: Alma Redemptors Mater

    1 As principais pocas do ano litrgico so o Advento, que comea no quarto domingo antes doNatal, o Natal, que inclui os doze dias at Epifana (6 de Janeiro) e as semanas seguintes; a Qua-resma, da quarta-feira de Cinzas at Pscoa; o tempo da Pscoa, que inclui a Ascenso (quarenta

    51

  • (Doce me do Redentor), desde o Advento at ao dia 1 de Fevereiro; Ave, Regina caelorum (Salve, rainha dos cus), de 2 de Fevereiro quarta-feira da SemanaSanta; Regina caeli laetare (Alegrai-vos, rainha dos cus), da Pscoa at ao domingoda Trindade, e Salve, Regina (Salve, rainha), da Trindade at ao Advento (v. a ilus-trao mais frente e o exemplo 2.1).

    A missa o servio religioso mais importante da igreja catlica. (Para um anlisede um missa tpica completa, v. a anlise de NAWM 3, mais adiante neste captulo.)A'palavra missa vem da frase que termina o servio: Ite, missa est (Ide-vos, a congregao pode dispersar); o servio tambm conhecido, noutras igrejas crists,pelos nomes de eucaristia, liturgia, sagrada comunho e ceia do Senhor. O acto comque culmina a missa a comemorao ou celebrao da ltima ceia (Lucas, 22, 19-20, e 1 Corintios, 11, 23-26), atravs da oferta e consagrao do po e do vinho e da partilha destes entre os fiis.

    Na igreja catlica a forma plena, cerimonial, de celebrar a missa recebe o nomede missa solene (missa solemnis) e inclui um bom nmero de peas cantadas por umcelebrante, um dicono e um subdicono, alm do cantocho ou canto polifnicointerpretado por um coro e/ou pela congregao. A missa rezada (missa privata) uma verso abreviada e simplificada da missa em que um padre (celebrante) desem-penha as funes que na missa solene competiam ao dicono e ao subdicono e umaclito toma o lugar do coro e de todos os restantes rninistros; na missa rezada aspalavras so ditas, em vez de cantadas. Compromisso moderno entre a missa solenee a missa rezada a missa cantada (missa cantata), em que um nico padre celebraa missa, mas assistido pelo coro e/ou pela congregao, cantando cantocho oupolifonia.

    Os diversos elementos da missa foram entrando na liturgia em momentos e emlugares diferentes. Logo nas primeiras descries da celebrao da ltima ceia, ou eucaristia, se torna evidente que a cerimnia se divide em duas partes: a litur-gia da palavra e a liturgia da eucaristia. J por volta de 381-384, Egria, umaperegrina da Espanha ou da Glia, referindo-se Uturgia em Jerusalm, fala dasoraes, das leituras e dos cnticos que assinalavam as diversas partes dos servios(v. vinheta). O Ordo romanus primus, um conjunto de instrues do final do sculovn para a celebrao da Uturgia, promulgado pelo bispo de Roma, menciona o introito, o Kyrie, o Gloria e a colecta como devendo preceder as leituras da BbUa,nomeadamente dos Evangelhos, e as oraes dos fiis reunidos para a eucaristia. Osprimeiros cristos foram incitados a reunirem-se para darem graas (eucharistein, emgrego) e louvarem a Deus. As oraes de graas, a ddiva de oferendas e a partilhado po acabaram por se combinar na Uturgia da eucaristia, em que eram lembradoso sacrifcio de Cristo e a ltima ceia, recebendo os fiis, em comunho, o po e o vinho que os Padres da Igreja consideravam como sendo o corpo e o sangue deCristo. Nos finais do sculo vi j o cnone da missa estava bastante bem definido; a cerimnia comeava com um dilogo em que o celebrante pedia s pessoas para sealegrarem nos seus coraes e terminava com a comunho e uma orao a seguir comunho. Vrios sacramentrios, Uvros de instrues para o celebrante da eucaris-

    dias depois da Pscoa) e se prolonga at ao Pentecosts, dez dias depois da Ascenso ou setesemanas depois da Pscoa; e a Trindade, do primeiro domingo a seguir ao Pentecosts at ao inciodo Advento. O Advento e a Quaresma so, por vezes, designados como as pocas penitenciais.

    52

    tia, do baptismo e de outros ritos, datando de cerca do ano 600 ou pouco depois,evidenciam uma uniformidade na prtica desta parte central da missa. Em 1570 foipublicado pelo papa Pio V um missal (Uvro contendo os textos para a missa), reflec-tindo as decises do Concilio de Trento, e assim ficaram fixados os textos e os ritos (Uturgia tridentina) at serem modificados pelo Concilio Vaticano LI nos anos 60 donosso sculo. A missa, tal como comeou a ser celebrada a partir do final da IdadeMdia e veio a ser codificada pelo missal de 1570, pode esquematizar-se conformese v na figura 2.1.

    Na sua forma tridentina, a Uturgia da missa comea com o introito; tratava-se,originalmente, de um salmo completo com a sua antfona, cantado durante a entradado padre (a antiphona ad introitum, ou antfona para a entrada), mas ficou maistarde reduzido a um s versculo do salmo com a respectiva antfona. Imediatamentea seguir ao introito o coro canta o Kyrie, com as palavras gregras Kyrie eleison, (Senhor, tende piedade de ns), Christe eleison (Cristo, tende piedade de ns),Kyrie eleison, sendo cada invocao cantada trs vezes. Segue-se depois (excepto naspocas penitenciais do Advento e da Quaresma) o Gloria, iniciado pelo padre comas palavras Gloria in excelsis Deo (Glria a Deus nas alturas) e continuado pelocoro a partir de Et in terra pax (E paz na Terra).

    Q ^ 2 )

    UM OFCIO PRIMITIVO EM JERUSALM (TESTEMUNHO DIRECTO DE EGRIA)

    Assim que canta o primeiro galo, logo o bispo desce e entra na cave da Anastase. Abrem-se

    todas as portas, e a multido inteira entra na Anastase, onde j ardem inmeras lamparinas,

    e, quando toda a gente est l dentro, um dos padres canta um salmo e todos respondem, aps

    o que se segue uma orao. Depois, um dos diconos canta um salmo, igualmente seguido de

    uma orao, e um terceiro salmo cantado por um outro clrigo, seguido de uma terceira

    orao e da comemorao de todos. Cantados estes trs salmos e rezadas as trs oraes, so

    trazidos incensrios (thiamataria) para a cave da Anastase, de forma que toda a baslica da Anastase se enche do seu aroma. E ento o bispo passa para trs da balaustrada, levando o

    livro dos Evangelhos, vai at porta, e o prprio bispo quem l a Ressurreio do Senhor.Quando comea a leitura, elevam-se por toda a parte tais lamentos e gemidos, tais prantos,

    que mesmo o corao mais duro se comoveria at s lgrimas por o Senhor ter sofrido tanto

    por amor de ns. Lido o evangelho, o bispo sai do seu posto e aproxima-se da cruz ao som

    dos hinos, seguido por toda a gente. Tambm ento cantado um salmo e rezada uma orao.

    Depois ele benze os fiis e manda-os sair. E, quando o bispo sai, todos se aproximam para

    lhe beijarem a mo.

    Do Itinerarium Egeriae, xxiv, 9-11, in Music in Early Christian Literature, T. W. Mckinon (d.), Cambridge,

    Cambridge University Press, 1987, p. 115.

    Vm ento as oraes (colecta) e a leitura da epstola do dia, seguida do gra-dual e do aleluia, ambos cantados por um soUsta, com responsos pelo coro. Emcertas festividades, por exemplo, na Pscoa, o aleluia seguido de uma seqncia.Nas pocas penitenciais o aleluia substitudo pelo tracto, mais solene. Aps a lei-tura do evangelho vem o Credo, iniciado pelo padre com Credo in unum Deum

    53

  • (Creio em um s Deus) e continuado pelo coro a partir de patrem omnipoteh-tem (pai omnipotente): O Credo, juntamente com o sermo, quando o haja, assinalao fim da primeira grande diviso da missa; segue-se depois o prprio da eucarisrtia. Durante a preparao do po e do vinho canta-se o ofertorio. Seguem-se-lhevrias oraes eo prefcio, que conduz ao Sanctus (Santo, santo, santo) e. aoBenedictus (Bendito seja,O que vem), ambos cantados pelo coro. Vem depois o cnon, ou prece d consagrao, seguido do Pater Noster (a orao do Senhor) e do Agnus Dei (Cordeiro de Deus). Depois de consumidos o po e o vinho, o corocanta o Communio, aps o que o padre entoa as oraes do Post-communio. O ser-vio termina ento com a frmula de despedida Ite, missa est, ou Benedicamus Do-mino (Bendigamos ao SenhoD>), cantada de forma reponsorial pelo padre e pelocoro.

    Os textos de certas partes da missa so invariveis; outros mudam conforme a poca do ano ou as datas de determinadas festividades ou comemoraes. As partesvariveis designam-se pelo nome de prprio da missa (proprium missae). Fazemparte do prprio a colecta, a epstola, o evangelho, o prefcio, as oraes do ps-co-mnio e outras oraes; os principais momentos musicais do prprio so o introito,o gradual, o aleluia, o trato, o ofertorio e o comnio. s partes invariveis do serviod-se o nome de ordinrio da missa (ordinarium missae): o Kyrie, o Gloria, o Credo, o Sanctus, o Benedictus e o Agnus Dei. Estas partes so cantadas pelo coro, emboranos primeiros tempos do cristianismo fossem tambm cantadas pela congregao. Dosculo XIV em diante so estes os textos mais freqentemente elaborados em polifonia,de forma que o termo missa muitas vezes, usado pelos msicos para designar apenasestas seces, como acontece na Missa solemnis de Beethoven.

    Figura 2.1 Missa solene

    Prprio Ordinrio

    Introduo

    Introito

    Colecta

    Kyrie

    Gloria

    Liturgia da palavra

    EpstolaGradualAleluia/tracto (raro hoje em dia,

    comum na Idade Mdia)Evangelho[Sermo]

    Credo

    Liturgia da eucaristia

    OfertorioPrefcio

    ComunhoPs-comunho

    Sanctus

    Agnus Dei

    te, missa est

    54

    - raA l - ve, * Re-g- na, mter mi-se-ricrdi- ae :

    . !

    V i - ta, dulc- do, et spes nstra, sl-ve. A d te

    I -h i - M -

    clam-mus, xsu-les, f-li- i Hvae. A d te suspi-r

    - T "~1*>

    a

    . * 1>J'

    ms, gemntes et fln-tes in hac lacrim-rum vlle.

    --lH-

    E - ia ergo, Advoc- ta nstra, llos t- os rri-se-ri-

    g n h

    -~ *- =rWi

    crdes cu-los ad nos convr-te. E t Jsum, bened-

    e-

    - F a -

    ctum frctum vntris t- i, n-bis post hoc exs-l- um

    S

    3^

    os-tnde. O

    5=

    Icl-mens : O p- a : O dlcis

    Antfona Santa Virgem Maria, Salve, Regina, mater misericor-diae (Salve, rainha, me de misericordia), tal como aparece num livro moderno, reunindo os cnticos mais freqentemente usados

    * Virgo Ma-r- a, na missa e no ofcio, o Liber usualis

    -f^-

    Uma missa especial, tambm objecto de arranjos polifnicos (embora s a partirde meados do sculo xv) a missa de finados, ou missa de requiem, assim chamadaa partir da primeira palavra do seu introito, que comea com a frase Requiem aeternam dona eis, Domine (Dai-lhes, Senhor, o eterno repouso). A missa de requiem temum prprio especial, que no varia com o calendrio. O Gloria e o Credo sosuprimidos, e a seqncia Dies irae, dies illa (Dia de ira aquele em que o uni-verso...) inserida logo a seguir ao tracto. As modernas missas de requiem (porexemplo, as de Mozart, Berlioz, Verdi e Faur) incluem alguns dos textos do prprio,como o introito, o ofertorio Domine Jesu Christe, a comunho Lia aeterna (Luzeterna) e, por vezes, o responsrio Libera me, Domine (Livrai-me, Senhor).

    A msica para a missa, quer para o prprio, quer para o ordinario, vem compiladanum livro htrgico, o Gradale. O Liber usualis, outro livro de msica, contm umaseleco dos cnticos mais freqentemente utilizados, tanto do Antiphonale como doGradale. Os textos da missa e dos ofcios so coligidos, respectivamente, no Missal(Missale) e no Breviario (Breviarium).

    55

  • Exemplo 2.1 Antfona: Salve, Regina

    MODE i

    Ad te sus pi - ra - mus, ge-mcn - tes et flen - tes in hac

    la - cri - nu - rum vil - le. E - ia er - go, Ad-vo- ca - a

    no - stra, il -los tu- o s m i - s e - r i - c o r - des o- cu -los

    ad nos con - ver - te. Et Je - sum, be- ne - di - ctum fructum ven

    O du] - cis 'Vu-go M a - r i - a.

    Sa/ve, rainha, me de misericrdia! Vida, doura e esperana nossa, salve! A vs bradamos, os degredados filhos de Eva. A vs suspiramos, gemendo e

    chorando neste vale de lgrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos

    olhos misericordiosos a ns volvei. E depois deste desterro nos mostrai Jesus,

    bendito fruto do vosso ventre. O clemente, piedosa, doce Virgem Maria.

    Esta transcrio moderna reproduz alguns dos sinais que acompanham os neumas no ma-

    nuscrito. O asterisco indica onde que o canto alterna entre o solista e o coro ou entre as

    duas metades do coro. A linha horizontal debaixo de certos pares de notas representa um

    ligeiro prolongamento dessas notas. As notas mais pequenas correspondem a um sinal que

    talvez indique uma ligeira vocalizao da primeira consoante em combinaes como ergo,

    ventris. A linha ondulada representa um sinal que impunha, provavelmente, uma leve orna-

    mentao da nota, qualquer coisa que talvez se assemelhasse a um breve trilo ou mordente.

    A NOTAO MODERNA DO CANTOCHO Para 1er ou cantar os cnticos numa edio em

    que se adopta a notao moderna do cantocho necessrio estar de posse dasseguintes informaes: a pauta de quatro linhas, uma das quais designada por uma

    56

    clave como correspondente a d' ( [ ) ou / (

  • quaisquer espcimes. Foi pouco mais ou menos esta a interpretao avanada pelosautores dos sculos vm e rx que identificaram essa fonte comum como sendoS. Gregorio em pessoa.

    Uma lenda que data do sculo rx conta-nos de que modo o papa Gregorio Magnocompilou o corpus do cantocho. Uma pomba ditava-lhe os cnticos ao ouvido e eleia-os cantando para um escriba, instalado atrs de um tabique, que os registava porescrito (v. ilustrao mais adiante). O escriba decidiu investigar o que se passava aodar pelas pausas regulares entre as frases, correspondentes aos momentos em que a pomba ditava. A interveno da pomba , evidentemente, uma alegoria da inspiraodivina, mas h um pormenor de ordem prtica que historicamente inverosmil: nohavia nessa poca qualquer notao apropriada que o escriba tivesse podido utilizar.Para alm disso, atribuir todo o reportrio do cantocho a um nico compositor ummanifesto exagero. Gregorio at poder no ter sido compositor. No se sabe ao certoqual ter sido o seu contributo. Julga-se que ter sido, pelo menos, responsvel pelaorganizao de um livro htrgico ou sacramentrio livro que contm as oraesrezadas pelo bispo ou padre durante a missa.

    O modo como se conseguiu fixar, antes de existir notao, um reportrio to vastocomo o era j o corpus do cantocho no momento em que comeou a ser registadopor escrito tem sido tema de ampla reflexo e numerosos estudos. Formulou-se a teoria de que o cantocho teria sido reconstitudo em parte de memria e em parteatravs da improvisao no momento dos ensaios de grupo ou da exibio dossolistas, recorrendo-se a um conjunto de convenes que se aplicavam a determinadasocasies e funes htrgicas.

    Assim, para um momento do servio num dado dia de festa havia maneirasconsagradas de iniciar o cntico, de o continuar, de fazer uma cadncia intermdia,de o prosseguir de novo e de o rematar. As frmulas para cantar os salmos funcionamdeste modo, mas os cnticos mais elaborados exigiram uma mais ampla gama deopes e elementos meldicos mais complexos para serem combinados numa inter-pretao fluente. O maior ou menor grau de dependncia em relao a anterioresexecues, quer escutadas, quer cantadas pelos intrpretes de cada actuao, variavaconsoante o gnero e a funo do cntico; certos tipos de canto atingiram uma formaestvel mais cedo do que outros.

    Esta teoria da composio oral derivou em parte da observao dos cantores delongos poemas picos, nomeadamente na Iugoslvia dos dias de hoje, que conseguiamrecitar milhares de versos, aparentemente de memria, mas, na realidade, seguindofrmulas precisas que regiam a associao dos temas, a combinao dos sons, asformas sintcticas, os compassos, as cesuras, os finais dos versos, e assim por diante2.Na prpria literatura do cantocho h indcios que apontam para esta abordagematravs de frmulas, como se v pelo exemplo 2.23, no qual se compara a segunda

    2 V. The Making of Homeric Verse: The Collected Papers Milman Parry, Adam Parry (ed.),Oxford, 1971, e Albert Lord, The Singer of Tales, Cambridge, Mass., 1960, e Nova Iorque, 1968(sup. 3); v. ainda Leo Treitler, Homer and Gregory: the transmission of epic poetry and plainchant,MQ, 60, 1974, 333-372, e Cantnate chant: Ubles Flichverk or E pluribus imum, JAMS, 28,1975,1-23.

    3 Extrado de Le Treitler, Homer and Gregory: the transmission of epic poetry and plainchant,MQ, 60, 1974, 361.

    58

    frase de diversos versculos do tracto Deus, Deus meus com um exemplo de salmodiaa solo, tal como o encontramos nas tradies gregoriana e romana antiga.

    Notar-se- que tanto o registo sistemtico por escrito das melodias do cantochocomo a sua atribuio a uma inspirao divina coincidem com uma enrgica campa-nha dos monarcas francos no sentido de unificarem o seu reino poliglota. Um dosmeios necessrios para alcanar este objectivo era uma liturgia e uma msica de igrejaque fossem uniformes e constitussem um elo de ligao entre toda a populao.Roma, to venervel no imaginrio medieval, era o modelo mais bvio. Um grandenmero de missionrios htrgico-musicais deslocou-se de Roma para o Norte nofinal do sculo vm e no sculo rx, e a lenda'de S. Gregorio e do canto divinamenteinspirado foi uma das suas armas mais poderosas. Naturalmente, os seus esforosdepararam com uma certa resistncia e houve um perodo de grande confuso antesde, finalmente, se conseguir a unificao pretendida. O registo das melodias porescrito ter ento sido um dos meios de garantir que os cnticos seriam doravanteinterpretados em toda a parte da mesma forma.

    Entretanto, continuava a fazer-se sentir a presso no sentido da uniformidade. A no-tao musical primeiramente com uma funo de auxiliar de memria, s depoispassando a registar intervalos precisos apenas surgiu quando j se atingira umaconsidervel uniformidade no quadro da interpretao improvisada. A notao, emsuma, foi tanto uma conseqncia dessa uniformidade como um meio de a perpetuar.

    Exemplo 2.2. Tracto Deus, Deus meus nas tradies gregoriana e romana antiga

    V5,(7,8) pa-tres no - - - - - stri

    Extrado de MQ, 60, 1974, 361, reproduo autorizada.

    59