Capítulo 4 - UM TIRO NA CHUVA - A Filosofia do Diabo

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    UM TIRO NA CHUVA

    Tito abriu os olhos de supeto! Mirando o

    teto, sentiu um arrepio correr pela espinha.

    Estava em casa, na segurana uterina de

    sua cama quente. Demorou algum tempo

    para reorganizar suas idias. Levou a mo

    lentamente cabea, esta doa, doa de um

    jeito que ele conhecia. Dor de

    bebedeira! As imagens da madrugadaento lhe saltaram mente. Aquilo no

    poderia ter sido um sonho, no, no...

    sabia discernir sonho de realidade. Para ter

    certeza passou a mo no pinto e cheirou,

    sim, cheiro de boceta! Uma estranha

    alegria ento se apossou dele, esteve com

    Epaminondas em seu esconderijo, tinha

    certeza; mais que isto, fez uma bela festa

    com o nego! A cabea doa, mas estava

    extasiado de prazer, considerava uma

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    distino ter privado da intimidade do

    velho diabo, concesso que deveria serdada a bem poucos. Olhou no relgio,

    acordara na sua hora de sempre, estava a

    tempo de assumir seu papel de sbrio.

    Levantou-se e cambaleou at o chuveiro,

    onde tomou uma ducha quente e no

    contendo seus instintos de alegria,cantarolou. Aps vestir-se, enquanto bebia

    um copo cheio de caf e comia uma fatia de

    po preto, perdeu seu olhar pela janela da

    cozinha enquanto divagava. Afinal quem

    era aquele homem? Porque lhe disseratudo aquilo? Por que lhe proporcionara

    aquela bela e inesperada trepada? Quem

    eram aquelas mulheres, quem era aquele

    stiro? Onde esteve afinal? Ento de sbito

    lhe ocorreu algo e ele estremeceu; como

    entraram em seu apartamento? Atocontnuo, foi at a porta, a nica que dava

    acesso ao interior do imvel, abriu-a e

    conferiu com calma, passando sua mo

    procura de alguma rachadura ou

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    machucados na pintura ou afundamentos

    na madeira. Nada. Foi janela da sala, eraum apartamento pequeno; quarto, sala,

    banheiro e cozinha. Por onde teriam

    entrado? Olhou pela janela, morava no

    segundo andar, e de sbito deu uma

    gargalhada! Hora, como poderiam tira-lo

    do imvel por alguma janela? Mas logoficou srio. Entrar inadvertidamente em

    sua casa, em sua intimidade, em sua

    cidadela. Isto era preocupante. Poderia

    dormir tranqilo a partir deste episdio?

    Sentiu ento que talvez tenha feito papel deum bobo frente de Epaminondas. Deveria

    se impor e cobrar a invaso em sua

    intimidade; como pode? Estava dormindo!

    Dormindo, caralho! Que perigos podem

    rondar algum destitudo de seus sentidos?

    Imaginou as coisas mais bizarras e decidiuque em um prximo encontro deveria

    cobrar esta invaso de domiclio seguido de

    rapto de um inconsciente. Porm, riu

    novamente. Pensou ento ser bvio que

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    seria somente desta maneira escusa que

    haveria a possibilidade do encontro.Epaminondas talvez se irritasse com suas

    cobranas e abrisse mo dos contatos; no,

    melhor no falar nada. Sentiu-se ento,

    brincando em uma gangorra com a Razo,

    ora sentia isto, ora sentia aquilo. Era

    melhor deixar essas coisas de sbrios delado se quisesse tocar adiante seu projeto.

    Divagava nestas coisas, quando seu celular

    tocou trazendo-o de volta Terra. Al. Oi

    Nina.

    - E da, Pequeno Hmem! a voz

    brincalhona de Nina, caiu como um

    blsamo em seus ouvidos o Santos j

    perguntou duas vezes por voc, afinal voc

    vem ou no vem? Tito olhou em seu

    relgio.

    - Puta merda, Nina! Esqueci da vida! Diga

    a esse xarope do Santos que estarei a em

    vinte minutos. E lhe digo, tenho novidades

    que vo deixar voc louca!

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    - Novidades? Puxa, estou curiosa, que

    novidades poderia ter aquele cara cansadode ontem noite, que s queria ir para casa

    dormir, o que teria para me contar hoje

    cedo da manh? Tito ento botou

    definitivamente os ps no cho.

    Epaminondas estava certo em sua

    estratgia. J de sada podia ver adificuldade de no passar por mentiroso.

    Uma sensao de cansao tomou conta de

    sua mente. No iria ser fcil convencer a

    colega. Ora, foda-se! Iria dizer a verdade

    nada mais, se no quisesse crer o problemaera dela. Bem, lhe conto quando chegar

    na delegacia.

    - Acho difcil, meu ngo! Acho que o Santos

    vai lhe monopolizar por um bom perodo,

    mas vem logo que o tempo t passando.

    - Fui, tchau! - desligou o telefone, e saiu s

    pressas. Desceu as escadas, pegou seu

    carro na garagem e ganhou a rua. Neste

    nterim comeou a chover, o barulho da

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    chuva e o vai e vem de seu limpador de

    pra-brisas marcava o compasso de seuspensamentos. As ruas cinzentas daquela

    manh chuvosa se prestavam para o pano

    de fundo de suas divagaes. Estava

    realmente fascinado por Epaminondas,

    este tivera o poder supremo de quebrar a

    mesmice de seu dia a dia, de trabalho paracasa de casa para o trabalho. E isso que

    trabalhava numa delegacia! Porm desde

    que comeara, nada alm do crime do

    senhorio no qual conhecera o estranho

    personagem, acontecera de maisemocionante. Era novo no front, sabia que

    tinha muito por vir, mas aqueles dias

    realmente valeram pelo fator

    Epaminondas. Estava impressionado, e

    queria manter aquela estranha relao,

    custasse o que custasse. S Nina deveriarevelar suas peripcias com seu novo

    amigo. Quando, enfim, um novo crime

    ocorresse naquela feio, no qual o negro

    fosse chamado, deveria manter-se

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    indiferente; ningum deveria desconfiar

    daquela amizade, esta deveria continuarna sombra. Lembrou-se da trepada, do

    stiro, de Epaminondas fodendo com

    sofreguido. O efeito das luzes das velas

    naquelas cenas todas, da delicia do incenso

    e do maravilhoso champanha.Acho que eu

    estava meio travado, imaginou ele. Daprxima, e tomara que tenha uma prxima,

    vou estar mais relaxado. Pensava tambm

    nas coisas que ouviu. Epaminondas deixara

    claro de que no ligava a mnima para a

    sociedade dos sbrios, mais que isso, adesprezava. Dera seu instinto assassino a

    esta, e isso era tudo. Seus instintos

    egostas no interessavam. Tinha lgica

    ento, aquele papo de utilitarismo. O fato

    de embriagar-se desgostava a sociedade

    pelo fato de que de sua embriaguezningum tirava proveito, s ele. Era ento

    uma satisfao restrita. Puxa, que

    intolerncia! Pensou. Se fizer bem a si

    prprio, desterrado. Se fizer mal a

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    algum que a sociedade considere um

    pria, ela fecha os olhos porque disto tiraproveito. Concluiu que havia muito

    cinismo na sobriedade das pessoas de

    bem. No era de admirar que o nego

    adorasse a distncia dessa gente. Porm,

    ele Tito, era pago pelos sbrios para

    executar seu papel, e era para este ofcioque agora estacionava o carro no ptio da

    delegacia. Chovia muito. Saiu do carro,

    levantou a gola do sobretudo, e ainda

    raciocinando sobre as reminiscncias da

    noite anterior, concluiu enquanto corriapara dentro do prdio: se aquilo a

    sombra, quero muito freqenta-la!

    - Demorou, hein, rapaz! Edson, saudou-o

    com um leve tapa nas costas e seguiu s

    pressas para outra sala. Tito percebeu umalvoroo no recinto. Santos apareceu

    porta de sua sala e gritou para o rapaz: -

    Onde voc andava seu porra! Pegue seu

    colete e v para a viatura! Tito correu ao

    vestbulo, apanhou em seu armrio o colete

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    prova de balas e o vestiu rapidamente.

    Edson apareceu de repente entregandomais dois pentes para sua pistola, que

    agora havia ido para a cintura. O que t

    pegando, Edson? perguntou assustado.

    - Deu merda no Morro do Tigre! O pessoal

    da terceira est encurralado naquelasporras daquelas vielas, parece que os trafi

    esto com um verdadeiro exrcito e esto

    sentando o dedo adoidado! Um dos nossos

    est morto e tem dois ou trs feridos, a

    merda est grande. Davam uma batida

    quando desabou uma chuvarada, a viso

    ficou prejudicada e os vagabundos

    surgiram de cima das lages metendo fogo!

    Vem comigo, antes de sairmos quero te dar

    uma coisa. ambos ento, foram ao

    banheiro da delegacia e Edson abriu aporta do pequeno recinto onde fica o vaso

    sanitrio e com um gesto de cabea indicou

    que Tito entrasse. Este obedeceu meio

    atarantado, e para seu espanto, j havia

    outros dois colegas, dois jovens, dentro do

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    nfimo local. Um era Caveira, magro e alto,

    tinha o pescoo comprido e fino, seu rosto branco e descarnado expunha as mas

    salientes. Caveira tinha os olhos redondos

    e esbugalhados jazendo em profundas

    olheiras, no quadro geral, fazia jus ao

    apelido. O outro era Caldas, um sujeito

    baixo e atarracado, que nunca mereceu deTito maiores atenes. Caldas tinha uma

    cara de buldogue afundada entre os

    ombros, que lembrava os tiras de filmes

    policiais dos anos trinta. Todos ali j

    estavam devidamente paramentados comseus coletes, prontos para a ao. Tito

    reparou ento que Caveira tinha em uma

    mo uma buchinha de cocana e na outra

    segurava um pequeno espelho que servia

    de bandeja contendo varias linhas da

    droga. Caldas cheirou e passou para Edsonuma nota de dinheiro enrolada na forma de

    canudo. Edson pegou o canudinho

    improvisado e deu o seu teco em duas

    linhas. Ato contnuo estendeu para Tito o

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    canudinho Vamos, cara, vamos, tem de

    ser rpido, caralho! Tito a princpio iarecusar, nunca havia cheirado, embora

    outras vezes j tivesse tido a oportunidade

    de consumir a droga. Porm, dentro da

    delegacia era novidade para ele. Ia recusar,

    mas devido quela situao achou ento

    melhor entrar de boa e no gerar qualquertipo de discusso. Pegou o canudo e para

    no parecer mais cabao do que merecesse

    seu apelido, aspirou com fora uma e

    depois a segunda linha. isso Tit!

    exclamou Caveira. Agora j podemos meterchumbo naqueles filhadaputa. E saram

    em disparada na direo da porta de sada,

    em seguida entraram na viatura. Tito

    percebeu que Nina entrava em outro carro,

    apressada. Em seguida saram todos em

    alta velocidade, rumo ao Morro do Tigre.

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    ***

    A viatura voava em direo ao Morro doTigre. O motorista, habilidoso, era um

    negro magro de cabelos compridos moda

    rastafari e de feies bonitas, metido a

    comedor, que usava pequenos fones de

    ouvido e cantarolava como se nadaestivesse acontecendo; era conhecido como

    Black. O policial de patente superior

    naquele carro era Edson, por antiguidade.

    Era um alvio para todos que Santos no

    estivesse. Tito, aproveitando-se disto e de

    que comeava a sentir os efeitos da droga,comeou soltar a lngua; dirigiu-se ento

    aos colegas: - Porra, no d para entender

    vocs! Cheiram sob o pretexto de criar

    coragem para meter fogo nos caras. Nos

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    mesmos caras sem os quais vocs no

    teriam o p! Pelo lado de l, a mesma cosa;os vagabundos cometem um suicdio

    indireto vendendo a coisa para dar

    coragem a seus perseguidores. Nosso

    mundo confuso mesmo, no e?

    - Fodam-se eles! retrucou Caveira amim no me interessa nada disso! Cheiro e

    meto chumbo! O que voc ? Um

    socilogo? Um filsofo? Quero ver voc

    encarar essa porra toda de carinha limpa!

    Alis, sua primeira vez; se eu fosse voc,

    cheirava mais!

    - Agora no hora para este tipo de

    conversa, meu velho! emendou Edson,

    dirigindo-se a Tito precisamos chegar

    com a adrenalina na ponta do dedo. Oscaras no so mole! Esto dez vezes

    mais doido que ns, e voc quer voltar

    para casa no quer?

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    Tito achou melhor deixar assim, se tinha

    um momento para no iniciar umadiscusso era aquele. A viatura, de repente,

    comeou a dar alguns solavancos; j

    estavam subindo o morro e encontravam-

    se num trecho barroso e difcil, at mesmo

    para Black. Tito comeou a sentir o corao

    pulsar na boca. Estavam chegando epreocupava-se tambm com Nina que

    vinha logo atrs. A chuva havia piorado e a

    manh parecia estar anoitecendo. Agora

    todos olhavam atentamente para e frente

    Peguem as armas, porra! gritou Edson.Todos ento pegaram os fuzis alcanados

    por Caldas que os apanhava atrs do banco

    traseiro da caminhonete.Tito divisou

    ento, por um momento, seu rosto no

    espelho retrovisor, estava plido. Mordia o

    lbio inferior insistentemente. No rdio a voz do delegado Fidelis deu uma ordem

    qualquer, mas ele estava longe e no

    prestou ateno. - Voc ouviu, Black!

    esquerda! esquerda! gritava Edson. O

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    carro ento entrou em uma pequena viela,

    onde j se encontravam duas ambulnciasestacionadas. Tito, ao passarem por elas,

    pode ver em meio chuvarada, um corpo

    coberto por uma lona sendo colocado pelos

    para-mdicos no interior de uma delas.

    Dois outros homens eram atendidos

    deitados no cho. Outros colegas, daterceira delegacia, faziam sinais frenticos

    com as mos apontando para algum lugar

    mais acima no morro. agora minha

    gente! Destravem estas porras que o bicho

    vai pegar! - Ato contnuo, Edson deuordem para parar. Saram da viatura

    apressados e esgueiraram-se direita por

    uma ruela embarrada. O que se via era uma

    praa de guerra. Policiais agachados,

    deitados e de p, protegidos atrs de

    qualquer coisa, respondiam a um fogopesado e intermitente que vinha da parte

    superior do morro. Tito percebeu o piscar

    insistente das luzes oriundas das armas

    adversrias, era uma chuva de balas.

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    Procurou o lugar mais seguro, como se isso

    fosse possvel, e aninhou-se junto a umamureta, Caveira em seguida chegou ao seu

    lado. Tito segurou firme seu FAL (Fuzil

    Automtico Leve) e gritou para Caveira: -

    Porra! T difcil de achar alguma coisa para

    acertar!

    - No esquenta gritou de volta Caveira

    atire em qualquer coisa! O negcio sair

    vivo daqui... caralho, isto aqui uma

    guerra! Tito deu uma espiada rpida por

    sobre a mureta, e depois outra e mais

    outra. Lembrou-se ento de Epaminondas

    e toda a sua valentia. O respeito angariado

    entre os colegas, e de tudo o que Santos lhe

    contara. Mas principalmente o que o

    negro falara sobre matar. Aquilo lhe

    impressionara. Agora ali, liberado,autorizado pelo Estado, e aterrorizado

    perante a iminncia da morte, julgou ser a

    hora certa para decidir. Afinal, era legitima

    defesa, pois estava abaixo de tiros de armas

    pesadas. E mais, quem poderia saber de

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    onde partiu o tiro que eventualmente tenha

    vitimado algum? Era o pingue-pongue daviolncia. Estava totalmente liberado para

    matar! A adrenalina o convidava para isso,

    o efeito da cocana j havia cortado os laos

    morais que poderiam prend-lo a algum

    comportamento padro. Estava livre!

    Espiou por cima da mureta. Sim, j haviadivisado a vtima. Espiou novamente. Ao

    seu lado uma seqncia de tiros o deixou

    quase surdo, era Caveira metendo bala a

    esmo. Levantou a cabea lentamente acima

    do muro, podia divisar o vulto de umhomem que se expunha parcialmente para

    atirar e rapidamente recolhia-se, fazia isso

    insistentemente. Estava a uns cinqenta

    metros, teria que ser bom de mira;

    recolheu-se e respirou fundo. Estava a um

    passo de mudar sua vida. Que efeitospoderiam surgir a partir de ento? O que

    mudaria na sua vida, ter matado um

    homem? Porra! Era um policial afinal...

    porm, policiais matam quando no tem

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    escolha, pelo menos foi lhe ensinado assim.

    E agora podia decidir se aquele homem viveria ou no. Comeou a sentir ento

    uma sensao de poder indescritvel, com

    isto j poderia dar-se por satisfeito, aquele

    homem viveria a partir de hoje por uma

    deciso sua! Era uma sensao

    indescritvel. Faria o que Caveiraaconselhara, atiraria, s isso. Pegasse onde

    pegasse. - Ora, mas esta uma sada

    simplista! Pensou. Aquele homem quer

    matar meus colegas, quer matar a mim!

    Oh, mas um ser humano, meu filho...mame diria. Pois ... repentinamente

    Tito parou e perdeu o olhar no nada; ficou

    extremamente srio Eu tambm sou!

    de supeto, girou sua arma por cima da

    mureta e fez mira. Puxou o gatilho e

    recebeu o tranco do fuzil em seu ombro.Recolheu-se e espiou por sobre a mureta o

    corpo que despencava da lage. Que tiro,

    homem! exclamou Caveira. Sim, a todas

    estas se esqueceu do colega a seu lado,

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    testemunha ocular da sua deciso. Tito no

    sentiu sensao nenhuma alm de umimenso vazio. Se pudesse voltar atrs

    alguns segundos talvez no cometesse o

    ato. Queria comete-lo s para si, sem

    testemunhas. Queria a partir de ento,

    rondar seus sentimentos e perceber quais

    as conseqncias de sua deciso de vida oumorte. Um corpo agora jazia no barro. No

    havia mais nada a fazer; tomara uma

    deciso, isto, uma deciso. Pronto, nada

    mais. No era o lugar e a ocasio para

    divagar; iria ento continuar seu trabalho.Mas quando foi espiar por cima da mureta,

    esta explodiu duas, trs vezes na altura do

    parapeito. Estava recebendo o troco, sem

    dvida. Caveira aninhou-se como pode

    J sabem que estamos aqui, o que d ser

    bom de mira! gritou. Agora a sensao deTito era do mais puro pnico. Pagaria por

    seu ato, pagaria o preo de sua deciso.

    Agora os marginais queriam a todo custo o

    atirador por detrs da mureta Veja o que

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    voc arrumou, porra! gritou Caveira,

    companheiro de trincheira que s queriadar tiros a esmo para no se complicar

    Sabe quando que vamos sair daqui?

    Tito tentava ficar calmo para avaliar a

    situao. A troca de tiros estava parelha e

    violenta. Tinha de achar uma maneira de

    sarem daquele local a qualquer custo, masnaquele momento no dava. Eram agora os

    alvos de alguns atiradores, se corressem de

    volta para a rua onde a viatura estava em

    segurana, seriam presas fceis. O cho era

    pura lama, o que dificultaria a agilidadedos movimentos. Sentiu que naquele

    momento ningum era de ningum, e

    espiar por sobre a mureta era arriscado;

    tinha de elaborar uma estratgia rpida.

    Enquanto isso, para surpresa sua, Caveira

    gritou: - Foda-se! No tenho o dia inteiro!E ainda quero comprar o presente de

    aniversrio do meu filho! ato contnuo,

    virou-se e comeou a atirar. Tito ento

    gritou: - No faa isso, pelo amor de Deus!

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    Abaixe-se, porra! segurou o colega pela

    ala do colete e comeou a puxar Caveira,que no gostou: - Que agora? Novato de

    merda! Tenho que consertar a merda que

    voc nos arrumou!

    - Voc vai cometer suicdio, seu filho da

    puta! Caveira ento caiu por cima deTito. Mas no da maneira que este queria.

    O rosto ensangentado e dilacerado

    ironicamente foi parar no colo do novato. A

    cabea parecia uma pedra lascada na qual

    miolos e sangue se misturavam surpresa

    ttrica do instante inesperado. Tito soltou

    um grito de puro pavor. Agarrado ao

    colega, gritava, fazia sinais para os demais.

    Quando conseguia falar, apenas gritava -

    Homem ferido! - dominado pelo pnico,

    esqueceu-se do perigo de morte querondava aquela mureta e saiu arrastando o

    policial pelo barro, deixando uma trilha

    sinistra de sangue e pedaos de crebro.

    Trs ou quatro homens com metralhadoras

    detonavam o local de onde partira os tiros,

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    enquanto davam guarida para que Tito

    socorresse ao colega, Nina se juntou a ele,em parceria com Caldas. Arrastaram

    Caveira e dobraram pela esquina, onde

    algumas ambulncias estavam de

    prontido. Os para-mdicos ento

    assumiram a situao, mas em seguida, se

    olharam e um meneou a cabea. Nina eTito ficaram abraados, manchados de

    sangue sob a chuva, enquanto o rapaz

    chorava e dizia insistentemente - A culpa

    foi minha!