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Cantos Populares

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  • Ie ne fay rien sans

    Gayet (Montaigne, Des livres)

    Ex Libris Jos Mindlin

  • CANTOS POPULARES

    DO BKAZIL VOLUME I

  • EDIES DA NOVA LIVRARIA INTERNACIONAL DE LISBOA T h e o p l i i l o B r a g a : Solues Positivas da Poltica

    Portugueza. I Da aspirao revolucionaria e sua discipli-na em opinio democrtica. II Do systetna constitucional, como transigncia provisria entre o absolutismo e a re-voluo. III e IV Historia das idias democrticas em Por-tugal, desde 1640 at 1880. 3 vol. 920 reis Dissoluo do systema monarchico constitucional. 300 reisHistoria Universal, esboo de sociologia descriptiva. 2 vol. 2#000 reis Historia do Romantismo em Portugal, ultima par-te da Historia daLitteratura Portugueza. 2 vol. 141400 reis.

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    P r o u d h o n : Do principio de Federao, traduco do dr. A. J. Nunes Jnior, 240 reis.

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    C y p r i a n o J a r d i m : O Casamento Civil, comedia-dra-ma em 4 actos, representada pela primeira vez no thea-tro de D. Maria II m agosto d 1882, 400 reis.

    B i b l i o t h e c a d a s I d i a s M o d e r n a s : I A Con-trovrsia da edade da terra por Drapper, traduco de Teixeira Bastos II As origens da famlia por Lubbock, condensao por T. Bastos III A theoria atmica na concepo geral do mundo por Wurtz, traduco de Cor-reia Barreto IV Natureza dos elementos chimicos por Berthelot, traduco de C. BarretoV Reguladores da vida humana por Moleschott, traduco de Carrilho Vi-deira. VI Os Velhos Continentes por Ramsay, traduco de T. Bastos VII O que a fora por Saint-Robert, tra-duco de Correia Barreto VIII A Sociedade Primitiva por Taylor, traduco de Teixeira Bastos IX A evoluo dos seres vivos por Schmidt, traduco de Carrilho Vi-deira.

  • CANTOS POPULARES

    DO BRAZIL COLLIGIDOS

    Pelo DR. SYLVIO ROMllO Professor do Collegio Pedro n

    ACOMPANHADOS DE INTRODUCO E NOTAS COMPARATIVAS

    Por THEOPHILO BRAGA

    VOLUME I

    LISBOA v . , NOVA LIVRARIA INTERNACIONAL EDITORA

    * - * .

    *v f^c$.>t-' 96, Rua do Arsenal, 96 %&3BJS1 1883

  • Porto Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Rua da Cancella Velha, 02

  • ADVERTNCIA

    Esta colleco de CANTOS POPULARES DO BRAZIL estava prompta ha seis annos. A co-lheita foi feita directamente pelo signatrio d'estas linhas em Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro e em menor escala na Bahia e Alagoas.

    Dos escriptos sobre este assumpto de Celso de Magalhes, Jos de Alencar, Couto de Ma-galhes, Carlos de Koseritz, Carlos Miller e Theophilo Braga, o collector joeirou alguns specimens da nossa poesia popular. Araripe Jnior, Franklin Tavora e Macedo Soares, en-viaram-lhe espontaneamente alguns subsidios. Tudo isto nptado no correr do volume. Aquillo que nofi colligido por ns franca-mente o declaramos.

  • VI ADVERTNCIA

    A obra se divide em quatro partes: Roman-ces e Xacaras, Reinados e Cheganas, Versos ge-raes, Oraes. Leva um appendice contendo uma silva de Quadrinhos soltas do Rio Grande do Sul, que devemos ao snr. Carlos de Ko-seritz.

    A primeira parte encerra os Romances e Xa-caras de origem portugueza e os celebres Ro-mances de Vaqueiros, que constituem um dos cyclos mais importantes da nossa poesia po-pular.

    A segunda consta dos versos cantados nas Janeiras; ahi, ao lado da poesia herdada, ha muita inspirao puramente local e brazileira.

    Na terceira parte, a que conservamos a de-nominao que tem em Sergipe, afastamo-nos do methodo geralmente seguido, que consiste em enfeixar uma multido de quadrinhos, constituindo uma sylva.

    Notmos que na tradio estes versos an-dam grupados em todos harmnicos, que tm um sentido determinado. Os versos so repeti-dos em seces distinctas, e ns conserva-mol-as.

    A quarta e ultima parte exigua e de pe-queno interesse ao par das outras. Nada temos a dizer aqui sobre o modo por que encaramos a poesia anonyma do Brazil. Este trabalho j

  • ADVERTNCIA VII

    foi feito nas paginas da REVISTA BRAZILEIRA, e dal-o-hemos em volume n'esta serie.

    Resta-nos apenas agradecer a todos aquel-les que nos ajudaram n'esta improba tarefa, e especialmente aos snrs. Thophilo Braga e Carrilho Videira, que to galhardamente se offereceram para salvar das traas esta coliec-o, que foi repellida pelos livreiros e edito-res brazileiros com o mesmo horror com que se foge da peste.

    Rio de Janeiro Novembro de 1882.

    Silvio U^omcro.

  • SOBRE A POESIA POPULAR DO BRAZIL

    A populao do vasto territrio do Brazil, constitu-da pelo elemento preponderante da antiga colonisao e da actual emigrao portugueza, pela cohabitao da rapa negra e pela mestiagem com os povos indgenas, adquiriu caracteres prprios de ordem sentimental, intel-lectual e econmica que a levaram a afiirmar a sua individualidade de nao. Existe uma nacionalidade brazileira superior a todas as combinaes da poltica e dos interesses dynasticos, formada pelas condies fataes da ethnologia e da mesologia, e qual a marcha hist-rica das suas luctas pela independncia e do seu confli-cto com as velhas civilisaes europas vem completar -a obra da natureza dando-se o relevo moral, o caracter

  • X INTR0DUCA0

    e o destino consciente no concurso simultneo de todos os seus factores. A nacionalidade brazileira est n'este perodo de transio; os vestgios tradicionaes dos seus elementos constitutivos acham-se em contacto, pene-tram-se, confundem-se entre si para virem a formar a poesia de um povo joven e o thema fecundo de bellas creaes litterarias e artsticas de uma civilisao origi-nal. n'este momento nico na historia da formao de uma nacionalidade, que os Cantos populares do Brazil foram colligidos, adquirindo por isso o valor de um do-cumento importantissimo, que viria a obliterar-se com certeza; n'esses cantos ha ainda as suturas distinctas dos seus elementos primordiaes, e ha j a feio defini-da que comea a caracterisar o gnio brazileiro na lit-teratura e na arte. parte o interesse que se liga a es-te documento etbnologico, os Cantos populares do Bra-zil apresentam um duplo valor, porque trazem os the-mas tradicionaes sobre que a nova litteratura brazileira tem de assentar as suas bases orgnicas, e porque so a irradiao remota dos vestgios tradicionaes deixados pelo povo portuguez na poca da sua grande actividade e expanso colonisadora.

    0 Brazil, cuja poesia tanto desvairou pela imitao do subjectivismo byroniano, e cuja Litteratura nascente se amesquinhou seguindo longo tempo o nosso atrazado romantismo europeu, s poder achar o seu caracter original conhecendo e comprehendendo o elemento ethnico das suas tradies populares. O vigoroso critico

  • INTR0DU0AO XI

    e intelligente professor Sylvio Romro coordenando a colleco dos Cantos populares do Brazil, completa o pensamento;fundamental da sua Introduco d Historia da Litteratura brazileira apresentando a matria pri-ma de creao anonyma para ser elaborada pelos g-nios individuaes. A fundao da litteratura allera co-meou pelos trabalhos de explorao scientifica sobre as antigas tradies do gnio germnico; em Portugal, Garrett ao iniciar a transformao romntica da littera-tura, presentiu o critrio novo interrogando no seu Ro-manceiro a tradio popular. Os escriptores mais origi-naes e queridos do povo portuguez, os que exerceram uma aco mais profunda, como Gil Vicente e Cames, Jorge Ferreira e Garrett, foram os que se inspiraram directamente das tradies populares; e assim como por estas se avalia a originalidade e fecundidade das creaes litterarias, so ellas tambm o meio mais se-guro de actuar na conscincia nacional e de infundir vigor no seu individualismo.

    Os Cantos populares do Brazil so o deposito au-gusto conservado da vida moral transmittido pela me ptria: sob este aspecto, vem elles completar a tradio portugueza, to apagada j no continente, e to vigo-rosa nas colnias distantes, como se v pelos opulentos tbesouros dos Cantos populares do Archipelago aora-no, e pelo Romanceiro do Archipelago da Madeira. Es-te facto uma lei da historia que se confirma com a poesia de outras naes ^ nas colnias distantes que

  • XII INTRODUCAO

    se d a persistncia tradicional, que vem a reagir no renascimento moral da metrpole. Nas colnias gregas da sia Menor, nas luctas de assimilao entre as tribus jonicas e elicas, que se elaboraram as epopas ho-mericas, que deram Grcia essa coheso moral com que resistiu invaso da Prsia, salvando os destinos da civilisao do Occidente. * D-se o mesmo phenomeno com a Itlia, cujos veios tradicionaes apresentam a sua maior riqueza nas ilhas da Sicilia, da Sardenha e da Corsega, como o afflrma Rathery; e emquanto a Hespa-nha era asphyxiada pelo intolerantismo catholico, que pelos seus ndices expurgalorios prohibia os cantos do povo, faziam-se as primeiras colleces de Cantos tradi-cionaes de Nagera e Martin Nucio, para acudir s ne-cessidades de sentimento dos soldados expedicionrios nas guerras da Itlia e dos Paizes Baixos. Tambm as primeiras investigaes da poesia tradicional da Finln-dia, pelo bispo Porthan em 1786 s se tornaram fecun-das quando novos eruditos, como Topelius em 1820, e Lnrot em 1832, levaram as suas investigaes fora da prpria Finlndia, pelas colnias dos emigrantes de Ar-khangel, no districto de Wuokkiniemi, na Carelia, na Laponia e na Sibria. Na Pequena-Russia d-se um facto semelhante: Conhecem-se as bylinas russas que cele-bram os feitos de Vladimir, prncipe de Kief, d'Ilia, de

    1 Ottf. Miiller, Hist. da Litteratura grega, t. , p.

    trad. Hildebrand.

  • INTRODUCAO XIII

    Alecha Popovitch, e outros derrubadores de Tartaros e drages* O que ha aqui de extranho, que estas byli-nas so cantadas de um ao outro extremo da Grande-Russia,'a ponto de se colligirem sobre o Onega, sobre o Moscova, sobre o Volga, ao passo que na Pequena-Rus-sia so desconhecidas do povo. precisamente nos ar-redores d'esta cidade de Kief, em cujas barreiras vela-ram os heroes d'essas lendas e que conserva nas suas catacumbas o corpo de Ilia de Murom, que o aldeo perdeu completamente a memria dos seus feitos. *

    No renascimento da poesia. tradicional portugueza repete-se este phenomeno importante de ser na emigra-o que Garrett conheceu a existncia de um Romanceiro nacional, e de ser do elemento colonial que provieram as principaes riquezas poticas que acordaram o inte-resse dos crticos. Costa e Silva colligiu da verso oral de uma senhora de Goa o romance- popular da Donzella guerreira, que imprimiu como thema originrio do seu poema Isabel ou a Heroina de Arago; e Garrett, recor-dando-se da sua infncia, aponta a circumstancia que o levou ao desenvolvimento do seu Romanceiro: Foi o caso, que umas criadas velhas de minha mi, e uma mulata brazileira de minha irm, appareceram sabendo vrios romances... 2 Aqui o phenomeno individual

    1 Rambaud. O Congresso archeologico de Kief. (Rev. des

    Deux Mondes, 1874, p. 803). 8 Romanceiro, 1.1, p. xvi.

  • XIV INTR0DUCA0

    explica o phenomeno social; a colnia conserva o esta-do da civilisao que recebeu em uma dada poca e que o isolamento torna estvel, da mesma frma que o indivduo quanto mais se immerge nas nfimas camadas sociaes mais persiste na situao psychologica rudimen-tar de que j esto afastadas as classes cultas. Tal o phenomeno da sobrevivncia dos costumes entre o po-vo. Na investigao dos Cantos populares do Brazil, a vitalidade da tradio potica despertou o interesse dos crticos longe da capital, no Maranho, onde o mallogra-do Celso de Magalhes comeou a sua colheita de Ro-mances, em Sergipe, terra natal de Sylvio Romro, que continuou em Pernambuco as suas pesquizas durante o curso acadmico, e no Rio Grande do Sul, onde Carlos Koseritz colligiu os cantos lyricos. Alm do seu valor nacional, estes trabalhos vm completar a serie de in-vestigaes na rea colonial, to fecunda como se v pelos Romanceiros dos archipelagos dos Aores e Madei-ra, e que agora nos explicam a razo por que que Portugal sobreviveu sempre como nacionalidade atra-vs das mais profundas catastrophes. porque possuia uma tradio profunda.

    Para atacar esta nacionalidade foi preciso fazer es-quecer ao povo os seus cantos, substituindo-os por ora-es fnebres. D. Joo de Mello, bispo de Coimbra, mandou compor um catechismo e fel-o decorar fora pelos povos das aldas : era muito para louvar a Deus vr andar os rsticos aldeanos trabalhando no campo,

  • INTRODUCAO XV

    e }viLm&itQ/r$antando em logar de outras cantigas, a doutrina do papel, para lhes ficar na memria. 1 Sa-be-se como o Padre Ignacio de Azevedo, arrebanhava as crianas sob o Pendo da Santa Doutrina e lhes fazia decorar versos de jaculatorias insulsas, e como Frei Antnio de Portalegre metrificava a Paixo para elimi-nar do vulgo o gosto dos romances hericos. A tradio apagava-se em Portugal, e a nacionalidade cahia e in-corporava-se como provncia Hespanha sem protesto e sem dignidade. Pelas Dcadas de Diogo do Couto que se conhece como a tradio revivescia nas conquistas da ndia; traz o chronista muitos romances allusivos a factos histricos e a situaes notveis. Citaremos algu-mas das suas referencias:

    Pelos campos de Salsete mouros mil feridos so; vae-lhes dando no enealso o de Castro D. Joo. Vinte mil eram por todos...

    (Dcada vi, liv. 4, cap. 10).

    Satyrisavam em Goa o vice-rei D. Constantino de Bragana com este romance:

    Mira Nero da janella Ia nave como se haria.

    (Dcada vn, liv. 9, cap. 17).

    1 Padre Manoel Bernardes, ltimos fins do homem, p. 403.

  • XVI INTRODUCO

    Na Dcada iv, livro 8, cap. 11, traz esse estribilho lyrico:

    Olival, Olival verde, Azeitona preta, Quem te colhera t

    E com relao a dadas situaes dos guerreiros, al-lude aos romances com que entre si se entendiam:

    Dom Duarte, Dom Duarte mal caballero provado.

    {Dcada vn, liv. 5, cap. S).

    Entram os gregos em Troya trs a trs e quatro e quatro.

    (Ibid. viu, cap. 38).

    Vmonos, dixo mi tio, a Paris, essa ciudad nom en trajos de Ro meros porque no os conosca Galvan...

    (Ibid. ix, cap. 12).

    Nas obras de Cames ha muitas referencias aos ro-mances tradicionaes, sobretudo nas Cartas que escreveu da ndia; v-se que longe da metrpole a poesia con-servava todo o seu vigor. Estes factos nos levam a in-ferir que na primeira poca da colonisapo do Brazil de-

  • INTRODUCAO XVII

    veria ter existido uma forte corrente de poesia tradicio-nal, no inferior que se manifestava na ndia; porm os documentos faltam, e o nico trecho citado pertence ao elemento negro, o Vem cd, Vitu. 0 que se pde con-cluir, sendo o elemento colonial do Brazil o mesmo que o da ndia, que as tradies poticas na populao brazileira foram no s deturpadas pelas tradies da classe negra e do selvagem, como systematicamente es-quecidas pelo desprezo que sobre ellas attrahiram os Je-sutas com a sua direco moral. O que os Jesutas fize-ram em Portugal reptiram-no no Brazil; o padre Fer-no Cardim, descrevendo as aldeias de ndios catechisa-das, falia das crianas que elles educavam: Estes me-ninos faliam o portuguez, cantam a doutrina pela rua e encommendam as almas do purgatrio.

    Como que renasceu a poesia tradicional nas di-versas provncias do Brazil, a ponto de apresentar hoje uma efflorescencia que espanta? Explicamol-o, alm de uma persistncia provincial espontnea, pela coopera-o permanente da emigrao portugueza do Minho e em especial das ilhas dos Aores e Madeira. O romance do Casamento mallogrado, (n. 10) allusivo morte do prncipe D. Affonso, filho de D. Joo u, que se repete em Sergipe, j sem sentido, corrente nas verses ao-rianas, na ilha de Sara Jorge; o romance de Juliana e Jorge, (n.08 19 e 20) que se repete em Pernambuco e no Cear, est esquecido em Portugal, e somente se re-pete na ilha de S. Miguel, onde o colligiu o snr. Arru-

  • XVIU INTRODUCAO

    da Furtado. Podemos dizer que se perdeu na tradio continental, pois que subsiste apenas na Catalunha, na verso colligida por Mil y Fontanals. A endexa da Mu-latinha, (n. 34) que tende a obliterar-se na tradio de Sergipe na frma de parodia, acha-se unicamente na ilha da Madeira, com o titulo de A Mulatona, completa e com uma graa inexcedivel. A emigrao portugueza para o Brazil alimenta esta persistncia tradicional, sem comtudo tirar a cada provncia o caracter da sua elabo-rao local. Pelas investigaes de Celso de Magalhes, de Sylvio Romro, de Araripe Jnior e de Carlos de Ko-seritz, j se pde definir a feio da poesia tradicional e popular de cada provncia. Na Bahia, a sede antiga da co-lnia, preponderou o elemento negro, e um desenvol-vimento de cantos lyricos subordinados a esse baile las-civo to caracterstico chamado o bahiano. Os pontos mais freqentados soffreram esta mesma obliterao tra-dicional, como se observa em Pernambuco com a sua populao mercantil e martima, e no Rio de Janeiro, onde prevaleceu a modinha conservada pelo elemento feminino. No Rio Grande do Sul assiste-se decadncia e transformao dos cantos hericos em lyricos; alli se conserva o typo d'aquella cantiga do sculo xvn:

    Gavio, gavio branco, Vae ferido, vae voando...

    que D. Francisco Manuel intercalou no Fidalgo apren-

  • INTR0DUCA0 XIX

    diz, que encantava tanto Garrett, e que elle debalde ten-tava acabar, quando a voz do povo corta a dificuldade com o improviso:

    Isto so saudades minhas Que o vo acompanhando.

    Nos cantos lyricos do Rio Grande do Sul vem como quadrinhas estrophes narrativas dos romances do Conde da Allemanha, da Sylvana e Conde Alamos.1 Este fa-cto tambm se d em Portugal, como vemos pelas Mu-sicas e Canes populares colligidas por Neves e Mello:

    Mangerona bate porta, Alecrim vai vr quem ...

    (Op. cit., pag. 84)

    assim que comea o romance do Bernal francez na verso insulana:

    Alecrim bateu porta, Mangerona quem est ahi?

    A provncia do Maranho a que apresenta mais riquezas tradicionaes, posto que esteja menos explorada. Um rapaz de talento, Celso de Magalhes, morto prema-

    *

    1 Vid. vol. ii, pag. 8 e 9.

  • XX INTR0DUCA.0

    turamente em 1879, iniciou essa empresa com uma ele-vada intuio critica. Diz elle: Declaramos que temos unicamente colligidos por escripto os romances do Ber-nal francez, Ndo Catherinetta e Dom Baro, e que os outros que houvermos de comparar, foram ouvidos, verdade, mas no pudemos tel-os por escripto por cau-sa da grande difficuldade que encontramos nas pessoas que 03 sabiam, as quaes somente podiam repetil-os can-tando, e quando paravam no lhes era possvel continuar sem recomear.l um estado psychologico primitivo, que garante a pureza archaica da transmisso tradicio-nal. Os romances conhecidos nas verses populares do Maranho por Celso de Magalhes so: O Passo de Ron-cesval, de que cita os versos:

    Sete feridas no peito A qual ser mais mortal, Por uma lhe entra o sol, Por outra lhe entra o luar; Pela mais pequena d'ellas Um gavio a voar.

    Da Moreninha, cita Celso de Magalhes este final:

    D'onde vindes, mulher minha, Que vindes to isentada? Ou tu me temes a morte,

    1 O Trabalho (Recife) de 31 de maio de 1873.

  • INTUODUCAO XXI

    Ou tu no s bem fadada? Eu a morte no a temo Pois d'ella hei de morrer; Temo s os meus filhinhos, D'outra mi podiam ser... Confessa-te, mulher minha, Faze acto de contrio Que te no tornas a vr Nos braos de frei Joo.

    Celso de Magalhes allude aos seguintes romances que ouvira, Dom Martinho de Avisado, Noiva roubada, Encantada, Alferes matador, Sylvana, Dom Pedro, Filha do Imperador de Roma, Dona Angela de Mexia, Casa-mento e Mortalha, e a verso pernambucana da Mulher do nosso mestre, variante da Dona Areria; ha colligidas. por elle Dom Carlos de Montealbar, Flor do dia, Ju-liana e Branca Flor.

    A par do Maranho est Sergipe na abundncia de cantos tradicionaes e populares; foi durante a ausn-cia d'esta provncia, sua terra natal, que Sylvio Ro-mro emprehendeu uma colleco de Cantos e Contos do povo sergipano; foi este o primeiro ncleo do traba-lho que constitue os seus Materiaes para a Historia da Litteratura brazileira. 0 professor Sylvio Romro come-ou pela necessidade de reagir contra a prolongao do romantismo sentimental e extemporneo na sociedade brazileira, chamando os novos espritos, tantas vezes devorados por um lyrismo anarcbico tomado a serio,

  • XXII INTR0DUCA0

    para o campo saudvel das tradies populares*; me-dida que alargava a rea das investigaes em Pernam-buco e Rio de Janeiro, ia achando as bases da discipli-na critica to necessria no desenvolvimento de uma lit-teratura sem intuito. Sylvio Romro comprehendeu que a Poesia popular do Brazil no seria bem conhecida na sua origem e desenvolvimento nacional sem o estudo dos seus elementos elhnicos; foi este o lado original dos seus estudos, pela primeira vez apresentados na Re-vista brazileira. Os trs elementos ethnicos do povo bra-zileiro, o europeu da primeira colonisao e das emigra-es subsequentes, o africano, dos trabalhadores escra-vos, e o indgena ou tupi aproximado pela catechese, cruzaram-se em propores differentes produzindo uma mestiagem com aptides novas segundo a orientao de cada um dos elementos preponderantes. Os grandes antropologistas modernos chegaram concluso de que nenhuma das raas humanas tal como actualmente exis-tem pura; todas se conservaram nas suas difficeis acclimaes por meio da mestiagem. Foi este o proces-so natural e espontneo com que os portuguezes se tornaram os mais tenazes colonisadores. Sylvio Romro procurou na poesia popular do Brazil a expresso des-tes elementos; avaliando a situao especial em que se achava, escrevia: Temos a frica em nossas cozinhas, a America nas nossas selvas, e a Europa nos nossos sales... De facto em algumas provncias definem-se com clareza estes elementos atravs da mestiagem de

  • INTR0DUCA0 XXIII

    ires sculos; nos cantos da Bahia accentua-se a senti-mentalidade do negro, como nas Tayeras; no Cear pre-pondera o tupi, apresentando ali a poesia a frma espe-cial narrativa da vida sertaneja dos Vaqueiros, costuma-dos' s grandes luctas e corridas para submetter os bois indomveis. O Rabicho da Geralda, o Boi Espado e' a Vacca do Burel so rudimentos picos que s sero apreciados conhecendo a situao particular d'aquella provncia. Este gnero potico primeiramente estudado por Jos de Alencar, tem sido mais largamente investi-gado por Araripe Jnior. d'estes vrios elementos ethnicos que se compe o povo brazileiro, entre o qual se transmittem as tradies poticas; Sylvio Romro distingue as suas diversas feies: Os habitantes das matas so dados lavoura e chamados matutos em Per-nambuco, tabareos em Sergipe e Bahia, caypiras em Sam Paulo e Minas, e mandiocas em algumas partes do Rio de Janeiro. Tambm so em geral madraos, e elevam o seu ideal a possuir um cavallo, um pequira, como cha-mam. entre esta gente que se canta A Mutuca, (n. 27) o Redondo, sinhd, (n. 28) quer no trabalho dos campos, quer quando se renem lareira, ou quan-do dansam cantando O senhor Pereira de Moraes. (n. 26) Os homens das praias e margens dos grandes rios so dados s pescas; raro o indivduo d'entre elles que no tem sua pequena canoa. Vivem de ordinrio em palhoas, ora isoladas, ora formando verdadeiros aldea-mentos. So chegados a rixas e amigos da pinga e

  • XXIV INTRODUCAO

    amantes da viola. Levam s vezes semanas-inteiras dansando e cantando em chibas ou sambas. Assim cha-mam umas funcces populares em que ao som da vio-la, do pandeiro, e de improvisos, ama-se, dansa-se e bebe-se. Quasi todo o praieiro possue o instrumento pre-dilecto.1

    Os improvisos so as quadras octosyllabas a que se chama Versos geraes, formando por vezes pequenos gru-pos cora retornellos e transitando assim para a frma to peculiar da Modinha ou canoneta. Muitas das qua-drinhos brazileiras so com miras s verses oraes por-tuguezas do continente e ilhas, o que facilmente se ex-plica pela renovao dos immigrantes. Alguns costumes da lavoura, como as bessadas do Minho, persistem na agricultura do Brazil, sendo essa concorrncia coopera-tiva um pretexto para dansar e cantar; da mesma frma, os costumes do Natal e Reis continuam o que nas cida-des e populaes ruraes se pratica em Portugal, com a diferena que esses cantos so muitas vezes de origem individual, vulgarisando-se entre o povo, os apadooios ou cafagestes das cidades. As canes so a frma pre-dilecta das mulheres, e na provncia do Rio de Janeiro que a Modinha encontrou o seu maior desenvolvimen-to na linguagem e na musica. No discutimos agora a origem tradicional da Modinha, 2 cujo typo se conserva

    1 Revista brazileira, t. i, p. 198.

    2 Vid. Questes de Litteratura e Arte portugueza, pag. 61.

  • INTR0DUCA0 XXV

    ainda enrfe o povo portuguez; * quando uma certa ten-dncia de individualismo nacional se ia manifestando na populao brazileira, a Modinha recebe um relevo litte-rario de tal ordem, que veiu no sculo xvm renovar o lyrismo portuguez que se extinguia na insipidez das Ar-cadias. As Lyras de Gonzaga tornaram-se mais bellas com a triste realidade dos seus amores desgraados; o mulato Caldas encantava a aristocracia lisbonense com os requebros meldicos das Modinhas, contra as quaes reagiam Filinto Elysio, que embirrava com os versos de redondilha menor, e Bocage que invejava a celebri-dade do padre mulato. A Modinha trazida do Brazil, deslumbrava em Lisboa esse pittoresco observador Be-ckford, Straford e Kinsey, e perpetuava-se entre o povo. Ainda hoje se canta a Mareia bella, da qual diz o marquez de Rezende: o surdssimo conde de Soure... casado com a excellente filha do marquez de Marialva D. Maria Jos dos Santos e Menezes, cuja engraada formusura foi com o nome de Mareia bella celebrada nas primeiras modinhas finas portuguezas, que por esse tempo com-poz e depois publicou sob o pseudonymo de Lereno o douto Caldas Barbosa. 2 Uma igual assimilao popular se observa no Brazil; escreve Sylvio Romro: O poeta teve a consagrao da popularidade. No fallo d'essa que adquiriu em Lisboa, assistindo a festas e improvisando a

    1 Vid. Ammrio das Tradies portuguezas, pag. 19 a 24.

    2 Panorama, tom. xu, pag. 212.

  • XXVI INTRODUCAO

    viola. Refiro-me a uma popularidade mais vasta e mais justa. Quasi todas as cantigas de Lereno correm na boc-ca do povo, nas classes plebias, truncadas ou ampliadas. Tenho d'esse facto uma prova directa. Quando em algu-mas provncias do norte colligi grande cpia de canes populares, repetidas vezes recolhi cantigas de Caldas Barbosa como anonymas, repetidas por analphabetos. l O enthusiasmo pelas Modinhas brazileiras em Portugal, no meado do sculo xvm, alm dos traos magistraes de Tolentino, acha-se alludido era um entremez de 1786, A rabugem das velhas: Pois minha riquinha av, esta modinha nova que agora se inventou um mimo; a to-dos deve paixo. A velha desespera-se e comea a exaltar o seu tempo passado: no tornem outra vez a cantar Cegos amores, Laos quebrados e outras seme-lhantes asneiras; parece-lhes que tem muita graa mas enganam-se. Valiam mais duas palavras das cantigas do meu tempo. Ah, mana... quando ns cantvamos o Mi-nuete das praias, Bellerma misera, a engraada Filhota e a modinha do Senhor Francisco Bandalho! isso que era deixar a todos com a bocca aberta; mas hoje no se ouve mais do que Amores e outras semelhantes nicas, que me aborrecem, e digo que no quero ouvil-as v. m. cantar, tem-me percebido. Tolentino allude modinha do Senhor Francisco Bandalho, assim pelo estylo da do

    1 Introduco Historia da Litteratura brazileira, pag.

    45.

  • INTR0DUCA0 XXVII

    Senhor Pereira de Mwaes dos bailes desenvoltos; em um outro entremez do Figuro da ^ Peraice, vem inter-caladas duas estrophes da Belerma misera, com que as antigas damas reagiam contra as modas novas de 1786:

    Belerma misera Suspira e sente A ausncia dura Do seu valente Galhardo amor.

    Se agora em cntico No r se apura Vendo-te ausente, Cysne cantando, Venho acabar A minha dr.

    . 0 titulo d'estas modinhas revela-nos a frma como ainda hoje so conhecidos os grupos dos Versos geraes no Brazil; o primeiro verso o que designa todo o gru-po de quadrinhas, como Paixo de amor jd te tive, (n. 112) Meu corao sabe tudo, (n. 113) Cravo roxo de-siderio, (n. 122) Quem quer bem no tem vergonha, (n. 132) e outras que se vo destacando pelas melodias de que se tornam a letra exclusiva. O typo da modinha, a repetio to graciosa dos retornellos como a preoccu-

  • XXVIII INTR0DUCAO

    pao de uma ida constante, persiste nos processos rythmicos de todos os grandes lyricos brazileiros mo-dernos, como Alvares de Azevedo, Gonalves Dias, Cas-tro Alves, Fagundes Varella, que tiveram a intuio pro-digiosa d'esta relao tradicional cora o seu modo de sentir individual. A melodia das modinhas, que StraTord considerava como o elemento orgnico para a creao da Opera portugueza, foi tambm comprehendida pelo gnio brazileiro, que tomou posse d'essa nova frma de arte.

    Ha nos Cantos populares do Brazil documentos cu-riosissimos que nos mostram como um povo no meio das suas festas inventa as frmas dramticas; na seco dos Reinados e Cheganas, so os Autos rudimentares: Os Marujos, (n. 69) Os Mouros, (n. 70) e o Cavallo Mari-nho e Bumba, meu boi. (n. 77) Em Portugal, nas festas e procisses das aldeias ainda se repetem Autos anlo-gos sobre os mesmos assumptos, como as Mouriscadas aorianas, infelizmente ainda no colligidos, a no ser o Auto de Santo Antnio, da ilha de S. Jorge. Ainda hoje se podem estudar na persistncia dos costumes popula-res os elementos tradicionaes de que se serviu Gil Vi-cente para a creao dos Autos, Faras e Tragicome-dias. Os villancicos do Natal e cantigas das Janeiras e Reis serviram de primeiro modelo ao creador do theatro portuguez, como se v no seu monlogo do Vaqueiro; os romances e cantigas populares eram intercalados nos seus Autos, da mesma frma que na tradio brazileira ainda hoje o romance da No Catherineta e a Cano do

  • INTR0DUCA0 XXIX

    marujo vem intercalados no auto rudimentar dos Ma-rujos.

    A importncia scientifica que adquire a tradio po-pular em todas as suas manifestaes est constituindo hoje um corpo de documentos espantosos a que se d o nome de FoUc-Lore; ha ramos que s por si formam uma vasta sciencia subsidiaria, como a Novellistica popular sobre os processos comparativos de Benfey, de Kcehler e de outros espritos eminentes, que seguem a decadn-cia dos mythos primitivos at s simples facecias vulga-res e parlndas infantis atravs das raas as mais afas-tadas e das civilisaes as mais conscientes. O Brazil j se acha dignamente representado n'esta ordem de estu-dos, que tem por destino fornecerem psychologia as manifestaes mais francas da aTectividade, critica os elementos primrios e eternos das creaes artsticas, e a pedagogia o vehiculo mais seguro para levar alma da criana um interesse mental que lhe pe gradativa-mente era aco todas as suas faculdades. Para proseguir n'estes novos estudos importa comprehender o que se chama a poesia popular.

    Esta designao de poesia popular imperfeita, por-que comprehende: 1. a tradio, oral ou escripta, trans-mittida sem conhecimento da sua proveniencia; 2. a vul-garizao ou popularidade de certos cantos indiViduaes; 3. o syncretismo d'estes dous elementos : a) como abre-viao, na expresso oral, 6) ou como ampliao escri-pta pelos homens cultos, que communicam com o povo

  • XXX INTRODUGStf

    ou se inspiram directamente do meio popular. Estas dis-tinces de uma designao to complexa no so espe-ciosas, e foram estabelecidas com o desenvolvimento da critica; a Fernando Wolf cabe o ter explicado a difleren-a intima que existe entre o que tradicional e o que popular, no sendo Incompatveis entre si e nem sem-pre sendo homogneos os dous productos. Walter Scott chegou a explicar o processo da formao da poesia po-pular pelos accidentes que determinavam a abreviao oral, da mesma frma que algumas tradies carlingia-nas ou arturianas se ampliaram pelos troveiros nas Gestas francezas e novellas cavalheirescas. Assim como nas camadas inferiores da sociedade que persiste o ty-po antropolgico que se obliterou na mestiagem hist-rica, tambm n'ellas que se conservam os dados da tradio primitiva, transmittidos atravs de todas as suas decadencias ou transformaes; n'este ponto que o que popular tem quasi sempre o caracter tradicio-nal, havendo tambm productos individuaes transmitti-dos na corrente da vulgarisao. Esta parte s nos inte-ressa para revelar os modos de assimilao e como um certo numero de tradies deveria ter tido uma origem individual. Nos Cantos populares do Brazil ha uma par-te tradicional, que se liga ao romanceiro e cancioneiro do occidente da Europa, cuja unidade foi j determina-da por Nigra, Paul Meyer, Liebrecht; ha uma outra par-te filha da improvisao individual e portanto populari-sada. esta, talvez, mais importante em quanto re-

  • INTRODUCAO XXXI

    velao do gnio de um novo producto ethnico que en-tra na corrente histrica. Dizia Gregorovius, que as insti-tuies separam, mas que as tradies unificam; isto v-mos com Portugal e o Brazil, separados pelas suas diver-sas actividades e interesses polticos, mas irmos perante as mesmas tradies poticas, e consequentemente rgos de expanso d'essa Civilisao occidental, cujas tradies picas e lyricas so communs Hespanha, Frana, Itlia e Grcia moderna.

    THEOPHILO BRAGA.

  • CANTOS POPULARES DO BRAZIL

    PRIMEIRA SERIE

    Romances e Xacaras

    OUIGENS : DO POIITUGUEZ E DO MESTIO ; TRANSFORMAES PELO MESTIO "

    1 D o n a I n f a n t a

    (Rio de Janeiro)

    Estava Dona Infanta No jardim a passear, Com o pente d'ouro na mo Seu cabello penteava; Lanava os olhos no mar, N'elle vinha uma armada. Capito que n'ell vinha Muito bem a governava.

    O amor que Deus me deu, No vir na vossa armada? No o vi, nem o conheo, Nem a sina que levava.

  • CANTOS POFULARES

    Ia n'um cvallo d'ouro Com sua espada dourada, Na ponta de sua lana Um Christo d'ouro levava. Por signaes que vs me destes L ficou morto na guerra; Debaixo d'uma oliveira Sete facadas lhe dera. Quando fordes e vierdes Chamai-me triste viuva, Qu'eu aqui me considero A mais infeliz sem ventura. Quanto me dareis, senhora, Si vos eu trouxel-o aqui? 0 meu ouro e minha prata,

    - Que no tem conta nem fim. Eu no quero a tua prata, Que me no pertence a mim; Sou soldado, sirvo ao rei, E no posso estar aqui. Quanto me dareis, senhora, Si vol-o trouxer aqui? As telhas de meu telhado Que so de ouro e marfim. Eu no quero as tuas telhas, Que me no pertence' a mim; Sou soldado, sirvo ao rei, E no posso estar aqui. Quanto me dareis, senhora, Si vol-o trouxer aqui? Trs filhas que Deus me deu Todas te darei a ti, Uma para te calar, Outra para te vestir, m

  • DO BRAZIL

    A mais linda d'ellas todas Para comtigo casar. Eu no quero tuas filhas, Que me no pertence' a mim; Sou soldado, sirvo ao rei," E no posso estar aqui. Quanto me dareis, senhora, Si vos eu trouxel-o aqui ? Nada tenho que vos dar E vs nada que pedir. Muito tendes que me dar, Eu muito que vos pedir: Teu corpinho delicado Para commigo dormir. Cavalleiro que tal pede Merece fazer-se assim: No rabo de meu cavallo Puxal-o no meu jardim! Vinde, todos meus criados, Vinde fazer isto assim. Eu no temo os teus criados, Teus criados so de mim. Si tu eras meu marido, Porque zombavas de mim? Para vr a lealdade Que voss me tinha a mim.

  • CANTOS POPULARES

    2

    A. n o i v a -onlmtl

    (Rio de Janeiro)

    Deus vos salve, minha tia, Na sua roca a fiar I Si tu s o meu sobrinho, Trs signaes has de me dar. Qu'd'l-o meu cavallo Qu'eu aqui deixei ficar? 0 teu cavallo, sobrinho, Est no campo a pastar. Qu'd'el-a rainha espada Qu'eu aqui deixei ficar? A tua espada, sobrinho, Est na guerra a batalhar. Qu'd'el-a minha noiva Qu'eu aqui deixei ficar? A tua noiva, sobrinho, Est na igreja a se casar. Selle, selle o meu cavallo Qu'eu quero ir at l; Eu andei por muitas terras Sempre aprendi a fallar.

    Deus vos salve, senhora noiva, N'este seu rico jantar. Si servido da boda, Apeie-se e venha manjar.

  • DO BRAZIL

    Eu no quero a sua boda, Nem tambm o seu jantar, S quero fallar com a noiva Um certo particular.

    3

    O B e r n a l F r a n c e z

    (Rio de Janeiro)

    Quem bate na minha porta, Quem bate, quem est ahi? Dom Bernaldo Francez, A sua porta mande abrir.

    No descer da minha cama Me cahiu o meu chapim; No abrir da minha porta Apagou-se o meu candil. Eu levei-lhe pelas mos, Levei-o no meu jardim; Me puz a lavar a elle Com gua de alecrim; E eu como mais formosa Na gua de Alexandria. Eu lhe truxe pelas mos, Levei-o na minha cama. Meia noite estava dando. Era Dom Bernaldo Francez j Nem sonava, nem movia, Nem se virava p'ra mim.

  • CANTOS POPULARES

    0 que tendes, Dom Bernaldo, O que tendes, que imaginas ? Si temes de meus irmos, Elles esto longe de ti; Si temes de minha mi, Ella no faz mal a ti; Si temes de meu marido, Elle est na guerra civil. No temo dos teus irmos, Qu'elles meus cunhados so; No temo de tua mi, Qu'ella minha sogra ; No temo de teu marido, Qu'elle est a par comtigo. Matai-me, marido, matai-me, Qu'eu a morte mereci; Si tu eras meu marido No me dava a conhecer. Amanh de p'ra manh Eu te darei que vestir; Te darei saia de ganga, Sapato de berbatim; Trago-te punhal de ouro Para te tirar a vida.. .

    O tmulo que a levava Era de ouro e marfim; As tochas que acompanhavam Eram cento e onze mil, No fali ando de outras tantas Que ficou atraz p'ra vir. Aonde vai, cavalleiro,

  • DO BRAZIL

    To apressado no andar? Eu vou vr a minha dama Que j ha dias no a vejo. Volta, volta, cavalleiro,

    ' Que a tua dama j morta, E bem morta que eu bem vi, Si no quereis acreditar Vai na capella de So Gil. Abre-te, terra sagrada, Quero me lanar em ti. Pra, pra, Dom Bernaldo, Por mode ti j morri. Mas eu quero ser frade Da capella de So Gil; As missas que eu disser Todas sero para ti. No quero missas, Bernaldo, Que so fogo para mim: Nas filhas que vs tiver Botai nome como a mim; Nos filhos que vs tiver Botai nome como a ti.

    T>. D u a r t o e -Donssilna (Sergipe)

    Eu no procuro igreja, Nem rosrio p'ra rezar; S procuro o lugar Onde Dom Duarte est.

  • CANTOS POPULARES

    Deus vos salve, rainha, Rainha em seu lugar. Deus vos salve, princeza, Princeza de Portugal.

    O que me quereis, princeza, Que novas quereis me dar? o amor de Dom Duarte Que inda espero lograr. Dom Duarte no est em casa, Anda n'alada real. .n Mandai levantar bandeira Para dar um bom signal.

    Palavras no eram ditas, Dom Duarte na porta estava:

    O que me quereis, princeza, Que novas quereis me dar? o amor de Dom Duarte Qu'inda espero lograr. No tempo que eu vos queria, Me juravam a matar; Mas hoje que sou casado Tenho filhos a criar.

    Dai-me licena, senhora, Dai-me licena real P'ra dar um beijo em Donzilha Qu'ella finada j est. Dai-lhe quatro, dai-lhe cinco, Dai-lhe quantos vs poder;

  • DO BRAZIL

    No tendes mais que beijar A quem j finada est. A cova de Donzilha Foi na porta principal; A cova de Dom Duarte Foi l no p do altar. Na cova de Donzilha Foi um p de sicupira 1; Na cova de Dom Duarte Nasceu um p de collar. Foram crescendo, crescendo, Cresciam ambos igual ; L em riba das galhinhas L se foram abraar. A viuva que viu isto, Logo mandou decotar; Si haviam brotar leite, Brotaram sangue real.

    5

    D . M a r i a e X>. A . r i e o

    (Rio de Janeiro)

    O que isto que aqui est No pino da meia noite ? Si tu s alma em pena Remdio te quero dar,

    1 Ou sucopira, Bovodichia major.

  • 10 CANTOS POPULARES

    Si s cousa d'outro mundo Quero-te desconjurar. Eu no sou alma em pena Para vs remdio me dar, Nem sou cousa d'outro mundo Para vs me desconjurar. L de traz d'aquella esquina Esto sete a vos esperar. Pelos sete que l esto Meu p atraz no voltaria, Dom Arico ha de cear Em casa de Dona Maria. No jogo jogo de bala Qu' jogo de covardia, Jogo com jogo de espada Qu' jogo de valentia. Dom Arico matou seis; Ficou ura por mais somenos, D'elle conta no fazia. Este atirou-lhe uma bala Da mais alta que havia, A bala cahiu no peito E o peito lhe feria, Dom Arico foi cahir Na porta de Dona Maria; Pelos ais e os gemidos Acordava quem dormia.

    0 que no diro agora? Que mataram este coitado, Que morreu de mal de amores, Que ura mal desesperado 1 Si me acharem aqui morto

  • DO BRAZIL 1 1

    No me enterrem no sagrado; Me enterrem em campo de rosas Das quaes eu fui namorado. Trazei papel, trazei tinta, Trazei vossa escrevaninha, Eu quero escrever saudades No vosso peito, Maria.

    6

    O C o n d e A l b e r t o

    (Sergipe)

    Soluava Dona Sylvana Por um corredor que tinha,. Que seu pai no a casava,

    * Nem esta conta fazia.

    Eu no vejo n'este reino Com quem case filha minha; S si fr com Conde Alberto *. Este tem mulher e filhos. Com este mesmo que eu quero, Com este mesmo eu queria: Mandai vs, pai, chamal-o Para vossa mesa um dia. Corre, corre, cavalleiro Dos mais ligeiros que tenho, Vai dizer ao Conde Olario Que venha jantar commigo.

    ' Outros dizem Conde Olario.

  • 12 CANTOS POPULARES

    Inda hontem vim da corte Que Dora Rei me fez chamar; No sei se ser p'ra bem, Ou si ser p'ra meu mal.

    P'ra matares a Condessa, E casar com minha filha. Como isto pde ser, Como isto nunca seria? Descasar um bem casado Cousa que Deus no faria? Instantes te dou de hora Que reze uma Ave-Maria, Que me mandes a cabea N'esta formosa bacia.

    = Contaes, marido, tristezas, Como quem conta alegria! No sei que v vos contar Que j em demasia. A mesa j estava posta, Nem um, nem outro comia; As lagrimas eram tantas, Que pela mesa corria l .

    * Sejiie-se a despedida da Condessa aos filhos e a morte da In-lanta; a tradio no d conta do resto do romance.

  • DO BRAZIL 13

    r D . C a r l o s d e M o n t e a l b a r

    (Sergipe)

    Deus vos salve, senhor Dom Carlos; 0 senhor que fazia l? Me arrumando, senhora, Para comtigo brincar.

    Quando estavam a brincar, Um cavalleiro vem passar; Dom Carlos como ardiloso Logo quiz o degolar.

    No me mate o cavalleiro, Qu' do reino de meu pai. Cavalleiro, o que aqui viste A meu pai no vai contar, Qu'eu te darei ouro e prata Quanto possas carregar. Eu no quero ouro e prata Que a senhora no m'os d; Brinquedos que vi aqui A meu rei irei contar. Cavalleiro, o que aqui viste A meu pai no vai.contar, Qu'eu te darei minha sobrinha Para comtigo casar. No quero sua sobrinha Que a senhora no m'a d;

  • 14 CANTOS POPULARES

    Folguedos que vi aqui A meu rei irei contar. Cavalleiro, o que aqui viste A meu pai no vai contar, Te darei o meu palcio Com todo o meu cabedal. No quero o seu cabedal, Que a senhora no m'o d, Que isto que eu vou contar Muito mais me ganhar.

    Novas vos trago, senhor, Novas eu vos quero dar; Eu topei a Claraninha Com Dom Carlos a brincar; Da cintura para riba 1 Muitos beijos eu vi dar; / Da cintura para baixo No vos posso mais contar. Si me contasses occulto, Meu reino te haver * dar; Como contasse de publico, Mandarei-te degolar. Vo-rae buscar a Dora Carlos, Depressa, no devagar; Carregado bem de ferros Que no possa me fallar. Vo buscar meu tio bispo, Qu'eu me quero confessar Antes que chegue a hora Que me venham degolar.

    1 Para cima.

    i Por houvera.

  • DO BRAZIL 15

    Deus vos salve, meu sobrinho, Qu'em sua priso est; Por amor de Claraninha L te vo a ti matar; Toda a vida eu te disse Que tu deixasses de amar: Claraninha era impedida, Poderiam-te matar. Sia-se d'aqui, meu tio, No me venha a enfadar; Mais vai eu morrer por ella Do que deixal-a de amar. Chiquitinho, Chiquitinho, Que sempre me foi leal, Vai dizer Claraninha Que j me vo me matar; Si meus olhos vir os d'ella Minha alma se salvar.

    Deus vos salve, Claraninha, Que no seu estrado est ; Dom Carlos manda dizer Que j vai se degolar. Criadas, minhas criadas, Si quereis me acompanhar, Eu j me vou com o cabello Faltando por entranar. Justia, minha justia, Minha justia real, Por aquelle que est alli Minha vida eu irei dar. Deus vos salve, senhor Dom Carlos, No se d a desmaiar; Si a minha alma se perder,

  • 16 CANTOS POPULARES

    A sua se salvar. Conselheiros, conselheiros, Que conselhos quereis dar: Qu'eu mate senhor Dom Carlos, Ou que os mandarei casar? = O conselho que vos damos para os mandar casar, E pegai este arengueiro E mandai-o degolar. Arengueiro, embusteiro, O que ganhaste em contar? Ganhei a forca, senhora; D'ella vinde-me tirar. Si eu quizera, bem pudera, Pois nas minhas mos est; Para te servir de emenda Mandarei-te degolar.

    8

    I>. C a r l o s d e M o u t o a l b a r (Verso de Pajeh-de-Flores, apud Celso de Magalliesr

    Linda cara tem o conde Para commigo brincar. Mais linda tendes, senhora, Para commigo casar.

    Veiu o caador e disse: A el-rei irei contar Que apanhei a Claralinda Com Dom Carlos a brincar.

  • DO BRAZIL 17

    Vem c, meu caador, Caadorzinho real, Darei-te vi 11 as de Frana Que no possas governar, Darei-te prima carnal Para comtigo casar. No quero villas de Frana, Nem sua prima carnal; Com ella no hei-de casar; A el-rei irei contar, Mais tem elle que me dar: Apanhei a Claralinda Com Dom Carlos a brincar. De abraos e boquinhas No podiam desgarrar, Da cintura para baixo No tenho que lhe contar. = Si me dissesses occulto, Posto te havia de dar, Como dissestes ao publico Vai-te j a degolar. Ide guardas j prender Dom Carlos de Montealbar, De mulas acavalgadas Que lhe pesem um quintal; Dizei a seu tio bispo Que o venha confessar. Deus vos salve, Clarasinha, Rainha de Portugal, Dom Carlos manda dizer Que o saias a mirar. Inda que a alma d'elle pene A sua no penar. Levanta-te, Claralinda,

  • 18 CANTOS POPULARES

    Rainha de Portugal, Ide defender Dom Carlos Para no ir a enforcar. Que ganhaste, mexeriqueiro, A meu pai em ir contar? Ganhei a forca, senhora, D'ella me queira livrar.

    I_>. B r a n c a (Sergipe)

    0 que tens, Dona Branca, Que de cr ests mudada ? gua fria, senhor pai, Que bebo de madrugada. Juro por esta espada, Affirmo por meu punhal, Que antes dos nove mezes Dona Branca vai queimada. Eu no sinto de morrer, Nem tambm de me queimar, Sinto por esta criana Que de sangue real. Si eu tivera o meu criado, Que fora ao meu mandado, Escreveria uma carta A Dom Duarte de Montealbar. Fazei a carta, senhora, Que eu serei o mensageiro; Viagem de quinze dias

  • DO BRAZIL 19

    Fao n'uma Ave-Maria. Escreve, escreve, senhora, Qu'eu serei o teu criado; Viagem de quinze dias, No jantar serei chegado. Abre, abre, crystallina Janella de Portugal, Quero entregar esta carta A Dom Duarte de Montealbar.

    Dom Duarte, que leu a carta, Logo se pz a chorar, Dando saltinhos em terra, Como baleia no mar.

    Dom Duarte se finge frade P'ra princeza confessar: L no sexto mandamento Um beijo n'ella quiz dar. Bocca que Duarte beijava No p'ra frade beijar! N'isto ento se descobria E com ella j fugia, E para a boda a levou.

  • 20 CANTOS POPULARES

    10

    O c a s a m e n t o m a l l o g f r a d o 1

    (Sergipe)

    Estava era minha janella Casada cora oito dias, Entrou uma pombinha branca No sei que novas trazia.

    So novas ruins de chorar; Teu marido est doente Nas terras de Portugal; Cabiu de um cavallo branco No meio de um areial, Arrebentou-se por dentro, Corre o risco de finar.

    11

    A. N a u C a t h c r i n u t u

    (Sergipe)

    Faz vinte e um annos e um dia Que andamos n'ondas do mar, Botando solas de molho Para de noite jantar. A sola era to dura,

    * Anda como final do romance de D. Branca.

  • DO BRAZIL 2 1

    Que a no pudemos tragar, Foi-se vendo pela sorte Quem se havia de matar, Logo foi cahir a sorte No capito-general. Sobe, sobe, meu gageiro, Meu gageirinho real, V si vs terras de Frana, Areias de Portugal. No vejo terras de Frana, Areias de Portugal, Vejo sete espadas finas Todas para te matar. Sobe, sobe, meu gageiro, Meu gageirinho real, Olha p'ra estrella do norte Para poder nos guiar. Alvistas \ meu capito, Alvistas, meu general, Avisto terras em Frana, Areias em Portugal. Tambm avistei trs moas Debaixo d'um parreiral, Duas cosendo setim, Outra calando o dedal. Todas trs so filhas minhas, Oh! quem m'as dera abraar 1 A mais bonita de todas Para comtigo casar. Eu no quero suas filhas Que lhe custou a crear, Quero a Nau Catherineta

    * Alviaras.

  • 2 2 CANTOS POPULARES

    Para n'ella navegar. Desce, desce, meu gageiro, Meu gageirinho real, J viste terras em Frana, Areias em Portugal...

    12

    A. N a u C a t l i a r i n e t a

    (Verso do Rio Grande do Sul, por Koscritz)

    Ahi vem a Nau Calharineta, Farta de navegar: Sete annos e um dia Sobre as ondas do mar. No tinham mais que comer, Nem to pouco que manjar; Botaram sola de molho, P'ra no domingo jantar. A sola era to dura Que no podiam tragar; Botaram sortes em branco Ao qual havia de tocar. A sorte cahiu em preto No nosso capito-general; A maruja era to boa Que no o queria matar.

    Sobe, sobe, Chiquito, N'aquelle tope real, V si vs terras de Hespanha, Areias de Portugal.

  • DO BRAZIL 23

    No vejo terras de Hespanha, Nem areias de Portugal, Vejo s trs espadas Para comtigo batalhar. Sobe, sobe alli, marujo, N'aquelle tope real; V si vs terras de Hespanha, Areias de Portugal. Alviaras, meu capito, Al viar as vos quero dar: J vejo terras de Hespanha, Areias de Portugal; Tambm vejo trs meninas Debaixo de um laranjal. Todas trs se minhas filhas, Todas trs vos dera a ti: Uma para vos lavar, Outra para vos engommar, A mais bonita d'elias todas, Para comtigo casar.

    Palavras no eram ditas, Chiquito cahiu no mar.

    13

    I r i a - a - F i d a l g - a

    (Rio de Janeiro)

    Estava sentada Na minha costura, Passou um cavalleiro,

  • 2 4 CANTOS POPULARES

    Pedindo pousada. Si meu pai no dera Muito me pezara. Botou-se a mesa Para o de jantar; Muita comedia, Pratas lavradas; Si fez a cama Com lenoes de renda, Cobertas bordadas. L p'ra meia noite File alevantou-se, Ningum achou, S a mim levou. A cabo de sete lguas Elle me perguntou: Na minha terra, Como me chamava? Na minha terra Iria a fidalga, Na terra estranha Iria a coitada. Minha Santa Iria, Meu amor primeiro... Me degolaram Que nem um carneiro .

  • DO BRAZIL 25

    14

    F l o r d o i a

    (Verso do Recife, apud Celso de Magalhes)

    Alevanta, amor, D'esse bom dormir, Chame sua mi Para me acudir.

    Levantou-se elle Sem mais descano, Foi sellando logo Seu cavallo branco.

    Deus vos salve, mi, No vosso estrado. Deus vos salve, filho^ No vosso cavallo. Apa p'ra baixo Jantar um bocado. No quero jantar, Que vim a chamado, Que a Flor do Dia L ficou de parlo. De mim para ella: Um filho varo, De espora no p, E espada na mo, Rebente por dentro Pelo corao.

  • 26 CANTOS POPULARES

    Flor do Dia Faa por parir, Minha mi est doente E no pde vir. Alevanta, amor, D'esse bom dormir, Chame minha mi Para me acudir, Que ella mora longe, Mas sempre ha de vir. Grande dor, marido, dor de parir! Deus vos salve, sogra, No vosso estrado. =Deus vos salve, genro, No vosso cavallo. Apa p'ra baixo Jantar um bocado. No quero jantar, Que vim,a chamado, Que a Flor do Dia L ficou de parto. = De mim para ella: Um filho estimado, Que eu veja no throno Um bispo formado. Espera l, meu genro, Deixa-me vestir, Que ella mora longe, Mas sempre hei de ir.

    Pastor de ovelhas, Que signal aquelle,

  • DO BRAZIL 27

    Que est dobrando ? = Dona Estrangeira Que morreu de parto, Sem haver parteira. = Aquelle sino No cessa de dobrar, Nem meus olhos Tambm de chorar. Adeus, minha filha Do meu corao, Que morreu de parto Sem minha beno. Adeus, minha filha, Que eu vinha te vr, Quem no tem fortuna Mais vale no nascer.

    15

    A P a s t o r i n h a

    (Sergipe)

    Bella Pastorinha, Que fazeis aqui? Pastorando o gado Qu'eu aqui perdi. To gentil menina Pastorando gado?! J nasci, senhor, Para este fado. Vamos c, menina,

  • 28 CANTOS POPULARES

    P'ra aquelle deserto, Qu'eu pouco me importa Que o gado se perca. Sae d'aqui, senhor, No me d tormento; Eu no quero vl-o Nem por pensamento.

    Olhe, meu senhor, C volte, correndo, Que o amor fogo, Que me vai vencendo. Olhem para elle Como vem galante, Com meias de seda, Calo de brilhante! Si os manos vierem Trazer a merenda? Elles no so bicho Que a ns offenda. E si perguntarem Em que me occupava? N'uma manga d'agua Que a todos molhava. Bem sei que tu queres: Que te d um abrao; sombra do mato, Mas isto eu no fao. Eu me sento aqui No com m teno; Juro-te, menina, Que seu teu irmo. Sae por um monte,

  • DO BRAZIL 29

    Qu'eu saio por outro, A ajuntar o gado Que nosso todo.

    16 ITlorioiso

    (Sergipe)

    Entre pedras e peneiras, Senhora, vamos a ver; Menina que eslaes na fonte, Dai-me gua para beber. Com licena do Senhor, E da Senhora da Guia, Dizei-me, senhor mancebo, Si vindes de companhia? A companhia que trago J vos digo na verdade; Venho divertir o tempo, Que cousa da mocidade. cousa da mocidade, Bem j me parece ser; Dizei-me, senhor mancebo, Si sabeis ler e escrever ? Eu no sei ler e escrever, Nem mesmo tocar viola; Agora quero aprender Na vossa real escola... Escola tenho eu de minha, Nange p'ra negro aprender; JUZO te d Deus, Memria para saber.

  • 30 CANTOS POPULARES

    N'estas mimosas esquinas Faz-se ausncia muito mal; Eu sempre pensei, senhora, Que vs me querieis mal. Quanto a mim, eu no te quero N'alma, nem no corao; At s te peo, negro, Que no me toques na mo. Nas mos eu no vos toco, Nem mesmo bulo comvosco; Quero estar a par de vs, Pois eu n'isto levo gosto. Si tu n'isto levas gosto, Desgostas por vida tua; Que esta casa que aqui est de outro e no tua. Si de outro e no minha Inda espero que ha-de ser; Menina, diga a seu pai Que me mande receber. Taes palavras eu no digo Que inda sou muito escusada, Pois eu sou menina e moa, No sou para ser casada. Inda mais moas que vs Regem casa e tem marido; Assim ha-de ser, menina, Quando casardes commigo. Mas eu no hei-de casar, Porque no hei-de querer; Eu no me raetto.a perigos, Quando vejo anoitecer... Nem eu quero cousa fora, Sino por muita vontade,

  • DO BRAZIL 31

    Eu quero gozar a vida, Que cousa da mocidade.

    D'onde vem o Florioso Das melendas penteadas? * Eu venho ser o vaqueiro Das ovelhas mais das cabras. D'este mesmo gado eu cuido Da mais fina gerao; D'aquelle que veste luvas De cinco dedos na mo. J fui contar as estrellas, Eu j sei que estou no caso.. Eu sei agora, mancebo, Que tu s s o diabo... O diabo eu no sou ; Ai I Jesus, que feio nome! S peo ao Senhor da Cruz Que este diabo vos tome.

    17

    O C e g o (Sergipe)

    Sou um pobre cego, Que ando ssinho, Pedindo uma esmola Sem errar o caminho:

    * Melendias por melinae.

  • 32 CANTOS POPULARES

    Aqui est um cego, Pedindo uma esmola, ' Devotos de Deus ; E de Nossa Senhora.

    Minha mi, acorde Do seu bom dormir, Que aqui est um cego A cantar e a pedir. Si elle canta e pede, D-lhe po e vinho, Para o pobre cego Seguir seu caminho. "'-> "'' No quero seu po, Nem tambm seu vinho; S quero que Anna Me ensine o caminho. Anna, larga a roca, E tambm o linho; Vae com o pobre cego, Lh'ensina o caminho. J larguei a roca E tambm o linho; J me vou com o cego Ensinar o caminho.

    O caminho ahi vai Mui bem direitinho, Se fique ahi, Vou fiar meu linho. Caminha, menina, Mais um bocadinbo; Sou cego da vista, No vejo o caminho.

  • ., DO BRAZIL 3 3

    Caminhe, senhor cego, Que isto bem tardar; Quero ir-rae embora, Quero ir-me deitar. Aperta as passadas Mais um bocadinho; Sou cego da vista, No vejo o caminho. Adeus, minha casa, Adeus, minha terra, Adeus, minha mi, Que to falsa me era. Adeus, minha ptria, Adeus, gente boa; Adeus, minha mi Que me vou ta. Valha-me Deus E Santa Maria, Qu'eu nunca vi cego De cava liaria. Si eu me fiz cego Foi porque.queria; Sou filho de conde, Tenho bizarria. Cala-te, menina, Deixa de chorar ; Tu inda no sabes 0 que vaes gozar.

    Deus lhe d bom dia, Senhora visinha, Esta meia noite Me fugiu Anninha.

  • 3 4 CANTOS POPULARES

    Deus lhe d o mesmo, Senhora visinha De cara mui feia, Trs filhas que tenho Vou pul-as na peia.

    18

    X a c a r a d o C e g o

    (Cear, ap. Th. Braga)

    Sinh da casa, Venha vr seu pobre; Nem por vir pedir Deixo de ser nobre. No pde ser nobre Quem vem c pedir; No ha que lhe dar, J pde seguir. No usaes commigo Tanta ingratido, D'este pobre cego Tende compaixo. Eu no sou dona, Nem governo nada; A dona da casa Ainda est deitada. Se est deitada Ide-a chamar; Que o pobre do cego Lhe quer fallar.

  • DO BRAZIL 3 5

    Acordai, senhora, Do doce dormir; Vinde vr o cego Cantar e pedir. Si elle canta e pede . Dai-lhe po e vinho, Para o pobre cego Seguir seu caminho.. Larga, Anninha, a roca E tambm o linho; Vai ensinar o cego Seguir seu caminho.

    Aqui fica a roca, Acabou o linho; Marchai adiante, cego, L vai o caminho. Anda, i anda, Anninha, Mais um bocadinho; Sou curto da vista, No enxergo o caminho. De conde e fidalgo Me vi pretendida, Hoje de um cego Me vejo rendida. Cala-te, condessa, Prenda to querida, Eu sou este conde Que te pretendia. Cala-te, conde, No digas mais nada; S quero saiamos D'aqui d'esta estrada.

  • 36 CANTOS POPULARES

    Infinitas graas Vos dou, meu senhor, J ter vencido Um cruel amor.

    19

    J u l i a n a (Colligido por Celso de Magalhes, em Pernambuco)

    Deus vos salve, Juliana, No teu estrado assentada. Deus vos salve, rei Dom Jca, No teu cavallo moutado. Rei Dom Jca, me contaram Que tu estavas p'ra casar? Quem t'o disse, Juliana, Fez bem em te desenganar. Rei Dom Jca, se casaes Tornai ao-bem querer, Poders enviuvar E tornar ao meu poder. Eu ainda que enviuve E que torne enviuvar, Acho mais fcil morrer Do que comtigo casar. Espera ahi, meu Dom Jca, Deixa subir meu sobrado, Vou vr um copo de vinho Que p'ra ti tenho guardado. Juliana, eu te peo Que no faas falsidade.

  • DO BRAZIL 37

    Vejaes que somos parentes, Prima minha da minha alma. Que me deste, Juliana, N'este copinho de vinho, Que estou com a rdea na mo, No conheo o meu caminho? A minha mi bem cuidava Que tinha seu filho vivo. A minha tambm cuidava Que tu casavas commigo. meu pai, senhora mi, Me bote sua beno, Abrace bem apertado 0 meu maninho Joo. Meu pai, senhora mi, Me bote a sua beno; Lembranas Dona Maria, Tambm Dona Cellerencia. A minha alma entrego a Deus, 0 corpo terra fria, A fazenda e o dinheiro Entregue a Dona Maria. Cale a bocca, meu Dom Jca, Ponde o corao em Deus, Que este copo de veneno Quem te ha de vingar sou eu. J acabou-se, j acabou-se, flor de Alexandria! Com quem casar agora Aquella moa Maria ? J acabou-se, j acabou-se, J acabou-se, j deu fim. Nossa Senhora da Guia Queira se lembrar de mim.

  • 3 8 CANTOS POPULARES

    20

    X a c a r a d e D o n a J o r g e (Cear, ap. Th. Diaa)

    Dom Jorge se namorava D'uma mocinha mui bella; Pois que apanhando servido Ousou logo de ausentar-se Em procura d'outra moa Para com ella casar. Juliana que d'isto soube, Pegou logo a chorar, A mi lhe perguntou:

    De que choras, minha filha? Dom Jorge, minha mi, Que com outra vai casar. Bem te disse, Juliana, Que em homens no te fiasses; No era dos primeiros Que as mulheres enganasse. Deus te salve, Juliana, No teu sobrado assentada! Deus te salve, rei Dom Jorge, No teu cavallo montado. Ouvi dizer, rei Dom Jorge, Que estavas para casar? veidade, Juliana, J te vinha desenganar.

  • DO BRAZIL 39

    Esperai, rei Dom Jorge, Deixa eu subir a sobrado; Deixa buscar um copinho Que tenho p'ra ti guardado. Eu lhe peo, Juliana, Que no haja falsidade; Olhe que somos parentes, Prima minha da minha alma. Eu lhe juro por minha mi, Pelo Deus que nos creou, Que rei Dom Jorge no logra Esse seu novo amor. Que me deitas, Juliana, N'este seu copo de vinho? Estou com as rdeas nas mos, No enxergo meu rucinho? Ai, que do meu paisinho, Por elle pergunto eu? Eu morro, de veneno Que Juliana me deu. Morra, morra o meu filhinho, Morra contrito com Deus, Que a morte que te fizeram Ella quem vinga sou eu. Valha-me Deus do co, Que estou com uma grande dor; A maior pena que levo no vr meu novo amor.

  • 40 CANTOS POPULARES

    21

    A. flor d e A l e x a n d r i a

    (Sergipe)

    Adeus, centro da firmeza, - Adeus, flor de Alexandria,

    Si a fortuna me ajudar Te buscarei algum dia. No sei se mais te verei; Qual ser a minha sorte? D'eu te amar at morte, Como d'antes eu te amei? Meu corao j te dei, A outro no posso dar: S a ti posso affirmar, Que d'outro no ha-de ser. Guarda pois esta firmeza, Nunca te esqueas de mim;' Si a fortuna me ajudar, Esta ausncia ter fim. Adeus, jasmim de alegria, Espelho aonde me via; Rompe o sol e rompe a aurora, Adeus, clara luz do dia.

  • DO BRAZIL 41

    22

    B r a n c a - F l r (Verso do Recife, apud Celso de Magalhes)

    Si fora na minha terra. Filha, te baptisaria: 0 nome que eu te botava Rosa flor de Alexandria, Que assim se chamava Uma irm que eu linha, Que os mouros carregaram Desde pequenina. Si tu visses essa irm, Tu a conhecerieis ? Que signal me davas d'ella? Um signal de carne tinha, Em cima do peito trazia, Que ella assim se chamava Rosa flor de Alexandria.

    23

    X a c a r a d e Z F l d r e s - B e l l a (Verso do Cear, apud Th. Braga)

    Mouro, si fores s guerras Trazei-me uma captiva, Que no seja das mais nobres, Nem tambm da villa minha;

  • 42 CANTOS POPULARES

    Seja das escolhidas Que em Castelhana havia. Sahiu o conde Flores Fazer essa romaria: A condessa, como nobre, Foi em sua companhia. Matam o conde Flores, Captivaram Lixandria, E trouxeram de presente A rainha de Turquia.

    Vem c, vera c, minha moura, Aqui est vossa captiva; J vou entregar as chaves, As chaves da minha cozinha. Entregai, entregai, senhora, Que a desgraa foi minha; Ainda hontem ser senhora, Hoje escrava de cozinha. Ao cabo de nove mezes Tiveram os filhos n'um dia: A moura teve um filho, A captiva uma filha. Levantou-se a moura Com trs dias de parida, Foi cama da escrava: Como estaes, escrava minha? Como hei de estar, senhora ? Sempre na vossa cozinha.

    Foi olhando para a criana, Foi achando muito linda:

  • DO BRAZIL 43

    Si estivesses em tua terra Que nome tu botarias ? Botaria Flres-Bella, Como uma mana que tinha, Que os mouros carregaram, Sendo ella pequenina. Si tu a visses hoje Tu a conhece rias ? Pelo signal que linha S assim a conhecia. Que tinha um lirio roxo Que todo peito cobria! Pelo signal que me daes, Bem parece mana minha. Vem c, vem c, minha moura; Que te dizes tua captiva. Eu j estou bem agastada, -E j me vou arrojar. Tu mandaste l buscar, O teu cunhado matar. Si eu matei meu cunhado, Outro melhor te hei de dar. Farei tua irm senhora Da minha monarchia! Eu no quero ser senhora Da tua monarchia, Quero ir para a minha terra Onde eu assistia. - Apromptai, apromptai a nau, Mais depressa em demasia, Para levar Lixandria Ella e sua filhinha. Adeus, adeus, Flres-Bella! Vai-te embora Lixandria.

  • CANTOS POPULARES

    E dai l muitas lembranas nossa parentaria; Que eu fico como moura Entre tanta mouraria.

    24

    A L i m a (Sergipe)

    A lima que voss mandou No meu peito se acabou; Quando a lima era to doce, Quanto mais quem a mandou! Voss manda e eu recebo, Vidinha, por derradeiro Um cravo que eu achei Aberto no seu craveiro. No ser de cheiro igual A lima que me mandou? As casquinhas eu guardei At sua vista primeira. Quem no seu jardim plantou To rico p de limeira, Que de doce j enfara, Que p'ra mim s se compara A um beijo de sua bocca? S um caroo no tinha... Pago bem a quem me trouxe, Que o cheiro no acabou-se; Certo que muito cheira A lima que me mandou.

  • DO BRAZIL 45

    Pegue na sua liminha Enterre l no jardim ; Que lima para cheirar Nunca vi cousinha assim... A lima verde cheirosa!... Deixa-me, fructa amorosa, O teu p o espinheiro? Pois me chamam derroteiro No centro dos namorados... Lima verde tem bom cheiro; 0 amor no por dinheiro; Mas p'ra onde elle pendeu...

    25 O GS-enipapo

    (Sergipe)

    Meu genipapo doce, Allivio de toda a tarde, Bem podra me levar Para allivio de meus males. Fique-se com Deus, meu bem, Meu genipapo gostoso; Que no tempo que eu lhe amava, Por voss me desvelava, porque sempre cuidava Que voss firme seria; Mas j que chegou o dia De voss de mim se esquecer, Procurando a quem foi seu, Pde viver na certeza Que p'ra mim voss morreu.

  • 46 CANTOS POPULARES

    -

    26

    S e n h o r P e r e i r a d e Moraes

    (Sergipe e Rio de Janeiro)

    Onde vai, senhor Pereira de Moraes? Voss vai, no vem c mais; As mulatinhas ficam dando ais, Faltando baixo, Para melter palavriados... Qu' d'l-o pente Para abrir liberdade? l Qu' d'l-0 peru azul? Qu' d'l-a banha do teyil? * Dois amantes vo dizendo Venda a roupa e fique n . . . Mulatinhas renegadas, Mais as suas camaradas, Me comeram o dinheiro, Me deixaram esmolambado; Ajuntaram-se ei Ias todas Me fizeram galhofadas... Ora, meu Deus, Ora, meu Deus, Estas mulatinhas So peccados meus. . .

    1 Chama-se assim o repartimento do cabello pelo meio da cabe-ii entrada real, como dizem. cae-1 P. toguixin.

  • DO BRAZIL 47

    27

    A. M u t u c a (Sergipe)

    Hoje eu fuf por um caminho E topei um gavio Com a mutuca no chapu, Morioca no calo. Encontrei um persevejo Montado n'um caranguejo, Caranguejo de barrete, Morioca de balo. Homem velho sem ceroulas No se trepe em bananeira; Mulher velha alcoviteira, Toda gosta de funco.

    Arrepia sapucaia, Sambambaia;

    Manoel Pereira Macacheira, Manipeira. l

    0 teu pai era ferreiro, 0 meu no era; Tua mi toca folies,

    Meu amor, Para tocar alvorada Na porta do trovador.

    1 Macacheira o aypim, Manihot-aypi; a manipeira o caldo d

    mandioca depois de extrahida d'elle a tapiooa ou polvilho.

  • 48 CANTOS POPULARES

    28

    R e d o n d o , s i n h a (Sergipe)

    Oh! sinh, minha sinh, Oh! sinh de meu abrigo, Estou cantando o meu redondo, Ningum se importe commigo.

    Redondo, sinh. . Certa velha intentou ! *;v ' Urinar n'uma ladeira, Encheu rios e riachos, E a lagoa da Ribeira.

    Redondo, sinh. E sete engenhos moerara, Sete frades se afogou, E a maldita d'esta velha Inda diz que no mijou

    Redondo, sinh. Este velha intentou Vestir panuo de fusto, Precisou quinhentos covados P'ra fazer um cabeo.

    Redondo, sinh. Depois do panno cortado -. No sahiu de seu agrado ; Precisou d'outros quinhentos Para fazer os quadrados. 1

    Redondo, sinh.

    ee s tomb-et** "* m U l h e F q"e flcam 8 o b o s bra^oa' ^em'

  • DO BRAZIL 49

    Esta velha intentou Tirar um dente queixai, Procurou quinhentos bois E com cordas de laar.

    Redondo, sinh. No sou pinto de vintm, No sou frango de tosto; A maldita d'esta velha Quer fazer de mim capo.

    Redondo, sinh. Eu caso comtigo, velha, Ha de ser com condio D'eu dormir na boa cama, E tu, velha, no fogo.

    Redondo, sinh. Eu casei comtigo, velha, P'ra livrar da ilharada... Quando entrou em nove mezes Pariu cem de uma ninhada!

    Redondo, sinh. Trinta e um meio de sola Na praa se rematou, P'ra fazer seu sapatinho... Assim mesmo no chegou.

    Redondo, sinh. A velha quando morreu, Eu mandei-a enterrar; Como no coube na terra Mandei-a lanar no mar.

    Redondo, sinh.

  • 50 CANTOS POPULARES

    29

    A l i ! R e d o n d o , s inhA! (Rio de Janeiro)

    Ah! redondo, sinh, Senhora de meu favor, Estou cantando o meu redondo, Que me importa, meu amor?

    Redondo, sinh. 0 cabello d'esta velha, caso de admirar; l'm fio de seu cabello D prima para tocar...

    Redondo, sinh. Esta velha j mijou L detraz de uma gamboa; Alagou uma canoa, Isto cousa boa. . .

    Redondo, sinh. 0 dentinho d'esta velha, E caso de admirar, Uma junta de bois No arredou do lugar.. .

    Redondo, sinh.

  • DO BRAZIL

    30

    M a n o e l d o O B e r n a r d o (Cear)

    Indo eu para a novena Na villa da Floresta, 0 major Antnio Lucas Convidou me para a festa. Seu major Antnio Lucas, Como que eu hei de ir? Quem anda por terra alheia No tem roupa p'ra vestir. Dou-te cavallo de sella, E roupa p'ra te vestir, Dinheiro para comeres, Escravo p'ra te servir. Estava jantando em casa Um dia bem descansado, Quando dei f que chegava Um cavallo fino sellado: Seu major manda dizer Que j tempo do chamado! Quando sahi de casa Logo peguei a encontrar, Era homens e mulheres... Vai cantar com Rio-Preto ? melhor que no v l I . . . Porque se importa esta gente Da desgraa que commetto? Ho de ter logo noticia Que fira levou Rio-Preto.

  • CANTOS POPULARES

    Quando ganhei l por dentro N'aquelle campo mais largo, 0 povo que eu encontrava De mim ficava pasmado: Queira Deus este no seja Manoel do Bernardo! Distante bem quinze lguas De mim tiveram noticias : Ao major Antnio Lucas Foram pedir as alvias. Era gente p'ra me vr Como a doutor na justia, E o povo de Rio-Preto Era urubu na carnia. Seu major Antnio Lucas, Quando elle me enxergou, Botou oclo de arcance: L vem o meu cantador! Quando fui chegando em casa, Na entrada do terreiro, Antes de lhe dizer adeus, Deu-me um abrao primeiro: Ora vem c, Bernardo, Filho de Deus verdadeiro. Seu major Antnio Lucas, Me mande dar de cear; Quero vr si Rio-Preto Inda forte no lugar. Elle puxou pelo brao E mandou botar a ceia; Eu fiquei agradecido, Pois estava em terra alheia. Ao levantar a toalha, Puz as mos para rezar,

  • DO BRAZIL 53

    Quando chegou um aviso Que j vinham me chamar. Eu sahi logo fresca, Rio-Preto me fallou. No te afastes, Rio-Preto, A resposta j te dou. Manoel do Bernardo, Olha que j estou previsto, Segura o boto da cala, Aqui tens homem na vista. Rio Preto, tu vigia, Olha que bom no sou, no, Aperta o boto da cala, Segura o cs do calo. A ona no faz carnia Que no lhe coma a cabea, Nunca vi a cantador Que por fora no conhea. Apois manda fazer uma Com seis braas de fundura; Como bicho de represa, Tanto lava como fura. Quando vim da minha terra Truce ferro cavador Para tapar Rio-Preto, Deixal-o sem sangrador. ' Si tapares o meu rio, No tapas o meu riacho, Que eu represo nove lguas, Botando a parede abaixo. Rio-Preto, si tu vires Eu passear em gangorras, Si tu vires, no te assustes, Si te assustares, no corras;

  • 54 CANTOS POPULARES

    Si correres, no te assombres; Si te assombrares, no morras. Rio-Preto, no me vexo Para subir a ladeira, Subo de ccra e de banda, Subo de toda a maneira; At mostro preferencia Em subil-a na carreira. Manoel do Bernardo, Olha, j me vou d'aqui;' J estou certificado Que tens o major por ti. 0 fama do Rio-Preto, Um cabra to cantador, Descobriu por bocca prpria Que era atraioador. Manoel do Bernardo, Reza o acto de contrio, Que viemos te matar, No ficas mais vivo, no. A madrinha da noiva Foi quem te mandou matar, Para de outra donzella Te no ires mais gabar. A madrinha do noivado, Por ser moa de aco, Por um elogio tirado Deu-me a mim um pataco; Deu quatro para o meu bolso, E quatro p'ra minha mo. Ns viemos te matar, Ganhando trinta mil reis, Mas por causa do despacho Cada um te damos dez.

  • DO BRAZIL 55

    31 A. M o u r a

    (Pernambuco)

    Estava a moura Era seu lugar, Foi a mosca Lhe fazer mal; A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava a mosca Em seu lugar, Foi a aranha Lhe fazer mal; A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar I

    Estava a aranha Em seu lugar, Foi o rato Lhe fazer mal; O rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura,

  • 5 6 CANTOS POPULARES

    A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o rato Em seu lugar, Foi o gato Lhe fazer mal; 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o gato Em seu lugar, Foi o cachorro Lhe fazer mal; O cachorro no gato, 0 gato no rato, O rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o cachorro Em seu lugar,

  • DO BRAZIL 57

    Foi o pau Lhe fazer mal; 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o pau No seu lugar, Foi o fogo Lhe fazer mal; 0 fogo no pau, 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o fogo Em seu lugar, Foi a gua Lhe fazer mal; A gua no fogo,

  • CANTOS POPULARES

    0 fogo no pau, 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava a gua Em seu lugar, Foi o boi Lhe fazer mal; 0 boi na gua, A gua no fogo, 0 fogo no pau, 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava o boi Em seu lugar, Foi a faca Lhe fazer mal;

  • DO BRAZIL 59

    A faca no boi. * O boi na gua,

    A gua no fogo, O fogo no pau, 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, 0 gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    Estava a faca Em seu lugar, Foi o homem Lhe fazer mal; 0 homem na faca, A faca no boi, 0 boi na gua, A gua no fogo, 0 fogo no pau, 0 pau no cachorro, 0 cachorro no gato, O gato no rato, 0 rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

  • fill CANTOS POPULARES

    Estava o homem Em seu lugar, Foi a morte Lhe fazer mal; A morte no homem, O homem na faca, A faca no boi, O boi na gua, A gua no fogo, 0 fogo no pau, O pau no cachorro, O cachorro no gato, O gato no rato, O rato na aranha, A aranha na mosca, A mosca na moura, A moura fiava; Coitada da moura, Que tudo a ia Inquietar!

    32

    A R i b e i r a V c l l i a (Sergipe)

    Ribeira Velha, Porto de mar, Aonde as barquinhas Vo calafetar... Peguem na ferragem, Lancem l no mar

  • DO BRAZIL 61

    P'ra fazer uma nau, Uma nau bem galante, Para navegar Pelas partes da ndia... Aquelle menino da banda mida. ' Cambrainhas finas No so p'ra voss; P'ra gente, sinh, Que me faz a merc, . Que deita na cama, No tem que dizer. Felix do Retiro 1 Mandou-me chamar, Eu mandei dizer Que no ia l . . . Arengas com frade No quero tomar. Conversas de dia Acabam de noite Em prantos de choros De Manoel Joo, Que anda na rua Com seu p no cho, Balindo com mulatinhas, Balindo com crioulinhas. L no Mundo Novo Tem uma casinha; Dentro d'ella mora Certa mulatinha.

    i O Retiro 0 um lugar perto da Villa do Lagarto, em Sergipe.

  • 6 2 CANTOS POPULARES

    33

    O J a b u r u (Sergipe)

    Quando eu vim do Jaburu Fui noite passear, Encontrei com cirysinho Carregado de ara; E fallei para comprar Para dar mi Thereza. Como foi maracareza Engordar o meu vintm... As meninas do Bugio No comem sino feijo? Meus senhores e senhoras, Desculpai a minha aco.

    34

    A. M MI. - I < i i i l i . i

    (Sergipe)

    Estava de noite Na porta da rua, 'Proveitando a fresca Da noite de lua.

  • DO BRAZIL 63

    Quando vi passar Certa mulatinha, Camisa gommada, Cabello entranadinho. Peguei o capote, Sahi atraz d'ella, No virar do becco Encontrei com ella. Ella foi dizendo: Senhor, o que quer? Eu j no posso Estar mais em p.

    Olhei-lhe p'r'as orelhas, Vi-lhe uns brincos finos, Na restea da lua Estavam reluzindo. Olhei p'r'o pescoo, Vi um bello collar; Estava a mulatinha Boa de se amar. Olhei-lhe p'r'os olhos, Vi bem foi ramela; De cada um torno Bem dava uma vela. Olhei-lhe pVa cara, No lhe vi nariz; No meio do rosto Tinha um chafariz. Olhei-lhe p'r'a bocca No vi-lhe um s dente; Parecia o diabo Em figura de gente.

  • 64 CANTOS POPULARES

    Olhei-lhe p'r'os peitos, Eram de marmota; Pareciam bem Peitos de uma porca. Olhei-lhe pYas pernas, Eram de vaqueta; Comidas de lepra, E cheias de grela. Olhei-lhe pYos ps, Benzi-me de medo; Tinha cem bichos Em cada um dedo.

    35

    O s c c s d e c o r d o (Sergipf)

    A minha mana Luiza li moa de opinio; Passou a mo na tesoura, Deu com o cc no cho.

    Sete canadas de azeite, Banha de camaleo I? pouco p'ra fazer banha P'ra estes cocs de cordo.

    0 sebo est muito caro, \St valendo um dinheiro; Quero vr com que se acocham Estes ccs de cordo.

  • DO "BRAZIL 65

    Os caixeiros da Estncia x Levam grande repello, Para no venderem sebo P'r'a estes cs de cordo.

    Deus permitta que no chova, P'ra no haver algodo; Quero vr com que se amarram Estes ccs de cordo.

    Na fonte da gamelleira No se lava com sabo; Se lavam com folhas verdes Estes ccs de cordo.

    As negras de taboleiro No comem mais carne, no; S comem sebo de tripa D'estes ccs de cordo.

    O moo que brazileiro, Que conserva opinio, No deita na sua rede D'estes ccs de cordo.

    Ajuntem-se as moas todas Em redor d'este pilo, Qu' p'ra pizarem o sebo P'ra estes ccs de cordo.

    * Cidade de Sergipe.

  • 6 6 CANTOS POPULARES

    Ajuntem-se as velhas todas Em roda do violo, .'. Qu' p'ra danarem o samba 1 D'estes ccs de cordo.

    36

    A. M o q n o o a (Sergipe e Bahia)

    Minha moqueca est feita, Meu bem;

    Vamos ns todos jantar: Bravos os dngos Da minha yay; Moqueca de coco, Molho de fub; Tudo bem feitinho Por mo de yay; Tudo mexidinho Por mo de sinh 1 . . . Qual ser o ladro Que no gostar?!...

    Qual ser o demnio Que no comer ? ! . . .

    Ella tem todos temperos, Meu bem;

    S falta azeite dend; Bravos os dngos

    LB^Ci?'MPop.,llar; s y n o n y m o d 0

  • DO BRAZIL 6 7

    Da minha yay; Moqueca de coco, Molho de fub, etc.

    Ella tem todos temperos, Meu bem;

    0 que lhe falta limo: Bravos os dngos Da minha yay; Moqueca de coco, Molho de fub, Tudo bem feitinho Por mo de yay, etc.

    37 O l a d r o do -Padresinl io

    (Sergipe)

    0 ladro do padresinho Deu agora em namorador; Padre, voss v-se embora, Que eu no quero o seu amor.

    0 amor no seu de Raphael; Raphael quando for de quem quizer... Vou criar as minhas raivas Com meus calunds, * P'ra fazer as cousinhas Que eu bem quizer...

    i Zangas, aborrecimentos, effeitos do (lato, como dizem.

  • 68 CANTOS POPULARES

    Ai! me largue o babado! Ai! me largue, diacho! l Que diacho de padre, Ai, meu Deus! Que diacho de padre, Meu Santo Antnio ! . . .

    0 padre j estava orando, Quando a mulata chegou; Veiu dizer l de dentro: Eu sou seu venerador:

    0 amor no seu, de Raphael; Raphael quando fr, etc.

    0 padre foi dizer missa L na torre de Belm; Em vez de dizer Oremus, Chamou Marics Meu bem!. .

    O amor no seu, de Raphael, Raphael quando fr, etc.

    Eu perguntei ao padre: Porque deu em meu irmo? Com saudades das morenas, No quero ser padre, no.

    O amor no seu, de Raphael, Raphael quando fr, etc.

    < Transformao de diabo.

  • DO BRAZIL 69

    38

    Q u e r o toem . m u l a t i n h a . (Sergipe)

    Quero bem mulatinha Por ser muito de meu gosto; Si os parentes se anojarem, Um valente topa outro. Pelo feixe da espingarda, Pelo cano que ella tem, Pelo fio de minha espada Que no engeito a ningum. Si puxar por minha espada Na beirinha da lagoa, Si acaso fico perdido, Seja por cousinha boa. Rompo chuvas e troves, Coriscos, e criminoso Ando no mundo, queixoso Sem de mim se fallar nada!.. . Hei-de amar a mulatinha Pelo feixe da espingarda.

    Viva SanfAnna e Maria, E Sam Joaquim n'este dia; Deus quando subiu p'ra guia Deixou por valimento 0 testemunho da gente. Para amparo dos christos Viva SanfAnna e Maria.

  • 7 0 CANTOS POPULARES

    39

    C h u l a

    (Pernambuco)

    Eu nasci dentro da lima, Do caroo fiz encosto; Ai, amor! Quem geme E que sente a dr . . . Ai, meu bem,

    Divirta-se e passe bem I Ai, minha vida, Minha saia, Minha jia, Minha pitingoia 1 Ai, amor! Quem geme E que sente a dr . . . Ai, meu bem,

    Divirta-se, e passe bem!

    40

    F r a g m e n t o do C a b o l l e l r a

    (Estrophes colliyicliis em Pernambuco pelo snr. Franlclin Tavora)

    Fecha a porta, gente, Cabelleira ahi vem,

  • DO BRAZIL 71

    Matando mulheres, Meninos tambm. Corram, minha gente, Cabelleira ahi vem, Elle no vem s, Vem meu pai tambm. Meu pai me pediu Por sua beno Que eu no fosse molle, Fosse valento. L na minha terra, L em Santo Anto, Encontrei um homem Feito um guaribo, Puz-lhe o bacamarte, Foi p, pi, no cho. Minha mi me deu Contas p'ra rezar, Meu pai deu-me faca Para eu matar. Quem tiver seus filhos Saiba-os ensinar; Vejo o Cabelleira Que vai a enforcar. Meu pai me chamou: Z Gomes, vem c; Como tens passado No cannavial? Mortinho de fome, Sequinho de sede, S me sustentava Era canninhas verdes.

  • 72 CANTOS POPULARES

    Vem c, Jos Gomes, Anda-me contar Como te prenderam No cannavial ? Eu me vi cercado De cabos, tenentes, Cada p de canna Era um p de gente.

    41

    O R a b i c h o d a G c r a l d a

    (Colligido pelo snr. Jos de Alencar, no Cear)

    I

    Eu fui o liso Rabicho, Boi de fama conhecido; Nunca houve n'este mundo Outro boi to destemido. Minha fama era lo grande Que enchia todo o serto, Vinham de longe vaqueiros P'ra me botarem no cho. Ainda eu era bezerro Quando fugi do curral E ganhei o mundo grande Correndo no bamburral. Onze annos eu andei Pelas catingas fugido; Minha senhora Geralda J me tinha por perdido.

  • DO BRAZIL 73

    Morava em cima da serra Onde ningum me avistava, S sabiam que era vivo Pelo rasto que eu deixava. Sahi um dia a pastar Pela malhada do Chisto, Onde por minha desgraa D'ura caboclinho fui visto. Partiu elle de carreira E foi por alli aos topes Dar novas de me ler visto Ao vaqueiro Jos Lopes. Jos Lopes que isso ouviu, Foi gritando ao filho Joo: Vai-me vr o Barbadinho, E o cavallo Tropelo. D um pulo no compadre, Que venha com o seu ferro, Para irmos ao Rabicho, Qu'ha-de ser ura carreiro. Foi montando o Jos Lopes E deu linha ao Barbadinho, Tirando inculcas de mim Pela gente do caminho. Encontrou Thom da Silva Que era velho topador: D-me novas do Rabicho Da Geralda, meu senhor? = Homem, eu no o vi; Se o visse, do mesmo geito Ia andando o meu caminho Que era lida sem proveito.

  • A

    7 4 CANTOS POPULARES

    Pois ento saiba o senhor, A cousa foi conversada, A minha ama j me disse Que d'esse boi no quer nada. Uma banda e mais o couro Ficar para o mortorio, A outra ser p'ra missas As almas do purgatrio.

    Despediu-se o Jos Lopes ,UV E metteu-se n'um carrasco; Dando n'um rasto de boi Conheceu logo o meu casco. Todos trs muito contentes Trataram de me seguir, Consummiram todo o dia, E noite foram dormir. No fim de uma semana Voltaram mortos de fome, Dizendo: 0 bicho, senhores, No boi; lobishome.

    II

    Outro dia que eu malhei Perto d'uma ribanceira, Ao longe vi o Cherem Com seu amigo Moreira. Arranquei logo d'ahi Em procura de um fechado; Juntou atraz o Moreira Correndo como um dam nado. Mas logo adiante esbarrei Escutando um zoado;

  • DO BRAZIL 7 5

    Moreira se despenhou No fundo de um barroco:

    Corre, corre, boi malvado, No quero saber de ti, J me basta a minha faca E a espora que perdi.

    Alevantou-se o Moreira Juntando todo o seu trem, E gritou que lhe acudisse Ao seu amigo Cherem. Corre a elle o Cherem Com muita resoluo: No se engane, s Moreira, Que o Rabicho tormento. Ora deixe-me, Cherem; Vou mais quente que uma braza. Seguiram pela vereda E l foram ter a casa.

    m

    Resolveram-se a chamar De Paje um vaqueiro; D'entre todos que l tinha Era o maior catingueiro. Chamava-se Ignacio Gomes, Era um cabra coriboca, De nariz acham urrado, Tinha cara de pipoca. Antes que de l sahisse Amolou o seu ferro:

  • CANTOS POPULARES

    Onde encontrar o Rabicho D'um tope o boto no cho.

    Quando esse cabra chegou Na fazenda da Oruixaba, Foi todo o mundo dizendo: Agora o Rabicho acaba. Senhores, eu aqui estou, Mas no conheo dos pastos: S quero me dem um guia Que venha mostrar-me os rastos. Que eu no preciso de o vr Para pegar o seu boi; Basta-me s vr-lhe o rasto De trs dias que se foi.

    IV

    De manh logo mui cedo Fui malhada do Chisto, Em antes que visse o cabra J elle me tinha visto. Encontrei-me cara a cara Com o cabra topetudo; No sei como n'esse dia Alli no se acabou tudo. Foi uma carreira feia Para a Serra da Chapada, Quando eu cuidei, era tarde, Tinha o cabra na rabada. Corra, corra, camarada, Puxe bem pela memria; Quando eu vim da minha terra No foi p'ra contar historia.

  • DO BRAZIL 77

    Tinha adiante um pau cabido Na descida de um riacho; O cabra saltou por cima, 0 ruo passou por baixo. Puxe bem pela memria, Corra, corra, camarada; Quando eu vim de minha terra No vim c dar barrigada. 0 guia da contra-banda Ia gritando tambm: Veja que eu no sou Moreira, Nem seu amigo Cherem.

    Apertei mais a carreira, Fui passar no boqueiro. 0 ruo rolou no fundo, 0 cabra pulou no cho. N'esta passagem dei linha, Descancei meu corao, Que no era d'esta feita Que o Rabicho ia ao moiro. O cabra desfigurado L foi ter ao carrapicho: Seja bem apparecido, D-me novas do Rabicho ? Senhores, o boi eu vi, O mesmo foi que no vr, Pois como este excommungado Nunca vi um boi correr. Tornou-lhe o Ges n'este tom: Desengane-se co'o bicho; Pelos olhos se conhece Quem d volta no Rabicho.

  • 78 CANTOS POPULARES

    Esse boi, escusado, No ha quem lhe tire o fel; Ou elle morre de velho, Ou de cobra cascavel.

    Veiu aquella grande scca De todos to conhecida; E logo vi que era o caso De despedir-me da vida. Seccaram-se os olhos d'agua Onde eu sempre ia beber, Botei-me no mundo grande, Logo disposto a morrer. Segui por uma vereda At dar n'um cacimbo, Matei a sede que tinha, Refresquei o corao. Quando quiz tomar assurapto Tinham fechado a porteira; Achei-me n'uma gangorra Onde no vale carreira. Corrigi os quatro cantos; Tornei a voltar atraz, Mas toda a minha derrota Foi o diabo do rapaz.

    Correu logo para casa E gritou aforurado: Gentes, venham depressa Que o Rabicho est pegado. Trouxeram trs bacamartes, Cada qual mais desalmado;

  • DO BRAZIL 7 9

    Os tres tiros que me deram De todos fui trespassado. S assim saltaram dentro, Eram vinte p'ra me matar, Sete nos ps, dez nos chifres, E mais tres p'ra me sangrar. Disse ento o Jos Lopes Ao compadre da Mafalda: S assim ns comeramos Do Rabicho da Geralda.

    vi

    Acabou-se o boi de fama, 0 corredor famanaz, Outro boi como o Rabicho No haver nunca mais.

    42 O - B o i - E s p a c i o

    (Sergipe)

    Eu tinha meu Boi-Espacio, 1 Qu'era meu boi cortelleiro, * Que comia em tres serto, 8 Bebia na cajazeira, 4 Malhava 5 l no oiteiro,

    t Boi de pontas largas. s Boi manso, que vem sempre ao curral, por opposico ao boi

    hurbato, que o amontado. 3 O povo no guarda os pluraes, quando assim o exige a rima. * Logar prximo villa do Lagarto, em Sergipe. "' O povo ordinariamente diz: maira, maiad, mai, em logar

    dt? malhara, malhador, malhar.

  • 8 0 CANTOS POPULARES

    Descanava em Riacho. * Eu tinha meu Boi Espado, Meu boi preto carana; Por ter a ponta mui fina, Sempre fui, botei-lhe a unha. Estava na minha casa, Na minha porta assentado; Chegou seu Antnio Ferreira, * Montado no seu ruo, Com o irmo de Damio, Mon