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As Influências Fisiológicas na Psicologia David K. Cometeu um Erro: a Importância do observador Humano Os sapatos de David Kinnebrook eram engraxados todas as noites, mas esse era o único benefício que tinha no seu emprego. Seu trabalho era solitário, maçante e muito estressante. Era forçado a morar no mesmo prédio em que trabalhava e tinha que estar disponível das 7h da manhã às 10h da noite, sete dias da semana. Além disso, muitas vezes um alarme tocava no meio da noite, chamando-o de volta ao trabalho. Ele recebia um salário muito peque- no para tudo isso, e três refeições por dia, e, lógico, seus sapatos eram engraxados. Quais eram as qualificações para esse emprego mara- vilhoso? Um dos cientistas que supervisionava esse serviço escreveu: "Quero homens incansáveis, que trabalhem muito, e acima de tudo, escravos obedientes do trabalho, que ficarão satisfeitos por passarem seu dia usando suas mãos e olhos no ato mecânico de observar, e o resto do tempo, no processo maçante de calcular" (opud CroaTken, 2003, p. 286). Quando Kinnebrook finalmente saiu, seu substituto descreveu seu trabalho da seguinte maneira: "Nada pode exceder o enfado e tédio da vida que o assistente leva nesse lugar, excluído da sociedade, com exceção de um pobre rato que ocasionalmente sai de David K . Cometeu um Erro: a Importância do Observador Humano Os Avanços Iniciais da Fisiologia O Mapeamento Interno das Funções Cerebrais [) Mapeamento Externo das Funções Cerebrais O Estudo do Sistema Nevoso O Espírito do Mecanicismo Os Primórdios da Psicologia Experimental Por que a Alemanha? Hermann von Helmholtz (1821-1894) A Biografia de Hehnholtz Contribuições de Helmholtz: o Impulso Neural, a Visão e a Audição Ernst Weber ( 1795-1878) O Limiar de Dois Pontos As Diferenças Mínimas Perceptíveis Gustav Theodor Fechner (1801-1887) A Biografia de Fechner A Relação Quantitativa entre Mente e Corpo Os Métodos Psicofísicos Texto Original Trecho sobre a Psicotísica, Extraído de Elcmentts 01 Psydtophpsü-s (1860), de Gustav Fechner A Fundação Oficial da Psicologia .5.5

CAP. 3 - Influências Fisiológicas 2012-2 _SCHULTZ SCHULTZ

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História da Psicologia - Schultz - Cap 3

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  • As InflunciasFisiolgicas naPsicologia

    David K. Cometeu um Erro: a Importncia doobservador HumanoOs sapatos de David Kinnebrook eram engraxados todasas noites, mas esse era o nico benefcio que tinha noseu emprego. Seu trabalho era solitrio, maante e muitoestressante. Era forado a morar no mesmo prdio em quetrabalhava e tinha que estar disponvel das 7h da manhs 10h da noite, sete dias da semana. Alm disso, muitasvezes um alarme tocava no meio da noite, chamando-ode volta ao trabalho. Ele recebia um salrio muito peque-no para tudo isso, e trs refeies por dia, e, lgico, seussapatos eram engraxados.

    Quais eram as qualificaes para esse emprego mara-vilhoso? Um dos cientistas que supervisionava esse servioescreveu: "Quero homens incansveis, que trabalhemmuito, e acima de tudo, escravos obedientes do trabalho,que ficaro satisfeitos por passarem seu dia usando suasmos e olhos no ato mecnico de observar, e o resto dotempo, no processo maante de calcular" (opud CroaTken,2003, p. 286).

    Quando Kinnebrook finalmente saiu, seu substitutodescreveu seu trabalho da seguinte maneira:"Nada pode exceder o enfado e tdio da vida que oassistente leva nesse lugar, excludo da sociedade, comexceo de um pobre rato que ocasionalmente sai de

    David K . Cometeu um Erro:a Importncia doObservador Humano

    Os Avanos Iniciais daFisiologia

    O Mapeamento Interno dasFunes Cerebrais

    [) Mapeamento Externo dasFunes Cerebrais

    O Estudo do Sistema NevosoO Esprito do Mecanicismo

    Os Primrdios da PsicologiaExperimental

    Por que a Alemanha?Hermann von Helmholtz

    (1821-1894)A Biografia de HehnholtzContribuies de Helmholtz:

    o Impulso Neural, a Visoe a Audio

    Ernst Weber ( 1795-1878)O Limiar de Dois PontosAs Diferenas Mnimas

    PerceptveisGustav Theodor Fechner

    (1801-1887)A Biografia de FechnerA Relao Quantitativa entre

    Mente e CorpoOs Mtodos PsicofsicosTexto Original Trecho sobre

    a Psicotsica, Extrado deElcmentts 01 Psydtophps-s(1860), de Gustav Fechner

    A Fundao Oficial daPsicologia

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    seu buraco tia parede... Abandonado nesse lugar, o assistente passa seus dias, semanase meses no mesmo longo e cansativo cmputo, e sem um amigo para encurtar as horasentediantes, ou uma alma com quem possa conversar" (apud Croarken, 2003, p. 285).

    O local era o Observatrio Real em Greenwich, Inglaterra; o ano era 1795. Kinnebrooktrabalhava como assistente do reverendo Nevil Maskelyne (1732-1811), um astrnomo darealeza. Trabalhou para o reverendo durante 1 ano, 8 meses e 22 dias antes de ser des-pedido, e nunca soube que seu trabalho teve papel impactante para a fundao da novacincia da psicologia.

    Tudo comeou com a diferena de cinco dcimos de segundo. Isso no muito, pode-sedizer, mas foi demais para o astrnomo. Quando Maskelyne percebeu que as observaesde Kinnebrook sobre o tempo decorrido na passagem de uma estrela de um ponto a outroera inferior ao seu, repreendeu-o pelo engano, e alertou-o para que fosse mais cuidadoso.Kinnebrook tentou, mas as diferenas aumentaram. Maskelyne relata:

    Devo mencionar que meu assistente, Sr. David Kinnehrook, que observava criteriosamenteo movimento das estrelas e dos planetas por todo o ano de 1794 e parte do presente ano,obedecendo aos mesmos procedimentos por mim utilizados, passou a registrar a partirdo incio de agosto passado meio segundo de atraso em relao s minhas observaes,e, em janeiro do ano seguinte, ou seja, em 1796, ele aumentou seu erro em oito dcimosde segundo.

    Infelizmente, suas observaes prosseguiram por um perodo considervel, antes queeu notasse o erro e no me parecia possvel resolver esse problema e retornar ao mtodocorreto de observao, portanto, embora relutante, visto ser ele um timo e cuidadosoassistente em diversos aspectos, acabei dispensando-o (apud Howse, 1989, p. 169).

    E assim, Kinnebrook foi demitido e caiu no esquecimento sem tomar conhecimentode que, realmente, no havia cometido erro algum.

    O incidente de Kinnebrook foi ignorado por 20 anos, at o fenmeno tornar-seobjeto de investigao do astrnomo alemo Friedrich Wilhelm Bessel (1784-1846), queestava interessado em estudar os erros de medio. Ele suspeitava que aqueles "erros" doassistente de Maskelyne deveriam ser atribudos s diferenas individuais - distinespessoais sobre as quais as prprias pessoas no tm controle. Assim, raciocinou Bessel, asdiferenas podem ser encontradas entre os tempos observados por todos os astrnomos,fenmeno que passou a ser chamado de "equao pessoal". Bessel continuou investigandoessa hiptese e constatou que estava correto. Mesmo entre vrios astrnomos experientes,as divergncias eram comuns.

    Bessel chegou a duas concluses com sua descoberta: (1) os astrnomos devem levarem considerao a natureza humana do observador, j que as caractersticas e as percep-es pessoais necessariamente influenciam as observaes; (2) se a astronomia deve levarem conta o papel do observador humano, certamente ele importante tambm nas outrascincias que dependem dos mtodos de observao.

    Filsofos empiristas, como Locke e Berkeley, debateram a natureza subjetiva da per-cepo humana, usando como argumento a afirmao de que nem sempre h - ou quemuitas vezes no h - correspondncia exata entre a natureza de um objeto e a nossa per-cepo sobre esse objeto. O trabalho de Bessel ilustrou e corroborou a teoria com os dadosde uma cincia pura: a astronomia. Assim, os cientistas foram forados a concentrar-seno papel do observador humano como responsvel pelos resultados das experincias.

  • CAPTULO 3 As INFLUNCIAS FISIOLGICAS NA PSICOLOGIA 57

    Consequentemente, eles comearam a estudar os rgos dos sentidos humanos - os meca-nismos fisiolgicos por meio dos quais recebemos informaes a respeito do universo,como forma de investigao dos processos psicolgicos da sensao e da percepo. Dessemodo, os fisiologistas comearam a aplicar essa metodologia no estudo da sensao e apsicologia estava a um passo de seguir o mesmo caminho.

    Os Avanos Iniciais da FisiologiaA pesquisa fisiolgica que estimulou e orientou a nova psicologia era produto do trabalhocientfico do final do sculo XIX. Assim como todos os demais esforos, esse tambm tevepredecessores , trabalhos iniciais que lhe serviram de base. A fisiologia tornou-se urna disci-plina voltada aos experimentos , durante a dcada de 1830, principalmente sob a influnciado fisiologista alemo Johannes Mller ( 1801-1858), defensor do mtodo experimental.Mller ocupava posio de prestgio como professor de anatomia e fisiologia da Universityof Berlin. Era um fenmeno na produo de trabalhos , publicando em mdia um trabalhoacadmico a cada sete semanas. Manteve esse ritmo por 38 anos e suicidou

    - se duranteuma crise depressiva.

    Uma de suas obras de maior influncia, Hun lbook o f the physology of nmrtkind, foi publi-cada entre 1833 e 1840. Seus volumes contm o resumo das pesquisas fisiolgicas desseperodo e sistematizam um vasto conhecimento a respeito da rea. Eles apresentam muitosestudos novos , sinalizando o rpido crescimento do trabalho experimental

    . O primeirovolume foi traduzido para o ingls em 1838 , e o segundo em 1842 , confirmando o interes-se dos cientistas de vrios outros pases alm da Alemanha na pesquisa fisiolgica.

    Sua teoria sobre a energia especfica dos nervos tambm foi muito importante paraa fisiologia e a psicologia . Mller afirmava que a estimulao de determinado nervo sem-pre provocava uma sensao caracterstica, porque cada nervo sensorial possua energiaespecfica prpria. Essa noo estimulou a realizao de muitas pesquisas para localizaras funes dentro do sistema nervoso e apontar os mecanismos sensoriais receptores nasregies perifricas do organismo.

    0Mapeamento Interno das funes Cerebrais

    Muitos dos primeiros fisiologistas realizaram suas pesquisas diretamente nos tecidos cere-brais e essas contribuies foram substanciais para o estudo das funes do crebro. Essesesforos foram as primeiras tentativas de mapeamento das funes cerebrais, ou seja, dedeterminar as partes especficas do crebro responsveis pelo controle das diferentes funescognitivas. A importncia desse trabalho para a psicologia no se restringe delimitaodas reas especializadas do crebro, como reside tambm no refinamento dos mtodos depesquisa que mais tarde viriam a ser amplamente usados na psicologia fisiolgica.

    O mdico escocs Marshall Hall (1790-1857), na poca trabalhando em Londres, foio pioneiro na investigao do comportamento por reflexo. Hall observou que os animaisdecapitados continuavam a se mover por algum tempo mediante o estmulo de vriasterminaes nervosas. Chegou concluso de que os diversos nveis de comportamentotm origem nas diferentes partes do crebro e do sistema nervoso. Mais especificamente,

  • 58 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODER\'A

    Hall postulava que o movimento voluntrio dependia do crebro; o movimento de refle-xo, da medula espinhal; o movimento involuntrio, da estimulao direta dos msculos,e o movimento respiratrio, da medula.

    A pesquisa do professor de histria natural da College de France, de Paris, PierreFlourens (1794-1867), envolvia a destruio sistemtica de partes do crebro e da medulaespinhal dos pombos, bem como a observao das consequncias. Flourens concluiu queo crebro controlava os processos mentais mais elevados; partes do crebro mdio contro-lavam os reflexos visuais e auditivos; o cerebelo, a coordenao, e a medula, o batimentocardaco, a respirao e outras funes vitais.

    As descobertas de Hall e Flourens, embora consideradas vlidas no aspecto geral, sosecundrias para os nossos propsitos em relao ao uso do mtodo de extirpao, noqual o pesquisador tenta determinar a funo de uma parte especfica do crebro, remo-vendo-a ou destruindo-a e observando as consequentes mudanas no comportamentodo animal.

    Extirpao : tcnica para definir a funo de determinada parte do crebro animal, remo-vendo-a ou destruindo-a para observar as mudanas no comportamento.

    A segunda metade do sculo XIX presenciou a introduo de duas abordagens expe-rimentais complementares pesquisa sobre o crebro: o mtodo clnico e a tcnica doestmulo eltrico. O mtodo clnico foi desenvolvido em 1861 por Paul Broca (1824-1880),cirurgio de um hospital prximo a Paris para doentes mentais. Broca realizou a autpsiade um homem que, por muitos anos, apresentara uma fala incompreensvel. O exame cl-nico revelou uma leso na terceira convoluo frontal do hemisfrio esquerdo do crtexcerebral. Broca denominou essa seo do crebro de centro da fala, que mais tarde ficouconhecida como a rea de Broca., O mtodo clnico servia como complemento da tcnicade extirpao, j que era difcil obter o consentimento das pessoas para remover partes doseu crebro. Como uma espcie de "extirpao ps-morte", o mtodo clnico possibilitao exame da rea danificada do crebro, considerada responsvel pelo comportamento dopaciente quando ainda vivo.

    Mtodo clnico : exame ps-morte das estruturas do crebro para detectar as reas lesionadas,consideradas responsveis pelo comportamento do indivduo antes de sua morte.

    A tcnica dos estmulos eltricos para o estudo do crebro foi aplicada pela primeiravez em 1870, por Gustav Fritsch e Eduard Hitzig. A tcnica consiste na aplicao de fracascorrentes eltricas para a explorao do crtex cerebral. Fritsch e Hitzig descobriram que aestimulao de certas reas corticais de coelhos e ces provocava algumas reaes motoras,como a movimentao das patas. Com o desenvolvimento de equipamentos eletrnicoscada vez mais sofisticados, a tcnica dos estmulos eltricos tornou-se extremamente pro-dutiva para o estudo das funes cerebrais.

    ' 0 crebro de Broca est preservado no Museu do Homem, de Paris.

  • CAPTULo 3 As INFLUNCIAS FISIOIGICAS NA PSICOLOGIA 59

    Estmulos eltricos : tcnica de explorao do crtex cerebral que consiste em aplicar peque-nos choques eltricos para observar a resposta motora.

    0 Mapeamento Externo das Funes Cerebrais

    Dentre os cientistas que tentavam realizar o mapeamento interno do crebro estava omdico alemo Franz Josef Gall (1758-1828), que dissecava crebros de animais e de pes-soas mortas. Seu trabalho constatou a existncia de substncias cerebrais, branca e acin-zentada, a conexo de cada lado do crebro ao lado oposto da medula espinhal por meiode fibras nervosas e a ligao por fibras entre as metades do crebro.

    Aps completar esse minucioso programa de pesquisa, Gall voltou sua ateno para aparte externa do crebro. Ele desejava descobrir se era possvel obter informaes sobre aspropriedades cerebrais analisando o tamanho e o formato do crebro. Com relao ao seutamanho, os estudos realizados com animais demonstraram tendncia de comportamen-to mais inteligente em animais com crebros maiores do que nas espcies com crebrosmenores. No entanto, quando comeou a investigar o formato do crebro, Gall aventu-rou-se por um territrio controverso. Ele fundou um movimento chamado cranioscopia,mais tarde conhecido como frenologia, cuja proposta afirmava que o formato do crniode uma pessoa revelava suas caractersticas intelectuais e emocionais. Sua reputao caiurapidamente quando promoveu essa ideia e ele no era mais visto pelos colegas como umrespeitvel cientista, mas como um charlato e uma fraude.

    Gall acreditava que, quando uma habilidade mental, como a conscincia, a benevoln-cia ou a autoestima, fosse particularmente bem desenvolvida, devia existir uma protusoou uma salincia correspondente na superfcie do crebro, na regio controladora dessacaracterstica. Se a capacidade fosse inferior, haveria um afundamento no crnio. Depoisde examinar as salincias e os afundamentos de muitas pessoas, Gall mapeou a localiza-o de 35 atributos humanos (veja Figura 3.1).

    Uni aluno de Gall, Johann Spurzheim, e um frenologista escocs, George Combe, contri-buram muito para a popularizao do movimento. Viajaram por toda a Europa e pelos EstadosUnidos, dando aulas e demonstraes a respeito da frenologia. Seu sucesso foi rapidamenteobscurecido pelos dois irmos, Orson e Lorenzo Fowler, filhos com boa escolaridade de umfazendeiro no norte de Nova York. Os irmos Fowler interessaram-se pela frenologia depoisde lerem os trabalhos de Spurzheim e Combe e resolveram desenvolver um empreendimentoextremamente bem-sucedido. Como descrito pelos psiclogos Ludy Benjamin e David Baker,milhes de americanos tiveram suas cabeas examinadas e as salincias dos seus crebroslidos pelos Fowlers e seus associados. Os irmos

    abriram clnicas em Nova York, Boston, e Filadlfia no final da dcada de 1830. Venderamo direito de abrir clnicas em outras cidades, principalmente atravs do treinamento defrenologistas, e fornecendo suprimentos frenolgicos como bustos para exibio e ensino,compassos de calibre e tamanhos diversos para medies, painis, manuais para vendae, para o frenologista itinerante, caixas para transportar os instrumentos e suprimentos.(Benjamin e Baker, 2004, p. 4-5).

  • 60 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    Seus negcios foram incrivelmente lucrativos e continuaram sendo bem-sucedidos nosculo XX. Iniciaram urna revista, a American PlzrenologicaI Journal, em 1838, que foi publicadapor mais de 70 anos. Os clientes chegavam em quantidade to grande que os consultriosfrequentemente pareciam um show. Os frenologistas iam de cidade em cidade, "fazendovisitas nos dias marcados, estabelecendo-se por um curto perodo, e oferecendo seus servi-os mediante uma taxa (...) vendiam livros e painis, assim como os grupos de rock atuaisvendem camisetas e psteres em seus shows" (Sokal, 2001, p. 25)

    Sociedades frenolgicas foram formadas, e a leitura de cabeas tornou-se to difundi-da que muitas empresas americanas usaram a tcnica para selecionar seus funcionrios.Praticantes da frenologia afirmavam que podiam us-la para avaliar o nvel de intelignciade uma criana e para aconselhar casais em dificuldades matrimoniais. Assim, a crenade que a frenologia podia ser aplicada a problemas prticos foi a principal razo de seusucesso nos Estados Unidos.

    A crtica mais veemente em relao cranioscopia de Gall teve como base a pesquisaconduzida por Pierre Flourens. Ao destruir sistematicamente as partes de um crebro (usandoo mtodo da extirpao), Flourens descobriu que o formato do crnio no correspondia aoscontornos do tecido cerebral subjacente. Alm disso, o tecido cerebral era delicado demaispara produzir alteraes, tais como protuberncias ou afundamentos, na superfcie sseado crnio. Flourens e outros fisiologistas tambm demonstraram erros nas reas designadaspor Gall para as funes mentais especficas. Portanto, se voc estiver procurando algumasalincia ou afundamento no seu crnio, pode ficar certo de que eles no revelam qualquercaracterstica sobre o funcionamento intelectual ou emocional do seu crebro.

    Gall fracassou na tentativa de mapear a parte externa do crebro, no entanto suasideias reforaram a crena, cada vez mais forte entre os cientistas, na possibilidade de selocalizar as funes especficas do crebro com a aplicao do mtodo clnico, da extirpa-o e dos estmulos eltricos.

    H uma lio a ser aprendida com o sucesso, e depois fracasso, da frenologia, quepode ser aplicada a todos os movimentos de todos os tempos. No h necessariamenteuma relao entre a popularidade de uma ideia, tendncia ou escola de pensamento esua validade. Daniel Robinson, um famoso historiador da psicanaltica, observou que a"frenologia de Gall floresceu tanto tempo quanto a teoria da psicanlise [e] seus achadose dizeres encheram muitos peridicos ... Cidados educados de todos os plos culturaisapalpavam as cabeas uns dos outros com muita seriedade. Assim, uma outra lio moralse faz presente: o impacto em si nada estabelece em relao validade ou adequao dostrabalhos" (Robinson, 2003, p. 200). Em outras palavras, s porque algo popular nosignifica que seja verdadeiro.

    0 Estudo do Sistema Nervoso

    Durante esse perodo, tambm foi realizada uma quantidade considervel de pesquisassobre a estrutura do sistema nervoso. At aqui, vimos duas descries da atividade neural:a teoria do tubo de Descartes e a teoria das vibraes de Hartley.

    Quase ao final do sculo XVIII, o pesquisador italiano Luigi Galvani (1737-1798) sugeriuque os impulsos nervosos seriam eltricos. O sobrinho de Galvani, Giovanni Aldini, deucontinuidade ao seu trabalho e um historiador relatou que ele "misturou pesquisa sria comum pouco de espetculo. Em uma das exibies mais horrendas, destinadas a enfatizar a

  • CAPTULO 3 As INFLUNCIAS FISIOLGICAS NA PSIC)l OGIA 61

    CAPACIDADE AFETIVAPROPENSO A(O)

    ? Desejo de viver* Alimentao1 Destruio2 Amabilidade3 Filoprogenitura4 Devoo5 Habitabilidade6 Combatividade7 Discrio8 Avidez9 Construtividade

    JUIZO DE10 Precauo11 Aprovao12 Autoestima13 Benevolncia14 Reverncia15 Firmeza16 Conscincia17 Esperana18 Maravilhamento19 Idealidade20 Jovialidade21 Imitao (ou mimetismo)

    CAPACIDADE INTELECTUALPERCEPO E)F: REFLEXO DE

    22 Individualidade 34 Comparao23 Configurao 35 Causalidade24 Tamanho25 Peso e resistncia26 Cor27 Localidade28 Ordem29 Clculo30 Eventualidade31 Tempo32 Harmonia33 Idioma

    Figura 3.1 0 poder e os rgos mentais.

  • 62 HIs1RIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    eficcia dos estmulos eltricos na obteno dos movimentos espasmdicos dos msculos,Aldini exibiu as cabeas decapitadas de dois criminosos" (Boakes, 1984, p. 96).

    O trabalho experimental prosseguiu com tamanha rapidez que, em meados do sculoXIX, os cientistas aceitaram como fato comprovado a natureza eltrica dos impulsos nervo-sos. Passaram a crer que o sistema nervoso constitua-se essencialmente de um condutorde impulsos eltricos e que o sistema nervoso central funcionava como uma estao detransferncia, desviando os impulsos para as fibras nervosas sensoriais ou motoras.

    Embora essa posio representasse grande avano na teoria sobre o tubo nervoso deDescartes e na teoria das vibraes de Hartley, em termos de conceito era semelhante.Ambas as teorias, a antiga e a mais recente, tinham corno base o reflexo: um elementodo mundo exterior (o estmulo) provoca impacto no rgo do sentido e, assim, excita oimpulso nervoso, que segue at o local adequado do crebro ou do sistema nervoso cen-tral e ali reage, criando outro impulso, que transmitido atravs dos nervos motores paraacionar a resposta do organismo.

    A direo seguida pelos impulsos nervosos no crebro e na medula espinhal foi desco-berta pelo mdico espanhol Santiago Ramn y Cajal (1852-1934), professor de anatomiada escola de medicina da University of Zaragoza e diretor do Museu de Zaragoza. Pelasdescobertas, recebeu a medalha Helmholtz da Academia Real de Cincias de Berlim em1905 e o Prmio Nobel em 1906. Ramn y Cajal teve dificuldades para divulgar suasdescobertas comunidade acadmica, j que a lngua espanhola no era utilizada naspublicaes especializadas da poca. Frustrado, ele "muitas vezes ficou decepcionado aoler sobre as `novas' descobertas, nas revistas inglesas, alems ou francesas, que na reali-dade eram redescobertas do seu trabalho publicado muito antes em espanhol" (Padilla,1980, p. 116). Sua situao outro exemplo das barreiras enfrentadas pelos cientistas quetrabalham fora do crculo da cultura dominante.

    Os pesquisadores tambm estavam estudando a estrutura anatmica do sistema ner-voso. Descobriram que as fibras nervosas eram compostas de estruturas separadas (neu-rnios) e de alguma forma eram conectadas a pontos especficos (sinapses). Essas desco-bertas coincidiam com a imagem mecanicista do funcionamento humano. Os cientistasacreditavam que o sistema nervoso, assim como a mente, era constitudo de estruturas detomos, partculas de matria combinadas para produzir um produto mais complexo.

    0 Esprito do Mecanicismo

    O esprito do mecanicismo era predominante na fisiologia do sculo XIX, assim como afilosofia da poca. No havia outro lugar em que esse esprito se destacasse tanto comona Alemanha. Na dcada de 1840, um grupo de cientistas, muitos dos quais ex-alunos deJohannes Mller, fundou a Sociedade de Fsica de Berlim. Esses cientistas, todos na faixados 20 anos, estavam comprometidos com uma nica proposta: a explicao de todos osfenmenos pelos princpios da fsica.

    O grupo desejava relacionar a fisiologia com a fsica, ou seja, desenvolver a fisiologiacom base no quadro de referncia do mecanicismo. Em um gesto mais dramtico, quatrodos cientistas prestaram um juramento solene e o selaram, como reza a lenda, com o prpriosangue. Essa declarao estabelecia que as nicas foras ativas dentro do organismo eramas foras psicoqumicas comuns. E assim as linhas se entrelaaram na fisiologia do sculoXIX: o materialismo, o mecanicismo, o empirismo, o experimentalismo e a medio.

  • CAI'ITULO 3 As INFLUN( IAS FISIOLGICAS NA PSICOLOGIA 63

    A evoluo inicial da fisiologia indica os tipos de tcnicas de pesquisa e as descober-tas que fundamentaram a abordagem cientfica da investigao psicolgica da mente.Enquanto os filsofos abriam o caminho para o ataque experimental da mente, os fisio-logistas realizavam experincias para investigar os mecanismos que esto por trs dosfenmenos mentais. O passo seguinte era a aplicao do mtodo experimental na mentepropriamente dita.

    Os empiristas britnicos argumentavam que a sensao era a nica fonte de conhe-cimento. O astrnomo Bessel demonstrou o impacto da observao das diferenas indi-viduais na sensao e na percepo. Os fisiologistas estavam definindo a estrutura e afuno dos sentidos. Era chegada a hora de estudar e quantificar esse porto de entradapara a mente: a experincia mentalstica e subjetiva da sensao. As tcnicas disponveispara a investigao do corpo passaram a ser aperfeioadas para a explorao da mente. Apsicologia experimental estava pronta para comear.

    Os Primrdios da Psicologia ExperimentalAs primeiras aplicaes do mtodo experimental mente, ou seja, ao que consistia noobjeto de estudo da nova psicologia , so creditadas a quatro cientistas : Hermann vonHelmholtz , Ernst Weber, Gustav Theodor Fechner e Wilhelm Wundt. iodos eram cientis-tas alemes especializados em fisiologia e cientes da impressionante evoluo da cinciamoderna.

    Por que a Alemanha?

    A cincia estava em franco desenvolvimento na maior parte da Europa ocidental no scu-lo XIX, principalmente na Inglaterra, Frana e Alemanha. O entusiasmo, a conscincia eo otimismo na aplicao das ferramentas cientficas aos diversos temas de pesquisa noestavam concentrados em nenhuma nao especfica. Ento, por que a psicologia experi-mental teve incio na Alemanha e no na Inglaterra, Frana ou em outro local? A respostaparece estar em algumas caractersticas exclusivas da cincia alem que a tornou o solomais frtil para o crescimento da nova psicologia.

    A abordagem cientfica alem. Durante um sculo, a histria intelectual da Alemanhapreparou o caminho para a cincia experimental da psicologia. A fisiologia experimentalestava bem estabelecida e era reconhecida por um estgio ainda no atingido pela Franae pela Inglaterra. O famoso temperamento alemo adaptava-se bem ao trabalho preciso declassificao e de descrio exigido em biologia, zoologia e fisiologia. Enquanto cientistasfranceses e ingleses favoreciam o tratamento matemtico dedutivo, os alemes, com nfasena coleta minuciosa e completa dos fatos observveis, adotavam a abordagem indutiva.

    As cincias biolgicas e fisiolgicas no do muita margem a generalizaes quepermitam a deduo dos fatos, por isso, a aceitao da biologia foi lenta na comunida-de cientfica inglesa e francesa. Entretanto, a Alemanha, munida de sua f na descrioe classificao taxonmica, recebeu de braos abertos a biologia como um membro dafamlia das cincias.

  • 64 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    Mais tarde, os alemes acabaram por definir integralmente a cincia, que na Franae na Inglaterra limitava-se fsica e qumica, duas reas passveis de serem abordadasquantitativamente. A cincia alem inclua reas como a fontica, a lingustica, a histria,a arqueologia, a esttica, a lgica e at mesmo a crtica literria. Os estudiosos francesese ingleses eram cticos em relao aplicao da cincia complexa mente humana. Osalemes, no, e por isso deram um salto frente, usando as ferramentas da cincia paraexplorar e medir todas as facetas da atividade mental.

    O movimento reformista nas universidades alems . No incio do sculo XIX, umaonda de reforma educacional voltada aos princpios da liberdade acadmica invadiu asuniversidades da Alemanha. Os professores foram encorajados a ensinar o que desejas-sem, sem interferncia externa, e a escolher os temas das prprias pesquisas. Os alunostinham liberdade para escolher as matrias que desejassem cursar, sem a imposio deum currculo fixo e obrigatrio. Essa liberdade, desconhecida nas universidades da In-glaterra e da Frana, tambm se estendeu para as novas reas da pesquisa cientfica, porexemplo, a psicologia.

    O estilo universitrio alemo criou o ambiente ideal para o surgimento da investiga-o cientfica. Os professores escolhiam os prprios temas das aulas, alm de contaremcom laboratrios bem equipados para orientar os alunos nas pesquisas experimentais.No houve outro pas que promovesse a cincia de forma to ativa.

    A Alemanha tambm proporcionou grandes oportunidades para aprendizagem eprtica de novas tcnicas cientficas; temos aqui um exemplo do impacto das condieseconmicas prevalecentes na poca (um fator contextuai). Havia muitas universidades naAlemanha. Antes de 1870, ano em que fora unificada e dotada de um governo central, aAlemanha era uma confederao dispersa de reinados, ducados e cidades-estado autnomos.Cada um desses distritos era provido de universidades bem financiadas, com um corpodocente bem-remunerado e equipamentos de laboratrio com tecnologia de ponta.

    Naquela poca, a Inglaterra possua apenas duas universidades, a Oxford e a Cambridge,e em nenhuma delas havia incentivo, auxlio nem financiamento para pesquisas cientficasde qualquer disciplina. Alm disso, a poltica acadmica era contrria implementaode novas reas de estudo no currculo. Em 1877, a Cambridge vetou o pedido de inserode aulas de psicologia experimental porque poderia "ser um insulto religio colocar aalma humana em uma balana de medio" (Hearnshaw, 1987, p. 125). A psicologia expe-rimental ficou fora do currculo da Cambridge por 20 anos e foi ministrada somente em1936 na Oxford. A nica maneira de praticar cincia na Inglaterra era maneira de umnobre cientista, vivendo com independncia econmica, como fizeram Charles Darwine Francis Galton (Captulo 6). A situao na Frana era semelhante.

    Nos Estados Unidos, a primeira universidade dedicada pesquisa surgiu apenas em1876, com a fundao da Johns Hopkins University, em Baltimore, Maryland. Essa novauniversidade baseava-se fortemente no modelo alemo. Seu objetivo principal era fazerda pesquisa cientfica o centro e o foco no treinamento dos alunos de ps-graduao. Narealidade, Baltimore em si, foi considerada "um pedacinho da Alemanha que havia serestabelecido no lado leste da regio costeira". De acordo com o psiclogo e filsofo JohnDewey (ver Captulo 7), "os alunos e professores se reuniam [na sala do clube da Hopkins]para beber cerveja alem e cantar canes alems" (apud Martin, 2002, p. 56).

    No entanto, havia mais oportunidades para pesquisas cientficas na Alemanha do queem outros pases. Praticamente, pode-se afirmar que era possvel-ganhar a vida como pes-quisador cientfico na Alemanha, mas no na Frana , na Inglaterra ou nos Estados Unidos.

  • CAPTULO 3 As INFLUNCIAS FISIOLGI(As NA Psicuu>ci \ 65

    Assim , as chances de algum se tornar um professor respeitado e bem-remunerado erammaiores na Alemanha do que em qualquer parte do mundo, embora no fosse fcil alcan-ar as posies mais elevadas . 0 promissor cientista universitrio era obrigado a produziruma pesquisa que fosse considerada pelos colegas uma grande contribuio , para que otrabalho fosse visto como algo mais que apenas uma tese de doutorado . Consequentemente,a maioria das pessoas selecionadas para as carreiras universitrias era do mais alto calibree, assim que elas passavam a fazer parte do corpo docente, recebiam ainda mais pressopara a publicao de trabalhos.

    Embora a competio fosse intensa e as exigncias elevadas, a recompensa valia todoo esforo . Somente o melhor obtinha xito na cincia alem do sculo XIX e o resultadofoi uma srie de feitos alcanados em todas as cincias, inclusive na nova psicologia. Por-tanto, o fato de terem sido os professores universitrios alemes as pessoas diretamenteresponsveis pelo crescimento da psicologia cientfica no simples coincidncia.

    Hermann von Helmholtz (1821-1894)Um dos maiores cientistas do sculo XIX, foi um pesquisador produtivo na fsica e nafisiologia. A psicologia vinha em terceiro lugar nas suas reas de contribuio cientfica,embora seu trabalho, juntamente com o de Fechner e o de Wundt, fosse fundamental parao incio da nova psicologia. Ele dava nfase ao tratamento mecanicista e determinista,partindo do princpio de que os rgos sensoriais humanos funcionavam como mquinas.Apreciava tambm as analogias tcnicas, como, por exemplo, comparar a transmisso dosimpulsos nervosos com a operao do telgrafo (veja Ash, 1995).

    A Biografia de Helmholtz

    Nasceu em Potsdam, na Alemanha, onde seu pai era professor do Gvnvrcl.siu?n (no sistemaeducacional europeu, curso de nvel mdio preparatrio para a universidade). Helmholtzrecebia aulas particulares em casa, por causa da fragilidade da sua sade. Aos 17 anos,matriculou-se no instituto mdico de Berlim, que isentava das mensalidades os alunosque se comprometessem a servir como cirurgies do exrcito aps a graduao. Helmholtzserviu durante sete anos, perodo em que prosseguiu com os estudos de matemtica e fsi-ca e que publicou diversos artigos. Em um trabalho cujo tema era a indestrutibilidade daenergia , utilizou-se de frmulas matemticas para criar a lei da conservao da energia.Depois de deixar o exrcito, Helmholtz aceitou a posio de professor-assistente de fisio-logia da University of Knigsberg. Nos 30 anos seguintes, recebeu nomeaes acadmicasem fisiologia nas universidades de Bonn e Heidelberg e em fsica, em Berlim.

    Extremamente entusiasta, Helmholtz dedicou-se a diversas reas acadmicas. Ao rea-lizar uma pesquisa de fisiologia ptica, inventou o oftalmoscpio, utilizado at hoje paraexaminar a retina. Esse instrumento revolucionrio possibilitou a realizao de diagns-ticos e tratamentos de doenas da retina. Como consequncia, seu nome "espalhou-serapidamente por todo o pblico e universo acadmico. Em um piscar de olhos progrediuna carreira e tornou-se reconhecido mundialmente" (Cahan, 1993, p. 574). Tudo isso aos30 anos.

  • 66 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    Seu trabalho em trs volumes sobre a ptica fisiolgica, Handbook of physiologicaloptics (Manual de ptica fisiolgica, 1856-1866), exerceu uma influncia to intensa eduradoura que foi traduzido para o ingls 60 anos depois. Em On the sensations of tone,1863, publicou uma pesquisa a respeito dos problemas acsticos, resumindo as prpriasdescobertas e juntando o restante da literatura disponvel. "Tambm escreveu trabalhosreferentes a vrios assuntos, como a imagem persistente, o daltonismo, a escala musicalrabe-persa, o movimento dos olhos humanos, a formao das geleiras, os axiomas geo-mtricos e a febre do feno. Anos mais tarde, contribuiu indiretamente para a invenodo telgrafo sem fio e do rdio.

    No outono de 1893, voltando de uma viagem aos Estados Unidos que incluiu umavisita feira mundial de Chicago, Helmholtz sofreu uma queda a bordo do navio. Menosde um ano depois, sofreu um ataque que o deixou semiconsciente e em estado de delrio.Sua esposa relatou: "Seu pensamento oscilava confusamente entre a vida real e o sonho,o tempo e o lugar, tudo misturado em sua mente. (...) Era como se sua alma estivessedistante, bem longe, em um mundo ideal muito bonito, embalado apenas pela cincia epelas leis eternas" (apiul Koenigsberger, 1965, p. 429).

    Contribuies de Helmholtz: o Impulso Neural, a Viso e a Audio

    As pesquisas de Helmholtz de interesse para a psicologia so as referentes velocidade doimpulso neural e sobre a viso e a audio. Os cientistas aceitaram a teoria de que o impul-so nervoso era instantneo, ou pelo menos que viajava rpido demais para ser medido.Helmholtz forneceu a primeira medio emprica da velocidade de conduo, estimulandoum nervo motor e o msculo anexo da perna de um sapo. Ele preparou a demonstraode forma que registrasse o momento exato do estmulo e do movimento resultante. Tra-balhando com nervos de diversos comprimentos, observou o tempo entre a aplicao doestmulo no nervo prximo ao msculo e a reao muscular e fez o mesmo estimulandoum nervo mais distante. As medies resultaram no tempo necessrio para a rpida con-duo do impulso neural: aproximadamente 27 metros por segundo.

    Helmholtz tambm pesquisou os tempos de reao dos nervos sensoriais em sereshumanos, estudando o circuito completo desde a estimulao do rgo do sentido ata reao motora resultante. As descobertas mostraram enormes diferenas individuais,alm de divergncias entre um experimento e outro com a mesma pessoa, de modo queele acabou abandonando a pesquisa.

    A demonstrao de Helmholtz de que a velocidade de conduo no era instantnealevantou a hiptese de que o pensamento e o movimento seguem um ao outro em interva-lo mensurvel e no ocorrem simultaneamente, como se pensava. No entanto, Helmholtzestava interessado na medio propriamente dita, e no no significado psicolgico. Maistarde, as implicaes da pesquisa na nova psicologia foram reconhecidas por outros cien-tistas que realizaram experincias bem-sucedidas, relacionadas com o tempo de reao.O trabalho de Helmholtz foi um dos primeiros passos na experimentao e na mediode um processo psicofisiolgico.

    Os estudos sobre a viso provocaram impacto na nova psicologia. Helmholtz pesqui-sou os msculos externos do olho e o mecanismo por meio do qual os msculos internosfocalizam o cristalino. Ele estudou e aprofundou a teoria da viso cromtica publicada em1802 por Thomas Young. Esse trabalho ficou conhecido como a teoria de Young-Helmholtz.

  • CAPTULO 3 As INFLUNCIAS FISIOLGICAS NA PSICOLOGIA 67

    A pesquisa a respeito da audio tambm muito importante, mais especificamente, dapercepo dos tons, da natureza da harmonia e desarmonia e o problema da ressonncia.A influncia permanente das suas ideias e experincias evidente pelo fato de ainda seremmencionadas nos livros didticos de psicologia moderna.

    Ele tambm se concentrou nos benefcios prticos ou aplicados da pesquisa cientfi-ca. No concordava com a ideia da conduo de experincias apenas para o acmulo deinformaes. Para ele, a misso do cientista era coletar a informao e estender ou aplicaraquela enorme quantidade de conhecimento aos problemas prticos. Veremos adiantemais avanos dessa abordagem na escola de psicologia funcionalista que fincou razesnos Estados Unidos (Captulos 7 e 8).

    Helmholtz no era psiclogo, nem a psicologia foi o seu principal interesse; no entan-to, sua contribuio tornou-se uma vasta e importante fonte de referncia para o estudodos sentidos humanos, alm de haver fortalecido a abordagem experimental para a an-lise das questes psicolgicas.

    Ernst Weber (1795-1878)Filho de um professor de teologia, Ernst Weber nasceu em Wittenberg, Alemanha. Obteveo doutorado na University of Leipzig, em 1815, onde lecionou anatomia e fisiologia ataposentar-se, em 1871. Sua principal rea de interesse em pesquisa, e da qual foram extra-das suas maiores contribuies, eram os rgos dos sentidos. Assim, aplicou os mtodosexperimentais da psicologia aos problemas de natureza psicolgica. As pesquisas anterio-res com os rgos dos sentidos foram realizadas quase exclusivamente sobre os sentidossuperiores, da viso e da audio. Weber explorou novos campos, mais especificamenteas sensaes cutneas e as musculares.

    D Limiar de Dois Pontos

    Uma contribuio muito importante para a nova psicologia refere-se determinao expe-rimental exata da distino entre dois pontos da pele, ou seja, o intervalo de tempo dadistncia entre dois pontos antes de o indivduo experimentar duas sensaes distintas.Encostando nas pessoas um aparelho semelhante a um compasso, sem que elas vissem,Weber pedia que descrevessem se sentiam um ou dois pontos tocando a pele. Quandoos dois pontos de estmulo estavam praticamente juntos, as pessoas afirmavam sentirapenas um . medida que aumentava a distncia entre as duas origens do estmulo, aspessoas mostravam-se hesitantes quanto experincia de sentir um ou dois pontos napele. Finalmente, atingia a distncia em que os indivduos relatavam sentir dois pontosdistintos tocando a pele.

    Esse procedimento demonstra o limiar de dois pontos , o ponto em que possveldistinguir duas origens separadas de estmulo. A pesquisa de Weber marca a primeirademonstrao sistemtica experimental do conceito de limiar (o ponto em que comea ase produzir o efeito psicolgico), noo amplamente usada na psicologia desde o seu incioat os dias atuais (no Captulo 13, discutiremos o conceito do limiar aplicado conscin-cia, no ponto em que as ideias inconscientes da mente tornam -se conscientes).

  • 68 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    Limiar de dois pontos: o limiar em que possvel distinguir dois pontos de estmulo.

    As Diferenas Mnimas Perceptveis

    A pesquisa de Weber resultou na formulao da primeira lei quantitativa da psicologia.Ele desejava determinar a diferena mnima perceptvel (dmp), ou seja, a menor diferen-a detectvel entre dois pesos. Pediu aos participantes da pesquisa para levantarem doispesos, um padro e um de comparao, e relatarem se algum deles pensava ser um maispesado que o outro. As diferenas menores entre os pesos resultaram no julgamento deigualdade e as maiores na avaliao de disparidade.

    Diferena mnima perceptvel : a menor diferena detectvel entre dois estmulos fsicos.

    Conforme prosseguia com o programa de pesquisa, Weber descobriu que a diferen-a mnima perceptvel entre dois pesos consistia em uma proporo constante, 1:40, dopeso padro. Em outras palavras, um peso de 41 gramas possua uma "diferena mnimaperceptvel" do peso padro de 40 gramas, e um peso de 82 gramas, uma diferena mni-ma perceptvel de 80 gramas.

    Weber, ento, desejava saber como as sensaes musculares contribuam para a capaci-dade de o indivduo distinguir entre dois pesos. Ele pensava que as pessoas seriam capazesde fazer essa diferenciao com maior preciso se elas mesmas levantassem o peso (rece-bendo nas mos e nos braos as sensaes musculares), e no com o peso sendo colocadoem suas mos pelo pesquisador. Na verdade, o levantamento dos pesos envolve a sensaottil (toque) e a muscular, ao passo que, se os pesos forem colocados nas palmas das mos,apenas a sensao ttil estar envolvida.

    As pessoas conseguiam sentir diferenas menores entre os pesos quando os levantavam(uma proporo de 1:40) do que quando eles eram colocados em suas mos (uma propor-o de 1:30). Assim, Weber chegou concluso de que as sensaes musculares internasdo primeiro exemplo exercem influncia sobre a capacidade distintiva do indivduo.

    A partir dessas experincias, Weber sugeriu que a distino entre as sensaes nodepende da diferena absoluta entre dois pesos, mas da diferena relativa ou da proporcio-nalidade. Nas experincias com as diferenas visuais, descobriu que a proporo era menordo que nas sensaes musculares. Assim, props uma razo constante para a diferenamnima perceptvel entre dois estmulos, consistente para cada sentido humano.

    A pesquisa de Weber demonstrou que no h correspondncia direta entre um estmu-lo fsico e a nossa percepo desse estmulo. Entretanto, assim como Helmholtz, Weberestava interessado apenas nos processos fisiolgicos e no dava importncia ao significadodo seu trabalho para a psicologia. Sua pesquisa proporcionou a criao de um mtodo deinvestigao da relao entre o corpo e a mente - entre o estmulo e a sensao resultan-te. Esse foi um feito muito significativo e que passou a exigir uma atitude mais sria emrelao sua importncia.

  • CAPTULO 3 As INFLUNCIAS FISIOLGICAS NA PSICOLOGIA 69

    As experincias de Weber estimularam outras pesquisas e concentraram a atenodos fisiologistas posteriores na utilidade do mtodo experimental no estudo do fenmenopsicolgico. O trabalho de Weber sobre os limiares e a medio da sensao foi da maiorimportncia para a nova psicologia e influenciou virtualmente cada aspecto da psicologiaat os dias atuais.

    Gustav Theodor Fechner (1801- 1887)Gustav Theodor Fechner foi um estudioso que buscou diversas conquistas intelectuais aolongo de uma vida extremamente ativa. Foi fisiologista durante sete anos, fsico por 15,psicofsico por 14, esttico experimental por 11, filsofo por 40 e ficou invlido por 12anos. Entre todas essas atividades, o trabalho com a psicofsica foi o que lhe trouxe maiorfama, embora no desejasse ser to lembrado pela posteridade.

    A Biografia de Fechner

    Fechner nasceu em uma vila no sudeste da Alemanha, onde o seu pai era clrigo. Comeoua estudar medicina na University of Leipzig em 181.7 e nesse perodo assistiu s aulas deWeber sobre fisiologia. Fechner passou o resto da vida em Leipzig.

    Mesmo antes de se formar em medicina, sua viso humanista era contrria ao meca-nicismo dominante no estudo cientfico. Com o pseudnimo de "dr. Mises", escreveustiras ridicularizando a medicina e a cincia. Esse conflito entre os dois lados da sua per-sonalidade perdurou por toda a vida: o interesse na cincia e na metafsica. Visivelmenteincomodado com a abordagem da corrente atomstica da cincia, criou um conceito aoqual chamou "viso diurna", em que o universo era analisado do ponto de vista da cons-cincia. Essa definio opunha-se ideia predominante da "viso noturna", em que ouniverso, inclusive a conscincia, consistia em nada alm de matria inerte.

    Depois de concluir o curso de medicina, Fechner iniciou a carreira na fsica e na mate-mtica, em Leipzig, alm de traduzir manuais de fsica e qumica do francs para o alemo.Por volta de 1830, j havia traduzido dezenas de volumes, e essa atividade rendeu-lhe oreconhecimento como fsico. Em 1824, comeou a lecionar fsica na universidade e a con-duzir a prpria pesquisa. Em torno do final da dcada de 1830, interessou-se pelo problemada sensao e, durante uma pesquisa com imagens persistentes, feriu gravemente os olhosao olhar diretamente para o sol pelas lentes coloridas.

    Em 1833, Fechner obteve uma prestigiosa nomeao para lecionar em Leipzig, quandocaiu em profunda depresso, que se prolongou por vrios anos. Queixava-se de cansao etinha dificuldade para dormir. Tinha uma digesto difcil e no sentia fome mesmo quan-do seu corpo estava beira da inanio. Sua sensibilidade luz era extrema e passava amaior parte do tempo em um quarto escuro com as paredes pintadas de preto, ouvindoa leitura que sua me lhe fazia atravs de uma abertura estreita da porta.

    Na esperana de amenizar o tdio e a melancolia, tentava fazer longas caminhadas,inicialmente apenas noite ou quando j houvesse escurecido e, mais tarde, durante odia, com os olhos cobertos com bandagens. Em uma espcie de catarse, escrevia poemase criava adivinhaes. Apelou para vrias terapias alternativas, entre as quais o uso de

  • 70 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    laxantes, choques eltricos, tratamentos com vapor e a aplicao de substncias escaldan-tes sobre a pele; mas nenhuma delas lhe trouxe a cura.

    A doena de Fechner pode ter sido de natureza neurtica. Essa ideia surgiu devido forma bizarra de sua recuperao. Uma amiga contou-lhe um sonho em que ela prepara-va-lhe uma refeio com um presunto cru temperado e marinado em vinho do Reno esuco de limo. No dia seguinte, arrumou o prato e o serviu a Fechner. Ele experimentou,embora relutante, mas a cada dia comia mais presunto, afirmando que, de alguma forma,sentia-se melhor. A melhora do seu estado no durou muito e, depois de seis meses, ossintomas pioraram, chegando a ponto de ele temer pela sua sanidade - Fechner decla-rou: "Tinha a sensao clara de ter perdido para sempre a minha mente, a menos queeu conseguisse refrear o fluxo de pensamentos perturbadores. Muitas vezes as mnimaspreocupaes me incomodaram a ponto de levar horas e at dias para me ver livre delas"(Kuntze, 1892, apud Balance e Bringmann, 1987, p. 42).

    Fechner obrigou-se a cumprir um regime de tarefas rotineiras, uma espcie de terapiaocupacional, mas limitado a atividades em que no fizesse uso dos olhos nem da mente."Eu produzia fios e bandagens, fazia velas de cera (...) enrolava fios e ajudava na cozinha,separando [e] lavando lentilhas, fazendo farelos de po e triturando o po-doce at deixarapenas o acar. Tambm descascava e cortava cenouras e nabos (...) e milhares de vezesdesejei a morte" (Fechner in Kuntze, 1892, apud Balance e Bringmann, 1987, p. 43).

    Aos poucos renascia o seu interesse pelo mundo ao redor e ainda mantinha a dieta dopresunto cru marinado no vinho. Teve um sonho em que aparecia o nmero 77, levando-oa crer que em 77 dias estaria curado. E, obviamente, ficou curado. A depresso transfor-mou-se em euforia e em delrios de grandeza e ele afirmava ser o escolhido de Deus pararesolver todos os mistrios do mundo. Essa experincia serviu-lhe de inspirao para adefinio do princpio do prazer, que vrios anos mais tarde influenciou o trabalho deSigmund Freud (Captulo 13).

    Embora 40 anos antes a University of Leipzig o tivesse considerado invlido e lheconcedido uma aposentadoria vitalcia, ele viveu at os 86 anos na mais perfeita sade,contribuindo significativamente para a cincia.

    A Relao Quantitativa entre Mente e Corpo

    Esta uma data importante para a histria da psicologia: 22 de outubro de 1850. Naquelamanh, Fechner estava deitado na cama, quando lhe ocorreu a ideia sobre a ligao entrea mente e o corpo. Ele afirmou ser possvel encontrar essa ligao na relao quantitativaentre a sensao mental e o estmulo material.

    Fechner alegava que o aumento na intensidade do estmulo no produzia um incre-mento com a mesma proporo na intensidade da sensao. Ao contrrio, a progressogeomtrica caracteriza o estmulo, enquanto a progresso aritmtica a sensao.

    Por exemplo, o acrscimo do som de um sino ao de outro que j esteja tocando produzum aumento maior da sensao sonora do que a adio de um sino a dez outros que jestejam tocando. Portanto, os efeitos da intensidade do estmulo no so absolutos, masproporcionais intensidade da sensao j existente.

    Essa revelao simples, porm brilhante, significa que a dimenso da sensao (aqualidade mental) depende da quantidade de estmulos (a qualidade fsica). Para medira mudana na sensao, necessrio medir a alterao no estmulo. Portanto, possvel

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    formular uma relao quantitativa ou numrica entre o corpo e a mente, vinculando-osde forma emprica, possibilitando a realizao de experincias com a mente.

    Embora o conceito estivesse bem claro para Fechner, como prosseguir com a teoria?O pesquisador deve medir com preciso tanto o que subjetivo como o que objetivo- tanto a sensao mental quanto o estmulo fsico. No difcil medir a intensidadefsica do estmulo, como a intensidade do brilho da luz ou o peso de um objeto padro,no entanto como medir a sensao, as experincias conscientes descritas pelas pessoasquando reagem ao estmulo?

    Fechner apresentou duas propostas para medir as sensaes. Primeiro, determinar seo estmulo est presente ou ausente, se foi sentido ou no. Segundo, medir a intensidadedo estmulo na qual as pessoas relatam a primeira sensao, ou seja , o limiar absolutoda sensibilidade, que o ponto de intensidade abaixo do qual a sensao no percebidae acima do qual sentida.

    Limiar absoluto : ponto de sensibilidade abaixo do qual as sensaes no so detectadas e acimado qual elas so percebidas.

    Embora a ideia do limiar absoluto seja til, ela limitada, j que apenas o valor domenor nvel da sensao pode ser determinado. Para relacionar as duas intensidades necessrio especificar toda a faixa de valores do estmulo e os valores de sensao resultan-tes. Para isso, Fechner apresentou o conceito de limiar diferencial da sensibilidade, que a quantidade mnima de alterao no estmulo que provoca uma mudana na sensao.Por exemplo, em que medida o peso deve ser aumentado ou diminudo para que a pessoaperceba a mudana? Em quanto o peso deve ser aumentado ou dimunudo antes que elarelate uma mudana na sensao?

    Limiar diferencial : o ponto de sensibilidade em que a menor alterao em um estmulo provocauma mudana na sensao.

    Para medir a noo de peso de determinada pessoa (qual a sensao que o peso provocana pessoa), no podemos usar a medio fsica do peso do objeto. No entanto, podemosus-la como base para a medio da intensidade psicolgica da sensao.

    Primeiro, medimos em que proporo a intensidade deve ser reduzida para que a pes-soa perceba a diferena. Segundo, mudamos o peso do objeto para o seu valor mnimoe medimos novamente o tamanho do diferencial. Como as duas mudanas de peso soapenas levemente perceptveis, Fechner concluiu que eram subjetivamente iguais.

    Esse processo pode ser repetido at que o objeto seja levemente sentido pelo indivduo.Se cada reduo de peso for subjetivamente igual a qualquer outra, ento a quantidade devezes que o peso deve ser reduzido - o nmero de diferenas mnimas perceptveis - pode serconsiderada a medio objetiva da magnitude subjetiva da sensao. Desse modo, estamosmedindo os valores dos estmulos necessrios para criar a diferena entre duas sensaes.

    Fechner sugeriu que, para cada sentido humano, existe determinado aumento relativona intensidade do estmulo que sempre produz uma mudana observvel na intensidadeda sensao. Portanto, possvel medir a sensao (a mente ou a qualidade mental) e o

  • 72 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    estmulo (o corpo ou a qualidade material). A relao entre os dois pode ser expressa naforma de uma equao: S = K log R, em que S a magnitude da sensao, K uma cons-tante e R a magnitude do estmulo. A relao logartmica, isto , uma srie aumentaem progresso aritmtica e a outra em progresso geomtrica.

    Nos ltimos trabalhos que escreveu, Fechner comentou que essa ideia para a descri-o da relao mente-corpo no lhe ocorrera por ter lido o trabalho de Weber, emborativesse assistido s suas aulas na University of Leipzig e Weber tivesse publicado sobre otema alguns anos antes. Fechner continuou afirmando que desconhecia o trabalho deWeber at comear as experincias para testar a sua hiptese e que somente algum tempodepois percebera que o princpio ao qual aplicara a frmula matemtica era basicamenteo trabalho demonstrado por Weber.

    Os Mtodos Psicofsicos

    A constatao de Fechner resultou imediatamente na sua pesquisa a respeito da psicof-sica (a palavra em si expressa a sua definio: a relao entre o mundo mental [psico] e omaterial [fsico]). Ao longo desse trabalho, que inclua experincias com o levantamentode pesos, a percepo visual do brilho, a noo de distncia visual e de distncia ttil,Fechner desenvolveu um mtodo e sistematizou outros dois dos trs principais utilizadosna pesquisa psicofsica atual.

    Psicofsica : o estudo cientfico das relaes entre os processos mental e fsico.

    O mtodo do erro mdio, ou o mtodo do ajuste, consiste em o indivduo ajustar oestmulo varivel at sentir que ele igual a um estmulo padro constante. Realizadasvrias tentativas, o valor mdio das diferenas entre o estmulo padro e o ajuste feitopelo indivduo para o estmulo varivel representa o erro de observao. Essa tcnica servetanto para a medio do tempo de resposta como para a distino visual e auditiva. Emum sentido mais amplo, o princpio bsico de muitas das pesquisas psicolgicas, j quequalquer clculo de mdia envolve essencialmente o mtodo do erro mdio.

    O mtodo do estmulo constante envolve dois estmulos constantes e tem como objetivomedir a diferena de estmulo necessria para produzir uma proporo especfica de julga-mentos corretos. Por exemplo, primeiro a pessoa levanta um peso padro de 100 gramas e,em seguida, um peso comparativo de, digamos, 88, 92, 96, 104 ou 108 gramas. O indivduodever dizer se o segundo peso maior, menor ou igual ao primeiro.

    No mtodo dos limites, dois estmulos (por exemplo, dois pesos) so apresentados pes-soa. Um estmulo aumentado ou reduzido at que ela relate ter notado a diferena. Os dadosso obtidos por meio de vrias tentativas e somente as diferenas mnimas perceptveis soconsideradas para calcular a mdia e determinar o limiar diferencial.

    O programa de pesquisa psicofsica de Fechner durou sete anos. Ele publicou doistrabalhos resumidos, em 1858 e 1859, e em 1860 apresentou o trabalho completo emElements of psychophysics, um livro didtico a respeito da cincia exata das "relaes fun-cionalmente dependentes (...) do material e do mental, dos universos fsico e psicolgico"(Fechner, 1860/1966, p. 7). Essa obra uma das primeiras contribuies de destaque para

  • CAPTULo 3 As I\FI L'FNCIAS FISIOLGICAS NA PslcoioGiA 73

    o desenvolvimento da psicologia cientfica. A afirmao de Fechner a respeito da relaoquantitativa entre a intensidade do estmulo e a sensao foi considerada, naquela poca,de importncia comparvel descoberta da lei da gravidade.

    O material que se segue foi extrado da obra Elements of psychophvsics, em que Fechnerdebate a questo da diferena entre a matria e a mente, entre o estmulo e a sensaoresultante . Na parte reimpressa neste livro, Fechner tambm faz a distino entre o quechamou de psicofsicas "interna" e "externa". A psicofsica interna refere-se relaoentre a sensao e a consequente reao cerebral e nervosa. Na poca de Fechner, no foipossvel medir com preciso esses processos psicolgicos. t)esse modo, ele optou por lidarcom a psicofsica externa, ou seja, a relao entre o estmulo e a intensidade subjetiva dasensao, medida por meio dos seus mtodos psicofsicos.

    Texto OriginalTrecho sobre a Psicofsica, Extrado de Elements of Psychophysics ( 1860),de Gustav Fechner

    A psicofsica deve ser entendida neste texto como a teoria exata das relaes funcionalmentedependentes do corpo e da alma ou, mais genericamente, do material e do mental, dos uni-versos fsico e psicolgico.

    Consideramos como mental, psicolgico ou pertencente alma, tudo o que possa sercaptado pela observao introspectiva ou que desse modo sirva de base para abstrao;enquanto corporal, corpreo, fsico e material, tudo o que possa ser observado de fora ouque assim sirva de base para abstrao. Essas designaes referem-se exclusivamente aosaspectos do mundo aparente, com cujas relaes os psicofsicos devero ocupar-se, visto sersenso comum o uso de observaes interna e externa para referir-se s atividades por meiodos quais a existncia em si torna-se aparente.

    De qualquer modo, todas as discusses e as investigaes da psicofsica esto relaciona-das somente com o fenmeno aparente do universo material e mental, para um mundo quese apresenta diretamente por meio da introspeco ou pela observao externa, ou ainda, apartir do que pode ser deduzido da aparncia ou percebido como uma relao fenomenol-gica, uma categoria, uma associao, uma deduo ou uma lei. Em resumo, os psicofsicosreferem-se ao fsico no sentido da fsica e da qumica e ao psquico no sentido da psicologiaexperimental, sem se referirem de algum modo natureza do corpo ou da alma alm dosentido metafsico do fenmeno.

    Em geral, chamamos de psquica uma funo dependente da funo fsica e vice-versa,por causa da existncia entre elas de uma relao constante ou regida por leis e na qual, apartir da presena e das alteraes de uma, possvel deduzir o comportamento da outra.

    A existncia da relao funcional entre corpo e mente geralmente no negada; todaviaexiste uma discusso ainda no resolvida a respeito das razes desse fato e sua interpretaoe abrangncia.

    Sem se referirem aos pontos metafsicos desse argumento (aspectos relacionados mais coma essncia do que com a aparncia), os psicofsicos conseguem determinar a verdadeira relaofuncional entre os modos de aparncia do corpo e da mente com a maior preciso possvel.

  • 74 HISTRIA DA PSICOLOGIA MODERNA

    Quais os objetos pertencentes ao mesmo grupo no aspecto quantitativo e qualitativo,estando distantes ou prximos, no mundo material e no mental? Quais as leis que regem suasmudanas na mesma direo ou em sentidos opostos? Essas so perguntas que os psicofsicosem geral formulam e tentam respond-las com a maior exatido.

    Em outras palavras, mas ainda seguindo o mesmo raciocnio: que objetos pertencem aosmesmos modos internos e externos da aparncia e quais so as leis relacionadas s respecti-vas mudanas?

    Pela existncia da relao funcional, unindo mente e corpo, na verdade no h nada quenos possa impedir de olhar para essa relao e busc-la em uma e no em outra direo.Algum pode ilustrar essa relao adequadamente, usando uma funo matemtica, umaequao entre as variveis x e y, em que cada varivel pode ser vista como funo da outrae cada uma sendo dependente das mudanas da outra. Entretanto h uma razo por queos psicofsicos preferem a abordagem pela dependncia da mente em relao ao corpo emvez do contrrio: porque o fsico est imediatamente disponvel para medio, enquanto amedio do psquico possvel somente ao consider-lo dependente do fsico. (...)

    Pela sua natureza, a psicofsica pode ser dividida em uma parte externa e uma interna,dependendo do foco da anlise, se baseada na relao do fsico com os aspectos externos docorpo, ou se nas funes internas, com as quais o psquico est intimamente relacionado. (...)

    A verdadeira prova bsica emprica para toda a psicofsica pode ser vista somente na esfe-ra da psicofsica externa, visto ser ela a nica parte disponvel para uma experincia imediata.Portanto, nosso ponto de partida deve ser obtido da psicofsica externa. No entanto, sem areferncia constante psicofsica interna, pode no haver o desenvolvimento da psicofsicaexterna, visto estar o universo externo do corpo funcionalmente relacionado com a menteapenas pela mediao do mundo interno do corpo. (...)

    A psicofsica, que j est relacionada com a psicologia e a fsica pelo nome, deve, por umlado, basear-se na psicologia e, por outro lado, proporcionar psicologia a fundamentaomatemtica. A psicofsica externa toma emprestado da fsica o auxlio e a metodologia; a psico-fsica interna inclina-se mais para a fisiologia e a anatomia, especialmente no que diz respeitoao sistema nervoso, com o qual se pressupe alguma relao. (...)

    A sensao depende do estmulo e uma sensao mais forte depende de estmulos maisfortes; no entanto o estmulo provoca a sensao somente mediante a ao intermediria dealguns processos internos do corpo. Na medida em que sejam encontradas relaes regidas porlei entre a sensao e o estmulo, elas devem incluir as relaes entre o estmulo e essa atividadefsica interna, que obedecem s mesmas leis gerais da interao dos processos corporais e, assim,fornecer-nos a base para as concluses gerais sobre a natureza dessa atividade interna. (...)

    De algum modo, parte das implicaes resultantes da psicofsica interna, essas relaes regi-das por lei, que podem ser examinadas na rea da psicofsica externa, so dotadas de importnciaprpria. Baseada nelas, como devemos ver, a medio fsica produz uma medio psquica, na qualpodemos levantar argumentos interessantes e importantes.

    No comeo do sculo XIX, o filsofo alemo Immanuel Kant insistia em afirmar quea psicologia nunca poderia ser considerada cincia porque era impossvel medir - ou rea-lizar experincias com - os processos psicolgicos. Em virtude do trabalho de Fechner,que, ao contrrio, tornou possvel a medio do fenmeno mental, a alegao de Kant nofoi mais levada a srio. E foi principalmente com base na pesquisa psicofsica de Fechnerque Wilhelm Wundt concebeu sua teoria da psicologia experimental. Os mtodos usados

  • CAPTULO 3 As INFL1 NCI,AS Fisu>i_bcicAs NA Psicoi _ oc;IA 75

    por Fechner mostraram-se aplicveis a uma ampla variedade de problemas psicolgicosnunca imaginados. E o mais importante de tudo: Fechner deu psicologia aquilo quetoda disciplina deve possuir para ser chamada de cincia: tcnicas de medio coerentese precisas.

    A Fundao Oficial da PsicologiaEm meados do sculo XIX, os mtodos das cincias naturais estavam sendo empregadospara pesquisar fenmenos puramente mentais. Tcnicas foram desenvolvidas, aparelha-gens foram criadas, livros importantes foram escritos e o interesse crescente se espalhava.Os astrnomos e filsofos empiristas britnicos enfatizavam a importncia dos sentidos,e os cientistas alemes descreviam o seu funcionamento . O esprito intelectual positivistado perodo, o Zeitgeist, incentivava a convergncia dessas duas linhas de pensamento. Noentanto, ainda faltava algum que pudesse uni-las e "fundar " a nova cincia . WilhelmWundt foi quem deu esse toque final.

    Temas para Discusso

    1. Qual foi o papel de David Kinnebrook no desenvolvimento da nova psicolo-gia?

    2. Qual a importncia do trabalho de Bessel para a nova psicologia? Como essetrabalho estava relacionado com os de Locke, Berkeley e de outros filsofosempiristas?

    3. Como o desenvolvimento da fisiologia inicial serviu de base para a imagemmecanicista da natureza humana?

    4. Discuta os mtodos desenvolvidos para o mapeamento das funes cerebrais.

    5. Descreva o mtodo da cranioscopia de Gall e o movimento popular dele ori-ginado. Como caram no descrdito?

    6. Qual era o objetivo principal da Sociedade de Fsica de Berlim?7. Explique como o desenvolvimento da fisiologia se uniu ao empirismo brit-

    nico para formar a nova psicologia?

    8. Por que a psicologia experimental surgiu na Alemanha e no em outrolugar?

    9. Qual a importncia da pesquisa de Helmholtz a respeito da velocidade doimpulso neural?

    10. Descreva a pesquisa de Weber referente ao limiar de dois pontos e s dife-renas mnimas perceptveis . Qual a importncia dessas duas ideias para apsicologia?

    11. O que ocorreu a Fechner no dia 22 de de outubro de 1850? Como ele mediaas sensaes?

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