Cap 6 Fourez Perspectivas Socio-historica (2)

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  • -A CONSTRUCAO,DAS CIENCIAS

    INTRODucAo A FILOSOFIA,E A ETICA DAS CIENCIAS

    Tradu

  • PERSPECTIVAS SOCIO.HISTORICASSOBRE A CIENCIA MODERNA

    o termo "ciencia" pode designar dois tipos de fen6menos.Primeiramente, a representa

  • numerosos aspectos, a fim de por em relevo um enfoque particulardo problema "cientifico". 0 modelo apresentado e simplificador,como nao poderia deixar de ser, e evita questoes como: "Em quea racionalidade burguesa difere da dos comerciantes fenicios?Daquela dos est6icos?Dos epicuristas? 0 que ha realmente de novonas mutac;oes que vaGdo seculo XII ao XVII?" ,

    o universo autarquicoda Alta ldade Media

    De acordo com a perspectiva proposta anteriormente, pode-seconsiderar que ha cerca de mil anos, e ate aproximadamente 0seculo XII, as pessoas, no Ocidente, tinham uma visao do mundofortemente ligada a sua existencia nas aldeias autirquicas (Fourez,1984). Elas nasciam, viviam e morriam no mesmo ambiente humano.Para elas, os objetos nao eram inanimados, pois faziam parte douniverso humanono qual viviam. Um carvalho, por exemplo, naoera apenas "um carvalho qualquer", mas ligava-se sempre a umahist6ria particular, a aldeia, a seus acontecimentos. Um repolhoou um par de sapatos nao eram, como em nossa sociedademodem a, mercadorias impessoais, mas 0 repolho produzido porfulano oUos sapatos fabricados por beltrano.

    Dessa perspectiva, era praticamente impossivel falar de umobjeto "puramente material", uma vez que a Natureza e 0 mundocomo um todo estavam humanizados. Em um mundo assim, eraquase impossivel imaginar 0 olhar "frio" de um observador cienti-fico. Esse olhar supoe com efeito uma certa dist

  • comerciante (trata-se tambem nesse caso de uma reconstruc;:aote6rica visando a uma compreensao de certos fen6menos, e naode um ensaio hist6rico). Esse comerciante e em primeiro lugar umser sem raizes. Vive uma boa parte de sua existencia fora do uni-verso humano no qual nasceu. Ve coisas estranhas, desconhecidas,coisas que, alias, ele tentara contar quando retornar a sua casa.Mas, onde e a "sua casa"? 0 universo aparece a seus olhos comoum lugar cada vezmais neutro e com uma estrutura cada vezmenoshumana. Nao se centra mais em torno da aldeia natal, onde tudoemarcado por objetos familiares, mas trata-se de um universo ondese pode caminhar em direc;:aoao norte, ao suI, ao leste ou ao C?este,ou seja, a direc;:oesdefinidas de maneira bastante abstrata. E ummundo em que todos os lugares se equivalem, um mundo de ~~raextensao, de onde vai poder nascer a representac;:aodo espac;:ofislCOque conhecemos (cf. 0 conceito de extensao em Descartes).

    Enquanto 0 campones nao podia se imaginar fora de seuhabitat, 0 comerciante comec;:aa viver sozinho. Alem disso, e nessacultura que se ve difundir uma nova noc;:ao:a de vida interior. 0centro do universo nao e mais a aldeia, uma exterioridade sempreanimada pela interioridade, mas torna-se interioridade pura, ligadaao individuo. Comec;:a a haver uma diferenc;:aenorme entre 0interior, 0 que sempre acompanha 0 individuo e e subjetivo, e 0exterior, mundo inanimado que comec;:aa ser visto como umobjeto. As coisas se veem pouco a pouco desprovidas de todosentimento. 0 comerciante observa costumes estranhos aos de suaaldeia; ve coisas que, para ele, nao possuem uma hist6ria: a suaobservac;:aotorna-se cada vez mais fria.

    Ao mesmo tempo, se desenvolve a interioridade do sujeito. Aespiritualidade e a prece consistirao menos em se inserir em algocoletivo (como 0 cora dos monges) do que em orar individualmentee meditar. A orac;:ao,como a leitura, tornar-se-a cada vez menos

    tecnico e nao, popular. Falo dessa classe social surgida na Id~de Media, cons~~indoobter reconhecimento, e depois substituindo a aristocracia como classe dtrlgente

    (dominante, hegemonical no Ocidente.

    corporal, passando a valorizar a interioridade pura. Nao e por outromotivo que Inacio de Loyola procurara fazer com que os seusjesuitas carreguem consigo, individualmente, toda a sua personali-dade, de maneira independente de todo ambiente. Nao e por outramotivo, tampouco, que as casas burguesas SaGmenos "publicas"e mais fechadas do que ados aristocratas. Ao universo interioropoe-se a realidade exterior. 0 mundo moderno torna-se 0 dainterioridade, mesmo que se trate de um "exilio interior" (Jaccard,1975).

    Enquanto nas aldeias tudo estava sempre ligado a vida daspessoas, a seus projetos, a sua vida afetiva e pratica, 0 comerciantecomec;:aa falar de eventos sem hist6ria, e que nao existem unica-mente para eles, ern urn mundo "desencantado". Nasce umconceito, 0 de objetividade "pura", isto e, daquilo que resta quandose despojou 0 mundo de tudo 0 que constitui a sua particularidade,de seu vinculo com este ou aquele individuo, este ou aquele grupo,esta ou aquela hist6ria. E desse modo que, do ponto de vista dahist6ria, a objetividade, longe de represent.:1.rurn olhar absolutosobre 0 mundo, aparece como uma maneira particular de cons-trui-lo. E a cultura dos comerciantes burgueses que institui a visaode mundo ern urn agregado de abjetas independentes dos obser-vadores.

    Nao obstante, a linguagem da objetividade pura possui aindaraizes bem fundasj tern 0 seu lugar. Liga-seao relato daqueles quedevem poder con tar 0 que viram a outros que nao partilharam amesma hist6ria. E nesse ponto que, segundo Latour, situa-se adiferenc;:aentre 0 conhecimento de um arquipelago polinesio damaneira e como vivida pelos nativos e a descric;:aoque sera feitapor um observador ocidental (1983). Nao se pode dizer que 0explorador ocidental conhece melhar os arquipelagos da Polinesiado que os nativosj estes alias san perfeitamente capazes de seorientar por ali, ern geral bem melhor do que os exploradores.Contudo, a sua representac;:aodo mundo nao e transpartdvel; liga-sea sua vida. 0 seu relato nao sera compreendido em Paris, Londresou Lisboa. Pelo contrario, 0 mundo ocidental criou metodos de

  • descricao (tecnologias intelectuais) tais que, 0 que se obselVou nasIlhas Marquesas pode ser "transportado" a Paris. A objetividadeaparece, assim, como uma maneira de ver 0 mundo que permitedestacar aquilo que se ve da globalidade: a civilizac;aomodernadispoe de representac;oes mentais mediante as quais ela vai poderinserir descricoes de objetos separados. A "objetividade", entao,nao existiria ~or si mesma, mas seria a produc;ao de uma cultura.

    Essa atitude de objetividade diante de uma natureza conside-rada como passiva pode tambem ser relacionada com as manei-ras de perceber a relac;aohomem-mulher. Assim, Stengers (1984)mostra como, para se libertar, a ciencia moderna lutou contrauma concepcao animista da natureza, em que a "feiticeira" ternurn lugar im~ortante. A feiticeira simboliza uma relac;ao com "anatureza que e tambem temivel e dotada de poder". Ela secomunica com a Natureza "de maneira nao racional, mas eHcaz".Ao passo que, segundo Stengers, para a ciencia moderna,. ametafora feminina, para falar da Natureza, remete a "uma mulherpassiva, que se pode penetrar a vontade, que se pode conhecerao penetrar, que nao e mais temivel; a analise de uma serie detextos permite estabelecer urn paralelo entre a descoberta coletivada Natureza, a sua apropriac;ao coletiva e uma especie de violac;aocoletiva, penetrac;ao coletiva dos homens em posic;ao de iniciativavoluntarista em relacao a algo que e por si submisso, entregue aoconhecimento, que basta ter vontade de penetrar para conhecer"(cf. tambem Elzinga, 1981; Easlea, 1980; Mendelsohn, 1977;Merchant, 1980).

    Uma objetividade permitindouma cOffiunica

  • A partir do seculo XII, com efeito, comeca-se a escreverseparando as palavras. Nessa epoca, torna-se posstveller urn textoe faze-locompreesivel a outro, mesmo que a propria pessoa nao 0compreenda (0 que e rigorosamente impossivel nas escritas nao-alfabeticas - os ideogramas ou os simbolos matematicos -, ou naslinguas que nao escrevem nenhuma vogal, como 0 hebraieo). Namesma epoca, comeya-se a poder ler mentalmente, sem mexer oslabios. Elabora-se assim, pouco a pouco, uma maneira de pensarque apela cada vez menos ao corpo e mediante a qual pode-serealizar urn trabalho intelectual sem que se esteja corporal oupessoalmente implieado; 0 resultado dessa tendencia mostra-se noscomputadores, capazes de trabalhar por nos sem que compreenda-mos 0 que fazem (cf. a comunieacao - inedita - de Ivan Illich na2nd National Literary Conference, em Washington DC, fevereiro de1987).

    Entao a universalidade da ciencia e de tal modo diferente dauniversalidade de toda lingua? Elas SaGtodas universais, sob acondiyao de que as aprendam (permanece 0 misterio da tradutibi-lidade das experiencias: como se da que possamos traduzir umalingua em outras de maneira significativa, mesmo sabendo que eimpossivel traduzir tudo?).

    Uma outra diferenya importante entre a mentalidade burguesae a mentalidade anterior liga-se ao desejo de controlar e dominaro seu meio. Na aldeia autosubsistente da Idade Media, as pessoasse inserem. A mentalidade burguesa, pelo contrario, tenta-se domi-nar. A no

  • Durante seculos sentiu-se a eficacia desse metodo e os seussucessos selViram de base as ideologias do progresso. De fato, osbeneficios resultantes foram enormes: foi grac;as a produc;ao dasociedade burguesa, a sua ciencia e a tecnologia que a vida humanaconheceu multiplas melhorias. Foram a cienda e a tecnica queimpediram que as pessoas ficassem completamente dependente~da energia, dos aspectos aleatorios do c1ima,de uma fome sempreameac;adora e assim por diante. A civilizac;aoburguesa produziu,para praticamente todas que se juntaram a ela, bens multiplos, naosomente para os mais ricos mas, pelo menos em sua ultima fase,para todos nos paises ocidentais. Gra
  • tempo perdera a sua orienta
  • discurso se construiram e se estruturaram gradualmente no Oci-dente burgues e deram aos metodos e saberes cientificos a formaque conhecemos hoje. E historicamente que as disciplinas sesepararam do modo como vemos hoje. Semelhante evolu
  • ligadas. A um ponto em que se torna dificil determinar quedesenvolvimentos devem ser considerados como "tecnicos" equais, "cientificos". Como se ve no caso dos semicondutores, um"progresso" tecnico acarreta um "progresso cientifico" e vice-versa,de maneira quase continua (MacDonald, 1975). 0 casamentoentre tecnica e ciencia, portanto, parece consumado. Em quemedida isto modificara, concretamente e de maneira progressiva,o metodo cientifico, ou seja, os metodos para produzir resultados?Ja se pode observar essas mutayoes ao se examinar 0 vinculo dasuniversidades com as industrias. 0 futuro dira, sem duvida. Emtodo caso, esse casamento mostra, a quem possa duvidar, que naoexiste uma s6 ciencia: a pratica cientifica modifica-se sem cessar.Finalmente, a "palavra" ciencia recobre mais uma prMica quejulgamos util condensar em uma s6 nOyaodo que um objeto queseriamos foryados a reconhecer. E por isso que, para conhecer 0fenomeno que constitui a ciencia, se impoem abordagens sociol6-gicas e hist6ricas. -

    Historicamente, a ciencia e um fenomeno de sociedade. Foitambem 0 que constataram soci610gosque comeyaram a estuda-lacomo tal.

    As primeiras pesquisas no campo das ciencias humanas relativas a ciencia nao concerniam de modo algum ao pr6prio processode produyao dos resultados cientificos (Bloor, 1982). Nao seconsiderava que a ciencia como tal pudesse ser estudada pelasociologia, mas admitia-se que, em torno da ciencia, toda uma seriede fenomenos podia ser considerada, seja pela sociologia, seja pelaPsicologia. Assim, 0 psic610go da ciencia podia interessarse pelasrazoes e motivayoes que levavam um cientista a fazer ciencia. Ossoci610gos da ciencia podiam considerar os vinculos existentesentre os cientistas e outras instituiyoes sociais. Estudavase, por

    exemplo, a maneira pela qual 0 mecenato dos principes fornecerasubsidios as pesquisas. Do mesmo modo as relacoes entre as, .orientayoes de pesquisa e os interesses militares ou industriaispodiam ser avaliadas em termos de valor. Contudo, nao se estudavaa pratica cientifica como tal, mas 0 meio em que se produzia.

    Uma segunda corrente, representada pelo soci610go Merton(1973), interessou-se mais diretamente pela pratica cientifica. Naose tratava mais de ver apenas 0 vinculo entre os cientistas e outrasinstituiyoes, mas de estudar tambem a pr6pria sociologia da comu-nidade cientifica. Sem analisar os conteudos cientificos ou osresultados das pesquisas (sempre consideradas como da ordem doracional e, portanto, impossiveis de serem estudadas sociologicamente), os soci610gos queriam compreender os usos e costumesdos investigadores, as suas maneiras de se organizar, a sua carreira,a sua maneira de competir, as suas ambicoes ete. Fez-seassim umasociologia da comunidade cientifica. Efetivamente, as carreirasdesses pesquisadores, os tipos de recompensas que lhes erampropostas, as maneiras pelas quais obteriam retribuicao a burocra-. ,cia das organizayoes e das publicayoes cientificas, os congressos, osmodos de redigir as comunicacoes as relacoes sociais em um.' .laborat6rio, os metodos de avaliayao de projetos, tudo isso podiapropiciar pesquisas sociol6gicas. Entretanto, continua nao se con-siderando os conteudos cientificos.

    A terceira corrente caracteriza-se pelos trabalhos de ThomasKuhn e sua nOyaode matriz disciplinar ou paradigma (1972). Destavez, aceita-seque a pesquisa cientifica e influenciada pelo seu pontode partida, suas "lentes", seus preconceitos, seus projetos subjacen-tes ete. Aqui, a sociologia - ou hist6ria da ciencia - comeca aconsiderar como os elementos sociais podem estruturar 0 conhecim~ntocienti[ico.

    Quando se trata de estudar sociologicamente a medicinacientifica, por exemplo, vimos que a pr6pria organizayao dessad~scipli~a ac~a-~eligada,a um paradigma que priv~e.egiaa interven-yao, 0 dtagnostlCo, 0 mlCrosc6pico, 0 biol6gico e~, mais do queos elementos ligados ao meio, a higiene, aos valores e assim por

  • diante. Do mesmo modo, 0 paradigma da matematica nao deixade estar relacionado a pratica dos comerciantes, que devem estabe-lecer compatibilidades, ou ados navegadores, que devem calculara sua posi
  • Essa perspectiva, no entanto, nao faz com que se considere aciencia como um puro jogo de pensamentos. Ela possui umaobjetividade relativa, ou seja, ela possui uma maneira eficaz aoextrema de ordenar a nossa percep
  • que a clencia seja apreciada por seu "justo" valor em nossasociedade. Essa busca das raizes hist6ricas da comunidade cientificatern uma significac;ao importante, na medida em que todo serhumano deseja experimentar a solidez e a profundidade de suasraizes. A hist6ria da ciencia, vista desse modo, assemelha-se a essashist6rias das nac6es destinadas a promover 0 espirito patri6tico oucivico. Isto nao' deixa de apresentar interesse, sem duvida, mas,caso nao se acrescente uma perspectiva critica, semelhante enfoquearrisca-se a ser mistificador.

    Existem varias maneiras de escrever a hist6ria da ciencia.Assim, 0 livro de Ernst Mach, A meciinica (1925), se pretendiamenos urn hino para a grandeza da ciencia do que urn retorno amaneira pela qual os conceitos da fisica foram construidos. Essapesquisa hist6rica pode, por exemplo, mostrar com que dogmatis-mo certos pontos da fisica podiam ser ensinados a partir domomenta em que se aceitavam sem espirito critico pontos de vistadiscutiveis. Mach mostrou, desse modo, como se havia "esqueci-do" todas as hip6teses que serviam de base a fisica newtoniana.Jogando com as palavras, poder-se-ia dizer que, ao mostrar 0 caraterrelativo dos conceitos de espac;o e de tempo (relativos no sentidoepistemol6gico do termo), Mach preparou a teoria da relatividade(segundo 0 sentido da palavra em fisica).

    A hist6ria da ciencia pode estar, assim, a servic;oda pesquisacientifica, ao mostrar a relatividade dos conceitos utilizados, pondoem relevo a sua hist6ria e recordando quando e de que modo astrajet6rias das construc;6es conceituais na ciencia chegaram apontos de bifurcac;ao. Ela pode, dessa forma, evidenciar as linhasde pesquisas que deixaram de ser exploradas e que poderiam,portanto, se revelar fecundas. Dessa maneira, pode-se educar aimaginac;ao dos pesquisadores.

    ..Nessa mesma linha de pensamento, a pesquisa no campo dahist6ria da ciencia se dedicou ultimamente a estudar a hist6ria daciencia dos "vencidos" (Wallis, 1979). Edesse modo que a hist6riada ciencia tern se dedicado as controversias cientificas relativas aGalileu, Pasteur, a Escola de Edimburgo etc. Cada vez mais

    historiadores da ciencia (assim como historiadores de outras espe-cialidades) tern como projeto evidenciar a contingencia dos desen-volvimentos hist6ricos, querendo, desse modo, dar a perceber aimpossibilidade de reduzir a hist6ria a uma l6gica etema. Apesquisa hist6rica tende a mostrar que a ciencia e realmente urnempreendimento humano, contingente, feito por humanos e parahumanos.

    Por fim, a hist6ria da ciencia pode ser relacionada ainda amultiplos aspectos: vinculo entre a ciencia e a tecnologia, condicio-namento da comunidade cientifica, intera