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1 Capital Linguístico e Relações de Poder no Campo de Estudos Organizacionais no Brasil Autoria: Lilian Alfaia Monteiro, Alketa Peci Resumo: Este trabalho busca analisar como o capital linguístico é utilizado para exercer poder e legitimar temas, áreas de interesse e posições no campo acadêmico de Estudos Organizacionais no Brasil. Nesse sentido, o artigo coaduna com propostas que visam refletir sobre o papel que a linguagem assume em contextos organizacionais, não somente como uma ferramenta de comunicação, mas sim como um mecanismo discursivo de poder. Para tanto, realizamos uma pesquisa empírica considerando artigos publicados nos principais congressos nacionais da área, comparando dois temas: Abordagem Institucional e Estudos Críticos. Os resultados apontam para diferenças no uso do capital linguístico nos campos pesquisados.

Capital Linguístico e Relações de Poder no Campo de ... · que possui, isto é, da convenção social que envolve este capital de autonomia e poder em um dado momento histórico

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Capital Linguístico e Relações de Poder no Campo de Estudos Organizacionais no Brasil

Autoria: Lilian Alfaia Monteiro, Alketa Peci

Resumo: Este trabalho busca analisar como o capital linguístico é utilizado para exercer poder e legitimar temas, áreas de interesse e posições no campo acadêmico de Estudos Organizacionais no Brasil. Nesse sentido, o artigo coaduna com propostas que visam refletir sobre o papel que a linguagem assume em contextos organizacionais, não somente como uma ferramenta de comunicação, mas sim como um mecanismo discursivo de poder. Para tanto, realizamos uma pesquisa empírica considerando artigos publicados nos principais congressos nacionais da área, comparando dois temas: Abordagem Institucional e Estudos Críticos. Os resultados apontam para diferenças no uso do capital linguístico nos campos pesquisados.

 

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Introdução

Uma das questões que se colocam sobre a linguagem são as condições de utilização adequada das diversas possibilidades de uso gramatical, permitindo a formulação de um discurso apropriado a cada momento ou situação. Outra importante questão versa sobre as condições sociais destas possibilidades de usos linguísticos, isto é, da produção e da circulação linguística. As relações de produção linguísticas de um discurso, responsáveis por suas principais características, dependem da estrutura do campo linguístico, que por sua vez é uma expressão da estrutura das relações de forças entre os grupos sociais (Bourdieu, 1983). Assim, a produção linguística, com todas as suas escolhas e possibilidades, reflete relações de forças de grupos sociais.

Partindo desta premissa, este trabalho pretende refletir sobre o uso da linguagem na construção e legitimação de um campo de conhecimento, bem como em suas relações de poder. Nesse sentido, o artigo tem como objetivo analisar como o capital linguístico (Bourdieu, 1991) é utilizado para exercer poder e legitimar temas, áreas de interesse e posições na área de Estudos Organizacionais da academia brasileira de Administração. Nesse sentido, este artigo coaduna com propostas que visam analisar o papel que a linguagem assume em contextos organizacionais, não somente como uma ferramenta de comunicação, mas sim como um mecanismo discursivo de poder, tomando, neste caso, o campo acadêmico de Estudos Organizacionais brasileiro.

Segundo Bourdieu (1998), há uma hierarquia no que se refere aos objetos de estudo e pesquisa nos domínios intelectuais. Essa hierarquia passa pela definição dominante, por meio de mecanismos ideológicos, do que são temas dignos e indignos de interesse, temas mais ou menos importantes e se organiza em duas dimensões: o grau de legitimidade e o grau de prestígio. A oposição entre objetos dominantes ou legitimados e objetos aspirantes à legitimação revela a polarização do campo que se dá entre instituições ou agentes que ocupam posições opostas relativas à distribuição do capital específico.

No campo de Estudos Organizacionais no Brasil há também uma divisão entre o que tem sido considerado legítimo e o que tem sido considerado como menos prestigioso. Temas e autores mais “críticos” e recentes têm sido mais dominantes e legitimados (ou pelo menos mais numerosos), ao passo que temas menos “críticos”, mais tradicionais e considerados mainstream ainda tentam recuperar sua legitimidade (pois tiveram maior legitimidade no passado, mas vêm perdendo força no campo).

Nessa tentativa de legitimação, o capital linguístico, associado a outros tipos de capital, ganha um papel importante no que se refere às relações de poder e ao processo de distribuição e disputa de capitais no campo, uma vez que se trata de um recurso valioso em uma área acadêmico-científica. Capital Linguístico, Campo e Habitus

Os conceitos de capital linguístico, cultural, social e econômico foram formulados por Bourdieu (1998) inicialmente para compreender o campo da educação, mas foram também aplicados para o estudo de outros campos, como, por exemplo, o campo artístico e cultural.

O capital cultural foi um conceito que surgiu para explicar as diferenças de rendimento escolar entre crianças de diferentes classes sociais, contrapondo-se às visões que fazem referência às aptidões “naturais“ dos alunos. Sua transmissão hereditária é corroborada no sistema de ensino, onde a estrutura social é reproduzida. O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado institucionalizado.

No estado incorporado o capital cultural está relacionado ao corpo e à sua incorporação. Esta incorporação é exigida durante a acumulação do capital cultural e

 

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pressupõe não só um trabalho de inculcação e assimilação, mas também demanda tempo e investimento pessoal (não pode ser delegado), sendo considerado por isso um trabalho sobre si mesmo (um cultivo de si). O capital cultural é assim uma característica, uma propriedade que se incorpora e se torna parte integrante de quem o assimila, tornando-se um habitus. Está, portanto, ligado à pessoa. Por demandar também de tempo para sua incorporação, o capital cultural se relaciona diretamente com o capital econômico, pois quanto maior a posição da família na estrutura social, mais cedo se inicia a transmissão e acumulação do capital cultural e mais tempo livre pode ser dedicado a este projeto.

No estado objetivado o capital cultural se objetiva em suportes materiais, tais como escritos e pinturas, e é transmitido pela materialidade, através da posse, garantida pelo capital econômico. Os bens culturais, por exemplo, podem ser apropriados materialmente, através de capital econômico, mas também simbolicamente, através do capital cultural. Todavia, o capital cultural só existe de forma material e simbólica quando é apropriado pelos agentes e usado como objeto em lutas que existem no interior do campo artístico e científico, além do campo das classes sociais, nos quais os agentes têm benefícios conforme seu domínio de capital objetivado e incorporado.

Já o estado institucionalizado do capital cultural toma a forma do valor convencional que possui, isto é, da convenção social que envolve este capital de autonomia e poder em um dado momento histórico. É uma espécie de magia social que tem o poder de instituir, de fazer ver, crer e reconhecer a importância de um dado capital cultural. O diploma, por exemplo, permite o reconhecimento institucional de um capital cultural específico.

O capital linguístico pode ser entendido como um subconjunto do capital cultural. Ele é adquirido primariamente através da família e é manifestado e medido através do estilo linguístico, que fica evidenciado pela habilidade para demonstrar competência no uso da linguagem acadêmica ou burguesa e na habilidade de decifrar e manipular as complexas estruturas linguísticas (Everett, 2002). Desse modo, sua transmissão segue o mesmo princípio da transmissão do capital cultural, dando-se através das gerações (Everett, 2002; Bourdieu, 1991).

A competência linguística medida por critérios acadêmicos depende, assim como outras dimensões do capital cultural, do nível de educação (medido em termos de qualificações obtidas) e da trajetória social. Uma vez que o domínio da linguagem legitimada se adquire através da familiarização ou através da inculcação de regras explícitas, as mais importantes classes de modos de expressão correspondem a classes de modos de aquisição, ou seja, a diferentes formas de combinação entre dois principais fatores de produção desta competência linguística legítima: a família e o sistema educacional. (Bourdieu, 1991).

Para Bourdieu (1991), as propriedades que caracterizam a competência linguística podem ser resumidas em duas palavras: distinção e correção. Palavras que se tornam popularizadas perdem seu poder discriminatório e, portanto, tendem a ser percebidas como intrinsicamente banais, comuns e fáceis, ou simplesmente como desgastadas. A palavra performada no campo literário produz a aparência de uma linguagem original pelo recurso a um conjunto de derivações cujo princípio comum é o desvio a uma linguagem mais frequente, isto é, comum, ordinária e vulgar. Assim, o valor de uma linguagem surge pelo desvio, deliberado ou não, em relação aos usos linguísticos mais difundidos, os “lugares-comuns”, as frases triviais, as expressões vulgares e o estilo fácil.

Mas além da distinção linguística, Bourdieu (1983) entende que a compreensão e o domínio da linguagem envolvem obrigatoriamente seu uso social, uma vez que se trata de uma práxis. A competência linguística torna-se, assim, uma competência prática, pois:

A competência prática é adquirida em situação, na prática: o que é adquirido é, inseparavelmente, o domínio prático da linguagem e o domínio prático das

 

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situações, que permitem produzir o discurso adequado numa situação determinada (Bourdieu, 1983: 3).

Para o autor, a questão que se coloca sobre a linguagem não é a possibilidade de

construir infinitas frases gramaticalmente coerentes, mas sim a de utilizar, de forma coerente e adaptada, infinitas frases em infinitas situações. O que importa, assim, são as condições de utilização adequada das possibilidades infinitas que a gramática oferece (Bourdieu, 1983).

Diferente da competência erudita, aprendida na escola, a competência prática da linguagem é adquirida nas situações práticas, que permitem a composição de um discurso adequado a cada momento, isto é, o domínio prático da linguagem e das situações mais apropriadas para a utilização dos diferentes discursos.

Outra questão sobre a linguagem são as condições sociais de possibilidade da produção e da circulação linguística. Em outras palavras, significa que as características mais importantes de um discurso se devem às relações de produção linguísticas nas quais ele é produzido. Essas relações dependem da estrutura do campo linguístico, que é uma expressão particular da estrutura das relações de forças entre os grupos sociais. Desse modo, as interações linguísticas estão condicionadas pelas relações de forças entre os grupos sociais e seus interlocutores. É esta estrutura de forças que relacionará a legitimidade da língua aos locutores com maior capital simbólico e não somente àqueles com maior capital linguístico (Bourdieu, 1983).

Assim, a estrutura da relação de produção linguística irá depender da relação de força entre os locutores e seus capitais e por isso, a língua não serve somente à comunicação e ao conhecimento, mas é também um instrumento de poder, dado que leva não somente à compreensão, mas também ao reconhecimento e ao respeito, por exemplo. Nesse sentido, a competência na produção linguística passa pela linguagem autorizada e legítima, que define quem tem direito à palavra e capacidade de se fazer escutar e também quem é digno de escutar. Assim, “os que falam consideram os que escutam dignos de escutar e os que escutam consideram os que falam dignos de falar” (Bourdieu, 1983: 6).

Para Bourdieu, a estrutura das relações de forças entre os grupos sociais acaba por determinar quem pode falar, para quem pode falar e como pode falar, considerando diversos esquemas de censura, tais como excluir certos indivíduos da comunicação, não falar a qualquer um e não ter qualquer um tomando a palavra. Desta maneira, “o discurso supõe um emissor legítimo dirigindo-se a um destinatário legítimo, reconhecido e reconhecedor” (Bourdieu, 1983: 6).

Já o capital social é definido por Bourdieu (1998) como o conjunto de recursos reais ou potenciais que advém da posse de uma rede durável de relações, institucionalizadas em maior ou menor grau, de interconhecimento e de intereconhecimento, isto é, de vinculação a um grupo que possui não só características em comum, mas também possuem ligações permanentes e úteis. O volume de capital social está associado à extensão da rede de relações que um agente pode mobilizar e do volume do capital econômico, cultural ou simbólico de cada um daqueles a quem este agente está ligado.

Mas a existência dessa rede não é um dado social que se constitui permanentemente por uma instituição. Ela é o produto de um trabalho de instauração e manutenção, necessário para produzir e reproduzir relações duráveis e que possam proporcionar lucros materiais e/ou simbólicos. Em outras palavras, essa rede é o resultado de estratégias de investimento social, consciente ou inconscientemente orientadas para instituir e manter relações sociais diretamente utilizáveis.

Outro conceito trabalhado por Bourdieu foi o de capital simbólico, que surge das outras formas de capital (cultural, social, linguístico, econômico), mas somente quando a arbitrariedade de sua posse e acumulação é desconhecida, isto é, na medida em que são

 

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considerados legítimos. Tal como acontece com a distribuição de capital econômico, a distribuição dos outros capitais também segue as desigualdades de classe, onde a classe dominante impõe às outras classes sociais seu capital econômico, cultural, social e linguístico, embora estas desigualdades sejam invisíveis.

O capital simbólico está fundado na forma de prestígio, renome, reputação, autoridade pessoal e confere certo poder de consagração. Impõe tanto a legitimidade de uma visão de mundo quanto a maneira pelas quais os campos sociais são organizados como hierarquias particulares de posições e capitais (Everett, 2002).

Dessa forma, tanto os capitais linguístico, cultural, social ou econômico tendem a funcionar como capital simbólico. Este também pode ser entendido como efeitos simbólicos do capital, já que o capital simbólico não constitui uma espécie particular de capital, mas justamente aquilo em que se transforma qualquer tipo de capital quando é ainda desconhecido como tal, ou seja, quando uma força, poder ou capacidade de exploração é ignorada e legitimada. O capital existe e age como capital simbólico na relação com um habitus propenso a percebê-lo como um signo de importância, ou seja, a conhecê-lo e a reconhecê-lo em função de estruturas cognitivas aptas e tendentes a lhe conceder o reconhecimento pelo fato de estarem em harmonia com o que ele é (Bourdieu, 2007).

Além das noções de capitais, outra contribuição de Bourdieu para este estudo se refere à noção de campo, que consiste em uma rede de relações sociais, de sistemas estruturados de posições sociais dentro dos quais lutas e manobras ocorrem sobre recursos, participações e acessos (Everett, 2002). O campo pode ser pensado como uma espécie de mercado ou jogo porque no seu interior, temos apostas e investimentos. Os campos são ocupados por dominantes e dominados, dois conjuntos de atores que tencionam usurpar, excluir e estabelecer monopólios sobre os mecanismos de reprodução do campo e seus tipos de poder efetivos. São sempre relacionais, dinâmicos, contingenciais e mutáveis, tendo que ser pensados de forma relacional e dialética.

A noção de campo também permite romper com referências vagas, tais como “contexto”, “meio”, “fundo social” (Bourdieu, 2004). Todo campo é um lugar de relações de forças que se impõem a todos os agentes que estão no campo e com mais peso sobre os novatos. Essas forças têm por princípio o capital simbólico, que é o alvo das lutas de concorrência no interior de um campo. Trata-se de um capital de reconhecimento ou consagração seja ela institucionalizada ou não, que os agentes e instituições acumularam por meio de lutas anteriores e por estratégias específicas, que em geral dependem da posição destes agentes nas relações de força, ou seja, de seu capital específico.

O campo pode ser considerado um universo intermediário, no qual estão inseridos agentes e instituições que o produzem, reproduzem e difundem suas obras. É um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais relativamente específicas. Assim, o campo é um espaço relativamente autônomo, ou seja, um microcosmo regido por leis próprias, que não são necessariamente as mesmas leis sociais do macrocosmo do qual faz parte. Para Bourdieu (2006), compreender a gênese social de um campo e captar a necessidade específica da crença que o sustenta, seus jogos de linguagem, de seus produtos materiais e simbólicos é explicar os atos dos produtores e de suas obras e não reduzi-los ou destruí-los. A análise histórica de um campo é, em si mesma, a única forma legítima da análise de sua essência.

Um campo é a padronização de forças objetivas que se impõem sobre todos (objetos e agentes) que dele participam. É um espaço de conflito e competição, visando o monopólio sobre os diferentes capitais e tipos de autoridade. A modificação de sua estrutura se dá pela alteração nas formas de poder (tipos de capital). Os limites de um campo podem se tornar objetos de disputa dentro do próprio campo. Há um movimento de diferenciação entre os participantes e seus “rivais”, a fim de reduzir a competição e de estabelecer certo monopólio

 

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sobre um subsetor específico dentro do campo. Assim, os limites do campo são determinados de modo empírico e de acordo com cada situação (Misoczky, 2003). A história do campo se faz através da luta entre seus competidores internos.

Os campos exigem um saber prático acerca de suas leis tácitas de funcionamento, ou seja, um habitus que é adquirido por uma socialização anterior ao campo ou por aquela que será praticada nele próprio. A técnica, prática comum em um campo, é para Bourdieu aquela que já passou a ser considerada como algo dado, sem espaço para ser questionada. É ela quem irá compor o capital cultural do campo e passa a ser entendida pelos integrantes do campo como natural e legítima. Quando este tipo de capital se perde o campo se abre a questionamentos e redefinições (Misoczky, 2003).

O habitus, ou as estruturas incorporadas, são esquemas de percepção, pensamento, prática e ação que são internalizados pelos agentes. Incorpora as estruturas de um campo e suas relações históricas e estrutura tanto a percepção quanto a ação no mundo (Misoczky, 2003). Uma das funções do habitus é de tornar único o estilo que vincula as práticas e os bens de um agente específico ou mesmo de um conjunto (classe) de agentes. Se configura, portanto, em um princípio unificador que traduz características essenciais e relacionais de uma posição em um conjunto único e particular de pessoas, bens e práticas. Por isso, além de diferenciados, os habitus também são diferenciadores, uma vez que operam distinções ao gerarem práticas distintas e distintivas (Bourdieu, 2011).

Estas diferenciações, quando percebidas por meio de categorias sociais de percepção ou de princípios de divisão, “tornam-se diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem” (Bourdieu, 2011: 22), funcionando em cada pequeno grupo ou sociedade como traços e signos distintivos. Estes se traduzem em práticas, gostos, opiniões e capitais característicos a um grupo ou a um campo.

Para Misoczy (2003), a noção de campo de Bourdieu apresenta uma ideia de mudança e dinamismo, pois um campo é um espaço constante de lutas que buscam transformá-lo: não há limites rígidos, mas sim flexíveis, abrindo potencialidades e disputas dentro do próprio campo. A mudança é uma condição inerente ao campo, pois os tipos de capital e as posições dos agentes são constantemente contestados. Todo campo deve ser entendido como um campo de forças e de lutas para manter ou para transformar esse mesmo campo de forças. Essas relações de forças implicam em leis imanentes e probabilidades objetivas, que orientam o “sentido do jogo”, mas elas próprias também estão em jogo (Bourdieu, 2004b).

O próprio campo da ciência é entendido por Bourdieu (1983) como um campo social como outro qualquer, que apresenta relações de forças, lutas, estratégias, interesses e ganhos. É um lugar, um espaço de jogo de uma luta concorrencial pelo monopólio da autoridade científica, entendida como a junção da capacidade técnica e do poder social, e da competência científica, isto é, a capacidade de falar e agir legitimamente, socialmente outorgada a um determinado agente do campo. Metodologia

O campo de estudo escolhido para esta pesquisa foi o campo acadêmico de Estudos Organizacionais brasileiro, analisado durante os dois principais congressos nacionais, o Encontro Nacional de Estudos Organizacionais (EnEO) e o Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), no ano de 2012. Cabe ressaltar que no EnANPAD, por se tratar de um congresso abrangente em Administração, foi pesquisada somente a divisão de Estudos Organizacionais.

Os agentes do campo de Estudos Organizacionais incluem professores e pesquisadores, que podem ocupar as posições de coordenadores de divisões, líderes de temas, coordenadores de mesas, debatedores e avaliadores dos artigos submetidos aos encontros

 

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(EnEO e EnANPAD), bem como alunos de pós-graduação (Mestrado e Doutorado) que apresentam seus trabalhos. Há também importantes agentes institucionais, tais como instituições e programas acadêmicos e instituições de avaliação e financiamento governamentais, entre outros, que não serão focados neste estudo.

Foram feitas observações e gravações das sessões apresentadas nos dois congressos, considerando os diferentes temas que compõem a divisão, tais como Abordagem Institucional; Processos Discursivos e Produção de Sentidos; Ontologia, Epistemologia, Teorias e Metodologias nos Estudos Organizacionais; Estudos Críticos e Práticas Transformadoras; História e Memória; Redes e Relacionamentos Intra e Interorganizacionais, dentre outros.

Especificamente para este estudo, consideramos dois temas para fins de comparação: Abordagem Institucional e Estudos Críticos. Foram analisados trabalhos correspondentes a duas sessões de cada tema, totalizando 15 artigos, abrangendo os dois encontros (EnEO e EnANPAD). Desse modo, nosso corpus de dados consistiu em 15 artigos, bem como observações e gravações de quatro sessões temáticas dos congressos em questão.

A análise dos dados foi feita inicialmente a partir da leitura do material coletado. Essa leitura se dividiu em dois momentos. Primeiro procedemos a uma leitura flutuante de todos os artigos para termos uma noção sobre o que algumas eventuais especificidades de cada tema. Depois partimos para uma leitura mais pormenorizada do material, a fim de permitir a etapa seguinte, isto é, a categorização. Em seguida, organizamos os artigos em algumas categorias, a fim de reunir e perceber com maior clareza dados como afiliação institucional dos autores, natureza da investigação, dados metodológicos, palavras ou expressões utilizadas que se destacavam, abordagens teóricas, autores de referência que foram mais utilizados e outras observações que julgamos pertinentes.

As palavras e expressões escolhidas foram selecionadas seja em função de sua diferenciação com outras palavras que sejam mais comumente utilizadas, seja por representarem palavras ou expressões comuns no tema em questão, isto é, que guardassem um sentido, interesse de pesquisa ou mesmo um posicionamento ideológico compartilhado por aqueles autores. Além disto, algumas palavras/ expressões foram escolhidas por se relacionarem com o próprio assunto do artigo, como uma espécie de palavra-chave em alguns casos. Cabe ressaltar que em dois dos artigos selecionados, não foram mapeadas palavras e expressões uma vez que um estava escrito em inglês e o outro em espanhol.

A categorização destes dados se mostrou necessária para procedermos ao passo seguinte que foi relacionar estas categorias com os conceitos teóricos centrais de Bourdieu que discutimos nesse trabalho, tais como capital linguístico, capital social, capital simbólico, campo e habitus.

Por se tratar de linguagens, padrões de fala, expressões e termos, o corpo de dados coletado foi analisado por meio da perspectiva metodológica da análise da retórica. As unidades de análise utilizadas foram expressões e palavras. A retórica é tradicionalmente uma disciplina baseada na linguagem, relacionada à lógica, composição, argumentação e estilo (O´Connor, 1996; Locke e Golden-Bilddle, 1996). A corrente específica de pesquisa mais relevante aqui é conhecida como análise retórica de textos científicos ou do método científico (Gusfield, 1976). A definição utilizada por Locke e Golden-Biddle (1996), que se fundamenta na tradição aristotélica de retórica como um argumento honesto destinado para uma audiência, se aplica ao nosso estudo, pois tão logo os cientistas componham ideias para apresentar a um público determinado, eles se envolvem na prática da retórica. As análises retóricas de ciência costumam ver os textos científicos como dados para examinar argumentos ou afirmações do texto, incluindo aquelas referentes às contribuições. A proposta desta análise é incorporar não somente o conteúdo das argumentações ou afirmações,

 

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mas também como elas dão suporte e rendem créditos ao texto, tendo como foco central a identificação de características textuais e práticas retóricas que ajudarão a suportar a validade dos argumentos (Locke e Golden-Bildden, 1996). Segundo as autoras, esta análise se funda em uma visão construtivista da ciência, já que a análise empírica desta prática traz duas implicações: a primeira é que a ideia de contribuição científica é um fenômeno construído e a segunda é que o significado da contribuição emerge não da apresentação dos “fatos” ou dados brutos, mas do desenvolvimento de argumentos para transmitir conhecimentos destinados para o público acadêmico. Ademais, os textos científicos buscam persuadir os leitores a verem um fenômeno de um modo particular, evocando as práticas retóricas para validar suas conclusões. Principais Resultados

No Brasil, embora já houvesse desde os anos 80 produções que se enquadravam na divisão acadêmica “Organizações” do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (EnANPAD), foi somente em 2005 que a divisão acadêmica “Estudos Organizacionais” se oficializou.

A divisão acadêmica “Organizações”, início do que hoje chamamos de Estudos Organizacionais, foi criada em 1985 no IX EnANPAD, juntamente com outras 8 áreas temáticas. Nesta década, a produção acadêmica da área aumentou quantitativamente, tendo predomínio do paradigma funcionalista e do enfoque prescritivo em seus trabalhos (Machado-da-Silva, Cunha e Amboni, 1990).

A partir de 1999, quando a área já apresentava considerável crescimento, foi dividida entre duas perspectivas: nível de análise macro (organizacional e interorganizacional) e nível de análise micro (indivíduo, indivíduo-organização, grupos). Isso se deveu à confusão que estava sendo criada entre as fronteiras do que era considerado Organizações e o que era Recursos Humanos (Fachin, 2006). Nos anos 90 é possível observar também mudanças em relação à produção da área. Até 1993, Bertero e Keinert (1994) argumentam que havia uma predominância de ideias norte-americanas e produção nacional de pouca originalidade. Já Vergara (2001), conclui que de 1994 a 1998 há ainda a predominância de ideias estrangeiras, porém, pode ser percebido um aumento significativo de referências brasileiras, numa tentativa de buscar maior independência intelectual. Todavia, Bertero, Caldas e Wood Jr (1999), a partir da análise da produção brasileira em Administração, ainda argumentavam que nossa produção não tinha originalidade, reproduzindo o que se estudava no exterior, e necessitava de um salto qualitativo, após ter atingido um crescimento quantitativo. Parece que a exceção fica para a área de Estudos Críticos, que, conforme argumentam de Paula e Klechen (2007), apresentam uma tradição autônoma na produção brasileira, tendo por base as obras de Guerreiro Ramos e Maurício Tragtenberg, além de autores franceses marxistas.

No ano de 2000 é realizado o I EnEO, encontro temático de Estudos Organizacionais, no qual há preponderância de trabalhos que adotam um nível de análise macro (organizacional). Em 2001, no EnANPAD, as diferenciações de níveis de análise macro e micro, se tornam, respectivamente, os temas Teoria das Organizações – TEO – e Comportamento Organizacional – COR (Fachin, 2006). De acordo com Monteiro, Veiga e Doornik (2005), entre 1999 a 2004, dos artigos publicados na divisão Organizações no EnANPAD, 40% eram teóricos e 60% eram empíricos (45% qualitativos, 10% quali-quanti e 5% quantitativos). No tema Teoria das Organizações os resultados foram semelhantes: 33% teóricos e 66% empíricos (63% qualitativos e 3% quantitativos).

Em 2005 a divisão Organizações passou a se chamar Estudos Organizacionais no XXIX EnANPAD e além dos temas Teoria das Organizações e Comportamento Organizacional, também abarcou o tema Gestão de Organizações e Desenvolvimento. Em

 

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2007 este tema foi substituído pelo tema Teoria Crítica em Estudos Organizacionais. Os dois primeiros permaneceram.

A partir de 2009 a divisão acadêmica de Estudos Organizacionais passa a ter no EnANPAD vários temas de interesse, bem próximo ao que temos nos dias de hoje, de modo a ampliar e ao mesmo tempo especificar a produção na área. Podemos visualizar melhor esta trajetória na linha do tempo mostrada na Fig. 1.

Fig 1 – Trajetória do Campo de Estudos Organizacionais no Brasil

Vários estudos têm sido realizados, a fim de analisar a produção do campo de Estudos Organizacionais. Rodrigues e Carrieri (2001) apontam que a revisão bibliográfica dos trabalhos apresentados nos anos 90 não era detalhada como nos periódicos internacionais, mas se serve apenas de autores mais tradicionais da área. Com isso, não há elaboração de teorias com base em várias pesquisas realizadas, incluindo trabalhos que apresentem argumentos opostos, mas sim a validação de um pensamento a partir de poucos autores que o defendem. Rodrigues e Carrieri (2001) também revelam que os trabalhos focalizavam os problemas práticos e tinham uma relação bem próxima ao mundo concreto.

A produção da área, entre 2005 e 2008 foi marcada pelo predomínio de coautoria, o que talvez possa ser justificado pela pressão por publicações. Os trabalhos permanecem em sua maioria como empíricos, com especial dominância da investigação qualitativa. É observado também o predomínio da Teoria Institucional (24,1%), seguida da Teoria da Estruturação (7,8%), Teoria das Representações Sociais (4,3%), Teoria Crítica (3,4%), Teoria da Agência (3,4%) e Teoria dos Custos de Transação (3,4%) (Mota et al, 2010).

O discurso mais comum sobre os paradigmas da área funda-se na dicotomia entre o qualitativo e o quantitativo. A estratégia de pesquisa mais utilizada apontou para o estudo de caso, tendo adquirido um uso diferenciado daquele para o qual foi criada e adaptada pelos pesquisadores (Balsini e Godoy, 2008). É apontada também uma hegemonia do idioma inglês no campo e, consequentemente, certa subalternização da língua portuguesa em nossa produção científica (Rosa e Alves, 2010).

 

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Outros trabalhos apontam para o papel do relacionamento entre as instituições e os autores no campo de Estudos Organizacionais. Por apresentar grande diversidade temática, os autores se agrupam em pequenos grupos coesos, parcialmente isolados dos demais e há uma tendência das instituições mais centrais conduzirem aquelas iniciantes no campo, o que resulta em um número cada vez maior de colaboradores na rede (Rossoni e Guarido Filho, 2009). A estrutura de relacionamento vai então condicionar a construção do conhecimento científico nesse campo. Como há grande homogeneidade nesses agrupamentos, a imersão em grupos sociais vai condicionar o que é legitimamente aceito como conhecimento científico, uma vez que faz com que haja significados compartilhados (Rossoni e Machado-da Silva, 2007; 2008). Pesquisadores mais experientes e centrais atuam como uma força de difusão e de legitimação do conhecimento construído no campo e de intermediação dos pesquisadores mais jovens e entrantes no campo (Rossoni, Guarido Filho e Machado-da-Silva, 2008).

As instituições mais centrais no campo são FGV, UFMG, UFRGS e UFBA. A Eaesp e a Ebape, ambas da FGV são as escolas que mais publicam na área, respectivamente, em 1º e 2º lugar. Em seguida temos a UFMG, a UFGRS e a UFBA, respectivamente, em 3º, 4º e 5º lugar. O ranking leva em consideração a produção científica entre 2002 e 2006, nos principais periódicos brasileiros (Wood Jr. e Chueke, 2008).

Nos tópicos seguintes, apresentamos os campos específicos que foram analisados em nossa pesquisa: Abordagem Institucional e Estudos Críticos.

Abordagem Institucional

Em relação à produção na área de Abordagem Institucional, entre 99 e 2011, podemos dizer, de acordo com Cintra, Munck e Vieira (2012), que esta é marcada pelo predomínio de instituições como Fundação Getulio Vargas (FGV/Eaesp), Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR); Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Positivo (UP/PR). Sobre os autores com mais de uma publicação no campo, Cintra, Munck e Vieira (2012) destacam Clóvis Luiz Machado-da-Silva, além de João Marcelo Crubellate e Luciano Rossoni. Há uma concentração de co-autoria na produção, reunindo dois autores, em geral, em uma relação de aluno e professor orientador. Para os autores, este dado reforça o argumento de que a orientação é um importante fator para as publicações no campo (Cintra, Munck e Vieira, 2012).

Sobre as obras utilizadas nas produções da área, das oito referências mais citadas, apenas uma é de autores nacionais. Além disto, 100% dos autores mais lidos e citados são referências internacionais, demonstrando a reprodução brasileira do que é produzido fora do país (Cintra, Munck e Vieira, 2012). Outro ponto importante a ser ressaltado é que a Revista de Administração Contemporânea (RAC) é o periódico no qual se concentra a produção sobre Teoria Institucional, representando 26,9% de toda a publicação do campo, seguida da Brazilian Administration Review (BAR) (Cintra, Munck e Vieira, 2012).

Os dados sobre o campo de Abordagem Institucional podem ser compreendidos à luz de alguns conceitos de Bourdieu. Um deles é o capital social. O professor Clóvis Luiz Machado-da-Silva, por exemplo, foi uma referência extremamente importante e influente no campo, sendo pioneiro no estudo desta abordagem no Brasil, tendo sido presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD), professor de instituições como FGV (Eaesp), Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade Positivo (UP) e editor das revistas RAC e BAR. Teve influência e papel central na constituição da rede de pesquisadores em Teoria Institucional no Brasil, até por coordenar grupos de pesquisa e orientar diversos alunos de programas de Mestrado e Doutorado. Nesse sentido, pôde mobilizar uma rede durável de relações de interconhecimento e de intereconhecimento, que guardavam interesses de pesquisa em comum e também ligações

 

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úteis ou lucros materiais, tais como publicações e citações. Isto pode ser melhor clarificado ao percebermos que este autor se destacou em obras de co-autoria e na constatação de que as revistas RAC e BAR, as quais ele era editor são as que apresentaram maior publicação do tema (Cintra, Munck e Vieira, 2012). Em outras palavras, esta rede permitiu que se consolidasse o campo da Abordagem Institucional ao instituir e manter relações sociais diretamente utilizáveis.

Nos artigos analisados para este estudo, esta rede continua com o predomínio do estado do Paraná, que se destaca na produção conforme Cintra, Munck e Vieira (2012), mesmo após o falecimento do professor Machado-da-Silva em 2010.

O corpo de dados sobre o tema Abordagem Institucional nos revela alguns pontos importantes sobre este campo. Conforme já elucidado por Cintra, Munck e Vieira (2012) há uma preponderância de autores estrangeiros, sobretudo de origem anglo-saxã. Um dos artigos inclusive utiliza largamente expressões em inglês ao longo de todo o texto. Isto coaduna com o argumento de Rosa e Alves (2010) sobre a hegemonia da língua inglesa nos estudos brasileiros e a subordinação de nossa língua e a dependência de nossa produção (Bertero e Keinert, 1994).

Como a estrutura da produção linguística, segundo Bourdieu (1983), passa pela estrutura das relações de força dos grupos sociais, podemos dizer que o capital linguístico desta área se legitima a partir do uso da língua e de obras estrangeiras. Se pautar em referências e autores anglo-saxões seria então a linguagem legitimada ou autorizada para ser reconhecido e respeitado no campo, ou pelo menos ter o trabalho aceito em congressos e outros meios de publicação. Assim, este capital linguístico, se transforma em um capital simbólico, uma vez que se torna valorizado no campo.

Podemos observar ainda no material coletado algumas práticas rotinizadas e incorporadas pelos agentes, ou seja, aquilo que Bourdieu denominou de habitus (Misoczky, 2003). Nesse sentido, destacamos, além da já apontada hegemonia das ideias/ referências/ conhecimentos estrangeiros que parece marcar o campo de Abordagem Institucional, a utilização de autores considerados clássicos na área, tais como Giddens, Berger e Luckmann e DiMaggio e Powell em todos os artigos, além de outros autores comumente referenciados, tais como Meyer e Rowan, Scott, e Tolber e Zucker. A utilização de trabalhos clássicos também pode ser visualizada no uso de expressões como “trabalho seminal”, “artigo seminal” e “trabalho que inaugura a perspectiva”. Há também a adoção da premissa da realidade como socialmente construída, preconizada pelo sociointeracionismo, e o interesse por temas que se mostram recorrentes, tais como isomorfismo, processo de institucionalização, processo de mudança e legitimidade, sempre estudados a partir das práticas gerenciais/ organizacionais nos casos dos artigos empíricos. Nesses estudos aplicados, também é possível observar uma prática comum: a escolha do estudo de caso como estratégia de pesquisa e da análise de conteúdo como método de tratamento dos dados. Estudos Críticos

Em trabalho sobre o campo de Estudos Críticos no Brasil durante 1980 a 2004, Paula e Klechen (2007) defendem a ideia de que este campo apresenta uma tradição autônoma em sua produção intelectual, fundamentadas principalmente e inicialmente nas obras de Guerreiro Ramos e Maurício Tragtenberg, além de autores críticos franceses e do movimento Critical Management Studies. Os autores afirmam ainda que este movimento entende o management como um fenômeno político, cultural e ideológico, tem por intenção dar voz aos variados grupos sociais e está voltado para a emancipação do sujeito.

Durante os anos 80, os autores apontam que os autores mais utilizados eram Marx, Guerreiro Ramos e Tragtenberg e a temática que mais se destacava era Poder e Ideologia. Já

 

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na década de 90, os autores mais citados são Guerreiro Ramos, Habermas e Pagès, respectivamente, e a temática que mais se destaca é Autogestão e Autonomia, seguida de Poder e Ideologia. Entre 2000 e 2004, lideram as citações os autores Burrel, Alvesson e Guerreiro Ramos, nessa ordem. Outros atores do movimento Critical Management Studies e autores críticos franceses começam a ser citados. A temática principal volta a ser Poder e Ideologia, seguida de Teoria Organizacional (Paula e Klechen, 2007).

Paula e Klechen (2007) mapearam que os periódicos que mais publicaram trabalhos em Estudos Críticos foram Organização & Sociedade (O&S), Revista de Administração de Empresas (RAE) e Revista de Administração Pública (RAP). Além disto, os congressos ENEO e ENANPAD apresentaram durante o período pesquisado cada vez mais trabalhos deste tema. Em relação às instituições, predominam a FGV/Eaesp, FGV/Ebape, UFMG, UFBA, UFRGS e UFPR. Os autores chamam atenção para o fato de que as duas primeiras foram, respectivamente, as instituições de origem de Maurício Tragtenberg e Alberto Guerreiro Ramos.

Por fim, os autores identificaram alguns temas que vêm sendo estudados no campo de Estudos Críticos, sugerindo continuidade dos mesmos, a saber: poder e ideologia; novas tecnologias e condições de trabalho; teoria organizacional e crítica do management que busquem criar teorias nacionais; autonomia e autogestão; ensino e pesquisa em administração que se inspirem na busca da autonomia da produção nacional; sofrimento físico e psíquico e a administração da subjetividade; gênero, exclusão social e cidadania (Paula e Klechem, 2007). Na pesquisa realizada, podemos perceber pontos de aderência com o estudo de Paula e Klechem (2007). De acordo com o corpo de dados coletado, é possível identificar nos trabalhos a natureza política, cultural e ideológica do management, a preocupação em dar voz aos grupos sociais (como nas expressões “vozes” e “autonomia às vozes dos excluídos” e “articular vozes diferentes”) e o compromisso com um projeto emancipatório.

A partir do corpus de dados sobre o tema Estudos Críticos, é possível perceber que o capital linguístico desta área é legitimado por meio de uma linguagem mais crítica, de cunho mais combativo, que busca revelar contradições, subordinações e dominações sociais, como podemos ver em expressões como: “lutas hegemônicas”; “estrutura que aprisiona”, “falsa emancipação”, “sociedade doente e injusta”, “refinar mecanismos de controle”, “manipulação dos sentidos”, “coerção e subserviência”, “mascara as reais intenções da gerência”, “formas de opressão”, “relações estruturais de poder e dominação”, “reforço da ideologia inculcada”, "encantamento" (do trabalhador); “formas de resistência”, “contradição entre capital-trabalho”, “esfera de luta”, “liberdade versus dominação”, “submissão estrutural”, “interesse do capital”, “resistência passiva”, “confronto silencioso entre as classes”; "crítica ao sistema", “novas formas de poder político, econômico e social do capital”, “práticas emancipatórias na sociedade”, “forte crítica ao modelo neoliberal”, “[re]surgimento do engajamento político”, “antagonismos sociais”, “movimento contínuo de disputa por poder”, “autonomia às vozes dos excluídos”; “lutas por poder”, “luta entre os atores”; “arena”, “batalha”, “campos de poder”, “fóruns como ‘campos horizontais provocadores’", “articular vozes diferentes”, “instrumento de dominação”, “mudança social”; “lógica subordinada”, “relação de subordinação”, “égide do capital”, “economias periféricas”, “exploração do trabalho”, “perversa articulação”, “interesses do capital nacional e internacional”; “modelo hegemônico”, “avanço do capital”, “hegemonia neoliberal”, “coerção econômica”, “subordinação intelectual”.

Além da linguagem mais crítica que caracteriza o campo de Estudos Críticos, também podemos notar práticas de erudição ou intelectualismo como formas de capital linguístico nesta área. Assim, temos expressões e construções frasais que se tornam mais distintas que outras, visando talvez diferenciar-se de uma linguagem considerada mais comum. Como exemplo temos as expressões “miríade de formas”, “órbita sóciohistórica”, “caminhos do

 

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repertório metodológico”, “idas e vindas interpretativas com apoio dialógico do auditor da investigação”, “excerto”, “mormente”; “conteúdo perlocucionário”; “hodiernamente”, “ideado”, “axiologicamente”. Outro ponto no qual podemos notar uma prática intelectualizada no campo de Estudos Críticos se refere às abordagens teóricas e referências utilizadas, baseadas em perspectivas consideradas mais densas tais como Teoria Crítica, Materialismo histórico-dialético/ Marxismo e Teoria da Ação de Bourdieu, além da Análise de Discurso de autores como Laclau, Foucault e Fairclough.

Sobre as práticas incorporadas, ou habitus, do campo de Estudos Críticos, através da pesquisa foi possível notar, além das práticas de erudição e posições mais intelectualizadas, alguns temas de interesses de pesquisa característicos a este campo, que em geral se debruçam sobre relações de poder, crítica a algum tipo de hegemonia, discurso e subjetividade. As análises metodológicas destes estudos também se pautam na análise do discurso, até por conta dos temas escolhidos. Outras práticas rotinizadas do campo são as críticas às perspectivas dominantes ou funcionalistas e busca por outras abordagens que não estas e que possam se aproximar da realidade local, como podemos identificar nas expressões “ruptura com a tendência dominante e adoção de perspectivas teóricas ‘alternativas’", “outro prisma conceitual”; “crítica à racionalidade instrumental”; “alternativas epistemológicas, teóricas e metodológicas”, “além da ortodoxia funcionalista”, “exercício da crítica”, “crítica ao Positivismo”, “comportamento crítico atrelado ao conhecimento produzido e à realidade social no qual está inscrito”, “contexto eurocêntrico”; “conhecimento produzido atento às funções políticas, econômicas e ideológicas de sua produção e ao caráter situacional/ local de sua construção”; “lógica dominante”, “conhecimento localmente produzido”, “necessidades do contexto social”; “ir além da crítica”.

Por fim, outro habitus do campo de Estudos Críticos se refere à premissa de que é necessário uma abordagem multidisciplinar para se investigar um fenômeno tido como complexo. Assim, temos nos artigos pesquisados termos como “diferenças paradigmáticas”, “falta de consenso”, “conhecimento multiparadigmático”, “caráter interdisciplinar”; “caminho interdisciplinar”, “complexa compreensão do mundo”, “complexidade do fenômeno investigado”. Considerações Finais

A partir das observações e do material coletado podemos compreender o uso do capital linguístico como uma forma de legitimar determinadas áreas de conhecimento e temas, diferindo de acordo com os campos pesquisados, Abordagem Institucional e Estudos Críticos. O capital linguístico do campo de Abordagem Institucional se constitui principalmente pela hegemonia anglo-saxã, seja nas ideias, temas de pesquisa e autores de referência a até mesmo expressões na língua inglesa, revelando a força da linguagem internacional como a linguagem autorizada e reconhecida neste campo. O capital social também provou ser um recurso importante na luta por espaço dentro do campo, formando redes de relações úteis e duráveis, resultando em benefícios, tais como publicações e citações, para os agentes que fazem parte dela. Sobre o habitus do campo se destacam a utilização de autores e trabalhos clássicos da área, amplamente citados nos artigos pesquisados, a adoção da premissa da realidade como socialmente construída, o interesse por temas recorrentes, tais como isomorfismo, processo de institucionalização, processo de mudança e legitimidade e a escolha do estudo de caso como estratégia de pesquisa e da análise de conteúdo como método de tratamento dos dados.

Já no campo de Estudos Críticos o capital linguístico se ressalta pela linguagem crítica e aguerrida, demonstrando com clareza posturas ideológicas e teóricas e assumindo um posicionamento contra-hegemônico, seja em relação ao papel das organizações, seja em

 

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relação ao sistema capitalista, seja ainda em relação a abordagens teóricas dominantes e funcionalistas.

Outra importante característica do campo revelada pela pesquisa é a tentativa de distinção do conhecimento estabelecido na Administração – considerado como instrumental – por meio do uso de teorias/ autores considerados mais densos e complexos, oriundos de outras áreas de conhecimento. Essa distinção ocorre graças à propensão de um grupo de acadêmicos do campo a uma postura de intelectualismo e erudição que contribuem para a escolha das abordagens utilizadas, geralmente consideradas como mais reflexivas e complexas se comparadas com as de outras áreas, diferenciando-se assim dos acadêmicos das demais áreas, comumente percebidas por esses como acríticas e não reflexivas. Ainda sobre a distinção, foi possível identificar também por parte de certos autores o uso de termos ou expressões mais eruditas e refinadas como tentativa de se diferenciar no campo.

Em relação ao habitus dos agentes deste campo, além de práticas mais eruditas, encontramos também escolhas temáticas bastante características, como relações de poder, crítica à hegemonia, subjetividade e discursos, além de escolhas metodológicas baseadas na análise do discurso. Outro ponto sobre as práticas incorporadas do campo de Estudos Críticos é sua crítica a perspectivas teóricas dominantes e a preocupação em desenvolver ou estimular um conhecimento que seja localmente produzido ou ao menos adequado ao contexto social local. Por fim, há no campo, de acordo com o estudo, uma premissa de que é necessária uma abordagem inter ou multidisciplinar para que seja possível estudar uma realidade considerada complexa, como a estudada por este campo.

O trabalho permitiu entender que o capital linguístico, além do habitus, está relacionado às relações de diferenciação entre os acadêmicos do campo, relações estas que consideramos como relações que visam conferir destaque àqueles que buscam garantir e/ou consolidar uma espécie de status dentro dessa comunidade acadêmica. A partir de uma linguagem específica é que os acadêmicos afirmam suas áreas e temas de interesse, bem como se diferenciam de outros, ao impor um distanciamento pelo conhecimento teórico e linguístico.

As relações de diferenciação são determinadas por relações de poder e de disputa, uma vez que se trata de um campo competitivo e conflituoso, no qual há um jogo de forças para se demarcar espaços e domínios, visando legitimar uma autoridade sobre determinadas áreas do campo. Essas relações de poder podem ser traduzidas em práticas cotidianas no campo, a fim de demarcar um espaço, o domínio de uma parte específica do campo, na tentativa de manter uma autoridade e/ou um reconhecimento.

O uso do capital linguístico, recorrente nos agentes do campo, é também uma maneira de estabelecer relações de poder, dado que diferencia e distingue certos membros dos demais, de modo a caracterizá-los e torná-los com uma identidade própria, com códigos próprios que se apresentam como limitadores à entrada de outros membros em determinados temas e áreas de interesse. Esta delimitação serve à manutenção do próprio grupo dominante, dentro do jogo de forças e competição do campo. Este jogo dentro do campo pode ser entendido como uma determinada estrutura implícita que define as posições dos agentes e a distribuição do capital. Os agentes, suas posições e seus capitais podem ser transformados uma vez que o campo é dinâmico, no entanto, a estrutura do jogo de forças permanece. No campo dos estudos organizacionais, vemos que as forças e a competição ocorrem na tentativa de dar destaque a um conhecimento que se pretende superior aos outros, seja baseando-se em um conhecimento que vem de fora, seja devendo ser crítico para o que vem de fora, ou ainda baseando-se em perspectivas mais aclamadas de outras disciplinas.

Consideramos aqui o campo de Estudos Organizacionais como um espaço com desigual distribuição de formas de poder entre seus membros, que disputam entre si diferentes tipos de capitais e tipos de autoridade. As formas de poder ou os tipos de capitais, destacando-

 

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se aí o capital linguístico, podem ser identificados nas diferentes posições que os membros podem ocupar no campo. Essa distribuição desigual de formas de poder é incorporada pelos membros do campo, sendo traduzidas em diferentes linguagens entre os agentes que já se estabeleceram em um tema de conhecimento e aqueles que ainda estão buscando se estabelecer nessas áreas, funcionando como uma diferenciação por meio de um poder e de um capital simbólico. É este capital simbólico, composto neste caso em grande medida pelo capital linguístico, que para Bourdieu (2004) ocupa um lugar especial na relação de forças, estratégias e interesses dentro do campo, sendo instrumento e alvo das lutas de concorrência em seu interior, com a finalidade de estabelecer e dominar temas de interesse, áreas de conhecimento e posições no campo de Estudos Organizacionais brasileiro.

Como em nosso estudo demos atenção especial ao capital usado pelos agentes que estão em uma posição mais privilegiada no campo, sugerimos para futuras pesquisas, análises também sobre a perspectiva de agentes em ascensão no campo, a fim de elucidar como eles usam seus diferentes tipos de capital e como participam do jogo de forças no campo, visando reforçar e enriquecer os achados de suas pesquisas. Referências Balsini, C., Godoi, C. (2008). Estratégias de Pesquisa em Estudos Organizacionais: Vinculações Paradigmáticas a partir de Questões Práticas. Anais do XXXII EnANPAD. Bertero, C., Caldas, M., Wood Jr., T. (1999). Produção Científica em Administração de Empresas: provocações, insinuações e contribuições para um debate local. Revista de Administração Contemporânea 3(1): 147-178. Bertero, C., Keinert, T. (1994). A evolução da Análise Organizacional no Brasil. Revista de Administração de Empresas. 34(3): 81-90. Bourdieu, P. (1983). A economia das trocas linguísticas. In: Ortiz, R. (org.) Bourdieu – Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática. _________ (1991). Language and Simbolic Power. Cambridge: Polit Press. _________ (1998). Escritos de Educação. 6. ed. Petrópolis: Vozes. _________ (2004a). Os Usos Sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP. _________ (2004b). Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense. _________ (2007). Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. _________ (2011). Razões Práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus. Cintra, R., Munck, L., Vieira, S. (2012). A Produção Intelectual em Teoria Institucional. Anais do XXXVI EnANPAD. Paula A. P., Klechen, C. (2007). A Tradição Autônoma dos Estudos Críticos em Administração no Brasil: Um Estudo da Produção Científica de 1980 a 2004. Anais do XXXI EnANPAD. Everett, J. (2002). Organizational Research and the Praxeology of Pierre Bourdieu. Organizational Research Methods, 5(56): 56-80. Fachin, R. (2006). Construindo uma Associação Científica: 30 anos da ANPAD. Porto Alegre, ANPAD. Gusfield, J. (1976). The Literary Rethorica of Science: comedy and pathos in drinking driver research. American Sociological Review. 41, p. 16-34. Locke, K.; Golden-Biddle, K. (1997). Constructing Opportunities for Contribution: structuring intertextual coherence and “problematizing” in Organizational Studies. Academy of Management Journal. 10 (5), p. 1023-1062. Machado-da-Silva, C., Cunha, V., Amboni, N. (1990). O Estado da Arte da Produção Acadêmica no Brasil. Anais do XIV EnANPAD.

 

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