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1 Telma Bessa Sales elma Bessa Sales elma Bessa Sales elma Bessa Sales elma Bessa Sales Canudenses na cidade de São P Canudenses na cidade de São P Canudenses na cidade de São P Canudenses na cidade de São P Canudenses na cidade de São Paulo - Memórias e Experiências. aulo - Memórias e Experiências. aulo - Memórias e Experiências. aulo - Memórias e Experiências. aulo - Memórias e Experiências. Canudenses na cidade de São Paulo Memórias e Experiências (1950-2000) Doutorado em História PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2006

Canudenses na cidade de São Paulo Memórias e Experiências ... l m a B e s... · (1950 – 2000) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- ... Helion Migrações internas e

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Canudenses na cidade de São Paulo

Memórias e Experiências

(1950-2000)

Doutorado em História

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2006

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Canudenses na cidade de São Paulo

Memórias e Experiências

(1950 – 2000)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de São Paulocomo exigência parcial para obtenção do título deDoutor em História, sob a orientação da Profª DrªHeloísa de Faria Cruz.

Doutorado em História

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

2006

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Banca Examinadora

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_____Resumo____________________________________________________________

Esta Tese está situada na área de História Social, na linha de pesquisa Cultura e Cidade do

Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Compreende uma investigação sobre a vida e experiências de migrantes canudenses, de São Paulo,

no período de 1950 a 2000; suas marcas, memórias, desejos, embalados pelas histórias de vida dos

antepassados, que viveram a guerra de Canudos e como esta história está presente no imaginário

dos que vivem em São Paulo. Objetiva-se discutir as experiências de canudenses, não como unidade

homogênea, mas sujeitos da própria ação; retratar as maneiras de viver na cidade, em determinado

campo de forças e disputa por espaços, territórios, visões de mundo e símbolos. O estudo da história

social da cidade de São Paulo permite a incorporação dos migrantes canudenses como um novo

sujeito social, valorizando os aspectos culturais deste grupo, sua constituição na cidade, relações

sociais e modos de vida. Pressupõe-se que este estudo analisa como os canudenses vêem e narram

suas experiências, reelaboram formas de viver, articulando-as com o trabalho da memória, que

acompanha todos os movimentos e transformações, buscando a superação de uma visão

homogeneizadora do ser e do viver nordestinos. O procedimento metodológico desta tese foi teórico-

analítico, a História Oral, com vertente da História Social. Esta Tese se configura por três partes. Parte

I - Nordestinos-Paulistanos; Parte II - São Paulo e Canudos: Múltiplas Experiências; Parte III - São

muitas memórias e outras histórias. Concluiu-se que as experiências dos canudenses permitiram vê-

los em suas diferentes formas de ser e viver e não como uma unidade homogênea. Especificamente,

os objetivos permitiram compreender e retratar os diferentes modos de viver dos migrantes canudenses

em suas trajetórias no processo de deslocamento vivido.

Palavras-chaves: nordestinos-paulistanos; memória; heterogeneidade; sujeito social.

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________Abstract_________________________________________________________________

This thesis is set in the Social History Field, on the research line of Culture and City from the History

Postgraduate Studies Program, from Pontifical Catholic University São Paulo. IIt includes an

investigation about Canudos migrants life and experiences, from São Paulo, from 1950 to 2000, their

marks, memories and ancestors life stories, who lived the Canudos War, and how this history is

present on the imaginary of the ones living in São Paulo. The objective is to discuss the Canudos

people experiences, not as a homogeneous unit, but as proper action subjects; to comprehend and to

portray the city living ways, on an determined field of forces and competition for spaces, territory, world

views and symbols. The São Paulo city social history study allows the Canudos migrants incorporation

as a new social subject, valuing this group’s cultural aspects, its constitution in the city, social relations

and lifestyles. It is supposed that this work analyses how the Canudos people see and tell their

experiences, (re)elaborate life ways, combining them with the memory work that follows every movement

and transformation, looking for the overcoming of a homogening view of the northeast being and living.

This thesis methodological procedure was theoretical-analytical, the Oral History, with the Social History

field. This thesis is set in three parts. Part I – Northeasterns-Paulistans; Part II –; São Paulo and

Canudos; Part III – There are lots of histories and memories. It was concluded that the Canudos people

experiences allowed us to see them in their different ways of being and living and not as a homogeneous

unit. Specifically, the objectives permitted us to comprehend and portray the different Canudos people

lifestyles, in their trajectory, in the process of the lived dislocation.

Keywords: northeastern-paulistans; memory; heterogeneity; social subject.

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_____Agradecimentos_______________________________________________

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________LISTA DE FIGURAS________________________________________________

Figura 01 _ Mapa da cidade de São Paulo (locais de presença de nordestinos)

Figura 02 _ Caminhão Pau-de- arara

Figura 03 _ Hospedaria dos Imigrantes

Figura 04 _ Tabela (deslocamento de migrantes para São Paulo)

Figura 05_ Parque Estadual Canudos

Figura 06_ Parque Estadual Canudos

Figura 07_ Parque Estadual Canudos

Figura 08_ Parque Estadual Canudos

Figura 09 _ Belo Monte

Figura 10_ Antiga Canudos

Figura 11_ Antiga Canudos

Figura 12 – Antiga Canudos

Figura 13_ Antiga Canudos

Figura 14_ Casal de canudenses

Figura 15_ Casal de canudenses

Figura 16_ Canudenses em caravana para 100 anos de Canudos

Figura 17_ Canudenses em caravana para 100 anos de Canudos

Figura 18_ Canudenses em caravana para 100 anos de Canudos

Figura 19_ Encontro dos Migrantes

Figura 20_ Encontro dos canudenses

Figura 21_ Encontro dos canudenses

Figura 22_ Encontro dos canudenses

Figura 23 - Encontro dos canudenses

Figura 24 - Cartão da UPIC

Figura 25 - Festival de Música e Poesia

Figura 26 -Festival de Música e Poesia

Figura 27 - Mapa Canudos

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_______SUMÁRIO_________________________________________________________

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ........................................................pag. 18

INTRODUÇÃO ..................................................................................................pag. 19

Parte I - Nordestinos-Paulistanos ............................................................pag. 50

Capitulo 1- Eu gosto de Canudos e preciso de São Paulo ..........................pag. 51

Capitulo 2- São Paulo é só ilusão ..................................................................pag. 64

Capitulo 3- Eu gosto de São Paulo, sou nordestino-paulistano .................pag. 70

Parte II - São Paulo e Canudos: Multiplas Experiências ......................pag. 84

Capitulo 4 - Era tudo desconhecido ..............................................................pag. 85

Capitulo 5 – Tenho uma história muito grande pra contar .........................pag. 102

Parte III - São Muitas Memórias e Outras Histórias .............................pag. 120

Capitulo 6 - A história, que eu conheço, é bem outra.................................pag. 121

Capitulo 7 - Eu não esqueci minhas raízes – A UPIC ................................pag. 146

Considerações Finais ..................................................................................pag. 169

Bibliografia ......................................................................................................pag. 173

Anexos ............................................................................................................pag. 184

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________LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS_________________________________

UPIC – União Pelos Ideais de Canudos

SPM - Serviço Pastoral dos Migrantes

MICC -Movimento Integrado Campo e Cidade

ACEPAC - Associação Canudense de Estudos e Pesquisas Antônio Conselheiro

CTN - Centro de Tradições Nordestinas

PDS – Partido Democrático Socialista

LEI – Laboratório de Estudos da Intolerância da USP

CEDIC – Central de Documentação e Informação Científica, Prof. “ Casemiro dos Reis Filho”

PDEE - Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior

IPMC - Instituto Popular Memorial de Canudos

UNEB – Universidade Estadual da Bahia

UFU/MG – Universidade Federal de Uberlândia

CEM - Centro de Estudos Migratórios

CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CMEA - Centro Municipal de Educação Adamastor

Região ABC – Referência a toda a região hoje constituída pelos municípios de Santo André,

São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires, Diadema e Rio

Grande da Serra.

UNIBAN - Universidade Bandeirante de São Paulo

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_____INTRODUÇAO_______________________________________________________

Esta Tese está situada na área de História Social, centrada na linha de pesquisa Cultura

e Cidade, do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo. Compreende uma investigação sobre um grupo de migrantes nordestinos

canudenses, advindos de Canudos/BA, a partir de 1950, que desenvolveram suas vidas na

cidade de São Paulo com diferentes trajetórias e modos de viver. Tem-se por tema a vida e

experiências desses migrantes canudenses com suas marcas, memórias, desejos e utopias,

embalados, também, pelas histórias de vida de seus antepassados, que viveram a guerra de

Canudos, cujo estudo hoje reflete a própria história do nosso país e de seu povo.

Reconhecendo a força de Canudos, na história, e os múltiplos estudos sobre este fato

histórico, convém ressaltar de que forma esse momento está presente no imaginário dos

migrantes canudenses, que vivem em São Paulo, além de compreender as diversas

interpretações, sobre tal acontecimento, que ainda se fazem presentes em várias instituições

como a igreja, a universidade, entre outras, e, de que forma essas interpretações se transformam,

ao longo dos anos, construindo, assim, um mosaico de análises e leituras, dentro de um campo

pleno de tensões.

Ao dialogar com esta pluralidade de visões, destaca-se o período de redemocratização

no país e a revitalização desta reflexão, no sentido de tornar públicos os vários significados

sociais de Canudos, especificamente a partir da década de 1990. Importa compreender como

as mudanças das interpretações dos significados da guerra chegam aos moradores e de que

forma são assumidas como marca identitária do grupo de canudenses da Zona Sul de São

Paulo.

Incorporar os migrantes canudenses nos estudos de uma história social e da cidade de

São Paulo, está-se diante de um outro cenário, qual seja, a incorporação de um novo sujeito

social no estudo histórico, que possibilita entender uma outra/nova dimensão sobre nordestinos,

em São Paulo, privilegiando não apenas os aspectos políticos e econômicos da cidade, mas

também, valorizando os aspectos culturais deste grupo, sua presença e constituição na cidade,

considerando-se, ainda, suas relações sociais e modos de vida.

Pressupõe-se que trazer à tona experiências de canudenses, dentro do processo de

migração e na história social de São Paulo, coloca-se em cena, não a migração em si mesma,

do ponto de vista sistêmico ou estrutural 1 , mas as experiências dos migrantes canudenses

1 Observam-se várias concepções sobre migração. Este trabalho aborda migração no sentido de ummovimento, de um processo migratório que envolve diversas questões. Na análise estrutural da migra-ção há o entendimento que o poder do capital (mercado) é o elemento capaz de desenraizar o migrantepara integrá-lo, onde há demanda da força de trabalho. Quando não há trabalho, o trabalhador tem quesair de sua terra, circular em busca de trabalho. O estudioso sobre migração Helion Povoa Neto tece umacrítica a esta concepção, que atribui à estrutura a causa da migração, anulando o sujeito frente àsdeterminações estruturais. Cf. POVOA NETO. Helion Migrações internas e mobilidade do trabalho noBrasil atual - novos desafios para a análise. Experimental n. 2, março de 1997.

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que, ao viverem na cidade de São Paulo, afirmam e reafirmam a vida resistindo, reconstituindo

a si próprios e a maneira de viver, sem desfazer os laços e as relações com Canudos.

O estudo, nesta perspectiva, analisa como os canudenses, hoje, vêem e narram suas

experiências, e em que medida reelaboram formas de viver e de morar, sob estado tensivo.

Através de suas narrativas e interpretações significativas do vivido, busca-se perceber elementos

culturais que permanecem, e como estes se modificam, articulando com o trabalho da memória,

em sua dinamicidade, que acompanha todos os movimentos e transformações, na busca de

contribuir para a superação de uma visão cristalizada e homogeneizadora do ser e do viver

nordestinos.

Ao desenvolver este trabalho, um dos compromissos é não insistir na “velha ladainha”

de considerar o nordestino como faminto e vítima da seca que teve de sair da terra natal para

obter melhores condições de vida, superando essa idéia repetitiva, alardeada durante tanto

tempo, em instituições escolares, nos livros, além de estar interiorizada na maioria das pessoas.

Ao contrário, através de suas histórias, os migrantes canudenses se reafirmam na

reconstrução de suas vidas e questionam esse olhar que se foi perpetuando ao longo dos

anos. Os canudenses se construíram, através de experiências conflituosas, que hoje significa

estar em São Paulo, como migrantes, constituindo-se e afirmando sua cultura como resistência,

expressando uma visão retrospectiva de toda vivência e, ao mesmo tempo, recriando maneiras

propositivas de viver nesta cidade. São pessoas que viveram um desenraizamento, e no

processo para reconstituir a vida, neste deslocamento do processo de migração, podem ser

vistos, também, como aqueles que tiveram oportunidades, realizaram descobertas, bem como

outras possibilidades nas formas de viver em São Paulo. Simultaneamente, afirmam–se numa

constatação de que hoje São Paulo não significa mais o que lhes significava outrora.

Nesta dimensão, propõe-se a tese, segundo a qual, as experiências vividas, num

determinado tempo e espaço, se inserem na história da segunda metade do século XX, na

cidade de São Paulo, num campo de tensões e conflitos, na conquista por espaços e direitos,

revelando a multiplicidade de sujeitos que também construíram a cidade de São Paulo.

Diante destas reflexões, de um modo geral, objetiva-se discutir sobre as experiências

de canudenses, com uma dimensão política no sentido de vê-los em suas diferentes formas de

ser e viver e não como uma unidade homogênea.

Para tanto, buscam-se, como objetivos específicos, compreender os diferentes modos

de viver de migrantes canudenses e suas trajetórias, dentro de um processo de deslocamento

vivido de forma violenta, parte de um processo mais amplo que seriam os deslocamentos não

só no Brasil, mas em todo mundo, onde populações vivem, em um contínuo movimento entre

cidades, regiões, países, continentes.

Este movimento vem questionando, de alguma forma, a ordem vigente no aspecto do

fechamento de fronteiras, na existência de uma legislação mais rígida com relação aos direitos

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

dos migrantes e, sem falar, no enfrentamento de grupos étnicos com policiais em diversos

países da Europa, além de políticas e programas de incentivo de retorno destes para suas

terras de origem.

O presente estudo busca compreender os canudenses, não como famigerados, seguindo

o estereótipo existente, mas vê-los como sujeitos de sua própria ação; retratar diversas maneiras

de viver na cidade, e as diferenças das experiências sociais vividas com dinamismo, em um

determinado campo de forças, e permanente disputa por espaços, territórios, visões de mundo

e símbolos.

Diante da pertinência do tema proposto, justifica-se este estudo pelo fato de a questão

da história de Canudos ter suscitado discussões nos mais diferentes campos das ciências

humanas e sociais, bem como a necessidade de um estudo a respeito das experiências vividas

e narradas pelos canudenses.

São vários os desdobramentos destas questões, relativas à presença destes migrantes

canudenses, na cidade de São Paulo, no período de 1950 a 2000, no que concerne à produção

de saberes pertinentes ao estudo dos deslocamentos vividos por estes migrantes.

Sabe-se que estudiosos, desde o século XIX, trataram o nordestino, em suas leituras,

apontando uma visão de forma homogênea para o ser nordestino, não respeitando as diferenças

existentes, construindo, assim, uma imagem de nordestino “retirante” 2 que, ao mudar para a

cidade grande, viveu dificuldades, enfrentou preconceitos e, através do trabalho, conseguiu

“vencer na vida”. 3

Esta visão de homogeneidade se faz presente, ainda hoje, no início do século XXI, com

este mesmo tom, em reportagens de revistas, e jornais de relevância nacional. A produção de

textos, artigos e a divulgação nacional de uma realidade da “vida severina’, como sendo a

única possível, foi-se tornando uma visão repetitiva e quase se eternizou como características

do homem e da mulher do Nordeste que, conhecido como uma região “inferior”, em comparação

ao sul do país, bem como São Paulo e Rio de Janeiro, se encontrava, à margem da dinâmica

social e política do restante do país.

Nesse sentido, estas formulações circularam em todo o país, anos após anos,

conseqüenciando uma visão estereotipada do nordestino e do sertão “seco-causticante-pedinte”,4 repetindo e consolidando uma imagem de miserabilidade do Nordeste, através da literatura,

das artes e informativos, com fotos de crianças, homens e mulheres esqueléticos, que sentem

a fome na própria pele. Desta forma, construíram não uma idéia, mentalidade, mas uma

memória única sobre aquela população que não se restringia aos períodos de seca, como

passou a substantivar aquela economia, aquela sociedade, aquela cultura. (BARBOSA,2004)

2 As expressões entre aspas são da pesquisadora.3 Idem.4 Idem.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Esta concepção homogeneizadora vem potencializando uma imagem inseparável do

nordestino à fome, qual seja, famintos que migram de um espaço para outro, e o desafio que se

coloca hoje, é desvendar a construção de tal idéia, questionar como se deu o processo de

consolidação dessas referências e o uso das mesmas para se falar sobre a população migrante.

No diálogo com uma bibliografia específica, alguns trabalhos despertaram um interesse

maior, como o estudo de BARBOSA (2004), em sua tese Famintos do Ceará e o estudo de

ALBUQUERQUE JR. (1999) A invenção do Nordeste. Ambos não apresentam a preocupação

em discutir os nordestinos em São Paulo, todavia, em certa medida, sinalizam caminhos para

se pensar a relação entre a imagem construída do nordestino faminto e inferior, constituindo,

assim, uma visão cristalizada de homens e mulheres nordestinos que perdura até os dias de

hoje5 .

Os dois trabalhos citados vão de encontro, em parte, à crítica da análise da narrativa

sobre a seca, que se faz entender como uma análise repetitiva, e por isso, vem consolidando

uma imagem do Nordeste, pejorativa, ou seja, uma prática combinada entre textos que produziu

memórias do e sobre os nordestinos... Num ir e vir de narrativas que se repetem, onde não há

espaços para as diferenças, havendo um grande silêncio para as experiências vividas dos

migrantes. (BARBOSA,2004)

Os trabalhos desses autores referentes ao nordestino apontam que, as obras escritas

no final do século XIX sobre a seca no Nordeste nas suas semelhanças, apresentam o viés da

vitimização do nordestino, com análises centradas nos aspectos climáticos da região,

bloqueando ou limitando as diversas realidades sobre a vida dos nordestinos que se

reconstituíam e enfrentavam tal realidade. Apresentando o homem do Nordeste como vítima da

seca, estas análises até hoje repercutem na memória social e na historiografia.

Vale recordar momentos vividos pela sociedade brasileira com relação a este aspecto

da vitimização, com um tom discriminatório e de homogeneização. A repetição de algumas

explicações generalizantes sobre o nordestino em São Paulo, está presente, é reforçada, através

de práticas discriminatórias que divulgam e alimentam essa visão. Parece importante lembrar

o ano de 1988, quando presenciou-se uma “batalha” de discursos e artigos na imprensa sobre

a presença de nordestinos na cidade de São Paulo. A partir da eleição da Prefeita Luiza

Erundina, as manifestações contra nordestinos se cristalizaram, segundo expressão de Clóvis

Moura em um artigo no Jornal O Estado de São Paulo6. As percepções de mundo, os valores

culturais eram “disputados” para além dos votos de uma eleição comum.

5 Tese de Doutorado de Marta Emisia: Os famintos do Ceará. História Social PUC/SP, 2004 e o livro deDurval Muniz de Albuquerque Jr. A invenção do Nordeste, FNJ-Ed. Massangana - Cortez, 1999.6 Ver Artigo Nordestinos criticam preconceito, de Clovis Moura no Jornal O Estado de São Paulo, 05/04/1989.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Um lugar específico torna-se centro simbólico desta “batalha” pelo direito aos espaços

da cidade: o parque do Ibirapuera. No Jornal O Estado de São Paulo de 20 de novembro de

1988, p. 1 está presente o seguinte:

O parque do Ibirapuera, cartão postal de São Paulo...É o lugar preferido de gente

bem sucedida... E de moradores da periferia, muitos deles nordestinos... No

parque do Ibirapuera também se decide o futuro de São Paulo: lá fica a Sede da

Prefeitura, que a partir de janeiro será ocupada pela nordestina Luiza Erundina.

Essa disputa implícita revela uma certa discriminação por que os nordestinos passam a

sentir mais fortemente em São Paulo, no início dos anos 80 como informa Maura Penna em seu

trabalho sobre identidade social. A autora informa que as depreciações e os comentários em

relação à nova Prefeita e em extensão, a todos os nordestinos que viviam em São Paulo,

começaram logo após a eleição.7

Nos comentários e debates da época pode-se perceber o forte preconceito nas

interpretações sobre o fato de uma cidade como São Paulo ter uma Prefeita paraibana, como

no artigo divulgado no Jornal Folha de São Paulo de 30 de novembro de 1988 p. A-3:

Paulistanos: visitem o parque do Ibirapuera antes que ele acabe. A capital paulista

agora é ‘nordestão’

Em argumento a este texto, pode-se pensar qual imagem é sugerida sobre a região

Nordeste neste jornal. O que seria o ‘ nordestão ’ para o autor e quais interpretações alimentam

uma visão do Nordeste atrasado e faminto. Estas passagens publicadas em jornal de circulação

nacional referem-se à cidade e aos espaços disputados nas relações sociais e culturais. Durante

a gestão da Prefeita Luiza Erundina, um Projeto de Lei do Vereador Bruno Feder (PDS) foi

enviado à Câmara Municipal no sentido de limitar os direitos dos migrantes: era-lhes negado

vagas nas escolas municipais,creches,atendimento médico e hospitalar.8

Outro fato polêmico que estimulou o debate sobre os nordestinos em São Paulo ocorreu

no ano de 1992, em outubro, num período próximo às eleições para Prefeitura de São Paulo,

em que o Centro de Tradições Nordestinas – CTN teve seus muros pichados com símbolos

nazistas e uma frase: “Fora nordestinos!” Este fato foi assumido por um grupo de neonazistas

skinheads, apontando que, em certa medida, tais manifestações iam além de discriminação

tomando ar agressivo e possivelmente de intolerância.

Atualmente, o desafio da convivência é uma questão mais urgente. Questões como as

7 PENNA Maura. O que faz ser nordestino: Identidades sociais, interesses e o “escândalo Erundina”. SãoPaulo, Cortez, 1992.8 Ver artigo: “Sonho de migrantes acaba debaixo de viaduto”. Reportagem de Marco Rosa, Folha da Tarde,23/08/1990.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Tornaram-se mais porosas e instáveis, afirma Arantes9, as fronteiras entre preconceito

e aceitação, entre o que é local e o que pertence a esferas sociais mais abrangentes. Essas

fronteiras se tornaram mais complexas e se vive um tempo em que tanto se fortalecem os

movimentos pela paz quanto ressurgem a intolerância e a violência.

“A intolerância no laboratório”, com este título é anunciado a existência do LEI –

Laboratório de Estudos da Intolerância da USP – criado em 2002 por iniciativa de professores

do Departamento de História. Este laboratório está criando um Museu da Tolerância que será

o primeiro do gênero na América Latina, e segundo informa Marcos Ferreira de Paula, tem o

objetivo de levar a reflexão sobre a intolerância a um público mais amplo, criando um espaço

para conscientização e conhecimento das intolerâncias do passado e presente.10

Assim visto, são conhecidos os casos citados porque foram amplamente divulgados

na época e para a reflexão vale acentuar que situações como estas não são novas, e, no entanto,

percebe-se que narrativas de forma homogênea que alimentam tais interpretações do nordestino

inferior se repetem em artigos de jornais como se pôde ver no Jornal O Globo e Jornal O

Estado de São Paulo, nos meses de maio e agosto de 2005, respectivamente.11

Em uma situação dialógica com estas publicações, e em busca de “desmistificar” esta

imagem de nordestinos como migrantes e pobres, que os tornam ora vítimas da seca ora vítimas

da discriminação, faz-se necessário explicitar as experiências de migrantes canudenses que

se afirmam em seus cotidianos, num jogo de resistências, conformações, sinalizando para

novas perspectivas e formas diferentes de viver a cidade, na afirmação de serem sujeitos ativos

e protagonistas, abrindo outras possibilidades de sentir, viver e conhecer São Paulo. 12

9 ARANTES, Antônio. Paisagens Paulistanas. São Paulo, Companhia das Letras, Unicamp, 2000.10 Cf. Revista Discutindo Filosofia, São Paulo, Escala Educacional, Ano 1. n.1, p.60.11 Jornal O Globo, 15 a 22 de maio de 2005 - matérias especiais: “Vida Severina”, Jornal O Estado de SãoPaulo, 07/08/2005, matéria “Retratos do Brasil”.12 Outros estudos focados na presença de migrantes nordestinos em São Paulo foram feitos, analisando-os enquanto mão de obra numa cidade que se desenvolvia e que simbolizava o pólo industrial do Brasil.Neste período, São Paulo passou por um processo de aumento populacional como afirma, em entrevistaà Revista Carta Capital n. 261, de 08/10/2003, o cientista social José Luiz Fiori ao analisar a sociedadebrasileira, enfatiza uma certa explosão demográfica no país nos anos 50, ressaltando a presença detrabalhadores que saíam do campo e iam para a cidade iniciando o processo de urbanização. Uma outrareportagem, do Jornal Folha de São Paulo de 22/09/1996, Caderno Cotidiano 3, tem-se uma matéria emque o jornalista José Roberto Toledo analisa dados do IBGE. Este anunciava que 17% das pessoasnascidas na Bahia viviam fora do Estado, e 7% viviam na grande São Paulo, incluindo sobretudo osbairros da periferia da capital. Neste movimento, segundo alguns autores, como Francisco Weffort emseu trabalho “Nordestinos em São Paulo: notas para um estudo sobre cultura nacional e cultura popu-lar”. In: A cultura do povo. Edênio Valle, José J. (org.)4. edição. São Paulo,Cortez, Instituto de EstudosEspeciais,1988,afirmam que os nordestinos tinham destaque, atraídos por trabalho oferecido não so-mente na região do ABC paulista,como também na região da grande São Paulo.

relações entre pessoas, países, comunidades, grupos se colocam hoje de forma prioritária. A

intolerância e xenofobia estão presentes no cotidiano, desde a não aceitação da linguagem,

da maneira de ser, até mesmo discriminação por religião, entre outros, por isso, as relações

em diferentes instâncias se tornam conflitos sociais.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Diante do exposto, torna-se imprescindível, por um lado, a necessidade do

reconhecimento da pluralidade das diversas formas de viver desta população nordestina em

diferentes espacialidades e temporalidades, bem como evidenciar trajetórias e peculiaridades

deste grupo em suas diversidades e, por outro, não fortalecer uma visão homogeneizadora

sobre tal população. Por conseguinte, convém que se apresentem visões com perspectivas

que apontem não só uma vivência na alteridade, como também outras/novas direções e

possibilidades, denunciadoras de falsas homogeneizações.

Para o desenvolvimento desta Tese, buscou-se o apoio de teóricos que trataram sobre

os nordestinos, apresentando outras avaliações, como exemplo, um trabalho com abordagem

sociológica, que considerou as trajetórias dos sujeitos, as experiências vividas e as formas de

sociabilidade dos migrantes. Esses assuntos foram tratados nos estudos de Roberval Freire

que remetem às memórias de canudenses em São Paulo, como vivem e recriam suas tradições,

festas e crenças na vida em comunidade.13 O autor nos leva ao caminho de origem/destino de

canudenses que mantêm vivas as memórias de seus antepassados e se articulam na cidade

tendo como central a organização de uma associação filantrópica em homenagem ao povo de

Canudos.

Em outra direção, um estudo, de antropologia social, assume uma linha voltada para

práticas cotidianas dos migrantes, no qual se enfatiza não o peso destes como mão-de-obra

na construção civil ou indústria metalúrgica, mas as marcas da sua presença cultural na cidade,

as mudanças com relação à chegada, a interação com outros modos e instituições da metrópole.

Este estudo analisa, ainda, as mudanças nas formas de lazer e culturas da população nordestina,

buscando articular-se com outros movimentos e com a dinâmica cultural da cidade. Sobre este

aspecto, o estudo de José Guilherme Magnani Festa no Pedaço14 , publicado nos anos 1980,

dialoga com outros autores e estudos acentuados na classe operária. Nesta época o auge das

pesquisas remetia aos movimentos sociais urbanos como sindicalismo, política, trabalho,

exploração. Eis um fragmento do autor em relação à pesquisa sobre nordestinos:

As imagens já conhecidas dos nordestinos, (forrós, casas do norte, etc),

arraigadas no senso comum – sem contar os estereótipos e preconceitos, que

de tempos em tempos vêm à tona na forma de intolerâncias – continuam

fornecendo um quadro de referência rígido, quando os processos sociais

contemporâneos, formas de inserção e até mesmo modalidades de lazer,

13 FREIRE, José Roberval. Migrantes de Canudos em São Paulo - A reelaboração da memória num contextode discriminação. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, PUC/SP, 2000.14 MAGNANI, José Guilherme. Festa no Pedaço. São Paulo, Ed. Hucitec/Unesp, 1998.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

entretenimento e cultura da população nordestina em São Paulo, passaram por

significativas mudanças. É preciso não apenas descobrir essas novas formas e

descrever sua dinâmica, mas articulá-las com outros movimentos e com a

dinâmica cultural da cidade, sob pena de se continuar a repetir os velhos chavões. 15

Um outro estudo abordando as formas de sociabilidade e focando sobre as trajetórias

de nordestinos em São Paulo, é o trabalho da antropóloga Rosani Cristina Rigamonte16 que

apresenta reflexões sobre nordestinos e suas práticas sociais, hábitos, costumes e práticas de

lazer, bem como se organizam e vivem os nordestinos num campo social que é mutável

historicamente. O estudo analisa ainda as transformações da cidade e do sertão através das

experiências dos nordestinos que põem em diálogo o tradicional e antigo - a Praça Sílvio Romero

e o moderno - o Centro de Tradições Nordestinas - CTN e como (re)significam estas experiências.

Estes estudos realizados, de certa forma inspiraram o desenvolvimento do trabalho,

por serem um referencial ao demonstrarem e identificarem formas de sociabilidades e de

inserção na cidade, além de incorporar outros sujeitos sociais que dão sentido à vida e suas

lembranças, (re)elaborando suas próprias experiências.

Assim posto, é importante considerar as relações sociais que os canudenses

vivenciam, os sentidos que estes atribuem à vida na cidade, como vão se construindo

historicamente na relação entre eles e com outros grupos, considerando-se que essa dinâmica

social é ambígua e contraditória, no desafio de não perder as possibilidades criativas destes e

de suas experiências vividas e narradas.

Em se tratando da necessidade de dimensionar a diversidade das práticas sociais e

modos culturais de viver, destes sujeitos sociais, evitou-se a composição estereotipada, a visão

cristalizada e generalizante que não permitem ver os sujeitos, em seus movimentos e diferenças;

por isso privilegiou-se, a religiosidade, a musicalidade, a dança, a linguagem, a alimentação

regional, com o propósito de superar uma análise homogeneizadora do nordestino como

migrante, bem como reconhecer a dinâmica dos sujeitos sociais que se desenvolve nas relações,

num campo de conflitos, na busca de espaços e afirmação de direitos. E ao mesmo tempo,

sair do estereótipo do nordestino, abraçando suas culturas, trajetórias, resistências,

acomodações e suas interpretações do vivido.

16 RIGAMONTE, Rosani Cristina. Sertanejos Contemporâneos: Entre a metrópole e o sertão. Humanitas,São Paulo, 2001.

Nesta direção, algumas questões perpassam todo o trabalho. Uma delas é o que

significa ser nordestino nascido na Bahia, especificamente na cidade de Canudos e, ao

mesmo tempo, viver o ritmo e a vida paulistanos? Poder-se-ia considerar nordestino-

paulistano? Mas a que nordestino se refere e que paulistano seria?

15 MAGNANI, José Guilherme. Festa no Pedaço. São Paulo, Ed. Hucitec/Unesp, 1998. Este trecho foi extra-ído do prefácio do livro de Rosani Cristina Rigamonte: Sertanejos Contemporâneos: Entre a metrópole e osertão. Humanitas, São Paulo, 2001.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Ressalte-se o trabalho de Yara Khoury, que dá outro enfoque para a reflexão sobre os

sujeitos sociais nas pesquisas:

Esses sujeitos sociais são pessoas vivas, que se fazem histórica e

culturalmente...Vivendo experiências de trabalho, construindo modos de viver e

de se organizar, sobrevivendo em becos, ruas, com bagagens culturais

diferentes... 17 Valoriza-se o papel ativo destes múltiplos sujeitos históricos que

“vivem suas experiências integralmente como idéias, necessidades, aspirações,

emoções, sentimentos, razão, desejos como sujeitos sociais que improvisam,

forjam saídas”.18

Além disso, uma reflexão vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos Culturais, na

busca de ampliar a concepção de história/memória, e debater questões tais como, é possível

na prática de pesquisa superar a visão da primazia do saber instituído sobre a realidade

empírica? Em que medida se considera o ponto de vista do outro, incorporando-o na prática

social? De fato se reconhece e se busca trabalhar com experiências vividas e narradas que

ultrapassam os conceitos de tradições historiográficas, explorando territórios antes, pouco

pensados como objetos da historiografia?19

Esta forma de abordar a temática do processo migratório de nordestinos em São Paulo

implica em relacionar as trajetórias e experiências destes, suas memórias e interpretações do

vivido como partes constitutivas da cultura, compreendida como modos de ser e de viver, fato

que permite uma mudança radical na maneira de se compor o trabalho tanto do ponto de vista

de metodologia como de concepção. Ou seja, compreender e aprofundar a problemática

colocada é condição sine qua non para dar um maior sentido ao trabalho, relacionando as

narrativas, articulando o trabalho da memória como parte constitutiva da cultura e como forma

de resistência, de afirmação de uma identidade e de ser sujeito em uma nova cidade.

As múltiplas memórias que são (re) elaboradas no próprio movimento de ir e vir de

canudenses, a partir da experiência vivida em São Paulo, alteram a própria dinâmica deste

movimento, indicando resistências e acomodações, em que estão presentes os costumes, as

heranças, como sustentáculos de tal processo. Assim vai-se construindo um modo de vida e de

luta, que aponta para outros/novos modos de ser canudense, em São Paulo.

17 KHOURY, Yara Aun. Entre o individual e o coletivo: narrativas orais na investigação histórica. In: RevistaProjeto história, História e Oralidade n. 22,2000.18 KHOURY,Yara Aun. A Pesquisa em História. São Paulo, Ed. Ática,1995.19 O Núcleo de Estudos hoje se chama: Núcleo de Estudos Culturais: Histórias, Memórias e Perspectivasdo Presente e sua atual coordenadora é a Profª Yara Aun Khoury.

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A pluralidade e ambigüidades das diversas formas de viver desta população nordestina

sinalizam trajetórias diversas, e peculiaridades, tornando-se necessário, compreender as

expressões de suas culturas presentes num campo de tensões com experiências compartilhadas

e que também são diferentes e contrastantes.

Assim visto, é preciso compreender o conceito de cultura de forma mais ampla como

aponta Raymond Williams20. O estudo, então, além de enfatizar as múltiplas experiências dos

sujeitos, procura atualizar a concepção de cultura, com referência a um grupo específico de

canudenses em São Paulo, como se mantêm e que novas questões lançam para a

contemporaneidade.

Cultura, neste caso, é compreendida como experiência e modos de vida. É pensada

como processo social de produção de sentidos e de um conjunto de valores expressos em

tradições, costumes. Para essa compreensão de cultura, como experiências vividas pelos

sujeitos, as proposições de Raymond Williams sinalizam para a importância de várias dimensões

das relações sociais e experiências humanas. Estas são muitas vezes “desconsideradas” por

análises de estudiosos que priorizam análises sistêmicas, atribuindo primazia ora ao econômico

ora ao político, na consideração dos fatos.

A partir das indicações deste e de outros autores, são consideradas dimensões

fundamentais a subjetividade, os sentimentos, as tensões e as diferenças no sentido de entender

o conceito de cultura como um processo social constitutivo, que cria “modos de vida” específicos

e diferentes. 21

Diante de tais reflexões, cultura pode ser compreendida como “modos de ser e de viver”

e todas as questões sobre os canudenses, neste trabalho, são analisadas tendo como referência

as próprias experiências vividas e narradas por eles e cultura caracterizada como “modos de

viver e de lutar”. Não é pensada como curiosidade ou algo exótico, mas ao contrário, vai sendo

construída e enraizada na realidade social, está em movimento e constante transformação. É

um campo de produção de sentido, no qual as pessoas se expressam, interagem e vivem. No

dizer de Déa Fenelon,

Cultura como sistema de significações de maneira ampla, de modo a permitir a

inclusão de todas as práticas e assim ser entendida como processo social

constitutivo que cria diferentes e específicos modos de vida.22

21 Idem.22 FENELON. Dea. Cultura e História Social: historiografia e pesquisa In Revista do Programa de EstudosPós-Graduados em História e do Departamento de História. N. 10, 1993 PUC/SP p. 86.

20 WILLIANS,Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro,Zahar,1979.

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29TTTTTe l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e s

Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Assumindo esta opção teórica que também, é uma prática social torna-se necessário a

abordagem de uma história plural. É preciso pensar os sujeitos sociais, dentro dos diversos e

atuais fluxos migratórios, considerando-se também, as trajetórias destes para conquistar

melhores condições, e uma vida com dignidade, pensando-os, com suas bagagens culturais,

relações sociais, tendo em vista uma sociedade, onde se considere a pluralidade, as diferenças

entre as pessoas e ao mesmo tempo a construção de uma história aberta, participativa e

democrática. Tal perspectiva é marcante, no dizer de Déa Fenelon, pois,

Abre a possibilidade de produzir uma história que será sempre política, porque

inserida no seu tempo e comprometida com ele (...) na esperança de estarmos,

de alguma maneira com nosso trabalho ajudando a construir o futuro, numa

perspectiva transformadora.23

Na perspectiva de assumir e incorporar cultura à investigação social torna-se claro que

não se trata de buscar modelos elaborados, porque nenhuma teoria pode ser pensada como

capaz de dispensar a investigação empírica sobre a realidade e suas transformações.24

E, ainda neste percurso, é possível analisar também, as dinâmicas e experiências de

canudenses no processo de “apropriação” de espaços, constituindo-se cada qual com suas

peculiaridades, inclusive no contato com outros grupos, vivendo com diálogos e contradições.

Pois importa que,

Enquanto historiadores e, agentes do social, procuramos organizar e reorganizar

valores buscando lidar com a cultura como um campo de batalha onde as lutas

se concretizam. 25

Logo, pode-se entender cultura como a produção e criação da linguagem, da religião,

dos instrumentos de trabalho, das formas de lazer, música, dança, sistemas de relações, enfim,

é a produção de signos, símbolos e suas práticas e valores. Nesta pesquisa, o conceito de

cultura é compreendido como experiências sociais, questões ainda em processos, inacabados,

e não um conceito aleatório e abstrato, definido aprioristicamente.

23 FENELON. Déa Ribeiro. Cultura e História Social: historiografia e pesquisa In: História e Cultura Revistado Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História. n. 10 São Paulo, dezembrode 1983.24 Trecho extraído do Folder do Programa de Estudos Pós Graduados em História da PUC/SP - ano 2004.25 HALL, Stuart. Notas sobre la desconstrucion de lo popular. In: História popular e teoria socialista. Barcelona:Editorial Crítica, 1984.

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30TTTTTe l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e s

Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Em suas discussões o professor Alessandro Portelli, considera as experiências sociais

dos sujeitos, com movimentos e tensões, e ainda, valoriza as interpretações e significados do

vivido, no sentido de abraçar uma reflexão ampla sobre cultura. Desta forma, a discussão da

linguagem, da vestimenta e da alimentação é relevante e estes aspectos são elementos culturais,

que estão diretamente ligados à vida cotidiana e, por isso, não separados do processo social,

da experiência compartilhada e processos sociais vividos.

Sobre os canudenses, enquanto sujeitos, e o perigo de, nas análises, não os distanciar

dos processos sociais, surpreende ao dizer

A coisa mais geral que existe no mundo é o ato de comer e falar. Não são pequenos

detalhes, são coisas de fundo. Comer, falar e fazer amor. Com quem esses

elementos se casam? Com quem namoram? Isto é um processo social forte,

porque ali você pode ver os efeitos de tudo isso, o desemprego, o trabalho, a

casa, são problemas concretos e materiais mais fixos. E é bom saber disso

através da narração, como são contadas as experiências, como se alimentam?

Tudo isso é uma coisa muito mais profunda.26

Desta forma, no diálogo com as experiências de canudenses buscou-se, enfatizar como

aponta Hoggart, em ver além dos hábitos aquilo que os hábitos representam (...), as

verdadeiras raízes da vida 27 , valorizando as diferenças e especificidades da cultura dos

canudenses.28

26 Diálogo com Alessandro Portelli dia 10/06/2005. Material traduzido e transcrito por Telma Bessa.Textos e fitas k7 consultar na CEDIC.27 HOGGART, Richard. As utilizações da cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora com especiais referênciasa publicações e divertimentos. v. 1 Lisboa: Presença, 1973.28 Na entrevista com Maria do Nascimento o assunto da alimentação surgiu e foi um dos mais “calorosos”,temperados com risadas e sabores. Além de cozinhar bem, gosta de fazer as comidas da sua terra. Naocasião da entrevista ensinou como se faz “carne de bode” com prováveis adaptações, como exemplo,utilizar panela de pressão,sabe-se que este é um costume urbano, aprendido após a vida em São Paulo,bem como a utilização de certos ingredientes, da receita do sorvete, em que Maria sugere trocar oaçúcar por leite condensado. Em Canudos, talvez hoje seja acessível utilizar leite condensado, porém,ha dez anos atrás, seria considerado um artigo não muito usual, na cozinha canudense. Pode-se refletirem que medida as mercadorias e consumo de São Paulo são incorporados pelos canudenses. Da mesmaforma, em São Paulo hoje é mais fácil encontrar ingredientes como coentro, colorau, imagina-se que osmesmos encontravam-se somente nas “Casas do Norte”, ou por encomenda. As “Casas do Norte” têm osentido de movimento, sempre alterando as mercadorias de acordo com a necessidade dos moradores,possuindo desde ervas com produtos de folhagens, raízes, ingredientes, comidas, vendendo artigoscomo rapadura, castanha de caju, carne de sol, carne de bode, farinha de tapioca (goma), feijão decorda, azeite de dendê, aguardente pitu, jerimum, beiju, inhame, macaxeira, manteiga da terra, pequi eprodutos misturados com outras regiões como a castanha do Pará, guaraná da Amazônia. Estes aspectossobre a vida dos canudenses prendem a atenção e de fato, são repletos de sabores como a culinárianordestina. Pensar um pouco sobre essas coisas do cotidiano, como é profundo o ato de comer, tambémo ato de vestir, leva a uma reflexão que a cozinha, por exemplo, é um lugar de produção cultural, onde seencontram características de tradições e identidade de grupo. Seria um reconhecimento de si mesmos,de identificação, mas também espaço de socialização, transformações no estilo de vida e intercâmbioentre culturas. Desta forma, valorizar na análise além de elementos políticos e econômicos, os sujeitossociais e seus costumes, significa considerar suas tradições, seus modos de vida, suas redes de relaçõesfamiliares e de sociabilidade.

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31TTTTTe l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e se l m a B e s s a S a l e s

Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Dentro deste quadro, a compreensão de cultura, como modo de vida, valoriza as

experiências de canudenses em São Paulo nos anos 1950 a 2000, na perspectiva de contribuir

para a construção de uma história que, Busca conviver com o indeterminado, o indefinido, o

diferenciado, destacando a importância da diversidade, das diferenças, das mudanças,

reconhecendo que ninguém tem o monopólio do caminho a percorrer para construir a

transformação que desejamos.29

No tocante à metodologia, para o desenvolvimento deste trabalho, adotou-se o

procedimento da História Oral por ser adequada ao estudo do processo migratório e

deslocamento específico dos canudenses, pois possibilita a reflexão de dimensões deste

processo, assim como da elaboração, das representações e significados das experiências

expressos pelas narrativas e modos de vida dos canudenses.

Nesse contexto, a ênfase é dada aos processos, aos significados apresentados pelos

sujeitos, e não à descrição de um fato ou de um evento. As interpretações dos fatos expressam

a experiência social vivida por pessoas que se relacionam, e vão além do que é estabelecido

e padronizado, influindo na construção da própria história. Considera-se, assim, menos os

eventos e mais os significados do vivido, reconhecendo as interpretações e valorizando as

subjetividades, considerando-se também que, o processo vivido não é um esquema de

experiências comuns e sim um “mosaico”, conforme aponta Alessandro Portelli, cada pessoa é

diferente da outra e se buscam as diferenças das experiências vividas internamente. Portanto,

a História Oral se coloca como um “campo de possibilidades” a História Oral e as memórias

não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de

possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias.30

Os migrantes canudenses têm concentração mais expressiva na Zona Sul de São Paulo.

São famílias que residem em bairros como Campo Limpo, Jardim São Luiz, Jardim Jacira,

Jardim Ibirapuera, Vila Calu, Jardim São Francisco. Além desses locais, residem também em

bairros como o Bairro do Limão na Zona Norte da cidade, em Itaquera na Zona Leste, Zona

Oeste bem como em municípios vizinhos como Taboão da Serra, Santo André, São Bernardo

do Campo e Mauá.

Considerando a complexidade das experiências dos canudenses da Zona Sul de São

Paulo, foram selecionados sete homens e uma mulher com trajetórias distintas em seu cotidiano:

dois deles tem mais de 30 anos de vivência em São Paulo e foram os primeiros a chegar na

cidade, foram os primeiros a intensificar a rede do movimento origem/destino entre os

30 PORTELLI. Alessandro. A Filosofia e os fatos. Revista Tempo. Rio de janeiro: Relúme – Dumará, v. 1p. 70, 1996.

29 FENELON, Déa R. “O historiador e a cultura popular: história de classe ou história do povo? In: Históriae perspectivas, n. 6 Uberlândia, Minas Gerais. Jan-jun/1992, p. 5-23.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

canudenses; três deles vivem em São Paulo desde os anos setenta e oitenta, três são mais

jovens, residem em São Paulo, aproximadamente, há cinco anos e fundaram o “condomínio

dos canudenses” uma outra forma de morar coletivamente.

Assim, são experiências e trajetórias de homens e mulheres originários da cidade de

Canudos, localizada no nordeste do Estado da Bahia, à 410 km de Salvador, que migraram

para São Paulo, entre as décadas de 1950 a 2000. São Paulo, nas décadas de 1950 a 1980

recebeu nordestinos, inclusive canudenses, que saíram de suas cidades de origem, em busca

de melhores condições de vida.

O estudo sobre os nordestinos canudenses compõe uma reflexão mais ampla que aborda

os processos de deslocamentos populacionais e nomadismo, na sociedade brasileira atual e

no mundo. Pergunta-se até que ponto esses movimentos de populações são desintegradores

e trazem um “desenraizar” das suas origens e culturas.

A investigação sobre as experiências e pluralidade de nordestinos naquela que é a

maior cidade nordestina do país,31sinaliza para uma discussão ampliada e contemporânea

dos movimentos das populações no Brasil.32 Sabe-se que um dos maiores desafios da

contemporaneidade é a reflexão sobre fluxos de deslocamento que estão presentes em todos

os continentes, considerando-se as diversidades de realidades existentes entre países, bem

como as diferenças das regiões dentro das fronteiras nacionais. Esta reflexão é apontada por

Yara Aun Khoury quando indaga:

O que significa refletir hoje sobre cultura e memória num tempo em que as

relações sociais se fazem em circuitos cada vez mais integrados, alcançando

abrangência internacional e estendendo-se pelos meandros da vida cotidiana;

enquanto nações desaparecem e outras surgem; enquanto cidades

31 É possível, através de dados estatísticos perceber a presença de nordestinos em São Paulo, além dasmarcas culturais que estes constituíram na cidade. No entanto os deslocamentos de canudenses e suafixação na cidade não estão quantificados. Os dados auxiliam para contextualizar a população nordestinaem São Paulo, mas é insuficiente para dar conta do movimento específico de canudenses. Dados docenso de 2000 indicam que em São Paulo há 9.1 milhões de nordestinos, sendo que 19.7% são baianos,20.7% são mineiros, 12.9% e 34.3% são de outros Estados. Destes nove milhões, 52% são mulheres e48% são homens.32 Depois de um aumento contínuo desde os anos 40, a migração chegou a responder por 42% doacréscimo populacional nos anos 70. O volume de migração estadual foi superior a três milhões nadécada de 70. O volume dos fluxos migratórios continua importante nos anos seguintes. Mais de 2,7milhões de pessoas chegaram e passaram a residir em São Paulo entre 1981-1991. Os nordestinos sãoos mais importantes numericamente. No mesmo período, foram mais de 1,3 milhões de nordestinosrepresentando quase metade dos imigrantes que para cá vieram. O principal Estado de emigração paraSão Paulo continua sendo a Bahia, 437 mil migrantes no período, seguida por Pernambuco com 322 milmigrantes. A região sudeste exceto o Estado de São Paulo, foi a segunda mais importante área deorigem dos imigrantes que se locomoveram para o estado de São Paulo, 619 mil, destacando o Estadode Minas Gerais com mais de 475 mil imigrantes. Cf. Valmir Aranha, Migração nas regiões do Estado deSão Paulo: tendências recentes. São Paulo, Fundação Seade, 2001.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

história é sempre construção.34

Para se pensar sobre essas questões, é necessário considerar a concepção do que

seriam fatos históricos, como se processa o trabalho da memória relacionada à história, quais

seriam as demandas para uma metodologia de trabalho diferente, que implica ir além dos

documentos oficiais e arquivos. O trabalho político implícito, ao fazer História Oral, não diz

respeito à política institucional, formal, mas, como todo trabalho político é trabalho de mudanças

e todas as mudanças são políticas - no sentido amplo da política - o fato de que a presença do

historiador social pode facilitar mudanças na auto-consciência das pessoas, que pode contribuir

no pensar a si mesmos e no mundo, isto pode ser considerado um trabalho político.

Nesta direção, vale acentuar, ainda, a importância da própria experiência do historiador,

quando da feitura de um trabalho, especialmente com História Oral, como afirma Alessandro

Portelli, ao escrever sobre o trabalho do historiador social, reforçando cada vez mais a reflexão

sobre a revisão das próprias concepções:

Que nossa história seja autêntica, lógica, confiável e documentada como deveria

ser um livro de história. Mas que contenha também a história dialógica da sua

34 AMADO J. M. e FERREIRA, MM (Coord) Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. Da FundaçãoGetúlio Vargas, 1996 p. xi-xii.

contemporâneas vão mudando seu perfil e migrações em âmbito nacional e

internacional se reproduzem.33 .

Em se tratando da amplitude desta reflexão, vale destacar que a análise do processo de

deslocamento e migração neste trabalho estão presentes, não somente através de planilhas e

estatísticas, bem como através das experiências dos sujeitos que dão sentido às mudanças

que vivem, recriando e (re) significando suas práticas sociais. Em suas narrativas, os canudenses

atribuem significados às suas experiências e a si mesmos, explicitando os modos de vida na

cidade de São Paulo e de que forma nela se sentem inseridos.

Sobre o trabalho com História Oral, as historiadoras Marieta Ferreira e Janaína Amado

apontam que,

Poucas áreas, atualmente, tem esclarecido melhor que a história oral o quanto à

pesquisa empírica de campo e a reflexão teórico-metodológica estão

indissociavelmente interligadas, e demonstrado de maneira mais convincente

que o objeto histórico é sempre resultado de uma elaboração: em resumo, que a

33 KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito na História. In: Muitas Memórias,Outras Histórias.Déa Fenelon Ribeiro,Laura Antunes (Org). São Paulo, Olho Dágua, 2004.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

formação e a experiência daqueles que a fazem. Que demonstre como os próprios

historiadores crescem, mudam e tropeçam através da pesquisa e no encontro

com os sujeitos”.35.

É enriquecedor olhar e registrar, atentamente, o percurso que se constrói e como se

desenvolvem as pesquisas. Para tanto, acredita-se ser importante a elaboração de trabalhos e

textos que contemplem a própria experiência vivida, com limitações, descobertas, avanços,

recuos e que, além de tratarem sobre a vida de populações em movimento, incluam o percurso

trilhado pelo pesquisador ao construir seu trabalho. Ou seja, escrever sobre os dados

significativos da pesquisa, oferecer aos leitores informações para conhecimento sobre o

fenômeno migratório, por exemplo, além de propiciar indicações sobre a dinâmica da feitura

do trabalho, como o diálogo foi ocorrendo, acordos, desacordos, mudanças de perspectivas,

digressões, reações, outros assuntos, e por fim, informações úteis sobre procedimentos,

utilizados no desenrolar da pesquisa.36

Este texto é fruto de um encontro, de vários encontros, de um diálogo entre a pesquisadora

e os canudenses durante vários anos. Buscou-se manter uma relação de igualdade com eles,

em que pontos de vista, opiniões e conceitos da pesquisadora não se sobrepusessem aos

deles, reconhecendo a autoridade narrativa deles, derivada dos seus restritos pontos de vista.

Uma postura de respeito ao outro, expressando um convívio em que, estivessem presentes

também as diferenças e confrontos, dentro de uma realidade social mais ampla.

De fato, é uma tarefa complexa a de produzir um texto que apresente múltiplas vozes;

que valorize a subjetividade dos sujeitos históricos nos processos vividos, na perspectiva de

construir um conhecimento histórico que incorpore toda a experiência humana e no qual, todos

possam se reconhecer como sujeitos sociais, conforme aponta Yara Khoury.37

A História Oral, portanto, é a arte da escuta e do diálogo. Cabe aqui, uma distinção entre

a opção do trabalho com História Oral e a utilização de fontes orais - que são as mais variadas-

. Fazer História Oral significa ir a campo, partir de uma pesquisa de dimensão local e descobrir,

ao longo do processo, o crescimento e o seu alargamento, que poderão ter uma dimensão

global, incluindo-os na relação com outras ciências.

36 O Circolo Gianni Bosio e o Instituto Ernesto de Martino, ambos na Itália, são os principais centros depesquisa e laboratório de metodologia de pesquisa e história oral que em seus trabalhos contemplamessa dimensão do próprio caminho do pesquisador.37 KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, Outras Histórias: Cultura e o Sujeito na História. In: Muitas Memórias,Outras Histórias.Déa Fenelon Ribeiro,Laura Antunes (Org). São Paulo, Olho Dágua, 2004.

35 PORTELLI. Alessandro. “O momento da minha vida: funções do tempo na história oral”. Tradução deHelen Hughes e Yara Aun Khoury In: Muitas memórias, Outras Histórias. São Paulo, Olho D’ Água p. 313.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Cesare Bermain, um estudioso de História Oral na Itália, em debate com Alessandro

Portelli, realizado em Roma em março de 2003, aponta que para um historiador social e oral,

é muito mais difícil o trabalho realizado como movimento, sempre em contato com pessoas,

grupos e diversas reflexões, porém, quem trabalha com história oral, não pode trabalhar de

forma isolada.38

Por sua vez, ao discutir a natureza do trabalho com fontes orais, Alessandro Portelli no

texto, Un lavoro di relazione. Osservazioni sulla storia orale, salienta a passagem da fonte oral

para a História Oral. Esta indicação apontada pelo autor expõe as implicações de se trabalhar

com fontes orais:

Trabalhar com fontes orais significa de fato tratar estas fontes não como material

complementar, auxiliar, em relação às outras fontes mais “canônicas”, mas traçar

sobre a centralidade das fontes orais um outro tipo de trabalho historiográfico. De

fato o uso crítico das fontes orais implica procedimentos e atitudes diversas que

derivam dos diversos processos de formação da fonte oral. À diferença da maior

parte dos documentos dos quais se vale a pesquisa histórica é que, de fato, as

fontes orais não são achados do historiador, mas, construídas em sua presença,

com a sua direta e determinante participação. O uso crítico das fontes orais

implica procedimentos diversos que derivam dos diversos processos de formação

da fonte oral.

Assegura, ainda, que a História Oral é um trabalho de relação: relação entre a pessoa

entrevistada e a pessoa que entrevista, ou seja o diálogo; a relação entre o presente sobre o

qual se fala e o passado do qual se fala , ou seja, a memória; a relação entre o público e o

privado, a autobiografia e a história; a relação entre oralidade - da fonte - e escrita - do

historiador - .39

Assim sendo, é importante valorizar as histórias de vida concretas e complexas das

pessoas, permitindo o desenvolvimento de relações inteligentes e co-responsáveis, seja no

plano interpessoal ou social, como aponta Mariella Zoppi, a partir de sua prática social, como

assessora de Cultura da Região de Toscana/Itália40 e tendo em vista uma sociedade, onde

existam as pluralidades dos pontos de vista das pessoas, as diferenças entre estas e onde

sejam respeitadas suas histórias e suas culturas.

39 PORTELLI, Alessandro. Un lavoro di relazione: Osservazioni sulla storia orale. Roma, 2000.40 ZOPPI, Mariella. Per una società consapevole delle differenze In: Migranti. Storie di vita. Revista dell’IstitutoErnesto de Martino. TARI, Marcello (organizador). Qui Noi Viviamo. Regione Toscana, Porto Franco, Itália,n. 15, novembro de 2004.

38 CAPECCHI Mauro e MARTONE Remo (organizadores): Memorie “di classe” – lavorare a scuola con le fontiorali per leggere il mondo contemporâneo. Introdução de Alessandro Portelli e Cesare Bermain Cesp –Cobas, Massari Editora,Itália, 2005.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Autores como Alessandro Portelli e Yara Aun Khuory são alguns dos estudiosos da

História Oral, presentes neste trabalho, porque possibilitaram pensar uma história outra, não

do campo da erudição neutra, mas uma história política e contemporânea, reafirmando o que

informa Beatriz Sarlo:

(...) Mais do que trabalhar novos temas e abordagens trata-se de propô-los de

forma a reafirmar a contemporaneidade e a vitalidade crítica da reflexão,

entendendo que a operação histórica requer um movimento não só retrospectivo,

mas fundamentalmente prospectivo, sempre colocando em causa as relações

entre memória e história.41

Alessandro Portelli inspira como entender mais os significados e menos os eventos nas

narrativas dos depoentes, buscando os sentidos das (re) significações das narrativas, enquanto

representatividade e tendências, dentro de uma reflexão sobre a importância da subjetividade,

da riqueza e diferenças, entre os depoentes, que constituem um mosaico, onde cada um

apresenta diferentes sentimentos e interpretações do vivido.

Este autor desenvolve seus trabalhos de pesquisa na Itália, onde há uma relação umbilical

da História Oral com uma militância política, e a partir de pesquisas com pessoas remanescentes

de guerra e/ou seus familiares contribuiu para a ampliação do sentido do trabalho da memória

e a importância das narrativas dos sujeitos. É um dos construtores de um arquivo sobre cantos

populares, além de desenvolver parcerias e convênios com escolas e instituições sociais, tendo

por base a realização de uma História Oral, dentro dos mais diversos campos de pesquisa.

Tais iniciativas são realizadas através do Circolo Gianni Bosio, que é reconhecido como um

verdadeiro laboratório de História Oral.42

Yara Aun Khoury conscientiza e interpela a todos para a intensificação do diálogo com

experiências de sujeitos sociais no bairro, na família, na comunidade, valorizando trabalhadores,

migrantes, negros, mulheres, enfim, sujeitos sociais que vivem, sonham, têm vitalidade e potência.

A crítica atualizada do processo de construção da pesquisa histórica e a ampliação do

entendimento sobre a relação história e memória na produção historiográfica, estão na ordem

do dia para esta pesquisadora, que em sua prática social, ha vários anos, em sala de aula,

promovendo seminários, em atividades de parceria com outras universidades, desenvolve a

discussão sobre História Oral e incentiva o “avançar” do trabalho do pesquisador, especialmente

41 SARLO. Beatriz. Paisagens Imaginárias. São Paulo, editora da Universidade de São Paulo,1997.42 O Circolo Gianni Bosio é um espaço voltado para a memória, o conhecimento crítico e a presença alternativada cultura popular, concentrando-se particularmente na musica popular. Compreende, também um arquivode fonte oral que preserva diversas memórias. Seu presidente é o Professor Alessandro Portelli.

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do historiador social. Esta, também coordena a Central de Documentação e Informação

Científica, “Prof. Casemiro dos Reis Filho” a CEDIC, mantendo um arquivo atualizado das

memórias de entidades e movimentos sociais.

Com relação à feitura da tese, vale dizer que o ato da escrita em si aconteceu,

precisamente nos anos de 2004 e 2005. Especialmente no período de abril a dezembro de

2005, após valorosas sugestões da professora orientadora Heloísa Cruz, das professoras Yara

Khoury, Rosário Peixoto e do professor Alessandro Portelli.43

Procurando, então, compreender como os migrantes canudenses foram se instalando

na Zona Sul da cidade de São Paulo, foram selecionadas narrativas de três gerações de

canudenses. Eles pertencem a famílias pobres de Canudos, trabalharam na roça com os pais,

e, hoje, vivem em São Paulo. São eles: José Macedo que chegou em São Paulo no ano de

1950, de 73 anos que mora em Santos - São Paulo; José Dantas, seu primo, de 58 anos, vive

em São Paulo desde 1968 e reside no Jardim Jacira; José Alôncio de 40 anos, saiu de Canudos

para São Paulo, na década de 70, e, atualmente, reside no Jardim São Luiz; Gilberto Nascimento

de 41 anos, chegou em São Paulo em 1988, e reside na Vila Calu, em Santo Amaro e Maria do

Nascimento de 32 anos, esposa do Gilberto, cuja mudança foi “um na frente e outro atrás”, na

verdade Maria não esperou doze meses pelo retorno de Gilberto a Canudos - conforme

combinado - e junto com seus filhos, uma criança de um ano e oito meses e outra de oito

meses, mudou para São Paulo para enfrentar as dificuldades ao lado do marido; Antônio Pereira

saiu de Canudos em 1995; Leonildo foi trazido por seus pais quando criança nos anos 1980 e

Roberto Santos que saiu de Canudos no ano 2000.

O movimento de saída faz parte da vida destes canudenses. Conforme suas narrativas,

desde crianças ouvem histórias dos tios e primos que saíram de Canudos para “ganhar a vida”

em São Paulo ou Salvador. Esta marca da saída e chegada revela uma dinâmica de identificação

e solidariedade entre eles, em que se ajudam e se apóiam e, aponta ainda, que a dinâmica de

vida deste grupo, em seu cotidiano mantém o fio estreito de ligação, entre eles, que estão, em

São Paulo e aqueles que estão, em Canudos.

Dentro deste movimento, é possível analisar o trabalho da memória, que é vivido em um

presente onde existem tensões, disputas, diferenças. As interpretações e significados das

experiências vividas, da mudança de Canudos para São Paulo, vêm mudando a própria

interpretação da memória: a mudança para a cidade de São Paulo era, anteriormente, vivida

como destino, ou seja, desde criança, eram alimentadas esperanças de um dia viajar para São

Paulo para “dar certo na vida”.

43 Em outubro de 2004, realizou-se o exame de Qualificação e várias alterações foram sugeridas aotexto. Em seguida, a pesquisadora realizou estágio em Roma de abril a agosto/05, na modalidade bolsaPDEE – sandwiche.

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Viver em São Paulo refaz esta maneira de ver esse movimento. Dos anos de 1950, com

a chegada de José Macedo até o ano 2000, com a chegada de Roberto Santos, observa-se

claramente uma alteração da concepção desta dinâmica. Há um questionamento do que significa

mudar para São Paulo hoje. O sentido deste movimento na atualidade é cheio de dúvidas,

decepções, e importa, através das narrativas dos canudenses, compreender os significados e

representações desta memória, os sentidos que foram construídos por eles em suas

experiências cotidianas na cidade de São Paulo, na sua sobrevivência e reafirmação, enquanto

sujeitos.

Uma questão orientadora deste trabalho é uma reflexão sobre o trabalhar com “memórias”

que significa trabalhar com um campo de disputas e de diálogos. Neste sentido, os canudenses,

ao reafirmarem ou realimentarem os modos de vida dos canudenses na cidade de São Paulo,

através das suas práticas socioculturais, com as suas tensões e suas diferenças, estão

defendendo direitos de construir e reordenar diferenças. É uma maneira de se firmarem como

sujeitos em meio a tensões vividas em São Paulo e em Canudos. Ter diferenças, possuir

identificações é uma maneira de continuar a vida, de se firmar como “vencedor” frente aos

desafios e dificuldades impostas pela realidade, contribuindo fundamentalmente para a sua

não diluição, enquanto grupo, e ao mesmo tempo, para afirmação numa nova cidade. As

memórias, diferentes e mutáveis, desta forma, são vividas como práticas, em que, a partir das

experiências vividas, implicam uma alteração na prática social e no próprio ato de recordar.

Nesta direção o campo de disputa, constituído pela memória de Canudos, é também

assimilado pelos canudenses. Este grupo assume como marca de identidade, o ser canudense,

sua própria história, a partir da (re)elaboração dos significados e representações sobre Canudos.

No contexto de democratização do Brasil, emergem, com força, as discussões públicas

sobre este tema, com a participação de igrejas, entidades da sociedade civil, entre outras.

Nesta dinâmica, refazem-se leituras e interpretações cristalizadas sobre este acontecimento

histórico. Os canudenses estiveram presentes em todo o processo e, ao (re)elaborar os sentidos

da memória, ao recriar os significados da guerra vivenciados pelos seus antepassados, (re)

afirmam-se, enquanto canudenses e reivindicam esta memória identitária.

É no diálogo com visões cristalizadas, é no próprio movimento de fazer-se canudense

em São Paulo, com uma memória de Canudos positivada e publicizada por eles, que estes

criam a UPIC – União pelos Ideais de Canudos, uma associação em que se articulam e se

organizam, há vários anos, os canudenses de diversas gerações.

Para esta discussão sobre memória, mais uma vez, articulam-se idéias com os escritos

de Alessandro Portelli. Cada depoente, à sua maneira e com seu jeito de narrar, reelabora

suas “tramas” individuais, numa experiência compartilhada, valiosas vivências e reflexões sobre

suas histórias de vida que, às vezes se completam, às vezes se contradizem. O modo de cada

um desses indivíduos constituir o viver urbano é heterogêneo, e essas diferenças são

manifestadas em seus depoimentos, pela forma de refletirem sobre suas experiências e as

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relações sociais que se forjam nesse contexto. Essas narrativas permitem reconhecer e

dimensionar possibilidades históricas que podem ser problematizadas.

Conforme salientou Alessandro Portelli, a memória é um processo individual que se

torna social e concreta, quando socializada, verbalizada, e, portanto, traz dimensões coletivas

dessa experiência social vivenciada. O que esse trabalho com a memória aponta não é a

importância abstrata do indivíduo, alardeada pelo capitalismo competitivo e liberal, mas a

importância idêntica de todos os indivíduos e que, desse modo, a memória é individual e

social.44

Para este autor, a memória não é um depósito, algo estagnado, mas ao contrário, está

em constante mutação. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de

dados poderemos constatar, que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-

se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoa.45

Ao conversar com esse autor sobre como se dá o processo de trabalho da memória,

especificamente sobre os canudenses, foi possível refletir questões interessantes como, por

exemplo, que a memória é social e individual e não coletiva, pois assim, parece que a memória

está fora do indivíduo, embora tenha seu quadro de significados. Cada experiência é dividida,

uma vez que grande parte das pessoas que migram tem experiência semelhante de partida,

então neste sentido é social, porque as experiências são sociais. E é social também porque é

social a linguagem que lhe passam.

Seguindo o raciocínio de Alessandro Portelli, entende-se que uma pessoa, ao contar

sobre a guerra, usa a linguagem de quem lhe contou tal fato, à sua maneira. No caso dos

migrantes, quando uma pessoa vai contar sobre a migração, também usa a linguagem de

quem lhe contou, usa uma linguagem que foi construída junto com outros migrantes. A linguagem

é uma prática social, por isso as histórias contadas aos migrantes são modificadas,

considerando-se que esses migrantes (re) contam histórias que já foram ouvidas e/ou contadas.

As diferentes gerações de migrantes canudenses vão-se articulando e criando

estratégias para apropriação da realidade em seus cotidianos; por essa razão, criam modos

de um viver próprios. Tal fato implica refletir, também, sobre estratégias e práticas de

sobrevivência, não apenas no espaço, onde residem como também na cidade .

Em função desta preocupação, através de memórias, orais e escritas, e outros

documentos, foi possível analisar modos de viver de migrantes canudenses, como estes foram

constituindo uma rede de relações e simultaneamente, (de) marcando seus espaços ao longo

dos anos.

44 PORTELLI, A. “Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral”. In:Projeto História: revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de Históriada PUC-SP. São Paulo: Educ, n. 15, abril de 1997,p. 17.45 Idem.

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Autores como Antonio Augusto Arantes ajudam a pensar a idéia de que certos grupos

criam, através de suas experiências urbanas, espaços na cidade e neles se reconhecem e

elaboram referenciais para manutenção de suas identidades culturais. Arantes aponta que há,

nas cidades, “fronteiras” que separam práticas sociais e visões de mundo antagônicas, ao

mesmo tempo em que as põe em contato. Para o autor, no espaço urbano,

cotidianamente trilhado, vão sendo construídas coletivamente as fronteiras simbólicas

que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, em uma palavra, ordenam as

categorias e os grupos sociais em suas mútuas relações.46

Dessa forma, pode-se indagar se são as culturas que produzem fronteiras, e justamente

por isso, serem elas também responsáveis pela visibilidade de certas diferenças. No caso dos

canudenses, um grupo organizou seu espaço próprio de moradia no chamado “Condomínio

dos canudenses”, numa área de manancial, ao lado da represa de Guarapiranga, em São

Paulo e foi possível observar que, além das fronteiras sociais, as fronteiras culturais são as que

demarcam este grupo e os seus espaços.

A partir desta realidade, dentro da pesquisa, buscou-se entender de que forma os

canudenses singularizam práticas, elaboram significados sociais e históricos, nos espaços

por eles ocupados. Buscou-se entender também, como se dá o diálogo entre eles e outros

grupos, e de que maneira essas “fronteiras” são demarcadas e transparecem nos diálogos.

Nesta direção, cabe pensar as narrativas dos canudenses não apenas como informações,

mas também, aliadas à observação destas, enquanto práticas sociais, visto que são expressões

de um viver social que são carregadas de sentido, significados, expectativas. Constitui um

desafio compreender estas narrativas para além delas mesmas, observando-se os gestos, o

que os depoentes privilegiam em seus relatos, os comportamentos e o modo como desenvolvem

suas narrativas. Estes elementos podem ou não contradizer os conteúdos que são narrados,

porque o processo de narrar contém significados, uma vez que, no próprio ato das narrativas,

se constroem imagens, realidades que expressam os sentidos.

Diante desse movimento e, ao dialogar-se com os canudenses, pôde-se constatar que

o processo de constituição deste grupo passa pela conquista do seu “pedaço”, do seu trabalho,

bem como na sua afirmação identitária, enquanto grupo de canudenses, através de suas

experiências. Neste processo, conquistaram espaços na cidade de São Paulo e nestes espaços,

se reconhecem e elaboram referenciais para manutenção de suas práticas culturais.

46 ARANTES, A.A. Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público. Campinas-São Paulo, Editorada UNICAMP-Imprensa Oficial,2000 (Coleção espaço e Poder).

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Para se entender as histórias e trajetórias dos canudenses, é fundamental perceber o

“pedaço” São Paulo, constituído historicamente por eles, que ao chegarem construíram uma

rede e conquistaram seus espaços, em diferentes pontos da cidade. Desta forma, é importante

pensar esses sujeitos sociais que se apropriam de ambientes e se instituem, enquanto grupo,

na busca de reconhecer em seu cotidiano, os costumes, tradições e um jeito diferente de “tocar”

a vida, desenvolvendo relações mais amplas. Ao mesmo tempo, vão (re)criando um “núcleo”,

onde se encontram, se ajudam, vivem e se fazem a partir da marca de ser canudense.

Acompanhando o movimento de idas e vindas destes, importa explicitar as diferentes

trajetórias e experiências. Retomar o tema de nordestinos em São Paulo significa pensá-los

hoje em seu dinamismo e criatividade, em suas múltiplas falas, memórias, bem como o sentido

que atribuem à vida em São Paulo, a si mesmos, além de suas trajetórias. Enfim, trazer à tona

diversas formas de serem nordestinos, a pluralidade de experiências, na tentativa de romper

com a repetição da narrativa do nordestino da fome e da seca.

Tomando de empréstimo a reflexão de Beatriz Sarlo, em seu texto “A história contra o

esquecimento”, em que analisa o filme Shoah, de Claude Lanzmann, argumenta que, o que se

sabe pouco “tem a fragilidade de um discurso que pode ser esquecido”. Nesta linha, reflete-se

sobre a necessidade de se debater, escrever sobre os canudenses, embora este seja um tema

sobre o qual muito já se escreveu, mas que ainda se sabe pouco.

Nesta dimensão, levando-se em conta a possibilidade do esquecimento, convém retornar

a este tema diversas vezes, não para repetir as análises que já existem, mas vê-lo de uma

maneira sempre renovada, com outras abordagens, para assim, dificultar o seu esquecimento,

buscando dialogar com as experiências destes sujeitos sociais, com os modos de vida e relações

constitutivas de suas culturas”.47

As reflexões acima apontam para possíveis caminhos a serem trilhados e um dos quais,

seria a convicção de que é necessário procurar outras memórias e histórias que foram excluídas

no processo e contemplar as diversas experiências de sujeitos sociais com seus diferentes

modos de vida, desconstruindo visões homogêneas e deturpadas.

Neste sentido, é necessário fugir desta “armadilha”, rompendo com uma visão

homogênea do nordestino em São Paulo, revelando as múltiplas experiências deste e ao mesmo

tempo, apresentar as tensões, diferenças e contradições vividas por migrantes canudenses

em São Paulo, ressaltando-se seus diferentes modos de vida.

O grupo de canudenses interlocutores nesta pesquisa, apresenta diferenças e

experiências diversificadas, a existência de pessoas que vivem em São Paulo, desde

47 SARLO. Beatriz. Paisagens Imaginárias. São Paulo, editora da Universidade de São Paulo,1997.

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adolescentes e que hoje não querem voltar para Canudos, pois conquistaram espaço,

desenvolveram suas atividades de trabalho, realizaram “o sonho” que os “empurraram” para a

cidade e possuem família - filho, esposa - como é o caso de José Alôncio e Leonildo; pessoas

como Antônio e Gilberto que trabalham e moram em São Paulo, há quase dez anos e, no

entanto, não vivem a cidade, afirmam não gostar do ritmo e da vida que têm e que o desejo de

voltar para Canudos é forte.

Nos vários momentos em que alguns entrevistados discutem suas vidas em São Paulo,

há o reconhecimento, pelo menos no âmbito das narrativas, da importância de estar na cidade

e os benefícios conquistados com muita luta. Entretanto, ao mesmo tempo em que há a afirmação

positiva dessa mudança, ela representa ter uma casa, família, salário, fica evidente que este

discurso somente é válido se comparado com Canudos, que não apresenta estas possibilidades.

Vale observar alguns dados sobre a cidade de Canudos:

Sobre a população de Canudos, pode-se afirmar que, em 1995, as projeções

demográficas apontaram a existência de 15.326 habitantes. No ano de 1991, o censo de renda

familiar revelou que 65,26% dos chefes de família recebiam remuneração entre até um salário

mínimo, e 3,22% declararam-se sem rendimentos, sendo que a estimativa das famílias indigentes

é de 1.368, o que corresponde a 45,70% do local. Estes dados indicam que Canudos é um

município pobre, inclusive na zona rural, onde vive a maioria da população.

Canudos, tem, hoje uma população estimada em 13.760 habitantes, com 2.985 km² ,

sendo que o censo do ano de 1996 apontou uma população de 17.256, entre as quais, 2.978

são pessoas com dez anos ou mais de idade, sem instrução e menos de um ano de estudo. O

rendimento mensal de até um salário mínimo é fonte de renda para 2.767 pessoas residentes,

e para 1.253 pessoas o salário mensal está entre mais de um a dois salários mínimos, ao

passo que 23 pessoas têm um rendimento mensal de dez a vinte salários mínimos. 48

A economia é voltada para a atividade agropecuária, destacando-se a criação de ovinos

e caprinos e a agricultura praticada se destina quase que exclusivamente à subsistência de

pequenos agricultores, com plantação de milho, mandioca e feijão, o cultivo de frutas como

umbu, pinha, a produção de mel, o cuidado com as plantas forrageiras: angico, quipé, favela,

pau de rato, quebra facão, umbuzeiro, palma e outros, para alimento dos animais. (Instituto

Popular Memorial de Canudos IPMC - 1997-1998)

Também tem relevância para o município o comércio, e, na feira, os comerciantes

compram algaroba e esterco de caprino que servem para ração do gado, além do comércio de

carne fresca. A cada feira são abatidas 25 reses bovinas e 150 caprinos. A atividade industrial

é inexistente, resumindo-se a pequenas unidades artesanais de fabrico de mandioca. 49

48 Estes dados tem origem no site do IBGE – Cidades, ano de 2000.

49 Dados extraídos do documento Plano de Saúde – Canudos – UNEB/1998-2001. SOUZA. Ely Estrela. OS Sampauleiros. Cotidiano e representações. São Paulo, Humanitas/Educ, 2003.

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Não se pretende discutir o volume, as causas e fatores que motivaram estes

deslocamentos populacionais no século XX. Busca-se explicitar, as experiências dos

canudenses, dentro do processo de saída de nordestinos para as cidades da região Centro-

Sul do país, fato ocorrido de forma intensa nas décadas de 1940-1950. É nesse período também

que se localizam as narrativas dos canudenses participantes deste trabalho.

Este fluxo intenso deve ser analisado levando-se em conta, em grande parte, o chamado

êxodo rural, isto é, a saída de milhares de brasileiros do campo para a cidade. A partir da

década de 1950, há um registro da saída de, aproximadamente, seis milhões de pessoas,

metade das quais da região nordestina.

Um estudo do Centro Migratório em São Paulo assinala que, se em 1960 havia 44,6%

da população, residindo na zona urbana, em 1980, essa taxa sobe para 67,57%, sendo que

nas décadas 1970-1980, saíram mais de quinze milhões de brasileiros do campo para a cidade.

As idas e vindas de nordestinos também aconteceram neste período e remete ao que

um estudo do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios aponta:

Nos anos 1980, 4,6 milhões de nordestinos deixaram o campo, tendo o êxodo

rural assumido, nesta fase, um caráter predominantemente intra-regional. O êxodo

rural brasileiro é também um fenômeno nordestino. De todos os migrantes rurais

do país, 55% saíram do Nordeste entre 1991 e 1996, o que representou quase

40% da população que vivia na zona rural da região no início da década. A população

rural nordestina apresentou uma redução absoluta de 1,2 milhão de pessoas

nesses cinco anos como resultado do êxodo rural e da queda da fecundidade.50

O fluxo migratório específico de pessoas do Estado da Bahia para São Paulo foi registrado

pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, no ano de 1997, o qual apontou

que o maior número de nascidos em outros Estados, residentes na região metropolitana de

São Paulo, que é formada por 38 municípios, era de origem baiana, ou seja, 1.204.478 pessoas,

de um total de 16.915.433.Em segundo lugar, estão os mineiros, seguidos pelos

pernambucanos.

50 Centro de Estudos Migratórios – CEM. Migrações no Brasil – o peregrinar de um povo sem terra. SãoPaulo, CEM/Paulinas, 1986 p. 10.CAMARANO,Ana A e BELTRÃO, Kaizô I. “Distribuição espacial da populaçao brasileira: mudanças nasegunda metade deste século”. In: CSEM – Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, Brasília,1999. Anuário estatístico do Brasil – IBGE, 1997.

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Existe uma visão talvez saudosista de Canudos por parte dos canudenses, e, ao mesmo

tempo, um sentimento de “não pertencimento”, de sensação de “vazio”, de “fora de lugar”, de

não aproveitar a vida em São Paulo. Questões como “vencer na vida”, “fazer pé de meia”,

“voltar à terra natal”, dentre outras, fazem parte das representações que são construídas e

permeadas por um imaginário arquétipo de “ser nordestino” e que, em certa medida, ainda é

perseguido como meta a ser alcançada.

Por outro lado, quando se fala de qualidade de vida, do ritmo de vida em São Paulo, das

relações de amizade e afeto, enfim, de questões da subjetividade, aparece nas falas que estes

valores estão distantes dos seus contextos no cotidiano e que só permanecem na cidade pelo

trabalho e por causa do futuro dos filhos. Ao afirmarem que São Paulo é uma cidade boa

porque tem trabalho e dinheiro, que é preciso trabalhar para viver e ao mesmo tempo, ao

demonstrarem desejo de voltar para Canudos devido às relações de afeto e um ritmo de vida

mais calmo, remete a uma reflexão se de fato, a cidade de São Paulo representa ainda o

“sonho” acalentado por várias gerações de “subir na vida” e “ser alguém”.

Assim, evidencia-se que as interpretações reveladas, a partir dessas análises de viver

em São Paulo, retornam e confirmam, insistentemente, as dificuldades da vida na cidade, e a

luta diária, a garra que eles demonstram em face da vida cotidiana, bem como ao problema de

aceitação das diferenças do modo de vida em São Paulo, que não valoriza as amizades, não

permite um tempo para conversar, tempo para lazer, enfim, viver as suas subjetividades de

forma plena.

As interpretações e significados, atribuídos ao processo de movimento de sair de

Canudos para São Paulo, indicam uma mudança na concepção do próprio movimento de ir e

vir. Este movimento de Canudos à Bahia não é mais como antes. As memórias e interpretações

sobre este processo alteram este movimento, e vice versa. O sonho de São Paulo como

“Eldorado”, onde eles “dariam certo” , hoje não é mais hegemônica e se questiona inclusive, a

validade ou não desta mudança. Por outro lado, a reivindicação do ser canudense como marca

identitária representa formas possíveis de se enfrentar a dinâmica da vida, em uma nova cidade,

além de significar uma auto afirmação e o fortalecimento dos laços.

São Paulo é para os interlocutores, ao mesmo tempo, uma verdadeira escola de vida,

onde aprenderam a viver, a conhecer seus direitos, ter acesso às oportunidades de trabalho,

educação entre outras. Enfim, para eles, viver na cidade de São Paulo mudou o que são e o

que poderiam ser.

Com relação ao trabalho de campo, a respeito da realização das entrevistas, entende-

se que os nomes dos depoentes não podiam ser pré-definidos. Estes depoentes foram se

definindo num processo participativo e dialógico. Não se tratou de uma lista pronta de nomes,

mas estes foram sendo selecionados ao longo do processo. Inicialmente investigar, dentro do

grupo dos canudenses da Zona Sul da cidade de São Paulo, os que eram conhecidos como os

primeiros a mudarem para São Paulo, remeteu à seleção de depoentes para aqueles que

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

chegaram na década de 1950. Na fase inicial da pesquisa, o diálogo com as narrativas,

conduziram à necessidade de investigar questões referentes às diferenças sentidas e vividas

pelas gerações na cidade, e assim procedeu-se o diálogo com outra geração: os mais novos

que residem em São Paulo, pelo menos há três anos.

O processo de entrevistas se deu desta maneira: inicialmente houve a seleção, dentro

da Pastoral dos Migrantes, de alguns grupos contactados, alagoanos, baianos, canudenses e

piauienses. A partir de análise e diálogo com os participantes destes grupos, tendo em vista a

problemática da pesquisa, optou-se pelo estudo com os canudenses da Zona Sul da cidade de

São Paulo, por se tratar de um grupo que se reivindica e se organiza, enquanto canudense,

tendo na própria história uma das bases da sua identidade, além de apresentar uma diversidade

de experiências e gerações. Através de uma associação a União pelos Ideais de Canudos -

UPIC, eles realizam estudos e atividades resgatando a história de Canudos e cultivam, ainda

hoje, uma rede de relações na comunidade em que vivem. O grupo também possibilita um

“mosaico” de experiências visto que os interlocutores que vivem na cidade de São Paulo são

de gerações diferenciadas, no período de 1950 a 2000. Os depoimentos aqui relatados são

frutos de entrevistas, realizadas em 2003, além de conversas informais e participação em

encontros, reuniões e festas com o grupo de canudenses, desde 1997.

Nesse processo de construção dos caminhos da pesquisa, a partir do diálogo com os

depoentes, estes foram localizados, paulatinamente, e as suas experiências sinalizavam para

outros nomes e desenhavam percursos a serem seguidos. Nestes termos, uma metáfora usada

por Alessandro Portelli é:

Eu sempre pensei que uma entrevista fosse como um dançar: você vai onde te

leva o teu parceiro. O parceiro, porém, deve saber decidir,onde se pode andar, e

vão em direção ao imprevisível. Isto indica que, no final, você dispõe de um tipo

de material infinitamente mais rico que aquele que você procurou. 51

Conversar e refletir com estes nordestinos, sem dúvida, ampliou a percepção sobre as

próprias raízes, bem como as da pesquisadora, pois se deve levar em conta que realizar uma

entrevista é uma experiência com dimensão interpessoal e intrapessoal que transforma a ambos

os sujeitos - o narrador e o historiador social . A partir do momento, em que o historiador social,

por exemplo, liga o gravador, se coloca um desafio para o narrador, isto é, fazer algo que nunca

51 PORTELLI. Alessandro. Una Vita Non Appartiene a Nessuna Disciplina. La diversità della storia orale tranarrazione dialogica, lavoro della memoria e lavoro del linguaggio. In: CAPECCHI Mauro e MARTONERemo (organizadores): Memorie “di classe” – lavorare a scuola con le fonti orali per leggere il mondocontemporâneo. Introdução de Alessandro Portelli e Cesare Bermani Cesp – Cobas, Massari Editora,Itália,2005.

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havia feito; não é comum para o narrador a ocasião de se contar a história de vida, durante uma

ou duas horas, já para o historiador social que acompanha este momento com atenção e paixão,

significa viver uma experiência de aprendizagem.52

Não é casual o interesse da pesquisadora em desenvolver este estudo desta forma,

pois esta fez a articulação de tal estudo com sua própria experiência de ser nordestina nesta

cidade e do envolvimento com grupos de nordestinos e suas organizações coletivas. A

formulação de muitas das preocupações e indagações que se inscrevem nesse texto, nasceram

da participação em encontros de nordestinos, reuniões, seminários, assembléias e estudos

realizados pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e pastorais sociais,

especificamente a Pastoral do Migrante da qual a pesquisadora é integrante, desde 1995. 53

Aliado a essa circunstância o período de aprendizagem e convívio na Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, durante a realização do Mestrado, contribuiu,

efetivamente, para uma mudança no modo de pensar e pesquisar. No Mestrado, a pesquisa

também desenvolvida sob a orientação da Professora Doutora Heloísa de Faria Cruz sobre os

metalúrgicos da Volkswagen - os Ferramenteiros de São Bernardo do Campo - teve o título

Experiências de João Ferrador em tempos de reestruturação produtiva no período de 1998 a

2000. Nesse sentido, a busca para compreensão do cotidiano desses trabalhadores da

Volkswagen, diante das mudanças internas da fábrica, incentivou o avanço para o

aprofundamento sobre procedimentos e concepção de como pesquisar.

Para este trabalho foram realizadas entrevistas, dialogando com estes interlocutores

sobre como sentiam a realidade do trabalhar na fábrica Volkswagen, a situação do trabalho no

chão da fábrica, o impacto das mudanças no local de trabalho, como reagiam à introdução de

novas tecnologias, desde o início de funcionamento da fábrica no começo dos anos 1960 até o

ano 1999. O referido estudo analisou as experiências vivenciadas pelos trabalhadores marcadas

por sentimentos vários como a relação com as novas máquinas, o tempo real no chão da fábrica,

o sentir-se “obsoleto” frente às novas tecnologias, o desaparecimento de ofícios como

ferramenteiro.

A partir desta experiência, da descoberta das várias dimensões do “ser trabalhador”, e

do diálogo com estes, ficou evidenciado a necessidade de se buscar uma compreensão maior

sobre a vida destes sujeitos sociais, para além dos muros da fábrica.

52 PORTELLI. Alessandro. Una Vita Non Appartiene a Nessuna Disciplina. La diversità della storia orale tranarrazione dialogica, lavoro della memoria e lavoro del linguaggio. In: CAPECCHI Mauro e MARTONERemo (organizadores): Memorie “di classe” – lavorare a scuola con le fonti orali per leggere il mondocontemporâneo. Introdução de Alessandro Portelli e Cesare Bermani Cesp – Cobas, Massari Editora,Itália,2005.53 A CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil possui em sua organização várias pastorais quetêm uma preocupação com causas sociais como: Pastoral da Criança, Pastoral do Menor, Pastoral Operária,da juventude. A Pastoral do Migrante é uma pastoral voltada para o processo de mobilidade social e omigrante.

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Apesar de a maior parte destes depoentes não serem da região Nordeste do país, foi

também a partir desta experiência com trabalhadores migrantes que a pesquisadora alargou o

seu interesse pela pesquisa sobre nordestinos em São Paulo, considerando-os não somente

através da inserção nas indústrias, nos bairros, entre outros, mas as próprias (re) significações

de suas experiências na cidade.

Há de se considerar ainda, que as discussões realizadas nas aulas e seminários, foram

fundamentais. Já no Doutorado, as reflexões de Alessandro Portelli apontam que a compreensão

da idéia de pesquisa e estudo têm um viés de intervenção na realidade. Não se trata apenas

de um instrumento de conhecimento em si, como afirma em seu texto Una vita non appartiene

a nessuna disciplina, mas, sobretudo, a pesquisa comporta um encontro entre pessoas, o que

significa uma experiência transformadora.54

Ressalte-se, também, a importância de participar de diversos projetos como

pesquisadora, em especial do projeto de constituição, da Sala de Memória do Centro Municipal

de Educação Adamastor - CMEA, em Guarulhos/SP.

Tais projetos dialogam com os sujeitos sociais, construindo com eles um saber que é

legítimo e reconhecido socialmente, para além do saber consagrado nas instituições

acadêmicas. Realizar pesquisas com intervenção na realidade, nas quais se evidenciam as

experiências dos sujeitos em seu fazer–se histórico, leva à compreensão da necessidade de

articular história e vida, aproximando a história do homem comum, valorizando e validando

suas experiências.55

Sobre a organização do trabalho, desenvolveu-se uma maneira própria dentro da

dinâmica da condução deste como um todo. Ou seja, a partir das narrativas e problemáticas

apontadas pelos canudenses, de suas trajetórias, das experiências vividas e narradas por estes,

a partir dos “feixes” apresentados, foi construída uma grande teia de questões, diversificadas e

plurais, onde conexões podem ser puxadas nas várias dimensões dos modos de ser e viver em

São Paulo.

54 CAPECCHI Mauro e MARTONE Remo (organizadores): Memorie “di classe” – lavorare a scuola con le fontiorali per leggere il mondo contemporâneo. Introdução de Alessandro Portelli e Cesare Bermain Cesp –Cobas, Massari Editora,Itália, 2005.55 Refere-se à constituição da Sala de Memória do Centro Municipal de Educação Adamastor, desenvolvidona Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos sob a coordenação da Professora Doutora Heloísa deFaria Cruz, espaço que na década de 1950 foi uma tecelagem. A sala de memória com sua exposição econteúdo, foi elaborada a partir de narrativas de trabalhadores, como viviam o cotidiano da fábrica,relação com chefes e amizades no local de trabalho. Tais dimensões estavam presentes nas experiênciasdestes, situado no momento de crescimento do setor industrial, em especial, no Estado de São Paulo ena cidade de Guarulhos. Hoje a exposição permanente sobre a fábrica e os trabalhadores convive comas muitas atividades educacionais e culturais desenvolvidas no Centro. Destaque-se que o Centro, coma estrutura da fábrica e sua chaminé transformou-se para a população num marco de memória dacidade.

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A Parte I – Nordestinos-Paulistanos - dialoga com diferentes modos de vida de canudenses

em São Paulo, especificamente no tocante à construção do que é viver na cidade e as diferentes

perspectivas e imagens construídas, historicamente, sobre a saída de Canudos para São Paulo,

desde 1950. Esta parte é composta por três capítulos, da seguinte maneira:

Capítulo 1 - Eu gosto de Canudos e preciso de São Paulo: trata não só da localização dos

canudenses em São Paulo, como também de suas trajetórias e experiências vividas na cidade.

Capítulo 2 - São Paulo é só ilusão: diz respeito à diversificação de experiências e o processo

de fazer e refazer-se no cotidiano.

Capítulo 3 - Eu gosto de São Paulo, sou nordestino-paulistano: trata da necessidade do respeito

às diferenças na luta pela afirmação de direitos.

A Parte II - São Paulo e Canudos: Múltiplas Experiências expressa reações e impactos da

chegada na cidade, de forma diferenciada para os diversos canudenses. Esta parte é composta

por dois capítulos, da seguinte maneira:

Capítulo 4 - Era tudo desconhecido: trata das diferenças de experiências das gerações e

impactos da chegada em São Paulo.

Capítulo 5 - Tenho uma história muito grande pra contar: trata das narrativas em seus imaginários,

no percurso, entre Canudos e São Paulo.

A Parte III - São muitas memórias e outras histórias, desenvolve uma reflexão sobre Canudos,

as diversas leituras existentes sobre a guerra, demonstrando o campo de disputa, constituído

pela memória deste tema. E de que forma esse momento está presente no imaginário dos

migrantes canudenses, que vivem em São Paulo. Esta parte é composta por dois capítulos, da

seguinte maneira:

Capitulo 6 - A história que eu conheço, é bem outra: trata da necessidade de se reconhecer a

importância da história de Canudos para se construir novas interpretações desse período.

Capitulo 7 – Eu não esqueci minhas raízes – A UPIC: trata da percepção sobre as mudanças

nas interpretações dos significados da guerra de Canudos e a forma como são assumidas

pelos canudenses.

Esta Tese se configura por três partes:

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O trabalho voltado para a História Social, com uma metodologia de História Oral,

transforma quem o faz e, sabendo que esta experiência não é finita, há o desejo de dar

continuidade a estas reflexões no cotidiano, contribuir para alargar horizontes, estimular outras

iniciativas, mudar a forma de entender a história. Dito de outra maneira, continuar a construir

muitas memórias e outras histórias, é sentir como diz Fernando Pessoa Sinto-me nascido a

cada momento para a eterna novidade do Mundo.56

56 PESSOA, Fernando/ Alberto Caeiro “O Guardador de Rebanhos”, Obra Poética p. 204 - 08 de março de 1914.

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I

NORDESTINOS-PAULISTANOS

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________Capitulo 1 - Eu gosto de Canudos mas preciso de São Paulo____________

Minha vida já é essa mistura.

Sinto falta de Canudos, mas

preciso de São Paulo.

(Gilberto Nascimento, 2003)

É importante conhecer a trajetória realizada por mim para desenvolver este trabalho.

Após a decisão de estudar os canudenses, procurei dialogar de forma minuciosa com José

Alôncio57 , com quem encontrava nas freqüentes reuniões da Pastoral dos Migrantes e, para

tanto, visitei amiúde a região sul da cidade de São Paulo, local de suas residências.

Em decorrência a um período de visitas, festas e encontros, foi realizado um especial e

longo passeio com o José Alôncio pelas casas de seus conterrâneos canudenses, objetivando-

se realizar algumas entrevistas. Era um domingo frio do mês de julho, inverno de 2003; nos

encontramos na Igreja do Bairro Piraporinha e fomos diretamente para a casa de José Dantas.58

O recurso utilizado para conhecer o local era um ônibus que parou próximo a casa deste, no

bairro Jardim Jacira. O acesso à casa de José Dantas implica subir a escadaria e ali chegando,

este ficou contente, logo ofereceu um “cafezinho” e o diálogo foi se processando, durante uma

hora.

Este dia realmente apontava muitos compromissos. Ao sair da casa de José Dantas a

casa a ser visitada era a do Gilberto e da Maria59. Esta nos recebeu com um sorriso oferecendo

a seguir um sorvete de abacate e pipoca. A conversa se prolongou por mais de uma hora.

Eu desconhecia a região de Jardim Ângela, com ruas estreitas, escadarias e morros.

Foi possível conhecer, de forma superficial, o que é dito sobre a pobreza e abandono desta

região, especialmente o Jardim Ângela e sua população que, no cotidiano, vai-se (re) construindo

para além das notícias nas páginas dos jornais.

A reflexão que segue procura contemplar o dinamismo das histórias vividas por

canudenses em São Paulo, desde 1950, quando na estação do Brás do Metrô, chegou José

Macedo, após ter viajado sete dias de “pau-de-arara”. Inclui-se o movimento feito por eles até

hoje, quando, ainda desembarcam canudenses para a vida nesta cidade, a maior cidade

nordestina do Brasil.

57 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.58 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.59 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Na tentativa de realizar um trabalho que tivesse presente a vitalidade da reflexão histórica,

dentro da problemática do processo de migração no Brasil, foi possível compreender que não

bastaria fazer uma análise ou apresentar um trabalho etnográfico dos nordestinos no Nordeste

ou em São Paulo. Para mim a reflexão estava em um outro campo que não era só localizar,

canudenses em São Paulo, e ouvir suas histórias, para com isso entender sua presença nesta

cidade.

Reconhecer os trabalhos realizados, nesta dimensão foi importante, porém, tais

indagações e interesses se colocavam de uma maneira mais complexa no sentido de contribuir

para uma compreensão dos significados de ser canudense e os modos de viver em São Paulo.

Através das narrativas de experiências vividas por estes migrantes, buscou-se entender de

que forma eles vêm desenvolvendo experiências que ainda estão em construção, nas quais

eles buscam se firmar, enquanto sujeitos sociais nas lutas por direitos, em um campo pleno de

tensões e conflitos.

Ano após ano, estes canudenses vão definindo lugar de moradia, lazer e trabalho. Na

vida em São Paulo, estes afirmam hoje a conquista de ter uma casa, um emprego, criar os

filhos, oferecer uma boa escola para eles. Para realizar tais conquistas, durante toda a vida

tiveram de fazer opções, enfrentar problemas, mudar de planos, enfim, tiveram de se construir

e (re) construir a vida constantemente para garantir um futuro melhor para a família. Eles contam

de várias maneiras como é a vida em São Paulo, quais os problemas que surgem, e como os

enfrentam, desde a saída de Canudos, a viagem e a chegada a São Paulo. É importante

acompanhar o movimento, as mudanças por eles vividas, como informa Gilberto Nascimento,

que chegou em São Paulo, em março de 1988, e vive na cidade há dezessete anos. Perguntado

sobre sua vida em São Paulo, ele respondeu:

Telma Bessa: Gilberto, conta um pouco como é a sua vida em São Paulo.

Gilberto Nascimento: A vida aqui é bem diferente, lá você conhece mais os

parentes, está no meio de parentes, aqui você convive com todo mundo. Eu não

tenho o que reclamar das pessoas; reclamo da violência. Eu e minha esposa, já

fomos assaltados, passamos dificuldade, foi assustador, nunca tinha acontecido

com a gente. A gente ficou muito traumatizado a primeira vez que aconteceu.

Mas nem isso impede a gente de sobreviver, de ir à luta. Eu mesmo com as

pessoas aqui é: “oi, tudo bem”, “como vai e tchau”. Não tem muita amizade com

pessoas estranhas (...) Aqui o que é bom é o emprego, estando aqui e estando

empregado, é bem mais fácil que lá. Porque lá não tem trabalho, serviço... Minha

vida já é essa mistura, não sou paulistano, é meio complicado isso. Sinto falta de

Canudos, mas preciso de São Paulo, já estou naquela, gostar, gostar, eu não

gosto de São Paulo, gosto do meu trabalho, do que faço em São Paulo, o clima

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lá é bem maior, a convivência lá com os parentes, lá é bem melhor. Mas a falta de

emprego impede a gente de ficar lá. Minha vontade é voltar à terra natal, em

melhores condições, pra não voltar àquela vida. Eu já saí de lá porque estava

difícil. Lá não tem emprego, o governo não oferece, o lugar não ajuda. A vida aqui

em São Paulo é muito arriscada, muito perigosa. A gente tem que se pegar muito

a Deus para não acontecer o pior, o que a gente vê no dia-a-dia aí. Não é fácil

enfrentar a vida aqui, é meio complicado, mas é aqui que tem o dinheiro, né? É

aqui que vêm os nordestinos, todos em busca da sobrevivência. Lá não tem

ajuda nenhuma, porque se lá tivesse ajuda, do governo ou de alguém, ninguém

vinha pra cá. Estamos aí na luta. A esperança é melhorar, daqui pra frente, vamos

ver o que Deus vai fazer de nós.60

Ao viver e sentir a dinamicidade de São Paulo, Gilberto afirma não ter amizade com

muitas pessoas, além dos conterrâneos e/ou conhecidos vizinhos. Rememora a tranqüilidade

e a calma que vivia em Canudos perante a violência e correria de São Paulo. Tem uma visão

política da situação de pobreza em Canudos, por não haver investimento do governo, e aponta

esse fator como causa da saída de muitos para São Paulo, na busca de emprego e melhores

condições de vida.

A vida, em uma metrópole como São Paulo, apresenta muitos problemas e um deles é

a violência. A agressão, o furto, o roubo, além de seqüestros são realidades vivenciadas pela

população. Ao viver tudo isso, Gilberto lembra de uma Canudos com muita paz e tranqüilidade.

Talvez suas lembranças estejam marcadas pela saudade, pelo medo da violência e desta forma,

desenha um quadro idílico de Canudos. Todavia, sabe-se que nesta pequena cidade baiana,

nesses anos, também está presente a violência da fome, do não acesso a serviços básicos

como saúde, educação, além do sistema político, que conforme narrado por Gilberto e Maria, é

ainda marcado pelo coronelismo e práticas eleitoreiras. Em outras palavras, a dominação de

alguns políticos em Canudos, sobre a população, se faz através de doações de cabras, cirurgias,

casas, açudes, e essa prática, não é novidade infelizmente.

Gilberto sabe, pois viveu isso e comenta, ainda, que, além da violência, outro problema

que sente na cidade de São Paulo é o clima frio, que se torna mais forte ainda, porque trabalha

como segurança de uma empresa, à noite. Talvez este sentir frio possa ser considerado além

de uma condição climática, pelo fato de o seu ritmo de vida ser o oposto ao vivido normalmente

60 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.

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=

pela maioria das pessoas, pois trabalha durante a noite e dorme durante o dia. Pode-se entender

a frieza que existe no seu contato com as pessoas. Gilberto não vive o calor e o prazer de estar

numa praça ou na rua com amigos durante o dia, não sai com amigos e mesmo jogar bola que

diz ser o que mais gosta de fazer, o faz dentro de casa com seus filhos. São Paulo é, de fato,

uma cidade fria, no aspecto climático, realmente o inverno é intenso e doloroso para quem

viveu a maior parte da vida no sertão baiano. No entanto, o contato com amigos, com vinho,

músicas e danças, reduz um pouco a sensação do frio, mas talvez, Gilberto não possa viver

estas ocasiões e por isso, a vida e o frio de São Paulo, sem dúvida, tornam-se mais pesados.

Gilberto valoriza o seu trabalho e demonstra a sua importância na maneira como vive

até hoje na cidade. Para este canudense que afirma estou em São Paulo por causa da luta, da

sobrevivência, São Paulo se mostra, enquanto possibilidade concreta de trabalho e melhores

condições de vida. Por outro lado, indica, em suas narrativas, que seu trabalho e sua vida em

São Paulo ainda é “de passagem”, embora esteja há mais de dez anos na cidade. Vale

considerar, também, na trajetória de Gilberto Nascimento, por exemplo, o aspecto de sua vida

dinâmica, na conquista de espaços para moradia ao afirmar Eu tenho quatro irmãos aqui em

São Paulo, dois são vizinhos, parede e meia e outro mora em Piraporinha, outro mora aqui

perto.

A sua narrativa faz uma indicação que conseguiu organizar espaço de moradia para si e

seus irmãos, na mesma região. Mais que isso: ao se fixar em um bairro, desenvolve uma luta

para garantir que os seus familiares estejam próximos ou residindo nas redondezas. Contudo,

para conseguir este intuito, teve de morar em vários locais, como afirma Maria do Nascimento,

sua esposa (...)a gente morou em quatro casas antes dessa. Moramos no Jardim São Luiz,

Capão Redondo, Vilamar também(...) 61

Esta seria uma trajetória vivida não só por Gilberto Nascimento, mas também por Leonildo

Rodrigues. Este veio para São Paulo ainda criança, e, em sua narrativa, dá largos indícios de

sua mobilidade na cidade:

Morei doze anos na Barra Funda, morei mais seis anos na Cachoeirinha, depois

fui pra Itaquaquecetuba, depois no Jandira, morei em vários lugares aqui em São

Paulo. Moramos também no Bairro do Limão, aí eu já era grande, já tinha

namorada, fui morar na casa da namorada, já trabalhava Agora eu moro com

minha irmã no Jardim São Francisco, no Condomínio dos canudenses.62

61 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.62 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Fig. 1 - Presença dos nordestinos na cidade

extraído do livro de Rosani C. Rigamonte.

Esta forma de abordagem compreende a região, onde residem os canudenses como

espaço de experiências vividas por sujeitos sociais. Compreende-se este espaço – região -

não somente do ponto de vista dos estudos/conceitos econômicos ou administrativos, em forma

de planilhas ou uma compreensão cristalizada e sem movimento, mas considera as próprias

vivências e mudanças dos sujeitos sociais que a compõem.63

Nesse aprofundamento do diálogo com os canudenses, foi possível perceber como são

importantes as histórias por eles contadas, e que a ênfase não está somente nas dificuldades,

mas também, na evidência da vontade e coragem de lutar, e mais que isso, ao falar sobre os

anos que vivem em São Paulo, o sentimento de ter vencido na vida está presente. Cada frase

de Maria Nascimento, que está em São Paulo desde o ano de 1988 e José Dantas que chegou

em 1968, intensificam esta situação.64

Maria Nascimento: A gente já sofreu bastante mas mesmo assim eu ainda

acho que a vida em São Paulo está em primeiro lugar... Olha, no meu caso

63 SILVA. Marcos A. “A História e seus limites” In História e Perspectivas. UFU n. 6, Jan/Jun 1992, p. 59-65.64 Entrevistas realizadas em suas residências, em julho/2003.

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eu acho, eu estou sendo feliz aqui. Eu sinto muita saudade por causa dos meus

pais, meus irmãos, mas eu vou ser bem sincera, pelo lugar eu prefiro aqui, assim,

vim de lá com 22 anos, e eu nunca tive vontade de voltar.

José Dantas: São Paulo foi tudo pra mim. Cheguei aqui com duas roupas, né. E

graças a Deus tenho uma moradia, as coisas, minha família. São Paulo foi tudo

de bom pra mim e eu também me esforcei. Vai fazer 35 anos que eu estou aqui,

foi difícil, deu pra conseguir alguma coisa, tenho essa casa, outra ali do lado, que

está precisando de reforma. Penso em voltar... Mas meu plano é ou ir pra Bahia,

ou comprar uma chácara, gosto de trabalhar, mexer com a terra, ajudar a cuidar

da natureza, gosto de flores, frutas, verde.

Ao dialogar com José Dantas, através de suas narrativas que falam de suas

experiências de vida, observou-se, também, que este canudense desenvolveu uma narrativa,

com o movimento de um olhar em retrospectiva à sua vivência, em São Paulo. Ao comentar que

hoje, olha para o caminho que fez e avalia “que foi difícil”, “passou o tempo de voltar”, é

interessante ressaltar que sua trajetória sempre possibilitou opções de vida, e, após 35 anos

na cidade, ele vê o futuro e tem perspectivas, isto é, poderia voltar para a Bahia, aponta que

possui duas casas, que poderia adquirir uma chácara, trabalhar com a natureza, entre outras

possibilidades. Desta forma, pode-se deduzir que seus 35 anos de vida em São Paulo, hoje

são vistos por ele de forma tranqüila, pelo fato de ter opções de vida futura.

Tem-se conhecimento da presença dos nordestinos em São Paulo através de

estatísticas, além de várias frases do senso comum, tais como, o nordestino construiu São

Paulo, porém, pouco se sabe das trajetórias e formas de vida criadas por estes nordestinos no

desenrolar dos anos, em São Paulo. Este aspecto é de interesse da História Oral, por exemplo,

e a narrativa que segue, de José Alôncio contém aspectos sociais, políticos e históricos:

José Alôncio: Então aqui em São Paulo é tudo muito diferente, é outro jeito de se

viver... Mesmo morando aqui há vinte e cinco anos eu sinto algumas diferenças.

Claro, eu aprendi muito... Quer dizer, não é que eu esqueci a minha história, a

minha cultura sabe? As minhas origens. Certo? Não é isso. Eu mantive isso e

incorporei o que São Paulo nos oferece... O conhecimento, as oportunidades de

poder estudar, ter um trabalho digno, poder cuidar da minha família. Por esse

lado, eu devo muito a São Paulo, eu tenho consciência disso, se eu tivesse

morando em Canudos eu não teria essa oportunidade de ter estudado um pouco.

Eu fiz colegial, fiz um ano e meio de faculdade, não terminei, comecei

administração de empresa, e quero continuar a estudar, mas certamente não

vou fazer administração de empresa, eu quero fazer o curso de História. É

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gratificante, é gratificante estar morando aqui, estar criando a minha família, ter

essa oportunidade de dar uma vida legal às minhas filhas, à minha mãe, eu vejo

assim, porque ela batalhou bastante, para ter criado a gente com uma vida digna,

uma vida simples, mas nunca faltou nada, ela sempre teve essa preocupação de

estudar, de batalhar, porque a vida nunca foi fácil, tem esse ensinamento da

minha mãe mas também que São Paulo nos ensina, entendeu? Que você tem

que lutar. Então eu vejo mais ou menos por aí... Claro que São Paulo ajuda porque

é o lugar do trabalho, é o lugar que vive e respira trabalho 24 horas por dia, então

por esse aspecto acho que São Paulo contribui, claro... Porque tem também a

história de ser nordestino de ter vindo de lá e dizer: vou encarar a vida e vou

vencer, acho que tem muito isso, entendeu? 65

Esta passagem das narrativas de José Alôncio pode abrir um leque de reflexões. Ao

chegar à cidade, ainda adolescente, ele estudou em escola pública, conheceu pessoas de

vários lugares do país, conviveu com paulistas e cresceu dentro do dinamismo de uma metrópole.

Sua forma de ver a cidade é interessante, pelo fato de assimilar de forma seletiva o que viu em

São Paulo, desde o trabalho, alimentação, músicas, e hoje, é um nordestino que conhece e

gosta de viver em São Paulo.

Esse diálogo apontou que suas experiências e relações construíram possibilidades de

convivência com outras culturas, por exemplo, quando afirma que gosta de pizza, rock e também

gosta das coisas do Nordeste, a carne seca, bode, forró, entre outros. Ao lado disso, narra

conquistas que obteve e que não poderia obtê-las em Canudos, como uma casa, um trabalho,

acesso à faculdade. José Alôncio afirma ser canudense de paixão, que mantém viva suas

raízes; e, do grupo dos canudenses, ele é o que mais intensamente acompanha e promove

momentos específicos do ser nordestino: Faz reuniões na casa da sua mãe para comer carne

de bode assada, promove forrós em sua casa, participa das festas juninas, em São Paulo.

Hoje, aos 40 anos, diz que soube aproveitar bem o que tem de melhor na cidade e ao mesmo

tempo mantém viva sua cultura, apontando talvez um hibridismo, ou a melhor forma - possível -

de viver sua cultura em São Paulo, apropriando-se de outras dimensões que a vida lhe ia

oferecendo. Quando perguntado a José Alôncio sobre seu modo de vida em São Paulo, e de

que forma fortalece suas raízes, ele, aproveitou a ocasião e se antecipou falando dos seus

sentimentos,

José Alôncio: Então é assim, sou um pouco paulistano porque faz vinte e

65 Entrevista realizada em suas residência, em julho/2003.

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cinco anos que moro aqui mas se você pegar em números, eu sou 80%

canudense e 20% São Paulo, mesmo morando aqui ha tanto tempo. Tem algumas

coisas que aqui mesmo, eu não esqueço, eu freqüento, coisas relacionadas ao

Nordeste, onde tem espaço que divulgue a história, as coisas do Nordeste, onde

tem restaurante com comidas típicas, exposição de músicas, eu estou ali, estou

querendo aprender, saber. Assim eu me sinto mais nordestino que propriamente

um paulistano.66

Analisando-se as narrativas, constatam-se palavras que estão presentes nas falas tais

como, a palavra solidariedade, e que esta não é uma palavra vazia, representa muito para eles,

não somente nas falas, mas na vida concreta, em situações reais de suas experiências como,

por exemplo, na construção da casa do Gilberto que foi feita em mutirão; no emprego que foi

indicado para o Roberto, logo depois de sua chegada a São Paulo; na ajuda para Leonildo por

ocasião da morte de sua mãe. 67 Muitos exemplos poderiam ser citados, porém, uma experiência

de José Dantas ao chegar em São Paulo em 1968, é narrada por ele com muita alegria e

orgulho:

Aqui tem muita amizade, muito conhecimento com os nordestinos. Essa casa

sempre foi cheia. Teve uma época que morava 25 pessoas, num quarto, cozinha

e só tinha eu trabalhando. Eu fazia hora extra, saía de casa sete da manhã,

chegava dez da noite, fazia cem horas extras por mês e mandava o pessoal

pegar as coisas no empório, quando ia pagar, o dinheiro só dava pra pagar a

metade, ficava devendo pro outro mês. Eu ia pagar a conta e deixava pro próximo

mês. Era muita gente em casa. Por exemplo, iam chegando e ficavam aqui. O

Abdias ficou aqui uns três meses, com a família, uns três filhos. Teve a Maria,

Zefinha, Lucilene, Betinha, Maria minha irmã. 68

José Dantas fala até hoje sobre como ajudou e como foi ajudado por amigos, no período

em que esteve desempregado, e como visto acima, sempre acolheu os parentes e amigos em

sua casa. Isto demonstra como foi desenvolvendo relações solidárias no cotidiano. Para ele, a

solidariedade é importante e sempre presente em sua vida. Em sua trajetória, contou com a

presença solidária dos amigos do trabalho, em uma ocasião que narrou com muita emoção.

66 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.67 Eis uma fala de Leonildo: “Porque nós somos muito unidos, assim, um precisa do outro, a gente estásempre ajudando, um sofre pelo outro, bate na porta do outro. Por exemplo, quando minha mãe faleceu,um me dava R$ 50,00, outro me dava R$ 30,00, teve a Joice que me deu o cartão de crédito dela pralevar pra Bahia, usei, cheguei, paguei. Graças a Deus. Aí nós somos assim, é sempre um precisando dooutro, a gente não pode falar que não precisa de ninguém porque a gente precisa...”68 Entrevista concedida,em sua casa, em julho/2003.

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Ao ser demitido, ficou aguardando o processo de aposentadoria, e neste período, não conseguia

encontrar outro trabalho, conseguindo apenas ser vigilante de carro, na rua, à noite. Os amigos

do antigo trabalho se organizaram e garantiram cestas básicas para ele durante mais de três

anos:

José Dantas: Aí depois de seis anos saí do emprego e fui dar entrada na

aposentadoria. Já tinha completado o tempo. Mas passei cinco anos pra receber.

Fiquei parado, fazia biscate de pintor de casas, trabalhei num estacionamento

dois anos e oito meses, à noite, doze horas. E nada do dinheiro sair, e o dinheiro

que tinha já acabou há tempos. Eu já estava desesperado. Aí num dia chegou

uma carta: saiu a aposentadoria. Eu fui lá assinei e os três primeiros meses foi

tudo pro advogado. Aí foi difícil. Chegou a notícia no antigo emprego que eu estava

passando necessidade, desempregado, esperando a aposentadoria. Eu fiz muita

amizade lá e quando um dia chegou uma Brasília aqui lotada. Oito cestas básicas,

trezentos e oitenta reais em dinheiro, até vale transporte mandaram. Aí fui

agradecer. Eles falaram: olha até você não receber sua aposentadoria, a cesta

básica é sua. E foi assim. Aí quando saiu a aposentadoria fui lá e disse pra eles,

agradeci. Isso durante cinco anos, esperando resolver. 69

Acompanhando-se, passo a passo as narrativas de José Dantas, torna - se claro em

sua trajetória que conseguiu estabelecer relações de amizade com os quais convivia, e isso

independe de certa forma, de ser amigo canudense ou não. Certamente, ele foi um apoio para

os que chegavam de Canudos, no entanto deixa bem claro que ser solidário é romper com

fronteiras e sua vida demonstrou que o fato de ele ser solidário com vários canudenses que

chegavam à cidade possibilitou que ele também recebesse apoio de diversos amigos do local

de trabalho quando foi necessário, e estes amigos não eram canudenses. Tem-se assim, uma

rede de apoio que se constituiu não pelo viés de ter em comum a região de origem, mas fruto

da convivência, do cotidiano, de se construir a vida, com laços fortes de amizade e que garantiu

até mesmo sua sobrevivência por um determinado período de tempo.

Mais um momento de sua história é narrado por José Dantas lembrando dos primeiros

meses em que chegou em São Paulo, ao afirmar que, a certa altura de sua estada, decidiu

voltar para Canudos com seus amigos. E esta decisão foi tomada junto a amigos que choraram

uma tarde inteira porque queriam ir embora. Ele então era um garoto de 18 anos e estava ainda

forjando espaços, relações sociais e busca por trabalho. Segundo conta, sua vida era o trabalho

e as diversões com os primos e amigos. Afirma que sempre acolheu pessoas que chegavam

69 Entrevista concedida,em sua casa, em julho/2003

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de Canudos e estes contatos renovavam dentro de si, aquela vontade de voltar, a nostalgia do

lugar de origem. Assim ele aponta mais este momento de sua vida,

70 Entrevista concedida,em sua casa, em julho/2003.71 Depoimento concedido, em sua casa, em julho, de 2003.

José Dantas: E um dia tomando cerveja, falando do Norte, a saudade velha bateu

no peito. Bateu forte. Tinha uns amigos que estavam apaixonados e começaram

a chorar, porque a noiva estava em Canudos e eu não tinha nada lá, mas comecei

a entrar no choro dos caras e chorei também. Falei: “amanhã vou embora, vou

pedir as contas”. Meus amigos disseram: “rapaz não faça isso não, fique aqui

mais nós”. 70

José Dantas permanece em São Paulo até hoje, porque, segundo conta, seus primos

o convenceram a não voltar e ele constituiu família e agora “passou o tempo de voltar”. Ele

fala emocionado de momentos, em que (re) encontra hoje os amigos daquela época e renova

os desejos e sonhos que ainda estão vivos e latentes. Indica, ainda, em suas narrativas que,

após mais de 35 anos de vida, em São Paulo, já passou o tempo de retornar para residir e

quem sabe, reconstruir a vida, em Canudos. Uma interpretação possível seria compreender

que, aos 60 anos de idade, constituiu sua vida com filhas, possui netas, e, na sua forma de

encarar a vida, afirma que o tempo hoje é de cuidar de suas filhas e netas, e especialmente

porque sua esposa é falecida, sendo que o desejo de voltar a Canudos de forma definitiva já

passou. Além disso, em São Paulo, encontra os conterrâneos, amigos com quem viveu

histórias e ainda sonha com grandes ideais, como ele mesmo afirma

O meu sonho é da gente estar sempre reunido e a família é grande, porque aqui

é tudo conhecido, tudo amigo. Por exemplo, quando encontro um primo, como

eu encontrei o Jaime esta semana, aí foi um choro danado. Ele que não deixou eu

voltar pra Bahia... Tem muito nordestino aqui.71

Hoje existem muitos nordestinos em São Paulo e uma rede de canudenses, na Zona Sul

da cidade, mas nos anos de 1960, como conta José Dantas, não havia essa facilidade em

encontrar os conterrâneos. Ao refletir sobre os modos de vida desses canudenses, uma das

questões a ser trabalhada é a própria identidade construída no dia-a-dia de São Paulo. Ressalta-

se nas narrativas anteriores que os canudenses, de formas diversificadas, experimentaram o

que significa viver em São Paulo, em diferentes épocas. Em certa medida, a forma de viver, em

São Paulo foi mudando com o passar dos anos. Por exemplo, hoje, uma “rede” criada e

estabelecida pelos canudenses, oferece alguns elementos favoráveis à convivência entre eles,

que não existia na década de 1960, quando José Dantas chegou a esta cidade.

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Este grupo é plural e assim, como existe o Leonildo Rodrigues que afirma ser nordestino

paul is tano, ao d izer que gosta de São Paulo, também exis te a exper iênc ia

de José Alôncio que diz ser 80% nordest ino e 20% paul is tano, por morar em

São Paulo ha 25 anos e afirma que nãoperdeu suas raízes. Também é importante considerar

José Macedo, que afirma ser canudense porque nasceu em uma fazenda em Canudos, então

se deve assumir como canudense, e de forma simples e direta, fala que é apenas um rapaz que

saiu do sertão para trabalhar na cidade. Ou ainda José Dantas que, ao chegar em São Paulo,

não encontrava nordestinos e afirma que, só convivia com portugueses e italianos, daí os que

moravam, em São Paulo, se assumiam como canudenses.

Esta reflexão pode ser enriquecida mais uma vez, com o diálogo realizado com o

Professor Alessandro Portelli. Na discussão sobre identidades, segundo ele, esta também é

construída na migração, a identidade local, por isso, é latente.

Reconhecer-se como canudense acontece no contato com outros povos e lugares, pois

quando eles estão em Canudos, são todos símiles, e a identidade passa por outros aspectos

de família, classe social, profissão, entre outros aspectos.

A construção da identidade passa, através do encontrar-se num contexto, onde não se é

similar às pessoas da mesma região. Logo é no contato com o outro, com o diferente, que “eu

sei quem sou”, ou seja, na alteridade, por isso a necessidade de se reconhecer e se mostrar

como canudense, e quando estão em casa, não se distinguem, não há necessidade deste

assumir-se enquanto canudense, mas outros aspectos são evidenciados. É na migração que

se reconhecem enquanto canudenses. Neste caminho, é possível considerar-se a fala de José

Dantas ao dizer que todos se assumiam, enquanto canudenses.

Este processo de construção de identidade faz parte do reconstruir-se, enquanto

canudense na afirmação destes como sujeitos e lutando por direitos na nova cidade. O direito

de ser canudense, de se auto-organizar de forma autônoma, de “inventar” maneiras de viver, é

parte da auto-afirmação na cidade e para isso, existem vários caminhos e vários mediadores

que podem contribuir para tanto.

Um dos elementos que contribuem para essa afirmação de serem sujeitos, de se

reconstruírem como canudenses, em São Paulo, é a vivência de uma religiosidade e nesse

sentido, a participação deles na Pastoral dos Migrantes72 os incentiva à realização de atividades

72 A Pastoral dos Migrantes - SPM está organizada em nível nacional e, na cidade de São Paulo, existeum setor específico, “setor dos urbanos” reúne todos os que moram na cidade: nordestinos, gaúchos,mineiros, paraenses. No festival, existem concorrentes de poesias e músicas feitas pelos nordestinosque demonstram representações que fazem do cotidiano, das experiências sociais vividas, dossentimentos de saudades, lembranças e relações familiares. A subjetividade assim está presente, olúdico e expressão artística explicitam a vida comum do homem comum, a vivência do cotidiano. Háum livreto com as músicas e poesias selecionadas nos festivais nacionais. Foi elaborado por umacomissão da pastoral, inclusive um dos membros foi o José Alôncio – do grupo dos canudenses, umdos meus interlocutores.

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culturais tais como o Festival de Música e Poesia bem como a feira cultural que se realiza

anualmente, em Jundiaí. Nestes eventos, os migrantes canudenses apresentam suas culturas e

ainda, no dia-a-dia, participam de reuniões, dos programas de rádio, onde José Alôncio divulga

as culturas nordestinas, e especialmente do grupo de canudenses; além disso, a pastoral

também está presente nas reflexões e momentos de dificuldades como desemprego,

desarticulação do grupo, entre outros.

Os Encontros dos canudenses são eventos bastante expressivos na caminhada destes,

pois envolvem toda a comunidade e os mobilizam, por serem considerados momentos de alegria

e musica contagiante. Os canudenses da Zona Sul de São Paulo realizaram cinco encontros,

sendo que o primeiro abarcou mais de 100 pessoas e o segundo contou com a presença de

mais de duzentas pessoas. O quinto encontro ocorreu em novembro de 2005, com músicas,

danças, grupos artísticos e canudenses da região da grande São Paulo.

Vale, ressaltar ainda, que a pastoral, tem o objetivo de reunir todos os participantes

dentro de um mesmo credo, praticando os mesmos rituais e se assumindo como membros

efetivos da pastoral, colaborando para o crescer e o fortalecer de grupos nas periferias.

Este empenho da pastoral é importante, principalmente por se considerar que, hoje, em

todo o mundo, a igreja católica está vivendo um certo “esvaziamento” não somente nas pastorais,

bem como nas próprias igrejas e essa evasão pode ser analisada ao mesmo tempo, em que

se vê o crescimento de grupos da igreja pentecostal. Além disso, as práticas libertadoras e

proféticas das pastorais estão sendo “questionadas”, dentro da própria igreja católica, talvez

devido à presença militante/pastoral no meio social, ou talvez pelo discurso mais político/social

e menos espiritualista.

Isto posto, na relação dos canudenses com a Pastoral dos Migrantes, José Alôncio expõe

O pessoal gosta mais do lado cultural, da musicalidade e não só da religião. Nestes termos,

afirma-se um diálogo entre iguais, pois o grupo sabe desenvolver esta relação e é consciente

dos perigos de uma pastoral no sentido de “doutrinar” ou “dominar” uma possível forma de

religiosidade destes que é plural e não homogênea.

A pluralidade de interesses que existe nos canudenses, com relação à participação nos

seus encontros, por exemplo, pode ser analisada como uma forma de aglutinação, de encontrar

as pessoas, e ao mesmo tempo, uma maneira de tentar “resolver” algumas situações tais como

conseguir um emprego, ver uma pessoa, encontrar alguém em especial, receber uma

encomenda de Canudos, entre outros.

Nesses encontros, ocorrem festas, discussões, forrós, missa, namoros. Para Leonildo

Rodrigues estes encontros representaram uma mudança de vida.

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Quando perguntado como ele conheceu os canudenses da Zona Sul, foi logo narrando a

importância deste intercâmbio. Eis uma fala de Leonildo:

Fiquei desempregado lá em Itaquaquecetuba e pedia a Deus pra me ajudar,

aí meu primo José Domingos veio morar aqui e eu vinha aqui de vez em quando,

porque aqui juntava muitos canudenses, e em Itaquaquecetuba é muito difícil

encontrar canudenses, só tem duas ou três famílias. Aí, no dia 27/11/1999, vim

num encontro dos canudenses na igreja de São Luiz Gonzaga, e os meninos

falaram: “fica aqui em nossa casa que vamos arrumar um emprego pra você”. Aí

eu fiquei e quando passou duas semanas eu entrei na Grabi, no ano 2000, essa

empresa que trabalho há quatro anos. Lá nós fabricamos material plástico e

estou lá até hoje.73

O encontro de canudenses, ao qual se refere Leonildo, aconteceu numa igreja por ser

um local central, além de ter um salão adequado para tais encontros e também por ser um local

conhecido por todos.

Outro aspecto, a ser considerado, é a minha presença no sentido de intensificar as

reuniões, bem como dinamizar os encontros entre eles. Conheci José Alôncio na pastoral e

neste período mais intenso de entrevistas, a articulação deles se fortaleceu e os mesmos faziam

planos de um grande encontro na cidade, com bandas de forró, falavam em alugar ou conquistar

um espaço para ser a sede dos canudenses, um local para reuniões. Possivelmente, este fora

um pensamento impregnado de militância, pois, efetivamente, nos encontros mais gerais da

Pastoral dos Migrantes, todos sabiam que eu estava presente na região Sul da cidade e, de

forma mais orgânica, acompanhava os canudenses e realizava um trabalho de pesquisa para a

universidade.

Neste contexto, a partir destes contatos, da realização de eventos, os canudenses

também desenvolveram uma rede de amigos, artistas do bairro, jovens, crianças que sabem

das atividades e do grupo de canudenses com suas festas, churrascos e encontros na Igreja ou

na Casa de Cultura.

Esta dinâmica contribui para a não diluição dos laços, entre homens e mulheres que

trazem em si o espírito de luta, para a conquista de dias melhores, como se poderá ver no

capítulo 2.

73 Entrevista concedida, em sua casa, em julho/2003.

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________Capítulo 2 - São Paulo é só ilusão__________________________________

A vida aqui tem muita ilusão.

Eu falo pra qualquer um:

Se tiver boa vida lá,

não vem para cá não.

São Paulo acabou,

eu mesmo, não penso morar

em São Paulo. (Antônio Pereira, 2003)

Este grupo de canudenses, conforme indicado anteriormente, é bastante heterogêneo

e as suas experiências são bem diversificadas. As narrativas expressam as formas como

foram construindo a vida em São Paulo, como vêem a cidade e como se vêem no processo

de fazer e refazer-se no cotidiano.

Além de pessoas como José Alôncio e José Dantas, que expressam um modo de

viver em São Paulo, de certa forma como uma conquista, como satisfação, e realização

pessoal, encontram-se também canudenses que afirmam não gostar de viver na cidade.

Entre os entrevistados, eis aqui, dois exemplos de narrativas que apresentam outras

interpretações da realidade vivida em São Paulo, aquelas narradas por Antônio Pereira

que saiu de Canudos no ano de 1995 e aquelas de Roberto Santos que desembarcou no

Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo, no ano 2000.74

Em suas falas há uma valorização de ser canudense, da vida em grupo e ao mesmo

tempo uma visão diferenciada das experiências vividas, certamente uma análise sob um

outro olhar do que significou para eles os anos de vida na cidade. Eis um pequeno trecho

de suas narrativas, sobre a vida em São Paulo:

Antônio Pereira: Vim em 1995, na verdade eu nunca quis vir, nem sei dizer

como foi que eu vim, resolvi bem rápido, meu irmão falou que era pra eu vir e

eu vim, estou aqui até hoje... Quando eu cheguei aqui eu sofri bastante,

passei uns três meses sem arrumar emprego, depois eu arrumei emprego

numa gráfica, depois eu saí, fiquei mais dois meses parado, pagava aluguel,

aí saía, ia morar com meu irmão, depois saía ia morar com primo. Depois

74 Entrevista realizada em suas casas em 28 de junho de 2003. Ver também DVD: Memorie e storie dicanudenses nella città di San Paolo, Rede Rua, 2004.

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casei, fiquei aqui e estou até hoje. E estou na luta, no trabalho... Consegui comprar

um barraco estou até hoje. Eu estou aqui em São Paulo há oito anos... Trabalho

no Carrefour, na Zona Norte, eu pego três ônibus pra ir, três ônibus pra voltar, são

seis ônibus por dia, só pra você ter uma idéia. E lá eu estou há sete anos, sou

repositor: repõe as mercadorias da loja, é do outro lado da cidade... A vida aqui

tem muita ilusão. Eu falo pra qualquer um, se tiver boa vida lá, não vem para cá

não. Só perda de tempo hoje em dia em São Paulo, quem já ganhou, ganhou e

quem não ganhou não ganha mais, é só pra comer e dormir. São Paulo acabou,

eu mesmo não penso morar em São Paulo porque, a não ser que acerte na

mega sena, na loto, porque depender de emprego hoje é meio complicado. Você

tem qualquer estudo, se alguém não arrumar pra você, você não consegue entrar

em empresa nenhuma. Chega lá, você deixa seu currículo, eles colocam

dificuldade, prometem tudo pra você e você espera lá, o tempo todo e você não

sabe aí complica, se for pessoa que paga aluguel, vai pagar com quê?

Roberto Santos: O pessoal da Bahia pensa que aqui é o céu, mas não é não,

aqui é bom só por causa dos recursos, mas não é o que a gente pensava. Eu

pensava que quando a gente chegasse aqui fosse tudo fácil, mas é muito difícil,

pensava que quando chegasse aqui, dava tudo certo, estava tudo bem... Quando

eu cheguei, fiquei um mês desempregado, aí como já tinha canudenses na firma,

aí me ajudaram, foi mais fácil, lá tem meus primos, meu irmão... Quando fez um

ano eu quis voltar, só não fui porque meu irmão não deixou senão, eu já estava lá.

Foi muito difícil para acostumar. Não sei, a gente sente muita saudade do pai, da

mãe, dos irmãos, eu acho que é isso. A dificuldade de vir aqui é isso. Embora eu

passei pouco tempo assim, parado, se não eu tinha voltado mesmo. Na firma

tem muitos nordestinos, e a maioria é de baiano. Nessa região aqui tem mais

baiano. Eu conheço a maioria das pessoas, também tem de Pernambuco, é

bom, também tem mineiros.

Essas narrativas podem oferecer algumas análises. Por exemplo, sobre o movimento

de saída de Canudos para São Paulo, as falas revelam uma dinâmica diferenciada entre eles:

O que significava mudar para São Paulo? Mudar para São Paulo era um sonho, era necessário

pensar um ano antes para acontecer, como afirmou José Dantas, um dos entrevistados que

primeiro mudou para São Paulo, e ao mesmo tempo, como afirma Gilberto, que saiu de Canudos,

no final da década de 1980, para mudar tem que ser de uma hora pra outra, como aconteceu

com ele.

Vale conhecer melhor Antônio Pereira, que, por sua vez, saiu de Canudos nos anos de

1990, e afirma não saber o porquê de sua saída de Canudos. Ele demonstra uma insatisfação

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pelo ritmo de vida que tem, pelo fato de morar 80 km distantes do seu local de trabalho. Ele

mora na Zona Sul e trabalha na Zona Norte da cidade.

Este canudense tem 33 anos e demonstra um ar sério. Durante, aproximadamente,

sessenta minutos de conversa, ele quase não sorriu e afirma que a vida para ele é somente

trabalhar e cuidar de sua família. Suas narrativas são breves, bem diferentes de seus amigos

que sorriam, brincavam. Ele é muito sério, e talvez uma das razões da sua seriedade pode ser

a situação de morar distante do trabalho, fato este que pode intensificar ainda mais esta

seriedade.

Ao longo da entrevista, pôde-se perceber, que Antônio Pereira sentia-se feliz no dia em

que participou da entrevista, pois estava recebendo sua mãe em casa, após um período de

mais de cinco anos sem vê-la. A conversa se realizava no jardim, de fronte à sua casa, e num

certo momento, esta se aproximou, cumprimentando os que ali estavam presentes, e ele

continuou a conversa.

Um aspecto relevante foi o fato de a mãe de Antônio Pereira oferecer uma carne seca

com farinha, e depois, saindo dali rapidamente. Neste instante teve-se a impressão que ele

não estava “à vontade”, mesmo assim, falou bastante de sua vida na cidade, sempre de forma

decidida e definitiva até afirmar que “São Paulo é só ilusão. Isso já acabou”.

A urgência da fala de Antônio questiona hoje a situação em que vive. Longe de seus

familiares, com um trabalho a 80 km de casa, ele considera a vida em São Paulo uma “ilusão”

e não aconselha às pessoas de Canudos a virem para São Paulo, além é claro, de alimentar o

desejo de retornar com melhores condições de vida.

São opiniões e processos diferenciados que revelam as trajetórias diversas desse grupo.

A saída de Canudos não se resolve com uma decisão instantânea, ou num ímpeto, como sugere

a fala de Gilberto e Antônio Pereira. A coragem e o medo das mudanças e do desconhecido,

que a vida em São Paulo pode representar, está presente durante todo o tempo, numa espécie

de tensão, de pressão, movimentando os limites e potencialidades de cada um.

Neste grupo bastante heterogêneo, as diferenças são gritantes no aspecto da própria

dinâmica de vida deles, em diferentes épocas. Gilberto que chegou em São Paulo, no ano de

1988, e José Dantas, nos anos de 1960 demonstram algumas mudanças vividas e o movimento

de saída de Canudos. Pode-se indagar o que significa vir hoje para São Paulo e o que significou

nos anos 1960 e 1970. Gilberto, por exemplo, não apresenta a viagem como um sonho

acalentado, como o foi para José Dantas.

Nota-se neste caso, uma alteração da memória, por eles (re)significada. Ou seja, viajar

hoje pra São Paulo não tem mais o mesmo sentido que antes, não é mais divulgado e alimentado

pela comunidade da mesma forma que nos anos 1970. Nesse movimento de saída, divulgava-

se uma visão de São Paulo que acolhia os trabalhadores, apontando ser o maior pólo industrial

da América Latina e, portanto, uma perspectiva de vida melhor, em que ser operário seria uma

condição de status social por ser da família Volkswagen ou Mercedes Benz .

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75 Entrevista realizada, em sua casa, em 28 de julho de 2003.

Assim como Gilberto Nascimento, Antônio Pereira também indica que não cresceu

alimentando “o sonho antigo” de mudar para a cidade de São Paulo, como José Dantas. Antônio

Pereira afirma ter mudado por ser convidado pelo irmão, e por isso, sem nenhuma “paixão”,

como visto em suas narrativas.

Essas memórias são individuais e sociais. Estão relacionadas com a própria dinâmica

e a vida dos canudenses. Essas memórias podem ser consideradas como um dos elementos

de reconstrução dos sujeitos sociais, ao fazerem uma leitura diferente do movimento de saída

de Canudos para São Paulo, através dos tempos. A partir de suas relações sociais na cidade,

no bairro, e entre eles e, por causa destas experiências, construíram uma nova forma de analisar

este movimento e de viver. Pode-se relacionar esta dimensão da memória como prática, pois

inclui decisões e visões atuais de um movimento antigo entre eles, qual seja considerar a cidade

de São Paulo como destino.

Eles viveram uma experiência comum por ocasião do movimento de saída, de Canudos

e neste momento, relatam suas vidas até a mudança para São Paulo como tempos difíceis e

de muito sofrimento, afirmando a vida atual com muita garra e luta diária.

Em visitas subseqüentes, tendo-se conhecimento de outros canudenses na cidade,

aproximadamente 50 anos após a chegada de José Macedo a São Paulo e 35 anos da saída

de José Dantas de Canudos, foi entrevistado Roberto Santos, um canudense que chegou em

São Paulo, no ano 2000. Vale considerar que este jovem mudou para a cidade de São Paulo

porque Na Bahia é bom, mas não tem recursos, nasceu no dia 06/11/80 e chegou no dia 11/

01/2000. Roberto Santos completou o curso colegial e, em sua narrativa fala sobre a sua vida

em São Paulo, como foi à mudança e quais suas impressões sobre a cidade. Quando

interrogado sobre a lembrança de sua chegada Roberto Santos narrou,

Roberto Santos: Eu, quando cheguei em São Paulo, olhei pra um lado, olhei pra

outro, falei: ‘meu Deus’. Quando você chega na rodoviária, no centro da cidade:

‘meu Deus tem pobre nessa cidade’ Falei: “não acredito!” Aí muda, chega na

rodoviária toma o Metrô.75

Antônio Pereira e Roberto Santos descobriram como é a vida em São Paulo, através da

prática cotidiana; ambos esperaram um certo tempo para conseguir emprego, não possuíam o

“desejo” de sair de Canudos. Pode-se analisar as narrativas e compreender estratégias usadas

por ambos para reforçar suas falas. Assim, no fragmento da fala de Antônio Pereira, ele faz

questão de, reforçar sua visão de São Paulo como ilusão, pois repete várias vezes sua opinião,

para certificar-se de que eu registraria esse tom da conversa,

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uma vez que, a cada instante, enfatizava o aspecto da cidade com relação ao desemprego e à

sua habitação distante do trabalho.

Na passagem da narrativa de Roberto Santos pode-se analisar que ele revelou um certo

tom de admiração ao falar como percebeu São Paulo. Hoje, narra sua chegada e usa uma

maneira de narrar que chama atenção, quer intensificar sua fala, e o faz, por meio de uma

estratégia narrativa, qual seja, o tom de admiração. A sua maneira de abordar o assunto da

chegada foi utilizada intencionalmente, como uma forma de enfatizar o que pretendia narrar. É

interessante observar as diferenças utilizadas por Antônio Pereira e Roberto Santos no tom

das suas narrativas. Por outro lado, é importante pensar e indagar sobre a idéia divulgada a

respeito da cidade para o Roberto. Além disso, ao expor seu pensamento e afirmar eu pensava

que em São Paulo tudo era mais fácil, é necessário perguntar qual imagem foi criada e

alimentada pelos que o antecederam na experiência de vida na cidade.

Vale considerar que, para Roberto, em certa medida, foi “mais fácil” sua chegada em

São Paulo devido aos facilitadores a que ele tinha acesso, como casa e emprego, realidades

diferentes dos anos 1960, 1970 e 1980. O tom de decepção do Roberto, ao afirmar que, pensava

ser mais fácil a vida em São Paulo, e o tom de insatisfação do Antônio, ao dizer que São Paulo

é uma ilusão, demonstram uma aprendizagem prática do que seja viver na cidade, superando,

assim, alguns dos mitos e histórias deturpadas e divulgadas, sobre a “maior cidade da América

Latina”.

Estas reações de surpresas, decepções, estão presentes nas narrativas dos canudenses,

e as maneiras de narrar o vivido são bem diversificadas, especialmente entre os mais jovens

como o Roberto Santos. Ele é um rapaz de 24 anos, magro, alto e, ao ser entrevistado não

direcionava o olhar para mim; mantinha-se cabisbaixo, apresentava certa dificuldade para articular

frases, bem como uma postura tímida. No entanto, apesar de certa dificuldade de expressar-

se, após algum tempo, foi possível compreendê-lo melhor ao falar da sua vida, de seu irmão,

primos, tentando superar na prática essa dificuldade. No final da entrevista Roberto conseguiu

expor seu problema de dicção desde a infância e ter esperança de curar-se, visto que, um

amigo lhe assegurou a cura com ajuda da fonoaudiologia. O que se constata é a timidez a partir

de sua afirmativa de “ter vergonha de falar”, ao mesmo tempo em que ele diz comunicar-se com

seus primos e participar de brincadeiras com amigos, além de conversar sobre sua trajetória

de vida.

Assim visto, pode-se avaliar este processo de chegada e saída para os canudenses,

que é bastante diversificado entre eles, considerando-se que eles próprios avaliam este

processo, ou seja, o movimento de sair e de chegar como um processo em transformação

constante.

Ao conversar com Roberto sobre São Paulo, sua avaliação aponta a vida difícil aqui

encontrada, apesar de ter alguns facilitadores por ocasião de sua chegada, por exemplo,

definição de moradia, e de trabalho. Mesmo tendo casa, trabalho e amigos, Roberto apresenta

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Telma: E hoje, você conhece alguém que quer vir para São Paulo?

Roberto: Tem um amigo meu que veio e voltou, porque lá ele tinha emprego, aqui

não... Eu acho que no momento, se tiver algum amigo que queira vir, eu não

aconselho a vir, não, porque podia vir se dar mal, porque é sorte, né? Acho que é

sorte, porque tem uns aí que tem quase dois anos e ainda não tem serviço, eu

tive sorte e depois de um mês eu consegui.76

Eu vim porque na Bahia é bom, mas não tem recursos. Meu irmão chamou pra

eu vim morar aqui, mas ele já voltou pra Canudos e fiquei com a casa... A gente

estando acompanhado é bom, mas sozinho é ruim. Quando cheguei fiquei um

mês desempregado aí como já tinha canudense na firma foi mais fácil, meu

irmão trabalha lá e meu primo também.

Roberto ao chegar em São Paulo, no ano 2000, contou com o apoio de familiares já

residentes na cidade há muitos anos. Permaneceu algum tempo com o irmão e logo que

conseguiu trabalho, em um curto espaço de tempo, também conquistou seu espaço próprio de

moradia. Roberto, desde sua chegada inseriu-se no espaço de moradia de um grupo de

canudenses que criou uma moradia coletiva para eles próprios – o chamado “condomínio dos

canudenses” ou “vila dos canudenses”. Neste espaço comum de moradia, todos são canudenses

e este pode ser considerado um “centro facilitador” no cotidiano dos mesmos.

Dentro deste cenário, constroem-se um outro modo de vida e uma nova maneira de se

firmarem e se auto-firmarem, na cidade, conforme poderá ser visto no capítulo 3.

A experiência de Roberto foi bem diferente da experiência de José Dantas e de Gilberto,

pois ao chegar em São Paulo foi morar em casa própria com seu irmão, e afirma que foi muito

bom, porém, ao mesmo tempo, diz que viver na Bahia é bem melhor,

uma opinião curiosa sobre o movimento de sair de Canudos para São Paulo e, quando indagado

sobre esta experiência, ele narra:

76 Entrevista realizada, em sua casa, em julho de 2003.

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________Capítulo 3 - Eu gosto de São Paulo, sou nordestino-paulistano__________________

Eu sou nordestino e sou paulistano:

Nasci lá, me criei aqui.

Em São Paulo eu gosto de tudo

O sistema oferece muitas coisas boas.

(Leonildo Rodrigues,2003)

No diálogo com os canudenses da Zona Sul de São Paulo, pôde-se entender a

necessidade de se respeitar às diferenças, bem como entender a forma de lutar dos canudenses

para firmar o direito de ter diferenças. Logo, esta postura de respeitar tais diferenças se constitui

numa exigência da própria concepção de fazer um trabalho de História Oral.

Assim, foi possível constatar que as narrativas apontam diferenças, tensões e conflitos,

entre os canudenses, pois alguns deles, que moram no “condomínio dos canudenses”,

demonstram que São Paulo é uma cidade boa para se viver o que contradiz algumas narrativas

de Antônio Pereira e Roberto Santos, conforme narrado no capítulo 2.

Ao perguntar a Leonildo como é a sua vida em São Paulo, ele responde contando sua

vida desde a infância; sobre este assunto, pensava-se ouvir inicialmente sua vida de trabalho,

de estudos. No entanto, o tempo, a fase da vida, em que Leonildo iniciou sua narrativa, não era

o mesmo tempo que eu esperava obter como resposta. Era de se esperar que o mesmo

começasse a falar de sua vida atual, pelo fato de ser jovem, porém quando começou a narrar

sobre sua vida em São Paulo, iniciou pela forma como foi trazido, para esta cidade, ainda

bebê. Narrou, também, a separação de seus pais e suas narrativas apontam as experiências

que teve ao morar em diversas regiões desta cidade. Eis um fragmento da narrativa de Leonildo

Leonildo: Eu nasci em Canudos e com onze meses de nascido, meus pais

venderam o que tinha lá em Canudos e vieram morar em São Paulo. Minha mãe

é Maria José dos Santos e meu pai é Antônio Rodrigues César. Morei doze anos

na Barra Funda, morei mais 6 anos na Cachoeirinha, depois fui pra

Itaquaquecetuba, depois no Jandira, morei em vários lugares aqui em São

Paulo. Eu estudei aqui em São Paulo, fiz o prezinho, até, agora com o decorrer

do tempo, parei de estudar, agora eu voltei, estou fazendo o primeiro, vê se eu

termino. Eu sou nordestino e sou paulistano: nasci lá, me criei aqui e

convivo mais com canudenses. Em São Paulo, eu gosto de tudo, tem muita

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mulher bonita, o sistema oferece muitas coisas boas, o emprego, a verba, é isso

que faz a gente se movimentar, o emprego.77

É importante considerar estas minúcias que, na verdade, não são minúcias simplesmente,

mas podem ser analisadas, por exemplo, como um tempo simbólico escolhido por Leonildo

para contar sua história. Não é o tempo cronológico dos acontecimentos, nascer, crescer e

morrer. Indagando-se à respeito de sua vida atual, ele fez questão de falar sobre a mudança

dos pais, que “venderam tudo o que tinham” para mudar para São Paulo e em seguida, acentuou

sobre a separação dos mesmos, anos depois. Quando Leonildo narra sobre seus pais, diz em

um certo momento eu não sei falar disso, não.

As narrativas de Leonildo possuem um tom da história que lhe fora ensinada. Sua história

é a história contada por seus pais. A narrativa que ele expressa é a que ele sabe, porque

aprendeu de seus pais. O tempo simbólico, que viveu, de mudanças e a separação dos pais,

está marcado em suas memórias. Durante toda a conversa, ele apontou várias vezes, ao falar

que morou com tios, primos e uma namorada, o assunto da separação dos pais. Ao afirmar

não sei falar disso não pode significar alguns limites e avanços de suas experiências, narradas

por ele com este tempo demarcatório, por este marco - a vida dos pais - e que, de certa forma,

reflete também na maneira de contar sua própria história, ou seja, a história que lhe foi contada.

Atualmente, Leonildo, juntamente com Roberto e Antônio, residem no “Condomínio dos

canudenses”. O nome deste espaço de moradia é chamado por Leonildo de “condomínio” e

por Antônio que também é morador, de “vila”. È chamado de condomínio porque na entrada

existe um grande portão de ferro que comporta dentro de um mesmo terreno, quatro casas e no

fundo do quintal, mais cinco casas. São ao todo nove famílias, em torno de 25 pessoas, que

vivem com um quintal comum.78

A história do “condomínio”, segundo as narrativas dos que moram ali, começou com o

Roque que comprou de um rapaz, parte do terreno. Mesmo sem documentação, Roque foi

construindo e convidou outro canudense José Domingues para morar lá. Depois foi Leonildo

que comprou uma outra parte do terreno e assim começou a sua história. Conforme as narrativas,

o terreno não é da Prefeitura, mas sabem que é uma área de manancial. Possui luz elétrica e

eles querem legalizar o terreno. O “condomínio” está localizado ao lado da represa de

Guarapiranga. No momento da construção de sua casa, Roque recebeu fiscalização da prefeitura

e a obra foi embargada. No entanto, resolveu este problema e segundo narra, possui ligação

de energia elétrica, paga luz e imposto, é tudo oficial.

77 Entrevista realizada, em suas casas, em julho/ 2003.78 Ver DVD: Memorie e storie di canudenses nella città di San paolo, Rede Rua de Comunicação, 2004.

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Para os que ali vivem, o problema da moradia foi resolvido, visto que não precisam mais

ficar indo de uma casa para outra em busca de um lugar onde se fixar por causa do emprego.

Até o condomínio se tornar uma realidade, a prática era morar com parentes, irmão, primo,

cunhado, amigo e quando o grupo ia crescendo, ia desmembrando, separando, ou concentrando

todos com um parente, onde a casa comportasse a todos ou que fosse mais próxima do trabalho.

Neste sentido, o lugar de moradia era o grande problema a ser enfrentado por estes migrantes

canudenses, uma vez que quando um parente conseguia um emprego para outro, e este morava

longe, rapidamente mudava de casa, ia morar com um outro parente mais próximo à firma.

A experiência de morar em grupos, ou morar num espaço comum, de forma coletiva e

cada um em sua casa, pode ser compreendida como uma alternativa de moradia que os

canudenses mais jovens conquistaram. Formaram uma vila de canudenses. São casas

pequenas, que eles, aos poucos foram construindo, colocando móveis e comprando utensílios.

Leonildo, por exemplo, comprou uma parte do terreno de um terceiro, no cartão de crédito e

algumas coisas, comprou fiado. O “condomínio dos canudenses”, situado no bairro São

Francisco, perto da represa de Guarapiranga é considerado por eles o melhor lugar para morar

porque é um espaço deles, eles construíram. Se para os mais antigos, esse problema da moradia

e de mudar para cá e para lá, era impossível de se resolver, os mais jovens conseguiram resolvê-

lo com alternativas e numa rapidez surpreendente para eles mesmos.

Leonildo e Roque, quando indagados sobre o começo desta experiência, de construir

um lugar coletivo de moradia, e que ainda está em construção, afirmaram:

Leonildo: Não tinha nada construído aqui, aí eu comprei e comecei a construir aqui.

Comprei tudo fiado, nos cartões de crédito. Primeiro foi o Roque, depois eu, depois o

Antônio, e hoje tem cinco casas e ali fora também tem gente de lá, como o Edir e a

família, que nós conhecemos aqui. Engraçado, nós conhecemos o Edir aqui, ele

saía com nós, aí conheceu uma das meninas que era canudense que saía com a

gente e ele começou a se envolver e acabou casando com ela. O grupo é até

casamenteiro.79

Roque: No começo era feio, aqui era tudo mato.Hoje está bonito A gente começou

assim: primeiro era um barraco de madeira, até deixo aqui pra deixar de lembrança

e depois, construímos com alvenaria.80

79 Entrevista realizada em suas casas em julho/ 2003. Ver também DVD: Memorie e storie di canudensesnella città di San Paolo, Rede Rua, 2004.80 Idem.

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Neste processo de conseguir espaço próprio de moradia, foram criando novas formas

de morar, com tensões entre os mesmos. Tratava-se de conflitos entre os canudenses que

chegavam e os que já residiam em São Paulo, bem como com os conterrâneos que ficaram

em Canudos. Não se trata de uma discussão a respeito de definir “quem mora com quem”,

mas da opção dos mais jovens em ter além de um espaço próprio, um estilo de vida diferente,

de assumir prioritariamente a construção da casa própria para sair do aluguel e, assim, ter

uma vida independente, não residindo na casa de irmão ou irmã casada.

Gilberto, por exemplo, é um dos que tece críticas aos jovens do “condomínio”, mas ao

mesmo tempo dá apoio, pois segundo conta, esses jovens eram crianças quando ele saiu de

Canudos:

A gente dá apoio porque a gente é unido e tem aquelas horas de a gente dar

conselho, e eles reclamam, essas coisas. E eles conseguiram emprego e logo

arrumam uma mulher. 81

Ao conhecer o “condomínio”, ir de casa em casa para conversar com este grupo, houve

a impressão de esta experiência ser uma forma criativa de convivência com familiares e bem

diferente da família que tinham em Canudos. Lá, moravam com os pais na roça, ao mudar para

a cidade, moravam com irmão, primo, cunhado. Ou seja, sempre no âmbito familiar, com pessoas

já bem conhecidas, “da casa”.

A decisão de primeiro “sair do aluguel” é bem recebida por todos e a idéia de morar

separado, se desligar dos familiares não significa necessariamente um rompimento com os

mesmos. Ao contrário, o grupo que construiu o condomínio é composto por primos e amigos.

Talvez a família destes migrantes canudenses, em São Paulo, tenha sido ampliada, e cresceu,

a partir de um núcleo clássico - pai, mãe e irmãos - para uma experiência mais ampla, vivida

sob outros parâmetros, com mais autonomia e liberdade, segundo eles próprios apontam. Os

laços que os unem vão além de laços sangüíneos e a dinâmica de vida é diferente do de uma

família como eles conheciam em Canudos. Sentimentos de confiança, “estar bem” com o grupo,

amizade e companheirismo são sentimentos que os unem, afirmando uma relação de “caminhar

juntos, planejar a vida”. Atualmente realizam festinhas no condomínio, convidam amigos para

passar o final de semana, saem e chegam a qualquer hora sem ninguém para “controlar ou dar

ordens”.

Pode-se pensar que este grupo, de certa forma, reelaborou uma outra forma de vida.

Eles se inseriram na própria dinâmica que escolheram, e, ao mudar a maneira de viver, mudaram

também a si próprios. Não se trata de uma “adaptação”, mas um processo de reelaboração de

um modo de vida, construído coletivamente, com significados comuns. Talvez tenha sido uma

maneira que conseguiram de se firmar em São Paulo, um jeito de ser canudense e paulistano,

alterando os modos de vida para si mesmos, na comunidade.81 Entrevista realizada em sua casa em julho/ 2003.

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Ao andar pelo condomínio, permanecer um pouco no quintal, subir na laje de uma das

casas, ver as árvores frutíferas que existem no terreno, ver as pessoas se movimentando

normalmente dentro dos seus espaços, foi possível analisar esta reelaboração, mudança que

não aconteceu de forma brusca e repentina, e o modo de viver deste grupo de canudenses, que

traz marcas do jeito de vida que tinham em Canudos.

Vale lembrar que em se comparando com as gerações anteriores, de fato esta nova

forma de morar alterou a visão de como se organizar e viver na cidade. Por outro lado, notou-

se, também, que a constituição deste espaço mudou as vidas dos canudenses, pois existem

melhores condições de vida para eles, neste espaço do que em Canudos, no entanto;

permanecem códigos e formas de vida que indicam uma “continuidade”, ou ainda, elementos

presentes da maneira como se relacionavam, em Canudos. Por exemplo, o condomínio é

elogiado e bem visto pelos que nele residem. E os aspectos mais evidenciados foram que

neste espaço existe um grande quintal, cada um tem a sua casa, e todos se juntam para realizar

atividades, se ajudar, fazer comidas, de forma coletiva.

Neste sentido, mais que uma transição brusca, foi possivel sentir, um “continuum gradual” 82,

onde se pode perceber formas de vida que mesclam elementos culturais do público e do privado,

costumes de vida interiorana de Canudos, por exemplo, com maneiras modernas aprendidas e

apreendidas, em São Paulo. O local mais importante do condomínio para eles é o quintal. Ali

mulheres alimentam seus filhos, pessoas conversam em voz alta, de uma casa para outra,

rapazes bebem, dançam, brincam no meio do quintal, com música alta, entre outros. O quintal é

um espaço de todos, eles se encontram, podem passar o tempo, conversam, enfim, pode ser o

espaço público que é de todos e nele, as mulheres fazem suas tarefas tais como alimentar

filhos, pedir condimento para a vizinha, lavar roupa e estendê-las à vista de todos, entre outras

tantas tarefas. As casas possuem eletrodomésticos, aparelhos de som, uma estrutura de cozinha

que, em Canudos não possuíam.

Este grupo não se fecha em si mesmo, eles mantêm os laços familiares com os primos

e irmãos que são casados e que residem em bairros vizinhos. A família cresceu, não é somente

pai, mãe, filho. Conta com os conterrâneos, com as famílias que residem nos bairros da Zona

Sul e famílias de outros bairros. Realizam encontros com todas as famílias, fato que se torna

uma festa.

Nos finais de semana, sempre se encontram, um visita o outro e sempre se reúnem em

grupos de vizinhos, amigos. Importante é que esta dinâmica de “estar junto” não é somente

quando José Alôncio convida ou mobiliza alguma reunião ou encontro. Em uma ocasião,

visitando o Leonildo e o Roberto no “condomínio dos canudenses” oito rapazes conversavam

82 PORTELLI. Alessandro. Dividindo o mundo. O som e o espaço na transição cultural. In: Revista doPrograma de Estudos Pró Graduados em História e do departamento de História da PUC/SP, n. 26.Educ, SãoPaulo, 2003.

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de fronte ao portão do condomínio. Todos eram vizinhos, de famílias conhecidas de Canudos e

num domingo pela manhã, sentia-se um clima de alegria de estar junto, jogandoconversa fora, contando piadas, mostrando fotografias do último canudense que chegou das

férias, em Canudos. Um clima de brincadeiras, falando de um, de outro e comentando que, à

tarde, alguns sairiam para o trabalho, como o José Domingues.

Alguns familiares podem não entender os significados desta experiência, ou como os

“do condomínio” levam uma vida diferente. Ao saber da existência deste condomínio, surgiu o

interesse para questionar como se constituiu, quem morava lá, e ouvir várias opiniões a respeito.

Ao conversar com Maria e perguntar sobre a experiência, de morar no condomínio, Maria

respondeu:

Maria Nascimento: A geração de hoje é bem diferente da minha, e o lugar ajuda. Eles

não pagam aluguel, têm comida, água e luz... Não pensam no dia de amanhã...Eles

abusam muito. Eu fico muito preocupada com eles, porque as mães ficam perguntando

de lá como está cada um... Mas eles não querem construir uma família: eles moram

com a mulher, mas brigam, têm ciúmes, bebem demais. Aí me chamam, as mulheres

deles me ligam quase todo dia. Mas eles estão bem, eles são legais. Eles não querem

ter compromisso...Têm filho e até assumem os filhos, mas não constroem famílias.

Hoje a moda é ficar, não é casar. Eles têm uma cabeça diferente, e se perguntar se

eles querem voltar para lá, acredito que eles não querem voltar, querem é trazer

quem está lá. Eles querem é ter liberdade, ir para os bailes, cada final de semana é

um salão diferente.83

A diversidade de opiniões e gerações está presente nas relações entre eles. O caso

específico de Maria, ao ter esta opinião sobre os que moram no condomínio, pode ser

compreendida como um conflito de ordem familiar, religiosa. Maria é evangélica e seu marido

também. Segue todos os preceitos da religião, participa de cultos e atividades na igreja. Já,

seu irmão mais novo que mora no condomínio não segue suas orientações.

Maria tem uma postura de irmã mais velha, preocupada com a vida dos mais jovens que

residem no condomínio e com os pais que estão em Canudos e perguntam sobre a vida dos

filhos. Valores como casamento, fidelidade, uma vida sem beber, são assumidos no cotidiano

da família de Maria, mas para ela, seu irmão e demais rapazes do condomínio, não respeitam

mais as tradições e ensinamentos que receberam desde criança. As relações sociais desse

grupo, os conflitos e tensões, são conhecidas por todos os canudenses, até mesmo os que

permanecem em Canudos.

83 Entrevista realizada, em suas casas, em julho/ 2003.

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No campo das tensões, entre os canudenses, este é um assunto de muitas discussões.

E Leonildo dá sua opinião:

O importante é trabalhar, ter amigos e acima de tudo, curtir a vida, mas com

responsabilidade… Todo final de semana a gente inventa alguma coisa, a gente

assa uma carninha por aqui, a gente procura distrair, a gente vai pra salão, nessa

região. Se tem um salão que a gente não foi, ainda vamos descobrir, a gente

dança forró, pagode, axé, tudo o que tiver.84

Leonildo mora com uma irmã mais nova, adolescente, e é responsável por ela. Ele, ao

sair de casa aos dezessete anos foi morar junto com a namorada durante dois anos. Ele está

em São Paulo e a mãe de sua filha, Jennifer, está em Canudos porque ela não queria ter a filha

em São Paulo. Esta iniciativa da esposa de Leonildo pode ser compreendida como uma ligação

intensa com a terra natal, com a família, se for analisada a necessidade desta em ter a filha

perto de seus parentes, de sua mãe, enfim, o desejo de dar à luz no seu chão, uma outra vida na

sua própria terra, onde estão suas raízes e identidade.

Ambas visitarão o pai – Leonildo, no Natal e no Ano Novo, tendo em vista que ele esteve

em Canudos ha dois meses atrás, em maio/2003 e não poderá viajar novamente este ano.

Esta situação de famílias separadas pode ser compreendida como uma situação comum entre

familiares nordestinos. Por diversos motivos, filhas saem de casa cedo para trabalhar em outras

casas, ou para ajudar na renda familiar, ou porque a mãe concedeu por um tempo esta filha

para uma comadre, ou avó. Uma questão a ser pensada é se esta situação natural /normal, é

tipicamente comum nas famílias nordestinas. Outro aspecto a ser pensado, e vale a pena indagar,

seria a realização de casamentos entre canudenses. Existem alguns casos dentro deste grupo

de canudenses. Leonildo indica que esta prática ocorre hoje com alguns jovens o grupo é até

casamenteiro. Este aspecto precisa ser pesquisado de forma mais profunda para se analisar,

compreender se este é um ato comum entre eles, uma maneira de fortalecer os laços entre

conhecidos e/ou familiares. Percebe-se, assim, que são elementos culturais, significativos

para a manutenção de famílias e núcleos familiares canudenses.

Além deste aspecto, nota-se que algumas práticas dos que moram no condomínio

dialogam de forma conflituosa com as práticas dos que vivem em família, freqüentam a igreja e/

ou moram em Canudos. Vários elementos determinaram esta relativa desvinculação da família

84 Entrevista realizada, em suas casas, em julho/ 2003.

Na fala de Maria, ela afirma que os mais jovens não pensam no futuro. “Fazer futuro”

como esta afirmou, pode ser interpretado de diferentes maneiras. Para Maria, um casamento,

uma família, uma boa escola para os filhos demonstram que, para se construir um futuro melhor,

necessariamente se deve passar por essas experiências.

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mudança dos mesmos. Para os familiares, os mais jovens estão “desrespeitando” os

ensinamentos dos seus antepassados.

Apesar dos conflitos, familiares e parentes auxiliam na passagem de um estilo de vida

para outro, colaborando não somente em forma mutirão, ou financeiro, mas também, de uma

certa forma, contribuem para a reconstrução de valores, de representação de novos espaços e

na própria rotina de cada um, forjando coletivamente novas identidades, no sentido de um auto

conhecimento como consciência de si mesmos. Ou seja, o grupo do “condomínio dos

canudenses” se reconhece diferente e são reconhecidos como tal, pelos demais membros da

família.

Os jovens canudenses vivem em São Paulo e estão diretamente ligados a Canudos,

convivem com outros canudenses no trabalho, moram com estes, assim, eles mantém viva a

ponte que liga Canudos e São Paulo. Também presenciam conflitos, tensões e problemas do

cotidiano que os fazem ser nordestinos e paulistanos, tendo oportunidades de viver São Paulo,

incorporar suas culturas, modificando a si próprios bem como o ambiente em que vivem.

Nessa luta pelo refazer-se, com todos os conflitos existentes, para conquistar o direito

de viver de forma diferente, refazendo a si mesmos e a vida, eles conseguem manter a

afetividade, o respeito e a união, embora “cada qual na sua casa, com seu jeito”. Mantêm os

valores da solidariedade, um ajuda o outro, conquistam o apoio de todos e mantêm a marca do

grupo, isto é, a união.

Gilberto, por exemplo, apoiou e também dá sua opinião sobre a construção do

condomínio:

Este grupo de canudenses comprou um terreno e fez uma vila, um lugar só para

eles, tem uma porta só de entrada e as várias casas. Eles chegaram aqui faz

pouco tempo...Quando eu saí de lá eles eram crianças e quando chegam aqui

estão homens maiores do que eu. Eles quando fazem dezoito anos já querem vir

para São Paulo, arrumam serviço e querem ter sua própria casa.85

e não somente o espaço geográfico, por isso é importante considerar a própria dinâmica

vivida por eles. Esses jovens, ao saírem de Canudos vislumbraram um mundo diferente,

com relações diversas, o que possibilitou uma aproximação de outras pessoas com

credos diferentes, opiniões diversificadas, o que facilita o intercâmbio e a própria

85 Entrevista realizada, em sua casa, em julho/ 2003.

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A partir da narrativa de Gilberto, pode-se confirmar que as experiências de residir com

membros da mesma família, com irmãos casados, e por outro lado, morar coletivamente no

“condomínio”, estão enraizadas no cotidiano destes canudenses como um núcleo central

diferenciador que influencia decisivamente não só ao aspecto da moradia, mas os sentidos

que estes dão à família, à comunidade, à relação com pais e avós.

Outra diferença que aflora é a própria maneira como as diferentes turmas ou gerações

de canudenses vivem a cidade de São Paulo. Algo marcante e permanente é a união entre

todos no dia-a-dia. A rede de canudenses é fundamental para conseguir trabalho, conhecer

pessoas e se relacionar socialmente.

As diferentes formas de festejar e de morar são explicitas ao se analisar as marcas e

movimentos das gerações na cidade. Se, para José Dantas, ir à praia, beber com amigos era

marcante, hoje os canudenses vão aos clubes próximos às suas residências, ou locais para

dançar; participam de festas juninas; passeiam nos shoppings.

Essa idéia de sair do aluguel é um desejo latente dos canudenses. José Dantas, por

exemplo, comprou sua casa nos anos 1990, com o Fundo de Garantia por Tempo e Serviço

FGTS - após trinta anos trabalhando em São Paulo. Gilberto aplicou o seu FGTS e pediu as

contas em seu segundo emprego para construir sua própria casa.

A partir da necessidade de “sair do aluguel”, os que chegaram em São Paulo no ano

2000, se juntaram aos rapazes solteiros que moravam com irmão ou irmã casado, e se

organizaram, levantaram recursos e num terreno realizaram o “sonho da casa própria”. Além do

item aluguel, para essa turma, o ritmo da vida se tornou bem diferente. Fizeram opção de não

mais residir com família, escolheram um grupo de convivência e são solteiros. Trabalham

agrupados, alguns em firma de plástico, outros na empresa de leilões; combinam as diversões,

viagens para Canudos e também se apóiam mutuamente para resolver os problemas como

empréstimo de alimentos e de dinheiro, sair para divertir-se com companhia.

Considerando-se a constituição desta forma de moradia como espaço coletivo,

acrescenta-se que a opção em permanecerem próximos, juntos uns dos outros, por um lado

resolve o problema do aluguel, e por outro, possibilita a convivência entre canudenses com a

manutenção da cultura nordestina, por exemplo. Tal fato aponta também a necessidade de se

estar em grupo.

Outra forma de analisar esta necessidade de agrupamento pode ser feita com viés de

abertura, diálogo entre eles e os demais grupos. Não somente como reação ao que é diferente,

mas, reafirmar o que são como uma maneira de abrir diálogo e interação com os demais.

Esse movimento de constituição de grupos, torna a cidade mais dinâmica com pluralidade

e riqueza imensuráveis. É interessante perceber que a cidade, aliás, o Estado de São Paulo é

o que mais recebe migrantes nacionais e internacionais.

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Eu trabalho durante o dia, estudo a noite. Acordo às 5h30 horas e vou para o

serviço, aí volto, vou pra escola e volto meia-noite. É muito corrido, por isso é

diferente da Bahia. Lá quando marca sete horas da noite a gente já está dormindo,

e só final de semana que a gente dormia mais tarde. Então é por isso que a gente

sente, é diferente mesmo.86

Estas duas formas, de viver e de morar, não podem ser entendidas isoladamente. Todos

moravam sob a tutela dos pais, em Canudos e, ao mudarem, para São Paulo, passaram a viver

com tio ou irmão. Os mais jovens, ao chegarem em São Paulo, no ano 2000, reconstruíram uma

forma de moradia e de relacionamentos diferentes dos irmãos mais velhos. A maneira de encarar

relacionamentos e viver um ritmo dinâmico e na pluralidade, possibilita para eles uma liberdade

desejada e que ainda não haviam conquistado. Por outro lado, gostam do apoio dos conterrâneos

e familiares e sempre se visitam, se ajudam, realizam festas e encontros.

Para Antônio, coexistem os sentimentos de satisfação por morar no “condomínio” e de

sofrimento, ao lembrar como foi difícil sua vida logo ao chegar na cidade de São Paulo. Para

ele, tudo mudou:

Aqui é muito estranho lá é uma vida de sossego, você não ouve aquele zum,

zum, zum, aquele barulho. Sua mente está tão limpa que você não se preocupa

em acordar: você deita sossegado, acorda sossegado, é muito diferente daqui...

Morei em Santo Amaro, do lado do Gilberto aí vim morar no Jardim São Francisco

e agora estou aqui com os vizinhos todos de Canudos e eu só vou sair daqui

quando eu for embora. Casei, tenho um filhinho de seis anos. Consegui comprar

um barraco e estou até hoje. Na época que cheguei aqui tinham nordestinos

morando ao redor, mas a vila de canudenses foi depois, tem muitos canudenses,

mais ou menos uns 15, que moram aqui do meu lado, eu conheço todos. Eu

gosto, me sinto bem de morar com eles, me dou super bem com todo mundo.

Para pensar quais as ações e reações desses canudenses na cidade de São Paulo,

onde eles vivem é importante considerar o “pedaço” em que moram e que traz referências para

86 Entrevista realizada, em suas casas, em julho/ 2003.

O que mudou então para estes jovens canudenses, após a mudança para São Paulo, e

mais especificamente, ao constituírem o “condomínio”? Uma diferença fundamental para Roberto

Santos é o ritmo de sua vida que mudou muito:

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As narrativas dos canudenses, que moram no condomínio, situam-se num diálogo

constante com os vizinhos, mineiros, cearenses, entre outros. A afirmação, de que conhecem

todos, que se divertem juntos, indica também esta realidade. Em visitas a esses espaços

percebe-se o quanto eles são queridos, cumprimentam-se na rua, e, uma das visitas ao

condomínio, marcada com antecedência, foi cancelada pelo fato de estarem ajudando a preparar

o aniversário de uma jovem moradora das redondezas. Outra vez, os jovens do condomínio

estavam “apressados”, sem muito tempo para conversar comigo, pois naquele dia, iriam ao

baile no clube Patativa do Assaré, clube da região, onde eles dançam, bebem e encontram

pessoas de vários lugares.

Conhecendo-se mais ainda as reflexões de Arantes, este aponta que, no domínio do

público, as relações são marcadas pela impessoalidade, por relações impessoais – lugar do

“você sabe com quem está falando?”.88 Aí está o indivíduo, identificado pela carteira profissional

e pelo título de eleitor.

E no “pedaço”, todos sabem com quem estão falando. Conhecem-se como fruto da

sociabilidade e relações que articulam no cotidiano do bairro. Antônio Pereira aponta uma

dinâmica de identificação e solidariedade entre eles:

Aqui na vila dos canudenses, nessas 09 famílias aqui, nós todos ajudamos, somos

todos unidos, o que dá pra dá para outro, quando um não tem uma coisa, vai lá e

ajuda, até hoje, né, o dia de amanhã não sei como é que a pessoa vive, o ser

humano ele sempre vive mudando, né, mas até hoje a gente se dá muito bem.

Os canudenses que moram aqui neste quintal são muito unidos.Nunca percebi

diferença nenhuma no tratamento com todos.89

Para se entender a importância e os significados dos espaços dentro deste caldo de

cultura, é necessário buscar a construção desses espaços, ou como argumenta Magnani, ver

os elementos constitutivos do pedaço no núcleo do pedaço há alguns pontos de referência

como o ponto de ônibus, a padaria, alguns bares, casas de comércio. Há assim alguns serviços

básicos que fazem desse espaço ponto de encontro, passagem, aglutinação de pessoas

88 Ver DA MATTA, R. – Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.89 Entrevista realizada em suas casas em julho/ 2003.

suas vidas, considerando-se ainda a afirmação de Magnani em seu trabalho sobre a população

pobre na Zona Leste de São Paulo, que aponta: o lugar de moradia é que congrega as pessoas

permitindo relações duradouras e pessoais constituindo a base da particular identidade

construída no “pedaço”. 87

87 MAGNANI, José Guilherme. Festa no Pedaço. São Paulo, Ed. Hucitec/UNESP, 1998.

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José Macedo, José Alôncio e Leonildo Rodrigues participam de uma “rede”, tecida por

eles mesmos e outros mais. Ela é “conforto”, segundo narrativas dos canudenses que afirmam

ser prazeroso encontrar os conterrâneos, saber de um e de outro porque ajuda a “enfrentar” a

vida. Saber que pertencem a um grupo, saber que podem contar com alguém em situação

difícil, que pode confiar nos amigos, ter casa para visitar, amigos para ir ao baile sábado à

noite, um churrasco no domingo, à tarde. Tudo isso possibilita um sentimento de prazer, uma

sensação de felicidade por estar com amigos e irmãos.

Leonildo também fala do espaço, em que vive. Quando indagado sobre o local onde

mora, ele narra:

Nós temos aqui muitos terrenos e queremos comprar pra ser uma sede pra

gente se reunir. Os canudenses precisam de um espaço. Aqui já tem muitos

canudenses.91

Esses canudenses desenvolvem relações sociais num campo dinâmico em meio a

tensões e conflitos. Conflitos como os narrados por José Dantas, ao falar de um conhecido

italiano que ignorava a presença de nordestinos no bairro; conflitos entre Gilberto e Maria sobre

a viagem de retorno para Canudos; conflitos entre Maria e Leonildo sobre a moradia do

“condomínio dos canudenses”, entre outros. Dentro das discussões sobre sujeitos sociais,

localizá-los e compreendê-los nas relações sociais vividas, é uma necessidade. É por isso que

se tem de reconhecer as múltiplas vozes com suas contradições e diferenças, que são atos de

interpretação e significados da realidade vivida.

O espaço da casa é sagrado. Em todas as casas visitadas, esta é considerada uma

grande conquista, um espaço que está aberto para canudenses e amigos. Na casa de Gilberto,

por ocasião da entrevista, ele falou orgulhoso do filho que chegaria logo em seguida. Momentos

depois, ouve-se um barulho, alguém abre o portão da casa e Gilberto já afirma orgulhoso: é

meu filho, ele está chegando do trabalho.

considerando ainda que os diferentes lugares e a articulação entre eles acontece num jogo

de tensões e disputas. 90

Mas isso não responderia à preferência pelo bairro e/ou pela comunidade. Morar próximo

desses lugares ou freqüentá-los, ainda é pouco. Para “ser do pedaço”, é preciso fazer parte

das relações de vizinhança, parentesco, grupos que identificam a pessoa, como clube de futebol,

associação religiosa, escola, entre outros. É ser reconhecido em qualquer circunstância...

Supõe uma relação mais concreta.

91 Entrevista realizada, em suas casas, em julho/ 2003.

90 MAGNANI. José Guilherme Cantor “ Festa no Pedaço: Cultura Popular e lazer na cidade”. São Paulo,Brasiliense, 1984.

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Neste momento, aproveitando sua chegada, seu irmão de dois anos grita e também

recebe um beijo. A mãe, Maria, rapidamente distribuiu para todos, sorvete de abacate feito

por ela mesma com a fruta vinda de Canudos: é fruta da roça do meu pai, ele trouxe pois sabe

que aqui todos gostam.

O que para muitos pode aparentar uma simples sobremesa, para esta família, é mais

uma maneira de matar a saudade de casa, relembrando o sítio e o trabalho do avô e da avó,

em Canudos, que sempre os vem visitar. É mais que isso, uma forma de manutenção de seus

costumes, uma reelaboração de uma cultura vivida, em Canudos, que permanece na vida, em

São Paulo. A comida da terra, feita em São Paulo e, saboreada pelos familiares e visitantes, é

uma das maneiras de manutenção de sua cultura, da alimentação própria, além de tudo isso,

Maria também mostra o utensílio, o vasilhame do sorvete, uma “cumbuca” de cerâmica,

produzida em Canudos.

O fazer o sorvete com o abacate da roça do pai, colocar o sorvete numa cumbuca de

cerâmica vinda de Canudos, comer a comida que a mãe oferece, evocam lembranças para

Maria e permitem observar traços de seus costumes que permanecem vivos. Ela, descrevendo

sua relação com os familiares, que permaneceram em Canudos, expressa a satisfação em

recebê-los em sua casa e ganhar deles feijão e farinha da roça do pai. Poder comer a comida

da roça do pai, poder conviver com eles em sua casa, ao lado de sua família, são fatores

importantes na manutenção de laços. Estes momentos ajudam na constituição de sua formação

de vida, são suportes afetivos-culturais no processo de inserção na cidade e vistas por Raymond

Willians como “estruturas de sentimento” 93 .

93 Ver: “Cultura”, “Tradições, instituições e formações”, “Dominante, residual e emergente” e “Estruturasde sentimento”. In: WILLIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 p. 130-137

Imediatamente, um largo sorriso transforma a sua fisionomia na apresentação de seu

filho, um bonito rapaz de 16 anos com uma frase curta e rara: bença pai, bença mãe, estendendo

o braço para um aperto de mão para mim. Gilberto fala do que sente, quando está em casa

com sua família:

Pra mim é bom morar com minha família, meus filhos... São quatro homens em

casa, a gente joga bola junto, e eles são melhores que eu, eu já estou velho,

ficando aposentado.92

92 Entrevista realizada, em sua casa, em julho/ 2003.

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Este processo de afirmação e reafirmação de ser canudense, na cidade de São Paulo,

incentivou o respeito às diferenças, e os canudenses vivenciaram experiências de uma nova

forma de viver na cidade.

Múltiplas narrativas possibilitaram verificar que, ao mesmo tempo em que se respeitaram

as diferenças, os canudenses aprenderam não só a vivenciar momentos de tensões e conflitos

mas também, respeitar as divergências e a vida na alteridade, o que poderá ser visto na Parte

II, capítulo 4.

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II

SÃO PAULO E CANUDOS:

MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS

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_______Capítulo 4 - Era tudo desconhecido_________________________________________

Chegamos assustados

e se eu tivesse dinheiro pra voltar

assim que cheguei tinha voltado pra trás.

Cheguei em São Paulo no dia

10 de abril de 1968 passando frio.

(José Dantas, 2003)

O processo de partida e chegada, o percurso da viagem entre Canudos e São Paulo, e

seus significados, revelam, muito sobre os diferentes momentos de chegada e as experiências

vividas pelos canudenses na cidade de São Paulo. Diante das múltiplas narrativas realizadas,

durante o tempo de pesquisa, foi possível constatar que os migrantes canudenses não só

aprenderam a vivenciar momentos de tensões e conflitos, mas também aprenderam a respeitar

as divergências e a vida na alteridade.

Um dado importante a ser considerado são as diferenças de experiências das gerações,

visto que, por exemplo, a viagem narrada por eles conduz ao conhecimento do impacto da

chegada em São Paulo e suas trajetórias, para se entender como é a vida de hoje e como os

canudenses foram criando sentidos e estratégias para a vida na cidade.

Constata-se que neste processo, as mudanças e alterações neles próprios, na cidade e

na viagem são elementos importantes. Se, por um lado, se encontram os chamados

“desbravadores de terras” e a vida na São Paulo dos anos 1950 foi construída sem redes de

apoio, como aponta a narrativa do Sr. José Macedo, têm-se, também, aqueles que chegaram

nas décadas posteriores 1980 -1990 e encontraram conterrâneos residentes na cidade, que

ajudaram na indicação de trabalho, na definição de moradia, no lazer, e existem ainda, aqueles

que desembarcaram na cidade, no ano 2000, e sabiam da existência de uma “rede” de apoio,

já consolidada, e de alguns “facilitadores” como o condomínio dos canudenses, moradia e

emprego, de certa forma, “garantidos”, conforme visto no capítulo 3.

Nesta direção pode-se entender o próprio fazer-se destes em São Paulo e as mudanças

na cidade, através dos tempos. Ressalte-se aqui dois momentos, algumas experiências em

momentos diferenciados da trajetória e do viver a cidade de São Paulo, a cidade que foi

“desbravada” pelo Sr. José Macedo, a partir dos anos de 1950, 1960 e seguintes; além das

experiências vividas por José Dantas e Gilberto Nascimento, que têm suas marcas de vida na

cidade de São Paulo, enquanto trabalhadores fabris viveram indiretamente o clima de

mobilizações e movimentações da sociedade que vinham sendo construídas como forma de

enfrentamento à ditadura, desde os anos de 1970, e explodiu no ABC Paulista nos anos de

1980 e 1990; bem como as narrativas de Maria Nascimento que chegou em São Paulo com

seus filhos, no final dos anos de 1980.

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Neste quadro percebem-se elementos presentes ao longo do processo, de maneira

mais intensa ou não, como o estranhamento ao lugar e aos diferentes modos de vida, os espaços

de vivência e diversão, a relação com a família que se vai ampliando, na medida em que a vida

na cidade exige outras formas de organização de moradia, o ritmo de vida alterado pelo trabalho,

os amigos na cidade. São diferentes tempos de inserção e diferentes maneiras, em que estes

canudenses vão se constituindo gradativamente na cidade.

Esses migrantes canudenses saíram de Canudos, em busca de algo melhor, de uma

vida digna com melhores condições de trabalho, e as narrativas apontam hoje, uma cidade

onde a pobreza, a concentração de terra e renda são uma realidade.

Ao conversar com os canudenses sobre memórias das fases vividas, no decorrer dos

anos, inicialmente estes falam de modo superficial sobre a situação difícil vivida em Canudos,

a pobreza, a busca de “saídas” e melhores condições de vida. Freqüentemente, aqueles

canudenses que participaram da pesquisa, e os demais contam suas experiências em São

Paulo enfatizando o aspecto da luta, da coragem, do fato de estar em São Paulo e “vencer na

vida”. A maioria fala rapidamente sobre o porquê da vinda para São Paulo, da busca por uma

vida melhor e demonstra de forma clara, o desejo de mudança de vida.

Ao serem indagados, sobre como decidiram sair de Canudos, expressam a expectativa,

os medos e ansiedades existentes para este momento de decisão. José Dantas, por exemplo,

nasceu em 13 de abril de 1950, chegou em São Paulo em 1968 e sentiu logo de início a

diferença; embora tenha planejado a viagem com bastante antecedência a sua vontade deretornar para Canudos foi quase imediata. É desta forma que ele desenvolve suas narrativas:

Telma Bessa: Como você lembra da sua chegada em São Paulo?

José Dantas: Minha viagem pra São Paulo foi antes de eu sair, foi um pesadelo. A

gente tinha um sonho de vir pra São Paulo. Pra conhecer gente diferente e outros

lugares. Passei um ano só no pensamento, só planejando, porque uns tinham

vindo e não voltavam mais... Chegamos assustados, se eu tivesse dinheiro pra

voltar, assim que cheguei tinha voltado pra trás. Muito prédio alto acostumado lá

que a gente só vê serra, enxada, cabra...Foi muito diferente mesmo.... Cheguei

em São Paulo no dia 10 de abril de 1968 passando frio. Quando cheguei queria

voltar pra trás, não tinha mais dinheiro. Eu tenho um primo que me incentivava

mais e ele já morava aqui, o Manoel Ferreira... Meu primo ia trabalhar e ficava eu

e meu irmão em casa sozinho e eu dizia: “agora danou-se” e a lágrima escorria

dos olhos. Passava o dia o rádio ligado. Ele chegava seis horas da noite e era

tudo desconhecido, era difícil ver um parente, não é como hoje que vocês estão

rodeados de parentes, de conhecidos. Onde você se virar hoje você vê gente de

lá. Antes, era só português, italiano. Coisa rara era ver um conhecido... 95

95 Entrevista concedida,em sua casa, em julho/2003.

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José Dantas, quando ainda estava em Canudos, ao pensar durante tanto tempo na

sua própria viagem, lembrava de alguns tios e primos que, vivendo em São Paulo, desde a

década de 1940, ainda não tinham voltado para Canudos. A comunicação era mais difícil e

ele pensava em tudo isso, quando decidiu seguir os conselhos de seu primo Manoel Ferreira,

que morava na Chácara Santo Antônio, em São Paulo, e que o incentivou mais firmemente

para a tomada de uma decisão.

O impacto da chegada é forte para ele, embora tivesse a presença do irmão. Sensível

e ligado aos costumes de sua casa, ouvia rádio e valorizava o contato com os seus familiares.

Logo nos primeiros dias, sente a ausência do irmão que já vivia em São Paulo, mas saía

para o trabalho e o deixava sozinho em casa. Emerge com força neste trecho do seu

depoimento a importância da presença de familiares como apoio, desde a chegada, bem

como para conseguir um emprego e também relacionar-se com os vizinhos.

Ver alguém conhecido na rua, conversar com alguma pessoa, são desejos vitais

para José Dantas. A ausência dessas iniciativas, consideradas naturais para este

canudense, causou uma espécie de tristeza que o levava às lágrimas. Sentimentos de

nostalgia e saudade se misturavam ao ver que não conhecia sequer alguém. Não sentia a

presença de familiares que, no momento da chegada, são fundamentais na própria

“recepção” à nova cidade, ou mesmo para uma “apresentação” do bairro, dos vizinhos. Não

tinha os familiares nem amigos com quem conversar. Em certos trechos das narrativas,

José Dantas insiste no fato de não conhecer alguém no bairro, e isto dificultou a sua inserção

na comunidade e seu interesse maior naquele momento era conhecer pessoas, conversar,

encontrar alguém para dialogar, sentir-se parte da comunidade.

Observa-se nas narrativas de José Dantas um estranhamento ao lugar e às pessoas,

quando da sua chegada e, prosseguindo em sua fala, este canudense, após anos de sua

vida, residindo na mesma região da cidade, mostra-se familiarizado, conhecedor do bairro,

coloca-se como construtor de laços de amizades com as pessoas de outros lugares que

encontrou, e a partir de então, tornaram-se suas amigas.

José Dantas fala do tempo, em que chegou, e no desenvolver de suas narrativas,

hoje revela um sentimento saudosista deste tempo, sente saudade de São Paulo,

demonstrando um apego aos lugares, visto que não reside mais no mesmo bairro, não

reencontra os antigos amigos e vizinhos, e mais que isso, constata as mudanças que a

cidade sofreu, por exemplo, no tocante à disposição de ruas. O sentimento de saudade de

uma São Paulo dos anos de 1960 indica que este canudense estabeleceu relações, “apegou-

se” a lugares e pessoas, demonstrando, assim, um enraizamento que permite sentir saudade

de uma cidade que já não existe mais da forma como a conheceu. Saudades não somente

de Canudos, sua terra natal, mas também da cidade que o acolheu, em que ele se constituiu

e refez sua vida ao longo do tempo. É interessante observar-se a forma de suas narrativas,

em tempos diversos, desde sua chegada nos anos 1960 e, atualmente, em que afirma:

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agora já mudou tudo.

José Dantas: Depois nós moramos juntos, eu, Manoel Ferreira, meu irmão e

uma irmã que veio também. Fomos morar na chácara Santo Antônio, na rua,

antigamente era rua Jubi Ribeiro que hoje é a rua Alexandre Dumas, n. 1972.

Agora já mudou tudo. Tinha igreja, amigos portugueses. Passei lá há pouco tempo

e quase sai lágrimas dos olhos, não achei mais ninguém, tudo já tinha morrido.

Não tinha mais nenhum conhecido... 96

A inserção na cidade de São Paulo, para José Dantas, aconteceu também, através do

trabalho, da busca de emprego. Ele conta como conseguiu seu primeiro emprego:

Entrei numa firma, Amelca S/A eletrônica. Cheguei lá tinha uma fila de cem

pessoas e precisavam de um ajudante só. Eu passei um dia antes e vi a placa:

precisa-se de ajudante geral. Aí fui no outro dia e tinha cem pessoas na minha

frente. Aí eu disse, não tenho chance, carteira branca,rapaz vindo do Norte, mas

eu fiquei pra ver. Aí só via o pessoal descendo e falando: é rapaz, é difícil pra

acertar. Aí quando chegou a minha vez, agora é pedir a Deus pra me ajudar. Aí fiz

teste, tinha umas perguntas sobre umas letras e eu falava a linguagem do Norte

né? Ele perguntava: “que letra é essa”? Eu dizia: “é um si”. Ele dizia pra mim:

“Não é si, é um “esse” – S”. Aí quando eu falava: “isso é um lê – “ele dizia”: é um

“ele” – L”. E foi assim. Aí eu fiquei nesse emprego, o cara foi legal comigo ele

disse: “olha, esse rapaz aqui vai dar conta do recado”. 97

Estes fatos foram narrados por José Dantas no ano de 2003, no desenrolar da pesquisa.

Este canudense revelou o que sentiu na seleção do seu primeiro emprego, em São Paulo em

1968, articulando-o com um outro momento – na década de 1980 – em que viveu uma situação

bem semelhante.

Ao narrar todas essas histórias, trinta e cinco anos depois, revelou suas experiências

profissionais. Suas narrativas retratam como se foi inserindo na metrópole dos anos de 1960,

1970, época do ‘boom industrial’ 98 de São Paulo, e como foi disputando espaços, vagas de

trabalho, enfim, expressam as rejeições, aceitações e a convivência em geral com as diferentes

pessoas e culturas.

96 Entrevista concedida,em sua casa, em julho/2003.97 Idem98 Trabalho e Reestruturação produtiva: o caso dos trabalhadores da Volkswagen. Telma Bessa Sales, SãoPaulo, Annablume, 2000.

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José Dantas, segundo suas narrativas, no ano de 1968 não contou com a ajuda sequer

de alguém para conseguir trabalho, e ao falar sobre estes acontecimentos dá ênfase para a

constituição da “rede de canudenses”, que ele próprio ajudou a construir. Seu depoimento é

significativo sobre uma circunstância peculiar de inserção na cidade, através do trabalho

profissional, demonstrando formas de inserção do homem canudense, morador do sertão, que

muda e se integra à cidade.

As narrativas de José Dantas apontam uma trajetória singular, qual seja, a saída de

Canudos para ele foi embalada por sonhos. Viajou estimulado por um primo que já residia em

São Paulo, saiu de lá jovem, e uma questão primordial colocada é a sua inserção no mundo do

trabalho. A centralidade do trabalho em sua vida o impulsiona a vir para a cidade e a permanecer

nela, constituiu família, trabalhou em várias empresas, conseguiu a aposentadoria e hoje, com

sua casa e filhos adultos, afirma que sua vida é para criar as netas.

Ao chegar em São Paulo, aos dezoito anos, participa da concorrência para conseguir

um emprego. Eram mais de cem pessoas disputando o cargo de ajudante geral, numa empresa

de material eletrônico. José Dantas narra de forma marcante esse episódio, pelo fato de ter

sido entrevistado por um responsável pela empresa e o que poderia ter sido um momento de

seleção de candidatos para um emprego, para ele se tornou um impacto ao responder as

perguntas teve de explicar várias vezes o que dizia, pois a sua forma de falar, de pronunciar as

palavras eram questionadas pelo entrevistador. O sotaque, sua maneira diferente de pronunciar

as palavras, chamou atenção no momento da entrevista e teve de explicar melhor sua fala

várias vezes, no exercício de respostas ao responsável pela empresa.

Este episódio deixou marcas em sua vida, inclusive anos depois, ao trabalhar em uma

metalúrgica com trabalhadores de várias localidades do país e do exterior. Esse trabalhador, já

experiente em sua maturidade, nos anos 1980, mais uma vez enfrenta uma situação de tensão

e conflitos na convivência com pessoas bem diferentes dele mesmo.

Um outro acontecimento na vida de José Dantas, na década de 1980, segundo ele

narra, já estava mais experiente, com mais idade, com outras formações e convivência com

estrangeiros, portanto, não era mais o rapaz de dezoito anos que enfrentou a “argüição” do

chefe para conquistar um emprego no ano de 1968. Assim ele narrou um momento de sua

experiência de trabalhador fabril, nos anos de 1980:

Telma Bessa: E como era o seu trabalho, seus amigos de fábrica?

José Dantas: No trabalho, a gente encarava qualquer serviço, o que viesse, tanto

que eu com seis meses eu já era oficial de torno, sem curso, aprendi na vontade.

Os caras mesmos falavam: você não precisa de curso, você já sabe. Eu sabia

de tudo, na prática. Tinha uns paulistas que falavam: além de vir do Norte, ainda

são puxa saco dos patrões. Mas nós trabalhávamos direito, e os paulistas não

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gostavam de trabalhar, de fazer hora extra. Para nós não, trabalhar é que era

bom, quanto mais hora extra melhor, que ia ter dinheiro, ia sobrar dinheiro. Mas

fora isso, graças a Deus arranjei muita amizade. Mas o paulista que não tinha

bom salário, não tinha casa, tinha muitos que trabalhavam de ajudante de

encanador e eles falavam: É esse povo aí cheio de dinheiro, relógio de ouro, bem

vestido, terno e gravata, vem lá da casa dos Judas – aí eles falavam umas coisas

né – e aqui já estão na casimira, relógio de ouro, cordão de ouro e a gente aqui

quebrando manilha, se arrebentando e olha o monte de baiano aí (e nós passando

assim perto) vem da Bahia, chegou a pouco tempo aqui e já estão aí na casimira,

todo engravatado a gente se ferrando. Aí eles tinham um sotaque de puxar o “r”

tipo falando ferrrrando ”.99

Ao narrar este fato, José Dantas recorda sua forma de ser, sua cultura nordestina e

acrescenta seu modo de vestir, roupa de linho, cordão de ouro, relógio grande, dourado, anel.

Assim, reconhece que é diferente, afirmou-se, enquanto nordestino e verificou que também

existiam outras formas de linguagem que não a sua, ou seja, compreendeu que existem diferentes

formas de falar, vestir, e isso é uma riqueza e não um problema.

Este trecho do depoimento de José Dantas permite correlacioná-lo com diversas formas

pelas quais os canudenses se inseriram no mundo do trabalho. Este é um espaço que coloca

em contato diferentes pessoas e grupos. Ao falar sobre um outro emprego que teve, numa

metalúrgica, José Dantas comenta sobre seu setor de trabalho e as pessoas com as quais

convivia, pondo em evidencia as relações e diferenças existentes.

Num fragmento desta narrativa, ele afirma que sua vida profissional foi sendo constituída

na prática, no dia a dia de trabalho no chão da fábrica. O saber construído na prática, pelos

trabalhadores, foi algo comum nas trajetórias destes, no período de implementação das indústrias

no Brasil, por exemplo, e que entrou em “choque” no processo de reestruturação produtiva,

implementada por estas, a partir dos anos de 1980, processo que motivou a demissão deste

trabalhador, anos mais tarde de um laboratório químico.

José Dantas, ao afirmar aprendi na vontade, significa que, para ele, seu saber e

dignidade profissional foram conquistas do seu trabalho no cotidiano, não foi oferecido por

alguém, é fruto de sua ação e dedicação ao trabalho.100

Por outro lado, também é possível notar um certo “estranhamento” vivido por José Dantas,

no espaço do trabalho. Esse é um dos problemas presentes em sua fala, e a partir daí, pode-se

99 Entrevista concedida, em sua casa em julho de 2003.100 Sobre o aspecto da formação profissional x reestruturação produtiva, ver cap. 02 do livro Trabalhoe Reestruturação produtiva: o caso dos trabalhadores da Volkswagen. Telma Bessa Sales, São Paulo,Annablume, 2000.

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pensar numa realidade de dinâmica social brasileira naquela época, que comportava greves,

paralisações setoriais de empresas metalúrgicas, especialmente em São Bernardo do Campo.

As relações pessoais , também se tornavam de certa maneira, “tensionadas”, principalmente

quando, além disso, está presente um relativo “choque” entre culturas.

Os dois momentos descritos acima, vividos e narrados por José Dantas, podem ser

vistos como sinal de possíveis maneiras de se enfrentar a vida, numa cidade como São Paulo,

ou ainda, como uma forma de se firmar, enquanto sujeito, no cotidiano, através de sua cultura,

de seu ser, ser canudense, com linguagem própria, uma maneira de vestir - se e de se alimentar

diferentes.

A percepção de José Dantas sobre essa convivência é importante e aponta para as

diferentes formas de viver no campo do trabalho, nas diversas temporalidades, visto que no

ano 2000, há um “facilitador”, no sentido de se conseguir um emprego e ter amizades, ou seja,

a utilização de uma “rede de canudenses”, já estabelecida, apresenta canudenses para trabalhar

em diversas empresas, onde já existem trabalhadores canudenses, como é o caso de vários

entrevistados, além da presença de diversos canudenses que sempre acolhem os que chegam

de Canudos.

Ao ouvir José Dantas é possível lembrar de várias histórias de famílias que saíram do

Nordeste e até hoje não conseguiram retornar. A realidade do desemprego e da precarização

do trabalho são fatores que, atualmente, não possibilitam ganhos e uma qualidade de vida

como conquistaram os metalúrgicos, nas décadas de 1960,1970.

José Dantas conseguiu comprar sua casa, após a aposentadoria. Ele afirma que a cidade

que conhece é a cidade do trabalho, a cidade que tem uma população diversificada, como

nordestinos, americanos, europeus, japoneses, enfim ele conhece esse grande laboratório

que é São Paulo, uma metrópole plena de contrastes e contradições.

Na visão deste canudense, o contato com os vizinhos, a busca de trabalho não

aconteceram de forma tranqüila, foi um movimento dinâmico e dentro de um campo de tensões.

O processo de inserção na cidade e as relações com a vizinhança aconteceram de forma lenta

e difícil. Conforme sua fala, estava andando no bairro e viu uma construção, ao se aproximar

dos que lá trabalhavam, foi abordado de forma rápida e definitiva:

José Dantas: Cheguei numa obra e perguntei se não tinha trabalho pra mim. Aí

ele disse: “você chegou do Norte”? “Não quer voltar pra trás não?” Eu disse: “me

dá o dinheiro que eu volto”. Esse cara era paulista, era mestre de obra, filho de

italiano. Tinha apelido de chumbinho e tinha olhos verdes, mas detestava o pessoal

nordestino. Morava na chácara Santo Antônio e se chegasse algum nordestino

no bairro onde ele estava, ele saía. Isso é preconceito.101

101 Entrevista concedida, em sua casa em julho de 2003.

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Ao mesmo tempo, em que fala destas interpretações sobre o seu trabalho, José Dantas

fala de como se relacionava com as pessoas no bairro, em que morava. Este comenta que, no

bar, jogava sinuca com alguns italianos e portugueses, e com paulistas, afirma que não tinha

amizade. Conta que, apesar de se sentirem sozinhos, aos poucos eles se reuniam e também

tinham contatos com os vizinhos. Eram conhecidos como nordestinos e a vizinhança sabia que

eram de Canudos como expressa, nesse trecho de sua fala:

Nós fizemos amizade com um pessoal bom, uns portugueses. A gente se

encontrava num bar pra contar história, tomar cerveja, só os homens. Nunca

teve preconceito contra os nordestinos, quando tinha churrasco eles chamavam

a gente... O imigrante, italiano, esse pessoal... Pra mim todo mundo é igual. A

gente respeita todo mundo como brasileiro.102

A narrativa de José Dantas assegura que na vida desses canudenses existiam lugares

de encontro entre eles. Havia, segundo ele, grupo de amigos, destacando-se somente os

homens, que jogavam, bebiam e se divertiam. As mulheres não são mencionadas em seu relato.

Freqüentar bares, salões de festas era uma realidade para José Dantas, seus primos e amigos,

anos após sua chegada em São Paulo.

A praia e o forró são fortes para ele e seus amigos. Era uma forma de viver em São

Paulo, dentre outras formas de vida, expressando uma relação com esta cidade que é bem

diferente da sua cidade natal. Os sentimentos de união, de uma forma de vida em grupo, da

alegria de estarem juntos os tornavam dinâmicos, vivazes no processo de sentir a cidade nova

a cada dia.

Esta fala de José Dantas revela que, ao sentir-se sozinho, estabeleceu, aos poucos,

contatos com os vizinhos, demonstrando assim que foi possível haver diálogo entre canudenses

e imigrantes. Ele acentua que se assumiam enquanto nordestinos e viviam suas tradições e

costumes ao mesmo tempo em que se colocavam abertos para o diálogo e convivência com

imigrantes.

Pode-se imaginar que o sentimento de “pertença” estava presente entre eles, quando

estavam juntos, através dos gostos, atividades que realizavam, relações que cultivavam, no

que admiravam, quando em grupo contavam histórias das famílias, dos amigos, entre outros

fatos. O pertencimento a um grupo indicava o sentimento de serem reconhecidos como

nordestinos, não obstante o movimento de chegada e saída desses conterrâneos que

dinamizava e estreitava os laços entre os mesmos.

102 Entrevista concedida, em sua casa em julho de 2003.

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Os canudenses tiveram variadas atitudes no “aprender” a viver a cidade de São Paulo,

desde o ter de se acostumar a ficar sozinho em casa, por exemplo, não conversar com vizinhos,

sair à rua e não conhecer ninguém. Ações e reações para enfrentar esta nova realidade foram

sendo criadas e constituindo uma nova maneira de viver.

Vários costumes como ter uma vida em comunidade, não morar somente com irmãos e

acolher primos, amigos dos primos, amigas da irmã, e/ou filho de uma família conhecida de

Canudos eram ações constantes no movimento de se moldar à vida em São Paulo. Ter tempo

para conversar entre eles mesmos, continuar ligado à terra natal, cultivar as histórias de

conhecidos era importante e ajudava a viver numa cidade diferente.

Manter a vitalidade e a alegria de espírito passava necessariamente pela convivência

com os seus familiares e os outros, vivendo juntos o lúdico e a festa, aproveitando a praia, os

bares, de forma a manter um costume antigo de “andar junto”, manter a solidariedade com os

recém-chegados.

Dentro deste caldo de relações é que os canudenses viveram suas novas realidades,

reconstruindo-se, buscando o diálogo entre eles, relacionando-se com o outro, apreendendo

mudanças e movimentos e ao mesmo tempo sustentando suas formas de viver. Os encontros

com os primos no final de semana, a saída para os bailes, o almoço com bode assado que

chegara de Canudos, pelas mãos de um outro familiar que mudou para São Paulo, as conversas

e infindos “causos” revividos por eles nas tardes de domingo com comidas, bebidas e música

da terra, enfim, seus costumes estavam presentes na nova forma de viver em uma cidade ainda

desconhecida.

Como se observou, algumas diferenças foram marcantes entre canudenses no viver o

cotidiano da cidade de São Paulo. José Dantas, como visto, numa relação bem diferenciada

de Gilberto, por exemplo, não fazia planos de voltar para Canudos nem de fazer “pé de meia”.

Sua trajetória demonstra que para além do impacto da chegada, conseguiu trabalho e seguiu a

vida de uma forma bem mais “leve ”, apesar de existirem contradições e conflitos com relação

à dificuldade no período da chegada, bem como a jornada de trabalho que, segundo conta, era

extenuante e que sua vida se resumiu ao trabalho.

Como afirmei anteriormente, canudenses como José Dantas, Gilberto e José Alôncio,

ao chegarem, iam morar com parentes, amigos ou irmãos. Por sua vez Roberto, ao chegar no

ano 2000, já sabia onde ia morar, onde provavelmente trabalharia e o grupo de canudenses da

Zona Sul o acolheu muito bem. Roberto foi morar com o irmão que possuía uma casa no

“condomínio dos canudenses” por um período até quando o irmão saiu para casar em Canudos.

José Dantas, a partir de sua chegada no ano de 1968, viveu a cidade de São Paulo

como trabalhador fabril. Foi metalúrgico e sempre trabalhou em firmas e empresas consideradas

de médio porte, da mesma forma aconteceu com o Gilberto e o José Alôncio. Estes representam

múltiplas formas de sentir e viver a cidade de São Paulo. A moradia, o trabalho, as festas, tudo

era bem diferente do que viveu Roberto, quando chegou no ano 2000.

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Alguns canudenses, quando falavam sobre o ritmo do trabalho, reforçavam a extensa

jornada de trabalho, que “eram pau pra toda obra”, que só pensavam no trabalho. Ao mesmo

tempo, quando indagados sobre o que faziam nos finais de semana, quando não trabalhavam,

se referiam às festas, divertimentos em grupos nos salões de bailes para dançar forró ou ainda

sentar, conversar com os conterrâneos, beber e lembrar das pessoas de Canudos.

Sobre este assunto de lazer, de sair para conhecer a cidade, José Dantas descreve um

pouco os limites e a forma do lazer para ele e para os que chegaram anos depois:

Esse povo achava bom São Paulo porque quando chegaram teve mais apoio.

Quando foi na minha vinda, teve apoio do meu irmão e do meu primo, mas quando

eles saíam pra trabalhar a gente ficava só. E com os que chegaram depois não,

a gente saía sempre junto. Ia pra forró, jogar bola, ia pra Santos. Nossa vida era

nos forrós, saía sexta-feira, chegava sábado de manhã, ficava por ali, jogando

sinuca, tomando cerveja e quando escurecia, forró de novo. Num salão na Av.

Morumbi. A gente ia pra Santos. O dinheiro que eu ganhava, gastava em casa

mas também me divertia. Se fosse um cara que fizesse economia, eu tinha

muito mais, mas eu não pensava, era mão aberta. Dinheiro não foi a gente que

fez, era fácil pra ganhar e fácil pra gastar.103

Outro aspecto, dentro dessas reflexões e que pode ser visto aqui como um desafio, é

o que se refere à linguagem dos canudenses, mas pensando linguagem como valor social,

como marca da própria história de cada sujeito, como produção das experiências

compartilhadas. Este desafio, para os historiadores sociais se torna cada vez mais claro no

diálogo com estudiosos de outras áreas do conhecimento como, por exemplo, a área da

literatura. Nesse sentido, desenvolveu-se um diálogo com o professor Alessandro Portelli,

professor de literatura, com quem foi possível propor uma reflexão sobre modos de vida de

sujeitos que se fazem na cultura e pela cultura, o que inclui uma análise das narrativas e dentro

desta, da linguagem.

Nesse sentido, convém destacar uma situação vivida por José Dantas, ao disputar uma

vaga em uma empresa e ter de responder a perguntas sobre letras do alfabeto. Fazia-o com o

sotaque de Canudos, ou do sertão. Imediatamente era “corrigido” pelo responsável da empresa.

José Dantas teve aquele momento da sua vida marcado como uma circunstância “embaraçosa”,

e, ao mesmo tempo, um “estranhamento” ao saber que aquela era a “porta de entrada” para o

trabalho em uma empresa.

103 Entrevista concedida, em sua casa em julho de 2003.

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A partir desta reflexão, torna-se um desafio pensar nesses canudenses que entram em

choque com outros códigos da vida urbana, outra forma de falar, de comer, de vestir,

considerando-se que no cotidiano vão apreendendo novas expressões, mesclando as formas

de falar e ao mesmo tempo mantendo a sua linguagem, numa espécie de hibridismo.104

Este fato narrado por José Dantas aconteceu em 1968, quando ele era recém-chegado

e nota-se que, atualmente, ele mantém sua maneira de falar e, a sua linguagem continua

fortemente com sotaque nordestino. Com referência à linguagem, perpassando-se as gerações,

convém indagar o que acontece com a linguagem, como falam os filhos dos migrantes,

considerando-se que as filhas de José Dantas, por exemplo, talvez falem expressões paulistanas

bem como nordestinas.

Outro aspecto ainda relevante está na linguagem mesclada e híbrida como é a fala de

outro canudense, Leonildo. Este vive em São Paulo, desde criança, conviveu com paulistas na

escola, no trabalho e morou em vários bairros. Sua interpretação sobre sua própria experiência

de vida demonstra uma história e culturas forjadas com novos valores, a partir, de sua vivência

em São Paulo. Sua forma de falar incorporou expressões paulistanas e ao ouvir suas narrativas,

percebe-se como o sotaque nordestino mudou, pois a pronúncia das palavras não é tão

“carregada” como a de José Dantas e, mantém presente a maneira de falar do paulistano, que

também é acentuada. Estas diferenças, entre José Dantas e Leonildo, por exemplo, fazem

pensar no trabalho da linguagem que, semelhante ao trabalho da memória, é social e dinâmica.

O dialogo com Alessandro Portelli, construído há tempos, por diversas alunas e

professoras da PUC, no sentido de analisar as narrativas em várias dimensões, reconhecendo

os sujeitos e suas falas, considerando os gestos, silêncios, formas de falar, entre outros, faz

lembrar sua “chamada” aos historiadores sociais que se concentram em suas análises somente

no que as pessoas dizem, e ignoram como as dizem – as formas narrativas, sonoras. Estas

podem revelar detalhes não explícitos de uma história de vida. 105

105 PORTELLI. Alessandro. Dividindo o mundo. O som e o espaço na transição cultural. In: Revista doPrograma de Estudos Pró Graduados em História e do departamento de História da PUC/SP, n. 26.Educ,São Paulo, 2003.

104 Nesta discussão sobre a linguagem como produto das relações sociais, pode-se pensar na riquezadesta reflexão que impulsiona para questões como: o que acontece com o sotaque canudense aoconviver com pessoas em São Paulo? O que é linguagem? Como mudam na prática os sotaques doscanudenses em São Paulo? De que modo eles perdem este sotaque, ou não perdem, ou o defendem,ou suas falas se tornam mescladas, híbridas. Seria necessário fazer um plano de análise e açãolingüística para entender melhor tudo isso. A primeira vista, nos diálogos com canudenses de váriasgerações - não foram entrevistados filhos de canudense, nascidos, em São Paulo - observa-se queexistem algumas diferenças no próprio falar. Ao dialogar com estes, há uma diferença entre as formasde linguagem entre os que residem em São Paulo desde crianças, e os que chegaram na cidade emidade adulta. Percebem-se palavras e expressões novas incluídas nas narrativas dos mais jovens,que afirmam contatos com outros jovens na escola, no trabalho apreendendo algumas expressõeslocais, e por sua vez, os canudenses mais antigos, não incorporaram palavras ou expressõesexistentes no modo de falar dos que residem ou nasceram na cidade.

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Outro canudense que, ao falar sobre a sua chegada em São Paulo, dá largos indícios

de sua mudança na experiência de vida é Gilberto Nascimento. Nasceu no dia 18 de março de

1962 e mora na Vila Calu, em Santo Amaro. Ao chegar, vinte anos após José Dantas, ou seja,

em 1988, ele morou três meses na casa de um tio e, logo depois, com dois irmãos, alugou uma

casa para morar. Assim, ele apresenta sua narrativa sobre esse momento de sua vida:

Telma Bessa: Conta como foi sua viagem, sua chegada em São Paulo...

Gilberto Nascimento: A história é muito longa e complicada. Eu saí de Canudos

em 1988, em março, mais ou menos dia 06. Saí por que estava muito difícil e

para buscar oportunidades... Eu resolvi de uma hora para outra, me arrojei para

vir... Eu já tinha familiares em São Paulo, meu irmão tinha vindo em dezembro,

também uns primos do Alôncio. Entrei em contato com eles, aí veio eu e meu

irmão veio junto comigo também. E daí a gente passou muita dificuldade(...) Mudou

minha vida em São Paulo: no trabalho aqui é melhor do em Canudos. Lá eu

trabalhava na roça cuidando de animais. Aqui a moradia é só ruim na época do

frio, também é perigoso, mais agitado, mas estamos na esperança. 106

De uma maneira diferenciada de José Dantas, Gilberto saiu de Canudos rapidamente,

não sonhou com esta mudança com um ano de antecedência como narrou José Dantas. Migrou

para a cidade de São Paulo objetivando melhores condições de vida, já havia constituído família,

em Canudos, e por isso mesmo fazia planos para retornar em pouco tempo.

Ao dialogar com ele sobre o impacto da chegada à cidade de São Paulo, quando

perguntado sobre suas primeiras impressões e sua vida ao desembarcar na metrópole, Gilberto

afirmou:

Aí quando eu cheguei... O começo foi de muita dificuldade, eu mesmo passei

três meses na casa de um tio. Aí eu e mais dois irmãos alugamos uma casa e aí

começamos a luta. Aí com oito meses a família veio, eu já era casado. Foi meio

complicado não foi fácil não... Meu plano era sair fora e ir pra família lá, mas não

deu tempo não. Quando fez oito meses a mulher já estava aqui. Aqui estava

bom, estava começando no trabalho, casa alugada, se arrumando, não dava pra

mandar quase nada pra família, porque aqui tem as despesas, aluguel, comprar

coisas. Isso me forçava a vontade de voltar, porque eu não podia ajudar muito lá

e nem se dar tão bem aqui, não sobrava nada. Aí eu tinha mais vontade ainda de

quando fizesse um ano, eu ir embora. Tem um primo nosso, que fez até uma

106 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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brincadeira comigo: “Ô Gilberto, com quanto tempo você quer voltar pra Bahia?”

“Eu falei: ó rapaz, depois de um ano eu quero ir embora”. “Ele disse: olha, você

só vai daqui a dez anos”. (risadas). Aí eu disse: “você tá é doido”. E foi o que

aconteceu: só fui lá depois de dez anos. A brincadeira pegou. Quando cheguei,

trabalhei na Giroflex e lá fiquei oito anos. Mas meu plano era sair fora e ir pra

família, mas não deu tempo...Depois fiquei desempregado oito meses e entrei na

firma que estou até hoje porque lá trabalham dois primos e um cunhado... Gosto

do meu trabalho, gosto do que faço. Enquanto estiver empregado é melhor viver

aqui, dar uma vida melhor para os filhos. Eu mesmo pensava em trabalhar aqui,

meu plano mesmo era de trabalhar um ano e já voltar, né. Mas com oito meses,

quando a família chegou, mudou tudo... E estou até hoje.107

Por meio desta narrativa várias questões podem ser suscitadas. A vida de Gilberto mudou

ao sair de Canudos, mudou tempos depois com a chegada de sua esposa e filhos à cidade de

São Paulo. Ele fazia planos de retornar, ela não esperou seu retorno. Ambos “tocaram” a vida,

construíram outro modo de viver, juntos com os familiares que residem na região.

Um dos fatos marcantes e simbólicos, citados por vários canudenses, é o tempo da

separação dos pais, amigos ou esposa. Para Gilberto, separar-se da esposa e dos filhos era

um grande problema, mas segundo conta, era possível “segurar a barra” por um ano. Seus

planos estavam claros, permanecer em São Paulo durante um ano, fazer o “pé de meia” e voltar

para Canudos. Estava presente nesta idéia a possibilidade de, ao sair de Canudos, construir a

vida, obter ganhos materiais para sua família e, São Paulo, era mesmo uma “passagem”.

Como afirma Gilberto, o começo de sua vida em São Paulo foi difícil, não tinha emprego

e não tinha muitas condições de ajudar a família que ficara em Canudos. Sua vontade era voltar

pra Canudos e não se fixar em São Paulo. Ele também aponta que discordou da saída de sua

esposa – Maria do Nascimento, de Canudos para São Paulo. Ela, com a ajuda de amigos e a

família mudou para São Paulo com os filhos, para tentar uma vida melhor ao lado do marido.

Maria Nascimento, desta forma, também viaja para São Paulo, contradizendo na prática, o que

fora combinado com ele.

107 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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Durante a entrevista, Maria estava atenta e quando ouviu esta parte do diálogo, cortou

a palavra de Gilberto, afirmando:

Maria do Nascimento: Nós não combinamos, se fosse por ele eu não tinha

vindo. Pelas dificuldades daqui. Mas quando eu me vi lá, sozinha, sem ter

nada pra dar aos meus filhos, eu ficar implorando alguma coisa pro meu

sogro, eu fiquei apavorada. E tinha uma freira (Delires) que me ajudou muito,

muito mesmo, de conversar, de me dar algumas coisas, comida. Toda vez

ela ia me visitar... E eu vim com a roupa do corpo e dois filhos. Eu deixei tudo

pra trás... Inclusive minhas coisas do casamento porque disseram que aqui

não ia servir.... Lá eu só vivia chorando, eu não esqueço.108

Sua voz pesada e carregada de sotaque remete a uma realidade de desemprego e

fome, em Canudos, além da tristeza, em que vivia. Conta de forma compassada e lenta o

que viveu ao lado de seus familiares, nesta cidade e, simultaneamente, se enche de alegria

quando fala da sua vinda para São Paulo, por ter conseguido sair de Canudos. Uma pessoa

importante, em sua trajetória é uma freira, Delires Braun, que morava em Canudos na época,

e desenvolvia um trabalho pastoral na região de Canudos. Sobre a presença desta freira na

vida do grupo de canudenses, alguns conhecimentos serão explicitados, na parte III,

capítulo 7.

Maria expõe sua narrativa, sempre olhando para o Gilberto, seu marido, que a ouvia

em silêncio:

Maria do Nascimento: Eu falei pra ele que se ele não mandasse o dinheiro

das passagens eu ia vender as criações dele e vinha embora (risos) eu vim

com a roupa do corpo e dois filhos... Cheguei aqui e achei só um quarto, uma

cama e um cobertor. Foi difícil mas eu não me arrependo... Foram oito meses

separada do Beto que parecia uma eternidade. Valeu como experiência mas

eu não aconselho a nenhuma mulher deixar o marido vir para São Paulo e ela

ficar lá, não é bom para o casal.109

109 Idem

108 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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Ao mesmo tempo, Maria busca diálogo com Gilberto e comenta sua opinião:

Maria Nascimento: Ele é doido pra ir embora, mas eu nunca, não sei, mas está

na mão de Deus, mas eu não vou dizer, só se a gente tiver debaixo da ponte, não

tiver mais solução, mas do contrário, eu não tenho vontade de ir embora não...

Quero criar meus filhos, eu e o Beto a gente se ajeita do outro lado, aqui ou lá,

mas eu quero encaminhar bem os meus filhos. 110

Para Gilberto tudo foi diferente, visto que hoje, com 42 anos de idade, é um homem

simples, tem cabelos grisalhos, bigode, usa óculos e emociona-se ao relembrar sua própria

história. A conversa comigo foi marcada com bastante antecedência, pois a vida de Gilberto é

muito corrida. Trabalha à noite e dorme durante o dia. Na cozinha de sua casa ao redor da

grande mesa com uma toalha branca e um jarro realizou-se a conversa sobre diversos assuntos,

que se estendeu por mais de duas horas.

Gilberto saiu de Canudos, em 1988 e, ao chegar em São Paulo, tinha familiares que o

acolheram, seu irmão e primos de José Alôncio. Gilberto faz referência ao tempo em que morou

com um irmão e as dificuldades enfrentadas. Ao falar de seu plano inicial – trabalhar durante

um ano e retornar para Canudos – foi interrompido por sua esposa, a Maria. Ela, a partir de

então, conduziu todas as falas, sobre este momento de suas vidas, contando a viagem, a pobreza,

os problemas de moradia e com segurança afirma: foi mudança pra melhor.

Gilberto aponta a falta de emprego como causa de não poder estar em Canudos. Como

Maria, ele critica a política local por não oferecer condições de trabalho para os canudenses. A

comparação, que ele faz do ritmo de sua vida, em São Paulo e Canudos, revela um pouco seu

desejo latente de voltar para sua cidade natal, como se viu na parte I, capítulo 1.

Ao ouvir Gilberto e Maria falarem sobre São Paulo e, como vivem esta cidade, não se

pode deixar de dar ênfase às diferenças de opiniões. Evidenciar as diferenças, entre as múltiplas

narrativas torna-se um grande desafio. Neste caso, esta diferença é divergente e, possivelmente

antagônica.

Gilberto tem uma opinião sobre Canudos, qual seja, uma cidade calma, muito tranqüila,

porém, sem emprego. Maria apresenta Canudos da miséria, da tristeza do “atraso político”.

Gilberto quer voltar e alimenta este sonho junto aos filhos, Maria afirma não ter vontade de

retornar. Em dado momento, surge um consenso de não haver possibilidade da volta para

Canudos, em nome de uma vida melhor para os filhos. No final, ambos aceitam a vida de São

Paulo, como ela é, e dizem Está na mão de Deus.

110 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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Esta canudense, que foi ao longo do tempo conquistando seu espaço, faz um comentário

sobre o sistema político-eleitoral de Canudos, expondo claramente o porquê de não querer

voltar, pois segundo ela, vê algumas práticas antigas ainda existirem nas relações sociais e

políticas:

Maria do Nascimento: Não sei, o que me irritava e até hoje me irritou, quando

visitei lá depois de dez anos - e me irrita - é que na época da eleição – e aí eu tiro

pela minha família, meu pai e minha mãe – as vezes eles não podem falar em

política... Tem que ser dividido: se meu pai tivesse um candidato, minha mãe

deixaria de ganhar algum benefício porque meu pai era contra aquele candidato,

ainda hoje ocorre isso. Minha mãe nunca trocou de candidato mas meu pai –

podia ser pra vereador, prefeito, deputado – meu pai sempre trocava. Quando

tem eleições meus pais se desentendem...É uma coisa que eu acho incrível, é

que parece que naquele lugar, é só olhar na sua cara e saber pra quem você vai

votar. Você sai da urna e já percebe em quem você votou. Tem pessoas que vão

se operar porque tem um médico que faz laqueadura e a primeira coisa que eles

perguntam é: “ em quem você vai votar? Já tem candidato?” Então tem muita

desunião.111

Além desta opinião, Maria também aponta uma visão diferenciada de Gilberto, sobre a

cidade de São Paulo. Para ela, o futuro de seus filhos está nesta cidade e não em Canudos.

Afirma o compromisso de “encaminhar” os filhos para o estudo, o trabalho. Como mãe, deseja

o melhor para eles e o melhor está em São Paulo. Para Gilberto, apesar da violência, o que

importa, em São Paulo, é o trabalho. Deixa livre a escolha de seus filhos sobre onde morar, o

que fazer. Mas ao mesmo tempo, relembra que seus filhos gostam de Canudos e até pouco

tempo afirmavam um desejo de morar em Canudos com o avô, e a família, mas hoje seu filho

mais velho já trabalha e, desta forma, Gilberto deixa livre a decisão para seu filho e afirma

timidamente:

Gilberto Nascimento: Se tiver que voltar um dia, eu tenho vontade sim, mas os

meninos têm que estudar. Antes todos queriam voltar comigo, agora eles já

pensam diferente... Nós passeamos com eles lá e eles gostaram bastante, depois

foram sozinhos e gostaram.112

112 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

111 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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Estas passagens de visões diferentes, entre Gilberto e Maria, demonstram múltiplas

experiências, diálogo e tensões, entre os sujeitos sociais. Maria conquista o direito à palavra, e

ao longo de sua vida, conquistas do morar, opinar, decidir. A interpretação de Maria, com relação

à sua vida em Canudos e São Paulo, remete à sua trajetória e sua vida atual. Possui casa

própria, construída em mutirão, por toda a família, consegue manter uma relação direta com

seus pais, que residem em Canudos e a visitam com freqüência. Ela e Gilberto retornaram a

Canudos, somente dez anos depois que chegaram a São Paulo e, segundo conta, é mais fácil

os pais virem a São Paulo do que ela ir para Canudos, pois tem de cuidar da casa, dos filhos e

do Gilberto.

Nas narrativas percebi várias afirmações que expressam conquistas, resistências e

acomodações na vida, em São Paulo. As histórias contadas, por exemplo, freqüentemente,

falam da separação dos pais, dos avós ou da esposa. Além disso, a interpretação dos primeiros

dias na cidade de São Paulo, contados por José Dantas e Gilberto é muito presente, bem

como a narrativa do sofrimento de Maria, ao separar-se do marido e ficar com os filhos em

Canudos, sozinha. Enfim, cada um tem suas particularidades, dentro de uma experiência

compartilhada que foi a saída da cidade de Canudos.

Estas questões são importantes, fazem parte da problemática social vivida pelos

migrantes no deslocamento, na chegada e durante a vida numa nova cidade. Os elementos

citados nas narrativas demonstram qual o impacto no novo contexto da cidade, e provavelmente,

no cotidiano, tem-se várias experiências, e aquilo, que eles têm em comum, é o confronto com

uma experiência nova, qual seja, todos viveram a saída de Canudos. Além disso, uma outra

dimensão deste movimento, aquele que nasceu e nunca saiu da cidade de São Paulo, jamais

viveu algo semelhante, nunca passou por essas experiências.

Diante das narrativas dos sujeitos sociais entrevistados foi possível constatar que as

múltiplas narrativas apontaram, de fato, que esses migrantes canudenses, que vieram para

São Paulo, apesar de vivenciarem, em certa medida, um choque de culturas, conflitos e tensões,

acabaram por aprender a conviver num espaço diferente, na alteridade e respeito às opiniões

divergentes, como no caso de Gilberto e Maria, os quais concluíram que a vida, em São Paulo,

era condição essencial para o futuro dos filhos.

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113 Depoimento concedido, em sua casa, em Santos/SP, em junho de 2003.* Sobre a origem do nome pau-de-arara: “tem-se três explicações: anteriormente referida por jornalistapernambucano, Zilde Maranhão, quando pela primeira vez, um repórter camuflado de igual passageirofez a viagem Pernambuco-Rio, contando-a mais tarde em jornal: seria porque arara é termo tambémusado nos sertões para designar atoleimados e os retirantes assim eram tidos; seria porque a armaçãode madeira e a lona colocada nos caminhões lembra a engenharia feita para papagaios e araras, comunsnas casas do interior nordestino, daí o apelido para o caminhão e, mais tarde, para os nordestinos;seriaporque, ainda levando em consideração o gradil, assemelhar-se-ia os retirantes a araras, agarrados apaus”:VILAÇA,Marcos Vinicius. Sobre a sociologia do caminhão. 2 ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969p. 81.

_______Capítulo 5 - Tenho uma história muito grande pra contar______________________

E já naquele tempo era proibido o pau de arara, já não

queriam mais.(José Macedo, 2003)

Em busca de outras histórias, que tragam à tona diversas memórias de migrantes

canudenses, na cidade de São Paulo, foram analisadas narrativas feitas por estes durante o

período de 2003 e 2004.

Convém pensar como as narrativas são construídas em seu imaginário e narradas

atualmente, e como seria viver as experiências por eles vividas, na trajetória entre Canudos e

São Paulo, num pau-de-arara como o fizeram José Macedo, no ano de 1950 e José Dantas, no

ano de 1968.

Ao perguntar como foi sua viagem e chegada em São Paulo, este canudense alegre e

perspicaz assim desenvolve sua narrativa:

José Macedo: Eu tinha um primo que me chamou pra vir pra São Paulo. Ele, os

cunhados dele, nós viemos em 32 homens e já naquele tempo era proibido o pau

de arara*, já não queriam mais. Esse caminhão foi feito uma empanada em Feira

de Santana, porque meus pais já moravam em Feira. Em 1934, eles vieram pra

Feira de Santana. Chegamos em São Paulo e o caminhão, o pau-de-arara não

pôde passar mais. Aí nós ficamos no Brás um dia e uma noite, mais ou menos.

Meu primo era muito sabido e arrumou uma migração pra Venceslau, divisa com

Mato Grosso. Aí nós pegamos um trem, levou 24 horas. E ficamos ali.113

José Macedo que, chegou com trinta e dois homens para trabalhar nas fazendas no

interior paulista, citou, em sua narrativa, que além de Venceslau, também “abriu estradas” em

Presidente Prudente. Desta forma, pode-se apontar um livro de Jorge Calmon, em que

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cita o movimento de nordestinos para São Paulo, identificando as regiões do interior de

São Paulo que apresentavam maior concentração de Nordestinos - as regiões de Presidente

Prudente, Marília e Araçatuba.114

A trajetória de José Macedo demonstra uma grande movimentação, antes, mesmo

de mudar para São Paulo. E, de forma diversa dos demais canudenses que foram

entrevistados, ao sair de Canudos, ele conheceu o interior paulista, trabalhou e viveu em

grupo com amigos e familiares, juntos cuidando da terra e criando gado.

Este canudense enfatiza sua viagem em pau-de-arara, ou seja, um caminhão em

que as tábuas eram dispostas com espaçamento, entre uma e outra, servindo de assento

ao passageiro. Uns eram cobertos de lona, outros não contavam com esse recurso, expondo

os passageiros às intempéries. O lugar em que era disposta a bagagem era definido, em

função do número de passageiros. Quando o caminhão partia com número máximo de

pessoas, não sobrando espaço para as bagagens, os motoristas abriam a traseira do veículo,

visando ampliá-lo, anexando-lhe uma espécie de estrado, onde se dispunham as bagagens.

Sobre a viagem em pau-de-arara, Maria Ignez Ayala assinala:

Um senhor que atualmente é zelador de um prédio de apartamento contou-

me como foi sua vinda do interior da Bahia. No pau-de-arara em que veio,

faltavam lugares e as crianças viajavam debaixo dos bancos. Uma delas

morreu no percurso e viajaram quase um dia com a menina morta, até

chegarem em uma cidadezinha, onde puderam enterrá-la.115

114 CALMON, Jorge. As estradas corriam para o sul: migração nordestina para São Paulo, Salvador, EGB,

1998.115 AYALA, Maria Ignez Novaes. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina em São Paulo. SãoPaulo, Ática, 1988.

Fig. 2 Pau de Arara

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Eu fui no Mato Grosso pra buscar uma boiada e voltei pra fazenda de Água Branca

no interior de São Paulo, divisa com o Mato Grosso. Eu fui trabalhar nessa fazenda

perto do rio Paranapanema. Eu fui assim: eu tinha um primo que tinha uma casa

de negócios perto de Pombal, ele teve um namoro de 24 anos e os irmãos não

aceitaram e então quiseram acertar com ele, então ele foi obrigado a mandar um

pra cova, né? Porque ele agrediu, quebrou um pedaço de estaca e partiu por

cima dele e aí foi obrigado a partir pra Mato Grosso, e ficou na fazenda no interior

de São Paulo, divisa com Mato Grosso, município de Venceslau. Ele ficou uns

quatro anos lá e foi lá na Bahia, com um caminhão pau de arara e na volta, me

trouxe junto.116

Com o propósito de falar de sua vida e sua mudança para São Paulo, José Macedo faz

esta narrativa que envolve um problema pessoal – do seu primo com a família de sua namorada,

nos anos de 1950. Por que dar ênfase a esse aspecto? Esta narrativa foi interessante embora

saber - se que era comum vários nordestinos virem para São Paulo, como forma de “resolver

desavenças”.

Alguns depoimentos, existentes no estudo de Ely Souza Estrela, falam de rapazes que

viajavam do Nordeste, em situação difícil, quase, “corridos da justiça”, por motivos de tensões

familiares, discórdias entre famílias, moças que ao “perder a honra” saíam do lugar para não

“envergonhar” a família.

Um desses motivos está presente nas narrativas de José Macedo e, no estudo citado

acima, constata-se da autora de que a dona de uma pensão localizada no centro de São

Paulo, recebera em sua casa, a partir dos anos de 1950, duas ou três gerações de nordestinos,

e esta conta que, por ali passaram vários jovens fugidos por causa de problemas relacionados

a brigas entre famílias e, à situação de fuga, ligada à honra de “moças de família.” 117

O período que marca esta pesquisa compreende os anos de 1950 ao ano 2000. Nesses

tempos, assiste-se a um deslocamento intenso e um fluxo de pessoas, em diversas regiões do

país. É dentro desta dinâmica de movimentos migratórios que José Macedo desembarca no

Brás, nos idos de 1950. O bairro do Brás teve uma função de ponto de “passagem” de

nordestinos para as fazendas no interior paulista, e este bairro já era conhecido por receber,

Eis um trecho da narrativa de José Macedo sobre o momento de sua vida, em que viaja

da Bahia para São Paulo:

116 Depoimento concedido,em sua casa Santos/SP, em junho de 2003.

117 SOUZA. Estrela Ely. Os Sampauleiros – Cotidiano e Representação. São Paulo, Educ, Humanitas,FAPESP, 2003.

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ainda que temporariamente, os migrantes, especialmente com a Hospedaria dos Imigrantes

que recebia migrantes de todo país. 118

Fig. 3

Além disso, os nordestinos foram se fixando na cidade e mudando a “cara” de São

Paulo, a partir do lugar de chegada, que foi durante muitos anos a conhecida estação do Brás

ou a estação do Norte. Estes, foram presença ativa no movimento populacional interno, fato

que também é demonstrado na análise de Maria Inês Ayala ao estudar as cantorias nordestinas

em São Paulo. Em seu trabalho, a autora destaca a região do Brás por meio de poesias de

cantadores. Este bairro, entre 1950 e 1960, foi se tornando referência para os nordestinos, um

ponto de aglomeração de todos. É importante conhecer um trecho da análise de Maria Ignêz

Ayala:

118 PARDINI. Maura Bicudo Veras O bairro do Brás: um século de transformações no espaço urbano oudiferentes versões da segregação social. Tese de doutorado, São Paulo, PUC/SP; O bairro do Brás deMaria Celestina Teixeira Mendes Torres. São Paulo, Secretaria de Educação e Cultura da prefeituramunicipal – 1969, história dos bairros de São Paulo.“A estação do Norte, no bairro clássico da imigração italiana e da velha classe operária de São Paulo,é hoje um reduto nordestino. Principal porta de entrada dos imigrantes na cidade, a estação earredores têm uma posição simbólica na história das massas populares de São Paulo, até 1950 erapossível distinguir nas proximidades da estação do Norte alguns sinais da presença italiana majoritáriana pequena classe operária da pequena São Paulo de antes de 1930, então ainda uma cidade comuma importante participação estrangeira. Hoje, porém, aquele pedaço da cidade tem um significadocultural diverso, com a chegada do famoso “trem baiano” ou o movimento à volta dos ônibusinterestaduais que ligam a praça com o nordeste e as lojas ou empórios com seus produtos nordestinosà mostra ou os bares que servem de ponto para os cantadores de viola, são imagens significativasdas mudanças sofridas pelas massas populares de São Paulo a partir de 1950”. Weffort, Francisco.Nordestinos em São Paulo. Notas para um estudo sobre Cultura nacional e Popular, p. 13. In: Valle,Edênio J. Queiroz. José J. (org.) A Cultura do povo. São Paulo, Cortez,IEE,1978.

Em meados de 1950, localizavam-se no Brás várias linhas de ônibus para o Nordeste

e várias agências de passagens e pontos rodoviários... No espaço nordestino do

Brás encontrava-se tudo que era “do Norte”... Além disso, as estradas interestaduais,

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Vale ressaltar que os deslocamentos e os movimentos populacionais aconteceram em

todo país, em várias localidades e sentidos. São Paulo também recebeu migrantes de outras

regiões, não somente da região Nordeste, o que contribuiu fortemente para o seu crescimento

populacional nas décadas entre 1950 e 1980.

Os nordestinos saíam para outros lugares para “tentar a vida”, e os canudenses, ao

falarem da saída de Canudos, expressam a realidade difícil de viver, nesta cidade. Nas narrativas

de Maria do Nascimento, Gilberto do Nascimento, José Alôncio, verifica-se uma fala com teor

de indignação, de protesto, por haver ainda hoje, desemprego, injustiças e desigualdades, em

Canudos.

Gilberto Nascimento, por exemplo, num trecho de sua narrativa comenta sobre a seca, e

o mau uso da água existente, em Canudos. Ele apresenta uma visão diferenciada de José

Macedo, que rememora as fazendas, seu trabalho junto com o seu avô. Gilberto tece uma

crítica aos políticos, por não resolverem os problemas do povo e por culpabilizarem a falta de

água para a permanência da pobreza.

A vida lá não é fácil, até sobreviver é difícil. Lá eu trabalhava na roça cuidando de

animais, trabalhava para os outros pra sobreviver. Negócio difícil, não tem nem

água para o povo, tem o carro pipa do político que coloca o carro pipa na cisterna

de uma família e aquela família fica submetida ao político. Eles não fazem cisterna,

barragens, aguadas e mantém o povo sempre na dependência. 120

No jornal A Folha de São Paulo, do ano de 1999, foi publicada uma matéria sob o título

Cidade de Canudos volta após a seca. As reflexões a partir da matéria escrita levam a considerar

que entre os anos de 1989 e 1999, a cidade sofreu o impacto de uma prolongada estiagem e

a população sobreviveu dos pequenos criatórios, do emprego público e do rendimento de

algumas centenas de aposentados.121

119 AYALA, Maria Ignez Novaes. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina em São Paulo. SãoPaulo, Ática, 1988120 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.121 Jornal Folha de São Paulo, 04/03/1999 Caderno 01.

que eram extremamente precárias receberam melhorias. A proibição

de paus de arara deu-se por volta de 1949 ou 1950 e só se efetivou uns

cinco anos mais tarde, conforme informações do poeta Lourival

bandeira. 119

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Segundo a prefeitura de Canudos, 60% das pessoas com mais de quinze anos, como

indicado anteriormente, não sabem ler nem escrever. Dados do IBGE – Contagem da População

do ano de 1996 indicam que 86,6% dos moradores de Canudos com mais de quinze anos

estão fora da escola.

Ao discorrer sobre a realidade do local, onde moravam, vários canudenses expressam

uma situação de pobreza, e, como indica Roberto Santos, é difícil viver, onde não há trabalho,

por isso ele não faz planos de retornar:

Roberto Santos: Eu não penso em voltar pra Canudos, só se eu tiver recursos,

mas não tendo, lá não tem emprego pra gente, só tem os pais. Meu irmão voltou

por causa da mulher dele que é de lá, e não acostumou morar aqui. Mas ele já

está querendo voltar pra cá. Pois ele não está trabalhando. Não está fazendo

nada. Estão dependendo dos meus pais.122

É importante considerar, também, que os deslocamentos populacionais de nordestinos

datam de épocas bem anteriores, conforme o estudo de Ely Souza Estrela sobre os

“sampauleiros”- moradores do alto sertão da Bahia, no qual afirma:

Ciclicamente castigada pelas estiagens, a população do alto sertão sempre

conheceu deslocamentos em direção a áreas mais úmidas. Assim, o fluxo de

indivíduos do alto sertão para o centro-sul não constitui novidades... Não é demais

perguntar: quantas foram as pessoas que se deslocaram para o centro sul durante

as secas de 1860, 1877 e de 1899?

O estudo de Ely Souza Estrela apresenta dados quantitativos de emigrantes que deram

entrada na Hospedaria dos Imigrantes, Visconde de Parnaíba no Brás, entre os anos de 1935

a 1952, e aponta que até hoje existe um movimento migratório conhecido como sazonal ou

temporário para o trabalho na agricultura na região Centro-Sul do País. 123

122 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.123 Obra citada.

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Eis uma tabela ilustrativa do deslocamento de migrantes nacionais, na cidade de São

Paulo, no período 1929-1970: 124

Fig. 4

Seguindo nesta reflexão, uma reportagem jornalística de 1996 sobre a presença de

migrantes na cidade de São Paulo chama a atenção. O referido artigo aponta que 17% das

pessoas, nascidas na Bahia, vivem fora do Estado. Sendo que 7% vivem na grande São Paulo

e marcam com sua presença não somente o ABC, mas também os bairros da periferia da

capital. 125

Esses diversos movimentos não são características apenas de São Paulo, mas de outros

locais e regiões, onde algumas políticas e projetos foram desenvolvidos com o intuito de atrair

grupos populacionais, que saíam de suas terras de origem, em busca de melhores condições

de trabalho, saúde, educação e moradia. 126

Ao caminhar pelo Bairro do Brás hoje, são vistas as pensões, os ônibus e muitos bares

e Casas do Norte. Andando-se pelas ruas Dr. Almeida Lima e Rua Paulo Afonso, até próximo

a estação Brás do Metrô, percebe-se como as mudanças que ali aconteceram foram velozes.

124 Extraída do estudo de PARDINI. Obra citada.

125 Jornal Folha de São Paulo 22.09.1996 Caderno Cotidiano 3. Responsável José Roberto Toledo analisandodados do IBGE126 Esta realidade pôde ser vista em região como a do cerrado mineiro/ MG. Cf. Lavradores de Sonhos:Saberes e (des) caminhos de trabalhadores volantes. Dissertação de mestrado de Maria Andréa AngelottiCarmo, São Paulo, PUC, 2000.

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A paisagem descrita pelo Sr. Amadeo, que nasceu no Brás em novembro de 1906, não existe

mais e possibilita pensar na velocidade das mudanças e alterações na cidade. Assim diz:

Não me lembro de nordestinos naquele tempo. Essa invasão dos baianos não

passa de vinte anos. Começaram a morar lá no Brás. Na Caetano Pinto tinha

muito cortiço. Antigamente era dos italianos, depois eles foram progredindo e

saíram. Na Baixada da Mooca também. Quando os nordestinos vieram, São Paulo

já era grande. Mas eles vieram contribuir muito pra o progresso, eram pedreiros,

faziam qualquer serviço. Pegavam prática de construção, só depois é que

entravam nas fábricas... Os nordestinos se dedicam ao trabalho de cinco a oito

anos, mas só para conseguir umas economias para comprar um sítio e trabalhar

com a família. Esses que trabalham no Metrô fazem sociedade com cinco, dez

pessoas, trabalham dezesseis horas no Metrô onde não tem tempo nem de dormir.

Um fica em casa, fazendo comida, lavando roupa. Compram tudo por atacado

ou no fim da feira. Fazem economia, no fim do ano põem dinheiro a juro e depois

de cinco a oito anos compram um terreno lá no Nordeste, em lugares afastados.

Trabalham em fábricas, são choferes de lotação. 127

Esta região, antes caracterizada pelas marcas dos modos de vida de italianos, a partirdos anos de 1960, é alterada e novos atores, dentro de uma dinâmica de crescimento e expansãoda cidade, desenham uma zona plena de nordestinos, como indica Pardini:

Nos anos de 1960 aconteceu o processo de descaracterização e deterioração

do Brás que coincidem com o processo de nordestinização, quase que o

transformando no “gueto nordestino” dos finais dos anos 1960. Apesar das

dificuldades de estimativa sobre o número de nordestinos residindo no Brás,

sabe-se que só pelo Censo de 1970, dos mais de um milhão de nordestinos que

se concentravam em São Paulo, grande parte deles ficou no Brás. O bairro se

tornava a “capital do nordeste”com presença superior de habitantes a algumas

de suas capitais (...) Os mesmos preconceitos outrora enfrentados pelos italianos,

humildes operários do bairro, sofrem os nordestinos do Brás, surge a opinião

corrente de muitos, inclusive velhos moradores do Brás quanto a esses migrantes:

a “baianada”, como são denominados pejorativamente, culpando-os pela

“deterioração” do lugar.128

127 Narrativa extraída do livro de BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo,T. A. Queiroz, 1983.128 O Brás segundo Maria Celestina M. Torres, teria em 1970 6.2480 habitantes, não se podendo fixara proporção de nordestinos entre estes. TORRES. Maria Celestina Mendes. História dos bairros de SãoPaulo: o bairro do Brás. São Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo/ Secretaria de Educação e Cultura/Departamento de Cultura, 1969

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Esta região, de fato, mudou completamente. Há tempos não é mais a zona tranqüila e

familiar narrada pelo Sr. Amadeo que, como José Macedo, a conheceu há mais de 40 anos. Ao

descer do Metrô na Estação Bresser, na direção da rua Hipódromo e Rangel Pestana até o

Largo da Concórdia, as imagens vistas são barracas, camelôs, garotos, homens e mulheres,

vendendo diversos artigos nas calçadas, artigos nacionais e importados como relógios, óculos,

jogos eletrônicos infantis, materiais como pilhas, baterias, entre outros. Seguindo-se na direção

Oeste, encontram-se várias casas nordestinas conhecidas como “Casa do Norte”, Casa do

Norte Estação do Brás, Casa do Norte Feira de Caruaru, Casa do Norte Pernambucana, todas

em ruas vizinhas como a Rua Almeida Lima, Rua Paulo Afonso, Rua Cavalheiro.

O Bairro do Brás continua, ainda hoje, sendo um ponto de referência de vendas, de

comércio de produtos da região Nordeste. Foi ponto de passagem dos nordestinos para

ingressar na metrópole, e hoje, esses canudenses residem na Zona Sul da cidade de São

Paulo, especificamente na região de Santo Amaro, em bairros como Jardim Ibirapuera,

Piraporinha. Esta região é velha conhecida dos canudenses, desde a chegada de José Dantas

em 1968, do José Alôncio em 1980, do Gilberto nos anos de 1988, e hoje é o local de maior

concentração de canudenses.

Nas narrativas destes canudenses, o trabalho é um diferencial na luta pela sobrevivência,

ou seja, ajudar a família em São Paulo, ajudar a família em Canudos, cá e lá, este vai e vem,

este movimento é o movimento para garantir a sobrevivência de todos. Para enfrentar o cotidiano

e o ritmo de trabalho, estes canudenses criaram espaços do não-trabalho, momentos de lazer,

onde a busca de suas raízes se faz presente, ou seja, estar juntos, enquanto canudenses, viver

momentos significativos juntos, no aprender a sobreviver na cidade.

Com a preocupação de conhecer o universo, onde vivem os canudenses, eis algumas

informações sobre esta região que abrange diversos bairros, e está organizada como uma

subprefeitura da grande região metropolitana de São Paulo.

Santo Amaro é um espaço, onde eles se constituíram, refazem o viver constantemente,

é o local do trabalho, da moradia, do estudo, entre outros. Santo Amaro tem uma população de

218.558 habitantes, e a população em Idade Ativa é de 157.759. Possui 01 terminal de ônibus,

03 corredores de ônibus e 02 estações de metrôs.

a) Atividade Econômica (fonte: Ministério do trabalho e Emprego 2000)

Atividade estabelecimento % Emprego %

Serviços 4.553 49,46 60,313 49,37Comércio 3.369 36,60 26,317 21,54Indústria 955 10,37 27,098 22,18Const. Civil 306 3,32 8.359 6,84

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b) Equipamentos e Vagas na rede Municipal de Ensino

Escola Quantidade Vagas

Ensino Infantil 06 3.232Ensino fundamental 11 15.031EducaçãoJovens/Adultos 01 700Educação Especial 01 328Ensino Médio 01 1949

c) Taxa Analfabetismo: 1,92%

Evasão escolar: 1,23% (Sec. Educação 2003)

d) Educação Chefe de família:

Com ensino fundamental: 73,97%

Com ensino Médio completo: 62,94%

Média de anos de estudos: 11

e) Indicadores Socioeconômicos (rendimentos chefes de família)

Sem rendimento 6,32%Até 05 salários mínimos 22,52%+ de 05 a 20 salários mínimos 41,45%+ que 20 salários mínimos 29,70%

f) Indicadores Habitacionais e Saneamento

Numero de domicílios 69,067%Numero de moradores domicilio 3,16Percentual domicilio com rede água 99,76Percentual domicilio com esgoto 95,46Percentual domicilio com lixo coletado 99,86

g) Favelas: 43; População favelada: 6.985

h) Percentual população em favela: 3,20%

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Este bairro funciona como pólo central na Zona Sul da cidade, prosperou com a

instalação de diversas indústrias por imigrantes europeus, chegando a responder por 50% do

recolhimento de impostos nos anos de 19770, segundo dados da subprefeitura.

Atualmente a área ocupada pela subprefeitura é menor do que a que formava o

município, abrangendo os distritos de Campo Belo, Campo Grande e Santo Amaro. A exemplo

de outras regiões de São Paulo, sofreu esvaziamento das indústrias, atraídas para o interior, e

desenvolveu o setor de comércios e serviços, principalmente na Chácara Santo Antônio, onde

as multinacionais da área de tecnologia ocupam diversas áreas, estimuladas pelo preço mais

baixo do que em outros bairros nobres da cidade.

Segundo dados da associação de moradores, o valor por metro quadrado na chácara é

de R$ 2.300,00, abaixo dos R$ 4 mil cobrados no Morumbi, por exemplo. Essas multinacionais,

como Philips, Oracle, Pfizer, Deustche Bank e Schering do Brasil, começaram a chegar há

cerca de 10 anos e deram um perfil moderno ao bairro, que entre os anos 30 e 50 fora industrial,

impulsionado por firmas têxteis.

As multinacionais impulsionaram a construção de condomínios residenciais e de seis

hotéis de porte, como o Transamérica e o Melià. A Chácara, conta também, com a Câmara

Alemã de Comércio, Câmara Americana de Comércio, três prédios da Universidade Paulista

e vai receber instalações da Universidade Bandeirante de São Paulo – Uniban.

Santo Amaro continua concentrando as pessoas da periferia Sul, que vão procurar

emprego ou estão simplesmente de passagem. As distorções sociais são percebidas,

principalmente no mar de barracas de ambulantes com seus toldos azuis que tomam conta do

centro histórico, e em 43 favelas distribuídas pela região. 129

Retornando para as trajetórias dos canudenses e acompanhando José Macedo que

chegou à cidade de São Paulo em 1952, em suas narrativas, ele fala sobre os significados

desta experiência Cheguei em São Paulo, fomos pra uma pensão na Avenida Tiradentes,

perto do Rio Tietê, esse tempo era 1952, 1953(...). No entanto, para contar este período de

sua história, rememora o início de tudo:

José Macedo: Em 1950, eu tinha 20 anos e fui com um primo buscar uma boiada

no Mato Grosso e na volta fiquei na fazenda de Água Branca no interior de São

Paulo em Venceslau. Eu saí de Canudos porque todos os meus irmãos estudaram

e eu estudei por minha conta. Lá, sozinho na fazenda, tive poucos dias de escola,

então eu pegava o livro e ia escrevendo... E foi assim... Porque é fácil aprender a

ler. Na minha região foi feita uma pesquisa e lá as pessoas são mais inteligentes

porque lá as pessoas aprendem sozinhas. Estudei pouco porque tudo na minha

129 Extraído do site cidades@ da Prefeitura da cidade de São Paulo.

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vida foi na prática. Se a pessoa aprende o ABC e nem sei como é na escola hoje,

mas se você aprende a ler um nome, depois a fazer outro, é só inteligência, não

precisa de mais nada. Meu tio formou-se na fazenda em 1948, e eu cheguei na

fazenda dele e ele tinha uma média de 50 livros, formado por vários irmãos, sem

escola nenhuma. Então não precisa: você pega um jornal, uma revista e todos os

nomes você acha difícil de ler. Mas se você escreve ele, copia, e vai escrevendo,

e copia um e lê outro, e aí pega a revista toda. Pega a bíblia e faz a mesma coisa.

Aí vai pegando o livro... 130

Por se considerar inteligente, José Macedo conseguiu tudo o que desejou na vida.

Conhece São Paulo, como ninguém, após todo sofrimento e uma vigorosa caminhada de longos

anos para ser o que é hoje. José Macedo faz questão em registrar suas narrativas e indagou-

me se havia interesse em escrever um livro sobre a sua vida.

Este canudense demonstra uma necessidade de falar de sua vida e de seu povo, de

deixar sua história escrita para ser conhecida por todos. Expressa o desejo de ter um livro

sobre sua vida e valoriza muito, a forma do registro escrito. Este não teve acesso à escola

como seus irmãos. José Macedo vai narrando suas trajetórias e, neste diálogo, busca-se

compreendê-las, enquanto um processo e não como dados isolados, estagnados no tempo.

São experiências vividas, dentro de um movimento e dinâmica social, ainda em formação. É

importante, nesse sentido, ter presente uma argumentação de Alessandro Portelli, ao afirmar

que a memória é um pouco como a língua, isto é, a memória é um ato individual, porém é

construído socialmente e os modos de recordar, são construídos através de experiências

partilhadas, com estrutura cultural partilhada:

Em todo o nosso trabalho está presente a questão da linguagem... Quando

trabalhamos com fontes orais não estamos de frente de um texto, como quando

encontramos um documento, mas em frente a uma performance, que sabe que

é um ato de uma pessoa que faz uma colocação no tempo, improvisada, dentro

de um diálogo e que se veste de linguagem. 131

130 Depoimento concedido, em sua casa Santos/SP, em junho de 2003.131 Obra Citada.

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Nas narrativas de José Macedo, as motivações que apresenta para sair de Canudos,

expressam uma relevância aos estudos escolares a que seus irmãos tiveram acesso e ele não

seguiu o mesmo caminho; no entanto, aprendeu na vida, tudo o que os irmãos aprenderam. Em

outro momento da entrevista, narra a situação de sua família, quando saiu para o Mato Grosso

e depois para São Paulo:

José Macedo: Meus pais não moravam mais em Canudos. Em 1935 mudaram

para Feira de Santana, aí mudei com eles. Meu pai largou a fazenda, já era vigia

de uma usina de algodão e meus outros irmãos mais novos estudando em Feira

de Santana. Aí meu primo foi no pau de arara para São Paulo e eu fui junto. 132

José Macedo: Aí eu saí desta fazenda em São Paulo porque eu estava de saco

cheio. Eu fazia a medição de uma cerca – tem tantas tarefas de cerca, tem

Diferente de José Dantas, que saiu de Canudos, mais de dez anos depois, e que

em certa medida, foi incentivado pela família, José Macedo sai de Canudos, em uma outra

situação, que deve ser considerada em sua trajetória. Seus pais residiam em uma outra

cidade, Feira de Santana; o fato de não morar mais na fazenda, onde fora criado e que era

de seu avô e o sentido que é dado às novas condições de vida em uma cidade pequena,

com escola para as crianças. Todos esses fatos podem ser considerados importantes no

contexto, dentro do qual, José Macedo decidiu mudar para um trabalho, no Estado do Mato

Grosso, e depois em São Paulo, ambos especificamente em uma fazenda.

Gilberto Nascimento e José Dantas foram na maior parte de suas vidas,

trabalhadores fabris, dando um salto significativo no modo de vida, ao chegar a cidade de

São Paulo, pois estes assumiram outra forma de viver, tendo um outro ritmo determinado

pelo trabalho em fábricas, ao passo que José Macedo, ao sair de Canudos, continuou

vivendo a experiência de homem do campo, pois trabalhou, durante mais de um ano em

fazendas, na agricultura e cuidando de animais.

O trabalho na fazenda, em Venceslau, era diferente do que fazia na roça, em

Canudos, onde José Macedo afirmou que “tomava conta de tudo”. Ao discorrer sua

experiência no interior de São Paulo, focalizou o trabalho na fazenda de algodão e as

discussões com o dono da terra, lembrando ainda, das dificuldades que enfrentou. Ele

recriou o ambiente da fazenda e as dificuldades enfrentadas. Por isso, José Macedo, ao

iniciar sua fala, aponta que sua vida é cheia de histórias tenho uma história muito grande

pra contar:

132 Depoimento concedido em sua casa, Santos/SP, em julho de 2003.

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tantas tarefas de cavados... E o patrão dizia que não era. Aquilo foi esquentando

minha cabeça... Nessa fazenda nós tínhamos um galpão de madeira. Eu tinha

uma única roupa que lá no meu lugar era terno para ir pra festa. Aí a vaca abriu a

porta de madeira e comeu minha roupa. Fiquei nu, de calção, durante onze meses,

feito índio, dentro do mato. Tomava banho de cachoeira... Peguei uma varíola,

fiquei doente e um casal me salvou, sem ninguém saber. Eles ganhavam um litro

de leite por dia e dividiam comigo. Naquele tempo tinha pouco gado, mas graças

ao casal eu tomava dois copos de leite por dia. Quase quarenta dias aí fui

melhorando. O trabalho era plantação de algodão: plantamos mais de dez

alqueires, porque estava diminuindo, e plantamos uns vinte alqueires de capim. A

fazenda de algodão passou a ser de capim para criar gado – o contrato era esse:

três alqueires de algodão para plantar com o pressuposto que dentro do algodão

tinha que plantar capim. Então dava algodão e dentro do algodão, o capim.133

Este canudense, ao falar de suas experiências, o faz de uma maneira que prende atenção,

é eloqüente, é envolvente, torna as narrativas um ato quase autobiográfico de uma maneira

novelística. Ouvindo-se suas histórias e como conduziu a narrativa, é possível indicar que José

Macedo projeta em si mesmo a própria história do avô que, segundo ele, era um homem “valente”

e forte. Ele se coloca como um “herói”, que desbrava estradas e rompendo com as leis no

trabalho da fazenda, conduz seu povo para a cidade e tentar uma vida melhor. Ele se constrói

como sujeito, como canudense na fazenda, em Canudos, no Mato Grosso e na cidade de São

Paulo. É a maneira dele se firmar como sujeito, em meio a tensões vividas em São Paulo, e na

Bahia. Ele conta que enfrentou tudo, levou todos para São Paulo, demonstrando desta forma,

uma solidariedade concreta.

Quando indagado sobre sua chegada na cidade de São Paulo, ele fala de forma

espontânea suas experiências:

Telma Bessa: Conta como foi a mudança para São Paulo.

José Macedo: Ajuntei as pessoas tudinho, os cheques, era bem uns doze e levei

pra São Paulo. Quase que me matam lá. Porque não pode tirar ninguém das

fazendas e eu tirei os homens do meu primo, que também ficou me devendo um

pouco. Cheguei em São Paulo fomos pra uma pensão na Avenida Tiradentes,

133 Depoimento concedido,em sua casa Santos/SP, em junho de 2003.

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perto do Rio Tietê, passei dez dias, tirando os documentos de todo mundo e

empregando todo mundo e tinha uma cunhada do meu primo que tinha duas

crianças, então precisava de roupa aí eu peguei o cobertor, rasga o cobertor no

meio e fez uma roupa pra cada um. Esse tempo era 1952, 1953, por aí... Empreguei

todo mundo né? 134

A narrativa de José Macedo aponta que este canudense vai cruzando tempos, imbricando

pessoas, lugares e se coloca como um desbravador de terras. Ele vai se auto-revelando, aponta

sua trajetória de trabalho, sua vida familiar e amorosa, entre outros. Ao chegar em São Paulo,

jovem e solteiro, viajou para o interior paulista, no entanto, tempos depois, organiza seus

familiares para viver na capital, onde apresenta uma pluralidade de trabalhos profissionais que

realizou e a mudança para a cidade de Santos, para trabalhar na empresa DOCAS, na qual se

fixou até hoje.

Sobre os empregos que teve, narra que trabalhou na roça, na construção civil, na cavalaria

do exército, numa metalúrgica e nas DOCAS em Santos, onde se aposentou. Pôde exercer

ainda, a profissão de taxista; foi dono de uma plantação de bananas em Juquiá/SP, foi cobrador

de ônibus, vigilante, e por fim, atualmente, é pedreiro.

Pode-se acompanhar sua narrativa neste percurso, no qual ele fala de forma espontânea

José Macedo: Aí fui trabalhar na construção. O encarregado disse: “em cima do

meu escritório tem um quarto que já está pronto. E no fundo tem um barracão

que você pode ficar e fazer comida junto com os outros operários”. E assim eu

fiz. Fiquei trabalhando nessa obra quando conheci um expedicionário da guerra

que estava aleijado e me ofereceu para trabalhar na cavalaria do Exército. Ele

falou: “você vai, não é pra ficar nessa obra não.” Me deu um cartão e eu fui.

Cheguei lá e falei com o capitão que me perguntou: “ você sabe ler e escrever?”

“Sei” . Faz as quatro operações de conta? “Faço”. Aí disse: “tira a roupa”. Eu tirei

e aí ele disse: “Faz exercício, pra frente, pra trás, abre a boca, dente tudo bom...”

Aí tirou minha altura e perguntou: “você sabe montar?” Eu disse: “na minha região

eu era domador de boi bravo, já montei cavalo, jegue, boi”. No final perguntou:

“você sabe fazer uma ocorrência?” “Eu sei”. “Faz aí uma pra eu ver”. Então eu

disse: “ocorreu na rua São João, n. 452, colidiu carro tal com carro tal, placa tal,

dirigido por fulano de tal...” Eu já estava pronto pra ir pra rua trabalhar. O capitão

disse: “Pode jogar a farda em cima dele e acabou”. 135

134 Depoimento concedido, em sua casa Santos/SP, em junho de 2003.135

Idem.

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Como aponta José Macedo em sua narrativa, após todo este processo interrogatório,

ele por si mesmo decidiu não trabalhar no exército porque dias depois, encontrou um amigo

com a resposta de outro emprego cujo resultado ele estava aguardando. Ele afirmou larguei a

cavalaria e entrei na firma metalúrgica:

José Macedo: Aí encontrei um rapaz que estava na obra me procurando e ele

trazia a resposta de uma inscrição que fiz numa empresa metalúrgica. Eu fui e

entrei na turma de torneiro mecânico. Larguei a cavalaria e fui pra lá. Aí fui demitido

e depois entrei nas DOCAS pois tinha um amigo que trabalhava lá. Isso foi no dia

02 de junho de 1954. As DOCAS era em Santos e peguei minhas coisas, paguei

as contas e fui morar com um amigo de Alagoas e depois numa pensão. Trabalhei

nas DOCAS 28 anos.136

A atenção redobrada para as falas de José Macedo é espontânea, pela sua forma de

cativar, a arte de narrar suas estórias e por outro lado, “prender” a atenção. Além das riquezas

de suas experiências, da pluralidade de suas práticas sociais, ele no seu estilo de falar, atribuía

a si mesmo valores e comparações como “descobridor de novas terras”, recorrendo também a

adjetivos caracterizadores da inteligência, da sabedoria, talvez auto-elogios para si mesmo e

seu povo, considerando um possível legado do avô.

No contexto da entrevista, José Macedo ao narrar suas experiências, o faz de uma maneira

envolvente, bem mais que todos os entrevistados. A diferença do seu jeito de falar deve ser

considerada, pois suas narrativas orais podem ser relacionadas ao que Alessandro Portelli

designa funções narrativas, ao falar sobre o trabalho com as fontes orais: São funções narrativas

essenciais: as emoções do narrador, sua participação na história e a forma pela qual a história

o afetou, ou seja, fontes orais são fontes narrativas populares.137

Na convivência e no diálogo com os nordestinos entrevistados, observei que nas

memórias dos migrantes canudenses são contadas histórias significativas de perdas e vitórias,

frutos de uma luta, da sobrevivência e formas de vida conquistadas a partir da saída de Canudos.

Cabe aqui uma reflexão inspirada por Alessandro Portelli a respeito do tempo e da

atividade de entrevistar. Este autor faz pensar no ato de narrar uma história, ou seja, contar uma

história, segundo ele, é uma luta contra o esquecimento, explicitando o legado que o narrador

deixa para o futuro. Mais ainda, aponta questões da relação entre entrevistador e entrevistado.

Em certa medida, o diálogo, com os canudenses nasceu do meu desejo e curiosidade em

136 Depoimento concedido, em sua casa Santos/SP, em junho de 2003.137 PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente”. In Projeto História: Revista do Programade Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, n. 14,1997, p. 25-

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conhecer algo que ainda não sabia, e da vontade do narrador de falar.

Este encontro com os migrantes canudenses é uma experiência que transforma ambos

ao construir uma dimensão da “co-autoria” do trabalho desenvolvido, reafirmando que esta

interação, entre historiador e fonte, possibilita uma nova forma de contar histórias, pelo fato de

essa história, contada muitas outras vezes, passa a ser contada especialmente para uma/um

ouvinte profissional e isso, muda o ritmo, a narrativa, enfim, modifica a história. Não se trata de

alterá-la, para melhor ou pior, simplesmente modifica a narrativa, ao transformar a modalidade

da linguagem oral em modalidade da linguagem escrita, ao fazer isso, constata-se uma

interferência, pois para os historiadores,

Não se trata de salvar a “autenticidade” da “infecção” das fontes trazidas pelo

contato com o historiador. Deveríamos preferivelmente trabalhar ao contrário:

deixar que nosso discurso seja contaminado – hibridizado, mestiçado e

“miscigenado” – pela característica novelística com que narradores contam sua

história.138

Assim visto, ao ouvir José Macedo, seguindo sua trama, ao ver as fotografias de seu

avô, sua avó, na fazenda em Canudos, fotos suas em Santos, fui conduzida a um mundo de

imagens, ações, temas, relacionamentos, descrição de pessoas, entre outros. Tudo a partir do

interesse de José Macedo e, de vez em quando, complementadas por alguma pergunta ou

esclarecimento e, portanto, compreendo-se que a narrativa é conduzida pelas histórias deste

homem no transcorrer de sua vida.

José Macedo ao mostrar algumas fotos de sua família na fazenda, enfatiza que ninguém

mais possui fotos iguais, somente ele. Por meio de suas narrativas, sente-se vitorioso na

constante luta para manter essa memória, talvez esteja até mesmo realizando uma avaliação

de si mesmo, de suas opções, de suas “andanças”, enfim uma visão, em que avalia suas práticas

durante esse tempo vivido.

Em se tratando da receptividade de José Macedo ao saber que seria entrevistado,

observou-se que ele abriu sua casa, sua vida, seus arquivos e afirmou que se preparou muito

para falar comigo, sobre histórias que só ele conhecia. Sua narrativa contém emoção, graça,

tristeza e vigor, ao lado dos comentários sobre as fotografias exibidas, demonstrando uma fala

com uma cadência, um ritmo peculiar.

Ele se preparou muito bem para a entrevista, separou as fotos por década, por

temporalidade vivida numa ordem cronológica, seus avós na fazenda, sua mãe, sua irmã, ele

quando rapaz, os primos, fotos em Santos e em São Paulo.

138 PORTELLI, Alessandro. O Momento da minha vida - Funções do Tempo na História Oral. Publicado pelaprimeira vez em International Oral History Journal, II, 3 (Outono, 1981) 162-180.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Hoje, José Macedo fala de um possível retorno à Bahia, mas ao mesmo tempo afirma

que, reside somente com sua esposa, pois seus filhos estão crescidos, e eles não fazem planos

de sair da cidade de Santos, local, onde construíram a vida. Em sua vida foi proprietário de

chácara, possuiu vários apartamentos, conseguiu um nível de vida bom, mas hoje, segundo

suas narrativas, está em crise, está “no vermelho” numa situação difícil, e por isso, não faz

muitos planos para o futuro.

Este canudense, disposto a contar toda sua história, apresenta de certa forma, uma

dinâmica e movimentação presentes nas vidas dos canudenses. Os deslocamentos vividos de

maneiras diferenciadas demonstram que este vai e vem é constante. As idas e vindas ocorrem,

desde 1940, e estes deslocamentos continuam até hoje, com uma rede de canudenses

consolidada, com apoio e estrutura de moradia para os recém-chegados á cidade de São

Paulo.

Neste processo há os que saíram de Canudos e tiveram ousadia para enfrentar o

desconhecido e se reconstruir, construindo um futuro diferente; há os que ficaram em Canudos

e não quiseram/puderam tentar a vida em outro lugar; há os que, ainda hoje, aguardam a

oportunidade para uma vida com melhores condições de trabalho; há os que decidiram não

sair de Canudos e a vida se desenrola ao lado dos familiares, na terra natal; há ainda aqueles

que saíram de Canudos e voltaram, viveram a experiência do deslocamento, da constituição da

vida, em outro ritmo e lugar, e optaram pela vida na cidade de Canudos. Todos estes canudenses,

que se refazem no cotidiano, na cidade de São Paulo ou em Canudos, atualmente, narram

suas experiências e suas histórias de forma a recriar suas próprias vidas e sonhos.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

III

SÃO MUITAS MEMÓRIAS E OUTRAS HISTÓRIAS 139

139 Esta expressão traz em si uma reflexão desenvolvida pelo Projeto PROCAD - Programa Nacional deCooperação Acadêmica que tem o título Cultura, Trabalho e Cidade: Muitas Memórias, Outras História.Envolve professores e alunos (mestrandos e doutorandos) da PUC/SP e da UFU/MG e espelha-se napublicação do mesmo título Muitas Memórias, Outras Histórias. Déa Fenelon Ribeiro,Laura Antunes (org).São Paulo, Olho Dágua,2004.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

_______Capítulo 6: A história, que eu conheço, é bem outra____________________________

(...) Porque aqui em São Paulo, eu ouvia falar em Canudos,

e chegando lá eu vi que a realidade

e a história de Canudos tinha outro conteúdo,

outro caminho, outra dinâmica.

A história que eu conheço de Canudos é bem outra,

não é aquela que eu li em livros didáticos.

(José Alôncio, 2003)

A narrativa de José Alôncio remete ao campo de disputa, constituído pela memória de

Canudos, propõe a percepção de outras versões e histórias sobre este acontecimento, além

das que se aprendeu na escola. Inúmeras e diferentes maneiras de interpretação, deste período

histórico, foram tecidas e colocam-se a público, por meio de escritas e linguagens, filmes,

artigos, livros, teses acadêmicas, revistas, poesias, peças teatrais, entre outros.

A Guerra de Canudos, ocorrida na segunda metade do século XIX é registrada por

várias visões e análises que se propõem o desafio de uma compreensão melhor daquilo que

se conhece como verdadeiro “massacre”, contra o povo. Pesquisadores de outras áreas do

conhecimento, que não a história, têm dedicado parte de seus estudos no sentido de entender

e “desvelar” Canudos. A partir das pesquisas realizadas e das que estão em andamento, faz-

se necessário reconhecer a importância deste tema para a história, analisando como a

percepção sobre as mudanças nas interpretações dos significados da guerra, chegam aos

moradores, sendo assumidas como marca de identidade.

Num trecho de sua narrativa José Alôncio afirma que, para ele, mudou o conteúdo da

história de Canudos, e compreendeu esse fato ao retornar a Canudos, nos anos de 1990, após

mais de quinze anos residindo na cidade de São Paulo. José Alôncio percebeu a mudança de

interpretação, sobre a guerra de Canudos, no diálogo com os moradores, com diversos

estudiosos e pesquisadores, agentes de pastoral, que lá estavam - num momento de

redemocratização da sociedade brasileira - para estudar e construir novas interpretações desse

período da história brasileira.

A história que eu conheço de Canudos é bem outra, não é aquela que eu li em livros

didáticos. Desta forma, José Alôncio aponta a constituição de interpretações diferentes, que

ele ainda não conhecia a respeito, da história de seu povo, e indica também como vai se

apropriando deste tema e a sua importância sobre a maneira de viver e ser canudense, na

cidade de São Paulo.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Para compreender estes movimentos dinâmicos, as mudanças e o desenvolvimento de

algumas interpretações sobre Canudos, faz-se necessário articular esses aspectos, entre si e,

à percepção dos canudenses, considerando-se a maneira como os familiares dos participantes

da guerra de Canudos compreendem e interpretam esse período histórico.

Ao perceber uma pluralidade de estudos que interpretam esse acontecimento até os

dias atuais indaga-se sobre a força desse tema na história do Brasil. Ao pensar nesta direção,

verificam-se diversos temas co-relatos, que são relevantes à própria história e formação do

povo brasileiro, ou seja, uma reflexão sobre a ação do Estado com seu aparato militar; a forma

violenta com que são tratados os setores populares/marginalizados; o protagonismo de sujeitos

sociais que reagem e lutam por direitos; a rebeldia dos populares, em busca de melhores

condições de vida; a presença de uma religiosidade popular viva no interior do país; a capacidade

de organização dos excluídos; a existência de líderes religiosos que aglutinam setores da

população; e a construção da democracia no Estado brasileiro. Podem-se elencar diversas

questões que se articulam a este tema específico e datado da história do Brasil. Destaque-se

que as discussões públicas, sobre os significados sociais de Canudos, emergem com nova

força, no decorrer da década de 1990, quando se aproxima do seu centenário. Em 1997, essa

discussão já se organizava como um movimento, implicando diversas comemorações e

mobilizações da sociedade.

A década de 1990 foi um tempo de muitas movimentações em torno de Canudos. No

ano de 1993 foi celebrado o centenário da fundação de Belo Monte e a sociedade civil organizada,

a imprensa, pesquisadores e cineastas se deslocaram até a região para o registro de

informações, debates, filmagens entre outros. Neste mesmo ano, a Universidade do Estado da

Bahia - UNEB realizou a III Semana Cultural Canudos; O Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra - MST e a Igreja realizaram romarias com a cartilha Canudos não se rendeu: 100

anos de luta pela terra; o Movimento Histórico pelos Mártires de Canudos fez celebrações com

o tema: Três Canudos, três Paixões e foi lançado o filme, de Antônio Olavo: Paixão e Guerra

no sertão de Canudos.

Neste contexto, vários livros foram publicados dentre os quais, Canudos O Povo da

Terra, de Marco Antônio Villa que é indicativo do tom da época, assumindo um sentido superlativo

para o movimento

Descarto totalmente qualquer explicitação do arraial como uma comunidade

messiânica,sebastianista,milenarista ou socialista utópica e indico a necessidade

de compreender a experiência conselheirista como um grande momento da história

nordestina, onde sertanejos lutaram para construir um mundo novo,enfrentando

o estado dos landlords. 140

140 VILLA, Marco Antônio. Canudos. O Povo da terra. São Paulo, Ática, 1995 .

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Neste processo histórico, o ano de 1997 foi simbólico porque marcou o centenário do

fim da guerra. Diversas atividades culturais, debates, seminários, simpósio internacional, filmes,

cartilhas e livros foram realizadas, em Canudos nesse ano, tornando-se um marco significativo

de novos debates e abordagens para a história. Vale destacar a inauguração de um Parque

Estadual de Canudos, um sítio histórico, arqueológico e ecológico. Nesse período foi lançado o

filme Canudos, de Sérgio Resende, exibido nas grandes cidades do país.

Fig.5 Parque Estadual de Canudos

Fig. 6 Parque Estadual de Canudos

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Fig. 7 Parque Estadual de Canudos

Fig. 8 Vale da Morte

Estas iniciativas, vale dizer, dialogavam com as memórias instituídas sobre a história de

Canudos. Tendo por base escritos e documentos existentes da época, e principalmente a obra

de Euclides da Cunha, Os Sertões, várias análises e interpretações eram colocadas a publico,

no sentido de dialogar com esse documento, acrescentando, recriando, reelaborando esta

análise, ou de outra maneira, reconstituindo outras memórias e histórias, sob outros olhares.

Neste cenário, assim proposto, e no diálogo com a memória identitária, que muitos dos

canudenses entrevistados reivindicam, importa indagar: Como foram se constituindo estas várias

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elaborações sobre Canudos? De que forma chegaram até hoje, no século XXI, traços,

documentos, vestígios e explicações deste fato que tem suas origens no ano de 1893, ano de

fundação da cidade de Canudos, designada por seus moradores Arraial de Belo Monte, moradia

definitiva de Antônio Conselheiro?143

Após cem anos, a discussão volta a colocar em causa as análises diferenciadas que

envolvem todas as questões citadas acima, e ainda, possibilita perceber, Canudos como uma

chaga, um símbolo do Brasil, da luta e afirmação do povo brasileiro, em seu fazer-se histórico.

Chaga que, de forma positivada, é assumida e publicizada pelos canudenses.

Em (re) leituras significativas144 sobre Canudos poderiam ser relacionados campos

diferentes e confrontos, com alguns pesquisadores que são comprometidos com a

problematização da história e memória considerada oficial e, outros pesquisadores, que não o

são. Este conjunto, de registros de autores, com perspectivas diferentes e em diversas

temporalidades, expressa um embate existente nas próprias experiências destes, nos modos

de vida e concepção de mundo que estavam e estão em permanente conflito.

Nesse sentido, constitui-se um desafio entender as diversas interpretações, sobre esse

acontecimento, posto em discussão em vários setores da sociedade, tais como a Academia e

a Igreja, e como estas mudanças ocorrem, ao longo dos anos, construindo, assim, um mosaico

de análises e (re) elaborações, em um campo repleto de tensões, onde estão presentes

recordações pessoais, bem como institucionais.

Ressalta-se a importância da realização de um diálogo com a bibliografia a respeito de

Canudos, que, a partir do centenário, teve uma outra e nova visibilidade, contribuindo, assim,

para o enriquecendo das reflexões sobre esta temática.

Com referência a outras abordagens, convém lembrar as histórias de José Alôncio,

quando se remete para além dos livros escolares e, neste caso, podem ser lembradas muitas

memórias que não estão nos circuitos ditos oficiais. Para tanto, busca-se valorizar outras histórias

existentes, excluídas da história, porém latentes, vivas no cotidiano, nos espaços outros que

não a academia, a escola, o arquivo. São dimensões de uma disputa, que se traduzem sob

formas diferentes, em lugares, tempos e práticas, também diversificadas, como sendo uma

luta significativa e atualizada na afirmativa, que “são lutas de ontem e de hoje também”.

143 Há divergências sobre o nome da cidadela, e seu registro possui várias grafias: Belomonte, BelloMonte, Belo Monte, Belo Montevidéu.144 Entende-se por releitura significativa atribuição de sentidos ao que foi lido e/ou interpretado. Cf.TAVARES, Celeste Fragoso. A Palavra Escrita Pelo Ensino Da Leitura Significativa Na Aprendizagem DosRepertórios Culturais Do Conto De Fada Pele De Asno – Charles Perrault- Mestrado em Língua Portuguesa,PUC/SP , 2004.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Alessandro Portelli aponta ainda, a necessidade de confrontar memórias de um mesmo

campo, por serem fragmentadas e diferentes, não somente entre uma memória considerada

“oficial”, mas diversas memórias existentes, das instituições, das igrejas, dos grupos, das

famílias, enfim, as memórias múltiplas e divididas.

Também vale considerar que, nestes últimos 20 anos, o tema se transformou em

documentários, dissertações de mestrado e teses de doutorado, sites, filmes na TV, cinema

entre outros. Além disso, está presente nas memórias da história do país, principalmente na

cidade de Canudos. Trabalhos acadêmicos foram elaborados sobre o tema Canudos no ano

de 1996, na USP e UNICAMP como a dissertação Revisitando Canudos Hoje no Imaginário

Popular, da pesquisadora Patrícia de Santana Pinho, com orientação da Professora Maria

Teresa Sales de Melo Suarez, na UNICAMP. Outro trabalho, uma tese de doutorado na USP dopesquisador José Maria de Oliveira Silva com o título Rever Canudos - Historicidade e

Religiosidade Popular (1940-1995) sob a orientação do Professor Marcos Antônio da Silva na

USP.146

Canudos é tema polêmico, e discutido, a partir das décadas de 1970, 1980 e 1990

significando, que, ao existirem várias versões sobre este, é possível entender que a memória

é um campo de disputas, e, desta forma, são “memórias divididas” como informa Alessandro

Portelli. Em seu estudo, sobre um confronto entre alemães e italianos, no ano de 1944, este

autor aponta a necessidade de o historiador interpretar criticamente todos os documentos e

narrativas, comentando inclusive, da real possibilidade do confronto, entre duas memórias, a

que designou “memória dividida”:

Na verdade quando falamos numa memória dividida, não se deve pensar apenas

num conflito entre a memória comunitária pura e espontânea e aquela ”oficial” e

“ideológica”, de forma que, uma vez desmontada essa última, se possa

implicitamente assumir a autenticidade não mediada da primeira. Na verdade

estamos lidando com uma multiplicidade de memórias fragmentadas e

internamente divididas, todas de uma forma, ou de outra, ideológica, e

culturalmente mediadas.145

145 PORTELLI. Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito,política luto e senso comum”. In: Ferreira, M. de M. e Amado, J. (orgs). Usos e abusos da História Oral. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 1988p. 106-109.146 Retirado do site portfolium.com.br.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Estes e outros trabalhos direcionam-se para o momento de debates e redescoberta da

História de Canudos analisando-a através de diversas fontes como poemas, artigos de jornais,

revistas, livros, romances, músicas, cânticos, filmes e peças de teatro, ampliando assim as

elaborações sobre este tema. Estudam e criam novas interpretações nos aspectos cultural,

ideológico e religioso. 147

A história de Canudos, que para José Macedo e José Alôncio são as histórias de seus

antepassados, é a história do povo brasileiro, dos canudenses de hoje. Quando explicitava

que meu trabalho se tratava dos canudenses, ouvi sugestões de como pesquisar então a

pesquisa é sobre a guerra? Deve falar que todos os canudenses foram assassinados; não

esqueça de dizer que mesmo depois de tanta luta, Canudos continua ao Deus dará; deve

incluir os familiares dos que participaram da guerra. As sugestões foram no sentido de “dar

voz” aos canudenses, de fazer com que as opções e vidas dos mesmos aparecessem na

história do país e que o povo simples fosse personagem e sujeito da história.

O texto mais conhecido que remete as histórias dos livros lidos nas escolas, que fala

José Alôncio, são as elaborações de Euclides da Cunha, reunidas no livro do ano de 1902, Os

Sertões.148

Na história e na memória social sobre Canudos há que destacar a importância e o peso

da obra de Euclides da Cunha, que constituída como relato jornalístico de época, transformou-

se na ”voz autorizada” dos setores letrados da sociedade, para divulgar o ocorrido, em Canudos.

É considerada como a principal referência para os estudos sobre Canudos. Desta forma, houve

em certa medida, um “ofuscamento” de outros textos da época, um “abafar” de obras como o

texto de Martins Horcades Descrição de uma viagem a Canudos e o Libelo Republicano de

César Zama. Ambos expressavam um teor de denúncias dos crimes cometidos contra a

população de Belo Monte.

A obra Os Sertões passou a ser uma leitura quase exclusiva para o estudo da guerra de

Canudos, durante os cinqüenta anos que se seguiram. Considera-se que este documento, escrito

por Euclides da Cunha, foi se constituindo e se afirmando como único publicizado; constata-se

que este se tornou um monumento, como aponta Le Goff, monumento que é um sinal do passado,

ou seja, um sentido de perpetuação do passado. É a partir desta reflexão que se localiza a

polêmica que tem por base o trabalho de Euclides da Cunha, que não é somente um relato

mas uma pesquisa que se transformou em um monumento, e, segundo o autor do livro Universos

em confronto: Canudos x Bello Monte (Sérgio Guerra), se tornou um “monumento aos

vencedores”.149

149 LE GOFF, Jacques. História e Memória. (Tradução de Bernardo Leitão). Campinas, UNICAMP, 1990.

148 Apesar de não estudar profundamente esta obra, é importante saber que este autor, carioca, escritorenviado ao sertão para fazer a cobertura jornalística de Canudos, militar reformado, republicano e suaobra, num primeiro momento, demonstrou indiferença e desprezo aos sertanejos, apresentando-os àsua sociedade como “mestiços de raça inferior” representantes do atraso e, seguidores de um “fanáticoinsano” chamado Antônio Conselheiro que era considerado um “gnóstico branco”, “um bufão com delíriosde apocalipse”. CUNHA. Euclides da. Os Sertões. 33ª edição – Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1987.

147 Retirado do site portfolium.com.br.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Neste contexto Marco Antônio Villa enfatiza que esta obra acabou se transformando em

uma barreira para o conhecimento histórico da comunidade criada por Antônio Conselheiro. 150

E, como afirma Eduardo Menezes, existe até hoje, um significativo grau de intolerância

e de incompreensão teórica desses movimentos de que faz parte o de Canudos, mesmo

entre alguns de nossos estudiosos aparentemente melhor instrumentados. 151

Convém estar atento às várias produções do conhecimento, visto que nas décadas

seguintes, esta obra era, a única considerada e cuja exclusividade, sufocou escritos

contemporâneos a ela, como o romance do jornalista Manoel Benício, escrito no ano de 1899,

três anos antes de Os Sertões, 1902. A obra de Manoel Benício continha dados e análises

sobre Canudos e, no entanto, só obteve uma reedição, quase cem anos do ocorrido, por ocasião

das comemorações do centenário, em Belo Monte.

Por outro lado, outras elaborações sobre este tema nasciam, e outras visões eram

divulgadas, como o livro do historiador Edmundo Moniz, no final da década de 1970 que, buscou

desmistificar a figura de Antônio Conselheiro e sua prática, ao afirmar:

Canudos não era aquele lugar de refúgio de fanáticos, mal feitores e preguiçosos,

imagem que muitos tentaram difundir... Ali progredia uma cidade tranqüila e

labutadora, de habitantes que se dedicavam a agricultura, à criação e ao

artesanato. Ali era o refúgio de todos os camponeses que eram expulsos de

suas terras,perseguidos pelos latifundiários e pelas autoridades policiais e políticas.

Canudos acreditava numa cidade ideal dos que acreditavam numa existência

próspera e feliz 152

150 VILLA, Marco Antônio. Canudos. O Povo da terra. São Paulo, Ática, 1995.151 MENEZES. Eduardo. D. B. A historiografia tradicional de Canudos152 MONIZ, Edmundo. A Guerra social de Canudos. Rio de Janeiro, civilização brasileira, 1978. EdmundoMoniz nasceu na cidade de Salvador, Bahia, em 2 de novembro de 1911. Formou-se em Direito e, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde, em 1929 começou a trabalhar nas publicações “A esquerda” e “A Batalha”.Fazia o trabalho de redação, reportagem e, inclusive, administração. Em 1968, é exilado através daEmbaixada do México no Rio, passa pela Argélia e cumpre exílio em Paris. Regressa em 1976. Foi diretordo Serviço Nacional do Teatro, nos governos Juscelino Kubitschek e João Goulart. Tem vários livrospublicados, entre eles estudos sociais (“O Espírito das Épocas”), obras de teatro, com três peças e orecente “A Guerra Social de Canudos”, escrito no exílio.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Nesta seqüência de publicações sobre Canudos vale considerar os escritos de Rui Facó

do ano de 1976 em que faz um questionamento à época

Deveria o homem do campo permanecer inerte, passivo, cruzar os braços diante

de uma ordem de coisas que se esboroa sobre ele? Neste contexto a revolta

pode ser a mais justa reação (...) pega em armas (...) apenas para sobreviver em

um meio que é seu.153

Constata-se, nestas reflexões, que as análises e as interpretações, sobre os significados

de Canudos, se transformam, as novas interpretações aparecem apesar das restrições ao

debate público imposto pela censura da ditadura militar.

O tempo do silêncio formou, em certa medida, um “hiato”, um corte, um período em que

memórias existiam, no entanto não se explicitavam, não havia debates sobre o assunto, sendo

este fato histórico, marcado como uma memória nacional, como “versão oficial”, uma forma

única de remeter ao tema. E todo este processo foi vivenciado pelos canudenses, através das

diferentes gerações.

Este processo é afirmado por José Alôncio, que reaprendeu sua própria história, e recorda

que a história dos seus antepassados não eram “permitidas” publicamente. Em certa medida,

estas memórias nem sempre puderam vir à tona, nem sempre tiveram expressão social. Quando

indagado, sobre sua visão da história de Canudos, José Alôncio lembra dos acontecimentos,

quando morava em Canudos,

José Alôncio: Até meus treze anos, meus avós não passaram a história de

Canudos porque ninguém falava. Era negócio meio proibido. Falar da guerra, de

Conselheiro, era contravenção. Era um negócio que Antônio Conselheiro era o

pior mal da terra: era considerado comunista sectário ou então fanático religioso.

Era proibido falar dele...O pessoal queria mais era esquecer tudo isto. O pessoal

se sentia mal... Inclusive muita gente comenta que Canudos era feita só de ladrão,

marginal, prostitutas, porque lá existiam os negros que fugiam das fazendas.

Eram pessoas humildes que queriam uma vida melhor para eles... Eu vim pra

São Paulo muito jovem.154

154 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

153 FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. 4ª Edição, Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1976. jornalista eescritor, Rui Facó nasceu em 4 de outubro de 1913, na cidade de Beberibe, no Ceará. Filiado ao PartidoComunista Brasileiro, além de artigos e reportagens sempre tendo o povo como tema, Cangaceiros efanáticos é obra póstuma, lançada em 1963, um clássico no assunto. Mas foi em fins de 1958 que escreveuseu primeiro artigo sobre Canudos: “A guerra camponesa de Canudos”. Morreu no dia 15 de março de1963, aos 50 anos, num desastre de avião no Rio de Janeiro.

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Este tempo do silêncio vivido por José Alôncio é analisado também por uma freira,

Delires Braun, que dá seu depoimento ao discorrer sobre o trabalho pastoral, nas comunidades

em Canudos, no ano de 1989. Ela faz parte de uma congregação “Irmãs Scalabrinianas” que

possui como carisma especial, o trabalho com os migrantes e incentivou, nas comunidades,

uma reflexão sobre a guerra de Canudos, inspirada na Teologia da Libertação. Ao ser indagada,

sobre sua atuação pastoral na cidade de Canudos e em especial, sobre o assunto da guerra

de Canudos, ela diz

Quando a gente começou a resgatar a história de Canudos, a gente percebia muito

medo das comunidades, do povo. Eles carregavam uma insegurança, olhavam a

gente assim, preocupados, porque muitos diziam: ‘se vocês forem atrás das irmãs,

do jeito que elas querem formar de novo comunidade, vocês vão ver que a guerra vai

vir de novo (...) A gente começou um trabalho nas comunidades e uma coisa a gente

observava: o povo sentia medo de falar de Canudos, da história deles. 155

Na conjuntura da redemocratização da década de 1980 esta história foi sendo reescrita,

reconstruída, com a participação de movimentos eclesiais, estudantis, de trabalhadores,

mulheres, entre outros. Nesse movimento histórico, de transformações sociais, se constrói uma

nova leitura sobre Canudos. Vários intelectuais militantes de tradição de esquerda, reescrevem

esse capítulo da história do Brasil. Uma tentativa de intelectuais revolverem uma memória que

até então foi “sufocada”, menosprezada socialmente.

E esse movimento histórico nacional possibilitou uma transformação social que mudou

dimensões da memória, que possibilita que hoje exista uma nova visão sobre este evento da

história brasileira e permite que se fortaleça um grupo de canudenses que reconhece a

importância desta releitura de Canudos, da apropriação de muitas memórias na sua própria

155 Delires Braun participa do Serviço Pastoral dos Migrantes. A atuação de religiosas neste setor éorientada pelos princípios evangélicos levando em conta os ensinamentos da Teologia da Libertação, ouainda, a ala progressista da igreja católica.

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constituição identitária enquanto canudenses. E neste processo, participaram Igrejas,

Universidades, Associações, grupos diversos, comunidades e Pastorais Sociais.

O Instituto Popular Memorial de Canudos - IPMC, no ano de 1993 lança o livro

Canudos – uma história de luta e resistência no qual aponta a presença efetiva da igreja

neste processo de reflexão renovada sobre a história de Canudos:

A partir de 1983 a celebração de Canudos é feita em conjunto pelas dioceses

da região (Bonfim, Paulo Afonso, Juazeiro e Rui Barbosa). Neste intervalo foi

organizado o Movimento de Canudos que comemora o 05 de outubro, data

de destruição de Belo Monte. Em 1988, inicia-se o movimento das Romarias

que cresce a cada ano. 156

Várias entidades foram se constituindo em Canudos como a ACEPAC – Associação

de Pesquisas Antônio Conselheiro, que tinha o objetivo de estudar e pesquisar a história de

Canudos e Antônio Conselheiro. Alguns moradores de Canudos no ano de 1986 fundaram

esta entidade que tinha a sede provisória na casa de uma das participantes. Nesta casa,

um quarto era a sede da ACEPAC contendo livros, objetos como balas, depoimentos, um

pilão de moer café e milho. Segundo uma participante, que era a responsável pelas finanças

da Associação, a criação desta entidade se deu pela necessidade de ter um conhecimento

maior sobre a história de Canudos. Também porque havia muitos turistas na cidade e que

pediam pessoas para que fizessem o trabalho de um guia, para mostrar a cidade e a história.

Por isso, segundo ela, foi criada a Associação: para resgatar a história.157

Esta iniciativa vai contribuir decisivamente como estímulo para a criação anos depois,

na cidade de São Paulo, de uma outra entidade, criada por alguns canudenses designada

União pelos Ideais de Canudos - UPIC que se verá adiante.

Torna-se necessário conhecer como foi se alterando estas análises principalmente,

a partir de novas leituras realizadas nos anos de 1990, por profissionais que também

exerceram uma militância política.

Por exemplo, o trabalho do historiador Sérgio Guerra, de 1999, apresenta um novo

viés de elaboração social sobre este evento e ele informa em seu trabalho “Universos em

Confronto: Canudos e Belo Monte”, os diferenciados discursos a respeito de Canudos no

qual problematiza versões correntes. Analisando as várias leituras existentes, afirma que,

156 IPMC – Instituto Popular Memorial de Canudos – Canudos uma história de luta e resistência, PauloAfonso/BA, Fonte Viva, 1993.157 Esta participante mudou pra cidade de São Paulo e junto com José Alôncio e outros, construiu a UPIC.

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O texto de Euclides da Cunha tornou-se, além de monumento aos vencedores,

verdade inconteste em torno do qual giraram os diversos trabalhos da historiografia

nacional, sufocando outras vozes do conflito e outras visões.158.

Com o passar dos anos, análises como as de Sérgio Guerra, começaram a ser

divulgadas e discutidas não só na academia, mas também por movimentos sociais, influenciando

assim uma nova leitura deste momento da história.

José Alôncio, também faz sua crítica ao que leu sobre a guerra de Canudos. Este

canudense fala do livro de Euclides da Cunha numa forma de se apropriar de conteúdos do

livro Os sertões:

Quando Euclides da Cunha saiu daqui de São Paulo, ele tinha aquela visão de

que os canudenses eram fanáticos, religiosos, pessoas agressivas, contra a

sociedade. Ele só foi mudar de idéia quando chegou em Canudos e viu a realidade

de lá e ele viu que não era aquilo. Não eram aquelas informações que ele tinha

quando saiu daqui. Lá ele viu que a realidade era bem outra, que aquele povo na

verdade era um pessoal simples que queria dignidade, que queria vencer, queria

ter uma vida melhor. Então ele ficou dividido e por quê? Ele foi um militar, teve

toda uma formação de militar... Então fica difícil de cobrar de Euclides da Cunha

uma participação mais ativa com relação à guerra de Canudos.159

Esta é uma opinião interessante, pois José Alôncio, interpreta a leitura de Euclides da

Cunha, com elementos da memória institucional, considerando inclusive a própria formação do

autor. Ele analisa o que significou a presença e o escrito do jornalista Euclides da Cunha, de

acordo com a própria história deste, enquanto profissional e político republicano.

A narrativa de José Alôncio remete a maneira pela qual este se apropriou do tema

Canudos, a partir dos livros da escola. A sua opinião, seu diálogo com o escrito de Euclides da

Cunha é importante e expressa, em certa medida, sua ambigüidade em relação a este autor.

Reconhece a própria mudança do pensar deste autor, antes e após sua convivência em Canudos,

após a realização de sua pesquisa “in locu”: segundo José Alôncio “lá ele viu que a realidade

era outra, não aquelas informações que tinha”. Este trecho apresenta um diálogo de José

Alôncio com o que assimilou sobre Canudos na escola, e de certa forma, demonstra uma

ambigüidade ao considerar a formação militar de Euclides da Cunha e por isso, não ter tido

uma ação eficaz em defesa do povo de Canudos.

158 GUERRA. Sérgio. Universos em confronto: Canudos x Belo Monte. 1999. UNEB, 2000.159 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Como se pode constatar, esta história que está nos livros, de certa forma, alcançou as

raízes no pensamento da população, e a academia e literatura, por sua vez, incorporaram e

elaboraram um discurso, uma análise, apresentando uma visão talvez mitificada, que continua

viva no imaginário popular. As comemorações oficiais, até os anos 1990, reforçaram uma

interpretação institucional, uma memória nacional sendo, concretamente, um obstáculo para se

ver as diferenças reais que estavam em disputa no processo histórico, e que vieram à tona

através dos movimentos sociais e intelectuais de esquerda.

Não foi objetivo deste estudo procurar as histórias subterrâneas, ou memórias que se

tornaram um mito sobre este fato histórico da história do Brasil, nem tampouco discutir a natureza

do evento, como ocorreu de fato, se, se tornou um mito ou não. Importa ver qual imaginário que

os canudenses tem sobre este acontecimento, e a relação com as memórias públicas, ou

produzidas pela Igreja ou pela academia.

Neste aspecto, na discussão sobre o mito, é importante lembrar do que apontou

Alessandro Portelli em seu trabalho “O massacre de Civitella Val di Chiana: mito, política, luto e

senso comum”,

Um mito não é necessariamente uma história falsa ou inventada: é, isso sim,

uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de

um acontecimento, transformando-o na formalização simbólica e narrativa das

auto-representações partilhadas por uma cultura.160

Há leituras mais recentes de estudiosos produzindo interpretações sobre este evento

inclusive, intelectuais de esquerda que são sujeitos na produção de uma memória que é

historiográfica e militante, com a idéia de estar contribuindo em certa medida, para a população

se reapropriar de sua própria história.

Em seu livro, Canudos Uma Utopia no Sertão, de 1991, o professor Antônio José Sola,

faz uma análise crítica sobre este período da história do Brasil. Faz uma leitura estrutural da

160 PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana,(Toscana,29 de junho de 1944): mito,política,luto e senso comum”. In: Ferreira,M e Amado J. (orgs). Usos e abusos da História Oral. 2. ed. Rio deJaneiro:FGV 1998.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

sociedade e a conjuntura política social da época, do ano de 1889 com a proclamação da

República, onde se vivia uma realidade de mudanças sociais e políticas no país.

Desenvolve uma reflexão sobre o contexto social e religioso

Havia desemprego, analfabetismo, seca na região nordeste, alta taxa de

mortalidade infantil e, ao lado dessa crise, pungente no sertão nordestino, a

presença institucional da Igreja também se fazia muito forte. Surgiram pregadores

os mais diversos inclusive Antônio Vicente Mendes Maciel, o “Conselheiro”, que

aglutinou milhares de fiéis com uma pregação de uma comunidade igualitária,

com orações e caminhadas, além de práticas concretas de construção de açudes,

capelas, cemitérios, etc.161

Este autor faz uma reflexão sobre os que acompanhavam Antônio Conselheiro, segundo

o qual, eram marginalizados, mendigos que pediam conselhos e rezavam coletivamente. A

prática religiosa deste grupo incomodou a Igreja e por conseguir melhorias para sua gente

também incomodou o Estado republicano que agiu com repressão brutal ao agrupamento de

fiéis. A guerra de Canudos é marcada por vitórias consecutivas dos conselheiristas sobre as

três primeiras Expedições da República. A República, em sua quarta expedição em 1897,

dizima a população local.162

Estas maneiras de interpretar a história de Canudos vêm à tona e demonstram que há

uma disputa de memórias e cada uma dessas interpretações e formas, expressam outras

memórias, muitas vozes até então silenciadas. Vários atores e personagens são parte ativa

deste processo de constituição de uma memória social. A Igreja com suas romarias, o trabalho

pastoral social reavivando o trabalho de comunidades de base; o cineasta que compõe um

documentário com as imagens dos familiares e remanescentes de guerra; a universidade, flexível

à construção do saber para além dos muros acadêmicos, realiza debates envolvendo a

sociedade civil, recriando saberes e produzindo conhecimento plural.

Viu-se que a história de Canudos rompeu com o silêncio, expressando ao mundo suas

falas, imagens, depoimentos, canções e hoje se discute a atualidade deste tema que nos desafia

ao estudo, à criação. No dizer de Edvaldo Boaventura,

Dizem que o resgate histórico de Canudos exigirá, no mínimo mais 50 anos de

pesquisas. (...) afinal a guerra que dizimou 20 mil pessoas hoje seduz uma legião

161 SOLA. Antônio José. Canudos Uma Utopia no Sertão . Editora Contexto, São Paulo, 1991, p. 22 eseguintes.162

Idem.

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de acadêmicos e leigos,já produziu mais de oito mil títulos entre

artigos,reportagens,livros, obra de arte, filmes e mostras fotográficas. Mais dela

ainda há muito o que fazer.

E a cada nova produção, novas abordagens são lançadas, lembrando-nos uma passagem

de um artigo de Machado de Assis no Jornal Gazeta de Notícias: Canudos é a Renascença é

um raio de sol que através da chuva miúda e aborrecida, vem dourar-nos a janela e a alma.

(...) Aí tendes matéria nova e fecunda”.163

Além de se conhecer algumas elaborações sobre este acontecimento, é importante

articulá-las com histórias e narrativas de canudenses. Histórias narradas por canudenses que,

através da força da memória, (re) significaram o sentido da própria experiência vivida. Importa

observar como esta história está presente no imaginário dos canudenses que vivem em São

Paulo.

Neste sentido é importante conhecer relatos distintos sobre o que significa este evento

para os filhos da terra, os que nasceram na região onde ocorreu esta guerra, a cidade de

Canudos.164

Os canudenses sentem a realidade hoje, o tempo vivido com inquietações, com uma

parcela da “saga canudense” que está viva e indica uma população que é ágil, que reage e luta.

Enfim, pessoas que constroem modos de vida peculiares afirmando-se como canudenses,

como sujeitos sociais, com diferenças, na luta por direitos em seu fazer-se cotidiano.

É importante esta presença na historiografia, pois alarga horizontes, abre espaços,

conquista falas, conta outras histórias, faz aproximar de outra face da história de Canudos que

estava até então, escondida. E mais que isso, em uma análise mais ampla, aponta em certa

medida, um amadurecimento da própria reflexão historiográfica que hoje trata a discussão

sobre memória e história de forma a acentuar a vitalidade de sua reflexão crítica, reconhecendo

os sujeitos sociais de forma plural com memórias sociais múltiplas, fragmentadas e diversas.

Nesta direção, acentuando o historiador como homem do seu tempo e o fazer história

não como erudição ou neutralidade, desafia para uma reflexão prospectiva, compreendendo

que as histórias acontecem e se constituem além dos muros e saberes acadêmicos, atingindo

diversos espaços e ambientes, valorizando outras temáticas de pesquisa envolvendo

trabalhadores, migrantes, mulheres, populações de ruas, com enfoque no seu fazer-se histórico.

163 Extraído do estudo de Climaco Dias: Revista de Canudos. Universidade do Estado da Bahia –CEEC,1986 v. 1 n. 01 (jul./dez) Salvador,UNEB.1996164 Segundo leituras realizadas, há indicação que houve 03 Canudos: A 1ª destruída pelo fogo daguerra; a 2ª foi submersa pelas águas da barragem de Cocorobó, juntamente com seu patrimôniohistórico e vestígios da 1ª Canudos (açude construído em 1969 época da ditadura militar) e apopulação foi deslocada para a chamada fazenda Cocorobó cerca de 15 km de distância, ondeatualmente se localiza a 3ª Canudos..

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Esta trajetória reafirma a produção e articulação de outras histórias, de muitas memórias

que se validam na sociedade, em atividades de extensão à academia, tornando-se visível para

todos, rejeitando assim, uma concepção de história que se coloca como a versão oficial, como

uma memória única que sufoca e apaga os protagonistas de outras histórias.165

Enfim, procurando valorizar estes sujeitos, as suas pluralidades, as diferenças e relações

sociais vividas num campo de tensões e conflitos, o olhar se volta para a contemporaneidade,

para o movimento social, impulsionando para a transformação deste presente, para o

compromisso político de atuar no tempo presente, na preocupação com o hoje e com os desafios

colocados pela atualidade sempre embalados pela esperança e utopia. 166

Continuando a reflexão sobre as narrativas de canudenses volte-se às falas destes sobre

Canudos. O primeiro relato de José Macedo, demonstra uma familiaridade com o tema, e este,

afirma que seu avô lutou com o grupo de Antônio Conselheiro. No momento inicial da entrevista

com este canudense, ao expor sobre o trabalho de pesquisa, obtive uma resposta imediata,

este canudense prontamente se colocou para ajudar e contar toda a história. Ao mesmo tempo,

diretamente, já sugeriu também fazer um livro ou um filme sobre sua história. Se mostrou disposto

a fazer coletivamente um trabalho de elaboração, um processo, no qual ele seria o personagem

principal, pois também se coloca, dentro da sua trajetória, como um homem forte, “um herói”

como seu avô. Assim ele começou a falar

José Macedo: Eu vou lhe contar minha história e depois você vê se ela é cumprida

ou é curta. E tem outra coisa, se você quer depois fotografar, ou alguma coisa, a

gente primeiro, faz o rascunho e depois se você quiser filmar, nós vamos juntar...

Meu avô lutou na guerra de Canudos e eu fui criado por ele. Ele era conhecido

como “O rei da escopeta”, devido a sua pontaria certeira. Ele contava muitas

histórias sobre a guerra de Canudos, e repetia uma frase que os outros lhe diziam:

“Serafim, você matou muita gente”. Ao que ele contestava: “não, só dei uns

tirinhos”. 167

165 Estas questões vêm sendo feitas há um longo tempo no Programa de Pós Graduação em HistóriaSocial na PUC. Hoje, estão sendo desenvolvidas a partir do programa nacional de cooperaçãoacadêmica – PROCAD, no âmbito da história social e na reflexão teórica que dinamiza a relaçãopassado-presente tendo como horizonte a transformação no presente e a construção de um futurodiferente do que temos hoje.166 Idem.167 Depoimento concedido, em sua casa, Santos/SP, em 30 de junho de 2003.

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O segundo relato é de José Alôncio, que nasceu 30 anos após José Macedo. Para ele

a história de Canudos é um pouco diferente, mas para ambos, a presença do avô/bisavô/

tataravô, é importante. Estes canudenses são de gerações distantes, estão separados por

mais de trinta anos de diferença. Um tem 73 anos e outro 40 anos. Ao dialogar com ambos, as

histórias de seus avós, bisavós são contadas de forma vívida e o avô Serafim é um personagem

presente em suas falas. Desta maneira, a familiaridade de José Macedo e José Alôncio com a

guerra de Canudos se deu, ao longo dos tempos, através das histórias sobre os antepassados,

especialmente o avô Serafim, o qual é lembrado por várias gerações de canudenses.

Neste aspecto, José Macedo e José Alôncio falam de suas famílias, pois suas memórias

sobre a guerra de Canudos têm raízes no cotidiano vivido, dentro das suas casas, junto à sua

família. Não é uma memória “desenraizada”, estereotipada, do marketing e da propaganda,

mas a memória é vivida e contada, e recontada, em família. A relação passado e presente é, o

tempo todo, uma relação ativa, onde a memória é produzida socialmente, na interseção das

gerações e realimentada no cotidiano, pois é um processo elaborado no tempo histórico.

E este canudense, José Alôncio, reforça ainda mais este aspecto da historicidade e

dinamismo da história/memória quando afirma porque ele se interessa por essa história de

Canudos. Demonstra uma alteração na própria compreensão do que significou Canudos antes

e depois do centenário no final dos anos 1990: Há uma mudança na relação passado-presente,

e ele indica uma redescoberta, uma releitura de um momento histórico que foi (re) significado

por ele e seu grupo.

Antes de 1990 Canudos era assunto proibido “ninguém falava” havia um silêncio imposto

pelo regime ditatorial, havia na sociedade um “calar-se”, um silêncio que muito falava,

expressando uma memória “sufocada”, tempos vividos como “sussuros”, “amarras” e que após

1990, através de diversas maneiras, estas memórias são resgatadas, reconstruídas e (re)

elaboradas. As memórias vêm à tona, são expressas de forma plural por vários segmentos

sociais e, a partir de então, Canudos foi palco de vários eventos e reflexões. Para José Alôncio,

as pessoas que antes não podiam falar, rasgaram o véu, contavam abertamente seus causos,

suas opiniões e interpretações do que ocorreu.

Não há uma separação entre a guerra de Canudos com a história de seu grupo, de seu

povo afirma José Alôncio como eu te falei, minha família pertenceu, fez parte da história de

Canudos. Ele vai mais longe: diz que não é somente ele que valoriza a história de Canudos e é

Como narra José Macedo, o avô era um homem “dobrado” (dois homem em um, se

ele pegasse dois homens, batia a cabeça de um com o outro, que até matava – era um homem

dobrado.) e “valentão” que criou seis netos incluindo ele próprio. A presença do avô em sua

infância é marcante e por isso conta histórias deste, que ouvira quando criança. E ainda, afirma

que seu avô Serafim – que morreu aos 80 anos – criava um neto de cada filho. José Macedo

tem 73 anos e está presente em seu imaginário, a figura do avô forte e guerreiro, um “herói”

que lutou com Antônio Conselheiro.

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algo comum na sua geração, este diálogo com os mais antigos. Eis um trecho onde ele fala

claramente o sentido da memória construída sobre Canudos:

José Alôncio: O canudense valoriza muito, a história de Canudos, de falar de

suas origens, de seu povo, de contar as suas histórias entendeu? Então é muito

isso, de contar o passado, a história de seus avós, de seus pais, então é esse

resgate da tua história, dos teus antepassados. Tem muito isso. Porque aqui

quando fala: Esse é o José Alôncio é isso. Mas lá quando fala: é o José Alôncio da

D. Lucila, porque a D. Lucila tem história entendeu? Se falar José Alôncio, as

pessoas não vão saber. Se falar, vamos supor do nome da mãe, aí sabe porque

tem história. Então tem muito isso de valorizar a sua história, o que essas pessoas

fizeram.168

Pôde-se observar que a família deste canudense considera importante, a experiência

contada, através das gerações, de ter vivido a guerra de Canudos, através do avô Serafim. Ele

(o avô), e a própria memória (re) construída, são como um “ponto nevrálgico” que funcionam

como um centro aglutinador da própria família. Os familiares, os sujeitos históricos, com o passar

do tempo, se reúnem em torno desta memória, que é contada em família, em grupos, e neste

sentido, eles têm o direito de dizer o que pensam sobre os personagens e as pessoas, que se

imbricam com os que lutaram na guerra de Canudos.

José Alôncio conta as histórias, os personagens, os momentos, baseado nas muitas

memórias de seus antepassados, a partir de sua própria experiência e compreensão do que

foi a guerra de Canudos. Faz uma ligação direta entre as pessoas comuns, sua família, os

vizinhos, a comunidade, os personagens, com o percurso da guerra, que existiu envolvendo o

povo canudense em seu desenvolvimento, em suas ações coletivas, em sua forma de viver.

Este canudense também aponta que, para os jovens que desembarcam na cidade de

São Paulo há uma preocupação de ter presente a história de Canudos, afirmando

Os que chegaram em 1980, 1990 eles têm uma preocupação com a parte da

cultura do lugar, mais conhecimento da cultura e do lugar Canudos... Tem o lance

da valorização da história de Canudos, isto parece que está enraizado nessa

molecada que está vindo agora.169

168 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.169 Idem

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Porque é importante tocar neste prisma? Talvez porque ajuda indiretamente, a pensar

melhor na relação entre as histórias de grupo e as histórias de pessoas, entre os assuntos que

consideramos de interesse “familiar, pessoal”, e/ou “histórico”. Ajuda a pensar uma história

outra além de personagens, heróis e instituições, e, ao mesmo tempo, contribui para se pensar

no trabalho com a História Oral que é um trabalho de relações, que vai também dando novo

sentido ao que seria assunto de interesse público e o que seria interesse ou não da historiografia.

Pensar inclusive na história como uma das bases da identidade deste grupo de canudenses na

cidade de São Paulo.

Em outras palavras, as narrações dos canudenses sobre o avô Serafim são narrativas

familiares e vividas internamente, em um âmbito particular, localizado, enquanto as narrativas e

documentos “oficiais” referem-se às vivências de heróis, que foram publicadas e cuja relevância

histórica é já reconhecida, e por sua vez, as narrativas dos familiares parecem pertencer apenas

à esfera pessoal e familiar, e não à História. Mas, como informa Alessandro Portelli, é na relação

entre o acontecimento pessoal que compõe a agenda do entrevistado e os acontecimentos

históricos que compõem a agenda dos entrevistadores — que se dá a separação entre História

e histórias, pode-se dizer que isto é um dos motores do encontro dialógico da História Oral.

O argumento essencial da História Oral é, enfim, a historicidade da experiência pessoal

unida ao impacto pessoal dos acontecimentos históricos, e o trabalho do pesquisador social

tem este desafio de perceber que é somente através da insistência dos narradores que as

contam e a analogia com narrações já canonizadas que se percebe o seu significado e o

trabalho da memória que, é individual e social ao mesmo tempo. Em outras palavras, as fontes

orais permitem acessar a historicidade de experiências pessoais e redesenhar a geografia da

relação entre estas e acontecimentos históricos e públicos.170

Desta forma, se pode entender que a história de Canudos é um forte símbolo presente

hoje no imaginário dos canudenses, não de forma morta e estagnada, mas de forma dinâmica

onde a memória ganha um novo sentido, e as narrativas têm um novo significado.

Foi-se tornando claro, mais uma vez, a necessidade de valorizar as memórias, não de

forma homogênea e cristalizada, mas múltiplas e fragmentadas, construídas socialmente e que

não estão paradas no tempo.

170 Ver texto do PORTELLI, Alessandro: Un lavoro di relazione. Osservazioni sulla stioria orale. Roma, 2000.Quando trabalhamos com as fontes orais, portanto, devemos ter agrupado três fatos distintos: um fatodo passado, o acontecimento histórico; um fato do presente, isto é, a narração que é feita peloentrevistado; e um fato de relação de duração, isto é, a relação que existe e que existiu entre estesdois fatos. Por isto, o trabalho do historiador oral inclui a historiografia em sentido estreito (a reconstruçãodo passado), a antropologia cultural, a psicologia individual, a crítica textual (a análise e interpretaçãoda narrativa), e a aplicação da segunda à primeira. A história oral é, portanto, história dos acontecimentos,história da memória, e revisão dos acontecimentos através da memória. P. 4.

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Um dos elementos que torna a guerra de Canudos tão importante, do ponto de vista

simbólico, além do que foi citado, é a existência, cem anos depois, de pessoas e grupos que

se reivindicam de Canudos, enquanto forma identitária, como marca da vida, ou seja, ser

canudense é diferente de ser nordestino, ou carioca, e mais que isso, reconstruir as memórias

deste acontecimento histórico nacional, dando prosseguimento ao debate sobre a própria história

do Brasil, a partir de um outro ponto de vista.

Ao afirmar-se como canudense, Gilberto, por exemplo, expressa: “Eu não nego de onde

que sou, sou de Canudos, terra do Antônio Conselheiro, nunca menti”. Esta frase contém

sentimentos de orgulho, onde Gilberto se associa ao espaço geográfico de Canudos e ao

próprio Antônio Conselheiro. Indica afirmação de sua identidade junto a Canudos e à figura de

Antônio Conselheiro. Da mesma forma, José Alôncio, ao falar sobre o grupo dos mais jovens

canudenses que moram em São Paulo e fundaram o “condomínio dos canudenses” - como

visto no capitulo 1- faz uma analogia com a marca do ser canudense:

José Alôncio: É importante este pessoal aqui no condomínio, porque isso é fruto

de uma luta, do sonho de ser canudense, de conseguir as coisas na paz, sem

violência, confusão, com objetivo e determinação. Isso é um pouco a história de

Canudos, Isso vai um pouco em direção à história de Canudos e ser canudense:

um estar ajudando o outro trilhar esse caminho, e isso é ser canudense.171

Convém destacar esta narrativa de José Alôncio que faz uma analogia das lutas do seu

povo de ontem e de hoje. Este canudense traduz sua visão da história de Canudos e de ser

canudense hoje: seguir o caminho da solidariedade - um ajudar o outro. O modo de vida sugerido

por ele é remetido à própria atuação e sonho do líder Antônio conselheiro que merece o

reconhecimento destes até os dias atuais, dentro de uma utopia maior que é de todos: construir

um mundo de paz.

Este aspecto da dimensão simbólica de Antônio Conselheiro na luta por melhores dias

merece ser destacada, pois para José Alôncio, a ação desta liderança tem o caráter libertário

apresentando reivindicações e lutas por direitos de homens e mulheres através de uma

organização comunitária, popular, política/religiosa. Estes questionavam uma situação de

desigualdades, injustiças e lançavam um desejo utópico de se construir paz, tranqüilidade e

fartura. E para José Alôncio isto é ser canudense.

Retorne-se para as narrativas de José Macedo. Não somente José Alôncio faz analogia

do ser canudense com a luta da guerra de Canudos: José Macedo em 1952 morava em uma

171 Ver DVD: “Memorie di canudenses nella città di San Paolo”, Rede Rua, 2005.

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fazenda no interior de São Paulo e planejava mudar para a capital, e, de forma coletiva, organizou

a mudança de várias pessoas que trabalhavam com ele no interior. Viu-se na Parte II, capitulo 5

que este, em sua trajetória, se coloca como um “herói”, e sua chegada na cidade de São Paulo

- bem como sua chegada na fazenda do interior de São Paulo, foi narrada como uma “epopéia”,

como mais um capítulo da história de um guerreiro.

No diálogo com José Macedo, percebe-se que em suas narrativas este se coloca como

um pioneiro, um “desbravador” não só de terras como também de caminhos para mudanças,

amizades, empregos. Ao mesmo tempo em que ele falava com os amigos na fazenda do

sofrimento no trabalho e de dificuldades, refletia com estes sobre a situação de exploração, em

que viviam e, além disso, pensava em mudar esta realidade. Neste momento, sair da fazenda

para a cidade de São Paulo era uma opção pensada e construída. Ele articula o individual e o

coletivo quando ao conversar com os seus amigos a respeito dessa situação, movimenta-se

para uma iniciativa de mudança, pensa em mudar para a cidade de São Paulo e planeja isso

ao juntar dinheiro, isto indica que ele se situou socialmente, se organizou para realizar uma

mudança. Sai para a capital em busca de uma vida melhor, prometendo buscar seus

companheiros, e na capital, desenvolve toda a sua história.

Eis trechos das narrativas de José Macedo, a partir de quando indagado sobre sua

chegada na cidade de São Paulo e sua experiência no interior do Estado de São Paulo:

José Macedo: Eu abri com doze homens estrada no interior de São Paulo,

derrubamos uns quarenta alqueires, foi um desmatamento porque não tinha casa,

era só mato. Depois, eu disse: “vou a São Paulo, depois venho buscar vocês

tudo”. “E como você vai? Você não tem dinheiro”. Eu tinha 500 cruzeiros, tinha

colocado debaixo da sola do sapato. Todo mundo tinha gasto todo o dinheiro,

com mulherada, eu não, eu guardei 500 cruzeiros dentro da sola do sapato. “Mas

como você tem esse dinheiro? Você não fala nada”. Mas se eu falasse eu tinha

gasto o dinheiro todo... Passou três meses e voltei pra fazenda. Quase que me

matam lá porque não pode tirar ninguém das fazendas e eu tirei os homens do

meu primo, que também ficou me devendo um pouco. Aí fui pra São Paulo.172

172 Depoimento concedido, em sua casa, Santos/SP, em 30 de junho de 2003.

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E José Alôncio valoriza e expressa as opiniões de pessoas comuns sobre a experiência

vivida de organização social com Antônio Conselheiro. Ele continua sua narrativa sobre Canudos

constituindo outras histórias

José Alôncio: esta é uma história muito bonita. Porque dessa chegada a Canudos,

Antônio Conselheiro viu estas pessoas que o acompanhavam colocar em prática

o sonho, o ideal de construção de uma cidade onde não houvesse injustiça. Nessa

cidade teria regras e teria que ser obedecidas algumas regras. Nessas regras

não deveria ter fome, ter miséria e que todos os habitantes de Canudos tivessem

trabalho, educação e dignidade. Que essas pessoas miseráveis, que foram a

Canudos sem nada, no desespero tivessem ajuda. Porque na época era a época

da escravidão e algumas pessoas ainda viviam sob regime de escravidão no alto

sertão apesar da lei Áurea... 173

Ao conhecer José Alôncio, este fazia uma palestra sobre Canudos, na VII Assembléia

da Pastoral dos Migrantes e começou com a frase vou falar do maior migrante do Brasil. Ele,

em suas narrativas, destaca seu pensamento sobre a figura de Antônio Conselheiro, indo além

dos estereótipos e análises que leu e que ouviu sobre o líder de Canudos

José Alôncio: No meu entendimento o Antônio Conselheiro foge um pouco deste

lado religioso-fanático. O Antônio Conselheiro era um idealista. Agora, claro que

ele tinha todo um trabalho, um projeto em cima da religiosidade também, mas ele

não era um fanático (...) No tempo de Conselheiro não era só penitência. Não,

inclusive porque no mês de Santo Antônio era época de festa em Canudos. Hoje

o mês de junho é o mês dos santos festeiros: Santo Antônio, São João, São

Pedro. Então a festa está muito ligada á cultura nordestina. Em Canudos não

existiam políticos entendeu? Quer dizer: o que era decidido em Canudos, todas

pessoas participavam, opinavam, davam a sua opinião: se era para fazer uma

igreja, se era para plantar uma área de feijão, ou milho, todos davam seu

depoimento e a sua parte. Então Canudos deixou essa lição para a gente...

Chegando às margens do rio Vaza Barris, no alto sertão baiano, numa região do

polígono das secas, distante 600 km de salvador, o Conselheiro encontrou uma

173 Depoimento concedido,em sua casa, em julho de 2003.

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região devastada pela seca... Lá ele encontrou uma casa, uma fazenda

abandonada e nessa casa tinha algumas pessoas residindo. Mas ele viu que

essas pessoas eram muito estranhas, eram pessoas magras, raquíticas e ele

achou um fato curioso: é que essas pessoas estavam fumando cachimbo. E

esse cachimbo tinha o canudo de cerca de meio metro de tamanho. Ele achou

curioso este modo de fumar. É uma curiosidade. Daí surgiu o nome de Canudos.

Porque na região de Canudos tinha uma vasta plantação de bambus, e destes

bambus foram feitos estes Canudos para pitar cachimbos. Mas o nome Canudos

não era para ser Canudos. Era para ser Belo Monte. Mas porque Belo Monte?

Porque em Canudos tem belos montes. É uma região cercada de montes. 174

Fig.9 Belo Monte

Neste fragmento sobre Antônio Conselheiro, José Alôncio, descreve uma atuação social

do líder comunitário da guerra de Canudos, onde todos participam efetivamente das decisões

a serem tomadas. Como um militante dos movimentos sociais, este canudense expressa a luta

do povo de Canudos por justiça, igualdade, participação. O que ele mesmo afirma ser seu

sonho hoje, e indica como um ensinamento daquele tempo. Valorizando a festa, a dança, o

tempo de colheita na agricultura do sertão baiano, articula-os com os tempos vividos na cidade

de São Paulo, onde nos meses de festas juninas, revive com outros elementos culturais, com

outros significados e de forma mais ampla, com outras pessoas, de diferentes origens, a fartura,

a bonança vivida pelos agricultores no tempo de colheitas. Memórias vivas, (re) significadas

onde ele aponta onde estão suas raízes e como dialoga no tempo contemporâneo, reforçando

sua própria vida de canudense em meio aos tantos cidadãos de diversas origens que vivem

nesta cidade.

176 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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No ano de 1995, José Alôncio escreveu um artigo chamado “Conselheiro: O andarilho”.

O artigo está no Boletim Informativo – mês de Outubro, da Pastoral dos Migrantes, e além de

fazer uma curta biografia de Antônio Conselheiro, há indicação de José Alôncio que o nome de

Antônio Vicente Mendes Maciel para Antônio Conselheiro se deu por este ser um homem

bondoso e que aconselhava o povo humilde a se organizar e lutar por melhores dias.

Conforme indica o referido artigo, o Conselheiro após uma peregrinação pelo Nordeste,

organizou uma comunidade na qual os direitos de todos eram respeitados. Eis um trecho do

artigo:

O Conselheiro era um homem prático. Organizou seu povo praticando a igualdade

e garantindo a sobrevivência de todos. Dividiu as terras e as entregou aos

trabalhadores para cultivar. Essa ocupação desgostou os latifundiários e se tornou

fonte de conflitos entre habitantes de Canudos e os fazendeiros do sertão. 175

Pensando nas outras histórias e muitas memórias, fragmentadas e divididas, em um

mesmo campo, vale conhecer a visão de José Dantas sobre Antônio Conselheiro. Ele dá ênfase

ao aspecto religioso, uma dimensão quase santificada deste líder que, foi considerado um líder

religioso e político. Para José Dantas, a imagem do Conselheiro é ligada à religiosidade:

José Dantas: Se eu for a Canudos eu quero levar as pessoas pra conhecer o

banco de Antônio Conselheiro, do pé de Imburana – planta da região. Até hoje

tem esse banco pra sentar. Chamam de banco do Antônio Conselheiro até hoje.

Minha avó tinha fotos de Antônio Conselheiro desde que ele chegou em Canudos.

Ele tinha uma bengala, mas não gostava que chamasse bengala, era um cajado,

porque bengala é pra aleijado e ele não era aleijado. Minha avó conviveu com ele,

ele era padrinho do meu tio, finado Isaías. Ele foi uma pessoa, quase como um

Deus, porque a pessoa chegava com dor de barriga, dor de cabeça era só ele

colocar a mão, falar alguma coisa e já ficava boa.176

174 Idem

175 Boletim da Pastoral dos Migrantes, Outubro de 1995.

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Essas recordações,expressas nas narrativas, com riqueza e pluralidade, levam mais

uma vez a considerar e entender que a memória não é compacta, única, mas (re) elaborada no

tempo e as narrativas são intermediadas por vários elementos e são frutos do ambiente social

vivido, da linguagem, da política, da religião.

Dentro deste cenário, perceber e confrontar, mais uma vez, essas memórias indicam,

que existem diversos significados e sentidos para a construção das mesmas, cuja pluralidade

deve ser considerada na análise histórica, e mais do que nunca, o diálogo com estas memórias

se faz necessário para se reaprender as próprias histórias, pois, como afirma Beto Guedes: A

lição sabemos de cor, só nos resta aprender.

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Capítulo 7: Eu não esqueci minhas raízes - UPIC - União Pelos Ideais de Canudos_________

A UPIC tem o objetivo de resgatar a história de Canudos, a

história dos canudenses que são os filhos de Canudos... É

visitar as casas dos canudenses em São Paulo e, tentar

conscientizar das injustiças, da história de lutas.

(José Alôncio, 2003)

Os canudenses como José Macedo, José Dantas, José Alôncio, Gilberto Nascimento e

Maria Nascimento, que saíram de Canudos nas décadas de 1950, 1960, 1980, têm uma imagem

de Canudos de muitas dificuldades, os pais não eram aposentados, os irmãos eram ainda

bem pequenos e tudo se tornava mais difícil.

Há em certa medida, nas narrativas, referências ao contato com o movimento de

comemorações dos cem anos e as releituras sobre os significados históricos de Canudos.

Esses canudenses perceberam toda a movimentação, que existiu, em torno das comemorações

do centenário de Canudos. No ano de 1997, participaram de atividades na cidade de São

Paulo reforçando a própria organização deles que, se articula, também, por meio da União

pelos Ideais de Canudos - UPIC.

Ao falar sobre seu grupo e a constituição de uma associação com reuniões e estudos

sobre Canudos, José Alôncio aponta as mudanças de suas memórias, sobre este assunto, que

faz parte de sua vida:

José Alôncio: Eu quando fui em Canudos vi que o pessoal falava muito de Canudos;

foi uma febre. Parecia que eu estava deslocado do mundo. Então comecei a ver

que minha história era importante... E o que motivou para fundar a UPIC aqui em

São Paulo foi à história de Canudos. A idéia em si partiu sem modéstia, de mim,

José Alôncio. No início dos anos 90 eu fui a Canudos após 15 anos. Chegando lá

conheci a Delires, uma freira que estava refletindo a história de Canudos nas

comunidade, porque aqui em São Paulo, antes de 1990, eu ouvia falar em Canudos

e chegando lá em vi que a realidade e a história de Canudos tinha outro conteúdo.177

177 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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José Alôncio fala do processo social da memória, de (re)elaborações, releituras de um

momento, a (re) significação deste, a partir da influência direta da realidade vivida na atualidade.

Ao confrontar consigo mesmo, suas percepções e recordações, ele atribui outros sentidos

para o vivido, pensa diferente, atribui significados outros para este momento, com elementos

vividos e pensados, em grupo.

E, como uma das maneiras de expandir este diálogo, entre temporalidades e idéias,

percebe-se que o encontro de José Alôncio com a irmã Delires de fato, propiciou bons resultados.

O trabalho desta freira influenciou a prática de José Alôncio, a partir de então. Esta relação

dialógica não parou em Canudos, pois irmã Delires estabeleceu uma ponte entre os que

moravam em São Paulo e seus familiares, em Canudos. Ela comenta seu percurso

Delires Braun: Então, os canudenses aqui em São Paulo, senti que vários deles

se interessaram pela história de Canudos e pediram livros. Eu realmente mandei

buscar, entreguei para o Alôncio... Para que ele entregasse às pessoas que

começaram a despertar. (...) Eu peguei o endereço deles lá de Canudos mesmo

porque os pais deles estão lá. Eles vêm para São Paulo em busca de emprego.

Quando cheguei em São Paulo, já vim com o endereço deles, comecei a telefonar

e eles convidaram a gente para passar um domingo na casa, e eu nem tinha

imaginado essa possibilidade de chegar um dia onde chegou: que eles se

envolveriam com a pastoral dos migrantes A gente se encontrava sábado e

domingo naquela região de Santo Amaro, através de uns é que sabiam que eu

estava na casa do primo ou conhecido, aí todos se juntavam, os que me

conheciam e os que me conheciam só pelo nome. E aí comecei a sentir essa

rede de canudenses. Então era aquela festa, confraternização. Visitava um, ia a

casa de outro.178

José Alôncio narra que sentiu inspiração para a criação da União Pelos Ideais de

Canudos - UPIC, através do contato com esta freira. Ele (re)descobriu, (re)elaborou sua visão e

sentimento sobre este período da história. A partir de então continuou lendo e refletindo sobre

este tema com amigos, começou a participar das reflexões da Pastoral dos Migrantes e com a

própria Ir. Delires. Ele conta a história que reaprendeu. Como, após o contato com as pessoas,

os livros e as reuniões com as freiras, entendeu a sua própria história de forma diferente.

178 Trecho de um depoimento concedido a Roberval Freire 08.02.1998.

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Também é importante considerar que a experiência de constituição de entidades, em Canudos,

incentivou a criação de uma entidade, na cidade de São Paulo, após uma leitura crítica da

história expressa dentro das movimentações vividas, nos anos de 1990. Eis um trecho da

narrativa de José Alôncio

A história que eu conheço de Canudos é bem outra não é aquela que eu li em

livros didáticos. Então nasceu daí a idéia de criar a UPIC, em São Paulo, desse

contato que eu tive com o pessoal de Canudos dos anos 1990 (...) Canudos é

como se fosse uma fonte: de vez em quando você tem que ir lá. O cruzeiro, uma

cruz grande do tempo, do Conselheiro ainda está lá. Então aqui o nosso grupo

também tem o sentido de divulgar algumas coisas que acontecem lá e um pouco

de divulgação da nossa história, aqui em São Paulo, nas escolas, rádios

comunitárias. Agora, o forte mesmo da nossa história de Canudos está lá na

fonte. 179

Observa-se nestas múltiplas narrativas, diversas visões de um mesmo processo histórico,

e isso faz parte do caldo cultural da história brasileira. Observa-se também que as memórias

foram (re) significadas, de uma “única” visão centrada em Antônio Conselheiro como fanatismo

religioso, do assunto proibido, para uma reelaboração, uma visão modificada, com uma

dimensão da tomada de consciência de ser migrante, trabalhador, pobre e que traz uma história

de luta, com participação no processo histórico.

Esta mudança, no modo de pensar, está relacionada diretamente com a história e o

tempo, e vários fatores podem ser elencados, como responsáveis por tais mudanças, inclusive

a ruptura do medo, do silêncio, junto com a conquista de um movimento social que deu voz e

vez aos considerados excluídos; assim este processo ocorreu também com a presença da

Igreja, através da pastoral.

De fato, não basta apenas o passado sobre Canudos. Todavia fala-se sobre Canudos

num presente, com diferentes visões e análises. Nesse sentido, indaga-se como foram vividas

essas memórias, que percursos ocorreram na constituição de uma memória “única” sobre este

evento. Indaga-se também como, após cem anos, continua o debate sobre este momento da

história com novos elementos, uma nova maneira de entender os processos e, com novos

sujeitos, que colocam outras dimensões, antes pouco consideradas pela historiografia.

Assim visto o grupo de canudenses, da Zona Sul de São Paulo, foi-se constituindo num

processo de diálogo, entre eles e suas próprias histórias, através de uma reelaboração do que

significou Canudos, ao longo do tempo. Diálogo feito na prática de relações com os movimentos

179 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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sociais, com as pastorais e a academia, resultou num processo de releitura da guerra de

Canudos com uma análise “positivada”, a respeito dos canudenses e deste acontecimento da

história do país.

Este processo de construção do ‘ser canudense’180, como referência específica na

vida em São Paulo, foi ocorrendo a partir da década de 1990, na dinâmica de redemocratização

brasileira, momento que possibilitou que estes, organizados, enquanto grupo, criassem uma

associação designada União pelos Ideais de Canudos, UPIC.

Esta associação nasceu em meio a discussões e diálogos na sociedade brasileira,

após um longo período de silêncio forçado pela ditadura militar. A partir da releitura e redescoberta

de José Alôncio de sua própria história, de muitas memórias sobre sua cidade, seu grupo e

seu povo, participando ativamente das comemorações do centenário de Canudos, este e demais

canudenses fundaram esta entidade.

A UPIC foi criada por ele, após uma viagem que fez para Canudos, em 1990, na qual

constatou que os canudenses não conheciam a história de Canudos. Sua narrativa aponta

que a UPIC nasceu das pessoas simples, dos canudenses que criaram, a partir de seu cotidiano,

de suas memórias, um espaço onde conversam e fortalecem suas identidades. Ao ter em

comum o fato de serem de Canudos, criaram este espaço social no qual reafirmam suas

presenças na cidade. Isto pode significar uma iniciativa política, onde a memória (re)significada

contribui para a afirmação destes, enquanto sujeitos sociais e reconstrução de suas identidades,

na cidade de São Paulo.

Este processo remete ao que Frederico Neves informa sobre memória social

Encontramos na noção de memória social, a possibilidade de examinar o trabalho

permanente de re-construção histórica dos significados sociais que permite captar

o movimento, a transformação, a re-elaboração que é construída socialmente,

enfim, a re-criação social incessante.181

Estas memórias, recriadas, fortalecem vínculos de identidade, contribuem para

resistência e lutas por direitos na cidade. A UPIC, através de suas iniciativas, também está na

disputa de uma interpretação sobre Canudos, com sujeitos sociais que vivenciaram a experiência

da migração, abrindo em certa medida, outras perspectivas para estes na constituição de muitas

memórias e outras histórias.

180 A expressão ‘ ser canudense’, da pesquisadora, indica a própria constituição do ser, enquantocanudense.181 NEVES, Frederico de Castro.Imagens do Nordeste: A Construção da Memória Regional. Fortaleza,SECULT,1994.

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José Alôncio coloca-se enquanto um agente social, um sujeito político que tem

representatividade, que tem visão sobre a realidade do país em que vive, sobre a situação

social e econômica, e tem uma ação voltada para o reconhecimento de si mesmo, do seu

grupo e de seus direitos. Talvez sua ação vá além do espaço político formal e institucional. Ele

sugere, conforme sua narrativa, através da análise da forma de organização de Canudos, que

a igualdade, o respeito às diferenças, o acesso às necessidades básicas de um povo, não

passa somente e necessariamente pela atuação de uma política personificada em uma pessoa,

personalizada por líderes, mas também por uma democracia participativa e direta, onde todos

exprimem as urgências e necessidades.

Enfim, a visão deste canudense valoriza não somente a figura de Antônio Conselheiro,

mas também dá ênfase na participação direta do povo em tomar decisões, fazer opções, que

não dizem respeito a uma pessoa somente, a um líder, mas a toda a comunidade.

Na história, dos canudenses, está presente a tradição vivida pelos mais velhos na cidade

de Canudos. Quase todos os filhos de combatentes já morreram e a memória desta luta continua

presente para a UPIC e os seus membros. Essa memória evocada, recriada e (re) elaborada,

se expressa através de narrativas que indicam constante redescoberta e atualização das

próprias raízes e tradições.

Neste sentido, reconstroem-se imagens de Canudos e dos próprios canudenses,

reconstituindo-se as imagens e eles próprios, permitindo aparecer diferenças, os pontos

contraditórios, estimulando o debate, as opiniões a cerca da história e fatos interpretados.

José Alôncio narra como se deu o processo de criação da entidade. Quando indagado

sobre como nasceu a UPIC ele narrou

A UPIC surgiu no início dos anos 1990, foi assim... Eu fiz uma viagem para

Canudos em 1990 e conheci algumas pessoas que estavam desenvolvendo algum

trabalho social, uns projetos em Canudos. Eu achei impressionante porque quando

eu saí de Canudos com doze anos de idade, as pessoas não sabiam, os

canudenses não conheciam a história de Canudos. De fato, existia uma barreira

muito grande em se aceitar a história de Canudos. Eu acho interessante porque

ela, a UPIC surgiu assim de baixo, de pessoas simples como nós somos. Então

eu acho que a UPIC tem peso, tem referência por isso: por ser uma entidade que

surgiu do povo, do pessoal simples, os nordestinos. 182

182 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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A presença de José Alôncio, como, “animador” do grupo é interessante. Ele é bastante

ligado às famílias de canudenses não só da região onde mora na Zona Sul, mas também de

toda a cidade.

Ao falar de sua vida, este canudense analisa que o tempo dedicado aos encontros e

visitas que faz às famílias é curto, pois seu ritmo no dia-a-dia é bem dinâmico, trabalha e cuida

das filhas. O cotidiano de José Alôncio é narrado por ele de forma entusiasmada:

O meu cotidiano é de trabalho. Eu acordo cinco e meia da manhã, minha filha sai

cedo pra escola, eu acordo a moleca, porque ela precisa tomar banho, tomar

café. Mas a minha rotina de trabalho é de oito horas da manhã às seis da tarde.

De Segunda a Sexta feira, então é a correria do trabalho... Também participo de

alguns movimentos sociais aqui de São Paulo, criei e participo de uma entidade

que divulga a história de Canudos e acolhe/ acompanha os migrantes canudenses.

Isso de certa forma me toma algum tempo. Não tempo suficiente, pois eu queria

ter muito mais tempo pra estar presente, fazer mais coisas em prol dessa entidade

e desse ideal que eu tanto gosto que é de estar falando de Canudos e estar

próximo aos canudenses que moram em São Paulo.183

Esta narrativa de José Alôncio aponta para uma ação fundante da UPIC, ao dizer que no

seu dia-a-dia, além da sua jornada de trabalho, além de cuidar das filhas, há a dedicação em

visitar um conhecido, em acolher o canudense que está desembarcando na cidade.

A UPIC é um dos instrumentos, e atrativos através do qual, José Alôncio contacta, dialoga

e convive com os recém chegados. Além de trazer à cena a história de Canudos, fortalecendo

os laços e a identidade deles, a UPIC também cumpre um papel de dar acolhida a quem chega.

Dar acolhida, receber alguém, trazer um recém chegado para o convívio no grupo,

apresentar a comunidade canudense, as famílias, os jovens, são as primeiras iniciativas

desenvolvidas pela UPIC.

A cidade de São Paulo, os “caminhos das pedras” para a conquista de trabalho, moradia,

boas amizades, entre outros, são apresentadas aos novos moradores da cidade pelos

canudenses mais antigos, que viveram experiências, são conhecedores da cidade de São

Paulo.

183 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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A articulação que aponta José Alôncio, em sua narrativa, da ação da UPIC é reavivar a

história de Canudos, contribuindo desta forma para uma (re) elaboração da própria história, e,

além disso, desenvolver simultaneamente um processo de acolhida aos migrantes canudenses

recém chegados. Para os que desembarcam na cidade receber boas vindas, encontrar

conterrâneos e dialogar com conhecidos é fundamental.

O processo de acolhida não está separado da história de Canudos, a UPIC, como afirma

José Alôncio divulga a história de Canudos e acolhe migrantes canudenses. Ele indica a

necessidade de haver mais tempo para receber as pessoas de Canudos, mostrar a cidade,

estar mais presente no cotidiano dos canudenses que residem em São Paulo, para falar de

suas historias e das memórias (re) elaboradas.

Vale destacar algumas iniciativas realizadas pela UPIC no sentido de reforçar a história

de Canudos intensificando os laços entre os canudenses que residem na cidade de São Paulo

e os que residem em Canudos.

Dentre as atividades há viagens de São Paulo para Canudos, organizadas por eles. Em

1996 aconteceu uma viagem de um grupo de canudenses como forma de divulgar os trabalhos

da UPIC e a história de Canudos, reafirmando a dinâmica do ir e vir de canudenses entre São

Paulo e Canudos, o contato vivo é mantido e ainda valorizado até hoje. Esta viagem foi divulgada

através de um artigo que José Alôncio escreveu no Boletim Informativo do mês de setembro,

do mesmo ano, da Pastoral dos Migrantes.

Neste texto que traz o tema Relembrando Canudos José Alôncio discorre sobre a viagem

de membros da UPIC para Canudos, onde visitaram Nova Canudos, Antiga Canudos, Bendengó,

Fazenda barriguda, Fazenda Angico e Vila do Rosário. Segundo seu artigo a equipe visitou a

antiga Canudos que foi destruída pela guerra, e viu as ruínas da cidade. Esta foto é de José

Alôncio:

Fig.10 Canudos antiga

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A equipe também visitou o Museu de Alto Alegre que guarda objetos da Antiga Canudos.

Eis um trecho do artigo de José Alôncio e uma foto do Museu:

Visitamos também o Museu de Alto Alegre... Em Fazenda Barriguda nossa equipe

ficou cerca de uma semana. Visitamos várias pessoas da região; escalamos a

Serra do Angico onde gastamos cinco horas entre ida e volta. Estivemos com a

Antônia (Tonha) professora de primário e cantadora de toadas. Estivemos com o

Pe. João Antônio, pároco e fomos à missa na qual é celebrada a trezena de

Santo Antônio, padroeiro da cidade, de primeiro a treze de junho de cada ano.

Cada noite tem um festeiro que organiza e arrecada objetos para serem leiloados.

O dinheiro é doado à Igreja para obras de caridade. Participamos da festa de

Santo Antônio”.184

Fig.11 Museu

Fig.12 Museu

184 Boletim Informativo da Pastoral dos Migrantes, Setembro de 1996.

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Fig.13 Museu

Percebe-se um grande conhecimento da região e dos moradores por parte destes

canudenses. Eles estiveram em escolas, igrejas, museu, casas de famílias, participaram de

festas, de reuniões, exposição de fotos no Centro Cultural da cidade e, por fim, narra José

Alôncio:

Tivemos a oportunidade de fotografar a Vila Rosário e visitar a família do Sr. Lúcio

Macedo e a de João Galo, além da Dona Valda, onde almoçamos buchada e

tomamos conhaque.

Fig.14 Joana Macedo e Justo Leite

Casal de canudenses

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Observa-se que a UPIC e os canudenses ao longo dos anos, vêm divulgando suas ações,

estabelecendo contatos e parcerias para realizá-las, e mais que tudo, este grupo se mantém

unido, com uma dinâmica intensa de um vai e vem constante.

Outra viagem ocorreu no ano de 1997, ocasião do centenário de Canudos. A UPIC,

junto com outras entidades como o Movimento Campo e Cidade e diversas pastorais sociais,

organizou a caravana de São Paulo para o centenário de Canudos. Estas entidades participaram

de todo processo desde arrecadação de fundos para a viagem, preparação de cânticos,

confecção de cartazes, faixas e símbolos com mensagens, por ocasião dos festejos de Canudos

e, para identificar o grupo da cidade de São Paulo. Na ocasião, 46 pessoas saíram de São

Paulo, em direção a Canudos para celebrar, nos dias 25 e 26, os Cem anos da Guerra de

Canudos.

Foram momentos importantes para os que são de Canudos e para os visitantes, que

conheceram melhor as muitas histórias do povo brasileiro. A partir deste processo, conheceu-

se o Brasil de hoje, a existência de muitas Canudos, de gente que luta para ter uma vida digna.

Ao mesmo tempo constata-se que, depois de cem anos, o povo de Canudos continua a passar

uma série de dificuldades, não há investimentos institucionais/governamentais para o

desenvolvimento social do sertão, os jovens migram na luta por sobrevivência, muitas crianças

não têm como estudar.

Fig.15 Joana Macedo e Justo Leite

Casal de canudenses

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Segundo narrativas, os canudenses, durante a viagem, que teve a duração de dois dias,

encarregaram-se de, ao microfone, informar sobre o significado do evento comemorativo. Nos

dois dias de comemoração, a praça central de Nova Canudos foi palco de encenações, debates

e músicas e o encerramento, simbolicamente realizado à beira do rio Cocorobó, onde está

submersa a velha Canudos, reuniu, numa grande caminhada, cerca de dez mil pessoas.

Eis algumas fotografias desta atividade:

Fig.16 Caravana 100 Anos de Canudos

Fig.17 Caravana 100 Anos de Canudos

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Fig. 18

Ao retornar de viagem, os canudenses se reuniram para uma confraternização, com

churrasco, bebidas e apresentação de um vídeo com imagens das comemorações do centenário.

O contato com os canudenses através de José Alôncio e a história da UPIC abriu a

possibilidade de ampliar relações, além de inferir sobre a presença de canudenses espalhada

em toda cidade. Quando há um encontro, todos são convidados, há visitas nas casas de todos

que moram na cidade e os que moram em outras cidades próximas, e somente através da

articulação, entre eles, é que foi possível esta união.

Quando interrogado a José Alôncio onde moram os canudenses, ele respondeu:

José Alôncio: Aqui os grupos residem e vivem em grupos, como se fossem famílias.

Tem grupos no jardim Ângela, Capão Redondo, Piraporinha. Sempre com primos,

irmãos, e, um vai construindo sua vida junto com o outro. Vão comprando suas

casas, alugando, sempre um próximo ao outro. Eu fui descobrindo isso através

da UPIC porque eu comecei a ter mais contato e fui vendo esse lance. A princípio

eu não via isso, eu não enxergava isso, mas com a convivência com meus

conterrâneos, com os canudenses, achei super interessante.185

185 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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Por ocasião do centenário de Canudos, o jornal, O São Paulo, divulgou os trabalhos da

UPIC, em uma matéria, que apresentava a forma de sua organização

“A UPIC é constituída por canudenses de ambos os sexos, na faixa etária de 18

a 35 anos, apresenta como objetivo o resgate da memória de Canudos através

de reuniões de estudo, visitas às famílias, intercâmbio com o local de origem,

eventos culturais e contatos com outras entidades, segundo conta José Alôncio

presidente da associação”. 186

Na UPIC existia uma coordenação com o papel de se reunir, planejar e organizar o

calendário de atividades e reuniões. No ano de sua fundação, chegou a ter 25 canudenses e

outros 250 simpatizantes. Até hoje não possui sede própria e as reuniões aconteciam nas

casas das pessoas. A participação variava, entre 15 a 30 pessoas, nas reuniões.

Além de viagens destaque-se também a realização de Encontros anuais de canudenses

organizados através da UPIC. No dia 13 de outubro de 1996 e no dia 21 de setembro de 1997

ocorreram o primeiro e segundo encontros, entre os canudenses que residem em São Paulo,

para que desfrutassem de sua cultura e ao mesmo tempo para se manterem atualizados de

noticias de Canudos e de São Paulo.

Nesses encontros realizados se destaca a crescente presença de canudenses: no

primeiro encontro de canudenses no dia 13 de outubro de 1996, no Jardim São Luis, participaram

cerca de 100 pessoas de Canudos. No segundo encontro de canudenses em 21 de setembro

de 1997, na Casa de Cultura M’ Boi Mirim o número de canudenses dobrou. No terceiro encontro

no dia sete de novembro de 1998 o número chega a 250. O quarto encontro de canudenses, no

salão de festa da Igreja São Luiz Gonzaga, no Jardim São Luis, confirma a presença expressiva

dos canudenses, como também no quinto encontro realizado em novembro de 2005, que contou

com a participação de cerca de 300 pessoas entre artistas populares, e canudenses de vários

lugares de São Paulo.

186 Jornal O São Paulo 17/09/97

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Nesses encontros de canudenses participam pessoas não só da região Sul, mas da

região metropolitana da cidade de São Paulo. Eis imagens de Encontros de canudenses:

Fig. 19

Fig. 20

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Fig. 21

Fig. 22

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Os encontros de canudenses concentram famílias, que residem na cidade de São Paulo,

bem como os familiares que residem em Santos, por exemplo. O importante é reunir todos os

canudenses que moram em São Paulo. Neste momento, há festa, forró, e a alimentação é

típica de Canudos.

Fig.24

Ao reconstruírem suas memórias, os canudenses o fazem re-significando os fatos, as

raízes, as estórias ouvidas, tecendo permanentemente uma outra história, capaz de responder

ao novo jeito de viver na cidade, ou seja, as formas de lembrar e esquecer são parte da urdidura

da memória.

A memória, assim, é reconstruída na reelaboração das narrativas sobre, Canudos. A

experiência do presente altera a visão sobre o passado. Enfim, é uma relação ativa das

temporalidades - passado e presente -. O passado deixa de ser algo estagnado, inalcançável

para ser revisitado, refeito e aí se projetam novos valores, tradições, intuições.

Eis um cartão da UPIC com seu símbolo e endereço do coordenador José Alôncio.

Fig. 25 Cartão da UPIC

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A UPIC busca trabalhar, sobre a história e as imagens de Canudos, as raízes dos

canudenses, a partir das representações, que fazem de seu pertencimento ao povo de Canudos.

Estimula os integrantes a reelaboração da memória como reforço cultural e político, na vida de

‘ser canudense’, em São Paulo.

São memórias de um grupo, que conta histórias sobre Canudos. José Alôncio conta sua

história, a partir de seus bisavós, durante a época da guerra. Em suas narrativas ele cita nomes,

lugares como marcos físicos da memória e as pessoas comuns, além dos líderes e de Antônio

Conselheiro. Cita seu bisavô, que lutou, junto ao grupo de Antônio Conselheiro.

Eis um trecho da narrativa de José Alôncio, contando outras histórias da guerra de

Canudos:

O meu bisavô, que se chamava Serafim, lutou com um cara lá na guerra de

Canudos, que se chamava Pajeú. Ele foi um dos maiores guerreiros da história

de Canudos. Foi o pessoal dele que matou o Moreira César e o Tamarino. ...

Meu avô teve um papel destacado na guerra de Canudos. Ele chegou a matar

muitas pessoas, muitos oficiais do exército. Na época da guerra ele sabia que

não ia ser fácil, ele pegou a família dele e levou para uma região chamada Toca

da Onça. Na época da guerra eles estavam almoçando lá em Canudos e a guerra

comendo solta – isso já foi na Terceira Expedição. Eles soltaram uma bomba,

dos canhões que levaram para Canudos e caiu em cima da casa onde estavam

meus bisavós. E com isso, morreram todas as pessoas que estavam naquela

casa. Certamente meus bisavós, e alguns parentes, cerca de quinze pessoas.

Então vem daí minha história. E aí com o término da guerra que foi uma carnificina

meu bisavô Serafim conseguiu sobreviver a tudo isso! Então, vendo toda aquela

destruição ele ficou cerca de um ano, ou até mais, sem pisar os pés em Canudos. 187

Nesta direção, José Alôncio apresenta uma UPIC que valoriza os demais componentes

e personagens da guerra de Canudos. Havia estudos sistemáticos, sobre estes e outros

personagens, envolvidos no acontecimento guerra de Canudos, cujos encontros envolviam a

todos, estimulavam as recordações como aponta José Alôncio. Assim ele narra

José Alôncio: Nós tínhamos estudos sobre a história de Canudos, estando

informando não só aos membros da UPIC mas a todos os canudenses e não

canudenses: por exemplo, tinha o João Abade, que acolhia os recém chegados;

Antônio Beatinho encarregado das informações e notícias: Antônio beatinho era

187 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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como se fosse o prefeito da cidade, e que, quando chegavam lá em Canudos as

pessoas deixavam pertences com Beatinho que ia dividir em partes iguais para

todos os moradores, porque era proibido em Canudos, um ter mais que o outro.

Leão de Natuba, portador de deficiência física e de muita inteligência; Manoel

Quadrado, curandeiro da cidade; Pajeú o grande guerreiro; Antônio Calixto

comandante da guarda interna de Canudos; Antônio Vila Nova responsável pelas

armas da comunidade; Antônio fogueteiro que era ferramenteiro e fabricava pólvora;

Timóteo, o sineteiro e Serafim Ferreira “o rei da escopeta” por sua habilidade no

manejo das armas... Houve então a necessidade de realizar o primeiro encontro

dos canudenses, pois o objetivo nosso é relembrar nossa cultura, resgatar nossas

raízes, envolvendo a participação de todos inclusive nos momentos de festa, de

diversão.188

Além desses estudos, das viagens e Encontros, uma iniciativa que consegue aglutinar

a comunidade de canudenses é o Festival de Música e Poesia do Migrante. No I Festival de

Música e Poesia dos canudenses no dia seis de julho de 1997, na Casa de Cultura M’ Boi

Mirim, mais de cem pessoas participaram. O II Festival de Música e Poesia, em vinte e dois de

agosto de 1999 na Casa de Cultura M’ Boi Mirim. Eis imagens do festival de musica e poesia:

Fig. 26 José Alôncio

188 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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Fig.27

A UPIC desenvolve suas ações e intercâmbio entre São Paulo e Canudos através desses

encontros, reuniões, festivais e iniciativas concretas de apoio à comunidades carentes. Essas

iniciativas foram divulgadas num artigo de José Alôncio no Vai e Vem – Boletim Informativo da

Pastoral dos Migrantes dos meses de Jan/Fev/Março de 1998, no qual há vários subtítulos,

destacando as ações desenvolvidas pela UPIC. Este Boletim Informativo é um dos instrumentos

de comunicação da Pastoral, no qual são veiculadas notícias dos grupos de migrantes de todo

país.

Uma das ações que constam no artigo é o apoio às crianças de duas comunidades, as

de Rio Suturno e Poço da Pedra. Estas têm aproximadamente 150 crianças ao todo, e no final

de janeiro de 1998, recebeu da UPIC material escolar, caderno, lápis, canetas, apontadores

roupas e alimentos para suprir as necessidades de outras comunidades locais. Este material

foi fruto de uma parceria da UPIC com a Escola de Cooperativa de Vila Mariana.

Outra iniciativa importante, segundo afirma José Alôncio, no artigo supra citado, foi a

realização, em parceria com a Casa de Cultura da Penha, com o apoio da secretaria de Cultura

de São Paulo, da Semana Canudos: Uma viagem a Canudos. Esta ocorreu em setembro de

1998, em comemoração ao centenário de Canudos. Na programação, a UPIC fez a abertura

da Semana com uma exposição de José Alôncio e Roberval Freire sobre a história de Canudos.

A Semana contou ainda com apresentações de filmes, teatro, fotos e uma instalação do artista

plástico Cleber Bueno: Caminhos de Canudos. 189

189 Boletim Informativo da Pastoral dos Migrantes dos meses de Jan/Fev/Março de 1998.

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Esses trabalhos foram desenvolvidos a partir da ação de pessoas que foram a Canudos,

do apoio do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM; do Movimento Integrado Campo e Cidade

MICC, e da Associação Canudense de Estudos e Pesquisas Antônio Conselheiro ACEPAC e

outras pessoas independentes de grupos ou entidades sociais.

Essas iniciativas são divulgadas não somente pelo Informativo da Pastoral dos Migrantes.

A visibilidade dos canudenses como personagens da cidade é reconhecida, como também a

própria formação do grupo enquanto canudenses, assumindo-se enquanto tal, numa comunidade

que foi se constituindo ao longo dos anos.

Pode-se verificar a presença afirmativa da comunidade de canudenses, valorizada em

uma reportagem, a respeito da vida em São Paulo, como nordestino-paulistano. Com a

manchete: Canudos revive em Santo Amaro, com uma fotografia de José Alôncio do lado

esquerdo, e uma foto do cruzeiro em Canudos do lado direito, o jornal “O Estado de São Paulo”

de 26 de Maio de 2000, na seção Seu Bairro, apresenta uma reportagem com José Alôncio

sobre os migrantes canudenses, indicando, no teor da matéria, que este grupo é herdeiro da

história de Canudos e hoje representa a comunidade mais unida de nordestinos, em São Paulo.

Esta matéria da jornalista Marina Paulinques apresenta, em três páginas do jornal, a

dinâmica dos canudenses e suas histórias, na cidade de São Paulo. O artigo mostra trechos

de depoimentos de algumas famílias que na metrópole, constroem suas vidas, incluindo a

articulação entre canudenses. Estes realizam encontros para “matar a saudade” e “pra não

deixar morrer a história”, como indica o Sr. Firmino Paixão de Araújo, de 52 anos, morador da

cidade há 30 anos.

Segundo a matéria da jornalista Marina: A saudade faz parte da vida desses migrantes,

que tem nos encontros com outros canudenses a melhor forma de relembrar a própria origem.

Na página central, com o título Espírito familiar une canudenses na região, desenvolve-

se uma matéria com fotografias e depoimentos de várias pessoas de Canudos. A matéria

apresenta falas de mulheres como Josineide Santana de Almeida, 25 anos, e moradora da

região de Santo Amaro, há dois anos. Atualmente está desempregada, reside com uma irmã e

já trabalhou como operadora de caixa.

A história de Josineide é interessante e esta afirma que, em Canudos, coordenava os

trabalhos de uma equipe que recebia visitantes de todo país e participa de grupos de estudos,

sobre a história de Canudos.

Esta história é somada à de muitos outros, como a de Jean Nogueira dos Santos, 27

anos. Este canudense afirma se preocupar em preservar a cultura do seu povo. No jornal, quando

se refere ao Jean, há um destaque em sua fala, com um Box indicando sua história Motoboy

circula em busca de conhecidos. Trata-se do trabalho profissional deste canudense que, ao

aprender a andar na região, devido ao seu emprego de moto boy, procurou “todos os canudenses

da cidade” para manter o contato com velhos conhecidos.

Logo no primeiro parágrafo desta página, há um subtítulo, indicando o movimento, a

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dinâmica do contato vivo, entre São Paulo e Canudos: Migrantes fazem questão em manter

contato com conterrâneos na capital.

José Alôncio e sua tia Elisa também estão presentes na reportagem. Elisa afirma

que ao chegar à cidade de São Paulo, com treze anos, morou com seus irmãos e aponta

essa familiaridade como um facilitador para a vinda de canudenses para São Paulo. Indica

ainda que os primeiros que chegaram serviram de apoio para os outros, e ela mesma

hospedou em sua casa de dois cômodos, amigos e parentes que vieram procurar emprego:

Cheguei a receber dez canudenses de uma vez. 190

A presença dos canudenses em São Paulo é visível, no entanto, na história da UPIC,

constata-se um processo de desarticulação. Atualmente, as atividades da UPIC não

acontecem com muita regularidade. Como afirma José Alôncio, hoje as pessoas estão

mais dispersas, “está mais difícil reunir”. Outro fator a ser considerado como causa de

desmobilização da UPIC é apontado por José Alôncio:

Os fundadores da UPIC hoje não estão mais em São Paulo. O Jean, a Cristina,

a minha irmã...Todos estão trabalhando, estudando, moram em outros bairros,

viajaram... A minha irmã, por exemplo, foi embora para a Inglaterra, a Cristina

está fazendo faculdade, vai casar e também mudou de religião. Aí eu fiquei

sozinho.

Embora José Alôncio continue visitando as famílias, participando das reuniões de

bairro e da pastoral, afirma que não é mais como no início da fundação da associação. A

UPIC existe e não é tão dinâmica como anos atrás. Demonstra ao mesmo tempo a

dinamicidade do cotidiano que impõe outros rumos, apresenta outras opções de

religiosidade, de estudo, de moradia, em lugares e países diferentes. José Alôncio fala que

a convivência, as visitas acontecem, independente da UPIC

E no dia a dia, há contato pois a colônia de canudenses aqui em São Paulo é

muito unida, certo? Então a gente sempre está próximo visita um ao outro, é

quase diário pelo menos por telefone... O canudense em si valoriza muito a

coisa cultural, a religião é importante mas a gente valoriza mais a cultura

como um todo entendeu? A cultura da história de canudos, a cultura do forró,

da musicalidade de canudos, de falar de suas origens, de seu povo... Então

tem muito isso de valorizar a sua história, o que essas pessoas fizeram. 191

190 Jornal O Estado de São Paulo, 26/05/2000.191 Depoimento concedido, em sua casa, em julho de 2003.

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Ao visitar esta comunidade diversas vezes, pode-se constatar que apesar deste momento

de dispersão, há por outro lado, uma vontade de estimular e realizar outras atividades. Rearticular

os trabalhos, reunir mais pessoas, e durante a minha presença entre eles, de fato, foi possível

verificar um “novo ânimo” para o trabalho na comunidade, com a chegada de pessoas novas no

grupo, e planos para realizar encontros culturais, participar do festival de musica e poesia, e a

comunidade como tal, através da UPIC se inscreveu para concorrer ao Prêmio Cultura Viva do

Ministério da Cultura.192

Canudos, ainda está presente, hoje para estes canudenses e, embora não se perceba,

está presente na sociedade, arraigada na cultura, nos modos de viver e lutar. É o que afirma,

um artigo do Jornal O Estado de São Paulo, em que destaca no início da reportagem que O

movimento de Antônio Conselheiro tornou-se tema de livros, cine-documentários. Além disso,

o jornalista autor do artigo, Moacir Assunção, destaca:

O que pouca gente sabe é que a guerra encerrada em 1897, na qual morreram

15 mil pessoas, trouxe palavras até hoje presentes no vocabulário dos brasileiros.

A expressão favela para denominar habitações precárias originou-se do Morro da

Favela – planta típica de regiões sertanejas, próximo ao Arraial de Canudos, do

qual os soldados ali estavam e atacavam – a vila dos sertanejos, coalhada de

casas simples e becos estreitos. 193

Constatam-se em matérias de jornais de grande circulação e boletins da Pastoral dos

Migrantes, uma referência à comunidade canudense na cidade de São Paulo, através da UPIC.

E a vida da UPIC, segundo José Alôncio, em suas narrativas, é, além das atividades, viagens,

e encontros em que se reúnem canudenses, no cotidiano “o dia a dia é mesmo com visitas às

casas, depois de uma jornada de trabalho, ou mesmo, o contato é por telefone”. É ele que

visita, articula, telefona, intensifica a rede de contatos, entre os canudenses das diversas

gerações, que vivem na cidade de São Paulo.

192 Idealizado pelo Ministério da Cultura, com coordenação técnica do Cenpec (Centro de Estudos ePesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), o Prêmio Cultura Viva destina-se a estimulare dar visibilidade a iniciativas culturais com caráter de continuidade e com a participação dacomunidade, que valorizam a cultura brasileira, como meio de construção de identidade e cidadaniade setores sociais em situação de risco e excluídos do exercício pleno de direitos assegurados pelaConstituição Brasileira.193 Jornal O Estado de São Paulo, 26/05/2000.

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Segundo este canudense, todas as noites ele visita sua mãe, sua casa é bem perto, no

mesmo bairro, e desta forma encontra amigos, primos, revelando uma vida sempre ao lado de

seus familiares e conterrâneos. Um encontro entre eles à noite, após um dia de trabalho, é

motivo para muita conversa, discussões, e regada à cerveja, muitas histórias, lembranças de

fatos, datas e pessoas.

O próprio José Alôncio fala, que no cotidiano de luta, de encontros, desencontros, alegrias

e decepções, os canudenses estão juntos e enfrentam os desafios. Diante do exposto, conclui-

se este capítulo com um fragmento de José Alôncio, ao reafirmar a garra de ser canudense, na

cidade de São Paulo:

Este é o sonho de ser canudense, de conseguir as coisas na

paz, com objetivo, sem violência, com determinação. Isto é um

pouco a história de Canudos, um estar ajudando o outro, trilhar

esse caminho, e isso é ser canudense.194

194 Ver DVD: “Memorie di canudenses nella città di San Paolo”, Rede Rua, 2005.

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______CONSIDERAÇÕES FINAIS___________________________________________

Pensar e escrever não é tarefa simples. Tratar de um estudo constituído de vivências,

significados e interpretações de sujeitos históricos, em suas experiências, e processos vividos

num determinado tempo e espaço, no processo de pesquisa, exigiu que se voltasse o olhar

para a vida cotidiana, resistências e conformações, tensões, disputas, sentimentos, crenças,

memórias, desejos, tradições, diferenças, lutas e sonhos de um grupo específico que,

historicamente, foi excluído, no entanto, teve participação efetiva nos acontecimentos históricos.

Reconstruir a história que levou a estudar os migrantes canudenses, em São Paulo, foi

uma tarefa complexa, portanto, um desafio, em que fui construindo a pesquisa, as fontes, as

relações com as fontes, que são pessoas presentes, no desenvolver do trabalho. Antes, porém,

eu não havia pensado em estudar os nordestinos; todavia, participo, há mais de 15 anos, de

grupos de trabalhadores, jovens e migrantes; trabalhei com parlamentares, pastorais; presenciei

discussões, em todo Brasil sobre a realidade brasileira e sobre os diversos sujeitos sociais,

tais como mulheres, negros, indígenas, moradores de rua, operários. Discussões realizadas,

de acordo com a teologia da libertação, no nordeste e sul do país; acompanhei diversas vezes

questões de migrantes e trabalhadores na cidade.

Debruçar-se com uma reflexão aprofundada sobre um grupo específico de migrantes

nordestinos, eu não me sentia à vontade para fazê-lo. Alagoanos, baianos, piauienses, todos

com quem eu sempre convivi, mas com um olhar “distraído”, talvez com uma visão generalizada,

por muito tempo, visto do meu olhar sempre fixo nos operários, nos trabalhadores do setor

formal e nos movimentos sociais. Ou ainda, ignorando outras experiências e abordagens, senão,

valorizando de modo exclusivo os grupos politicamente organizados na sociedade.

Neste sentido, os migrantes nordestinos pareciam dispersos, embora sempre lutassem

por uma vida digna. Diversas gerações já trabalhavam em São Paulo, viviam nas periferias

com suas famílias e ajudavam, financeiramente, os demais familiares do Nordeste.

No início dos anos 1990, nas pastorais sociais, faziam-se críticas reflexivas sobre a

situação em que se encontravam os nordestinos, apontando o poder econômico como dimensão

central das concepções, que valorizavam em suas análises, questões gerais da economia, da

política e da sociedade. Tais análises não abarcavam dimensões do dia-a-dia, das limitações,

pensamentos e vida simples do cidadão em sua luta diária por seus sonhos e utopias. Por

outro lado, esse questionamento aparece em um Jornal italiano, “O Manifesto”, do dia 8/11/

1973, que traz um artigo da jornalista e política comunista Rossana Rossanda, que retrata esta

questão:

A irracionalidade da doença, da solidão, da ilusão e da felicidade, tudo isso são

coisas que os movimentos trabalhistas e revolucionários evitam considerar...

Difícil, mas maduro, seria admitir que a condição humana suspensa entre a vida

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

195 Jornal “O Manifesto”, dia 8/11/1973, Roma/Itália.196 Grifo da pesquisadora.197 THOMPSON. Ed. A Formação da Classe Operária Inglesa. .Rio de Janeiro, Paz e Terra, Vol. 01,2001.198 MURCH. Walter. In um batter d’occhi. Una prospettiva sul montaggio cinematografico nell’ eradigitale. Lindau, terza ristampa, marzo 2005.

e a morte, o resquício indestrutível da individualidade no sofrimento humano, é

fronteira obscura que delimita o caminho da emancipação política.195

Estas questões subjetivas permeavam as reflexões, no entanto para colocar na prática

esta análise, nos anos de 1980 e 1990 não era possível, por não serem consideradas nas

leituras sociais que se faziam, ao contrário eram aspectos menores, detalhes que não

influenciavam nas análises de conjunturas realizadas.196

Com o passar do tempo, ao ingressar na PUC/SP, no ano de 1998, trouxe comigo o

incentivo de estudar e compreender esses sujeitos sociais no mundo em que vivem, como

enfrentam as transformações que se apresentam no cotidiano, as interpretações e narrativas

das experiências vividas e não somente a sua organização sindical ou partidária.

Aproximei-se de uma nova forma de pensar a história. Através da professora Heloísa

Faria Cruz, que me orientou e incentivou a direcionar meu olhar para uma maneira diferente de

ver e fazer história, ou seja, valorizando o cotidiano dos trabalhadores, seus modos de vida,

subjetividades, analisando esses sujeitos em seu fazer-se histórico com o propósito de incorporar

a experiência humana dos vencidos como parte constitutiva da história, em que os sujeitos

deixaram de ser objetos de estudo, para se afirmarem como sujeitos sociais, que se fazem na

cultura e pela cultura.

Uma história outra, não dos vencedores, dos personagens em evidência, mas que

considera os excluídos, os que vivem à margem como informa Edward Thompson no prefácio

de sua obra A Formação da Classe Operária Inglesa A preocupação está em ir além daquela

história em que apenas alguns vencedores são lembrados (...) Os becos sem saída, as causas

perdidas e os próprios perdedores são esquecidos.197

Nesta trajetória não existe caminho, o caminho se faz ao caminhar e com um pouco

mais de vivência em pesquisa, com a experiência do mestrado, ao invés de continuar com

aquela “miopia”, assumi outra perspectiva no doutorado que me levou “mergulhar” numa outra

reflexão, bem mais ampla e complexa, e por isso, mais profunda e difícil de se enfrentar.

Constitui-se um desafio para aquele que trabalha com a metodologia da História Oral, a

construção de uma análise e seu texto final, em que não se veja apenas a formalidade e frieza

acadêmica, mas o percurso vivido para realizar a pesquisa, as emoções encontradas no diálogo,

dentro do processo, fazendo-se avançar o texto, com um ritmo e uma forma leve, descontraída,

de acordo com o que Walter Munch designou “continuidade tridimensional”, ao fazer seu trabalho

com montagem de cinema.198

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

Esta investigação não se faz conclusiva, para se compreender os modos de viver e de

ser canudense na cidade de São Paulo, com pluralidade e experiências diversificadas. Torna-

se fundamental a continuidade desta para se conhecer os sujeitos sociais na luta por direitos,

enquanto canudenses, sabendo-se que este trabalho é um desafio a ser enfrentado.

Ao término desta Tese, algumas considerações são relevantes para a compreensão

deste trabalho de pesquisa, no tocante aos objetivos, à verificação da possibilidade de os

migrantes canudenses serem incorporados, nos estudos de uma história social e da cidade de

São Paulo, constituindo-se como sujeito social, na luta por seus direitos, bem como apresentação

de novas perspectivas, com relação aos novos modos de vida. Evidenciar a história social, que

tem uma concepção de modo de viver e de lutar como cultura, permite que se possa chegar

aos canudenses migrantes, suas experiências e subjetividades.

Esta pesquisa realizada objetivou, de modo geral, discutir sobre as experiências de

canudenses, com uma dimensão política, no sentido de vê-los em suas diferentes formas de

ser e viver e não como uma unidade homogênea.

O estudo indicou que estudar os canudenses hoje, significa não dar visibilidade

especificamente a eles, somente, porém, junto com eles, no diálogo com eles, explicitar as

diversas maneiras de viver a cidade, na afirmação de serem sujeitos, significa reconstruir pontos

de vista, dimensões de lutas que afirmam o viver, apontando inclusive perspectivas de futuro

diferenciadas. Neste sentido não é somente a história deles, eles são sujeitos sociais que são

singulares, constroem uma história que é compartilhada porque eles vivem socialmente e trazem

à tona visões e experiências outras, dimensões outras.

Especificamente, foi possível compreender os modos de viver dos migrantes canudenses

e suas trajetórias de vida, os processos de construção não só dos modos de vida, mas também,

a permanente disputa por espaços, territórios, visões de mundo e símbolos, na afirmação de

serem migrantes canudenses e sua cultura como resistência, uma visão e prática diferenciada

de viver e estar na cidade.

Entendeu-se que tais modos de vida, a disputa por espaços e visões de mundo, causaram

de certa forma, um estranhamento, mas possibilitaram um conjunto de narrativas, dentro de

uma situação dialógica, entre pesquisador-narrador, que contribuíram para modificar uma

concepção de homogeneidade do ser nordestino. E ao mesmo tempo, contribuir para questionar

concepções estereotipadas do nordestino, um ser faminto, pedinte, e naquela visão, o mesmo

seria conformista, passivo, inferior e sem progresso.

Ao lado desta questão do deslocamento, do desenraizamento, da migração, há um outro

aspecto que deve ser considerado: estes migrantes que são nordestinos e são canudenses,

são também, de certa forma, nordestinos, e paulistanos, nordestinos-paulistanos, pelo fato de

neles se articularem valores de suas culturas, recriações destas, enriquecidas com a vivência

na cidade de São Paulo.

Os canudenses não abrem mão de serem designados canudenses; cada um de uma

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

forma significa uma auto-afirmação e assim é referenciada uma memória, uma história que

é deles. Isto significa que há Histórias... Memórias... Outras histórias... Muitas Memórias.

Diante destas considerações, constatou-se que se abrem outros leques de reflexões,

pois o que há na verdade, é uma vontade audaciosa de que as muitas memórias apareçam

nas histórias que se escreve, inclusive, com uma consciência mais profunda, sobre o potencial

da memória nos processos vividos e narrados. Verificou-se também que esses processos

valorizam a memória com a sua multiplicidade, com sua forma fragmentada e dividida,

expressa nas narrativas dos sujeitos sociais.

No que se refere à trajetória dos canudenses e àquela visão estereotipada, outros

valores foram adquiridos e dialogam com as experiências destes, em seu constituir-se

histórico. Um valor, positivado, a partir da década de 1990, com as movimentações do

centenário de Canudos, viabilizou a elaboração de uma nova concepção do migrante

canudense, na pluralidade e heterogeneidade.

Conclui-se assim, por tudo que foi visto, sob uma nova ótica, ou seja, a Historia Social

com a metodologia da História Oral, que o sujeito social é aquele que constrói modos de

vida, e se reconstrói, (re) elaborando suas memórias e experiências, no tecido das relações

sociais, num campo de conflitos e tensões; por isso deve ser reconhecido por múltiplas

vozes em seu fazer-se histórico.

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

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Canudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São PCanudenses na c idade de São Paulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .aulo - Memórias e Experiências .

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• Jornal Zero Hora 27/02/1993

• Jornal FSP 14/08/1990 e 18/08/1990

• Jornal O Estado de São Paulo 12/08/1990.

• Jornal Diário Popular, 14/11/1999

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Vídeos:

• Documentário “Tem que ser baiano?” - ONG AlÔ Vídeo, Rio de Janeiro.

• Reportagem TV Bandeirantes com o tema “Trem dos miseráveis” relato da vida de

trecheiros: trabalhadores desempregados que vivem no trecho... de cidade em cidade...

empurrados pelas prefeituras de cidade como Araraquara, São Carlos, Matão. 1995

• 4º Festival Nacional de Música e Poesia do Migrante – São Paulo 1995

• 5º Festival Nacional de Música e Poesia do Migrante – São Paulo 1997

• 6º Festival Nacional de Música e Poesia do Migrante – São Paulo 1999

• 1º Festival Estadual de Música e Poesia do Migrante – São Paulo 2004

• 5° Encontro dos canudenses – São Paulo 2005 –

• DVD: Memorie e storie di canudenses nella città di San Paolo, Rede Rua, 2004.

obs: As fotografias utilizadas neste trabalho são do arquivo pessoal de José Alôncio

e Roberval Freire.

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Este trabalho contém as trajetórias de oito canudenses que vivenciaram a experiência

da mudança para São Paulo. São eles:

1. Antônio Pereira

Nasceu no dia 22/08/1971 em Canudos/Bahia. Chegou em São Paulo em 1995, Morou

com irmão, trabalhou numa gráfica na Av. João Dias, depois saiu, ficou mais dois meses

parado, saiu da casa do irmão, pagava aluguel. Casou, e atualmente mora no condomínio

dos canudenses. Trabalha no Carrefour, na Zona Norte, pega três ônibus pra ir, três ônibus

pra voltar, demorando em torno de três horas. E está a sete anos, na função de repositor,

repõe as mercadorias da loja. Afirma que na verdade nunca quis vir, “nem sei dizer como

foi que eu vim”, “resolvi bem rápido, meu irmão falou que era pra eu vir e eu vim, estou

aqui até hoje”. Tem um filho de seis anos, a esposa é baiana também e ambos querem

voltar pra Canudos um dia.

Para ele, a vida em SP é muito difícil e agitada: O que o prende em São Paulo é o emprego,

a preocupação é o seu emprego, só, é a sua família, “porque eu me viro de qualquer jeito,

mas meu filho está estudando, eu me preocupo com ele”.

2. Gilberto Nascimento

Nasceu em 18/03/1962 em Canudos/Bahia. Trabalhava na roça com seus pais. Mudou para

São Paulo com um irmão pra casa de um tio e depois alugou casa com dois irmãos. Ao

fazer oito meses que estava em São Paulo sua esposa chegou com dois filhos: “aí mudou

tudo”. Seu primeiro emprego foi numa metalúrgica (Giroflex) onde seu tio trabalhava. Ficou

oito anos. Pediu as contas para pegar o dinheiro da garantia para construir sua casa e

ajudar seu irmão a construir a dele. Ficou oito meses desempregado. Conseguiu emprego

numa firma de leilões pois seu cunhado trabalhava lá, dois primos e muitos nordestinos.

Permanece nesse emprego há seis anos. Voltou a Canudos para visitar após dez anos de

São Paulo. É marcado pela violência em São Paulo, foi assaltado à mão armada.

Convive somente com conterrâneos, nordestinos pois onde mora a maioria é nordestino

mas seus filhos têm amizade com paulistanos, filhos de nordestinos. Tem cinco irmãos

casados que moram todos perto, dois são vizinhos e três moram no bairro.

3. Maria do Nascimento

Nasceu em Canudos/Bahia. Casou com o Gilberto em maio de 1982, é mãe de dois filhos.

Chegou em São Paulo no mês de novembro de 1988 com duas crianças para morar com o

marido, embora o plano do casal era: ele trabalhar durante um ano em São Paulo (fazer o

pé de meia) e voltar para Canudos e a esposa ficaria esperando. Ela vendeu tudo o que

tinha em Canudos e decidiu viajar para fazer a vida em São Paulo ao lado do marido.

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Atualmente afirma não querer voltar para Canudos porque pensa num futuro para os filhos.

“Olha, no meu caso eu acho, eu estou sendo feliz aqui, no começo foi difícil, deixei tudo para

trás, minhas coisas do casamento”. É evangélica.

4. José Alôncio Ferreira dos Santos

Nasceu em fevereiro de 1963 em Canudos/Bahia. Morou com a avó até os 12 anos porque sua

mãe morava em São Paulo. Mudou para São Paulo no bairro Santo Amaro, morar com seu tio

Jaime. Fez o curso fundamental em escolas do bairro e foi para morar com sua mãe, na chácara

Santo Antônio, pois seu tio voltou pra Bahia.

Seu primeiro emprego foi numa empresa química americana como office boy permanecendo

durante seis anos, até a empresa fechar. Seu primo já trabalhava lá e ajudou-o a conseguir este

trabalho.

Ficou desempregado, só sua mãe trabalhava e suas três irmãs estudavam. Após nove meses,

conseguiu trabalho no Clube Atlético, mas ficou só três meses, pediu pra sair: não queria

trabalhar sábado e domingo, pois para ele ”o final de semana é sagrado”. Mudou para Santos,

morar com um tio e foi trabalhar no porto, numa lanchonete, não se adaptou: era à noite e tinha

muito movimento, turistas...(era ponto de prostituição). Foi chamado nesta época por uma

empresa de alimentos em São Paulo onde fizera ficha anteriormente, lá ficou durante um ano e

a firma faliu. Novamente desempregado e conheceu sua esposa, e conseguiu um trabalho

numa firma comercial, onde permanece há 16 anos.

Fundou a UPIC e é militante de movimentos sociais e culturais da região onde mora.

5. José Macedo

Nasceu no dia 08 de setembro de 1930, numa fazenda chamada Mangaba, no município de

Euclides da Cunha/Bahia. Foi criado pelo avô Serafim, o qual segundo conta, lutou na guerra

de Canudos. Ajudou o avô em sua fazenda, fazia cerca, medições, cuidava da “vendinha”.

Viajou para o Mato Grosso para trabalhar em fazendas e daí partiu para Teodoro Sampaio em

São Paulo com um primo, trabalhar numa fazenda. Chegou em São Paulo em 1950, trazendo

consigo os amigos que trabalhavam na fazenda e ajudou todos a tirar documentos. Morava

numa pensão na Av. Tiradentes e foi trabalhar na construção civil, depois foi para uma metalúrgica

e entrou na DOCAS, onde trabalhou durante 28 anos. Está aposentado e mora em Santos/São

Paulo. Sobre sua trajetória profissional relata que trabalhou na roça, na construção civil, na

cavalaria do exército, numa metalúrgica e nas Docas em Santos, onde se aposentou. Após a

aposentadoria exerceu ainda a profissão de taxista, foi dono de uma plantação de bananas,

cobrador, vigilante e atualmente é pedreiro.

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de São Paulo no dia 10/04/1968 foi morar com um irmão e uma irmã. Esta casa acolhia vários

canudenses que chegavam em São Paulo, e numa ocasião, tinha 25 pessoas.

É viúvo, pai de cinco filhas e seu primeiro trabalho foi na firma de eletrônica AMELCA, depois

entrou numa metalúrgica na qual ficou durante seis anos, saiu e entrou numa outra metalúrgica

que ficou durante dezoito anos. Ficou desempregado, trabalhou num laboratório durante seis

anos e foi demitido devido “enxugamento da empresa” e deu entrada no FGTS, recebendo-o

após cinco anos, sendo que neste período de espera, seus amigos da firma, davam-lhe cestas

básicas pois sabiam da situação difícil que estava enfrentando. Afirma ter vontade de voltar

para Canudos, trabalhar na roça, criar cabra, mas são os laços familiares que o mantém em

São Paulo.

7. Leonildo Rodrigues

Nasceu em Canudos em 10/02/1979 em Canudos/Bahia. Com onze meses de nascido, seus

pais mudaram para São Paulo.

Conhece bem a cidade de São Paulo, pois residiu em vários bairros.Morou doze anos na

Barra Funda, seis anos na Cachoeirinha, mudou para Itaquaquecetuba, depois Jandira.

Atualmente reside no “condomínio dos canudenses” com sua irmã.

Seu primeiro emprego foi com seu pai em um restaurante/lanchonete no bairro Paraíso . Hoje

trabalha numa empresa de plástico, Graher no Socorro. Foi indicado por um amigo Canudense,

pois o encarregado da firma também é de Canudos. Está cursando o primeiro ano do colegial.

Gosta muito de se divertir, no final de semana vai dançar forró, pagode, axé. Pensa em Canudos

não para voltar e morar, mas para passar temporada: “porque lá não tem muitos recursos”.

Considera São Paulo muito violenta mas é uma boa cidade pra trabalhar. Tem uma filha, chamada

Jennifer, que mora em Canudos.

8. Roberto Santos

Nasceu no dia 06/11/1980 em Canudos/Bahia. Chegou em São Paulo no dia 11/01/2000. Mudou

para a cidade de São Paulo “porque na Bahia é bom mas não tem recursos”. Em Canudos ele

fez o colegial.

Ao chegar em São Paulo residiu na casa do irmão Roque no condomínio dos canudenses onde

reside até hoje. Ficou um mês desempregado, conseguindo emprego numa firma onde seus

primos e seu irmão trabalhavam. Nos finais de semana, costuma sair, dançar um forrózinho...

Estuda e trabalha e quer fazer vestibular.

Seus planos são voltar para a Bahia, depois de fazer um pé de meia, e lá trabalhar com venda,

comércio, ou bar.

6. José Dantas

José Dantas da Gama nasceu no dia 13/04/1945 em Canudos/Bahia. Ao chegar na cidade

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Fig.28