73
A Educação segundo a Filosofia Perene Capítulo Quinto - A Pedagogia da Sabedoria - Primeira Parte - Texto disponível para Download no site de Introdução ao Cristianismo segundo a obra de Santo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

cap-v - educação filosofica segundo perene

Embed Size (px)

DESCRIPTION

aprendendo o verdadeiro estudo da filosofia

Citation preview

A Educao segundo a Filosofia Perene

Captulo Quinto

- A Pedagogia da Sabedoria - Primeira Parte -

Texto disponvel para Download no site de

Introduo ao Cristianismosegundo a obra de Santo Toms de Aquino e Hugo de S. Vitor

http://www.terravista.pt/Nazare/1946/http://www.cristianismo.org.brhttp://www.accio.com.br/Nazare/1946/

V

A Pedagogia da Sabedoria.

Ia. Parte.

V.1) Introduo.

Aps termos examinado nos captulos III e IV os pressupostos histricos e psicolgicos da contemplao como fim ltimo do homem e da educao, passaremos a examinar neste e nos dois seguintes os requisitos que um sistema educacional deve preencher para conduzir o educando a este fim.

Os requisitos que sero aqui examinados so requisitos da educao humana enquanto tal. Nada impede que por circunstncias histricas e sociais um sistema educacional incorpore outras atribuies alm daquelas que sero aqui tratadas. As que, porm, sero examinadas a seguir, diferem das demais por no se revestirem de qualquer carter circunstancial; elas no podem estar ausentes nem ser relegadas a um segundo plano sem fraudar a natureza do educando, por exigncia intrnseca natureza da contemplao.

Nos captulos V e VI examinaremos os requisitos pedaggicos imediatos desta educao; no captulo VII examinaremos alguns requisitos remotos.

V.2) Requisitos prximos da educao para a sabedoria.

Quais so os primeiros requisitos que se devem estabelecer para uma educao que tenha por fim a contemplao?

Nem S. Toms nem Aristteles responderem diretamente a esta pergunta.Entretanto, no incio do livro VII da Poltica, o Filsofo se coloca o problema de como investigar qual o sistema timo de governo. O raciocnio que ali ele faz vale de modo igual para o problema de como investigar o sistema timo de educao, e por meio dele, poderemos responder nossa questo:

"Ao empreendermos a investigao de qual seja o melhor sistema poltico,-diz Aristteles-, devemos comear por determinar qual seja o gnero de vida que se deve preferir a todos os demais.

Pensamos j ter explicado suficientemente este assunto nos nossos livros de tica; resta-nos, agora, apenas fazer uso do que ali estabelecemos.

Ningum coloca em dvida que os bens do homem se dividem em bens exteriores, bens do corpo e bens da alma, e que o homem, para ser feliz, deve possuir a todos.

Todos concordam com o que acabamos de dizer; a controvrsia reside na determinao da medida e do excesso.

De fato, qualquer que seja a virtude que possuem, os homens sempre estimam t-la em suficincia; mas no que diz respeito s riquezas, ao dinheiro, ao poder, glria e a outras tais coisas no h limite nem excesso para o desejo do homem.

Ns, porm, afirmamos, e os fatos o confirmam, que a felicidade da vida encontra-se de preferncia entre aqueles que cultivam at excelncia as virtudes e o intelecto e se moderam na aquisio dos bens exteriores do que entre aqueles que possuem amplamente estes bens mas so pobres em bens da alma" .

Deve-se notar que nesta passagem o Filsofo no diz que a felicidade o cultivo at excelncia das virtudes e do intelecto, mas sim que a felicidade algo que se encontra de preferncia entre aqueles que cultivam estas coisas at excelncia. Tanto Aristteles como S. Toms, nos seus comentrios a Aristteles, colocam a felicidade na contemplao da sabedoria, e no no cultivo da virtude e do intelecto.

Cultivar at excelncia a virtude e o intelecto so, pois, mais propriamente requisitos prximos para a contemplao do que a essncia da felicidade. Esta passagem do VII da Poltica, portanto, quer dizer que o sistema poltico timo, assim como o sistema educacional timo, para conduzir o homem contemplao, deve ser aquele que se preocupa em primeiro lugar em cultivar no aluno, at excelncia, a virtude e a inteligncia.

No final do Comentrio ao livro VI da tica encontramos uma considerao semelhante, desta vez sob a pena de Toms.

Reportando as palavras do Filsofo, Toms de Aquino diz que os jovens no so capazes de alcanar as coisas de que trata a sabedoria; ainda que o digam pela boca, no se deve crer que eles tenham alcanado pela mente a verdade do que dizem, mesmo que se trate de pessoas para as quais as coisas da matemtica lhes sejam manifestas, porque as verdades da sabedoria so mais abstratas do que as da matemtica e estes jovens no possuem a inteligncia ainda exercitada para tais consideraes .Por isso a ordem correta de ensinar aos jovens para que eles possam alcanar a sabedoria ser instru-los primeiro na lgica, na matemtica e nas cincias da natureza; depois, nas coisas morais; s ento que ser possvel passar Sabedoria .

Vemos assim que o Comentrio ao VI da tica, exigindo o estudo de determinadas disciplinas juntamente com a instruo nas coisas morais antes do estudo da Sabedoria, pressupe, assim como j se havia deduzido do VII da Poltica, que a educao para a sabedoria requer uma educao prvia da inteligncia e da virtude.

Uma dvida, porm, fica a esclarecer: o Comentrio ao VI da tica afirma que os jovens devem ser instrudos nas coisas morais depois, e no antes, de terem sido instrudos em lgica, matemtica e cincias da natureza. Ser que no haveria aqui algum engano? Pois o que isto parece significar que, segundo a mente de Aristteles e Toms de Aquino, o jovem somente deveria se preocupar em adquirir bons costumes depois de ter-se tornado um bom fsico e matemtico. Seria mesmo isto o que eles quiseram dizer?

A esta pergunta deve-se responder negativamente. Nada seria mais contrrio ao que ambos ensinaram do que uma interpretao como esta.

Conforme veremos no captulo VII deste trabalho, tanto Aristteles como Toms de Aquino afirmam claramente que a preocupao com a vida moral deve principiar desde a mais tenra idade. O que o Comentrio ao VI da tica quer dizer com instruir o jovem nas coisas morais depois da lgica, da matemtica e das cincias da natureza e antes da Sabedoria no que o que precede de modo imediato a Sabedoria sejam os bons costumes, pois destes o educando j deve ter uma longa experincia. O Comentrio se refere, quando assim se expressa, no aquisio dos bons costumes, mas a uma verdadeira cincia moral que, conforme veremos, sendo uma cincia prtica, isto , uma cincia que tem na ao a sua finalidade, tem por objetivo levar a prtica da virtude, que o educando j deve possuir, a uma especial perfeio, isto , quela excelncia de que fala o VII da Poltica.

Dito isto, vamos passar considerao dos requisitos imediatos da sabedoria. Neste captulo examinaremos a educao da virtude. No captulo seguinte nos ocuparemos com a educao da inteligncia.

V.3) Natureza da cincia moral.

Antes de poder dedicar-se sabedoria, conforme vimos, o Comentrio tica diz que o aluno deve passar pelo aprendizado das coisas morais. Para que este aprendizado possa constituir-se em um trnsito para a sabedoria, entretanto, o Comentrio acrescenta que h algumas condies sem as quais seria intil que o aluno se dedicasse a elas.

A primeira que o aluno seja experiente da vida, isto , que j no seja jovem de idade:

"Os jovens, -diz o Comentrio-, no tm notcia das coisas que pertencem cincia moral, as quais so maximamente conhecidas por experincia. So inexperientes das operaes da vida humana por causa da brevidade do tempo e, por isso, no so ouvintes convenientes da cincia moral" .

Destas palavras depreende-se que a cincia moral que deve preceder o exerccio da sabedoria no um simples aprendizado de regras de comportamento ou a aquisio de bons costumes. Se fosse isto, tal coisa no necessitaria da experincia da vida como requisito; o Comentrio tica, ao contrrio, diz que a cincia moral, ao contrrio, no pode ser ensinada convenientemente aos jovens, justamente pela pouca experincia de vida que eles tm.

Mas, alm de no poderem os ouvintes desta cincia ser jovens de idade, tambm no podem, continua o Comentrio, ser jovens de costumes, isto , no podem ser pessoas que sigam suas paixes ou que, ainda que tenham bons propsitos de no seguir as paixes, no consigam, todavia, venc-las . Ou seja, devem ser tambm pessoas que j possuam os hbitos das virtudes de que trata a cincia moral.

Desta passagem depreende-se que o fim da cincia moral no o estabelecimento dos bons costumes no candidato sabedoria; ao contrrio, o ouvinte correto da cincia moral j deve chegar a ela ornado de uma vida virtuosa. O objetivo da cincia moral de que trataremos a seguir, portanto, no ser levar o ouvinte aquisio das virtudes, mas levar as virtudes j adquiridas perfeio.

A razo pela qual os que seguem suas paixes so ouvintes inteis da cincia moral claramente apontada no Comentrio ao I da tica: o fim da cincia moral, assim como o de toda cincia prtica, no somente o conhecimento, ao qual talvez pudesse chegar o seguidor das paixes, mas os atos humanos. Desta maneira, diz o Comentrio,

"de nada difere se o ouvinte desta cincia for jovem de idade ou jovem de costumes, isto , seguidor das paixes; a estas pessoas intil o conhecimento desta cincia, assim como tambm aos incontinentes, que no seguem a cincia que possam ter acerca das coisas morais" .

Desta outra passagem depreende-se que, alm de exigir experincia e bons costumes por parte do aluno, a cincia moral exige ainda um mtodo diferenciado de ensino; no algo que possa ser ensinado atravs do mtodo expositivo das modernas salas de aula, pois sua finalidade no o conhecimento, mas a ao. Tampouco, porm, pode ser ensinada como se ensinam as artes, em aulas prticas de laboratrio ou de oficina, pois as aes de que trata a cincia moral no podem ser reproduzidas artificialmente em oficinas e laboratrios; so aes que s podem ser encontradas no contexto da vida real. Deve-se concluir daqui que esta cincia moral s pode ser ensinada de tal modo que em seu ensino se permita que a vida cotidiana do aluno possa ser submetida a acompanhamento e avaliao. O Comentrio ao II da tica acrescenta a este respeito uma significativa observao:

"H alguns que acreditam que raciocinando acerca das virtudes, sem operar as obras da virtude, se tornaro virtuosos filosofando.

Estas pessoas se assemelham aos enfermos que ouvem cuidadosamente aquilo que lhes dizem os mdicos, sem nada fazer daquilo que lhes prescrito.

De fato, assim se acha a filosofia para a cura da alma como a Medicina para a cura do corpo.

De onde se conclui que, assim como aqueles que ouvem os preceitos dos mdicos sem nada fazer nunca estaro bem dispostos segundo o corpo, assim nem aqueles que ouvem o ensino dos filsofos morais e no fazem o que lhes foi ensinado tero a alma bem disposta" .

Se isto for considerado como um princpio de onde devem ser tiradas concluses na rea de educao, deve-se concluir que o ensino da cincia moral no pode fazer abstrao da vida moral do aluno e limitar-se exposio terica desta cincia. Se ela , ademais, pr-requisito para outras coisas, o aluno deve estar disposto a aceitar a interao entre os educadores e sua prpria vida particular. Fazer o contrrio seria incongruente; seria a mesma incongruncia, para dar um exemplo hoje facilmente compreensvel, de uma escola de Medicina onde se ministrassem todas as disciplinas acadmicas fazendo abstrao do aproveitamento do aluno, isto , sem avaliar o seu aproveitamento por meio de exames nem oferecer-lhe estgio supervisionado em hospital escola.

V.4) Virtudes que so objeto da cincia moral.

Vimos que o objetivo da cincia moral o de levar as virtudes excelncia; nem todas as virtudes, porm, so objeto da cincia moral. Algumas esto acima dela; outras, consideradas em si mesmas, nada tm a ver com ela.

Para entender, portanto, o que a cincia moral, devemos determinar qual o mbito das virtudes e quais dizem respeito cincia moral.

Com esta finalidade o Comentrio tica prope primeiramente uma diviso da alma em trs partes. A primeira inteiramente irracional; a segunda irracional em si mesma, embora participativamente j seja racional; a terceira inteiramente racional.

A parte da alma inteiramente irracional aquela que se assemelha alma das plantas; aquela que causa da alimentao e do crescimento. Esta primeira parte da alma no prpria do homem, mas comum a todos os seres vivos . Ela dita totalmente irracional porque de nenhum modo se comunica com a razo, no obedecendo s ordens da razo de nenhum modo .

A parte da alma que em si mesma irracional, mas que participa da razo, a concupiscncia e toda fora apetitiva em geral, como o irascvel e a vontade. As foras apetitivas participam de alguma maneira da razo porque elas podem obedecer razo; elas participam, todavia, no de toda a razo humana; elas participam apenas da razo prtica, que est para com as foras apetitivas como um pai que manda ou um amigo que aconselha; da razo especulativa as foras apetitivas no participam .

Finalmente, a parte da alma que inteiramente racional o intelecto, que se divide em especulativo ou cientfico , a quem cabe especular os entes necessrios, e o prtico ou raciocinativo, a quem cabe especular os entes contingentes. O intelecto especulativo pode ser chamado tambm de cientfico porque a cincia se refere aos entes necessrios cujos princpios no podem ser de outra maneira do que so; o intelecto prtico pode ser chamado de raciocinativo na medida em que ns tomamos conselho do contingente e no do necessrio, e o conselho um modo de raciocnio.

Embora Aristteles tenha dividido o intelecto em especulativo e prtico, S. Toms nota que enquanto tal o intelecto um s e no h diviso nele. A justificativa para esta diviso do intelecto em especulativo e prtico est em que existem duas maneiras de se conhecer o contingente: segundo razes universais e na medida em que ele algo individual. Na medida em que o contingente conhecido segundo razes universais, seu conhecimento pertence mesma parte do intelecto qual pertence o conhecimento do necessrio, isto , ao intelecto especulativo. Quando o contingente tomado segundo algo que tem de particular, o intelecto, que considerado em si mesmo tem por objeto conceitos abstratos de natureza universal, necessita, para conhec-los enquanto indivduos, do recurso parte sensitiva da alma; neste sentido que se diz que o intelecto prtico difere do intelecto especulativo .

Segundo esta diviso tripartida da alma, parte inteiramente irracional no corresponde virtude alguma.

s partes da alma que so racionais por participao, embora s participem do intelecto prtico, correspondem as virtudes morais; so exemplos de virtudes morais a fortaleza, a temperana e a justia.

s partes da alma que so racionais por essncia correspondem as virtudes intelectuais.

No intelecto especulativo so exemplos de virtudes intelectuais as cincias, a sabedoria, e a virtude denominada intelecto, que apreende a evidncia dos primeiros princpios das demonstraes. A cincia e o intelecto existem, so adquiridas ou deixam de existir no homem independentemente das virtudes morais. Quanto sabedoria, que a maior das virtudes intelectuais, sua relao para com as virtudes morais diferente; embora no livro VI da tica Aristteles e S. Toms afirmem que a sabedoria considerada em si mesma independe das virtudes morais, do conjunto da obra de ambos conclui-se que ela de fato no pode ser alcanada sem o prvio exerccio, levado at excelncia, das virtudes morais e da prudncia.

No intelecto prtico temos duas outras virtudes: a arte e a prudncia.

A arte independente das virtudes morais; a prudncia, ao contrrio, conforme veremos bem mais adiante, totalmente inoperante na ausncia das virtudes morais .

Virtudes morais e intelectuais diferem entre si, ademais, no apenas pelo sujeito, mas tambm pelo modo como se originam no homem.

De modo geral as virtudes intelectuais surgem e aumentam no homem pela doutrina, isto , sendo aprendidas de outros. Este o modo ordinrio de como surgem e progridem as virtudes intelectuais na sociedade humana; entretanto, como no aprendizado no se pode proceder at o infinito, ser necessrio que muitas coisas sejam conhecidas pelos homens atravs de descobertas pessoais. Como, porm, os conhecimentos resultantes de descobertas pessoais tem origem no sentido, pois o exerccio repetido das faculdades sensitivas d origem experincia de que surge o conhecimento, deve-se concluir da que a virtude intelectual, em sua primeira origem, necessita da experincia de longo tempo .

J a virtude moral tm origem pelo costume das obras . Como a virtude moral est na parte apetitiva da alma, implicando em uma inclinao a algo apetecvel, ela tem origem no costume que se converte em natureza . As virtudes morais so adquiridas pelo fato de operarmos segundo a virtude. Da freqente operao do apetite segue-se uma certa inclinao a modo de natureza: operando o que justo e moderado, os homens se tornam justos e moderados . As virtudes morais se produzem em ns pelo fato de que, agindo repetidas vezes segundo a razo, a forma da fora da razo imprime-se na fora apetitiva, e esta impresso nada mais do que a virtude moral .

Dividimos, assim, as virtudes em morais e intelectuais; explicamos quais so as virtudes intelectuais, como dependem cada uma de modo diverso das virtudes morais e o modo como ambas se adquirem. Dito isto, podemos agora especificar quais so as virtudes que so objeto da cincia moral.

Na cincia moral consideram-se todas as virtudes morais e mais a virtude intelectual da prudncia, a qual no se d seno conjuntamente com as virtudes morais.

As demais virtudes intelectuais no so consideradas na cincia moral por motivos diversos.

A cincia, a arte e o intelecto, consideradas em si mesmas, so independentes das virtudes morais: no necessitam das virtudes morais nem para operarem nem para serem adquiridas.

A sabedoria est fora do domnio da cincia moral por outros motivos. Embora pressuponha as virtudes morais para poder ser adquirida, algo que est situada para alm das cincias morais.

V.5) Primeiras concluses.

Como as virtudes morais se originam pelas operaes, caber cincia moral distinguir quais as operaes que devem ser feitas para que sejam gerados nos homens os hbitos das virtudes . Nas cincias especulativas, nas quais somente pretendemos o conhecimento da verdade, suficiente que se conhea a causa de cada efeito, mas nas cincias operativas, como o caso da cincia moral, cujo fim a operao, necessrio conhecer por quais movimentos ou operaes tal efeito se segue a uma tal causa. Pois na cincia moral no pesquisamos o que a virtude somente para que saibamos a verdade sobre este assunto, mas para que com isto possamos adquirir as virtudes .

Disto que foi dito seguem-se alguma concluses preliminares.

A primeira que no pouco difere se algum imediatamente desde a juventude j se acostuma a bem ou mal operar, antes, ao contrrio, o melhor depender em tudo disto, j que as coisas que em ns so impressas no princpio so mais firmemente retidas .

Em segundo, que o sinal da virtude j formada a operao deleitvel. A execuo das operaes que se fazem pela virtude difere antes e depois da virtude adquirida. Antes da virtude o homem deve fazer uma certa violncia para que opere; por isso tais operaes apresentam alguma tristeza misturada. Mas depois de gerado o hbito da virtude, tais operaes se fazem deleitavelmente, pois o hbito existir ento por modo de uma certa natureza, e por isso que algo deleitvel, porque convm a algo segundo a natureza. Assim, portanto, o sinal dos hbitos j gerados deve ser tomado a partir da deleitao ou da tristeza que sobrevm s operaes .

Disto tudo se conclui tambm que as virtudes no so impassibilidades ou quietudes. As virtudes no excluem do homem virtuoso as paixes da alma, mas faz com que as paixes sejam reguladas pela razo. No pertence s virtudes a excluso de todas as paixes, mas apenas a das desordenadas .

V.6) As virtudes so hbitos.

Com o que j se exps pode-se comear a determinar o que sejam precisamente as virtudes. Dentre os elementos que fazem parte da natureza das virtudes est, em primeiro lugar, o fato delas serem hbitos.

H na alma humana trs princpios de operao, que so as paixes, as potncias e os hbitos. Embora as virtudes sejam hbitos, elas relacionam-se com os dois restantes princpios das operaes humanas; ser, portanto, necessrio investigar a natureza destes trs princpios para entendermos o que a virtude.

H no homem duas faculdades apreensivas, o intelecto e o sentido. Ambas so capazes de receber uma forma, que uma semelhana do objeto apreendido, atravs da qual se tornam capazes de apreender seus objetos. Mediante esta forma apreendida, o objeto das faculdades apreensivas , de certo modo, trazido ao apreendente. Ora, como a cada forma se segue uma determinada inclinao, s formas recebidas pelas faculdades dos sentidos e do intelecto se seguiro as inclinaes do apetite sensvel e do apetite intelectivo, tambm conhecido como vontade. Ao contrrio das faculdades apreensivas, nas apetitivas o apetente que inclinado ao apetecvel, e no o apetecvel que trazido ao apetente. Por isso, chamam-se de paixes aos movimentos das faculdades apetitivas, e mais especificamente aos movimentos do apetite sensvel, por se darem por uma transmutao de um rgo corporal, ao contrrio do que ocorre com o apetite racional ou vontade. As paixes so, portanto, operaes do apetite sensitivo .

O apetite sensitivo, diz Toms de Aquino, uma inclinao conseqente a uma apreenso sensvel, assim como o apetite natural uma inclinao conseqente forma natural . Nele, porm, podem ser distinguidas duas potncias, o apetite concupiscvel e o apetite irascvel. Esta distino surge porque nos seres naturais que so passveis de corrupo no suficiente haver apenas uma inclinao para a obteno do que conveniente e a fuga do que nocivo, mas deve haver tambm uma inclinao para resistir ao que capaz de corromper a coisa ou causar-lhe danos. Temos assim o apetite sensvel que uma inclinao que se segue apreenso sensvel simplesmente considerada, segundo a qual o apreendente se inclina busca do que lhe conveniente segundo o sentido e fuga do que lhe nocivo segundo o sentido: este o apetite concupiscvel. H tambm, porm, outro apetite que uma inclinao pela qual o animal resiste aos que tentam mat-lo ou les-lo: este o apetite irascvel .

Desta maneira as paixes que dizem respeito ao bem e ao mal sensvel absolutamente considerados so do apetite concupiscvel; j aquelas que dizem respeito ao bem ou mal sensvel considerados sob o aspecto de alguma excelncia, dificuldade ou rduo so paixes do apetite irascvel .

As paixes que esto no concupiscvel so, em relao ao bem sensvel absolutamente considerado, as seguintes: o amor, que uma conaturalidade do apetite ao bem amado; o desejo, que importa um movimento do apetite ao bem amado; a deleitao, que um repouso do apetite no bem amado .

As paixes que esto no concupiscvel, em relao ao mal sensvel absolutamente considerado, so as seguintes: o dio, que se ope ao amor; a averso, que se ope ao desejo; a tristeza, que se ope deleitao .

No apetite irascvel h menor nmero de paixes do que no apetite concupiscvel, pois no h paixes que dizem respeito ao repouso, mas apenas ao movimento, pois aquilo em que algo repousa j no pode ter natureza de rduo ou difcil, que o objeto do apetite irascvel . As paixes que esto no irascvel, que dizem respeito ao bem e ao mal sensvel sob o aspecto do rduo so, portanto, as seguintes: a esperana e o desespero, em relao ao bem, e o temor e a audcia, em relao ao mal. Alm destas existe a ira, que por ser paixo composta, no apresenta contrrio .

As potncias so as faculdades da alma segundo as quais o homem passvel das paixes. A potncia irascvel aquela segundo a qual o homem pode enraivecer-se; a potncia concupiscvel aquela segundo a qual o homem pode entristecer-se .

Os hbitos so disposies pelas quais se determinam as potncias. Por meio do hbito uma potncia adquire uma ordenao, isto , uma certa prontido e finalidade para operar determinados atos; neste sentido que se diz que o hbito determina a potncia. Se a determinao se d segundo convenha natureza da potncia, ser um hbito bom e ser chamado de virtude; se a determinao se d segundo um modo inconveniente natureza da potncia, ser dito um hbito mau e ser chamado de vcio .

A virtude, portanto, um hbito; na medida em que determina uma potncia, esta potncia ser o seu sujeito. Por meio da virtude, a potncia determinada de tal modo que seus movimentos, que no caso das potncias sensveis so chamados de paixes, se dem segundo a reta razo.

V.7) A virtude um hbito eletivo.

Um hbito uma disposio pela qual uma potncia determinada a uma operao.

Para ser uma virtude, ademais, este hbito deve ser tal que disponha a potncia a uma operao chamada eletiva; operaes eletivas so aquelas que se do segundo a eleio .

Chama-se eleio a um ato da vontade precedido por um conselho . No so todos os atos da vontade que so precedidos por conselho. No nos aconselhamos, por exemplo, sobre os fins das aes; quando nos aconselhamos, sempre pressupomos o fim como algo j predeterminado a que a vontade naturalmente inclinada, somente havendo conselho e eleio a respeito das aes que iro se ordenar a este determinado fim. Ningum, por exemplo, se aconselha sobre se quer ser feliz, isto sendo algo naturalmente desejado pela vontade; os conselhos s tm sentido em relao aos meios de como alcanar a felicidade .

Ademais, somente existem conselho e eleio a respeito de coisas que esto em nosso poder; ningum se aconselha a respeito das coisas eternas que no podem ser mudadas, nem sobre as coisas que somente podem acontecer de modo diverso por acidente ou pela sorte e no porque dependam de ns, nem tampouco ningum se aconselha a respeito do que deve ser feito por outrem e no por si mesmo; todas estas coisas, embora no possam ser objeto de conselho e eleio, podem ser objeto de vontade , como por exemplo, quando desejamos que faa sol ou que faa chuva, ou quando desejamos que algum por quem nada podemos fazer recupere a sade.

Todas as coisas em que pode haver conselho podem,em princpio, ser objeto de eleio. Chama-se conselho a uma investigao da razo necessria nas aes em que esto envolvidas coisas singulares e contingentes que, por causa de sua variabilidade, so incertas .

A palavra conselho foi usada originalmente para designar uma reunio realizada entre muitas pessoas que se sentam juntas para conferenciar entre si, pela necessidade de considerarem nas coisas contingentes muitos aspectos e circunstncias que s com muita dificuldade poderiam ser consideradas por uma nica pessoa, mas que so percebidas com mais clareza por muitas, na medida em que um considera o que o outro no percebeu . Desta conferncia de muitas pessoas o nome conselho passou atividade da razo de uma s pessoa que imita, tanto quanto possvel, a reunio de muitas. Em algumas eleies pode no haver conselho precedente tal como acabou de ser descrito; so eleies que se referem a aes que j esto prescritas por alguma arte ou cincia, ou aes de pouca importncia nas quais a sentena do conselho j manifesta; nestes casos a razo no procede ao conselho, j ditando a sentena do conselho como evidente, mas o ato no deixa, por causa disso, de ser uma eleio .

Disto tudo decorre que a eleio um ato em que intervm tanto a vontade como a razo; e, se as virtudes so hbitos eletivos, isto significa que at mesmo nos atos do apetite concupiscvel ou irascvel estaro envolvidas as operaes da inteligncia e da vontade se tais atos forem realizados por meios das virtudes.

De fato, numa eleio a vontade j quer de antemo o fim ltimo que, na eleio, sempre tomado como pressuposto; a partir da o conselho investiga a partir de qual movimento ou ao pode-se alcanar aquele fim; encontrado o qual a vontade primeiro consente e depois impera, a si prpria ou s demais potncias, que operem .

Esta , portanto, a natureza das operaes a que as virtudes determinam as potncias.

V.8) A virtude um hbito eletivo que opera segundo a reta razo.

J afirmamos que o objetivo da cincia moral que precede a sabedoria o de fazer com que as virtudes, que j por si determinam as potncias da alma para que operem segundo um modo conveniente sua natureza, sejam levadas no homem at excelncia.

Ora, o modo conveniente natureza de cada coisa levado at excelncia a prpria perfeio desta coisa; nisto de fato consiste o bem de cada coisa, que esteja convenientemente disposta segundo sua prpria forma.

Mas a forma prpria do homem tal que segundo ela o homem animal racional.

Portanto, a operao do homem ser dita boa, perfeita e excelente pelo fato de que ela seja segundo a reta razo .

Isto algo possvel no mbito das virtudes, pois estando as virtudes morais no apetite, que participa da razo, elas podem ser, por isso mesmo, determinadas pela razo ; mais ainda no caso das virtudes intelectuais, que esto na prpria razo.

Deve-se, portanto, dizer que as virtudes so hbitos eletivos de operaes determinadas segundo a reta razo .

V.9) A virtude um hbito eletivo que opera, segundo a reta razo, o termo mdio.

Conforme foi dito no tem anterior, a natureza da virtude tal que ordena a potncia sua perfeio; esta perfeio, devido natureza humana, consiste em que a potncia opere segundo a razo. Assim, a razo tem para com a virtude a natureza de medida, a virtude sendo hbito bom segundo sua concordncia com a medida.

Toda medida pode corromper-se por deficincia ou excesso; portanto, na medida em que a operao perfeita determinada pela virtude moral consiste em sua adequao medida da razo, diz-se que a virtude moral determina a operao das potncias a um termo mdio entre um excesso e uma deficincia .

As operaes da virtude podem corromper-se tanto por excesso como por defeito, do que pode-se dar um exemplo mais evidente nos hbitos corporais: a fora do corpo pode corromper-se pelo excesso do exerccio como tambm pela ausncia do exerccio; o mesmo ocorre com a sade, que pode corromper-se pela quantidade excessiva como pela quantidade deficiente do alimento. Assim tambm ocorre com as virtudes da alma: aqueles que tudo temem e fogem, nada enfrentando de terrvel, se tornam tmidos; aqueles, por outro lado, que nada temem e se precipitam a todos os perigos se tornam (temerariamente) audazes; de onde que se conclui que a virtude da fortaleza consiste num termo mdio , isto , enfrentando os perigos segundo a regra da razo, no lugar e tempo oportunos e por um motivo adequado .

O termo mdio da virtude no nico nem idntico para todos. Ele deve ser tomado, de acordo com as circunstncias, no de modo absoluto, mas em relao a ns. Por exemplo, se dez uma quantidade excessiva de alimento e dois uma quantidade pequena, seis a mdia entre ambos estes valores; mas isto no quer dizer que o mestre de ginstica ir prescrever seis pores de alimento a todos os atletas, pois estas seis pores podero ser, de acordo com a pessoa, excessivas ou insuficientes. Na cincia moral, portanto, o homem deve fugir do excesso e da deficincia e investigar o que o termo mdio, no segundo a coisa, mas em relao a ns .

Toda a bondade da virtude moral depende da razo; o bem convm virtude moral na medida em que esta siga a reta razo . Por isso algum pode pecar de muitas maneiras, mas o agir corretamente ocorre somente de um nico modo. De fato, o bem se d por uma nica e ntegra causa, mas o mal por causa de defeitos singulares. Por exemplo, a feira, que o mal da forma corporal, ocorre se qualquer membro do corpo se achar indecente; mas a beleza no se d a no ser que todos os membros sejam bem proporcionados e coloridos. De modo semelhante, o mal acontece nas aes humanas em havendo qualquer circunstncia desordenada, tanto segundo o excesso como segundo o defeito. Mas a sua retido no se dar a no ser ordenando todas as circunstncias do modo devido. De onde se v que pecar fcil, porque isto acontece de muitas formas, mas agir corretamente difcil, porque isso no acontece a no ser de uma nica maneira .

Ora, evidente que o excesso e o defeito acontecem de muitas maneiras, enquanto que o termo mdio acontece de um nico modo; daqui fica manifesto que o excesso e o defeito pertencem aos vcios, enquanto que o termo mdio pertence virtude, porque o bem ocorre sempre de um s modo, conforme explicado, mas o mal de mltiplas maneiras, conforme tambm explicado .

H, porm, certas aes e paixes que por sua prpria natureza implicam malcia, como alegrar-se com o mal, o adultrio, o furto, o homicdio. Todas estas coisas e outras semelhantes so ms por si mesmas e no somente segundo o excesso ou o defeito que nelas possa haver. Nestas coisas nunca acontecer que algum aja corretamente qualquer que seja a maneira com que opere . A justificativa para que isto tenha que ser assim no que a regra do termo mdio tenha exceo; ao contrrio, a explicao que o termo mdio no determinado absolutamente e segundo a coisa, mas pela razo e em relao a ns; esta determinao em algumas matrias pode concluir pela total absteno da ao.

Por isto pode-se, de um modo geral, dizer-se que a virtude um termo mdio entre duas disposies viciosas, uma por excesso e outra por defeito .

Mais ainda, pode-se dizer tambm que a virtude costuma ser mais contrariada por um dos extremos do que pelo outro, dependendo da natureza da paixo a que diga respeito. Em alguns casos o termo mdio da virtude mais contrariado pelo vcio que est em defeito, enquanto que em outros o termo mdio mais contrariado pelo vcio que est em excesso.

Por exemplo, a fortaleza no maximamente contrariada pela audcia, que pertence ao excesso, mas pela timidez, que pertence ao defeito .

Inversamente, a temperana no maximamente contrariada pela insensibilidade, que pertence ao defeito, mas pela intemperana, que pertence ao excesso .

Cada virtude costuma ser mais contrariada por um dos extremos do que pelo outro segundo que um destes extremos seja mais semelhante ao termo mdio da virtude do que o outro .

Por sua vez, o fato de que um dos extremos seja mais prximo e semelhante ao termo mdio da virtude ocorre porque h duas maneiras de uma paixo corromper o bem da razo.

A primeira pela veemncia, compelindo a fazer mais do que a razo dita, como no caso das deleitaes; por isso a virtude que diz respeito a estas paixes tende principalmente a reprim-las, fazendo com que o vcio pelo defeito mais se assemelhe virtude do que o vcio por excesso .

A segunda pela fuga, compelindo a fazer menos do que a razo dita, que o caso do temor e de outras paixes que tm natureza de fuga; por isso a virtude que diz respeito a estas paixes tende principalmente a incentivar a ao do que a reprim-la, de onde que o vcio por excesso mais se assemelhar com a virtude do que o vcio por defeito .

De tudo quanto foi dito deve-se, portanto, concluir que a virtude um hbito eletivo pelo qual uma potncia opera o termo mdio determinado pela razo em relao a ns .

V.10) Modos de aquisio da virtude.

De tudo o que foi dito pode-se concluir que alcanar o termo mdio da virtude difcil; afastar-se dele, porm, fcil.

Alcanar o termo mdio da virtude implica em uma dificuldade semelhante determinao do centro de um crculo, que no algo que qualquer um seja capaz, mas algo prprio do que conhece, isto , algo prprio do gemetra, enquanto que afastar-se do centro qualquer um pode faz-lo e de modo fcil.

Semelhantemente ocorre com dar dinheiro e gast-lo para si. Que algum d algo a quem preciso dar, e quanto preciso, e quando preciso, e pelo motivo necessrio e como necessrio, no para qualquer um, nem fcil, mas, ao contrrio, raro, e difcil, louvvel e virtuoso, na medida em que segundo a razo .

Por tudo isso importante conhecer os modos pelos quais algum pode-se tornar virtuoso. Seguindo a Aristteles, Toms de Aquino determina no Comentrio tica trs modos de alcanar a virtude. O primeiro modo deriva da prpria natureza da virtude, o segundo da natureza individual do homem e o terceiro da natureza comum a todos os homens.

O primeiro modo, tomado da natureza prpria da virtude, consiste em que aquele que pretende alcanar o termo mdio da virtude se preocupe principalmente em afastar-se do extremo que mais contrariado pela virtude. Se algum deseja alcanar o termo mdio da fortaleza, deve ter um cuidado especial em afastar-se da timidez, que mais se ope fortaleza do que audcia .

O segundo modo tomado da parte do homem, quanto quilo que prprio a cada um. J que diversos homens so naturalmente inclinados a coisas diversas, necessrio que aquele que deseja tornar-se virtuoso preste ateno ao que seja aquilo ao que seu apetite mais inclinado a ser movido. Cada um pode conhecer aquilo a que naturalmente inclinado pela deleitao ou tristeza que acerca daquilo se produz, porque para cada um aquilo que para si conveniente segundo a natureza lhe deleitvel. De onde que se algum em alguma ao ou paixo muito se deleita, sinal de que este algum naturalmente inclinado a ela. Ora, os homens tendem veementemente s coisas que naturalmente so inclinados. Por isso, acerca delas o homem facilmente transcende o termo mdio. necessrio, portanto, que ns nos dirijamos ao contrrio o quanto possamos . Este modo de adquirir a virtude semelhante queles que endireitam uma rvore torta, os quais, querendo endireit-la, a torcem outra parte e assim a reduzem ao termo mdio .

A estas consideraes de Aristteles sobre o segundo modo de adquirir a virtude S. Toms de Aquino acrescentou este seu prprio parecer:

"Deve-se considerar que este caminho de adquirir a virtude eficacssimo, isto , que o homem se esforce ao contrrio daquilo a que inclinado pela natureza ou pelo costume.

O caminho que os filsofos esticos, (que vieram depois de Aristteles), propuseram mais fcil, isto , o caminho pelo qual o homem gradativamente se afasta daquilo a que inclinado.

Mas o caminho que aqui Aristteles coloca compete queles que de modo veemente desejam afastar-se dos vcios e alcanar a virtude, enquanto que o caminho dos esticos mais compete queles que tm uma vontade dbil e tpida" .

H ainda um terceiro modo pelo qual o homem pode alcanar a virtude, tambm tomado da parte do homem, mas no quanto quilo que prprio do homem, e sim quanto quilo que comum a todos. Segundo este terceiro modo, os homens que pretendem alcanar a virtude devem universalmente evitar as deleitaes. De fato, todos so naturalmente inclinados s deleitaes, e por causa de que os homens maximamente so inclinados deleitao, o deleitvel apreendido facilmente move o apetite. E por isso no podemos facilmente julgar o que deleitvel detendo-nos na considerao do mesmo. Assim, afastando-nos das deleitaes menos erraremos, porque a concupiscncia das deleitaes conduz os homens a afastarem-se do termo mdio da virtude .

Encontrar o termo mdio da virtude, continua o Comentrio, algo difcil, principalmente considerando as circunstncias singulares nos operantes singulares. Por exemplo, no fcil de se determinar como se deve fazer, e a respeito de que, e em quais coisas e por quanto tempo algum deve se irar. E um sinal desta dificuldade o fato de que aqueles que so deficientes em irar-se s vezes so louvados e chamados de mansos, enquanto que outras vezes louvamos aqueles que esto mais agravando uma situao punindo ou resistindo e os chamamos de viris .

Por isso suficiente para o termo mdio da virtude que algum pouco se afaste daquilo que bem feito segundo a virtude, o qual no vituperado, nem se declinar para mais ou para menos. Isto porque um pequeno afastamento do termo mdio da virtude ocultado pela prpria dificuldade do termo mdio. Mas um grande afastamento merece ser reprovado, porque no se pode ocultar. Quanto, porm, algum pode afastar-se do termo mdio sem que tenha que ser reprovado algo que no pode ser facilmente determinado apenas num discurso .

V.11) Plano de exposio das principais virtudes.

O Comentrio tica estuda detidamente mais de uma dezena de virtudes; na Secunda Secundae da Summa Theologiae S. Toms estuda com detalhe mais de cinqenta, e provavelmente no foi a sua inteno querer com estas esgotar o assunto.

Neste trabalho no pretendemos fazer um tratado de cincia moral, mas apenas mostrar a relao que existe entre ela e a contemplao em um sistema de educao que tenha a esta como ao seu fim ltimo.

Por este motivo vamos considerar aqui apenas as quatro virtudes denominadas virtudes cardeais; cada uma delas considerada no Comentrio tica como sendo a principal em seu sujeito, isto , na faculdade da qual hbito. Estas virtudes so: a temperana, que modera as paixes do apetite concupiscvel quanto s deleitaes venreas e ao comer; a fortaleza, que uma firmeza diante dos temores do apetite irascvel acerca do perigo da morte; a justia, que acerca da igualdade das aes entre um homem e outro, e cujo sujeito a vontade; e a prudncia, que a retido da razo no ato de preceituar, cujo sujeito o intelecto prtico .

Expostas estas quatro virtudes, mostraremos como as diversas virtudes morais se articulam entre si no homem e a razo pela qual o seu perfeito exerccio requisito para a virtude da sabedoria, esta ltima j situada para alm da cincia moral.V.12) A Virtude da fortaleza.

A fortaleza um termo mdio acerca das paixes do temor e da audcia. A fortaleza implica em uma certa firmeza de nimo, pela qual a alma permanece imvel diante do temor do perigo da morte .

No a verdadeira fortaleza aquela que diz respeito ao temor do perigo da infmia, da pobreza ou de males pessoais diversos , nem da morte que algum enfrenta em qualquer caso ou negcio, como no mar ou na enfermidade, mas aquela que acerca da morte que algum enfrenta por coisas timas, como quando algum morre na guerra por causa da defesa da ptria .

Acontece s vezes que algum teme o perigo da morte mais ou menos do que a razo julga, e, mais ainda, poder acontecer que coisas que no sejam terrveis sejam tomadas como terrveis, e nisto consiste o pecado do homem, que principalmente contra a reta razo. Quem enfrenta o que necessrio enfrentar, e foge por temor das coisas que necessrio evitar, e faz isso por causa do que necessrio, e do modo pelo qual necessrio, e quando necessrio, este chamado forte .

J os audazes diante dos perigos correm em direo aos mesmos com velocidade e com ardor, porque so movidos pelo mpeto da paixo alm da razo. Quando, porm, esto nos prprios perigos desistem, porque o movimento da paixo precedente vencido pela dificuldade iminente. Os fortes, porm, quando esto nas prprias obras difceis, so perspicazes, j que o julgamento da razo pela qual agem no vencido por nenhuma dificuldade; e antes que se lancem aos perigos, se mantm calmos, porque no agem pelo mpeto da paixo, mas pela deliberao da razo .

Aquele que enfrenta a morte para fugir de incmodos no forte, mas tmido. Quem se sujeita livremente morte para que possa fugir da pobreza ou de qualquer outra causa que provoque tristeza no movido pela virtude da fortaleza, mas pela timidez, porque esta atitude provm na verdade de uma fraqueza da alma pela qual algum no consegue sustentar trabalhos e tristezas e tambm porque a morte no enfrentada por causa do bem honesto, mas pela fuga de um mal que entristece .

Existem cinco fortalezas cujos atos se assemelham aos da verdadeira fortaleza, sem que, contudo, sejam a verdadeira fortaleza.

A primeira e a mais semelhante com a verdadeira fortaleza a fortaleza poltica, pela qual algum enfrenta os perigos de morte por causa da honra que da lhes advir .

A segunda, que j se assemelha menos, a fortaleza militar, na qual o homem enfrenta os perigos por causa de que a percia que tem nas armas lhe mostra no ser perigoso combater em tal ou qual guerra . Na guerra existem muitas coisas que suscitam temor aos inexperientes, embora apresentem pouco ou nenhum perigo, como o barulho das armas, do ajuntamento dos cavalos e outras assim. Estas coisas so conhecidas no serem terrveis principalmente atravs da experincia; da se segue que algumas pessoas que se intrometem sem temor nestas coisas parecem fortes, enquanto que as mesmas coisas parecem perigosas aos inexperientes, por desconhecimento do que sejam . Ademais, a experincia dos soldados faz com que eles saibam como atingir os adversrios sem ser atingidos por eles; de onde que tais soldados na verdade no possuem a virtude da fortaleza, mas lutam com os outros como os armados com os desarmados . Tais soldados agem com fortaleza enquanto no percebem a iminncia do perigo; mas quando o perigo excede a percia que eles possuem nas armas ou quando no tm consigo os equipamentos blicos adequados, ento se tornam tmidos, tornando-se os primeiros a fugirem. De fato, no eram audazes seno porque pensavam que o perigo no lhes era iminente .

A terceira fortaleza, que se assemelha ainda menos verdadeira fortaleza, a fortaleza pela ira. Os homens, no seu falar usual, confundem o furor com a fortaleza. A fortaleza, de fato, tem uma certa semelhana com o furor, na medida em que o furor induz ao perigo com mximo mpeto, e o forte com grande virtude de alma tende ao perigo. Mas os verdadeiros fortes no so impelidos a executarem a obra da fortaleza pelo mpeto do furor, mas pela inteno do bem; o furor se acha em seus atos apenas secundariamente, ao modo de cooperante. Na verdadeira fortaleza o furor deve seguir a eleio, e no preced-la .

O quarto modo da falsa fortaleza, que muito pouco se assemelha verdadeira fortaleza, o da fortaleza pela esperana. Os fortes pela esperana so aqueles que por terem vencido muitas vezes os perigos existentes confiam tambm agora obter a vitria, no por causa de alguma percia que tenham alcanado pela experincia, mas por causa apenas da confiana que recebem das freqentes vitrias. Assim como aqueles que agem com fortaleza por causa da ira no so os verdadeiros fortes, assim tambm aqueles que agem somente por causa da esperana da vitria no so os verdadeiros fortes. Eles enfrentam os perigos com audcia porque se julgam melhores na luta e em nada atingveis pelo adversrio; nisto so semelhantes aos bbados que por causa do vinho so invadidos pela esperana. Porm, quando aos tais no acontece o que esperam, no persistem e se pem em fuga .

A pior de todas as falsas fortalezas a fortaleza por ignorncia. Aqueles que ignoram os perigos parecem ser fortes na medida em que enfrentam audaciosamente as coisas que so perigosas, j que no lhe vem o perigo; por isso no diferem muito dos que so fortes por causa da boa esperana. Todavia, os que so fortes pela esperana ainda conhecem como so em si as coisas que enfrentam, enfrentando-as, porm, apenas porque no as consideram perigosas. J os ignorantes no estimam as coisas que enfrentam serem perigosas em si mesmas consideradas, e nisto so tanto piores do que os que so de boa esperana quanto nenhuma dignidade tm, j que enfrentam o perigo somente por defeito de cincia. De fato, aqueles que so de boa esperana ainda chegam a permanecer nos perigos por algum tempo depois que j o reconheceram, at que o tamanho do perigo supere a sua esperana; mas os que so fortes por ignorncia assim que conhecem ser a coisa diferente do que supunham colocam-se imediatamente em fuga .

A verdadeira fortaleza uma virtude que se encontra como termo mdio segundo a reta razo acerca dos temores e audcias por causa do bem , e mais louvvel do que a temperana, porque o louvor da virtude consiste principalmente em que algum opere acerca das coisas difceis e mais difcil que algum sustente o que contristante, o que pertence fortaleza, do que se abstenha das coisas que so deleitveis, o que pertence temperana .

V.13) A virtude da temperana.

A fortaleza acerca das paixes do temor e da audcia que esto no irascvel; j a temperana acerca das deleitaes e tristezas que esto no concupiscvel. As deleitaes acerca das quais a temperana so as deleitaes da comida e das coisas venreas, que se realizam atravs do tato e so comuns a ns e aos animais .

O sentido do tato, acerca do qual a temperana, comunssimo entre todos os sentidos, porque este sentido comum a todos os animais. Por isso a intemperana justamente reprovvel, porque no est no homem quanto quilo que prprio do homem, mas quanto quilo que ele tem em comum com os demais animais; deleitar-se em tais coisas amando-as como aos bens mximos completamente bestial. Por esta razo o vcio da intemperana tem mxima torpeza, mais do que os vcios contra a fortaleza, porque por ele o homem se assemelha aos animais .

Ademais, o forte e o temperante no se acham do mesmo modo para com as tristezas; de fato, o forte padece grandes tristezas, mas louvado por bem sustent-las, enquanto que o temperante no louvado por sustentar tristezas provenientes da ausncia da deleitao, antes, ao contrrio, louvado por no entristecer-se ao manter-se na absteno das deleitaes das quais no tem muita concupiscncia .

O vcio segundo o qual algum deficiente acerca das deleitaes chamado de insensibilidade, o qual no convm natureza humana. Se h algum para o qual nada deleitvel, este algum est longe da natureza humana . Mas o temperante no se deleita nas coisas torpes nas quais o intemperante maximamente se deleita; ao contrrio, nestas mais se entristece. O temperante de modo geral no se deleita no que no convm, nem se deleita mais veementemente do que convm . Quanto s tristezas, o homem temperante no se entristece superfluamente na ausncia do que deleitvel, nem tampouco tem concupiscncia dos deleitveis ausentes, porque no muito se ocupa com eles, ou tem para com eles uma concupiscncia com a medida devida, no os desejando mais do que convm, nem quando no convm, nem segundo alguma outra circunstncia que exceda a medida da razo .

A intemperana mais reprovvel do que a timidez, porque mais se assemelha ao voluntrio do que o temor. De fato, cada um se deleita naquilo em que age voluntariamente, enquanto que foge daquilo que lhe ocorre involuntariamente. Ora, o intemperante age justamente por causa da deleitao, enquanto que o tmido recusa agir por causa da tristeza da qual foge. Portanto, a intemperana movida por algo que em si tem natureza de voluntrio, enquanto que a timidez movida por aquilo que em si tem natureza de involuntrio. Por isso a intemperana mais reprovvel do que a timidez, porque tem mais de voluntrio .

A intemperana tambm mais reprovvel do que a timidez porque os vcios so tanto mais reprovveis quanto mais facilmente podem ser evitados. Ora, qualquer vcio pode ser evitado pelo costume contrrio; quanto a isto, mais fcil acostumar-se a operar nas coisas que dizem respeito temperana do que nas coisas que dizem respeito fortaleza, porque as coisas deleitveis da comida e da bebida e outras tais ocorrem muitas vezes na vida humana, no faltando ao homem ocasio de acostumar-se a bem operar acerca de tais coisas; ademais, acostumar-se a operar bem acerca destas coisas no apresenta perigo algum. Conclui-se assim por esta outra razo que o vcio da intemperana mais reprovvel que o vcio da timidez .

V.14) A virtude da justia.

prprio da justia, entre todas as demais virtudes, ordenar o homem nas coisas que se relacionam a outro. A justia, como o prprio nome denota, importa numa certa equalidade, j que vulgarmente dizemos ajustar as coisas que entre si adequamos; ora, toda equalidade dita em relao a outro . justia pertence, pois, dar a cada um o que de seu direito .

Por causa disto a justia difere das demais virtudes na medida em que outras virtudes como a fortaleza e a temperana aperfeioam o homem nas coisas que lhe convm segundo si mesmo; o que reto nas obras da fortaleza e da temperana tomado por comparao ao agente, segundo que a obra da virtude seja feita de uma certa maneira por este agente. Mas na obra da justia o reto constitudo por comparao a outro, independentemente de sua comparao para com o agente .

O sujeito da virtude da justia a vontade, porque somos ditos justos por agirmos retamente em algo. Ora, os princpios prximos das aes so as foras apetitivas; existem, porm, dois apetites, isto , a vontade, que est na razo, e o apetite sensvel, que se segue apreenso dos sentidos. Pertence, porm, justia, dar a cada um o que de seu direito; dar a cada um o que de seu direito, entretanto, no pode provir do apetite sensvel, porque a apreenso sensvel no se pode estender considerao da proporo de uma coisa a outra, o que prprio da razo. Daqui deve-se inferir que a justia no pode estar no irascvel ou no concupiscvel como em seu sujeito, mas somente na vontade .

H trs diferenas entre a justia e as demais virtudes morais como a fortaleza e a temperana. A primeira que a fortaleza e a temperana so acerca das paixes, enquanto que a justia acerca das operaes; na fortaleza e temperana se considera principalmente como o homem interiormente disposto segundo as paixes, enquanto que aquilo que exteriormente opera no considerado seno como algo conseqente, na medida em que as operaes exteriores provm das paixes interiores; na justia, entretanto, leva-se principalmente em considerao aquilo que o homem exteriormente opera, enquanto que como ele est interiormente disposto no considerado seno por conseqncia, na medida em que algum ajudado ou impedido pelas suas disposies interiores acerca das operaes . De fato, segundo as paixes interiores, que so moderadas pela fortaleza e temperana, considera-se a retificao do homem em si mesmo; pelas aes exteriores e pelas coisas exteriores, que os homens podem comunicar entre si, tomada a ordenao de um homem a outro. Portanto, como a justia se ordena ao outro, no ser acerca de toda a matria da virtude moral, mas apenas acerca das aes e coisas exteriores segundo a razo especial de seu objeto, isto , na medida em que segundo elas o homem se ordena a outro .

A segunda diferena entre a justia e as demais virtudes morais como a fortaleza e a temperana que na fortaleza e temperana o termo mdio da virtude determinado pela razo em relao a ns; j na justia o termo mdio tomado em relao coisa . De fato, as outras virtudes morais alm da justia so principalmente acerca das paixes, cuja retificao tomada em relao ao prprio homem de quem so estas paixes, na medida em que este homem se ira ou cobia do modo devido segundo as diversas circunstncias; portanto, o termo mdio de tais virtudes no tomado segundo a proporo de uma coisa a outra, mas somente por comparao ao prprio virtuoso. J a matria da justia a operao exterior, segundo a qual a operao ou a coisa da qual ns fazemos uso possui uma devida proporo a uma outra pessoa; por isso o termo mdio da justia consiste em uma certa proporo da coisa exterior pessoa exterior, de onde que a razo determinar o termo mdio da justia na coisa, e no em relao a ns .

A terceira diferena entre a justia e as demais virtudes morais est em que a justia, ao contrrio das demais virtudes, que so um termo mdio entre duas malcias, um termo mdio mas no entre dois vcios opostos. A justia um termo mdio entre fazer o injusto e padecer o injusto; fazer o injusto ter mais do que devido enquanto que padecer o injusto ter menos do que a si devido por ser disto privado por algum; o ato da justia fazer o igual, que o termo mdio entre o mais e o menos. Ora, fazer o injusto pertence malcia, que a injustia, mas padecer o injusto no pertence a nenhuma malcia, sendo mais uma pena sofrida do que uma malcia .

Cabe virtude da justia no somente produzir as aes justas, pelas quais nos ordenamos retamente aos outros, mas tambm proferir julgamentos corretos.

No seu uso mais comum, a palavra julgamento significa correta determinao de qualquer coisa, tanto no que especulativo como no que prtico; entretanto, segundo seu primeiro significado, julgamento significa a correta determinao do justo. Tomado neste sentido, o julgamento um ato da virtude da justia , porque definir algo corretamente em qualquer obra da virtude coisa que procede do prprio hbito da virtude; assim como o casto quem determina corretamente aquilo que pertence castidade, assim tambm o julgamento, que importa na correta determinao do que justo, algo que pertence propriamente virtude da justia . Na medida em que o julgamento um ato da razo prtica, um ato da prudncia; mas na medida em que para proferir este julgamento necessrio possuir a idoneidade que predispe ao julgamento correto, o julgamento ato da virtude da justia .

O exerccio da virtude da justia, diz o Comentrio tica, mais difcil do que o exerccio da arte da Medicina. Nem todos reconhecem isto, e algumas pessoas pensam no ser necessria grande virtude para conhecer o que justo e injusto, bastando para isto entender as coisas que so ditas pela lei, que o direito positivo. Mas estas pessoas, continua o Comentrio, se enganam, porque a letra da lei, considerada de modo simples, no o Direito a no ser circunstancialmente. O verdadeiro Direito consiste em operar e distribuir, isto atribuir, de modo correto, os negcios e as pessoas. Ora, acomodar convenientemente os negcios e as pessoas mais trabalhoso e mais difcil do que conhecer o que sanativo, em que consiste toda a arte da Medicina, pois maior a diversidade das coisas voluntrias nas quais consiste a justia do que a das compleies em que consiste a sade . Por isso que os homens, quando duvidam do termo mdio entre o lucro e o prejuzo, recorrem ao juiz : o julgamento o ato prprio do juiz enquanto juiz; a prpria palavra juiz vem do latim judex que significa jus dicens, isto , aquele que diz o justo . Quando as pessoas recorrem, porm, ao juiz, procedem da mesma maneira como se estivessem se refugiando no que justo, porque o juiz para julgar corretamente deve ser como que animado pelo que justo de tal modo que a sua alma seja totalmente possuda pela justia ; os homens, na verdade, recorrem ao juiz assim como a uma justia personificada . E esta funo do juiz, que exige dele uma alma to impregnada pela justia a ponto de torn-lo como que uma personificao desta virtude, ato da virtude da justia e mais difcil do que a prpria arte da Medicina.

Na verdade, a justia tem lugar de preeminncia entre todas as virtudes morais, no apenas por parte do sujeito, porque est numa parte mais nobre da alma, isto , no apetite racional, ou seja, na vontade, enquanto que as demais virtudes morais esto no apetite sensvel, ao qual pertencem as paixes, matria das demais virtudes morais; mas tambm por parte do objeto, porque as outras virtudes so louvadas segundo o bem prprio do virtuoso, enquanto que a justia louvada na medida em que o virtuoso se encontra bem para com o outro: de fato, a justia, de certa forma, o bem do outro . Apesar da fortaleza dizer respeito a coisas mais difceis do que a justia, isto , acerca dos perigos de morte, a fortaleza no mais nobre do que a justia, porque embora ela seja acerca de coisas mais difceis, a justia diz respeito a coisas melhores, sendo til na paz e na guerra, enquanto que a fortaleza til apenas na guerra .

V.15) A justia legal.

A determinao que foi feita da justia at aqui no esgota todo o contedo desta virtude. Pertence natureza da justia o ordenamento das aes humanas ao outro; ora, este outro pode ser tomado na medida em que pela virtude da justia ordenamos nossas aes a alguma ou algumas pessoas singularmente consideradas, tal como foi feito at aqui, ou na medida em que ordenamos nossas aes ao prprio bem comum; em ambos os casos estamos diante da virtude da justia, mas a primeira a justia dita particular, enquanto que a segunda a justia dita legal , pois nas formas corretas de governo cabe s leis declararem o que pertence ao bem comum .

Ora, na medida em que ordena as aes humanas ao bem comum, este segundo modo da justia, a virtude da justia legal, inclui todas as demais virtudes morais .Pois o bem de qualquer virtude, seja que ordene o homem a si mesmo, seja que ordene o homem a outras pessoas singulares, pode ser referido ao bem comum, ao qual se ordena a justia legal. Isto acontece porque aqueles que esto em uma comunidade se comparam comunidade como a parte ao todo. Como a parte, aquilo que ela , o do todo, qualquer bem da parte ordenvel ao todo; os atos de todas as virtudes, portanto, mesmo aquelas que ordenam o homem em relao a si mesmo, so ordenveis ao bem comum, e neste sentido pertencem justia legal que , por isso mesmo, uma virtude geral .

Embora na justia legal estejam includas todas as demais virtudes, ela no a mesma coisa que o conjunto de todas as demais virtudes. A justia legal est para com todas as virtudes do modo como uma causa universal est para com todos os seus efeitos, assim como o Sol est para com todos os corpos que so iluminados por sua fora. De fato, a justia legal ordena os atos de todas as outras virtudes a um determinado fim; deste modo, ela inclui todas as demais virtudes, qualquer virtude podendo ser dita justia legal na medida em que se ordena ao bem comum, e, no obstante, ela tambm uma virtude especial segundo a sua essncia .

Somente a justia pode ser uma virtude geral, e no a fortaleza ou a temperana, porque a temperana e a fortaleza esto no apetite sensvel, que so por natureza foras apetitivas de bens particulares, assim como a apreenso sensvel, que cognoscitiva do que particular, enquanto que a justia est no apetite intelectivo que a vontade, o qual, ao contrrio dos sentidos, pode-se referir ao bem universal, que apreenso do intelecto .

Quando tratamos da justia particular, afirmamos que ela tinha preeminncia entre todas as virtudes morais no apenas por estar na vontade mas tambm porque as demais virtudes aperfeioam o homem segundo o seu bem prprio, enquanto que a justia aperfeioa o homem por comparao a outro; ora, ser perfeito por comparao a outro, diz o Comentrio tica, melhor do que ser perfeito somente segundo si mesmo .

Mas pela mesma razo manifesto que a justia legal a mais brilhante entre todas as virtudes morais, mais ainda do que a justia particular, no s porque a justia particular acerca das coisas exteriores segundo as quais se d a comunicao entre os homens enquanto que a justia legal universalmente acerca de toda a matria moral, qualquer que seja o modo pelo qual algum possa ser dito virtuoso acerca de algo , mas tambm na medida em que o bem comum tem primazia sobre o bem singular de uma pessoa . Por causa disso que diz o Filsofo que a justia legal excelentssima entre todas as virtudes, reportando-se a um provrbio segundo o qual "nem a brilhantssima estrela vespertina, nem a brilhantssima estrela matutina fulgem assim como a justia" .

V.16) A virtude da prudncia.

Dissemos que a virtude um hbito eletivo que opera segundo a razo reta, coisa possvel nas virtudes morais por estarem elas no apetite que racional por participao, cabendo razo reta determinar a escolha do termo mdio da operao, afastando-a tanto do excesso como do defeito.

Para completar o quadro das virtudes principais, iremos agora investigar as virtudes intelectuais pelas quais a prpria razo retificada .

a) A prudncia e o intelecto dos primeiros princpios dos operveis.

H duas virtudes intelectuais s quais cabe a retificao da razo naquilo que necessrio operao dasvirtudes morais, e ambas tm como sujeito a razo prtica.Estas virtudes so a prudncia e o intelecto dos primeiros princpios dos operveis.

A prudncia retifica a razo prtica acerca dos operveis que so meios para se alcanarem os fins ltimos das operaes humanas.

J o intelecto dos primeiros princpios dos operveis um hbito semelhante quela outra virtude de que j falamos anteriormente e que tambm se denomina intelecto; estamos nos referindo ao intelecto dos primeiros princpios das demonstraes, cujo sujeito a razo especulativa e, conforme o prprio nome indica, diz respeito aos primeiros princpios das demonstraes. Assim como pelo intelecto dos primeiros princpios das demonstraes a razo especulativa se encontra corretamente disposta apreenso dos primeiros princpios dos silogismos ou raciocnios, pelo intelecto dos primeiros princpios dos operveis a razo prtica se encontra corretamente disposta inteligncia dos fins das operaes humanas retificadas pela prudncia.

Prudncia e intelecto dos princpios dos operveis tm assim em comum a retificao da razo prtica; mas diferem pelo objeto a que se referem e pelo modo como operam.

De fato, na prudncia pressupe-se uma certa investigao do raciocnio que denominado conselho; j no intelecto dos primeiros princpios dos operveis no h raciocnio nem conselho. Ningum se aconselha acerca dos fins que, nas operaes, so os primeiros princpios; os fins so pressupostos pelas aes e a eles somos inclinados por modo de natureza; somente nos aconselhamos acerca dos meios necessrios para obter os fins; se alguma vez raciocinamos para investigar qual o fim a que devemos tender, porque este fim, na verdade, no era o fim ltimo de nossas aes.

Portanto, prudncia e intelecto dos princpios dos operveis so virtudes que trabalham de modo essencialmente diverso; a prudncia diz respeito queles operveis em que o homem, para agir conforme sua natureza racional, deve fazer eleio e, portanto, fazer intervir a razo prtica no conselho includo nesta eleio; j o intelecto dos princpios dos operveis apreende estes primeiros princpios por uma certa conaturalidade para com eles.

Assim se expressa a este respeito Toms de Aquino na Summa Theologiae:

"Na razo especulativa h coisas naturalmente conhecidas, acerca das quais a virtude do intelecto, e h tambm outras que so conhecidas atravs das anteriores, que so as concluses, acerca das quais a cincia.

Assim tambm na razo prtica preexistem certas coisas que so como princpios naturalmente conhecidos, que so os fins (ltimos) das virtudes morais, (conhecidos pelo intelecto dos primeiros princpios dos operveis), pois os fins esto para o que opervel assim como os princpios esto para o que especulativo.

H tambm na razo prtica outras coisas que so como que as concluses, que so as coisas que se ordenam aos fins, s quais chegamos (por uma investigao que parte como pressuposto) dos prprios fins. A prudncia diz respeito a estas coisas, aplicando os princpios universais s concluses particulares dos operveis" .

Pertence, portanto, ao homem prudente, por faculdade deste hbito, que ele possa bem aconselhar-se a respeito das aes que se ordenam ao fim ltimo das virtudes .b) A prudncia toma seus principios dos hbitos das virtudes morais, e no diretamente do intelecto dos primeiros princpios dos operveis.

Ocorre, porm, que segundo a doutrina de S. Toms de Aquino e Aristteles, a prudncia no toma os primeiros princpios que pressupe para sua operao diretamente do intelecto dos primeiros princpios dos operveis, mas faz isto apenas de modo mediato, atravs dos hbitos das virtudes morais cujo sujeito so as foras apetitivas.

por isto que o Comentrio tica afirma que a prudncia necessita da temperana, e das demais virtudes morais tambm, como salvadora de seus princpios .

A temperana, diz o Comentrio, tem em grego um nome que significa "salvadora da prudncia".

De fato, a temperana, na medida em que modera as deleitaes e as tristezas do tato, salva a estimao dos fins por causa dos quais se fazem os operveis. Os fins em vista dos quais so feitos os operveis so princpios dos operveis, por se acharem em relao aos operveis assim como os princpios para com as demonstraes. Ora, quando h uma veemente deleitao ou tristeza, parecer ao homem que timo aquilo pelo qual conseguir a deleitao ou fugir da tristeza. Assim, corrompido o julgamento da razo, no parecer verdadeiro ao homem o fim que princpio da prudncia acerca do opervel existente, nem apetecer este fim, nem lhe parecer que necessrio escolher e operar todas as coisas por causa do fim verdadeiro, mas sim por causa do deleitvel. Assim, de fato, qualquer malcia ou hbito vicioso corrompe os princpios das aes humanas, na medida em que corrompe a reta estimao do fim. Ora, esta corrupo maximamente impedida pela temperana. De onde que se conclui que a prudncia necessita da temperana como uma salvadora de seus princpios .

Por isso, embora a prudncia esteja no intelecto prtico como em seu sujeito, por causa do que dita virtude intelectual, todavia no virtude intelectual como outras virtudes intelectuais que o so somente com a razo. Este o caso da arte e da cincia, mas, no caso da prudncia, esta virtude requer a mais a retido do apetite.

Sinal de que isto assim que o hbito que est apenas na razo pode ser trazido ao esquecimento, assim como a arte e a cincia, a no ser que seja hbito natural, como o intelecto. Mas a prudncia no se d ao esquecimento por falta do costume; ao contrrio, somente abolida pela cessao do apetite reto, o qual, enquanto permanece, continuamente exercido nas coisas que so da prudncia, de tal maneira que chegar-se ao esquecimento no possvel .

c) Extenso da prudncia.

A prudncia diz respeito tanto ao universal como ao singular, pois a obra do prudente bem aconselhar. Ora, ao aconselhar-se, algum pode errar de duas maneiras, isto , tanto acerca do universal como acerca do particular. necessrio, portanto, que a prudncia seja diretiva tanto do universal como do singular .

sinal de que a prudncia no seja somente acerca do universal, mas tambm acerca do particular, o fato dos jovens conseguirem tornar-se doutos em matemtica e geometria e at sbios no que diz respeito a estas cincias, mas no parecer que se tornem prudentes. A causa disso est justamente em que a prudncia tambm acerca dos singulares que s se fazem conhecidos atravs da experincia. Ora, os jovens no podem ser experientes, porque para a experincia requer-se uma multido de tempo .

d) Necessidade da prudncia para a operao humana perfeita.

Para a perfeio de qualquer operao humana requer-se no apenas o hbito da virtude moral, mas tambm o hbito da virtude da prudncia. De fato, duas coisas so necessrias na obra da virtude: a primeira que o homem tenha uma reta inteno do fim, o que feito pela virtude moral, na medida em que esta inclina o apetite para o fim devido; a segunda que o homem se encontre corretamente disposto acerca das coisas que se relacionam com o fim, o que feito pela prudncia, a qual bem aconselhante, julgante e preceptiva das coisas que se relacionam para com o fim. Assim, obra da virtude concorrem a prudncia, que perfectiva do que racional por essncia, e a virtude moral, que perfectiva da parte apetitiva da alma, que racional por participao .

e) Natureza da prudncia.

Deste modo, para que o homem seja virtuoso requer-se a virtude moral que faz a eleio reta quanto inteno do fim, enquanto que as coisas que so feitas por causa do fim j no pertencem virtude moral, mas virtude da prudncia que encontra os caminhos que conduzem ao fim.

Para entendermos melhor a natureza da prudncia, deve-se dizer que na raiz da virtude da prudncia encontra-se um princpio operativo que chamado dintica .

A prudncia no totalmente a mesma coisa que a dintica; todavia, a prudncia no pode existir sem a dintica.

Dintica significa engenhosidade ou indstria, e um princpio operativo tal que por ela o homem pode operar as coisas que se ordenam inteno que o homem pressupe, seja boa ou m, alcanando o fim atravs destas coisas que so operadas .

Se a inteno boa, tal engenhosidade louvvel; se a inteno m, tal engenhosidade reprovvel.

S quando a este princpio cognoscitivo que a dintica se acrescenta a virtude moral que o hbito que da surge passa a ser chamado de virtude da prudncia.

f) Necessidade das virtudes morais para a operao da prudncia.

A dintica somente pode ser chamada de prudncia se for acompanhada da presena das virtudes morais que a ordenam a um fim bom e louvvel. Sem as virtudes morais, pode existir a dintica, mas ela no constituir mais a prudncia, nem sequer ter natureza de virtude.

A razo desta afirmao evidente.

Toda virtude se relaciona para com o bem. Ora, assim como os silogismos ou raciocnios especulativos tem seus princpios, assim tambm princpio dos demais operveis que tal ou qual fim seja tido como bom e timo. Deste modo, ao que temperante ser timo e ser um princpio alcanar o termo mdio da concupiscncia do tato. Mas isto somente parecer timo ao virtuoso que possui o correto julgamento acerca dos fins, j que a virtude moral faz a reta inteno acerca do fim, enquanto que a malcia, oposta virtude, perverte o julgamento da razo e faz mentir acerca dos fins, que so princpios acerca do que prtico . Ora, ningum pode raciocinar corretamente se errar acerca dos princpios. Portanto, como pertence ao prudente raciocinar corretamente acerca dos operveis, torna-se manifesto que impossvel ser prudente aquele que no virtuoso, assim como no pode ter cincia aquele que errar acerca dos princpios da demonstrao .

Fica assim demonstrado como no pode existir a virtude da prudncia sem as virtudes morais.g) Necessidade da prudncia para a operao das virtudes morais.

Acabamos de expor como S. Toms de Aquino mostrou ser impossvel existir a virtude da prudncia sem as virtudes morais.

Mas ele tambm, logo a seguir, nos mostra o outro lado da questo, e afirma que do mesmo modo no podem existir as virtudes morais sem a prudncia.

De fato, assim como a prudncia pressupe a dintica, assim tambm as virtudes morais pressupem as virtudes naturais.

As virtudes morais so as virtudes perfeitas. Elas, porm, pressupem a existncia de virtudes naturais assim como a prudncia pressupe a dintica. Do mesmo modo como a dintica no totalmente a mesma coisa que a prudncia, mas algo situado em sua raiz, assim tambm as virtudes naturais no so totalmente a mesma coisa que as virtudes morais, mas algo situado na raiz das mesmas.

A realidade das virtudes naturais evidente pelo fato de que os costumes singulares das virtudes ou dos vcios parecem existir em alguns homens naturalmente; de fato, imediatamente desde o seu nascimento alguns homens parecem ser justos, temperantes ou fortes por uma disposio natural, pela qual so inclinados obra das virtudes.

Estas virtude naturais podem originar-se no homem de trs modos.

Primeiro, por parte da razo, pois existem no homem por natureza os primeiros princpios dos operveis humanos, como por exemplo, que a ningum se deve maltratar, e assim por diante.

Segundo, as virtudes naturais podem originar-se por parte da vontade, que por si mesma naturalmente movida ao bem inteligido, como a um objeto prprio; estes dois primeiros modos so comuns a todos os homens.

H ainda um terceiro modo pelo qual uma virtude natural pode originar-se no homem, o qual por parte do apetite sensitivo, na medida em que por uma compleio natural alguns so mais dispostos ira, outros concupiscncia ou a outras paixes, alguns mais e outros menos .

Mas a virtude moral, que a virtude perfeita, est para a virtude natural assim como a prudncia est para a dintica. Prudncia e dintica, conforme j explicado, embora no sejam inteiramente a mesma coisa, todavia tm alguma semelhana entre si. A prudncia no pode existir sem a dintica e mais do que a dintica: a prudncia acrescenta dintica o fato de no poder se realizar sem a virtude moral, a qual no necessria dintica .

Assim tambm ocorre com a virtude moral.

Embora alguns sejam naturalmente fortes ou justos, todavia requer-se naqueles que so naturalmente tais algo para que estas virtudes naturais existam em ns segundo um modo mais perfeito, porque estes hbitos naturais mostram-se ser nocivos a no ser que esteja presente a discrio do intelecto.

Assim como no movimento corporal, se o corpo movido fortemente sem estar a vista a dirigi-lo, aquilo que movido fortemente lesado, assim tambm se algum possuir uma forte inclinao obra de alguma virtude moral e no usar discrio na obra daquela virtude moral, acontecer uma grave leso ou do prprio corpo, como naqueles que so inclinados abstinncia de alimentos sem discrio, ou nos bens exteriores, como naqueles que so inclinados liberalidade, e assim por diante nas demais virtudes.

Mas se o intelecto coexiste na operao de tais inclinaes, de maneira que o homem passe a operar com discrio, ento suas operaes muito diferiro segundo a excelncia da bondade, e o hbito que ser responsvel por tais operaes feitas com discrio ser prpria e perfeitamente virtude.

Ora, isto que so as virtudes morais, pois somente elas so prpria e perfeitamente virtudes.

Assim, portanto, como na parte operativa da alma h duas espcies de princpios operativos, que so a dintica e a prudncia, assim tambm na parte apetitiva da alma haver duas espcies de princpios operativos, que so a virtude natural e a virtude moral, e esta ltima, conforme acabamos de demonstrar, no pode existir sem a prudncia .

De onde que se conclui de tudo quanto foi dito que no possvel homem algum ser bom segundo a virtude moral sem a prudncia, nem tambm ser prudente sem a virtude moral .

h) Interdependncia entre as diversas virtudes.

Chegando a este ponto do Comentrio tica, considerando que nenhuma virtude moral pode se dar sem a prudncia nem a prudncia pode se dar sem a virtude moral, S. Toms, seguindo a Aristteles, pergunta se possvel ao homem possuir alguma virtude sem possuir tambm as demais.

De fato, pareceria, diz ele, que as virtudes morais possam ser separadas entre si, de tal maneira que uma virtude possa ser possuda sem a outra; pois vemos que um mesmo homem no inclinado a todas as virtudes, mas um liberalidade, outro temperana, e assim por diante.

Isto acontece porque fcil algum ser conduzido quilo ao qual naturalmente inclinado, porm difcil conseguir algo contra o impulso da natureza.

Se, portanto, algum homem est naturalmente disposto a uma virtude e no a outra, alcanar esta virtude qual est naturalmente disposto enquanto que no alcanar outra virtude qual no esteja naturalmente disposto.

Portanto, parece possvel possuir alguma virtude sem possuir as outras .

Porm, se analisarmos mais atentamente este argumento, diz Toms de Aquino, veremos que o que foi dito correto no que diz respeito s virtudes naturais, no porm no que diz respeito s virtudes morais.

De fato, nenhuma virtude moral pode ser possuda sem a prudncia, e assim, quando a prudncia, que uma s virtude, existe em algum, simultaneamente existiro com ela todas as demais virtudes morais, das quais nenhuma existiria se a prudncia no existisse.

Se houvesse diversas prudncias acerca das matrias das diversas virtudes morais, assim como h diversos gneros de coisas artificiais, no haveria impedimento para uma virtude moral existir sem que uma outra existisse, cada uma delas tendo a prudncia a si correspondente.

Mas isto no pode ser, porque os princpios da prudncia so os mesmos para toda a matria moral, e portanto, por causa da unidade da prudncia, todas as virtudes morais so conexas entre si .

Este argumento de S. Toms no Comentrio tica poder ficar mais claro se entendermos melhor a natureza da unidade da prudncia, que o que faz com que todas as virtudes morais sejam conexas entre si.

A unidade da prudncia mais facilmente compreendida se nos lembramos que a prudncia na realidade uma forma de conhecimento, assim como as cincias e as artes. Ela , de fato, enumerada entre as virtudes intelectuais, assim como as cincias, as artes e o intelecto. Mas ela mais semelhante s cincias e s artes do que ao intelecto, porque o intelecto diz respeito ao conhecimento imediato dos princpios indemonstrveis em que se baseiam os demais conhecimentos, enquanto que a prudncia, as cincias e as artes dizem respeito a certos conhecimentos que no so imediatos no homem, mas que se originam a partir do conhecimento de determinados princpios apreendidos como verdadeiros.

Assim, o objetivo da prudncia um determinado conhecimento, isto , o conhecimento do termo mdio das aes humanas operadas pelas virtudes morais, no porm naquelas aes que so os fins ltimos destas virtudes morais, mas naquelas que se ordenam a estes fins.

A prudncia difere da cincia por ser a cincia um conhecimento cuja finalidade o prprio conhecimento, enquanto que a prudncia um conhecimento cuja finalidade a ao, nisto se assemelhando arte, que um conhecimento cuja finalidade a obra de arte.

A principal diferena, porm, entre a prudncia enquanto conhecimento e as cincias e as artes enquanto conhecimento bastante outra, e consiste no seguinte: enquanto os princpios do conhecimento que a cincia e as artes so princpios que residem tambm na inteligncia, os princpios do conhecimento que a prudncia no esto na inteligncia, mas nas corretas inclinaes das virtudes morais.

A prudncia, assim, uma espcie de cincia prtica cujos primeiros princpios, diferena das demais cincias, no esto na esfera da inteligncia, mas na das virtudes morais, as quais se referem s paixes e operaes humanas.

Ora, ocorre que a experincia mostra existir uma manifesta conexo entre as paixes e operaes que se do na vida humana: de uma paixo se origina outra, e das paixes se originam operaes e vice versa, de tal modo que toda a matria das virtudes morais um conjunto de muitas partes mutuamente ordenadas.

Por esta razo as matrias das diversas virtudes morais no se ordenam entre si como diversas cincias cujas matrias so desconexas uma da outra, mas como os diversos princpios de uma mesma cincia.

Portanto, assim como um gemetra que errasse sobre um dos princpios da geometria no poderia pretender o conhecimento da cincia geomtrica, porque tal erro se estenderia a toda esta cincia, assim tambm no pode ser dito prudente, isto , algum que possui o conhecimento de fazer retas eleies em matria moral, aquele que errasse acerca de um s dos princpios em que se baseia tal conhecimento, pois o defeito da prudncia em uma parte da matria moral induziria ao erro em todas as suas demais partes .

Daqui se segue que, quanto correta inclinao do termo mdio, todas as virtudes crescem no homem simultaneamente em igualdade de proporo, assim como os dedos de uma mo, embora, materialmente falando, um homem possa ser mais disposto, pela natureza ou pelo costume, ao ato de uma determinada virtude do que de outra .

Se, pois, o homem se tornar prudente, possuir todas as demais virtudes simultaneamente; se no se tornar prudente, porm, poder possuir alguma inclinao especial pacincia ou temperana, mas estas no sero verdadeiras virtudes, por causa do defeito da eleio reta proveniente da prudncia, que ser corrompida pela falta das demais virtudes morais .

V.17) O intelecto dos primeiros princpios dos operveis.

Resta examinar agora o intelecto dos primeiros princpios dos operveis, que retifica a razo acerca dos fins ltimos das virtudes morais, que so os primeiros princpios das operaes do homem.

Assim como h um hbito denominado intelecto, pelo qual o homem conhece os princpios das demonstraes, cujo conhecimento no pode ser retirado do homem, o qual conhece por natureza estes princpios indemonstrveis, h tambm outro hbito segundo o qual o homem conhece os princpios dos operveis, ao qual chamamos igualmente de intelecto.

Uma primeira diferena que h entre o intelecto que acerca dos princpios das demonstraes e o que acerca dos princpios dos operveis est em que o primeiro acerca do universal, enquanto que o segundo acerca do singular e do contingente. Estes singulares podem ter razo de princpios porque a partir deles, no que opervel, que se alcana o universal; de fato, por causa desta erva ter restitudo a sade a este homem, aceitou-se que esta espcie de erva tem fora curativa .

A segunda diferena entre estes hbitos est em que embora ambos sejam hbitos naturais, o so de modos diferentes. O intelecto acerca dos princpios das demonstraes um hbito natural por s-lo totalmente pela natureza. J o intelecto dos princpios dos operveis, por ser colocado acerca dos singulares, e sendo os singulares conhecidos de modo prprio pelo sentido, necessita, de algum modo, das virtudes sensitivas; no somente dos sentidos exteriores, mas tambm daqueles sentidos interiores como a faculdade estimativa e cogitativa .

Chama-se faculdade estimativa a um sentido interno existente em todos os animais pelo qual, por exemplo, a ovelha foge do lobo no por causa da indecncia da cor ou da figura, mas pela percepo da inimizade natural; para esta percepo necessrio algum princpio sensitivo interno; mas enquanto os animais percebem estas intenes apenas por um instinto natural, o homem as percebe pelo sentidos internos tambm por modo de comparao entre diversas destas percepes, de maneira que aquilo que nos animais dito apenas faculdade estimativa, no homem dito cogitativa, tambm chamada de razo do particular, embora seja algo que pertena aos sentidos internos .

Ora, todas estas virtudes sensitivas operam pelos rgos corporais, de maneira que o hbito do intelecto dos primeiros princpios dos operveis um hbito natural no maneira do que acerca dos princpios das demonstraes, que totalmente pela natureza, mas pelo fato de que, por disposio natural do corpo, algumas pessoas so prontas a este hbito, de modo que por uma pequena experincia j se tornam perfeitos nele .

sinal que o intelecto dos princpios dos operveis esteja em alguns homens segundo a natureza o fato de estimarmos que so conseqncia da idade dos homens, segundo a qual a natureza corporal se transmuta. H, de fato, uma idade, que a idade senil, que por causa da quietao das transmutaes corporais e animais o homem possui intelecto dos princpios dos operveis como se a natureza fosse causa deles .

Assim se conclui que o intelecto que dos princpios dos operveis se adquire pela experincia, pela idade, e se aperfeioa pela prudncia. Conseqncia disto o ser necessrio ouvir as coisas que opinam e enunciam acerca dos agveis os homens experientes, os velhos e os prudentes. Embora estes homens no nos forneam demonstraes, todavia devem ser procurados no menos do que as prprias demonstraes, e at mesmo mais. Isto porque tais homens, pelo fato de possurem experincia de coisas vistas, isto , um reto julgamento acerca dos operveis, enxergam os princpios operveis os quais so mais certos do que as prprias concluses das demonstraes .

V.18) A amizade.

Uma das caractersticas mais notveis da cincia moral que S. Toms, seguindo aqui a Aristteles, prescreve dever ser ensinada aos que se preparam para a contemplao, est no fato de que ela no se esgota com a aquisio das virtudes. Ao contrrio, o Comentrio ao VIII e IX da tica afirma que mais ainda do que as virtudes, pertence cincia moral mostrar o que seja a verdadeira amizade entre os homens.

H vrias razes, diz o Comentrio tica, pelas quais a amizade pertence ao mbito da cincia moral que deve formar o aluno para a contemplao.

Primeiro, porque pertence cincia moral tratar das virtudes; ora, a amizade no uma virtude, mas a verdadeira amizade tem a virtude como sua causa .

Em segundo lugar, pertence cincia moral a considerao de todas as coisas que so necessrias vida humana, entre as quais maximamente necessria a amizade, pois ningum corretamente disposto pelas virtudes escolheria viver possuindo todos os demais bens exteriores sem os amigos .

Em terceiro lugar, a amizade concorre para o bem civil, ao qual se ordena a cincia moral, pois as cidades parecem se conservar pela amizade, e por isso mesmo que os bons legisladores preocupam-se em conservar a amizade entre as cidades mais at do que a justia, acerca da qual s vezes deixam de aplicar as penas para no dar origem a discrdias .Em quarto lugar, porque se algumas pessoas forem amigas, no necessitaro da justia, pois um amigo um outro si mesmo, e no h justia para consigo mesmo, j que pertence natureza da justia o ser a um outro; porm, se houver pessoas que sejam justas, ainda assim necessitaro da amizade .

Finalmente, a amizade deve ser objeto da cincia moral no apenas porque algo necessrio vida humana, mas tambm porque um bem em si mesmo .

Existem trs tipos de amizade, na medida em que existem trs tipos de bens: o bem honesto, o bem til e o bem deleitvel.

Chama-se bem honesto ao bem apetecido pelo apetite racional por causa deste bem em si mesmo; chama-se bem deleitvel ao bem apetecido pelo apetite sensvel por causa deste bem em si mesmo; chama-se bem til ao bem apetecido no por causa dele mesmo, mas por causa de um outro, honesto ou deleitvel, que no pode ser conseguido seno atravs do til.

Correspondendo a estes trs modos de bem, haver tambm trs modos de amizade, a amizade por causa do bem da virtude, a amizade por causa do bem deleitvel, e a amizade por causa do bem til .

Segundo estas trs espcies de amizade os amigos podem se querer bem mutuamente segundo o que amam; os que se amam por causa da virtude, querem para si mutuamente o bem da virtude; os que se amam por causa do til, querem para si mutuamente os bens teis; os que pela deleitao, os bens deleitveis .

As amizades til e deleitvel so amizades por circunstancialidade; naqueles que se amam mutuamente por causa da utilidade, um no ama o outro por causa dele mesmo, mas na medida em que do outro recebe para si algum bem; coisa semelhante ocorre naqueles que se amam por causa da deleitao, onde um ama o outro somente na medida em que a si deleitvel .

As amizades por causa do til e do deleitvel so