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5/16/2018 Cap.FOUCAULTMichelEInutilRevoltar-se-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/cap-foucault-michel-e-inutil-revoltar-se 1/3 76 Michel Foucault - Ditos e Escritos intensa, mu1lo ampla, de discursos - discursos (",., ,+;;4:1 discursos institucionais - e, ao mesmo tempo, de uma pação, de uma verdadeira obsessão em relação à que aparece muito claramente na moral cristã d o s _ s _ é ~ c , L 4 u l < U l u a 1 1 1 ~ e XVII, no peiiodo da Reforma e da Contra-reforma_ 08 que não parou até agora. u:sleSslàn· O homem ocidental - não se i o qu e acontece na de v o c ~ s - sempre considerou a sua sexualidade como a essencial em sua vida. E isto cada ve z mais. No século XVI pecado er a po r excelência o pecado da carne. Então · 0 xualidade era proibida, interdita, votada ao e s q u e c i ~ S : n ~ s e - recusa, à denegação, como explicar um discurso desse ti ' à uma tal proliferação, qu e haja ta l obsessão a respeito ~ o , sexualidade? A hipótese da qual procedem minhas anál· a q - 1 i tses ue na o evare a seu termo, que el a pode não ser confir da s · q fi d 0 rna- - ena ue , no un o, o cidente não é realmente um ne g · í i ! ' . ~ > r . l · = · : dor da sexualidade - ele não a exclui -, mas si m qu e e l e ~ introduz, el e organiZa, a partir dela, todo um dispositivo com plexo no qual se trata da constituição da individualidade. da subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comporta mos, tomamos consciência de nós mesmos. Em outras pala vras, no Ocidente, os homens, as pessoas se indiVidualizam graças a um cerlo número de procedimentos, e creio que a se xualidade, _muilo m ~ s do que um elemento do individuo que seria exclutdo dele, e constitutiva dessa ligação qu e obriga as pessoas a se associar com sua identidade na forma da subjeti vidade. Quanto à famosa clareza da qual falava o Sr . Hasumi, tal ve z este seja o preço de querer ser claro .. Não gosto. da obscu ridade, porque a considero uma espécie de despotismo; é preciso expor os seus erros; é preciso arriscar a dizer coisas 9-ue, provavelmente, s ~ r ã o dificeis de expressar e em relação as quais nos confunc:trmos, nos confundimos um pouco, e tem? te r lhes dado a Impressão de haver me confundido. ~ voces tiveram essa impressão é porque, de fato, me confundi! É Inútil Revoltar-se? "ÉtnúUirevoltar- se?". Lemonde, nv 10.661, ll - 12dema1ode 1979,ps. 1- 2. "Para qu e o se vá , estamos prontos para morrer ao s mJ - }hares", dJziam os iranianos no verão passado. E o aiatolá, recentemente: .. Que o Ir ã sangre. para que a revolução se for taleça." Estranho . ec o entre essas frases que parecem se encadear. o horror da segunda condena a embriaguez da priineira? As inSurreições pertencem ã história. Mas, de certa forma. lhe escapam. O movimento co m qu e um homem, um grupo, uma minoria ou todo um povo diZ: "Não obedeço mais", e joga na cara de um poder que ele considera injusto o risco de sua vida-esse movimento me parece irredutível. Porque nenhum poder é capaz de torná-lo absolutamente impossível: Varsóvia terá sempre seu gueto sublevado e seus esgotos povoados de insurrectos. E porque o homem que se rebela é em definitivo sem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa o fio da história e suas longas cadeias de razões, para que um homem possa. "realmente", preferir o risco da morte à certeza de ter de obedecer. Todas as formas de liberdade adquiridas ou reivindicadas, todos os direitos exercidos, mesmo quando se trata das coisas aparentemente menos importantes, tê m ali sem dúvida um último ponto de sustentação, mais sólido e mais próximo do qu e os "direitos naturais". Se as sociedades se mantêm e vi vem, isto é, se os seus poderes não sã.o "absolutamente abso lutos", é porque, por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, vio lências e persuasões, a possibi lidade desse momento em qu e nada mais se permuta na vida, em qu e os poderes nada mais podem e no qual, na presença do s patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem.

Cap. FOUCAULT Michel E Inutil Revoltar-se

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76 Michel Foucault - Ditos e Escritos

intensa, mu1lo ampla, de discursos - discursos (",., ,+;;4:1

discursos institucionais - e, ao mesmo tempo, de umapação, de uma verdadeira obsessão em relação àque aparece muito claramente na moral cristã d o s _ s _ é ~ c , L 4 u l< U l u a 1 1 1 ~ e XVII, no peiiodo da Reforma e da Contra-reforma_ 08

que não parou até agora. u:sleSslàn·

O homem ocidental - não se i o qu e acontece nade v o c ~ s - sempre considerou a sua sexualidade como a

essencial em sua vida. E isto cada vez mais. No século XVIpecado er a po r excelência o pecado da carne. Então · 0

xualidade era proibida, interdita, votada ao e s q u e c i ~ S : n ~ s e -recusa, à denegação, como explicar um discurso desse ti ' àuma tal proliferação, qu e haja ta l obsessão a respeito ~ o , sexualidade? A hipótese da qual procedem minhas anál· aq - 1 i tsesue na o evare a seu termo, j á que el a pode não ser confirda s · q fi d 0 rna-- ena ue , no un o, o cidente não é realmente um ne g • · í i ! ' . ~ > r . l · = · : dor da sexualidade - ele não a exclui - , mas sim qu e e l e ~ introduz, ele organiZa, a partir dela, todo um dispositivo complexo no qual se trata da constituição da individualidade. dasubjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós mesmos. Em outras pala

vras, no Ocidente, os homens, as pessoas se indiVidualizamgraças a um cerlo número de procedimentos, e creio que a sexualidade, _muilo m ~ s do que um elemento do individuo queseria exclutdo dele, e constitutiva dessa ligação qu e obriga aspessoas a se associar com sua identidade na forma da subjetividade.

Quanto à famosa clareza da qual falava o Sr . Hasumi, talve z este seja o preço de querer ser claro .. Não gosto. da obscuridade, porque a considero uma espécie de despotismo; é

preciso expor os seus erros; é preciso arriscar a dizer coisas9-ue, provavelmente, s ~ r ã o dificeis de expressar e em relaçãoas quais nos confunc:trmos, nos confundimos um pouco, etem? te r lhes dado a Impressão de haver me confundido. ~ voces tiveram essa impressão é porque, de fato, me confundi!

É Inútil Revoltar-se?

"ÉtnúUirevoltar-se?". Lemonde, nv 10.661, ll - 12dema1ode 1979,ps. 1-2.

"Para qu e o xá se vá , estamos prontos para morrer ao s mJ-

}hares", dJziam os iranianos no verão passado. E o aiatolá,recentemente: ..Que o Ir ã sangre. para que a revolução se fortaleça."

Estranho .ec o entre essas frases que parecem se encadear.o horror da segunda condena a embriaguez da priineira?

As inSurreições pertencem ã história. Mas, de certa forma.lhe escapam. O movimento co m qu e um só homem, um grupo,

uma minoria ou todo um povo diZ: "Não obedeço mais", e jogana cara de um poder que ele considera injusto o risco de suavida-esse movimento me parece irredutível. Porque nenhumpoder é capaz de torná-lo absolutamente impossível: Varsóviaterá sempre seu gueto sublevado e seus esgotos povoados deinsurrectos. E porque o homem que se rebela é em definitivosem explicação, é preciso um dilaceramento que interrompa ofio da história e suas longas cadeias de razões, para que umhomem possa. "realmente", preferir o risco da morte à certezade ter de obedecer.

Todas as formas de liberdade adquiridas ou reivindicadas,todos os direitos exercidos, mesmo quando se trata das coisasaparentemente menos importantes, tê m al i sem dúvida umúltimo ponto de sustentação, mais sólido e mais próximo doqu e os "direitos naturais". Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus poderes não sã.o "absolutamente absolutos", é porque, por trás de todas as aceitações e coerções,mais além das ameaças, violências e persuasões, hã a possibilidade desse momento em qu e nada mais se permuta na vida,em qu e os poderes nada mais podem e no qual, na presençado s patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem.

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78 M1chel Foucault - Dttos e Escritos

Porque assim ele está "fora da história" e na história, porqu e cada um al i aposta na vida ou na morte, compreende-se

por que as insurreições puderam tã o facilmente encontrarna sformas religiosas sua expressão e sua dramaturgta. Promes

sas do além, retorno do tempo, espera do salvador ou do

império do s últimos dias, reino exclusivo do bem. tudo isso

constituiu durante sécu1os. al i onde a forma da religião se

prestava para isso, nã o um a vestimenta ideológica, mas a própria maneira de viver as insurreições.

Chegou a época da "revolução". Há dois séculos ela se projetou sobre a história, organizou nossa percepção do tempo,

polarizou as esperanças. Realizou um gigantesco esforço paraaclimatar a insurreição no intertor de uma histórta racional econtrolável: el a lh e de u legitimidade, escolh eu suas boas oum ás formas, definiu as leis do se u desenvolvimento, estabele

ce u suas condições prévias, objetlvos e maneiras de se acabar,Chegou-se mesmo a definir a profissão de revolucionário. Repatriando assim a insurreição, pretendeu-se fazê-la aparecerem sua verdade e levá-la até seu termo real. Maravilhosa e te

mível promessa. Alguns dirão qu e a insurreição se vi u coloni

zada na Real-Politik. Outros, qu e lh e foi aberta a dimensão deum a história racional. Prefiro a pergunta qu e Horckheimer fazia outrora, pergunta ingênua e um pouco acalorada: "Mas

será el a assim tã o desejável, essa revolução?"

Enigma da insurreição. Para quem buscava no Irã nã o as"razões profundas" do movimento, mas a maneira co m qu e eleera vivido, para quem tentava compreender o qu e se passavana cabeça daqueles homens e daquelas mulheres quando ar riscavam suas vidas, uma coisa era surpreendente. A fome, ashumilhações, o ódio pelo regime e a vontade de mudá-lo, elesos inscreviam nó s confins do cé u e da terra, em um a históriasonhada qu e era tã o religiosa quanto política. Eles afronta

vam os Pahlavi, em uma partida em qu e se tratava para cadaum de vida ou de morte, mas também de sacrifícios e promes

sas milenares. Embora as famosas manifestações, qu e tivera m um papel tão importante, pudessem ao mesmo tempo

responder realmente à ameaça do exército (até paralisá-lo), se

desenvolver segundo o ritmo das cerimônias religiosas e finalmente remeter a um a dramaturgia intemporal na qual o poderé sempre maldito. Espantosa superposição, ela fazia aparecerem pleno século XX um movimento bastante forte para derru-

1979 - É Inútil Revoltar-se ? 79

ba r 0 regtme aparentemente melhor armado, embora estivesse próxima do s velhos sonhos qu e o Ocidente conheceuoutrora, quando se queria inscrever as figuras da espirituali

dade no terreno da política.Anos de censura e perseguição, um a classe política tutela

da. partidos proibidos, grupos revolucionários dizimados: emque, a não ser na religião, podiam então se apoiar a desordem

e depois a revolta de uma população traumatizada pelo "d esenvolvimento". pela "reforma", pela " ~ r b a n i z a ç ã o " e po r todos os outros fracassos do regime? E verdade. Mas seri

preciso esperar qu e o elemento religioso rapidamente se apague em proveito de forças mais reais e de ideologias meno

"arcaicas"? Certamente não, e po r várias razões.Houve inicialmente o rápido sucesso do movimento. revigo

rando-o na forma qu e ele adotara. Havia a solidez instituciona l de um clero cujo domínio sobre a população era forte, e aambições políticas, vigorosas. Havia todo o contexto do movi

mento islãmico: pelas posições estratégicas qu e ele ocupa, pelas convenções económicas qu e tém os países muçulmanos,por sua própria força de expansão no s dois co;ntinentes, el

constitui, em todo o Irã, uma realidade intensa e complexaTanto que os conteúdos imaginários da revolta nã o estavam

dissipados no grande di a da revolução. Eles foram imediatamente transpostos para um a cena política que parecia totalmente disposta a recebê-los, m as qu e er a na realidade doutra natureza. Sobre essa cena, se fundem o mais importante e o mais atroz: a estupenda esperança de fazer novamentdo Islã uma grande civilização viva, e formas de xenofobia vrulenta; os riscos mundiais e as rivalidades regionais. E o pr oblema do s imperialismos. E a submissão das mulheres etc.

O movimento iraniano nã o se submeteu à "lei" das revolu

ções qu e farta. parece, ressaltar, sob o entusiasmo cego, a t

rania qu e já os habitava em segredo. O qu e constituía a parmais íntima e intensamente vivida da insurreição era contígua um tabuleiro político sobrecarregado. Ma s esse contato nãé identidade. A espiritualidade à qual se referiam aqueles quia m morrer não te m comparação co m o governo sangrento dum clero fundamentalista. Os religiosos iranianos querem autenticar se u regime pelas significações qu e tinha a insurre

ção. Nã o se faz nada diferente deles ao desqualificar o fato dinsurreição pelo fato de haver hoje um governo de mulãs. Ta

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80 Michel Foucault - Ditos e Escrttos

to em um caso como no outro, há "medo". Medo do qu e acabou

de acontecer no Irã no último outono, e do qual o mundo hámuito tempo nã o t inha dado exemplo.

Daí, justamente, a necessidade de evidenciar o ·qu e há de

irredutível em um movimento dessa ordem. E de profunda

mente ameaçador também para qualquer despotismo, tanto 0

de hoje quanto o de antigamente.

Não é, certamente, nenhuma vergonha mudar de opinião;mas nã o há nenhuma razão para dizer qu e se mudou ao ser

hoje contra as mãos cortadas, depois de te r sido ontem contraas torturas da Savak.

Ninguém te m o direito de dizer: "Revoltem-se po r mJm, t r( \-

ta-se da libertação !mal de todo homem." Mas não concordo,com aquele qu e dissesse: "Inútil se insurgir, sempre será amesma coisa." Nã o se impõe a le i a quem arrisca sua vida di

ante de um poder. Há ou nã o motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se, é um fato; é po r isso que asubjetividade (não a dos grandes homens, mas a de qualquer

um ) se introduz na história e lh e dá seu alento. Um delinqüen

te arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco nã o su

porta mais estar preso e decaído; um povo recusa o regimeque o oprime. Isso não torna o primeiro inocente, nã o cura ooutro, e nã o garante ao terceiro os dias prometidos. Ninguém,

aliás, é obrigado a se:t solidário a eles. Ninguém é obrigado aachar qu e aquelas vozes confusas cantan1 melhor do que asoutras e falam da essência do verdadeiro. Basta que elas existam e qu e tenham contra elas tudo o qu e se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o queelas querem dizer. Questão de moral? Talvez. Questão de rea

lidade, certamente. Todas as desilusões da história de nadavalem: é po r existirem tais vozes qu e o tempo do s homens nã ote m a forma da evolução, mas justamente a da "história".

Isso é inseparável de um outro princípio: é sempre perigosoo poder qu e um homem exerce sobre o outro. Não digo qu e opoder, po r natureza, seja um mal; digo qu e o poder, po r seusmecanismos, é interminável (o que não significa qu e ele seja

todo-poderoso, muito pelo contrário). Para limitá-lo , as regra.sjamais são suficientemente rigorosas; para desapropriá-lo de

todas as ocasiões de qu e ele se apodera, jamais os princípios

universais serão suficientemente severos. Ao poder, é preciso

sempre opor leis intransponíveis e direitos sem restrições.

1979 - É Inút i l Revoltar-se? 81

os intelectuais, hoje em dia, nã o tê m muito bo a "fama":

acredito poder empregar essa palavra em um sentido bastantepreciso. Não é, portanto, o momento de dizer que não se é intelectual. Eu faria , aliás, sorrir. Intelectual, eu sou. Se meperguntassem como concebo o qu e faço, responderia, se oestrategista for o homem qu e diz: "Que imp o $ ta l morte, talgrito, ta l insurreição em relação à grande necessidade do con

junto, e que me importa, em contrapartida, ta l principio geralna situação particular em·qu e estamos", pois bem, para núm,

é indiferente qu e o estrategista seja um politico, um historiador, um revolucionário, um partidário do xá ou do aiatolá;

nünha moral teórica é inversa. El a é "antiestratégica": serrespeitoso quando uma singularidade se insurge, intransigentequando o poder infringe o universal. Escolha simples, obra ·penosa: pois é preciso ao mesmo tempo espreitar, po r baixo dahistória, o qu e a rompe e a agita, e vigiarum pouco po r trás dapolítica o que deve incondicionalmen te limitá-la. Afinal, é meutrabalho; não sou o primeiro nem o último a fazê-lo . Mas o es colhi.