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  1. D ávamos uma festa. A mesma festa, todo ano, quando  eu era criança. Era um assado de cordeiro de primavera: numa fogueira a céu aberto assávamos quatro ou cinco cari- nhas de cerca de vinte quilos cada um, e convidávamos mais de cem pessoas. Nossa casa cava numa área rural da P ensilvânia, e não era bem uma casa, e sim um castelo selvagem construído sobre as ruínas carbonizadas de uma fábrica de seda do século XIX. Nosso quintal não era um jardim comum, e sim um prado sinuoso, cortado por um riacho habitado por gansos selvagens, com uma tirolesa, que corria do alto de um car valho e te lançava aos gritos sobre a água rasa. Nossa cidadezinha fazia fronteira com o estado de Nova Jersey, tão próxima que podíamos sair e voltar para o estado várias vezes por dia, e de fato o fazíamos, atravessando o rio Delaware. Nas manhãs de m de semana, tomávamos café da manhã no Smutzie’s, em Lambertville, do lado de Jersey, e depois enchíamos o tanque do carro no Sam  Wil liam’s Mobil, em New Hope. Nas tardes depois da escola, na Pensilvânia, eu andava até Jersey e tinha aulas de violão na loja de instr umentos de Les Parson.  Aquela parte do mundo, cheia de turistas, era o local de muitos eventos importantes relativos à Guerra da Independência Ame- ricana. George Washington atravessara o Delaware ali, rumo à vitória na batalha de T renton, arrastando-se pela oresta ne- vada e surpreendendo os ingleses apesar de alguns de seus sol-

Capítulo 1 - Sangue, Ossos & Manteiga

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Gabrielle é proprietária do badalado restaurante Prune, no East Village, em Nova York. Na prática um lugarzinho independente de trinta lugares, cujas reservas são disputadíssimas, consegue faturar anualmente dois milhões de dólares; seus textos, celebrados e publicados no The New York Times e nas revistas GQ e Bon Appetit, seduzem leigos e especialistas.

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 1.

D ávamos uma esta. A mesma esta, todo ano, quando eu

era  criança. Era um assado de cordeiro de primavera:numa ogueira a céu aberto assávamos quatro ou cinco cari-nhas de cerca de vinte quilos cada um, e convidávamos mais decem pessoas. Nossa casa cava numa área rural da Pensilvânia,e não era bem uma casa, e sim um castelo selvagem construídosobre as ruínas carbonizadas de uma ábrica de seda do séculoXIX. Nosso quintal não era um jardim comum, e sim um prado

sinuoso, cortado por um riacho habitado por gansos selvagens,com uma tirolesa, que corria do alto de um carvalho e te lançavaaos gritos sobre a água rasa. Nossa cidadezinha azia ronteiracom o estado de Nova Jersey, tão próxima que podíamos saire voltar para o estado várias vezes por dia, e de ato o azíamos,atravessando o rio Delaware. Nas manhãs de m de semana,tomávamos caé da manhã no Smutzie’s, em Lambertville, dolado de Jersey, e depois enchíamos o tanque do carro no Sam William’s Mobil, em New Hope. Nas tardes depois da escola,na Pensilvânia, eu andava até Jersey e tinha aulas de violão naloja de instrumentos de Les Parson.

 Aquela parte do mundo, cheia de turistas, era o local de muitoseventos importantes relativos à Guerra da Independência Ame-ricana. George Washington atravessara o Delaware ali, rumoà vitória na batalha de Trenton, arrastando-se pela foresta ne-vada e surpreendendo os ingleses apesar de alguns de seus sol-

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dados andarem descalços, os pés cobertos com jornal e juta.Mas agora minha cidade natal virou basicamente uma expan-

são urbana de áreas planejadas e loteamentos, condomínios e-chados de pequenas mansões que se parecem um pouco comcenários de lmes, a serem desmontados no m das lmagens.Cada área tem um nome “campestre” – Vale dos Esquilos,Cume do Pinheiro, Passagem das Águias, Caminho dos Alces –que, de orma pouco gentil, invoca e relembra exatamente o queoi destruído com a sua construção. Agora há um McDonald’s e

um Kmart, mas, quando eu estava crescendo, era preciso andarcerca de um quilômetro e meio de bicicleta por uma estradarural bem escura e repleta de insetos noturnos que picavamseu rosto só para chegar a um distribuidor automático de Coca-Cola, onde se podia comprar rerigerante por 35 centavos. Dolado de ora da Cal’s Collision Repair, no meio da noite, aqueledistribuidor brilhava como um objeto quase religioso. Agora

você pode comprar uma Coca vinte e quatro horas por dia, emmeia dúzia de lugares dierentes.

Mas, quando eu era jovem, no lugar onde vivia, havia azen-das, campos ondulantes, riachos cujas águas aceleravam quandochovia, forestas densas e celeiros centenários. Era um cenáriolindo e exuberante, embora bruto, para a esta que meus paisdavam no quintal, com vinho de garraão, cordeiros assados

no espeto e Fris bees que brilhavam no escuro. O riacho quecortava o prado serpenteava e, em sua curva mais echada, sealinhava com salgueiros-chorões, que cresciam enquanto cres-cíamos, e curvavam seus longos e chorosos galhos sobre a água.Juntávamos um monte de galhos para azer uma espécie decipó de Tarzan no qual balançávamos sobre o riacho, vestidosde roupa de banho e tênis sem cadarços, aterrissando na água.Era ali que gelávamos todos os vinhos, cervejas e rerigerantespara a esta.

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Minha amília tinha cinco crianças, e eu sou a mais nova. Andávamos em matilha – para a escola, para casa de volta da

escola, e, depois do jantar, ao pôr do sol – eito cachorros selva-gens. Se as crianças dos Mellman pudessem sair e os meninosdos Bentley, dos Drever e dos Shank, do outro lado da rua, tam-bém, nossa matilha contava com quinze membros. Passávamostodo o tempo em que estávamos do lado de ora em roupas desujar, roupas de andar na neve ou descalços, dependendo do cli-ma. Mesmo na “natureza” – correndo pelas benignas forestas,

cercas vivas e riachos, mergulhando e emergindo de grama altae arbustos, brincando de um jogo noturno que envolvia desviar-se dos aróis de um carro que ocasionalmente se aproximasse,atirando pedras vermelhas no riacho da ponte estreita perto danossa garagem para vê-las se espatiando –, encontrávamos pas-satempos brutos e não inocentes. Invadíamos terrenos, apos-távamos corrida, umávamos, roubávamos e vandalizávamos.

  Acabávamos cando com vermes, ossos quebrados, tétano,concussões, pontos e assaduras.

Meus pais me pareciam incrivelmente especiais e absurda-mente lindos. Seria impossível para mim me gabar mais delesou dizer meu nome, o primeiro e o último juntos, com maisorgulho, para mostrar como me ligava diretamente a eles. Ado-rava que nossa mãe osse rancesa e que tivesse me passado

aquele patrimônio pelo nome. Adorava contar às pessoas queela ora uma bailarina do Metropolitan de Nova York quandose casou com meu pai. Adorava poder soletrar seu longo nomerancês, M-A-D-E-L-E-I-N-E, que tinha exatamente o mesmonúmero de letras que o meu. Minha mãe usava o sexy delinea-dor preto da época, como Audrey Hepburn e Sophia Loren, eme lembro do cheiro de enxore toda manhã quando ela acen-

dia um ósoro para esquentar a ponta de seu lápis preto. Toda

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manhã, ela prendia o cabelo num nó simples e rme, e passavao dia usando uma bela saia, sapatos de salto alto e avental –

nunca a vi sem ele em quarenta anos. Vivia na nossa cozinha,mandava na casa com uma colher de pau oleosa na mão e nosobrigava a comer azeitonas pretas, salgadas e enrugadas, pe-quenas aves que gostaríamos de ter como bichos de estimaçãoe queijos que pareciam inectados com a bactéria da doença dolegionário.

Sua cozinha, há mais de trinta anos e muito antes de ser

comum, tinha uma pia dupla de aço inox de restaurante e umogão de seis bocas. Seus potes e panelas de cor laranja, de pri-meira linha, queimados, arranhados e enegrecidos pelo uso,constantemente ocupavam as três bocas de trás, cozinhandocoisas com rabos, garras e ossos cheios de medula – o que querque coubesse no orçamento esporádico e temperamental denosso pai artista –, que ela ensopava, reogava e ervia para ali-

mentar nossa amília de sete pessoas. A mesa da cozinha era umgrande bloco redondo de madeira onde tanto comíamos quantopreparávamos reeições ocasionais.

Minha mãe sabia como extrair tudo o que era comestível dacanela ou do pescoço de um animal, como usar uma aca, comocurar uma panela de erro undido. Ela nos ensinou a articularo “s” em salade niçoise e na sopa vichyssoise, para que não alás-

semos eito outros americanos que não sabiam que, em rancês,a vogal “e” depois da consoante “s” signica que você pronun-cia o “s”.

No entanto, eu me lembro do assado de cordeiro como aesta do meu pai. Lembro que no undo era o show dele. Como diploma de belas-artes da Escola de Design de Rhode Islandna parede de seu escritório, dois cartões de sindicatos – de con-

trarregras e de cenógraos – na carteira, cinco crianças robustas,

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uma esposa rancesa e a otograa arrancada de uma revistamostrando dois iugoslavos assando um cordeiro num buraco,

ele criou uma esta lendária, um banquete do qual quase du-zentas pessoas participavam todo ano, vindas de tão longequanto os casarões de Nova York e de tão perto quanto nossaescola primária local.

Meu pai não sabia cozinhar nada. Na época, ele trabalhavacomo cenógrao para peças de teatro e exposições comerciais,e tinha um estúdio de “design e construção” em Lambertville,

a cidadezinha onde havia crescido, a cidadezinha onde seu paitinha sido o médico da região. Nós, crianças, estávamos sempretopando com pessoas que diziam: “Seu avô ez o parto dos meustrês lhos!”, ou “Seu avô dirigia um Cadillac! Um dos poucoscarros que havia em Lambertville na época!”

Depois de crescer numa cidadezinha rural, meu pai, o lhomais novo, oi para a aculdade e mais tarde para uma escola de

belas-artes. Voltou com um bigode, um Mustang verde, um ter-no cinza-escuro e se instalou lá, em sua cidade natal. Em 1964,comprou o velho rinque de patinação no beco sem saída daSouth Union Street, com seu enorme teto abaulado e colossalpiso de madeira. Naquele ediício, inaugurou seu estúdio, umespaço de trabalho aberto onde cenários grandes como a proade um navio podiam ser construídos, montados, pintados e en-

tão desmontados e enviados à cidade para serem entregues noteatro. Todo ano, quando era contratado para construir os cená-rios para os circos dos Ringling Brothers e de Barnum e Bailey,íamos lá depois da escola e corríamos ao redor dos carrinhosde mão, esbarrando nas pernas de carpinteiros sindicalizados,que umavam um cigar ro atrás do outro, e cenógraos ocupa-dos com suas serras de ta, telas e tinta. Subíamos e descíamos

por montanhas de veludo preto e azul enrolado, expostos como

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numa loja de carpetes, e mergulhávamos as mãos em barrischeios de purpurina. Abrir a tampa de um barril de duzentos

litros de purpurina prateada – o tipo de barril que exigia doishomens e um carrinho de mão para ser rolado até o estoque detintas – e depois enar lá dentro as mãos até os cotovelos é umaexperiência que rma para o resto da vida em seu coração aideia de que seu pai é o maior espetáculo da Terra.

Fazíamos nossas antasias de Halloween com gelatina parailuminação, cortina de veludo preto, tecidos translúcidos e lme

de poliéster. Quando omos com nosso pai ver o circo de verdadeno Madison Square Garden, passamos quase o show inteironos bastidores, onde conhecemos Mishu, o Menor Homem doMundo, e acariciamos as longas trombas aveludadas dos elean-tes com máscaras cravadas de joias. Conhecemos Gunther, o do-mador de leões, e nos maravilhamos com seu cabelo louríssimo,sua pele bronzeadíssima e, dando risinhos eito as crianças que

éramos, sua sensacional bunda – alta, redonda e rme, eito doisnacos de presunto – em calças justas azul-elétrico.

 Associo meu pai quase exclusivamente àquele assado decordeiro porque ele podia sonhá-lo e criar seu cenário. Meu paitem olho para esse tipo de coisa. Ele pode olhar para a ruínade pedras coberta de andaimes que é a Acrópole, por exemplo,e sem esorço completar a imagem inteirinha, incluindo o que

as pessoas estão vestindo, azendo e dizendo. Em sua mente,a partir dos restos de uma coluna dórica, ele pode visualizaruma cidade inteira, seus habitantes e odores, a ordem do diana assembleia e os vasos com arbustos. Onde todos nós víamosapenas o prado de grama alta vazio atrás da nossa casa, cheiode buracos de toupeira, cortado por um riacho raso e barrento,e com um carrinho de madeira despedaçado que já era qua-

se menor do que eu, ele via seus amigos: artistas, proessores

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e açougueiros, pintores de cenários e engenheiros de luz russos,capitães de navios e ornecedores de equipamentos, todos com

um copo na mão, suas risadas se erguendo por sobre nossascabeças e em seguida evaporando na cobertura ormada pelasolhas das árvores; os salgueiros-chorões largando suas lágri-mas de olhas à beira do riacho; vaga-lumes e mosquitos che-gando através da umidade abaada e pegajosa do verão; umacova gigante com quatro cordeiros de primavera assando sobrecarvão de macieira; o cheiro da umaça de madeira pairando

no ar úmido da noite de verão. Estou alando sério. Ele vê tudodesse jeito romântico.

Sobre todo o seu trabalho, ele diz: “Os outros azem os ossose se asseguram de que a coisa não vai cair; eu acrescento o ro-mance.”

Devia ser minha mãe, a cozinheira, quem cava na cozi-nha com as seis bocas e a pia dupla azendo salada de eijão-

verde, aspargos à vinagrete e bolinhos amanteigados, contandoas pilhas de pratos de papel com a ajuda da minha irmã maisvelha – as duas azendo “os ossos”, como meu pai dizia. Masoi com ele – com suas longas costeletas da moda e óculos deaviador, seu pacote de Camels sem ltro e sua caixa de tintasde aquarela (e contracheque de artista) – que aprendemos acriar beleza onde nenhuma beleza existe, a sermos generosos

além das nossas possibilidades, a mudar um pequeno cantodo mundo, preparando um simples jantar para alguns amigos.Com ele aprendemos a criar e dar estas luminosas.

Lembro que havia um Baile de Inverno Russo para o qualmeu pai arranjava caixas de papelão do tamanho de geladeirascom neve articial, enviadas do Texas, e uma máquina de geloseco para enumaçar os quartos e deixar o ambiente parecido

com uma cena de   Dr. Jivago. E havia um Jantar do Dia dos

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Namorados para o qual meu pai azia centenas de cisnes demassa de bomba de chocolate, com asinhas e pescoços de massa

e bicos de amêndoa lascada que, quando torrados, assumiamsua característica cor preta. Ele os organizava nadando em pa-res num “lago” de espelho de acrílico, do tamanho da camamatrimonial de um rei com açúcar de coneiteiro ormandomontes de neves nas bordas.

“Cisnes” – ele observava – “passam a vida com um mesmoparceiro.”

Para uma espécie de esta com tema marroquino que meuspais deram, meu pai construiu soás baixos de olhas de com-pensado e os cobriu com enormes cobertores de pele e veludolaranja, levados do estúdio para casa. Quando as velas oramacesas e as luzes elétricas apagadas, a casa inteira cou parecen-do um lugar onde o estimável harém de um grande paxá pode-ria se reunir para oerecer a seu homem romãs, pistaches e,

talvez, tesouros mais carnais. Havia tapeçarias e kilims ormandouma pilha da minha altura, em que adultos chapados de vinhotemperado e tortas de pombo podiam relaxar. Quando a estacomeçou a se animar de verdade, lembro-me de andar de umaposento parcamente iluminado a outro, sentindo agudamenteo pathos de uma era – o começo da década de 1970 – como seele também estivesse jogado no soá de “ocina de teatro”, com

cabelos longos e vestido de macramê, mal reparando como es-tava tarde e que eu ainda estava acordada.

Mas o assado de cordeiro não era um evento único com temapesado e cenário elaborado. Era, como a maioria das estasde nossa amília, uma simples esta, repetida todo ano, produ-zida com apenas um ogo e uma olha de compensado colocadasobre cavaletes para trinchar os cordeiros. Construíamos uma

ogueira em nossa cova rasa, com cerca de dois metros e meio

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de comprimento por dois de largura. É possível que meu paia cavasse sozinho, mas, se havia um jovem de dezesseis anos

disponível por perto, como seu lho, meu irmão mais velho,Jerey, é bastante provável que eles cavassem juntos. De cadalado da cova, eles montavam um pequeno muro de blocos deconcreto com uma pesada prancha de madeira em cima, pa-recendo a cabeceira e os estrados de uma cama gigante, ondecavam apoiadas as longas traves de madeira sobre as quais oscordeirinhos haviam sido amarrados. Com seus dentinhos tor-

tos e olhos leitosos, os cordeirinhos eram abatidos e preparadosna Maresca’s Butchers e em seguida amarrados em traves detrês metros de madeira de reixo, porque os galhos de um reixocrescem tão retos que você consegue acilmente empalar umcordeirinho com eles.

Jerey tinha carteira de motorista e uma caminhonete de1957 da Chevrolet, com uma caçamba de madeira e um grande

cogumelo azul pintado na cabine revestida. O carro tinha gran-des espelhos laterais balançantes, estoamento rasgado sobre oqual jogávamos um cobertor grosso, mas andava. Num azuladom de semana do começo de verão, Jerey conduziu seu novocalhambeque pelas tortuosas estradinhas rurais, passando pelaazenda de árvores de Natal dos Black e pela loja de bebidas dosLarue. Fui junto, na caçamba, num vestido de algodão e sapa-

tos de menino sem meias, segurando-me o mais rme que po-dia nas bordas e deixando o vento bater tão orte na minha caraque eu mal podia manter os olhos abertos. Mesmo com os olhosechados, eu podia perceber pelo vento, pelos pequenos trechosde revigorante rescor, pelo repentino brilho do sol e pelo cheirode esterco quando estávamos passando por um campo de eno,um longo e denso agrupamento de árvores, uma área de trevos

ou um haras. Passamos por novíssimos alces emergindo da fo-

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resta em hordas de quarenta e parando nos milharais totalmenteabertos. Finalmente, chegamos ao Pomar de Maçã dos Johnson,

onde pegamos nossa madeira para o ogo.O pomar e a azenda de árvores de Natal acabaram há muito

tempo, o açougueiro e a azenda de gado leiteiro estranhamenteainda estão operando, resistindo eito lápides aundadas numcemitério coberto pela grama alta – históricos “a propósito”para os turistas a caminho da Torre de Bowman e da Travessiade Washington. Onde antes havia quatro lugares separados

para quatro itens separados, agora todo mundo simplesmentevai ao Shopping Plaza para conseguir tudo numa grande lojacom iluminação exagerada – leite, maçãs, carne e até a árvorede Natal – enquanto as crianças esperam no carro e comembatatas ritas no banco de trás.

No pomar dos Johnson, dependendo da época, vendiam-sepêssegos amarelos e meia dúzia de tipos de maçãs em cestas de

ripas de madeira. Mas, na época do assado de cordeiro, ainda eramuito cedo no ano para comprar rutas. Eles tinham podadotodas as árvores para a nova estação, e enchíamos o caminhãocom os pedaços cortados, empilhando os galhos de macieira atéo alto na caçamba da caminhonete, cujos limites aumentáva-mos com duas tábuas de compensado de dois metros e meio. Aquela madeira verde queimava por mais tempo e cava mais

quente, chiando a noite toda à medida que a seiva pingavasobre as chamas. A caminho de casa, sentei na cabine da ca-minhonete entre meu irmão que dirigia e meu pai, que haviabaixado a janela toda e estava com o cotovelo para ora.

– Eles vão soltar a ragrância da ruta quando queimarem,você vai ver – ele disse.

 A paraernália de açougue pode ser repulsiva para alguns.

Mas para mim arcos de serra, cutelos e serras de ta pareciam

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todos manejáveis e atraentes. Eu adorava ir até Maresca’s,o açougue italiano na estrada, em Jersey, e sempre pedia para ir

junto se passar no Maresca’s estivesse na lista de coisas a azer.Naquela época, não havia nada “artesanal”, nem “orgânico”,nem “selecionado”, nem “de granja”, nem “ancestral”. Em 1976,não havia sequer algo que osse 2% leite. A gente simplesmentetomava leite. E os Maresca ainda eram apenas açougueiros,pai e lhos açougueiros – Salvatore, Joe e Emil – trabalhandonuma loja com serragem pelo chão. O pai, Salvatore, e o -

lho Joe tinham mesmo cara de açougueiros – largos, camisasde fanela sob as longas jaquetas e aventais, mãos gordurosase carnudas que lembravam luvas de beisebol. Emil, por outrolado, parecia que podia ter sido um químico num laboratórioou um proessor de economia doméstica – sempre de avental,mas com um suéter com gola em V sobre a camisa de fanela eum belo par de calças de veludo marrom. Eu tinha ouvido alar

que ele queria ser jogador de beisebol, mas acabou no negócioda amília. Emil passava a maior parte do dia na velha cozinhaaberta, adjacente ao açougue, espetando e marinando cubos decarne, azendo todas as salsichas e cozinhando o almoço diáriopara a amília.

Todos os três Maresca sabiam tanto sobre animais quan-to era possível saber. Eles podiam avaliar quão velho era um

animal na época do abate tocando sua cartilagem, e quão re-quentemente ele era alimentado, e com o que, examinando osdepósitos de gordura e o marmoreio na carne. Apontando parauma grossa risca de gordura num lado de um bie, Joe dizia:“Aqui dá para ver um raio marcando quando o criador come-çou a alimentá-lo loucamente, no nal, para engordar, mas obom mesmo é uma alimentação constante para a gordura car

espalhada.”

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Fora do açougue, dois imensos arbustos explodiam de galhosotimistas e amarelos da cor do sol. Dentro, os rerigeradores -

cavam cheios de carne sangrenta, carne moída, carne amarradae aves, inteiras e em partes. Na longa parede de azulejos bran-cos atrás dos rerigeradores, onde os Maresca realizavam seutrabalho sangrento, havia um mural gigante em cores amigá-veis mostrando um roliço e bigodudo açougueiro num aventalbranco limpo, saltitando num pasto verde, circular, em ormade caracol e limitado por uma cerca, com ovelhas brancas algo-

doadas com macias orelhinhas rosa e porquinhos rosados gor-duchos e sem cerdas, sorrindo enquanto cheiravam botões-de-ouro amarelos. Acima, o céu era azul como um ovo de melro,as poucas nuvens de um branco puro enquanto aves e borbole-tas se perdiam em aazeres repletos de música, muito emborao açougueiro portasse um cutelo gigante numa das mãos, diri-gindo-se a um deles. À direita do mural, pendurados em pregos,

cavam todos os tipos de serras, cutelos e acas gigantes. Além de carne, os Maresca vendiam produtos enlatados e,

durante a primavera e o verão, também alguns dos legumese verduras que o sr. Maresca cultivava no jardim atrás do açou-gue. Eles cavam sempre expostos de orma casual, numa sim-ples caixa de papelão, ou cesta, no chão ao lado do rerigerador,o preço escrito à mão num pedaço de sacola de papelão marrom:ervilhas 20c/kg.

Eu espiava aquelas ervilhas rescas num cesto de vime nabeira do balcão. Enquanto meu pai e os homens conversavame levavam calmamente os quatro cordeiros inteiros preparadossobre jornal para a caçamba do caminhão, eu agarrava um pu-nhado delas e me escondia atrás de uma caixa.

 Adoro como se pode romper a vagem da ervilha, puxar o

o e com isso expor uma linha de junção pereita que pode a-

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cilmente ser aberta com a unha. E então você descobre aquelasbolinhas pereitas, doces e amiláceas no côncavo de um casulo

crocante, aguado e quase açucarado.Quando o sr. Maresca me pegou comendo as ervilhas surru-

piadas, em vez de me dar uma bronca, ele segurou a barra domeu vestido, puxando-a para cima e ormando uma espécie debolso no qual jogou um grande punhado delas para que eu co-messe, não às escondidas mas abertamente, no chão coberto deserragem do açougue. Dei uma boa olhada nas carcaças pendu-

radas de cabeça para baixo de línguas caindo pelo lado das bo-cas sangrentas, os olhos sem expressão, leitosos e esbugalhados,bem como as partes desmembradas – pernas, cabeças, ancas,fancos, costelas, parecendo algo saído de uma história de Jack London. Eu queria segui-lo lá para dentro. Queria estar lá den-tro com a carne e as acas, vestindo o longo avental sangrento.

Naquela noite, dormimos ao lado do ogo, num prado sem

nenhum outro ponto de luz, cinco crianças vagamente super-visionadas por meu irmão Jerey, que estava bem encaminhadopara se tornar um adolescente antropologista, nômade e natu-ralista. Ele coletava os cervos e guaxinins atropelados e mortosnas escuras estradas rurais e os arrastava para pendurá-los nasárvores que beiravam o prado até que o sangue escoasse com-pletamente. Então, limpava a pele, queimava os pelos, guarda-

va os dentes e raspava o tendão dos ossos, secando-o para azera linha com a qual costurava suas calças, eitas de pele de cervoe guaxinim. Eu cava encantada com ele e com aquele hábi-to astidioso, astucioso e bizarro. E apaixonada por sua belezade internato casualmente realçada por seu cabelo à altura doqueixo e por seu novo hábito de vestir roupas aricanas. Comos onze anos de idade que nos separavam, eu ainda não tinha

entendido completamente que ele também havia adquirido o

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hábito de tomar uma dose de ácido por dia e que havia umarazão psicodélica para ele conseguir car tanto tempo sem pis-

car. É provável que meus pais também não tivessem entendidoaquilo completamente, porque naquela noite, a noite antes dagrande esta, deixaram Jerey tomando conta do ogo. Com to-cos e galhos, ele ormou uma eroz pira ardente abaulada.

Meu irmão Todd estava conosco, mas teria preerido car láem cima em seu quarto, com a porta echada – sempre se tinhaque bater para entrar –, contando seu dinheiro, ou se distraindo

com suas aquisições, poucas mas em boas condições de uso: suanovíssima guitarra elétrica, seu gravador de rolo, seu som comduas entradas para cassete, seu amplicador elétrico e seu no-víssimo erro de solda. Com bobinas para solda e clipes de papelde cobre, ele moldava esculturazinhas esquisitas e pouco inspi-radas de barcos, trens e esquiadores. Deitado em seu saco dedormir, Todd, o segundo mais velho, nos ignorava, tocando Led

Zeppelin numa guitarra imaginária enquanto ouvia músicacom ones de ouvido que ele mesmo tinha comprado com odinheiro obtido tocando para turistas nas ruas da cidade. Umempréstimo de cinco dólares nunca era negado: era alegrementeconcedido, mas vinha com juros e era anotado no caderninhode Todd. Ele me contratava para massagear suas pernas, depoisdo trabalho, com a pele do meu coelho da sorte, durante uma

meia hora que eu achava tremendamente íntima e uma respon-sabilidade que eu levava muito a sério, paga em notas de umdólar e tas gravadas.

Simon, o mais próximo de mim em termos de idade, passava,naquele verão, por uma severa crise de vandalismo de pré-ado-lescente comqi muito alto, irritado com tudo e com todos. Todaviatura policial que via era uma oportunidade para um saco de

dois quilos de açúcar branco no tanque de gasolina. Janelas

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de vidro em casas vazias eram bravamente estilhaçadas por pe-dras arremessadas com precisão. Ele se excitava com seu poten-

cial sinistro e taciturnamente esperava que todos caíssemos nosono para poder sair de ninho de seu saco de dormir e aliviarseu tédio andando até a cidade e deixando sua marca por lá.

Minha irmã Melissa, a lha do meio, era só uma adoles-cente, mas responsável e prossional o bastante para ter umamarca branca no braço bronzeado por conta de seu relógio depulso e de um trabalho como salva-vidas. Um relógio de pulso

aos quatorze anos! Ela tinha a incompreensível habilidade deabrir todo um pacote delicioso e açucarado de bolachas cobertasde chocolate, colocar duas sobre uma toalha de papel, echar denovo o pacote até o dia seguinte e só comer aqueles dois biscoi-tos. Se dependesse da minha pessoa de nove anos de idade, eucaria enjoada de comer o pacote todo em dez minutos. Melissaera quem caria na cozinha com minha mãe, no dia seguin-

te, zelosamente descascando eijões-verdes e acrescentandomanteiga à mistura de arinha e açúcar enquanto eu estaria noquarto principal, saqueando os bolsos das jaquetas e as bolsasde todos os nossos convidados, recolhendo moedas e notas devinte, que mais tarde eu gastaria em rerigerantes, sanduíchesde rios italianos com azeite, vinagre, pimentas ortes e tortas deruta geladas, embaladas individualmente.

Enquanto estávamos todos deitados ao redor da ogueiracrepitante e reluzente, pensando em como estava tarde e comoíamos car acordados até tarde, Jerey inventou uma pequenalinguagem e uma nomenclatura para nossa amília. Ele come-çou com meu pai, o “Osso”. O que não era invenção dele. Al-guns dos carpinteiros da ocina haviam começado a chamarmeu pai de “Osso” quando ele não estava por perto. Brincando

com as palavras e a língua, como é de seu costume, colegas de

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escola tinham trocado Hamilton por Hambone1 desde a oitavasérie. Meu pai odiava ser chamado de Hambone ou, pior ainda,

de Ham2, pois era assim que o pai dele era chamado por nin-guém menos do que sua própria mãe. Mas algum espertinho norinque de patinação oi direto ao ponto e começou a chamá-lode “ Bone”. Você viu o “Osso”? Cadê o “Osso”? É melhor ter certeza de que o “Osso” auto ri zou isso aí. O “Osso” não vai concordar comisso nunca.

De “Papai Ossudo”, cuja lascívia e duplo sentido ainda hoje

podem causar ataques de risadas em Jerey, oi um passo paraque a gente começasse logo a ser apelidado, do mais velho até omais novo, J Jasper Osso, T-Bone, Ossete, Sly e a Família Bonee eu, enm, Ossinha. Nossa surrada caminhonete da Volvo vi-rou a Carruagem de Ossos. Algo autêntico e intrinsecamenteligado a meu pai – como os termostatos lá de casa que não un-cionavam nunca, ou a casa quase ser posta à venda num leilão

municipal porque ele não tinha pagado o iptu num ano – era“ossicado”. Champanhe de verdade e caro no Natal, apesarda penhora, era “luxuosso”. E estas – todas as estas de meupai – viraram “maratossonas”.

Décadas mais tarde, quando Melissa e eu estávamos cadauma em sua casa, ela me deixou uma mensagem sobre umestudo de densidade óssea que estava sendo eito no hospital

próximo a ela, e tudo o que eu podia ouvir ao undo durantea mensagem era a própria Melissa, urrando e guinchando aoteleone: “Densidade óssea! Hahahahahahahaha!”

Nã vou ngir que eu era uma participante engraçada ouinspirada desse joguinho de palavras que jogávamos naquele

1 Osso de Presunto. (N. do T.)2 Presunto. (N. do T.)

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prado escuro, ao lado da grande ogueira. Por ser a mais nova,tinha que me esorçar bastante para entender as piadas, ou agir

como se tivesse entendido. Com requência me perdia em meuspensamentos, em meu próprio quebra-cabeça, em minha ima-ginação perambulante. Das cinco crianças, era eu quem sem-pre era jogada no carro e levada em longos aazeres com meuspais, porque eu cava eliz em simplesmente sentar no bancodo carro e vagar por minha própria mente. Observar o mundo,as pessoas nele e minha própria vida interior era mais do que

o suciente para me entreter. Meus pais tinham um acordo na-quela época sobre como me punir: não mande essa menina deEscorpião para o quarto dela de castigo, porque ela adora carlá. Então, o que quer que os zesse rolar de rir – quaisquer queossem as piadas, provocações e implicâncias que Jerey, agoraJJ Osso, tinha bolado, como se reerir à minha mãe como amulher que “levou uma ossada” –, eu não estava realmente en-

tendendo. Eu não tinha ideia. Eu segurava a coleira desses gra-cejos, que corriam eito um pastor alemão agitado que pesasseo dobro do meu peso, mas não largava.

Eu me sentia silenciosamente excitada por estar embrulhadaem meu saco de dormir bem ao lado deles. Sentia-me encasuladapela densa canção crescente dos grilos, o voluptuoso cobertor daumidade de uma noite de verão, o cheiro de umaça de madeira, o

orvalho pesado na grama alta a nosso redor, as necessárias ânco-ras das vozes, risos, peidos e grunhidos de nojo dos meus irmãosmais velhos. Aquela noite pereita, com todo mundo sossegadoe basicamente intacto e sadio, é onde de vez em quando euquero que a esta pare.

De manhã o sol vai nascer e o resto da vida vai continuar– e será um clichê admirar a beleza das estrelas, ácil se sentirtransportada pelo cheiro da umaça de madeira, inantil admitir

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amor pelos irmãos e sinal de raqueza se sentir segura pela ideiade que seus pais ainda estão casados em casa. E, ao acordar

e sair a pontapés dos sacos de dormir, vamos descobrir que aogueira virou um leito imenso de carvões brilhantes, pereitopara assar lentamente os cordeiros.

Mas, naquela última noite que passamos todos juntos aolado do ogo, atacados por mosquitos e desconortavelmentemolhados do orvalho absorvido pelos sacos de dormir de algo-dão abricados pelo exército – quando ainda nem comemos os

cordeiros –, tudo o que ainda nos preocupava era se, quando eletocava, atendíamos ao Ossoone ou ao Teleosso.

Quando acordamos, a névoa se dissipava à medida que o solcava mais orte. Meu pai jogava enormes rodelas de salsichaitaliana adocicada na grelha e abria grandes pedaços de pãopara tostá-los sobre o carvão. No caé da manhã, em vez decereais com chocolate e desenhos animados, sentamo-nos sobre

nossos sacos de dormir, edendo a umaça, e comemos essesgigantescos, deliciosos, crocantes e chamuscados sanduíches desalsichas italianas adocicadas.

Depois havia um milhão de tareas a azer, e meu pai preci-sava que as zéssemos. Descobri que eu podia dirigir, trabalhar,carregar pedras, martelar pregos, mexer com acas, usar umaserra elétrica e acender ogos – tudo o que os garotos podiam a-

zer – simplesmente porque meu pai estava sempre tão atolado,atrasado, tão além do limite, ambicioso, e com pouca gente paraajudar em todo projeto, que sempre precisava desesperadamen-te de mais um par de braços, ainda que osse o par de braços deuma menina de nove anos. Todos nós tínhamos passado um nú-mero suciente de horas com meu pai em bastidores de teatros,observando o cenário sendo montado ou desmontado, para en-

tender, na hora em que ele estava organizando aquela esta em

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nosso quintal e nos instruindo a acender as luminárias de sacosde papel assim que o sol se pusesse, termos de teatro como “a

quarta parede” e expressões de iluminação teatral, como “Fechao oco do refetor!” e “Transição da luz, por avor!”.

Tínhamos que enrolar as pernas das calças e entrar descal-ços no riacho gelado, construir um curralzinho com pedrasde rio e enchê-lo de botijas de Chablis e caixas e mais caixas deHeineken e rerigerantes. Ter que andar descalço no riacho riopara pegar uma cerveja em vez de conortavelmente alcançar

um daqueles rigobares vermelhos cheios de gelo que pessoasnormais usariam era, no nosso novo vernáculo, ossicado. Eutinha que ceiar e limpar o prado, e o cheiro da grama recém-cortada era luxuosso. Tínhamos que encher centenas de sacosde papel marrom com areia e velas grossas, depois espalhá-losao longo da beira do riacho, sob os salgueiros-chorões, e emtodos os buracos de toupeira para que ninguém quebrasse um

tornozelo ou caísse bêbado no riacho mais tarde, quando -casse escuro. E tínhamos que abastecer os Frisbees que brilha-vam no escuro, colocando-os sob os aróis do carro para poderbrincar com eles mais tarde, na área mais escura e distante doprado. Aqueles discos esverdeados brilhantes, azendo um arcopela noite negra, enviados e recebidos pelos corpos invisíveis demeus irmãos mais velhos, também eram luxuossos.

Os cordeiros estavam arrumados sobre os carvões, da cabe-ça aos pés à cabeça aos pés, da mesma orma que se arrumaum monte de crianças para dormirem juntas numa cama. Dei-xamos um pesado ancinho de metal perto da ogueira para ajei-tar os pedaços de carvão à medida que o dia passava e as cinzasse amontoavam, aastando os gastos para as bordas e deixandoexpostas as brasas que ainda brilhavam seu vermelho quente.

Os cordeiros assavam tão lenta e pacientemente que seu sangue

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pingava sobre o carvão com um chiado hipnótico e rítmico, osom da ponta quente de um ósoro recém-apagado sendo mer-

gulhado num copo de água. Meu pai os untava com um peda-ço de madeira da grossura e do comprimento do cabo de ummachado, com um grande pedaço de gaze amarrado à ponta,que ele mergulhava numa lata de tinta limpa e cheia de azeitede oliva, alecrim esmagado, alho e grandes pedaços de limão.Ele esregava os cordeiros, lenta, suave e completamente, paraa rente e para trás, com pinceladas leves e cuidadosas, como

se pintasse um barco a vela novinho em olha. Então, o molhotambém pingava sobre os carvões, chiando e se vaporizando,seu odor se erguendo pelo ar. E o dia todo, enquanto azíamosnossas tareas, os odores dos cordeiros, da umaça dos galhos demacieira e do molho de alecrim e alho se misturavam e cavamgravados em nossos cérebros. Tenho me agarrado a ele, a essecheiro, por trinta anos. Em noites de verão, sinto uma ânsia

crônica de construir grandes ogueiras ao ar livre e assar lenta-mente animais inteiros. Eu poderia me sentar ao lado do ogoe untar até o sol se pôr. Shh. Shh. Shh.

O resto da reeição era simples, mas preparado em quanti-dades tais que a cozinha parecia agitada, lotada e tensa. Haviatigelas gigantes de eijão-verde, salada de cogumelos com cebo-la roxa e orégano, e travessas cheias de bolinhos. Melissa, com

um par de tesouras de escritório, cortava galhinhos de uvas ver-melhas e pretas para ormar cachos pereitamente proporciona-dos, enquanto minha mãe preparava ovos mimosa – orçandoclaras e em seguida gemas bem cozidas através de uma peneirana – sobre pirâmides de aspargos rios cozidos à vinagrete.Melissa e minha mãe trabalhavam de orma rápida, ecientee limpa – mãe e lha juntas na cozinha, ambas em aventais

tipo babador, cada uma com uma toalha de prato jeitosamente

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dobrada e presa no cordão do avental, “preparando os ossos” donosso assado de cordeiro.

Todd rodava os cordeiros em noventa graus a cada meiahora. Simon estacionava os carros. Jerey educadamente beija-va as convidadas mais velhas, que chegavam mais do que pon-tualmente, nas duas bochechas. E eu entrava e saía do riachopara pegar cerveja, vinho e rerigerante.

Então, eles começaram a chegar aos montes, todos aquelesamigos artistas do meu pai, com cabelos longos e calças boca de

sino, e as antigas amigas de balé da minha mãe, com pesco çoslongos e postura eternamente ereta, e nossos amigos também– os Drever, os Mellman, os Bentley, os Shank –, toda a nossamatilha de cães, lamacentos, sujos de grama e encharcados de-pois de quinze minutos. Mal reconheci os arrumadinhos irmãosMaresca com o pai, o sr. Maresca, sem o uniorme de açougueiro.

Lentamente, o prado se encheu de gente, vaga-lumes e ri-

sadas – exatamente como meu pai havia imaginado. Os cor-deiros nos espetos eram içados da ogueira para os ombros dehomens, como num uneral, e depositados na mesa improvi-sada de compensado sobre os cavaletes para serem trinchados.O sol começou a se pôr e acendemos as luminárias de sacolas depapel, que queimavam com um suave brilho âmbar, pontuan-do o prado e a noite. O cordeiro tinha a pele brilhante e cara-

melizada por ter assado tão lentamente, e o rerigerante geladose agarrava, como uma emoção, ao undo da minha garganta.

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