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CAPITULO I Fabiana Eckhardt TRANÇA DE GENTE: EM BUSCA DO FIO- VOZ DA CRIANÇA NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação da Universidade Católica de Petrópolis como parte integrante dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Dra. Marisol Barenco de Mello Mestrado em Educação Universidade Católica de Petrópolis Petrópolis, setembro de 2006

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CAPITULO I

Fabiana Eckhardt

TRANÇA DE GENTE: EM BUSCA DO FIO- VOZ DA CRIANÇA NOPROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestradoem Educação da Universidade Católica dePetrópolis como parte integrante dos requisitospara obtenção do título de Mestre em Educação.

Orientadora: Profª. Dra. Marisol Barenco de Mello

Mestrado em EducaçãoUniversidade Católica de Petrópolis

Petrópolis, setembro de 2006

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Fabiana Eckhardt

TRANÇA DE GENTE: A BUSCA DO FIO- VOZ DA CRIANÇA NOPROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestradoem Educação da Universidade Católica dePetrópolis como parte integrante dos requisitospara obtenção do título de Mestre em Educação.

Aprovada em ____/_____/_____

Banca Examinadora

Profª Dra. Marisol Barenco de Mello

Profª Dra. Maria Celi Chaves Vasconcellos

Profª Dra. Lea Pinheiro Paixão

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DEDICATÓRIA:

Às crianças... sem distinção .

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AGRADECIMENTOS:

Neste caminhar tive o privilégio de estar com pessoas muito especiais...

Como agradecer, senão dizendo “OBRIGADA” :

Minha famíliaAnna Carolina- por “compartilhar tudo “ comigo

Bianca e Juliano - pelo incentivo

Luiz e Angela- pelo carinho, apoio e confiança, sempre...

Às instituiçõesAo Laboratório de Estudos sobre a relação família e escola

À coordenação e ao corpo docente do IEPIC

Meus amigos, incentivadores, solidários...Renata, Francisco, Luís Augusto, meus amigos de Mestrado

Nanci, por ouvir- me incansavelmente e sempre me encorajar ...

Cláudia, Rafael e Luis Filipe, sem vocês teria sido muito difícil...

Marisol, minha professora, minha colega de pesquisa, minha amiga, meu “ Sol”

acadêmico...

As crianças, o motivo disto...Marlon, Ana Caroline, Jayane,Thayane, Thaynara, Joseane, Jonathan, Janderson,

João Felipe, Orlando e Ana Flávia

Início e fim de tudo: Deus!

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“Trança de gente é diferente da trança que faz nocabelo das meninas. É uma trança que até pareceuma tatuagem invisível. Vai trançando os fios atéformar uma história que fica pra sempre dentro dagente”.

( Guilherme, 10 anos)

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RESUMO

Esta dissertação insere-se no campo dos estudos sobre o desenvolvimento moral

de crianças e busca investigar os processos de socialização vivenciados por elas

no contexto escolar. Para tal, busca os índices através dos quais possam ser

essas crianças tomadas como sujeitos de sua socialização, bem como a

possibilidade de se tomar o desenvolvimento moral dessas crianças para além do

entendimento da virtude da justiça como motor e ponto de chegada do

desenvolvimento. Apresenta os resultados obtidos através de pesquisa realizada

com crianças de classes populares, buscando compreender o processo de

socialização escolar na visão das crianças. Os dados foram coletados em três

etapas distintas e complementares: o primeiro um grupo focal; o segundo na

elaboração de um jogo enfocando as regras escolares e o terceiro no contexto de

uma entrevista com grupos menores, ocasião em que foi apresentado a cada um

destes um dilema moral. Os sujeitos desta pesquisa são onze crianças, entre oito

e quatorze anos, alunos do primeiro segmento do Ensino Fundamental de um

colégio estadual do município de Niterói, RJ. Os discursos das crianças permitiram

a análise da lógica infantil que nos revelou, a partir da visão da criança sobre o

processo de socialização, as lógicas socializadoras que o compõem. As

conclusões apresentadas nesta pesquisa apontam para a necessidade de uma

revisão nas teorias vigentes.

PALAVRAS- CHAVE: Processo de socialização, Criança, Desenvolvimento Moral.

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ABSTRACT

This dissertation is in the field of the studies about the moral development of

children and investigates the processes of socialization lived by them in the

school context. For such, it looks into the rates through wich these children can

be taken as subjects of their socialization, as wel as the possibility of taking the

moral development of these children beyond the understanding of the virtue of

justice as motor and start point of their development. It presents the results

obtained through research done on children of popular classes, trying to

understand the process of school socialization in the children’s vision. Data was

collected in three distinct and complementary stages: the first stage was a focal

group; the second was in the elaboration of game focusing school rules and the

third in the context of an interview with smaller groups, when a moral dilemma

was presented to each one of these groups. The subjects of this research are

eleven children, around eight and fourteen years old, pupils of the first segment

of the basic of a school in Niteroi, RJ. The children’s discourses allowed the

analysis of the infantile logic that revealed , from the child’s vision about the

socialization process, the socilalizing logic that composes it. The conclusions

presented in this research show the necessity of a revision in the force theories.

KEY WORDS: Process of socialization, child, moral development.

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I - SEGURANDO OS FIOS DA TRANÇA .......................................01

1.1 O Objeto ............................................................................................... 011.2 O Objetivo ............................................................................................ 031.3 Relevância ........................................................................................... 061.4 A metodologia ...................................................................................... 071.5 Estrutura do trabalho ............................................................................. 08

CAPÍTULO II – DISCUTINDO TEORIAS E SEPARANDO OS FIOS ..............10

2.1 A moralidade ......................................................................................... 112.1.1 Ética e Moral: conceitos sinônimos? ........................................ 11

2.1.1.2 Da moral à ética ou da ética à moral: a busca de umarelação entre a teoria e a prática ..............................................12

2.1.2 Moralidade: esfera pública e esfera privada .............................152.1.2.1 O que é uma virtude? ...................................................162.1.2.2 Personalidade Moral .....................................................20

2.1.3. Jean Piaget e a psicologia do desenvolvimento ........................232.1.3.1 Piaget: moral na perspectiva de desenvolvimento.................252.1.3.2 Uma restrição de moral .............................................................27

2.2 Socialização............................................................................................312.2.1 Durkheim: moral como processo de socialização......................32

2.2.1.1 Criança:sujeito ou objeto da moralização? .....................332.2.1.2 Escola : espaço moralizador............................................35

2.2.1.2.1 A forma escolar como forma legítima de

socialização ...........................................................36

2.3 Durkheim e Piaget :convergências e divergências sobre socialização.38

2.3.1 Homem autônomo X adulto normal ..........................................40

2.3.2 Uma breve discussão sobre a hegemonia da justiça................42

CAPÍTULO III – TRANÇANDO OS FIOS DA TEORIA AO UNIVERSO MORALDA CRIANÇA ........................................................................................................44

3.1 A definição de ser criança ............................................................................64

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3.1.1 A criança como aluno..................................................................... 64

3.1.2 Ser criança em distinção de ser adulto ........................................... 66

3.2 Relação entre famílias e escola ................................................................... 68

3.2.1 Confronto de relações na figura dos sujeitos................................. 70

3.2.1.1.As tarefas escolares como objeto na relação ................. 72

3.2.1.2 Regras da casa e da escola........ ................................74

3.2.1 Regras e limites ...............................................................................79

3.3 Família e escola: um olhar que se cruza........................................................82

3.3.1 Drogas e violência .................................................................87

3.3.2 Violência ao redor da escola ...............................................88

3.3.3 Violência fora da escola .........................................................89

3.3.4 Violência no IEPIC................................................................91

3.4 A visão infantil sobre autoridade ..................................................................93

3.4.1 Figuras de autoridade .............................................................94

3.4.2 Autoridade e afeto ...............................................................97

3.4.3 Autoridade e as regras ...........................................................99

3.4.4 Autoridade e sanções ...........................................................101

3.4.4.1 As punições de casa ..............................................101

3.4.4.2 As punições da escola ............................................104

3.5 Universo socializador da escola...................................................................107

3.5.1 Ações desejadas....................................................................108

3.5.2 Ações indesejadas..................................................................111

3.5.3Discussão infantil sobre ação e sanção ...............................113

3.6 O olhar das crianças sobre o mundo moral..................................................122

3.7 Para além das regras.....................................................................................123

CAPÍTULO IV – RETRANÇANDO A CRIANÇA : O SUJEITO SOCIAL...........144

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................148

ANEXO ................................................................................................................151

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SEGURANDO OS FIOS DA TRANÇA

“As palavras mais simples são as mais difíceis de ouvir.”(Larossa,1998)

1.1 O objeto

A complexidade do desenvolvimento humano faz-nos muitas vezes estudar,

pesquisar, falar sobre as crianças, mas ouvi-las em muitas situações ainda nos

parece um despropósito.

A criança, como nos ensinou Hannah Arendt, nos perturba como perturbou

ao homem antigo a descoberta do homem ameríndio. Ela é humana, mas não é

como nós, adultos civilizados, portadores de uma determinada racionalidade

naturalizada. No decurso da história, objetificamos, estudamos, ‘coisificamos‘,

analisamos a criança. Falamos sobre ela, mas pouco ou quase nunca falamos

com ela, pois permitir este diálogo seria reconhecê-la como sujeito, como um outro

legítimo.

Este outro é a novidade, é aquele que não compreende a nossa

racionalidade, não por incapacidade, mas por não crer tanto nela. Ele distorce as

nossas regras, ri das nossas tradições, exige um esforço civilizador, porque a

cada momento ameaça com sua novidade radical o nosso mundo instituído.

Socialização é o nome do processo pelo qual inserimos a criança no mundo

instituído, tornando-a parte constituinte deste e, mais, um herdeiro de nossas

tradições, de nosso patrimônio, de nossos valores, de nossa cultura.

Este trabalho é uma leitura da construção social da criança na escola, a

partir do ponto de vista deste sujeito.

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Como afirma Dubar (1997), o termo ‘socialização’foi utilizado de modo

polissêmico, e adquiriu conotações que muitas vezes levaram alguns sociólogos a

pensar em banir o termo do conjunto de estudos da Sociologia. Trabalhamos

nesta pesquisa com a perspectiva de Dubet (1997) que, ao afirmar as três funções

essenciais da escola – distribuição, educação e socialização-, define esta última

como sendo o desenvolvimento, na organização escolar, de um conjunto de

regras, exercícios, programas e relações pedagógicas que têm como fim a

interiorização, pelos sujeitos- alunos- das normas e atitudes que constroem as

disposições que o permitirão entrar na sociedade.

Vivemos em coletividade. No nosso cotidiano convivemos com diversas

situações de relação social, seja em casa ou no trabalho. Com a criança não é

diferente. Ao nos relacionarmos com os outros, freqüentemente podemos

perceber sentimentos morais: rancor, indignação, raiva, compaixão. Se

observarmos nossas falas, nelas constantemente encontraremos a presença de

juízos e valores que atribuímos às atitudes, às falas de outrem, o que nos leva

neste trabalho, além de investigar o processo de socialização na escola, ou seja,

como acontece esta “incorporação”do mundo instituído, procurar também o

comparecimento de sentimentos morais nestas relações sociais estabelecidas no

universo infantil.

Enfim, buscamos compreender como a criança se relaciona com esse

processo, o que sente e pensa essa criança ao ser submetida a inculcação de

valores, tradições, regras instituídas no espaço em que vive e qual a sua

contribuição neste. Como a criança percebe a escola, este espaço moralizador por

excelência, através das diversas situações de relação social que ali se

estabelecem: relação de autoridade, relação entre iguais, relação com as regras

existentes, as expectativas da instituição e das pessoas que a representam sobre

os seus comportamentos e os sentimentos morais que envolvem toda esta

situação?

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Como questão disparadora desta investigação, nos perguntamos: “Comopodemos tomar essa criança como sujeito da sua socialização?

O sujeito desta pesquisa é a criança da classe popular, aluna da escola

pública, que se vê no cruzamento de pontos de vistas diferentes sobre um mesmo

objetivo: a socialização. Temos a intenção de trazer a fala infantil sobre o

processo de socialização. Trazer a voz da criança, sujeito dessa socialização,

significa compreender como a criança interioriza os discursos do mundo adulto e

os reelabora. Enfim, trata-se de buscar a lógica da criança, que se insinua em seu

discurso.

1.2 O objetivo

“Vou te contar, teus olhos já não podem ver...”

(Tom Jobim)

No fim de 2001, terminando o curso de graduação em Pedagogia, com a

apresentação da monografia intitulada “TRANÇA DE GENTE: dramas morais na

infância”, percebi um trabalho inacabado, na verdade, um disparador para algo

maior e muito mais complexo: a necessidade de ouvir a voz da criança nos

processos de desenvolvimento moral e socialização.

Tendo iniciado a leitura de Piaget sobre o desenvolvimento moral, no inicio

de 2004, apresentei ao Programa de Mestrado um projeto de pesquisa no qual me

propunha a apontar algumas lacunas na pesquisa piagetiana sobre o tema em

questão. Pareceu a muitos, é claro, muita pretensão assinalar lacunas numa teoria

tão sensata, tão fechada e respeitada. No entanto ao ouvir a voz da criança, esta

nos fez suspeitar da possibilidade de carência em tal teoria .

Assim iniciei o trabalho de pesquisa, lendo e relendo Piaget, defensor do

interacionismo, e que sustenta a idéia da moralidade como parte integrante do

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desenvolvimento, no qual a criança evolui em estágios, partindo de um ponto

inicial com a finalidade de chegar à um determinado lugar, o lugar ideal. Embora

Piaget defenda que o desenvolvimento moral, assim como o cognitivo, é uma

construção do sujeito na interação com o mundo, ou seja, para ele o homem é

sujeito da sua aprendizagem, sua teoria sobre a moralidade a nós pareceu

insuficiente ao compararmos a criança tal como descrita por Piaget e as crianças

que conhecemos.

Buscamos nesta pesquisa nos apoiar em Yves de La Taille, psicólogo

piagetiano que apesar de defender a teoria de Jean Piaget sobre o

desenvolvimento moral, percebe e aponta lacunas existentes nesta pesquisa .

Dentre elas, levanta um conceito recente na psicologia moral que é o de

personalidade moral, que buscamos para compreender como o ser humano se

desenvolve moralmente nas relações interpessoais e na relação intrapessoal.

A partir dessa discussão, La Taille nos abre um outro caminho que é o de

apontar que nas teorias tradicionais há uma restrição da moralidade em uma

virtude: a justiça. Virtude esta privilegiada nos estudos piagetianos até por ser uma

tendência da época vivida pelo autor e mais, uma disposição ainda hoje

supervalorizada na sociedade atual: uma moralidade que garanta os direitos e

conseqüentemente atribua os deveres dos cidadãos.

No entanto, o trabalho realmente tomou forma ao me deparar com a

possibilidade de participar de uma pesquisa maior sobre socialização na escola,

na Universidade Federal Fluminense, onde encontrei outra voz que não a da

Psicologia do Desenvolvimento, mas sim a da Sociologia, apontando para este

lugar que é o social, o lugar onde nos fazemos seres morais.

Por isso, adentramos o campo da Sociologia, buscando primeiramente

compreender em Durkheim as intenções da socialização. Em Durkheim

encontramos a criança como um vir–a-ser, ou em outras palavras, alguém que

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não é e portanto, não pode sequer falar com propriedade. Para Durkheim, a

criança será um homem normal quando a socialização tiver sido levada a cabo.

Percebemos já a carência deste modelo de educação moral para responder a

questão que a nós se colocava.

No entanto, em Durkheim nos deparamos com a sociedade como aquela

que dita, que define as regras e normas sociais. Algo muito próximo do que

víamos na prática docente. Deste modo, desconsiderar seria um erro. Um lugar

que nos pareceu muito relevante para tal discussão, foi a Sociologia de Daniel

Thin, que muito contribuiu para compor este quadro teórico, juntamente com a

Psicologia do Desenvolvimento.

A partir dos conhecimentos que decorriam destas novas interações o

trabalho foi tomando um novo rumo. Desde então, algumas questões foram

elaboradas e são estas que pretendemos responder:

1. As crianças do Ensino Fundamental, na faixa etária entre 8 a 14 anos

podem ser consideradas sujeitos da sua socialização?

2 . Como essas crianças interpretam as ações socializadoras, expressas no

contexto escolar sobre a forma de regras, e como agem e reagem ao

conjunto destas ações?

3. Que virtudes morais as crianças demonstram compreender através de

sentimentos morais apontados na relação social quando esta não envolve

expectativas da autoridade encarnada?

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1.3 Relevância

Falar de socialização é falar de interação. É ver a possibilidade da relação

entre pessoas. Algo que ocorre tão espontaneamente que pode nos parecer muito

habitual, tanto que na maioria das vezes, sequer pensamos sobre isto,

simplesmente agimos, como se fosse algo natural. Não é natural. É algo do que

nos apropriamos. É algo já automatizado em nosso comportamento. Toda moral é

constituída num tempo e num espaço e se hoje é assim que ela se apresenta, não

é mera eventualidade. Esta forma de viver e de se relacionar foi construída a partir

de um modelo determinado .

Que modelo de moralidade, de socialização é este ao qual aspiramos ? Ao

nos perguntarmos sobre isto, estamos levantando a possibilidade de

questionamento sobre a legitimidade deste modelo. Todo modelo é político. A

escola trabalha com modelos, a sociedade segue um padrão que não é neutro, e

nesse nosso contexto social e histórico é excludente. Fecharmos os olhos para a

existência de tal protótipo é permitir que este nos atravesse e sem percebermos

tornamo-nos seus aliados. Levantar questionamentos sobre este modelo instituído

foi um dos fatores que justificou este trabalho.

Nos perguntamos se há possibilidade de se falar deste processo sem ouvir

a voz do sujeito a quem estamos nos reportando, neste caso, a criança. Na

escola, freqüentemente falamos da criança com os professores, com os

responsáveis, enfim, falamos dela, porém pouco falamos com ela. Ou pelo menos,

pouco consideramos o que dela ouvimos. Ora, não é ela o sujeito,que segundo

Piaget está construindo sua socialização ? Como podemos então, ignorar suas

concepções sobre o assunto?

Estabelecer diálogos com as crianças na escola, considerando-as sujeitos

de sua formação, é ao mesmo tempo simples e um enorme desafio. É a intenção

deste trabalho colocar o discurso da criança num patamar de seriedade e validade

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dialogando com as vozes consideradas legítimas no que diz respeito ao processo

de socialização infantil.

1.4 A metodologia

Os sujeitos participantes desta pesquisa são alunos de um colégio da rede

estadual de ensino do município de Niterói, estado do Rio de Janeiro, que atende a

crianças e jovens de classes populares, provenientes na sua maioria, de acordo

com os dados cedidos pelas coordenadoras pedagógicas desta instituição em

setembro de 2005, do Morro do Ingá, também conhecido como Morro do Palácio e

do Morro do Estado.

A escolha desses alunos foi realizada a partir de uma ficha elaborada em

outra parte da pesquisa maior, na qual nos inserimos, quando foi solicitado às

professoras que indicassem dois alunos: um bom aluno e um “mau”. A partir desta

indicação, retornamos à escola com o intuito de solicitarmos a autorização da

família para a participação da criança em nossa pesquisa, bem como compreender

os critérios utilizados pelas professoras para indicarem tais alunos denominando-os

como bons ou “maus” alunos.

A coleta de dados foi realizada em três momentos distintos e

complementares: o primeiro através da realização de um grupo focal constituído

por 11 crianças e três adultos, com a intenção de se fazer emergir questões sobre

como a criança se percebe no processo de socialização, diferenciando-se dos

adultos e apontando a distinção por elas apreendidas entre o papel da família e da

escola neste processo, e por fim, a compreensão que tinham sobre as regras .

O segundo através de um jogo de trilha com o objetivo de investigar a

compreensão das regras escolares, convidamos as crianças a elaborarem as

regras do jogo de acordo com as regras escolares, bem como as ações para

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punição ou recompensa para as pessoas que transgredissem ou obedecessem

tais regras.

E finalmente, a partir da análise dos dois primeiros encontros, organizamos

uma entrevista (roteiro em anexo) realizada individualmente ou em pequenos

grupos com o intuito de aprofundar as questões que a nós se fizeram relevantes e

que junto às demais tarefas nos forneceu a base das categorias de análise deste

trabalho: 1) A definição de ser criança; 2) Relações entre famílias e escola;

3)Família e escola: um olhar que se cruza; 4) A visão infantil sobre autoridade ;

5) Universo socializador da escola; 6) O olhar da criança sobre o mundo moral.

1.5 A Estrutura do Trabalho

Esta pesquisa procura trabalhar de forma a compreender o espaço da

criança no processo de socialização escolar e está dividida em quatro capítulos. O

primeiro, intitulado “Segurando os fios da trança” compõe-se de cinco tópicos que

tratam das questões introdutórias sobre o objeto de estudo, traça o contorno do

trabalho com intenção de apresentar a questão norteadora da pesquisa: “Como

podemos tomar a criança como sujeito da sua socialização ?”; os objetivos da

pesquisa ; a relevância, que se encontra na compreensão da fala infantil como fala

legítima e de autoridade, bem como na necessidade de se repensar a prática

escolar sobre socialização tendo em vista o modelo social instituído; Por fim a

metodologia, onde abordou- se como, onde, quando, com quem e porque a

pesquisa de campo foi realizada .

O segundo capítulo, “Discutindo teorias e separando os fios”, tem como

objetivo apresentar a perspectiva clássica do desenvolvimento moral, postulada

por Jean Piaget e a continuidade dos trabalhos por Yves de La Taille, definindo os

conceitos de ética e moral assim como serão compreendidos no trabalho, bem

como esclarecendo a moralidade como composta de uma esfera pública e outra

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privada, trazendo a tona uma breve discussão sobre virtudes morais, levando- nos

ao conceito ainda recente no campo da psicologia moral, de personalidade moral,

por perceber a necessidade de se falar da restrição da moralidade a uma única

virtude: a justiça.

No que se refere à socialização, trazemos Durkheim, apresentando o lugar

da criança dentro de sua tese, o papel da escola e a forma escolar de

moralização. Buscando finalmente traçar um paralelo entre essas duas formas de

socializar apresentamos pontos de convergência e divergência entre esses dois

estudiosos da moralidade, este processo que para Piaget se finaliza na construção

do homem autônomo e para Durkheim na constituição do adulto normal.

O terceiro capítulo “Trançando os fios da teoria ao universo moral da

criança ”retoma a discussão metodológica, trazendo o discurso da criança- sujeito

desta pesquisa sobre a socialização escolar, a sua percepção sobre as regras

desta instituição, a dimensão individual do olhar dessas crianças e os sentimentos

morais constituintes deste processo de socialização.

O quarto capítulo “Retrançando a criança: o sujeito social”, traz de forma

não conclusiva, questões em torno do processo de socialização e

desenvolvimento moral, bem como algumas considerações finais do assunto,

recomendando um estudo maior do processo de socialização e a discussão sobre

o lugar deste na formação do professor.

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CAPÍTULO II

DISCUTINDO TEORIAS E SEPARANDO OS FIOS

“El camino se hace al andar”(Antônio Machado)

Que caminho seguir na busca da compreensão do processo de socialização

infantil? Uma pergunta difícil de se responder, mas que nos levou a escolher um

atalho localizado entre a trilha da Psicologia do Desenvolvimento e a vereda da

Sociologia. Onde encontramos uma longa alameda na qual recebemos ares de um

e outro caminho.

Escolher um ou outro caminho do saber seria pouco diante da riqueza

contida nas falas dos sujeitos de nossa pesquisa. Por isso, optamos por levantar

uma discussão entre o desenvolvimento moral no ponto de vista de Jean Piaget,

ampliado por seus sucessores, e a socialização sob a ótica de Durkheim, bem

como a leitura de autores contemporâneos sobre o assunto. Não

escolher,portanto, um ou outro campo do saber, mas trabalhar com a conexão

destes justifica-se por acreditarmos na construção da moralidade/socialização do

sujeito atrelada à cultura, às tradições, aos valores, enfim, não somente no plano

da relação interpessoal, como na relação intrapessoal.

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2.1 A Moralidade

Um assunto constante no nosso cotidiano seja em nossas casas, nas

escolas, nas rodas de discussão, seja na sala dos professores ou na sala de aula,

diz respeito a questões éticas. Além do que em nossas falas, independente do

assunto em pauta, freqüentemente podemos percebê-las, recheadas de juízos e

valores.

De acordo com Tugendhat (2000),“[...] tanto no âmbito das relações humanas quanto no político,constantemente julgamos de forma moral. No que diz respeitoàs relações humanas, basta observar que em um grandeespaço na discussão entre amigos, na família ou no trabalhoabrangem aqueles sentimentos que pressupõem juízos morais:rancor e indignação, sentimentos de culpa e vergonha [...]” (p.12)

Assim, percebemos o homem como um ser moral que não apenas se

preocupa naturalmente com a apreciação do outro, com a avaliação dos outros,

juízos estes realizados a partir de valores e princípios, como avalia

constantemente as atitudes, os comportamentos, as falas de outrem.

Fala- se em ética na política, na relação de trabalho, na relação familiar...

Fala- se em imoralidades, na importância de se zelar pela moral... Mas o que é

ética? O que é moral? Ética e moral são conceitos sinônimos?

2.1.1 Ética e Moral: conceitos sinônimos?

Para iniciarmos a busca do real significado dos termos em questão,

consultamos a etimologia das palavras: ética, do grego ethos designa os

costumes, o comportamento, as regras. Moral, do latim more, se refere à

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normatização das condutas humanas. Ambos indicam um tipo de comportamento

próprio do ser humano, que é adquirido ou conquistado, por isso, muitos autores

não distinguem um termo do outro. Por outro lado, há um grupo de estudiosos

sobre o assunto, que percebem aspectos relevantes que justificam a distinção

entre os termos.

Segundo Agostini (2001),“aqueles que utilizam a contribuição dos filósofos modernos nosafirmam que a ética se ocupa dos fundamentos da moral. Aqui aprópria intenção ética seria anterior à noção de lei moral. Nestecaso, a ética teria um caráter mais reflexivo e a moral umcaráter mais prático. Por isso, tem- se atribuído à ética o papelde investigar os valores e as normas e, sempre que necessário,depurá-los para que não fiquem caducos e se percam numa‘quadratura’qualquer.” (p.40)

Baseados nas contribuições de estudiosos sobre a questão, moral ou ética,

neste trabalho, trataremos os termos acima citados não como conceitos

sinônimos. Daremos à ética um sentido mais reflexivo, mais teórico e à moral, um

sentido mais prático, normativo.

2.1.1.2 Da moral à ética ou da ética à moral: a busca de uma relação entre ateoria e a prática

Uma possível definição que procura diferenciar os termos, encontramos em

La Taille (2002 b), “a moral refere-se às leis que normatizam as condutas

humanas, e a ética corresponde aos ideais que dão sentido à vida” (p.69). Dessa

forma, à ética atribuiríamos a reflexão do fazer, tendo em vista um fim, enquanto

que à moral seria o como fazer para alcançarmos tal fim. Poderíamos dizer que a

ética seria teórica e a moral prática. Sendo assim, seriam conceitos indissociáveis,

mas não unívocos.

O mesmo autor (2006), para definir os termos, atenta para a necessidade

de em ambos os casos, analisá-los separadamente na forma e no conteúdo. No

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caso da moral, chamaríamos de forma - os deveres, ou seja, “o corpo da lei”, uma

silhueta, a tentativa de transformar concretamente a idéia. De conteúdo -os

valores, ou seja, “o espírito da lei”, o teor, a substância que sustenta este corpo. E

em se tratando do termo ética, a forma, seria a significação do valor da vida. E o

conteúdo, as respostas que encontramos ao nos perguntar sobre tal significado ou

valor. Quando falamos em significado do valor da vida, estamos nos referindo a

uma vida de valor, uma vida boa, utilizando as palavras de La Taille, uma vida

“que vale a pena ser vivida”. E a resposta que encontraremos ao nos

perguntarmos sobre que vida é essa, que significado ou valor estamos buscando,

é bem certo de nos depararmos com um tema clássico da filosofia: a “felicidade”.

Ou seja, ao tentarmos compreender ética como a busca da felicidade,

estamos retornando ao ideal de ética aristotélico. Ao homem que busca uma vida

expressiva, uma vida boa. Mas, que seja boa para ele e para as outras pessoas.

Assim, é claro que só podemos classificar como éticas as respostas que sejam

coerentes com a moral. Aqui, parece- nos haver um paradoxo, se é a ética a

reflexão sobre a moral, como só podemos qualificar a ética se esta estiver de

acordo com a moral? Na verdade, não é um contra-senso, mas sim o resultado

que demonstra a interligação de um conceito ao outro, ou como já dito antes, a

indissociabilidade dos conceitos.

Percebemos que enquanto forma - a moral está pautada: nos deveres, nas

regras, o que “pode”, e o que “não pode”. Afinal, à moral está incutida a garantia

de uma vida em sociedade. “Se todos os homens e todas as mulheres

concordassem com um só conjunto de deveres, forma e conteúdo seriam

indissociáveis” (ibidem, p. 10), mas não o são. Porém, sabemos que nos é

possível identificar valores morais, ditos universais. Valores estes que nos

garantem uma estrutura social. Pode parecer muito natural que entre os seres

humanos haja uma lei que proíba matar o próximo, mas nem sempre foi assim, na

verdade esta entre outras, foram leis conquistadas pela humanidade à medida que

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a mesma ia percebendo sua necessidade. E sobre elas, fundamos a sociedade na

qual vivemos. Nelas confiamos a harmonia societária.

Para La Taille (ibidem), quando nos deparamos com a pergunta “como

viver?” ou seja, o plano da moral, outra se faz necessária, uma pergunta

“relacionada à construção da personalidade: quem eu quero ser?” (p.69).

Seguindo o entendimento do autor, a pergunta como viver?, nos levaria à

elaboração de regras e então, uma nova pergunta poderia surgir: como agir?,

compreendemos assim ética e moral num relacionamento dialético, onde há uma

troca constante dos fundamentos da reflexão com a validade das regras práticas,

não sendo uma subestimada à outra.

Nos permitimos concluir que apesar da ética englobar a moral, esta é

preciso ser levada em conta, pois é ela que retrata de certa forma o consenso

social. O filósofo alemão Imanuel Kant, em seus estudos de filosofia moral nos diz

que devemos sempre agir de maneira que a nossa ação possa se transformar

numa máxima universal. Pedro- Silva (2006), do lugar da psicologia diz que,

“apesar de complementares, todavia, está claro que a ética devesubordinar-se à moral. Em outras palavras, nas decisões queenvolvem o outro deve prevalecer o conjunto de regras e valoresligados à dimensão pública, em detrimento dos mais afeitos àesfera privada. Por exemplo, entre optar por preservar a amizadeou ser justo, deve prevalecer este último valor. Se não for assim,estar-se-á condenando toda a sociedade ao seu desaparecimentoe, em decorrência, o próprio sentimento de amizade.” (p. 59)

Concordamos com o autor no que toca a relação moral – ética, pensarmos

nos ideais, deixando de lado as leis, regras estas que foram elaboradas dentro de

um tempo e lugar, seria no mínimo sem sentido, porém não concordamos com

este quando diz que a ética deve subordinar-se à moral, pois estaríamos

reduzindo a “moralidade”a um conjunto de normas que devem ser respeitadas

para que se garanta os direitos de todos. Todavia nos perguntamos, será possível

abreviar a moralidade a direitos e deveres? Ou pelo menos subordiná-la ao senso

de justiça?

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Enfim, neste trabalho utilizaremos a perspectiva de La Taille no que diz

respeito aos conceitos ética e moral, de maneira a compreendê-los não como

sinônimos, mas como interdependentes quando o que está em questão é o

processo de construção da moralidade/ socialização. Compreendendo que a moral

por ser normativa, por pretender traduzir- se em regras e leis, torna-se mais

abrangente no que se refere ao público e a ética por ser mais ampla, mais

reflexiva, torna- se mais individual. Aqui não nos cabe, portanto, escolher um ou

outro conceito, mas diferenciá-los com a intenção de demonstrar sua

complementaridade.

2.1.2 Moralidade: esfera pública e esfera privada

Pedro-Silva, na citação anterior, faz referência a valores ligados à dimensão

pública (conjunto de regras- morais) e outros da esfera privada, no caso, a

amizade. E então, nos perguntamos: quais são os valores ligados a dimensão

pública? Segundo o autor, seriam aqueles que dizem respeito ao conjunto de

regras, ou seja, aqueles que visam garantir a vida em sociedade. Entendemos

então, que estamos falando dos direitos e deveres, ou em uma palavra, da virtude

justiça.

E quais seriam então os valores relacionados à esfera privada? Seriam

aqueles que não podem ser traduzidos em direitos e deveres. Ora, ao pensarmos

na moralidade como sendo constituída pela vida em sociedade, compreendemos o

império da justiça. É ela que garante a eqüidade. No entanto, a constituição moral

do sujeito não se restringe apenas no relacionamento interpessoal, abarca

também o desenvolvimento da vida intrapessoal. É fácil compreender que o meu

direito corresponda a um dever do outro e vice-versa. No entanto, como tornar

claro, ou mesmo traduzir racionalmente outras virtudes como, por exemplo, a

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generosidade ? Posso ser generoso, posso até impor-me isto como dever, mas

não posso exigir do outro que o seja.

Não nos interessa aqui, atribuir uma hierarquia entre as virtudes, mas

colocar em discussão o império da justiça. Desde Aristóteles a virtude justiça vive

a supremacia. Segundo ele, a justiça era vista como a”virtude completa”. (200,

p.105)

2.1.2.1 O que é uma virtude?

Segundo La Taille (2002 b), “no seu sentido mais geral, virtude confunde-

se com ‘função’. Pode-se dizer que a virtude da faca é cortar, que a do olho é

olhar, e assim por diante.” (p.82). Para Comte-Sponville,(1999), “é uma força que

age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma planta e de um remédio, que é

tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é querer e agir

humanamente.” (p. 2). Sabendo pois, que ambos buscaram tal fundamento em

Aristóteles, nos reportamos ao mesmo que diz que a virtude é uma disposição,

mas nos alerta que

“não basta definir a virtude como uma disposição; cumpre-nosdizer que espécie de disposição é ela. Devemos observar quetoda virtude ou excelência não apenas põe em boa condição acoisa a que dá excelência, como também faz com que a funçãodessa coisa seja bem desempenhada.“ (2001, p.47)

Enfim, a virtude é uma disposição para desempenhar bem a sua função.

No caso da faca cortar bem, no caso de um remédio curar a doença. No entanto,

aqui nos interessa a compreensão de uma definição de virtude bem mais restrita,

que diz respeito ao homem. Qual é a função, a virtude, a excelência própria do

homem? Poderíamos dizer que seria desempenhar bem sua humanidade? Não

nos é estranho em nossas conversas do dia-a-dia, ouvir apreciações relativas à

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falta de respeito, ou falta de solidariedade, generosidade, etc., do tipo: isto é

desumano! Este homem agiu como um animal! “Aristóteles respondia que é o que

o distingue dos animais, ou seja, a vida racional. Mas a razão não basta: também

é necessário o desejo, a educação, o hábito, a memória...” (Comte-Sponville,

1999, p.3)

Concordamos com Comte-Sponville que não basta ser racional para

determinar nossas ações de forma a desempenhar bem a “função” de ser humano.

O autor (ibidem), em outro momento da discussão sobre as virtudes apresenta esta

consideração que a nosso ver se faz pertinente:

“na maioria dos casos, sabemos muito bem o que deveríamosfazer ou o que faríamos se fôssemos santos ou heróis. Mas nãoousamos. Não o queremos. Não é o julgamento que faz falta, éa coragem, a generosidade”. (p. 212)

Comte-Sponville, na citação acima nos diz que não basta agir de acordo

com a razão. Nossas ações estão atreladas a uma série de fatores que

influenciam nossas decisões: o desejo, a vontade de agir, a educação, os valores

apresentados ao indivíduo ao longo de sua vida, a expectativa dos outros que nos

são caros em relação à nossas atitudes... O próprio Aristóteles nos diz que não é

“nem por natureza nem contrariamente à natureza que asvirtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a naturezanos dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade seaperfeiçoa com o hábito.” (2001,p.40)

Que hábito é esse? É o exercício. E por que exercitamos algo? Para

aprender, para aperfeiçoar. Como exercitamos as virtudes? Na relação com o

mundo, com o outro. A virtude pode ser vista como uma maneira de ser, mas

adquirida e duradoura, é o que somos e o que podemos ser. Nos tornamos

virtuosos à medida que assim o somos.

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“Toda virtude é, pois, histórica, como toda a humanidade, eambas, no homem virtuoso, sempre coincidem: a virtude de umhomem é o que o faz humano, ou antes, é o poder específicoque tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, suahumanidade (no sentido normativo da palavra).” (Comte-Sponville, 1999 p. 3)

Comte-Sponville em seu livro “Pequeno Tratado das Grandes

Virtudes”elencou um grupo de virtudes para serem abordadas, e com a

preocupação de não hierarquizar, nem mesmo desprezar ou enaltecer as virtudes

morais nos diz como procedeu na escolha destas.

“Eliminei as que poderiam ser redundantes em relação a algumaoutra (por exemplo, bondade e generosidade, ou honestidade ejustiça) e, em geral, todas as que não me pareceu indispensáveltratar. Restaram dezoito, isto é, muito mais do que eu pensarade início, mas não consegui suprimir mais”. (ibidem, p.4)

E quanto a nossa escolha, esta se deu no campo de pesquisa. Vamos

neste trabalho refletir sobre a fidelidade, a generosidade e a gratidão, por terem

emergido nas falas dos sujeitos desta pesquisa.

Dando continuidade ao raciocínio até aqui exposto, explicitaremos as razões

que levaram Yves de La Taille, a pensar moral e ética deste modo, relacionando a

moral “com a busca da harmonia social e a ética com a busca da harmonia

individual ou de alguma forma de felicidade.” (2002 b, p.59)

Percorrendo os caminhos da psicologia, La Taille, cita em primeiro lugar

Sigmund Freud (1922/1991), ao apresentar a hipótese da psique humana dividida

em três instâncias: O Id (inconsciente), o Ego (lugar da consciência) e o Superego,

também denominado Ideal de Ego (responsável pelas exigências morais) e neste

momento, a instância que nos interessa.

“O que é notável na hipótese de Freud é que ele foi levado a dardois nomes à instância responsável pela moral. O Superego é olugar psíquico onde residem as exigências da Lei. Freud até

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compara seus efeitos ao imperativo categórico de Kant. E oideal de Ego, como seu nome indica, é o lugar psíquico onderesidem os ideais. [...] Penso que, se Freud sentiu anecessidade de dar dois nomes a uma mesma instância, éporque precisava dar conta tanto dos deveres quanto dosideais. Em nossos termos, moral corresponde a Superego, eética, ao Ideal de Ego. É verdade que, em Freud, pelo menosaté onde posso analisar, as duas funções (lei e ideal) podemmanter uma certa independência.[...] Neste sentido, não pensoque seja correto dizer que para Freud, o Ideal do Ego englobe oSuperego. Todavia, é possível afirmar que, para Jean Piaget,este é o caso. “ (La Taille, 2002 b, p.71)

Embora tal conclusão não possa ser encontrada em Freud, isto não a

invalida, uma vez que a intenção do autor é demonstrar a complexidade da

instância moral. Porém, o mesmo ressalta a possibilidade de encontrar na teoria

piagetiana certa complementaridade entre ética e moral, da maneira como

estamos tratando destes conceitos neste trabalho.

Jean Piaget, autor que fundamenta grande parte desta pesquisa, no seu

livro intitulado “O juízo moral na criança”, um dos mais importantes referenciais

sobre o desenvolvimento moral, nos aponta para existência de “duas morais”, a

“moral da coação”, também denominada heteronomia e a “moral da cooperação”,

que podemos denominar autonomia. Sendo a segunda, a superação da primeira.

La Taille, baseado em Piaget, define a heteronomia como

“a moral da obediência (à autoridade), da regra, do dever. Nela,aquilo que é imposto, aquilo que aparece como devercorresponde ao Bem. Na moral autônoma, é o contrário que severifica: é da noção de Bem, logo de um valor desejável, de umideal, que são derivados os deveres. Na heteronomia, aobediência à lei é toda a moral, é seu fundamento. Naautonomia, não somente tal obediência é apenas parte da moralcomo deixa de ser seu fundamento, que passa a ser areciprocidade,o contrato, o projeto comum”. (2006, p.71)

Enfim, assim compreendendo os termos: ética (ideais) e moral (leis),

concordamos com La Taille, ao dizer que em Piaget, o ideal englobaria as leis.

Afinal,

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“na heteronomia, o império é o da Lei, na autonomia é o doBem, que representa um ideal. Como se vê, na teoriapiagetiana, as dimensões moral (leis) e ética (ideais) estãopresentes (embora com outros nomes), e relacionam- se entresi, a ética acabando por inspirar a moral. (ibidem, p.72)”

La Taille explica as “duas morais”da teoria piagetiana dizendo que,“a moral heterônoma acaba por ter menos força motivacional,porque seus valores permanecem exteriores ou poucosintegrados ao Eu, e na moral autônoma ocorre exatamente ocontrário: os ideais penetram o Eu, inspiram seus projetos eações decorrentes e, logo, dão sentido à obediência a certasleis coerentes com os referidos ideais. (ibidem, p72)

Para melhor esclarecer a moral da autonomia, faz referência à Piaget que

diz que a pessoa autônoma tem medo de decair perante os olhos da pessoa

respeitada e ressalta aqui a questão da ética: “que vida quero viver?”, neste

momento surge a possibilidade de uma nova pergunta: “quem sou eu?”, pergunta

esta que remete a um outro conceito que vem sendo ainda explorado no campo

da psicologia: o de “personalidade moral”.

2.1.2.2 Personalidade Moral

Na possibilidade de ver dialogar a moral e a ética, mais que isso, ver a

complementaridade possível entre esses dois conceitos, que poderíamos dizer,

garante a união do ideal e do real, surge o conceito personalidade moral que vem

sendo estudado no campo da psicologia. La Taille (2002 a ) o defende ao pensar

que

“a moral deve ser vista não somente como o conjunto de regrase deveres, mas também como referenciada na busca dafelicidade, de uma “vida boa”, e sendo a “vida boa”um conjuntode valores e aspirações, o Eu forçosamente comparece.” (p.34)

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Para melhor explicar este conceito o autor o define como o “conjunto de

representações de si”. Tais representações são conceitos, idéias sempre

valorativas (positivas ou negativas) que o sujeito possui de si e que são parte

integrante da moralidade. O que são os valores senão um investimento afetivo que

dedicamos ao objeto (no sentido piagetiano da palavra)? Neste trabalho nos

permitimos não adentrar no campo dos valores, no entanto, embora esta não seja

a discussão em questão, ela existe e no nosso entender é parte integrante e

fundamental para compreensão da moralidade, o que nos faz, apesar de não

discuti-la levar em conta sua existência, e sua importância no assunto.

La Taille (ibidem), ao falar de personalidade moral, deixa claro que apesar

da discussão em relação à expressão ser algo relativamente novo no campo da

psicologia, a idéia não o é. Se buscarmos mesmo na filosofia clássica,

perceberemos em Aristóteles a idéia de ética associada à busca da felicidade, “à

arte de viver”. Na psicologia, “a teoria freudiana explica o agir moral e o pensar

éticos através de conceitos que dizem respeito à personalidade [...] Piaget

emprega a expressão ‘personalidade’para explicar a força motivacional da moral

autônoma”. (p72)

Ora, se o ponto idealizado, o objetivo final do desenvolvimento da

moralidade é o sujeito autônomo, aquele capaz de se auto-regular, que se faz co-

autor das regras morais, não vemos a possibilidade de não se levar em conta o

Eu. Sabemos da grande fragilidade que o conceito personalidade nos expõe, mas

tal idéia neste trabalho será discutida à luz principalmente das reflexões feitas por

Yves de La Taille, tentando restringir assim o campo que trata deste assunto.

Na busca de compreender o Eu, segundo La Taille (ibidem), “um dos

aspectos essenciais é o seguinte: o Eu é sempre assimilado de valor. Dito de

outra maneira, ninguém é ‘cientista de si mesmo’, portanto neutro e frio

observador”. (p. 60)

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Concordamos com o autor quando pensamos que a consciência que cada

indivíduo faz de si, implica na interferência do auto- julgamento. Como ser neutro,

quando o objeto avaliado sou Eu? Falamos aqui de auto-avaliação. Nos parece

difícil separar nossos valores, que são os critérios com os quais avaliamos, do Eu.

Afinal o nosso Eu, não se constrói na busca de realizar nossos ideais, que seriam

fundamentados a partir dos nossos valores?

La Taille (2002a), nos diz que

“conhecer-se implica necessariamente julgar-se. Ora o vínculoentre as representações de si e a moral está justamente nestefato: a gênese daquilo que chamamos ‘personalidade moral’seráaquela do lugar que os valores morais ocuparão nasrepresentações de si.” (p.61)

Entretanto, nos perguntamos: e esses valores, como são selecionados

pelos sujeitos? Afinal, sendo os valores subjetivos, não percebemos a

possibilidade de ver uns priorizando- se aos outros por mera tendência natural. Se

o Eu, pode ser entendido como o conjunto de representações valorativas que o

indivíduo faz de si, nos falta pensar sobre: de onde vêm tais valores? Poderíamos

pensar que tal seleção seria natural?

Baseados em La Taille, diremos que o auto-julgamento está interligado ao

julgamento alheio. Sendo assim, a representação de si dependeria do olhar do

outro, do julgamento que fazem de nós, o que o outro diz e pensa sobre nós é de

extrema importância na construção do nosso auto-julgamento.

“Embora não sejam causa exclusiva da construção dasrepresentações de si, os olhares e juízos alheios desempenhamum papel fundamental. Uma vez que participam, com outrosfatores, da construção dos valores associados àsrepresentações de si, tais juízos não encontram uma “páginaem branco”sobre a qual escrevem e impõem, sem mais, suasaprovações e censuras. Antes, trata- se de um embate entre asimagens que o indivíduo tem de si e olhares judicativosalheios..” (ibidem, p.71)

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Novamente nos deparamos com a complementaridade, com a

indissociabilidade no que tange à moral: o auto julgamento e o julgamento alheio.

Seria possível então, dizer que no campo da moral vemos dialogar

constantemente as polaridades da questão? Ética e Moral, Teoria e Prática,

Autonomia e Heteronomia, Auto-julgamento e Julgamento alheio, Racionalidade e

Afetividade?

2.1.3 Jean Piaget e a psicologia do desenvolvimento

Jean Piaget (1896 – 1980), biólogo de formação, buscou inspiração na

Biologia para formular sua teoria do conhecimento. Embora sua preocupação

fosse filosófica, encontrou na psicologia uma maneira científica de responder às

suas inquietações. Seu principal objetivo foi o de explicar como é possível ao

homem alcançar o conhecimento necessário e universal. Para tanto, não tratou do

homem como sujeito psicológico (único, portador de uma história, de um lugar

específico...), mas sim do sujeito epistêmico (sujeito ideal e universal).Defendia a

idéia de desenvolvimento tanto no âmbito intelectual, como afetivo e moral/ social.

Piaget amparava a idéia do conhecimento como resultado de uma atividade

do organismo, tese esta influenciada também pela leitura da obra L’evolution

créatice (A evolução criadora) de Bérgson, na qual o autor defende a idéia do

organismo como responsável pelo seu próprio desenvolvimento, ou seja, o

organismo provendo a necessidade, como uma força natural de se transformar, de

mudar, de evoluir.

Tal concepção biológica de evolução surge no cenário filosófico muito

anterior a Bérgson, que

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“propõe o restabelecimento da velha ciência aristotélica dosgêneros baseada não em uma ordem mortalmente matemática,mas uma ordem da existência vital que se funda em um élan vital,um impulso emanado da vida ela mesma e caracterizado pelatransformação e mudança -, em uma palavra, o desenvolvimento “(Vonèche, 1997,p.23)

No entanto, foi na sociedade industrial que tal concepção foi sistematizada,

contrapondo as doutrinas criacionistas, que buscavam explicar que cada uma das

espécies de seres vivos foi criada por Deus no momento da criação do mundo, da

forma como ainda se apresentam nos dias atuais. Tal concepção perdurara por

longo tempo, mas neste momento da história não davam conta de responder às

mudanças que estavam ocorrendo.

Nesse contexto foram sendo estabelecidos conceitos como: o de

organismo, de ambiente e do processo de interação entre os dois, o qual podemos

traduzir em adaptação. Conceitos estes, da biologia evolutiva e que foram

herdados pela psicologia funcionalista. Piaget, adepto da psicologia funcionalista,

utilizou a criança como campo de pesquisa, por amparar a idéia de que um bom

caminho para compreender a construção do pensamento era através do estudo de

sua gênese – a epistemologia genética. Considerando a história como laboratório

do epistemólogo genético, viu na criança a possibilidade de perceber a evolução e

o desenvolvimento do pensamento humano.

“[...] no que se refere aos caracteres intelectuais, o homem explicaa criança ou a criança explica o homem?O problema já foi levantado por J. M. Baldwin (posteriormente porFreud, mas apenas no terreno da afetividade). Segundo opsicólogo americano, os caracteres gerais do desenvolvimentomental da criança explicam muitas reações próprias dos adultos‘primitivos’ e mesmo civilizados, porque a criança é anterior ao‘primitivo’(no sentido sociológico e muito inexato do termo) emesmo ao homem pré- histórico. De nossa parte, sustentamosum ponto de vista análogo, que nos parece de grande importânciana gênese das estruturas lógico- matemáticas mais elementares emais essenciais.”

(Piaget, 2000, p. 101)

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Como citado por Piaget, James Mark Baldwin (1861-1934) atuou tanto na

Psicologia como na Biologia. Na Psicologia foi responsável pela implantação de

laboratórios em Universidades da América do Norte através dos quais deu início

ao campo da psicologia do desenvolvimento.

Segundo Vonèche (1997),

“Baldwin queria mostrar como os processos psicológicospenetram a forma relativamente indiferenciada da experiênciaprimitiva para construir estruturas diferenciadas que poderiamser ordenadas em uma seqüência de desenvolvimento” (p. 25).

Utilizou a evolução para explicar como aspectos originários da filogênese

(evolução da espécie) se repetia no desenvolvimento do indivíduo (ontogênese).

Ao falar de desenvolvimento, Piaget os separa em três tipos: cognitivo,

moral e afetivo. Tal separação serve somente para compreensão, pois a tríade

forma uma totalidade auto- organizada. São interdependentes, um promovendo o

outro.

2.1.3.1 Piaget: moral na perspectiva de desenvolvimento

No percurso à procura da apreensão do pensamento do autor, encontramos

o jovem Piaget, preocupado em enfrentar o conflito entre a fé e a ciência, através

do conhecimento. Em Bérgson, nos interessa aqui, este impulso vital, próprio do

organismo que segundo Vonèche (1997), “levou à proposta de um impulso moral

específico aos seres humanos“ (p.23).

Para Piaget, assim como o desenvolvimento da inteligência, o

desenvolvimento moral é um processo de construção interior, no entanto, o

mesmo lembra que “a consciência moral e intelectual se elaboram em estreita

conexão com o meio social, elas não são inatas.“ (1988, p. 73)

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Num outro momento, reforça a idéia de que o sujeito traz consigo as

condições necessárias para tal construção, assim como descreve o

desenvolvimento intelectual,

“o que é dado pela constituição psicobiológica do indivíduo comotal são as disposições, as tendências afetivas e ativas: a simpatiae o medo- componentes do ‘respeito’– as, raízes instintivas dasociabilidade da subordinação, a imitação etc., e sobretudo certacapacidade indefinida de afeição, que permitirá a criança amar umideal como amar a seus pais e tender ao bem como à sociedadede seus semelhante.”(Piaget,2000, p. 2)

Mas, atrelado a esta constituição está a interação social. Para o autor

(ibidem) “é nas relações interindividuais que as normas se desenvolvem [...] Não

há, portanto, moral sem uma educação moral, ‘educação’no sentido amplo do

termo, que se sobrepõe à constituição inata do indivíduo.” (p.3)

A moralidade é pois, resultante das relações estabelecidas na interação

do sujeito com as experiências,situações e pessoas do meio em que vive.Piaget

(ibidem), destaca duas morais”, isto é, duas maneiras de sentir e de se conduzir

que resultam da pressão no espírito da criança e de dois tipos fundamentais de

relações interindividuais”: a moral da coação - estática, conservadora, baseada na

tradição, onde há uma pressão do grupo social sobre o indivíduo e a moral da

cooperação – dinâmica, baseada nos conceitos de autonomia.

Na teoria proposta pelo autor, este admite, (ibidem) “juntamente a quase

todos os estudiosos da moral que o respeito constitui o sentimento fundamental

que, possibilita a aquisição das noções morais.” (p.4) Podemos encontrar na sua

obra dois tipos de respeito: o respeito unilateral, conseqüência de uma relação

assimétrica entre os pares, onde não há um sentimento moral, o que há é uma

submissão a regras pré -estabelecidas (moral da coação- heteronomia), e que em

desenvolvimento e numa relação de cooperação culminará no respeito mútuo,

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onde as obrigações não são impostas, mas elaboradas pelos indivíduos (moral da

cooperação- autonomia).

Segundo Piaget, “toda moral consiste num sistema de regras, e a

essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo

adquire por essas regras.” (2000 p.1). Para ele a questão não está no valor moral,

se um valor é superior ou inferior ao outro, se os princípios que levam à

formulação das regras podem ser tidos como universais ou não, mas o porquê do

respeito a essas regras.

“Há, então, dois tipos de regras que acompanham os doisrespeitos: a regra exterior ou heterônoma e a regra interior;somente a segunda conduz a uma real transformação docomportamento espontâneo.” (Piaget, 2003, p. 6)

Aqui estamos tratando, portanto, de tendências do pensamento moral,

dominantes em determinadas idades. Tais tendências foram descritas

anteriormente pelo filósofo alemão Immanuel Kant: a heteronomia (externamente

orientada) e a autonomia (internamente orientada). Piaget concordou com o

filósofo, porém do lugar da psicologia procurou demonstrar que essas tendências

são construídas durante o desenvolvimento da criança e a evolução de uma para

outra depende do tipo de relação social que o sujeito vivencia, podendo ser ela de

coação (respeito unilateral) ou de cooperação (respeito mútuo).

2.1.3.2 Uma restrição de moral

Segundo Jean Piaget, “toda moral consiste num sistema de regras, e a

essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo

adquire por essas regras” (1994, p. 11). Concordamos com La Taille (2001), ao

dizer que “apesar de, nas entrelinhas ou em algumas afirmações soltas aqui e ali,

Piaget nos ter convidado a uma reflexão sutil e viva da moral” (p.19), este admite

que o livro “O julgamento moral na criança” trata fundamentalmente da definição

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de moral que o autor herdou e cultivou de seus antepassados: a moralidade

restrita ao censo de justiça.

Sendo “O juízo moral na criança” ainda hoje considerado um dos mais

importantes referenciais teóricos sobre o desenvolvimento moral, percebemos que

a definição de moral empregada neste desconsidera a relevância de outras

virtudes no desenvolvimento moral.

Segundo La Taille (2001) “[...] com exceção da justiça, que pode ser

exigida de cada um, por traduzir um direito alheio, as demais estão estritamente

sob a égide da liberdade. Portanto, impor seu exercício é ferir a liberdade do

sujeito”. A justiça é uma virtude que foi racionalizada. Outras virtudes como, por

exemplo, a generosidade, a fidelidade, a compaixão, são virtudes do campo das

relações sociais, são virtudes que dizem respeito ao outro. Por exemplo: numa

situação de generosidade há o generoso e há aquele que foi “presenteado” com

ato de generosidade . Podemos cobrar de alguém uma ação generosa? Se hoje

não cobramos, ou melhor, não podemos cobrar, assim o é, porque nos

organizamos desta forma priorizando a justiça e privatizando as demais virtudes.

A hegemonia da justiça se construiu historicamente. O domínio de tal

virtude não se deu naturalmente, por esta ser superior ou como dizia Aristóteles,

“completa”. Mas porque a priorizamos em nossas relações sociais, foi uma

escolha do mundo social, construir suas bases em torno do império da justiça.

Ainda analisando a questão da justiça, não estaríamos reforçando uma

moral do dever, reforçando a heteronomia, ao reduzirmos a moral à idéia de

justiça (direitos e deveres)? Não queremos dizer que a prática da justiça seja

heterônoma, mas ao propor uma constituição moral baseada somente em direitos

e deveres, ou seja, devemos ser justos, pois é direito do outro ser tratado com

justiça, não estaríamos fortificando a moral como o dever ser? Se, pensamos a

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educação moral como direito-dever, censura-punição, vigilância-controle, não

estamos propondo autonomia.

Observemos a reflexão feita por La Taille (2001) sobre a citação de Piaget

no livro “O juízo moral na criança”, quando este diz que, “é quando a criança

habitua-se agir do ponto de vista dos próximos, e preocupa- se mais em agradá-

los que a eles obedecer, que ela chega a julgar em razão das intenções.“

“Esta frase traz um clássico da perspectiva piagetiana: apassagem de uma moral, superior, que leva em conta asintenções dos agentes, a moral autônoma, na qual o realismomoral é superado. Mais a citação traz mais do que isso. Elarefere- se a uma explicação causal para dar conta da evoluçãomoral e, é o que nos interessa nesse caso, nela está afirmadoque o que explica a passagem da heteronomia para aautonomia não é tanto uma tomada de consciência do outrocomo sujeito de direitos, mas antes a tendência a considerá-lona sua singularidade: é o que sugere o emprego do verbo“agradar” (faire plaisir). Em uma palavra, Piaget nos fala mais,nessa citação, em generosidade do que em justiça, embora, nasua própria teoria, a autonomia represente a vitória do princípiode justiça sobre a mera obediência à autoridade. “ (p.94 )

La Taille, (2002) em uma pesquisa denominada “As virtudes morais

segundo as crianças”, verificou

“que a maioria das crianças de 6 anos já afirma que alguém quese priva de uma fruta predileta para dá-la ao irmão(generosidade) é moralmente mais admirável do que outra quesegue uma regra justa (dividir um pacote de bolacha com seuirmão). E, caso o ato generoso não tivesse acontecido, nãoseria o caso de haver sanção. Em compensação, o ato deinjustiça deve ser punido”. (p.26)

Então perguntamos, será que a moral está sempre atrelada a

possibilidade de sanção? A generosidade não pode ser cobrada como dever de

ninguém, a não ser interiormente. Uma pessoa pode estabelecer para si o dever

de ser generoso, mas não pode cobrar das demais pessoas que todas sejam

assim.

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Nesse momento compreendemos a constituição da moralidade tanto no

aspecto intrapessoal quanto no aspecto interpessoal. Não há necessariamente

uma cobrança externa. Não estaríamos aqui falando de uma tendência autônoma?

Ser autônomo, como o próprio Piaget nos mostra está além da compreensão das

regras, implica na reflexão do porquê seguir certas regras e leis, não seria este um

momento de introspecção do sujeito, onde trabalha a sua livre escolha? Somos

autônomos quando agimos por vontade própria. Autonomia é o mesmo que

autogoverno.

“Mas o que é vontade própria? O que é autonomia? Vontade éuma escolha racional e emocional que só um ser humano écapaz de fazer. Os animais têm desejos, impulso, pura emoção;os homens têm vontade: desejo mais um julgamento racional.”(Menin, 2003, p.40)

Se vontade, “é um desejo mais um julgamento racional”, estamos aqui

outra vez falando da tríade do desenvolvimento: o cognitivo, o moral e o afetivo.

Percebemos em Piaget uma tendência em relacionar dialeticamente o afetivo e o

racional na construção da moralidade do sujeito autônomo. No entanto,

concordamos com La Taille (apud Araújo, 2003) quando afirma que:

“Piaget nos fornece a condição necessária ao desenvolvimentoda moral autônoma, mas não a condição suficiente. Ele mostraconvincentemente como a evolução da inteligência permiteorganizar – sempre na área moral – o mundo afetivo; mas faltajustamente a recíproca, ou seja, como a afetividade torna orespeito mútuo possível de ser seguido na prática. Piaget ficou,de certo modo, ‘refém’de seu próprio método, que consistiu emestudar o juízo moral. Estudo este, sem dúvida, essencial – anão ser que se afirme a total independência entre pensar e agir,mas que poderia ser completado por outros que detivessemmais os aspectos afetivos do problema...” (p. 129) [grifo nosso]

Concordamos com La Taille que Piaget tenha-se detido sobre o que é

racional no desenvolvimento moral e apesar de ter considerado os aspectos

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afetivos o fez de modo superficial, o que nos faz, em alguns momentos pensar que

este tenha desconsiderado inclusive a importância das relações sociais. Pode

parecer absurdo dizer que numa teoria sobre a moralidade, na qual o autor faz

prevalecer o papel da justiça, esteja desconsiderando a relação social. No entanto,

o que queremos mostrar é, pois, a irrelevância que parece ter para Piaget os

grupos sociais, a cultura, as tradições, o contexto na constituição dos valores do

sujeito. O que nos faz buscar na Sociologia uma complementaridade sobre o

assunto.

2.2 Socialização

Compreendemos a socialização como um processo de inserção do

indivíduo ao mundo instituído, dito de outra forma, o conhecimento, a aquisição

das normas que regem a vida social, ou em uma palavra, moralização. Para falar

do assunto sob a luz da Sociologia dialogamos com David Émile Durkheim.

Durkheim (1858 – 1917) sociólogo francês, acreditava na constituição

egoísta do homem por natureza. Para ele, é

“somente no interior da sociedade (grupos como família, escola,igreja etc.) e através de processos de socialização primária esecundária que a criança adquire uma segunda natureza, asocial, que é altruísta e indispensável para a coesão social e asobrevivência do corpo social “. (Freitag, 1994, p. 37-38)

Durkheim (1984) apresenta o homem como composto por dois seres: o

individual – “constituído por todos os estados mentais que apenas se referem a

nós próprios e aos acontecimentos relacionados com a nossa vida pessoal.”E o

outro – “um sistema de idéias, de sentimentos e de hábitos que expressam em

nós, não a nossa personalidade, mas sim o grupo, ou os diferentes grupos de que

fazemos parte (...) o seu conjunto constitui o ser social. “ (p. 17)

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Para o autor, o papel da educação é o estabelecimento do outro em cada

indivíduo, em outras palavras, a socialização . Compreende a educação como

“a acção exercida pelas gerações adultas sobre as que aindanão se encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem porobjetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número decondições físicas, intelectuais e morais que dela reclama, seja asociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a queela se destina particularmente.” (p.17)

Compreendia a educação moral de forma racional.

Preocupou-se com a elaboração de uma moral laica, que se distanciasse da

religião e que tomasse como autoridade a razão.

Em 1902, encontramos Durkheim encarregado do seu primeiro curso na

Sorbonne, intitulado A Educação Moral e que tornou- se uma pedra angular do

pensamento sobre moral até os dias de hoje. Tendo como cenário histórico o

movimento da separação da Igreja e do Estado, nos deparamos com um idealista

querendo fazer da Sociologia um “substituto racional da religião”.

2.2.1 Durkheim: moral como processo de socialização

Defensor da educação moral laica, reconheceu que os “estreitos laços que

se estabeleceram historicamente entre a moral e a religião”, demonstravam“existência de elementos essenciais da moral que apenas setenham exprimido sob a forma religiosa; logo, se limitarmos aretirar do sistema tradicional tudo o que for religioso, semsubstituirmos aquilo que dele retiramos, arriscar-nos- emos, aomesmo tempo, a excluir do mesmo algumas idéias esentimentos propriamente morais. (Durkheim, 1984, p. 117)

Buscou então, substituir tais elementos. Segundo DURKHEIM (1984), três

são os elementos essenciais da moralidade: o espírito de disciplina, a adesão ao

grupo social e a autonomia da vontade. Para ele, a primeira disposição

fundamental de qualquer temperamento moral é o espírito de disciplina que se

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constitui a partir de dois aspectos deste estado de espírito: o sentido de

regularidade e o sentido de autoridade, neste último caso, substituindo a

autoridade até então entendida como algo sobrenatural (os deuses) pela razão. A

disciplina favorece o autocontrole, permitindo o estabelecimento do controle social,

incentivando a regularidade do comportamento e o reconhecimento da autoridade,

preparando a criança para a hierarquia da sociedade. A adesão ao grupo social,

permite insurgir no indivíduo a solidariedade que tem por objetivo promover a

harmonia social, buscando superar o egoísmo da natureza humana. A autonomia

da vontade é a sujeição voluntária e consciente do indivíduo ao grupo.

As normas, ordens e regras, segundo seu entendimento, deveriam ser

inculcadas nos indivíduos . Compreendendo desta forma, a moralidade se dá

através da internalização das normas pelo indivíduo. Sendo assim, a moralização

é imposta de fora para dentro.

Segundo Fernandes(1994),

“Durkheim não é apenas o teórico da educação moral mas é,também, e sobretudo, um teórico prático, um educador, cujodesejo é moralizar as crianças constituindo nelas os elementosda moralidade”.(p. 49)

2.2.1.1 Criança: sujeito ou objeto da moralização ?

Diante desta perspectiva de moralização, falamos sobre a criança, não

falamos com ela. Não ousamos lhe dar voz, embora essa voz escape ao nosso

domínio. A criança é comparada ao homem primitivo, aquele que se

descobrindo homem, ainda não aprendeu a lidar com seus desejos, seus

instintos... Forças que precisam ser dominadas, reprimidas, combatidas para o

bem da coletividade.

A criança este ser estranho aos adultos, diferente, ainda não-civilizado

nos afronta a cada dia, pois não nos compreende e nós não o entendemos, nós

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o desconhecemos. Já fomos crianças, mas pela força da educação/moralização

tornamo-nos “adultos normais”, deixando para trás qualquer traço de

incivilidade/ infância.

Segundo Fernandes (1994) a tese durkheiminana, estabelece duas

naturezas humanas, a nossa individualidade (o corpo) e o Outro em nós. A

criança, possui o corpo (instintos, as inclinações individuais), mas ainda não

possui o Outro, “o que é do bicho e o que é do anjo, são qualitativamente

diferentes, são os dois seres que estão em nós e que não podemos satisfazer

simultaneamente” (p. 79).

“Eis porque a criança, carente da segunda natureza, privadaque está ainda do Outro interno, é o ser da falta pois,literalmente, falta-lhe um ser, e o melhor. A criança é, então, oradicalmente outro do adulto e do educador. Está aberto ocaminho que Durkheim percorrerá sem sobressaltos: a criança éo outro, o estrangeiro, o bárbaro, o desconhecido, o estranho.Será analogicamente aproximada ao louco, ao déspota, aobárbaro (homem primitivo), pois o que importa é marcar suadiferença de estatuto. A educação, processo de moralização, éo longo percurso que a criança deverá trilhar para se tornaradulto normal.” (p. 79 – 80) (grifos nossos)

A esse ser de falta cabe o preenchimento. É a infância esse lugar que não

existe, um lugar de passagem, momento no qual a criança é inserida num

“processo de iniciação à ‘vida séria’“e é portanto um momento de formação, de

preparação. Após a obtenção do resultado final - o adulto normal,

desconsideramos este espaço- tempo denominado infância, pois o que na

verdade importa é o produto, pouco avaliamos de fato, o processo. Dessa forma o

que temos é a espera de um advento e “simultaneamente, um infanticídio” (ibidem,

p.80).

De acordo com Fernandes (ibidem), compreendemos que nesta perspectiva

“a educação moral define-se, assim, como o lento e dificultoso processo de

inscrição do Outro na subjetividade infantil.” (p.62) E este processo, se dá

essencialmente na escola.

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2.2.1.2 Escola: espaço moralizador

Para Durkheim, é a escola o lugar da educação moral, lugar de passagem,

ambiente propício para formação, mais que isso, produção. A escola trabalha para

constituir na criança o que lhe falta com a intenção de tornar- se um adulto normal:

“obediente, sacrificante e submisso ao desejo do Outro.” (Fernandes,1994, p.

147)”Para isso, a escola apresentará à criança um espelho que ela aprenderá a

amar e desejar” (ibidem, p.148).

Conforme a tese durkheimiana, à criança falta o espírito de disciplina,

elemento fundamental na vida moral. Se à educação/ moralização cabe o bem

comum, entendemos que se espera como fim uma vida boa para todos ou dito de

outra forma, buscamos a felicidade. Fernandes (1994) nos diz que cabe ao

educador apresentar esse ideal à criança, de maneira a levá-la à desejá-lo.

Durkheim nos diz que é na escola que se

“encontra uma boa parte da cultura, e a mais elevada, que nãopode ser dada em qualquer outra parte. Isto porque, se é certoque a família pode perfeitamente, e só ela pode, despertar econsolidar os sentimentos domésticos necessários à própriamoral, e mais geralmente, aos que se encontram na base dasmais elementares relações privadas, não é menos certo de queessa mesma família não se encontra estruturada de forma apoder formar a criança, tendo em vista a vida social.” (p.116-117) [grifos nossos]

Estamos mais uma vez falando do que é da esfera pública e do que é da

esfera privada. Percebemos a distância entre o que é próprio da família (afeto,

cuidado) e o que é específico da escola (racionalidade). A família pode e sabe

despertar e consolidar os sentimentos domésticos, mas não é capaz de tratar do

que é legítimo, na vida em sociedade: a supremacia da razão.

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Concordamos com Fernandes (1994) que nos diz que no ponto de vista

durkheimiano “os fins domésticos são menos elevados porque os interesses

familiares são muito restritos, quase confundindo-se com os da esfera dos

interesses individuais (egoístas)”. (p.95) Por isso defende a formação moral da

criança na escola, distanciado da família, por conceber a ilegitimidade desta no

que toca o objetivo da socialização.

Percebemos escola e família como grupos sociais distintos, porém atuantes

na socialização infantil. Grupos com formação histórica, entendimento e função

distinta num mesmo processo, mas ambos com um mesmo objetivo: preparar a

criança para a vida em sociedade. Desta forma, enxergamos práticas

diferenciadas fundamentadas no que Daniel Thin (mimeo) chamou de “lógicas

socializadoras”.

2.2.1.2.1 A forma escolar como forma legítima de socialização

O que faz da escola o lugar legítimo de socialização? De onde vem a

hegemonia de seus valores?“um modo de socialização escolar se impôs a outros modos desocialização: e para discernir também quais são as suasprincipais características e tudo o que faz parte destaconfiguração histórica singular, quando nossa tendência éacreditar que tal modo, não sendo natural, é, pelo menos eternoe universal.” (Vincent, Lahire e Thin, 2001, p.11)

Eis a questão! A forma escolar de socialização é a forma universalmente

reconhecida, a forma oficial: ocidental, branca, católica.

E esta forma escolar, possui traços predominantes que a caracterizam.

Apoiados em Vincent, Lahire e Thin (mimeo), descreveremos tais características

que retornaremos ao analisarmos os dados coletados nesta pesquisa, quando

discutiremos sobre as lógicas socializadoras: “a constituição de um universo

separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a

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organização racional do tempo; a multiplicação e a repetição de exercícios.” (p.37-

38).

A criança é vista como um futuro adulto. É o vir a ser, como se esse

momento da infância, fosse somente uma estação à espera do que virá. Diante

desta concepção não podemos nos referir à criança como sujeito. Ela é apenas

um indivíduo ao qual cabe desejar o que lhe é necessário apreender: o Outro.

De acordo com Gouvêa e Jinzenji (2006), nesse lugar que é a escola, a

criança é vista como aluno. A relação professor–aluno é uma relação pedagógica,

onde o interesse é prioritariamente a aprendizagem, ainda que a sua preocupação

seja a moralização.

Para Vincent, Lahire e Thin, a relação pedagógica é “não mais uma relação

entre pessoa e pessoa, mas uma submissão do mestre e dos alunos a regras

impessoais” (ibidem,p. 15). A própria postura do mestre é de submissão às regras,

por isso detém a autoridade sobre a criança, ou melhor, sobre o aluno, pois já

interiorizou o Outro e agora, desenvolve o papel de sedutor para fazer o aluno

desejar tal incorporação.

Fernandes (1994), nos apresenta o educador como um prisioneiro do

fantasma. Torna-se um representante do Outro, transforma- se em porta-voz da

normalidade esperada de um adulto.

“Não é como sujeito que ele encontra a criança, mas comopadre, juiz, rei, governante, hipnotizador, colonizador, segundoo repertório que o Outro apresenta e obriga a dramatizar.Comprometido no fantasma, seu lugar na cena oscila entre osedutor [...] e o censor”. (p. 148-149)

Ao mesmo tempo em que oferece o objeto desejado: eu possuo o que você

ainda não tem, trabalha constantemente julgando as irregularidades e punindo-as.

Fernandes, neste mesmo trabalho faz uma analogia entre o papel do professor e o

do colonizador, ou seja, ambos trabalham para impor ao outro (o selvagem) aquilo

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que ele desconhece, aquilo que ele nem sempre aceita e quando isto acontece

não se preocupa em utilizar métodos coercitivos para a inculcação da verdade.

A aceitação das regras, o espírito de disciplina, na concepção de Durkheim

garante a obediência e a repressão do que é natural e espontâneo na criança, ou

seja, é um dos objetivos deixar para trás o que existe de específico neste espaço-

tempo que denominamos infância para adquirir o que consiste a vida adulta, ou

propriamente a vida. Através da disciplina as regras já não são toleradas ou

mesmo, simplesmente obedecidas, são na verdade aceitas, porque

compreendidas como necessárias.

“As atividades organizadas, enquadradas por especialistas,regulam e estruturam o tempo das crianças; tendem a garantirsua ocupação incessante, ocupação cuja função consiste nãotanto em enquadrar e vigiar, mas gerar disposições em relaçãoà regularidade, ao respeito pelo’emprego do tempo’ .” (Vincent,Lahire e Thin, 2001, p. 40).

A escola com a intenção de disciplinar, de buscar a regularidade, organiza

suas atividades de forma a estabelecer o momento de estudo, o momento de

descanso, o momento da alimentação. Buscando levar o aluno a

“submeter o desenvolvimento de sua vida a uma divisão emseqüências temporais previstas antecipadamente e fazer ascoisas somente na hora certa, não será esse tipo decomportamento propício a adquirir a forma de uma moralidadeque é a do dever? “ (ibidem, p.40)

2.3 Durkheim e Piaget: convergências e divergências sobre socialização

Encontramos em Dubar (1997), um confronto das idéias de Piaget e

Durkheim, realizado a partir do texto que compõe a segunda parte da obra de

Jean Piaget, O julgamento moral na criança, no qual o autor debate algumas teses

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que fundamentam o pensamento durkheimiano. É sobre este trabalho que nos

basearemos inicialmente na apresentação aqui resumida dos pontos de

concordância e divergência entre esses dois autores .

Ambos os autores que trazemos para este diálogo, a partir da leitura de

Dubar (1997), compartilham da idéia de educação como socialização da geração

jovem pela geração anterior e concordam também de que a socialização é o

mesmo que “educação moral”. Entretanto vão diferenciar seus entendimentos no

que diz respeito ao processo de socialização ou moralização. Enquanto Durkheim

defende a transmissão do“espírito de disciplina, garantido pelo constrangimento, paraPiaget a moralização é uma construção através da interação dosujeito com o mundo social, por uma evolução que visasubstituir as “regras de constrangimento” pelas “regras decooperação”. ( p. 23 )

Ambos acordam ainda, que a “socialização se baseou historicamente no

constrangimento e na conformidade ‘natural ‘ a modelos exteriores”. (ibidem, p.22)

Concordam também com a “dimensão repressiva” da socialização, servindo a

sanção como instrumento de garantia da socialização/moralização.

Concordam até “no reconhecimento da individualização crescente da vida

social à medida que as trocas se desenvolvem e se complexificam”, tornando a

vida social mais interiorizada, demonstrando ser necessário, "apelar para a

autonomia da vontade mais do que para o medo.” (Dubar, 1997, p.23)

Porém, os autores se afastam quando Durkheim estabelece uma

correspondência entre os objetivos e os resultados do constrangimento e os da

cooperação voluntária. Para ele as relações de constrangimento são

fundamentadas nos laços de autoridade e no sentimento do sagrado,

característico das sociedades tradicionais. Enquanto as relações de cooperação

são fundamentadas no respeito mútuo e na autonomia da vontade, característico

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das sociedades modernas. Para Piaget, o indivíduo passa da primeira para a

segunda, é um processo de “evolução intelectual “e do “desenvolvimento moral “.

Por fim, Dubar apresenta a divergência de Piaget ao pensamento de

Durkheim, a propósito da sociedade. Para Durkheim, a sociedade é como “uma

substância e uma causa”enquanto na posição de Piaget, a sociedade é “um

sistema de actividades cujas interacções elementares consistem em acções que

se modificam umas às outras de acordo com determinadas leis de organização ou

de equilibração.” (Piaget, apud Dubar 1997, p. 25)

Estas são as convergências e divergências apontadas por Dubar. Dentre

elas há uma, embora não explícita, mas que se fez no nosso entendimento

presente neste texto, através da convergência entre Piaget e Durkheim no que

toca a autonomia da vontade, e que a nós grita: o ideal de homem. Apesar de

ambos os autores concordarem que a socialização tende a se tornar cada vez

mais voluntária, ou seja, o fim, o ideal a ser alcançado é a autonomia da vontade,

percebemos divergência no que cada um espera com tal conceito. Para Piaget, o

homem autônomo e para Durkheim, o adulto normal.

2.3.1 Homem autônomo X adulto normal

A teoria piagetiana trata do homem universal, o homem ideal, aquele que

buscamos encontrar. Segundo La Taille (2002), para Piaget, “o homem autônomo,

descentrado, racional é um homem possível. E esse homem possível certamente

corresponde, nas grandes linhas, ao homem ideal no qual pensava Kant”.

O autor percebe ainda a teoria piagetiana como

“universalista tanto na pretensão explicativa quanto naperspectiva de desenvolvimento por ela apontada: o homempode se liberar dos ‘lastros’culturais e caminhar para uma

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humanidade que transcende limites regionais, centraçõesculturais.” (p.149)

Piaget acredita que o homem é capaz de transcender tais limites na busca

do desenvolvimento ideal. Tal afirmativa torna- se clara ao analisarmos a teoria

piagetiana que traz determinado um ponto de partida e chegada no

desenvolvimento, tanto intelectual como moral. Compreendemos que o autor

aponta tal resultado como possibilidade e que o mesmo depende dos estímulos

recebidos pelo indivíduo, embora este mesmo homem capaz de se desenvolver a

partir dos estímulos, é também apto a transcender limites colocados pela cultura e

sociedade na qual vive.

Para Durkheim, o adulto normal é aquele que encarnou o Outro (o ser

social). Segundo Fernandes (1994) “a educação moral define-se, assim, como o

lento e dificultoso processo de inscrição do Outro na subjetividade infantil”. É

através da educação, processo de moralização que a criança vai deixando para

trás sua constituição egoísta e tornando- se “um adulto normal, aquele que não

precisa mais de controles externos (do educador), portador que se terá tornado da

sua própria polícia interna.” (p.62)

Dito de outra forma, enquanto Piaget acredita na possibilidade- e mais,

espera esta com fim ideal - de um homem autônomo, capaz de transcender, de se

libertar da sociedade, da sua cultura, para Durkheim o fim ideal é o homem capaz

de interiorizar as regras desta sociedade de forma a não mais precisar de

cobrança externa.

Temos três visões distintas sobre o mesmo objeto: a socialização infantil.

De um lado Piaget do lugar da Psicologia compreendendo que o homem constrói

sua moralidade na interação com o meio social, porém percebe este homem

capaz de se libertar dos lastros da sociedade. Do outro Durkheim, olhar da

Sociologia que concebe este homem como que mergulhado na sociedade .

Sociedade esta que é a autora da moral. É ela que dita as normas vigentes. E a

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criança, voz infantil, objeto desses discursos e negada pelas duas visões, que vai

insinuar-se nessa pesquisa e falar sobre a sua socialização. Ela, sujeito

heterônomo e ainda não- normal, tem o que dizer sobre o mundo que a quer

conformar ?

2.3.2 Uma breve discussão sobre a hegemonia da Justiça

Entendemos que tanto Piaget como Durkheim buscavam o que há de

científico na moral. Dessa forma, Durkheim fala de disposições fundamentais para

a vida social, Piaget nos fala de tendências do pensamento que são mais fortes ou

não de acordo com o desenvolvimento intelectual e os estímulos do ambiente. No

entanto, ao pensarmos a moral dessa forma estamos extraindo dela o que há de

mais racional, mais individual, enquanto o desenvolvimento moral pressupõe a

vida no social, o relacionamento com outras pessoas. Quando falamos de direitos

e deveres nos parece que estamos olhando o coletivo, buscando garantir o bem

comum, mas será que não estamos sendo individualistas?

Quando cumprimos nossos deveres para com os outros, o fazemos pelo

cumprimento dos deveres ou o fazemos porque é direito do outro? O meu direito

pressupõe o dever do outro e assim vice- versa. Estamos olhando as duas faces

da moeda, porém quando cumpro o meu dever o faço porque é direito do outro.

De certa forma tenho obrigação moral com outro. É uma obrigação externa.

Independente da minha vontade. Tenho que cumprir. O não cumprimento gera

uma sanção, uma punição, uma conseqüência. Que valor há nisso? Há valor?

Sim! Há o valor da justiça imperando. O valor do que é racional, do que

pode ser cobrado. Porém quando estamos falando de outras virtudes morais, que

não foram racionalizadas, estas não podem ser cobradas. Tornam-se doação, é

por inteiro e nada tem de individual, e sim de coletivo, sou generosa porque não

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recebo nada em troca, sou fiel sem cobrar do outro sua fidelidade. Existe o dever

de ser fiel? Posso cobrar de alguém fidelidade? Generosidade?

De acordo com Comte- Sponville(ibidem),

“Não há sujeito moral sem fidelidade de si para consigo, e énisso que a fidelidade é devida: pois de outro modo não haveriadeveres! É nisso também que a infidelidade é possível: como afidelidade é virtude da memória, assim a infidelidade é suafalta”. (p.17)

Se respeitamos leis, se temos ideais, assim o é pela fidelidade. O que me

leva a lutar por uma causa? A fidelidade que tenho a ela. Ainda em Comte-

Sponville, compreendemos que“a fidelidade não é um valor entre outros, uma virtude entreoutras: ela é aquilo por que, para que há valores e virtudes. Queseria a justiça sem a fidelidade dos justos? A paz, sem afidelidade dos pacíficos? A liberdade, sem a fidelidade dosespíritos livres? E que valeria a própria verdade sem afidelidade dos verídicos? Ela não seria menos verdadeira,decerto, mas seria uma verdade sem valor, da qual nenhumavirtude poderia nascer. Não há sanidade sem esquecimento,talvez; mas não há virtude sem fidelidade.” (p.16)

Ora, talvez não consigamos compreender o valor de tal virtude pela

racionalidade. Ela foi colocada no lugar da subjetividade pela nossa cultura. Este

lugar que desprezamos, pois sobre ele não temos poder algum. Está no campo da

vontade. Será possível falar de autonomia da vontade num lugar que

autonomizamos as regras pelo simples fato de que isso se faz necessário, porque

isto nos é cobrado? Mas percebo belo, simples e verdadeiro falar de autonomia

quando sem cobranças opto por ser generosa.

Segundo Comte- Sponville (ibidem) “A generosidade é a virtude do dom.

Não se trata mais de ‘atribuir a cada um o que é seu’, como dizia Spinoza a

propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é seu, o que é de quem

oferece e que lhe falta.” Eis a grandeza moral: dar sem esperar receber!

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CAPÍTULO III

TRANÇANDO OS FIOS DA TEORIA AO UNIVERSO MORAL DACRIANÇA

“Nunca um costume é indefensável, inferior e bastardo, para quem o segue.”(Luís da Câmara Cascudo)

Falar de socialização na escola pública implica adotar uma perspectiva

que busque compreender o movimento de socialização de dois lugares

distintos :o lugar da escola e o lugar da família de classe popular. Não estamos

falando de duas instituições sociais ou mesmo comparando-as, o que estamos

é olhando para as duas em relação. O que nos faz perceber a necessidade de

analisar a diversidade de posições sociais entre a escola e a família destas

crianças, investigando e considerando tais diferenças. Diferenças estas que

fazem desta relação um confronto entre as posições sociais dos membros em

questão.

Temos de um lado a família de classe popular, do outro a escola,

que apesar de ter como público, alunos na grande maioria de classe

popular, trabalha com os valores que a instituição escola elaborou ao longo

da sua história. De acordo Com Thin (2006), são dois “pólos de lógicas

socializadoras”,

“em um pólo da confrontação encontramos as lógicasescolares incorporadas pelos professores e ancoradas nainstituição escolar e na história social de seus agentes.Essas lógicas estão inscritas no mundo escolar desocialização e de relação com a infância dominantes emnossas formas sociais.” (p.8)

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Segundo Thin (ibidem), estamos abordando, portanto, “diferenças

sociais entre grupos e indivíduo”. (p.4 )

Neste capítulo será apresentada a instituição de ensino que foi campo

de pesquisa, os sujeitos selecionados para este estudo, bem como a escolha

destes e a análise dos dados por nós realizada, trazendo o discurso da

criança. É o ponto de vista da infância, ponto central deste cruzamento sobre

o movimento de socialização na relação família e escola.

Tal análise se fez a partir das considerações por nós elaboradas,

tendo como campo teórico a Psicologia do Desenvolvimento, trazendo Jean

Piaget e sua visão de desenvolvimento moral, ampliada por Yves de La Taille

em um diálogo com a Sociologia de Durkheim, no texto Educação Moral, tecida

com as contribuições da leitura de Heloísa Fernandes sobre esta obra.

Não menos importante foi o nosso encontro com Daniel Thin, sociólogo

francês contemporâneo, no que trata da intenção de compreender esta

relação muita das vezes conflituosa entre a escola e os sujeitos da classe

popular, através do conceito por ele trabalhado denominado “lógicas

socializadoras” (2006, p.7)

Esta tomada de dados se deu no contexto de uma pesquisa maior,

intitulada: “Socialização na escola – expectativas de famílias, de professores e de

alunos: consonâncias e dissonâncias”, sob a coordenação da professora da

Universidade Federal Fluminense Dra. Lea Pinheiro Paixão .

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O peso de uma tradição: a instituição e o aluno

De acordo com Oliveira (2006, mimeo), relatamos a seguir um breve

histórico do IEPIC - Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, campo da

nossa pesquisa que recebeu este nome em homenagem a um professor

fluminense em 1965.

Em 1955, quando ainda era denominado apenas Instituto de

Educação foi transferido para o atual endereço. Nesta ocasião fora desligado

definitivamente do Liceu Nilo Peçanha ao qual tinha se juntado em 1931,

quando na época, ao primeiro cabia a escola normal e ao segundo o ensino

ginasial. Foi quando então, anexou- se ao Grupo escolar Getúlio Vergas e ao

Jardim de Infância Maria Guilhermina que eram fixados na mesma Travessa

onde hoje se localiza o IEPIC.

Em 1975, por meio do parecer nº 1133/75 do Conselho Estadual de

Educação, o IEPIC implantou a reforma do ensino de 2º Grau, com o curso de

professores habilitados. No entanto, apesar de algumas mudanças físicas,

desligamentos e agregações o Instituto de Educação de Niterói, assim

conhecido até 1965 foi fundado em 1835, sendo esta a Primeira Escola

Normal do Brasil.

O Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, atualmente mantém

o curso de formação de professores, bem como os segmentos de Educação

Infantil e Ensino Fundamental. Atende a população da redondeza, provenientes

na sua maioria do Morro do Ingá e do Morro do Palácio, lugares estes

ocupados por facções rivais do tráfico de drogas. Sendo o sujeito desta

pesquisa a criança, focalizamos neste estudo o primeiro segmento do Ensino

Fundamental.

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O IEPIC hoje

Segundo a coordenadora pedagógica da instituição em setembro de

2005, o alunado do IEPIC vem sofrendo grandes modificações ao longo dos

anos. Este colégio que em outros momentos fora disputado pela população,

tinha por hábito ser constituído “por alunos de classe média, que tinham

acompanhamento familiar”. Hoje, convive com uma realidade diferente, atende

a classe popular , que traz para este espaço outros valores que são ainda

desconhecidos pela instituição escola.

Primeira escola normal do Brasil, foi fundada com o intuito de formar

professores primários, aqueles que seriam responsáveis pela instrução e mais

do que isto, pela civilização, a repressão do lado selvagem do homem. Apesar

dos percalços históricos , dos descaminhos e dos descompassos do real

objetivo o que ficou foi o peso de uma tradição: uma escola superior no sentido

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de estar acima das demais, uma escola por muitos, almejada o que os levava

à disputa por uma vaga e com tantas reformas no ensino acabara por atender

aqueles que ao seu redor se fixaram, sem mais ter o domínio de escolher

o seu alunado, ou seja, de extrair da massa os considerados melhores ,

aqueles que seguramente dariam certo, teriam futuro. Tal expectativa em

relação ao IEPIC se faz presente não somente no discurso do corpo docente,

como nas falas dos próprios alunos “Eu não sei porque é a maior escola da

América Latina... e não tem alunos de qualidade”. ( Jayane- 9 anos )

O IEPIC na visão da pesquisadora

No nosso olhar,uma escola de formação de professores, que tem como

um de seus objetivos servir de campo de estágio . Uma escola com uma

estrutura física grande, constituída por quatro blocos: dois prédios térreos, um

para a Educação Infantil, outro para as Classes de Alfabetização e algumas

turmas do 1o Segmento do Ensino Fundamental no turno da manhã; dois

compostos por três andares, um para o Ensino Fundamental ( 5a a 8a no turno da

manhã) e (1a a 4a no turno da tarde) e o outro para o Curso de Formação de

Professores, um amplo pátio e uma quadra coberta.

Crianças jogando bola na quadra

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O pátio

Lugar mais sedutor da escola, o pátio agrupa as crianças

diariamente para a realização das situações mais secretas e interessantes.

É o dia a dia da escola, tempo em que as relações se constroem da

maneira mais simples, com jeito de criança ...

Crianças brincando no pátio

Crianças durante o recreio

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Uma escola grande, bonita, limpa, bem cuidada e aparentemente

segura, é esta a primeira visão que temos do IEPIC.

Os portões

Os portões de ferro fecham cada um dos prédios que compõem esta

escola e que nos dias em que lá estivemos permaneceram durante todo o

tempo trancados com um cadeado.

O prédio que aparece na foto a seguir é o prédio denominado bloco

B, no qual nos fixamos para a realização das tarefas que compõem a

pesquisa. Numa de nossas visitas, enquanto procurávamos a coordenadora

pedagógica que nos acompanhou durante a pesquisa, com o objetivo de

comunicá-la nossa presença na escola, fomos participantes de uma situação

que relataremos aqui.

Crianças durante o recreio

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Alunos e a coordenadora pedagógica esperando para entrarem no prédio B

Para sairmos deste bloco, que é mantido constantemente trancado

com cadeado, fomos orientados por uma professora no corredor do colégio

que solicitássemos à pessoa responsável pela cantina, dona Juracy, que

abrisse o portão, pois esta tem a posse da chave, embora não seja sua

atribuição. Ao chegarmos no portão e chamarmos dona Juracy, uma aluna

uniformizada que estava do lado de fora esperando para entrar, nos disse:

“ nem adianta. Ela já disse que não vai abrir, porque isso não é trabalho

dela.” Ainda assim, insistimos e dona Juracy veio abrir , permitindo que a aluna

entrasse. No entanto, ao abrir o portão dona Juracy, justificou sua recusa

inicial dizendo que “o Felipe (funcionário da escola que tem esta atribuição), fica

se escondendo para não vir abrir o portão. Mas no fim do mês, o

contracheque do estado, quem recebe é ele.”

Tal relato tem a intenção de apresentar uma das muitas vezes que

nós enquanto visitantes da instituição ficamos esperando por alguém que

abrisse o portão para que entrássemos, o que a nós inicialmente se mostrou

como segurança. No entanto, é importante ressaltar que presenciamos várias

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situações nas quais percebemos os alunos uniformizados, no seu turno de

estudo, esperando ora para sair, ora para entrar estando o portão trancado

e nenhuma pessoa responsável com a função de abri-lo, fazendo com que

estes aguardassem alguns minutos.

Outra situação que comprova esta afirmação aconteceu neste mesmo

dia, quando voltávamos para o bloco B após encontrarmos a coordenadora . Ao

retornarmos ao prédio, que novamente estava trancado, fui até a cantina onde

estava dona Juracy para pedir que esta abrisse o portão, pois não havia

ninguém que o pudesse fazer. Ao entrar na cantina e ser percebida por dona

Juracy, esta disse: ” Mas, de novo! Eu vou lhe emprestar a chave, você abre

e me devolve aqui.” Assim foi feito, abri o cadeado e voltei para devolver a

chave, enquanto Rafael ( aluno da UFF que neste dia nos acompanhou ficando

responsável pela filmagem) ficou tomando conta do portão, pois haviam alguns

alunos querendo sair do bloco. Entramos e trancamos o portão. Os alunos

ficaram reclamando dizendo que tinham permissão para sair . Procurei

explicar-lhes que eu e Rafael não trabalhávamos na escola e que desta

forma não tínhamos autorização para permitir que os alunos saíssem pelo

portão e que eles ficassem esperando pelo Felipe que era a pessoa que

tinha tal autoridade. Os alunos ficaram reclamando.

O portão como o lugar que recebe quem chega e sai é sempre um

espaço interessante de se observar. Num outro dia, em que fomos ao IEPIC

presenciamos outra cena no portão do Bloco B que nos mostra a visão que a

escola tem das famílias que atende. Enquanto a coordenadora nos

encaminhava à sala onde seria realizada a filmagem do grupo focal, uma

senhora que estava responsável por abrir o portão naquele momento fez-nos

um comentário ao nos aproximarmos dela, dizendo:" Uma pessoa que tem filhos

levadíssimos, arranjou mais um. Daqui a três anos esta

criança virá perturbar a gente aqui! ”. Referindo-se a uma senhora que estava

próxima com uma criança de poucos meses de vida no colo

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e outras moças (vestidas com o uniforme da escola) em volta

brincando com o bebê.

O corredor

Espaço onde transitam crianças e adultos durante todo o dia, o

corredor do bloco B na foto retratado, em muitos momentos foi-nos cenário

de um grande desafio: encontrar as salas de aula dos alunos sujeitos da

pesquisa. Muitas foram as informações equivocadas de professoras ou

estagiárias sobre a localização das turmas que procurávamos, informação

certeira tinham as crianças. Estas sim conhecem o espaço da escola.

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Na nossa visão se faz relevante uma observação quanto à organização

deste espaço. Durante o horário de aula as crianças transitam pelo corredor

para irem ao banheiro, beberem água e outras necessidades mais. Nos dias

que visitamos o IEPIC, percebemos que não havia a presença de pessoas

circulando, vigiando este espaço o que chamou nossa atenção ao nos

depararmos com estas carteiras depositadas no corredor bem abaixo de

aberturas nas paredes com o intuito de ventilar , mas que permitem a

passagem de uma criança por este orifício. Assistimos e intervimos a algumas

crianças que utilizando as carteiras debruçaram-se para olhar o que ocorria

no pátio, vale lembrar que estávamos localizados no terceiro andar do prédio.

A segurança

Ao avaliarmos nossas visitas no IEPIC, nossa opinião sobre a

segurança começa a tomar outro rumo: entrar no pátio da escola como

visitantes não nos foi em momento algum complicado. Passamos por um

portão, no qual constantemente tem a presença de uma pessoa na função

de verificar quem entra e quem sai. No entanto, nossa identificação por meio

da fala foi o suficiente para entrarmos nos diversos horários que lá

estivemos.

Horário de entrada, horário do recreio o que observamos no pátio,

foram inúmeras crianças brincando... Sentindo falta de adultos no local

procuramos: onde estariam os responsáveis por aquelas crianças? Não

encontramos. Os portões que “guardam“ os prédios fechados, ou melhor,

trancados. O que nos fez pensar: a segurança está para as crianças, ou para

as salas de aula ?

Quando nos vimos diante das carteiras depositadas no corredor, local

este, onde as crianças transitam livremente, sendo necessária somente

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uma autorização da professora para saírem da sala sem mais uma vez, a

presença de alguém responsável no corredor, nos perguntamos: onde está a

segurança dessas crianças ? Entretanto, esta foi uma preocupação nossa e

que não encontramos eco nas falas dos sujeitos da pesquisa.

Enfim, este cenário já começa a contar sobre um modo de

socialização. Já podemos ler no espaço, as práticas para a socialização

dessas crianças, e o uso que as crianças fazem deste espaço.

Os sujeitos da pesquisa

A escolha dos sujeitos desta pesquisa se fez mediante indicação de

um grupo de professoras que foram selecionadas para a realização do grupo

focal do corpo docente, parte integrante da pesquisa citada anteriormente. A

este grupo foi solicitado que ao preencher um questionário indicasse dois

alunos para participarem do grupo focal das crianças. Sugerimos então, a

recomendação de um bom aluno e de um mau aluno. Foram assim denominados

a partir de algumas conversas com a equipe pedagógica desta instituição nas

quais as coordenadoras ao relembrar os bons tempos de IEPIC, quando este

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era formado por bons alunos , e comparando com os dias atuais quando

não sabem o que fazer com os “maus” alunos.

Ao recolher os nomes, providenciamos as autorizações para a

participação destas crianças na presente pesquisa. Foram encaminhadas 17

autorizações e retornadas 11 .Os participantes não serão identificados pelo

nome, apesar de termos autorização para veiculá - los, serão então referidos

conforme tabela a seguir:

Criança número nome idade série

C1 Thayane 9 anos 3a série

C2 Thaynara 9 anos 3a série

C3 Joseane 12 anos 3ª série

C4 Janderson 9 anos 3ª série

C5 Jayane 9 anos 3ª série

C6 Marlon 14 anos 3a série

C7 Ana Flávia 9 anos 3a série

C8 Anna Caroline 9 anos 3ª série

C9 Jonathan 9 anos 2ª série

C10 Orlando 10 anos 4a série

C11 João Felipe 12 anos 4a série

A pesquisa

O trabalho empírico se dividiu em três etapas : a primeira se deu com a

realização de um grupo focal que teve como objetivo ouvir o discurso dos

sujeitos da pesquisa sobre a socialização que vivenciam no espaço escolar .

A segunda etapa teve a intenção de aprofundar a compreensão a

propósito do conhecimento sobre as regras escolares e as punições ou

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recompensas que acompanham estas normas. Para tanto, utilizamos um jogo

de trilha, jogo que é do conhecimento das crianças e propusemos a estas

que elaborássemos juntos as regras necessárias para o jogo , representando

as premiações ou punições necessárias de acordo com as regras escolares.

Com o objetivo de aprofundar temas,o terceiro momento tratou-se de

uma entrevista realizada individualmente ou em pequenos agrupamentos, sobre

o processo de socialização que acontece na escola e na família e como a criança

compreende essa relação família X escola no que tange o assunto. Além disso,

foi apresentado um dilema moral trazendo para a discussão a presença de

“sentimentos morais” que se fizeram presentes nos momentos anteriores.

Considerações teórico-metodológicas

Ao avaliarmos os pressupostos da instituição escola sobre

socialização, na relação com a família de classe popular , identificamos algumas

questões que necessitam de atenção. Além da baixa escolarização em geral

destas, o que de certa forma as afasta deste contexto por não conhecê-lo

bem, percebemos a grande distância cultural entre estas camadas sociais: a

classe média, representada pela escola e a classe popular. Dessa forma

assistimos de um lado a forma escolar de socialização , que de acordo com

Thin compreendemos a constituição desta

“no decorrer de um longo processo histórico, como forma derelações sociais e de socialização que, sem sercompletamente homogênea, partilha um certo número detraços articulados entre si e que caracterizam uma maneirade socializar que se impôs como predominante em váriassociedades modernas.” (Thin, p.8)

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Ou seja, é ainda hoje o modelo de socialização dominante . E do outro

lado a classe popular vivenciando no espaço social a imposição desta

cultura que não é a sua e se esta é a dominante cabe-lhes então reconhecer- se

como dominados. Porém falta-nos perguntar sobre a forma de socialização da

classe popular. Ora, se tão grande é a diferença entre estes lugares, é de se

esperar diferenças também nas práticas socializadoras e ainda a reflexão que

antecede tais práticas, em outras palavras o que Daniel Thin chamou de

lógicas socializadoras.

A distinção entre as lógicas socializadoras da escola e das famílias

de classe popular acabam tornando- se uma oposição tamanha diferença

existente entre esses dois mundos. O mundo escolarizado, dominante, que

obedece a lógica ocidental e o outro mundo tão próximo e tão distante, o mundo

não escolarizado, dominado pela força que se impõe, no entanto, que resiste

e encontra a seu modo formas de lidar com ela sem se deixar vencer. Ainda

assim, dizemos que tal confronto é desigual, pois quem possui a lógica

vigente, que orienta, que manda é o dominador, é ele que cita as normas da

escola, lugar pelo qual, todos querem passar, pois acredita- se que através

dele brote a possibilidade de vislumbrar um futuro melhor.

Encarar tal discussão significa abandonar a perspectiva dominante e

reconhecer a possibilidade de uma lógica diferente, pois vivida, experienciada

de maneira diferente e, decorrendo desta lógica, práticas distintas. Não se

trata de assumir uma postura relativista frente à legitimidade que o modo

escolar conquistou ao longo dos tempos, mas de permitir enxergar a

possibilidade de um confronto entre lógicas e práticas socializadoras

distintas, onde cada qual será modificada pela interferência da outra. Não

significa, deste modo, encontrar o certo e o errado, mas as diferenças no que

constitui o mundo social destas crianças. E o que percebemos foi que ao

buscar a voz infantil enunciando as diferenças, encontramos lugares de

resistência à hegemonia da lógica escolar.

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Se pensarmos a socialização como algo além da interiorização das

normas vigentes, ampliando este processo de maneira a abarcar as diversas

formas de vivências possíveis, sejam individuais ou grupais, relacionadas a

histórias de vidas resultantes das condições sócio-econômico-afetiva de cada

um, compreenderemos a escola e a família como lados da mesma moeda,

ou seja , estão juntas neste processo , apesar de nem sempre como parceiras.

Apresentação dos dados

“ As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem a nossa língua.”

Larrosa (1998)

Como definição de selvagem segundo o Dicionário Aurélio da Língua

Portuguesa temos entre outras, aquele “que ainda não foi domesticado”,

significado este que traduz o pensamento de Durkheim sobre a criança.

De acordo com Fernandes (1994), Durkheim apresenta duas naturezas

humanas, a nossa individualidade e o Outro em nós.

“ Eis por que a criança, carente da segunda natureza, privadaque está ainda do Outro interno, é o ser de falta pois,literalmente, falta- lhe um ser, e o melhor. A criança é, então, oradicalmente outro do adulto e do educador. Está aberto ocaminho que Durkheim percorrerá sem sobressaltos: acriança é o outro, o estrangeiro, o bárbaro, o desconhecido, oestranho. Será analogicamente aproximada ao louco, aodéspota, ao bárbaro ( homem primitivo), pois o que importa émarcar sua diferença de estatuto.” ( p. 79- 80)

Pouco nos importa compreendê-la, o que a nós vale é marcar sua

diferença, destacar não o que vemos, mas o que lhe falta a partir da visão

que temos de “homem autônomo” como queria Piaget ou “adulto normal”

como esperava Durkheim.

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Este trabalho tem como objetivo principal responder a seguinte

questão: Como podemos tomar a criança como sujeito de suasocialização?

Nesta pesquisa compreendemos que a criança se faz sujeito pela

linguagem. Ao falar sobre o seu processo de socialização mais do que

reproduzir o discurso do adulto ela o reelabora retirando-o do lugar de quem

fala sobre o outro, passando-o para o lugar do sujeito que fala sobre si.

Nos propomos, pois, a investigar a fala da criança sobre o seu

processo de socialização. O que fala esta criança? Esta fala é confiável?

Para responder tais questões, iniciamos o trabalho de campo com a realização

de um grupo focal, que teve como norteador o roteiro a seguir apresentado, na

intenção de fazer emergir destas falas, indicadores do que esta criança

pensa e como elabora seu discurso sobre tal processo.

Grupo Focal – Tarefa 1

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Os grupos focais podem ser descritos, de maneira geral, como

entrevistas que se fundamentam na relação desenvolvida dentro de um grupo.

O fator primordial da utilização dos grupos focais é a possibilidade que estes

oferecem de estabelecer troca de idéias sobre o assunto – foco- de

interesse, durante um tempo limitado, no qual as questões são discutidas e

aprofundadas no grupo.

Os grupos operativos, assim chamados por Pichon- Rivière (1998),

primeiro autor a desenvolver técnicas de trabalho em grupo, consistem na

realização de trabalhos em grupos, cujo objetivo é promover, de forma

econômica, um processo de aprendizagem. Para o autor, aprender em grupo,

significa realizar uma leitura crítica da realidade, apropriando- se ativamente

desta realidade.

O papel dos pesquisadores, no grupo focal, foi o de dirigir a discussão

de forma semi- estruturada, cuidando para que o tema não fosse desviado.

As falas das crianças foram filmadas, mediante autorização dos pais para

veiculação da imagem. A seguir apresentamos o roteiro que utilizamos nesta

etapa da pesquisa.

ROTEIRO PARA O GRUPO FOCAL- TAREFA 1

O que é ser criança?No que é diferente ser adulto ou ser criança?A escola é igual ou diferente da casa?O que não pode na casa?O que não pode fazer na escola?A professora gosta de você? Por que?O que a professora gosta que as crianças façam?O que a professora não gosta?Por que você acha que é assim?Quem inventou essas regras?Diga como um bom aluno deve se comportar na escola.

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Após a realização do grupo focal e uma primeira leitura dos dados

coletados nas falas dos sujeitos da pesquisa, voltamos ao campo com o

objetivo de focar na compreensão que estas crianças tinham sobre as

regras da escola . Para isso, apresentamos ao grupo o jogo das regras

escolares, que se tratou de um “jogo de trilha” , jogo popular entre as crianças.

O que o diferenciou dos demais na nossa proposta foi, a participação das

crianças na elaboração dos cartões que acompanha o jogo, indicando

punições (carta 2) ou recompensas (carta 1) de acordo com a transgressão ou

obediência às regras escolares.

( carta 1) ( carta 2)

As crianças elaboraram, portanto as regras,e as mesmas discutiram

entre si o “valor” de cada ação atribuindo a cada, uma sanção: punição ou

recompensa. Esta etapa, assim como o grupo focal e a entrevista apresentada,

a seguir, foram registradas em vídeo.

E o terceiro momento, elaborado a partir da análise dos dois

primeiros encontros, foi uma entrevista realizada individualmente ou em

pequenos grupos com a intenção de aprofundarmos os dados coletados

anteriormente. A junção das três etapas nos forneceu a base de dados para

as categorias de análise deste trabalho que apresentaremos agora, através

das falas das crianças, sujeitos da nossa pesquisa.

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Tais falas serão apresentadas por meio de episódios, que são

recortes de cada uma das etapas do trabalho. Os episódios serão

apresentados por uma numeração que indica sua ordem dentro de um tema

por nós organizados, a partir da primeira leitura dos dados realizada. Este

tema abarca de maneira geral, as categorias que utilizamos na análise do

trabalho. Logo a seguir, como identificação da etapa, citaremos as tarefas

numeradas de acordo com a ordem da realização do trabalho. Apresentamos

um exemplo da legenda para a leitura dos episódios:

( T/1) Tarefa 1- Grupo Focal

( T/2) Tarefa 2 - Jogo das Regras

(T/3) Tarefa 3 - Entrevistas

P 1 / (2) ou (3)

Pesquisador ( 1),(2) ou (3)Nestas tarefas contamos com a participação dedois membros do grupo de pesquisa da UFF

C (?)

Fala da criança . A numeração a seguir, está deacordo com a tabela apresentada anteriormente,sobre os sujeitos da pesquisa.

C ( nid) Criança não identificada

Estes episódios foram re-ordenados a partir das categorias

construídas. E podem ser utilizados em mais de uma categoria.

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3.1 A definição de ser criança

Como primeiro tema na busca da apreensão do discurso infantil

sobre o seu processo de socialização encontramos a criança como ser social,

que pensa sobre o seu lugar na sociedade e o define em duas expressões .

3.1.1 Criança como aluno

Episódio 1: O que é ser criança?

T1/C2-É brincar.T1/C1 Pode fazer um milhão de coisasT1/C2- É. Fazer dever de casa, dever de aula.T1/C1- EstudarT1/C2- A melhor coisa é brincar.T1/C5- Ser criança você pode pegar um livro e ler.T1/C1- As avós tambémT1/P1- O Orlando está dizendo que o adulto também pode fazer isso

Como vemos no episódio 1 ao se deparar com a pergunta “ O que é

ser criança?” a primeira fala corresponde ao que se pode fazer.

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Ser criança permite brincar e a brincadeira pode ser traduzida em

uma diversidade quase infinita de possibilidades. Pode-se criar , inventar,

simular e ser...

No entanto, ser criança também pressupõe ter deveres a cumprir:

“ dever de casa, dever de aula”.

Não podemos desconsiderar o fato de que estas crianças ao serem

argüidas se encontravam no ambiente escolar, falando sobre ser criança

para professoras, por outro lado vemos a necessidade de se ponderar também

sobre a força da escola como lugar da meninice, transformando o tempo de

ser criança no tempo de aprendizagem escolar, ou seja, o tempo de ser

aluno. Porém o que destaca neste episódio é o fato de que estas crianças

pensam sobre o seu lugar na sociedade.

Quando surge algo que pode ser também realizado pelo adulto,

nasce aí a distinção, uma distinção necessária. Se a atividade pode também

ser realizada por um adulto, esta não pode definir criança. Ser criança

pressupõe ser diferente do adulto. Será que essas crianças estão

simplesmente reproduzindo a fala do adulto, como nos diria Piaget?

Não. Essa criança demonstra que conhece a lógica socializadora.

Recebe esta lógica não como “inculcação”, como nos diria Durkheim, mas

como alguém, sujeito deste processo que compreende a lógica vigente e

reelabora o discurso do mundo adulto tornando –o seu.

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3.1.2 Ser criança em distinção de ser adulto

Episódio 2: O que é diferente da criança e do adulto?T1/C2- Criança é pequeno, adulto é grande .( demonstra em gestos)T1/C1- Adulto trabalha e as crianças estudamT1/C5 -Mas de vez em quando os adultos fazem coisas erradas...T1/C2 -Tem vezes que o adulto manda criança trabalharT1/C5- Isso é uma vergonha. Criança pedir esmola na rua.

De acordo com o episódio 2 a primeira diferença entre a criança e o

adulto diz respeito primeiro às dimensões físicas, e em segundo trata das

obrigações. É quando surge o trabalho como atividade distintiva do adulto.

Portanto, quando essa criança trabalha, aparece a indistinção entre adulto e

criança, e a explicação se diz numa palavra: exploração. Não é a criança que

trabalha como atividade normal, mas é o adulto que “manda criança trabalhar.”

E isto é sinalizado como erro: “de vez em quando os adultos fazem coisas

erradas...” Mas por que sinalizar desta forma? Seria desnecessário demarcar

assim, se considerássemos que os adultos errassem tanto quanto as crianças.

Mas é a criança o ser de falta, ser incompleto, ser que tem muito, o

que aprender. Estando em oposição ao adulto pressupõe- se então que o

segundo seja um ser completo. Segundo Sarmento (2004), juntamente com a

criação da escola, houve o recentramento do núcleo familiar no cuidado dos filhos,

a produção de disciplinas e saberes periciais, e a promoção da administração

simbólica da infância. Conjuntos de discursos sobre a criança que partiam de duas

representações centrais: a “criança-anjo, natural, inocente e bela e a criança-

demônio, rebelde, caprichosa e disparatada” (Sarmento, 2004). Esses discursos

afirmavam, entre muitas medidas de proteção e controle, a partir destas

concepções, a diferença radical entre a criança e o adulto. Diferença essa

expressa por uma desigualdade: as crianças seriam incapazes de participação

plena no mundo social, por déficits diversos. As crianças seriam seres

incompletos, que precisam passar pelos processos de socialização – tendo a

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escola, nos séculos seguintes, ocupado um lugar privilegiado nesta tarefa – para

se tornarem membros ativos do mundo social.

No discurso das crianças, o trabalho como atividade do sujeito adulto as

define na diferença.

No episódio 3, que trata dos erros infantis, vemos a criança rindo e

assim expressando um certo movimento de subversão.

“ O que será, que será?Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiarPorque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrarE todos os meninos vão desembestarE todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o padre eterno que nunca foi láOlhando aquele inferno vai abençoar

O que não tem governo, nem nunca teráO que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem juízo.”( Chico Buarque)

Somos nós capazes de conter o riso do outro? Somos nós capazes

de governar alguém que não pretenda se deixar governar?

Criança não faz “coisa errada”, só porque ainda não conhece o certo,

mas como os adultos erram muitas vezes por desejar desafiar. E a

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transgressão é perigosa, segundo Fernandes (1994), “ a transgressão instaura

a dúvida nesse universo de crenças e de certezas[...]” (p. 163)

Episódio 3: Você disse que às vezes os adultos fazem coisas erradas e ascrianças não. Criança faz coisa errada?

T1/ G- claro (risos)T1/C7- De vez em quando, de vez em quando não.T1/C5- O sonho da mãe é a criança (trecho não identificado) mas, às vezes acaba seenvolvendo com drogas.

Percebemos ainda no episódio 3 , a presença do discurso social para

o pobre : é a criança pobre se emaranhando no mundo das drogas .É a

criança re-significando as suas práticas a partir do discurso do outro.

3.2 Relações entre as famílias e escola

Diferente é o entendimento de socialização entre escola e a família

de classe popular, como trataremos neste trabalho. Como falar de socialização

sem levar em conta as distintas formas de vida social? É possível pensar

em igualdade de práticas sociais diante de tanta diversidade de vivências

entre as classes sociais? Classes sociais diferentes, com experiências de

vida diferentes, obedecem a um mesmo modo de relação social ?

As relações sociais produzidas na escola nos mostram práticas

socializadoras muito diferentes, e até mesmo contraditórias, das relações

sociais familiares. Daniel Thin (2006) nos diz que o que há é uma

“ confrontação desigual”, são dois pólos de lógicas socializadoras : o pólo das

lógicas escolares que é resultante de um processo histórico e o pólo das

lógicas populares.

Tal desigualdade é percebida na imposição que a lógica e as

práticas escolares exercem sobre as famílias de classe popular, visto que a

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escola tanto é um lugar desejado, quanto desconhecido. As famílias das

classes populares desconhecem a totalidades das regras escolares, restando a

estes a conformação das exigências da escola. Se a escola possui “as

regras” dominantes, as que vigoram, então é da escola o lugar legítimo,

conseqüentemente são ilegítimas as lógicas e práticas das famílias

populares. As próprias famílias assumem essa posição de ilegitimidade na

relação com a escola, mas como as crianças percebem essas relações?

Episódio 4: O que tem de diferente na casa e na escola?

T1/C3- Na escola a gente estuda e na casa a gente brinca.T1/C2- Não. Na escola a gente também pode brincar, no recreio.T1/C1- ÉT1/C8-- Na escola a gente aprende.T1/C2- Em casa a gente também pode aprender.T1/C10- Até no livro.

A distinção entre um espaço e outro é marcada pelas diferenças de

possibilidades de ação. O que pode fazer na escola, pode fazer em casa? Ou o

que pode fazer em casa, pode fazer na escola?

É a visão da casa e da escola como espaços distintos que possuem

na visão da criança finalidades e possibilidades que lhes são peculiares. Como

vemos no episódio 2 , estes espaços são tão demarcados que existe a

preocupação de não confundir um com o outro.

Episódio 5: O que é confundir a nossa casa com a escola?T1/C5- É fazer as coisas que você faz em casa é fazer na escola.T1/P1- Então, é isso que eu tô perguntando. O que pode fazer em casa que não podefazer escola.T1/C7- tipo jogar vídeo –gameT1/C5- Ficar com o pé em cima da cadeira, isso faz no sofá. Na escola tem carteira.T1/C10-Tem muito dever.

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A escola é lugar de responsabilidades, lugar de obrigação. A criança na

escola é vista como aluno, a relação existente entre o adulto e a criança na

escola “é, antes de tudo uma relação pedagógica. O único sentidoda relação é a educação. Os adultos que rodeiam as criançastêm como única tarefa educá-las e formá-las através deatividades que não têm outro fim senão esta formação dasmentes e dos corpos “. ( Thin 2006, p.9) (grifos nossos)

Segundo o ponto de vista da criança, este é o fundamento da escola,

formar, preparar... Como trabalhar com a possibilidade de relaxamento,

diversão? Escola é lugar de ordem, disciplina, regras...

3.2.1 Confronto de relações na figura dos sujeitos

Durante este trabalho, algo que muito nos chamou a atenção foi a

distância que pareceu existir entre a escola, no papel da professora e a

família. Ao perguntarmos sobre a relação entre a professora e a família,

obtivemos como resposta, o desconhecimento, como podemos verificar no

episódio 6 .

Episódio 6: Sua professora gosta da sua família?Entrevista 1-T3/C2- Ela nem conhece.T3/C1- A minha também nem conhece.T3/C1- A minha não conhece a minha mãe.T3/P2- É? Mas o que ela diz assim, ela fala alguma coisa sobre a sua família, sobre a sua casa, sobre as coisas que vem da sua casa? ( C2 sinaliza que sim)T3/P2-Fala? O que ela fala?T3/C2- É. Ela vive falando que vai encontrar com a nossa mãe, que vai falar o que agente ta aprontando na sala de aula. Que queria muito conhecer a minha mãe.T3/C1- Ela não conhece minha mãe, ela não conhece... Eu acho que ela conhece meuirmão sim. Mas , eu não sei. É que ... a minha professora, se a gente apronta, ela vai lá,quando vê a mãe fala pra ela tudo,minha mãe bota de castigo.T3/P2- Mas, ela gosta da sua mãe?T3/C1- Gosta quando ela bota a gente de castigo.

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A família e a professora não se conhecem, no entanto, a professora

demonstra “gostar” da família, quando sente-se apoiada por ela . Na

perspectiva da criança a professora gosta da mãe “quando ela bota a gente

de castigo”, ou seja, a família é chamada à relação no momento da sanção.

Observemos no episódio a seguir:

Outra simpatia surge entre a escola e a família, quando a primeira vê

seu trabalho valorizado. Na voz da professora a escola reconhece e aprecia a

família que trabalha de acordo com os seus objetivos. É a criança que

percebe a admiração da professora à sua família por meio do seu discurso.

No episódio seguinte, vemos reforçada a falta de comunicação, a

distância existente entre a família e a escola.

Episódio 7: Sua professora gosta da sua família?

Entrevista 2-

T3/C5- Ela só gosta do meu pai e da minha mãe só.T3/P2-O que ela fala dos seus pais?T3/C4-- Fala coisa boa.-T3/P2- Fala coisa boa, que tipo de coisa boa? Você sabe me dar um exemplo dealguma coisa que ela tenha falado?T3/C4- NãoT3/C5-GostaT3/P2- Ela não faz nenhum comentário sobre as coisas que vem da sua casa ...T3/C5- Mais ou menos ( sinaliza com a mão)T3/P2- Mais ou menos , como assim mais ou menos?T3/C5- Ah , que a família dá estudo pra ela.

Episódio 8 : Sua professora gosta da sua família?

Entrevista 3-T3/C8- Ela não conhece a minha família?T3/P2-O que é que ela fala das coisas que vem da sua casa?T3/C8-Não.T3/P2-- Não fala nada? (Sinaliza que não.)

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3.2.1.1 As tarefas escolares como objeto na relação

Diante desta falta de contato, surge o dever de casa como mediador

da relação. É por meio dele que a família avalia o trabalho escolar e a

escola observa o acompanhamento e dedicação familiar para com as

atividades escolares. De acordo com Thin (2006) percebemos a ambivalência

da família quando ora se incomoda com a falta de tarefas , como vemos nos

episódios a seguir, e ora acha injusto,a grande quantidade destas.

Episódio 9: Sua mãe gosta do dever de casa?Entrevista 1-T3/C2- Gosta.T3/C2- É . E a minha professora que passa quase um mês sem mandardever de casa ela já começa a reclamar.T3/C1- Fala que... Eu falo pra minha mãe bem que ela faz muito dever.Aí eu pergunto sempre quando a gente ... a gente faz o dever e a gentetá atrasada a gente pergunta a tia se pode fazer em casa. Porque quasesempre a tia não dá dever de casa. Ontem eu tinha que fazer dois deveresde casa e deixar o caderno em casa pra eu fazer o resto...T3/P2- Mas quando vai muito pra casa. O que a sua mãe fala?T3/C2- A minha mãe acha maravilhoso. É bom que eu não vejo televisão.T3/C1- A minha mãe acha injusto.T3/C2- a minha mãe acha maravilhoso porque ela acha que é bom porque eu não vejo televisão.Só dá pra ficar sentada fazendo dever de casa.T3/C1- Ah ela acha injusto se tiver muito dever né. Aí ela bem fala .Ela fala as respostas bem de alguns e outros ela deixa, muito difíceis ela deixa bempra mim fazer. As facinhas que eu já sei ela fala. Fala porque eu já sei, né?

Segundo Thin , “A ambivalência vai aparecer, por exemplo,quando os paispedem aos professores que sejam rígidos e severos, e aomesmo tempo protestam contra algumas sanções: de umlado, eles esperam que as modalidades de manutenção daordem escolar correspondam ao modo de autoridadefamiliar; de outro, eles tendem a querer proteger osmembros da família contra o poder dos agentes dasinstituições, com uma espécie de obsessão quanto àinjustiça e à estigmatização a respeito de sua família.”(2006, p.18)

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Encontramos o dever de casa com múltiplas funções: a de ocupar a

criança, “ minha mãe acha maravilhoso porque ela acha que é bom porque

eu não vejo televisão “ , como é reforçado no episódio seguinte.

Outra função do dever (dever de aula e dever de casa) é ser uma ação

reconhecida pela família como útil a, expectativa que a família deposita na

escola como possibilidade de ascensão social.

Ainda na visão da criança, o dever é percebido como castigo, como

podemos observar no episódio a seguir

Episódio 12: Vocês acham que as professorasgostam de vocês?

T1/C10- a professora não gosta de mim, porque ela passa muito dever.

Episódio 10: Sua mãe gosta do dever de casa?Entrevista2-T3/C4- Sinaliza positivamenteT3/C3 e C5- – Gosta.T3/P2 Gosta? E o que ela fala quando você leva muito dever de casa?T3/C4-- Fala nada.T3/C3- Nada.T3/P2- Fala nada? E quando leva pouco?T3/C4- Fala nada.T3/C3- Nada.-T3/C5- A minha gosta de tudo.Passo a manhã inteirinha fazendo dever.T3/P2- E quando tem pouco dever?T3/C5- Eu faço o dever e começo a brincar. Ela gosta.

Episódio 11: sua mãe gosta da escola?

Entrevista 1-T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, ela querque a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.

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3.2.1.2 Regras da casa e da escola : as possibilidades de ação

A socialização é um processo que se expressa na aplicação de

regras, ajustadas com as normas dominantes da sociedade .

Segundo Thin ( 2006), tais normas são anunciadas pelas concepções

normativas da socialização que“reduzem o sentido da socialização à interiorização de normassociais dominantes ou à produção de indivíduos capazes deviver em conformidade com as leis e normas próprias a umaformação social em uma dada época.” (p.3-4)

Ainda de acordo com Thin, ( ibidem) compreendemos que

“analisar as relações entre as famílias populares e escolanessa perspectiva requer que se abandone a visãodominante que caracteriza essas famílias pela incoerência ,negligência,’ anormalidade’, e considerar que as práticas e asmaneiras de fazer dos pais não são totalmente incoerentes,que elas têm sua própria lógica, ou melhor, que elas nãoparecem incoerentes senão quando confrontadas com asnormas da escola e, de modo mais amplo, com as normasdominantes da vida social.” (p.3)

E dessa forma nos perguntamos: a escola e as famílias populares

trabalham com as mesmas regras? ou ainda, trabalham da mesma forma

com as regras? Como as crianças percebem tais diferenças?

Episódio 13: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 1-T3/C1- Brincar com brinquedos, ver televisão.T3/C2-Na minha casa, o que eu posso fazer lá e não posso fazer aqui é...Brincar.T3/P2-Brincar. Brincar de quê?T3/C2- Brincar com brinquedos, bonecas, panelinha...T3/P2-Por que não pode?T3/C1- Porque aqui é escola. Não dá!T3/C2-Aqui é lugar de estudar.T3/C1- É!

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É a escola vista como o lugar da obrigação infantil: o estudo.

Episódio 14: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 2-T3/C5- – Ficar mais relaxado em casa. Na escola não pode.T3/P2–Como assim relaxado?T3/C5- Ah , descansar assim... E na sala não dá.T3/P2- Por que não dá?T3/C5-Porque a professora fala: parece que ta em casa. Ta na sala de aula!T3/C4-- Na sala ao pode fazer nada.T3/P2- É. O que pode fazer me casa que não pode fazer na escola?T3/C4-Brincar.T3/P2- Brincar? Só isso? Na escola não pode brincar?T3/C4-Só no recreio mesmo.T3/P2- E você? ( direcionando para C3)T3/C3- Não sei.T3/P2-Não sabe? O que você costuma fazer em casa que você não faz naescola?T3/C3- Brincar.

No confronto com as ações de relaxar e brincar, emergem na diferença

uma imagem do estudar: rigidez corporal, controle de emoções, seriedade...

Percebemos na fala de C5 a diferença sendo marcada pela professora: casa e

escola são lugares distintos, portanto de práticas e possibilidades diferentes. O

que fazemos na escola? Como nos referimos às tarefas escolares ? Deveres!

São estes os “deveres” das crianças: cumprir o que a escola propõe. Mas em

casa também há as obrigações...

No episódio a seguir, perguntamos a criança sobre as ações que

podem ser realizadas em casa e não podem ser feitas na escola. Neste

momento não compreendemos que esta criança nos falava sobre trabalho

infantil... Só nos demos conta ao transcrevermos a entrevista. Observemos a

fala desta criança:

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Episódio 15: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 3-( sinaliza que sim)T3/P2- O que?T3/C8- É.... arrumar casa, lavar louça, varrer o quintal. Só.T3/P2- Só? As outras coisas todas, que você faz na sua casa, você faz na escola?T3/C8- NãoT3/P2- Não? O que você faz em casa? Você ajuda em casa. Lava louça, varre o quintal, arruma a casa. O que mais que você faz na sua casa?T3/C8- almoço. (sinaliza com o dedo que não)T3/P2- almoça...Não?( silêncio... estala os dedos, olha ao redor, parece dispersa, bate palma)T3/P2- Você brinca em casa?( T3/C8 sinaliza que sim)T3/P2- O que mais você faz em casa? (Silêncio)

As crianças que distinguem- se dos adultos pelo trabalho -discurso

fundador da infância-, são crianças que trabalham. Essa contradição no

discurso revela o confronto de lógicas socializadoras :é na lógica escolar que

criança não trabalha. Na realidade das camadas populares as crianças

trabalham, mas na escola declaram que isso é errado.

Ao invertermos a situação e questionarmos sobre as possibilidades

da escola em comparação com a casa vemos a criança com dificuldade de

encontrá-las.

Episódio 16: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 1-T3/C1-É... aí eu não sei. ( cruza os braços)T3/P2- Não sabe?T3/C1- Ah, sei. Ficar correndo pelo corredor...Fazendo besteira , comendo toda hora...T3/C2- Não. Correndo pela sala de aula, porque em casa não tem espaço, tem estante, sofá...É não pode fazer isso em casa porque não tem espaço.T3/P2- Você disse que pode comer toda hora na escola e em casa não pode. Como é queisso?T3/C1- Não. Não, como é que você falou? Não pode, mas em casa pode. Aí, não a gente nãopode fazer na escola e que pode fazer em casa é botar o pé... na parede. Nenhum dosdois a gente pode.( sinaliza com o dedo negativamente) Nem na escola, nem lá em casa.T3/P2- Tem alguma coisa que pode na escola e que não pode em casa?T3/C1- Não.T3/P2- Não? ( Silêncio )T3/C2-Também não.

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A dificuldade em apontar as possibilidades que a escola traz nos faz

refletir sobre este lugar. Lugar de regras, de obrigações, lugar de possibilidade

sim! A escola como ideal republicano seria lugar de liberdade!

Episódio 17: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 2-T3/C5- Isso é difícil!T3/P2- Difícil?T3/C5- Sei lá!T3/P2- Não sabe também? ( dirigindo- se à C3 e C4) Vocês falaram que na escola, queem casa pode brincar e na escola não. O que acontece com quem brinca na escola?T3/C5- Quem brinca se diverte. Isso é em casa.T3/P2- Por que não pode se divertir na escola?T3/C5-Porque aí as pessoas começam a brigar, arrumar confusão, xingar...T3/P2-E o que você acha?T3/C4- Não sei.

No entanto, o que vemos é o comportamento desejado pela escola

como comportamento da obediência. Eis um paradoxo: a escola tem como

objetivo trabalhar para autonomia conforme Piaget a definiu, mas trabalha com

práticas que sustentam a heteronomia dos sujeitos em relação às regras e à

autoridade.

De acordo com Fernandes ( 1994),

“[...] as escolas primárias moralizam as crianças obrigando-as à cópia do adulto normal: obediente, sacrificante esubmisso ao desejo do Outro. Uma pedagogia perseguida poruma única obsessão: constituir na criança, esse ser da falta,aquilo que lhe falta, o Outro internamente inscrito edominante.” (p.147)

Retomando a questão sobre a distinção das possibilidades de ação

entre a casa e a escola, surge o silêncio.

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Episódio 18: O que pode fazer na escola que não pode fazer em casa?Entrevista 3-C8- (Silêncio revira os olhos, coloca a mão na boca, tampa o rosto, parece estarpensando) T3/C8- O que tu falou?T3/P2- O que você pode fazer na escola que você não pode fazer em casa?(Silêncio – parece pensar)T3/C8-Brinca na escola?( C8 sinaliza que sim)

O silêncio, a procura por alguma resposta demonstra mais uma vez a

impossibilidade de pensar a escola como lugar de possibilidades. Escola que

lugar é este? No episódio 19, sobre a relação família e escola, observemos a

fala de C2.

Episódio 19: sua mãe gosta da escola?

Entrevista 1-T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/C2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, elaquer que a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.

Em outro momento, encontramos a mesma criança falando sobre a

expectativa familiar em relação à escola.

Episódio 20: Tem alguma coisa que ela não gosta?Entrevista 1-T3/C1-ah hamT3/P2- O quê?T3/C1-Garoto que fica batendo bem nas meninas.T3/C2-É que os garotos fica batendo na gente. Que a gente xinga asprofessoras. E ela também vive enchendo o meu saco dizendo que se eunão estudar , eu não vou ter um trabalho, um trabalho direito.

Em ambos os episódios, reforça- se a idéia do investimento da família e

da escola, na valorização da ação de estudar . Mas, ainda assim, as crianças

não conseguem formular as ações escolares como possibilidades . Aliás, elas

são descritas, como veremos adiante, como impossibilidades ou interdições.

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3.2.3.1 Regras e limites

Apesar das obrigações coexistirem em ambos os espaços, o que

percebemos são práticas diferentes. Sendo a casa esse espaço de liberdade

onde quase tudo é permitido, é com o estabelecimento de limites que a família

demarca até onde se pode ir.“[...] A transgressão de limites que não podem serultrapassados, sejam eles limites territoriais ou deaceitabilidade, acarreta diferentes formas de repressão verbalou física. Os pais fixam os limites a serem respeitados deforma imperativa, ou seja, eles são pouco negociáveis, e foradele concedem toda liberdade.” (Thin, 2006, p.11)

Enquanto na escola“a socialização passa pela aprendizagem de regras, e arelação entre o mestre e o aluno deve se basear em regrasimpessoais ou ‘ suprapessoais’, [...] as disciplinas escolaressão entretecidas pela aprendizagem das regras (regrasgramaticais, regras matemáticas, regras de apresentação etc.)(ibidem, p.9)

Essa é uma das grandes diferenças entre as lógicas socializadoras,

segundo a pesquisa de Thin.

Como as crianças de nossa pesquisa percebem essas diferenças?

Episódio 21: Mas o que pode fazer na escola que em casa não pode? E o quena casa você pode fazer, mas na escola não .

Entrevista 2T1/C5- Brigar.T1/C7-Brigar, pular o muroT1/C10- XingarT1/P1- Você pode xingar em casa?T1/C10- sinaliza que não e riT1/C2- Correr!T1/C1- Correr. É correr na hora que manda ficar quieto.T1/C10- Responder. Responder a professora.T1/P1- Mas você responde sua mãe?T1/C10- sinaliza que nãoT1/C1- De vez em quando

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Há, porém, situações intoleráveis tanto na escola quanto em casa,

como bater no outro, xingar, situações que vão contra o direito alheio, o

direito de ser respeitado.

Episódio 22: Pode xingar em casa?Entrevista 1-T3/P2- E em casa pode xingar?T3/C1 e C2- Não.T3/C1- Isso é proibidoEntrevista 2 -T3/C3,C4 e C5- Não.Entrevista 3-(sinaliza de cabeça baixa que não)T3/P2- Não? Por que?T3/C8- É palavrão!

Xingar na escola não é permitido... “Nem em casa:“ isso é proibido!”

Episódio 23: Pode xingar na escola?Entrevista 1-T3/C1 e C2-Não.T3/C2-Nem em casa.T3/C2-Isso é proibido!Entrevista 2 –T3/C3, C4e C5 -Não.Entrevista 3-T3/C8-_Não.(sinaliza com a cabeça que não)

A diferença, portanto, se dá na postura adotada pela família ou pela

escola, em relação ao que é “proibido”. Enquanto em casa há liberdade desde

que não se extrapole o limite, a escola, trabalha com a compreensão das

regras, busca alcançar a “autonomia” da criança. A escola

“ [...] valoriza a autonomia, entendida como a capacidade de ascrianças se comportarem , por si mesmas, de acordo com asregras da vida escolar e, de modo mais amplo, social. Aautonomia ( forma de autocontrole ) assim concebida e nãoapenas buscada, mas às vezes também esperada pelosprofessores, que gostariam que seus alunos fossem

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autônomos desde o momento em que entram em sua sala deaula.” ( Thin,2006, p.11)

Apesar da escola se propor desenvolver suas práticas de forma a levar

os alunos ao autocontrole nos perguntamos: quais os mecanismos utilizados

pela escola com vistas a subsidiar a construção da autonomia? O que vemos

é a autonomização da regra. Trabalha- se com o intuito de levar os alunos à

incorporação das regras pré- estabelecidas, a aceitação da regra como sendo

necessária para vida em grupo, porém sem questionamentos. Concordamos

com Fernandes quando diz que “as escolas primárias moralizam as crianças

obrigando-as à cópia do adulto normal : obediente, sacrificante e submisso ao

desejo do Outro”(p.147)

Para Piaget, porém, a construção da autonomia se daria a partir da

possibilidade do sujeito perceber a “humanidade” das regras, pondo-se como

sujeito co- construtor desse universo moral. Não seria por obediência à regra,

por suposto, que se conseguiria portanto construir essa autonomia.

Enfim, onde está a diferença entre estas maneiras de socialização?

Conforme Thin (2006), está no tempo de socialização. A família trabalha com o

dia-a- dia, a aprendizagem acontece a partir dos acontecimentos do cotidiano.

O tempo da escola é estruturado, direcionando-o ao máximo para

aprendizagem. Há a preocupação da ocupação contínua, sobretudo das

crianças de classe popular “cabeça vazia, oficina do diabo”. O ócio não é visto

como possibilidade de criação, mas como ausência do espírito de disciplina. É a

possibilidade do surgimento de outras coisas que não a moralidade.

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3.3 Família e escola: um olhar que se cruza

O que pensa a família sobre esta escola? E a escola, o que pensa

destas famílias?

Ao iniciarmos o nosso trabalho de campo, nos deparamos com uma

fala que a nós demonstrou insatisfação por parte da escola em ser hoje um

espaço de todos. A escola durante muito tempo foi espaço destinado a uma

minoria que tinha objetivos e valores similares a esta. No entanto, a

escolarização é direito de toda criança, seja ela branca ou negra, rica ou

pobre. E a visão da escola sobre as crianças de classe popular é uma visão

discriminadora. Como em toda regra tem exceção , não são todos, é claro, que

estão na escola e que não se identificam com o perfil de um bom aluno. Mas

tal preconceito existe e a nós se faz evidente nas falas das coordenadoras.

Em setembro de 2005, quando lamentavam a modificação do alunado deste

colégio, que no ano passados era constituído “ por alunos de classe média, que

tinham acompanhamento familiar”, professoras expressavam uma baixa

expectativa sobre os sujeitos que atendem e suas famílias.

Tal situação não é privilegio brasileiro, segundo Thin, a França nos

anos 90 já percebia alteração na escolaridade. “Alguns autores avaliam que se

passou do discurso de luta contra desigualdades a um discurso de proteção da

sociedade contra uma ameaça vinda de bairros populares, cultural e

economicamente deserdados “ ( Cruz, Paixão e Mello, mimeo).

Como vemos no episódio 24, as crianças, ao serem questionadas

sobre a visão da família, sobre a escola, expressam diferentes respostas: a

mãe que gosta, a mãe que tem suas restrições e a mãe que odeia.

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Entretanto o que mais nos chamou atenção foi a palavra violência. Na

sociedade atual, violência é um termo que nada qualifica, mas a todos

intimida. Os sujeitos de nossa pesquisa por muitas vezes citaram o termo

violência mostrando-nos que na visão deles esta é uma constante no

cotidiano escolar. Na segunda tarefa realizada, o jogo das regras, as crianças

chegaram a elaborar o seguinte cartão das regras:

Utilizando o termo violência associado à forma negativa, dizem que

não fazer violência merece um prêmio, inserindo tal ação num discurso de

regra.

Episódio 24: a mãe de vocês gostam dessa escola?T1/C3- GostaT1/C7- Mais ou menos... Violência , com arma...( restante da fala não identificada)T1/C9-Mais ou menosT1/C10- Não.T1/C5- A minha odeia! Ela odeia essa escola.T1/C11- Gosta.T1/C6- Gosta.

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Percebemos então, que o que há é uma expectativa de violência nesta

escola. É algo que parte da instituição através da segurança destinada às

salas de aula, das famílias que reclamam da falta de segurança pra seus

filhos, temendo os bandidos, as drogas, e se repetem na fala das crianças.

Não estamos desconsiderando a preocupação das famílias e da escola, uma

vez que este colégio parece já ter sido alvo da violência e vive sob a ameaça

deste fantasma. Mas temos que considerar que a apropriação do discurso

da violência parece voltar- se sobre as crianças e estas reelaboram o

discurso aplicando-o a práticas que eram consideradas práticas “ infantis” de

molecagem, bagunça, indisciplina mesmo.

Recorremos a La Taille quando este diz que:

“Embora não sejam causa exclusiva da construção dasrepresentações de si, os olhares e juízos alheios desempenhamum papel fundamental. Uma vez que participam, com outrosfatores, da construção dos valores associados àsrepresentações de si, tais juízos não encontram uma “páginaem branco”sobre a qual escrevem e impõem, sem mais , suasaprovações e censuras. Antes, trata- se de um embate entre asimagens que o indivíduo tem de si e olhares judicativosalheios..” (ibidem:71)

Embora encontremos na fala das crianças os discursos da família

reelaborados pelos sujeitos de nossa pesquisa, o episódio a seguir

demonstra,no entanto, que há aqueles que ainda se reconhecem neste

ambiente. Encontramos famílias que “optaram” por permanecer neste

espaço, uma vez que o reconhecem como seu .É a escola como segunda

casa: “minha mãe gosta porque meus primos todos estudam aqui.” Estudar

nesta escola é quase uma tradição.

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Episódio 25: sua mãe gosta da escola?

Entrevista 1-T3/C1- GostaT3- C2- GostaT3/P2- Do que ela mais gosta na escola? T3/C1- Ela?T3/P2-É. T3/C1-Não sei.T3/P2- Como é que você sabe que ela gosta da escola?T3/C1- Ah ela fala. Ela fala que gosta . Eu pergunto, ela fala de tudo. Que gostade tudo.T3/P2- E a sua mãe, gosta da escola?T3/C2- Gosta.T3/P2-– Gosta? Você sabe do que ela mais gosta?T3/2- É... Ela gosta da nossa sala de aula aqui na escola. Assim, ela, ela querque a gente nem tenha recreio, pra estudar.T3/P2-– Só fique na sala?T3/C2- Só fique na sala de aula, sem largar o lápis.T1/P1- Ela acha legal?T1/C11- AchaT1/C6-Porque a minha irmã, minha prima, meus irmãos estuda tudo aqui.

Porém há do outro lado o discurso social que acompanha o pobre e a

escola do pobre : “[...] aqui não tem muita segurança, todo mundo briga toda

hora”. A fala em destaque no episódio 26 nos apresenta como falta de

confiança no papel protetor da escola. A segurança da qual essas crianças nos

falam, diz respeito ao poder de guarda e proteção que a escola deve ter sobre

as crianças. E esse poder é questionado pelas famílias , que percebido pelos

sujeitos de nossa pesquisa, se expressa no discurso destes.

Episódio 26: sua mãe gosta da escola?

Entrevista 2-T3/C3 e C4- sinalizam com a cabeça afirmativamenteT3/C5- A minha odeia.T3/P2- O que a sua mãe fala da escola? (dirigindo-se à C5)T3/C5- Que aqui não tem muita segurança, todo mundo briga toda hora.No ano passado era assim: todo dia tinha uma briga,aí agora também tem.Mas não tem tanta segurança, entra qualquer um, se acontecer coisaerrada a gente fica no prejuízo.T3/P2- A mãe de vocês gosta da escola. Do que ela mais gosta, vocês sabem?T3/C3- A minha mãe gosta porque meus primos todos estudam aqui.( C4 fala por duas vezes com a mão na boca.A pesquisadora pede para repetir e na terceira vez faz gesto de cansaço, irritação.)T3/C4- A minha mãe gosta porque meus primos tão aqui na escola.

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Há ainda a indiferença.

Episódio 27: sua mãe gosta da escola?

Entrevista 3-T3/P2-Ah é? Sua vó gosta da escola?(C8 sinaliza que sim)T3/P2 Gosta?T3/C8- Não sei!T3/P2- Nunca perguntou? (sinaliza positivamente)

No episódio a seguir, percebemos situações que exemplificam a

“violência” vivenciada nesta escola: “garoto que fica batendo nas meninas”, a

falta de respeito por parte dos alunos, que precisam ficar na escola, afinal a

escola é a possibilidade de uma vida melhor.

Podemos fazer uma analogia com a pesquisa de Daniel Thin na

França, quando este nos conta que

“nos mínimos atos de resistência ao esforço socializador daescola – como a recusa a retirar um boné – passa-se a ler osindícios de uma futura possível ação violenta em nível socialmais amplo. A classe popular, alvo do temor, passa a sercolocada em suspeição no interior da instituição que tem comoobjetivo republicano a democratização das relações. Podemosdizer que é uma estrutura de pensamento perversa em suaorigem, nos encaminhamentos que assume e nasconseqüências sociais e políticas que tomam forma a partir desua naturalização. “ ( Paixão, Cruz e Mello, mimeo, p.13)

Episódio 28: Tem alguma coisa que ela não gosta?

Entrevista 1-T3/C1-ah hamT3/P2- O quê?T3/C1-Garoto que fica batendo bem nas meninas.T3/C2-É que os garotos ficam batendo na gente. Que a gente xinga as professoras.E ela também vive enchendo o meu saco dizendo que se eu não estudar , eu nãovou ter um trabalho, um trabalho direito.

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O outro grupo sinaliza como desagrado, a postura da diretora, é a

criança sendo desrespeitada...

Episódio 29: Tem alguma coisa que ela não gosta?

Entrevista 2-T3/C5- A diretoraT3/C4- A diretoraT3/P2- A diretora? Por que? (direcionando para C4 que sinaliza com a cabeçanegativamente)T3/C5- Porque ela não fala com educação com a gente. Ela não dá boa tarde.Ficana sala: Oh fulano , quero saber porque você não tem isso. Aquela arrogância! (Falaempinando o nariz)T3/P2- E você dirigindo- se para (C4), sabe se tem alguma coisa que a sua mãenão gosta?T3/C4 –Sei . A diretora.T3/P2- A diretora também. Por que?T3/C4- Não sei.

A figura de autoridade deve acolher as famílias, essa crítica expressa

nas falas das crianças revela a voz familiar e é elemento de transgressão da

autoridade pela desqualificação das famílias, a criança formula que a autoridade

é arrogante.

3.3.1 Drogas e Violência

No episódio 30, vemos novamente a questão da violência , porém

agora atrelada a uma outra idéia: as drogas.

Episódio 30: Por que não gostam?

T1/C9- Muita violênciaT1/P1- Dentro da escola? Entre as crianças? E os adultos?T1/C9- Todos eles?T1/P1- E os professores?T1/C9- Não.T1/P1- Ta falando dos meninos mais velhos?T1/C9- ÉT1/C10- Sempre na hora da saída minha mãe vê briga...T1/C10-Fala que tem muita briga, muita violênciaT1/C5- Eu não sei porque é a maior escola da América Latina... e não tem alunos dequalidade. A diretora... tinha que ser para cada série uma qualidade. As brigas, asarmas, as drogas. (trechos não identificados)

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Na fala em destaque no episódio anterior, percebemos no discurso da

criança, a expectativa familiar em relação a esta escola, que possui uma

tradição, um porte, um nome, mas que não tem alunos à sua altura. É o

discurso da família, da escola, e da criança que se apropriou deste, sequer

percebendo que é dentre outros, sujeito do qual se fala.

Num outro momento durante o grupo focal propomos às crianças que

elas inventassem as regras da escola , qualquer uma que elas quisessem

e entre elas surgiu novamente a questão das drogas como vemos no episódio

a seguir.

Episódio31: Se a gente fosse inventar as regras dessa escolaT1/C2- Eu ia inventar não ver TVT1/C5- A diretora não mandar na gente.T1/C1- Não ter brigaT1/C9- Não ter violênciaT1/C8- Não ter confusãoT1/C10-Não ter bagunçaT1/C9-Não responder a tiaT1/C5- Não ter venda de drogas aqui na escola.T1/C7- Porque tem ( sinaliza com a cabeça)

Mais uma vez, observamos o discurso de apropriação da escola

representando-a de forma ambivalente: lugar de perigo e lugar de ascenção

social. Além da formulação da escola e suas regras na negação, na interdição.

Falar o que se pode fazer na escola : “isso é difícil!”. O que sabem é o que

“não” pode fazer na escola.

3.3.2 Violência ao redor da escola

Questionamos sobre a presença das drogas na escola e o que

obtivemos como resposta demonstra que a “violência da escola” citada

pelas crianças está na verdade na ordem do discurso, como podemos

perceber no episódio a seguir.

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Episódio 32: Venda de drogas dentro da escola ou do lado de fora?T1/C5- Um dia eu vi isso na rua, fiquei desesperada...T1/P1-- do lado de fora ?T1/C5 – sinaliza afirmativamenteT1/C1- (conta uma história não identificada)T1/C2- (- conta outra história também não identificada)T1/C8- (também conta uma história que não identificamos, mas é sobre o lugaronde ela mora)T1/P1- Quem contou essas histórias para vocês?T1/C8- Minha mãe T1/C2- Eu vejo no jornalT1/C5- (fala não identificada, ma o assunto é sobre drogas)T1/C1- Depois que eu ouvi isso. Eu disse: mãe, eu quero mudar de escola. Euquero ir pra (nome de outra escola- não identificado). Lá xinga mais, bate mais.Então eu quero ir pra escola da minha tia...

3.3.3 Violência fora da escola

Com a intenção de apreender o sentido da palavra violência na

lógica da criança insistimos com o tema inserindo outro contexto.

Episódio 33: E onde vocês moram, tem violência lá?Entrevista 1-T3/C1-Tem.T3/C2- Bastante. Mas agora que botaram uma cabine de polícia lá não tem mais não.T3/P2- E quem faz violência lá?T3/C2- Os bandidos.T3/P2- Os bandidos ?T3/C2- Traficante e tem vez até polícia.T3/C1- Com troca de tiro. ( demonstra com as mãos)T3/P2- - E eles são moradores de lá. Eles moram lá?T3/C2- O que? Os traficantes? T3/P2- – É.T3/C2- Ah ham. Teve uma vez que eles tavam na laje da minha casa.T3/C1- Eu conheço bem um. Mas, a polícia foi lá e perguntou por ele e a gente falavaque não conhecia. ( sinaliza negativamente com o dedo)

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Ao mesmo tempo, que essas crianças nos dizem que, no lugar onde

moram há trocas de tiros dizem-nos logo após, que nunca viram uma cena

de violência.

Episódio 34: Vocês já viram alguma cena de violência?Entrevista1-T3/C1 e C2-... não.T3/P2-Não?T3/C2- Lá onde a gente mora não.

No episódio seguinte uma das crianças entrevistadas nos diz que :

“ escuta os tiros e mais nada...”e o que mais nos chama atenção é que

esta mesma criança no episódio seguinte ao perguntarmos se eles teriam

sido testemunhas de alguma cena violenta nos diz que “ só na escola”.

Episódio 35: E onde vocês moram, tem violência lá?Entrevista- 2(C3 e C5 sinalizam com as mãos, indicando mais ou menos)T3/P2- Mais ou menos?T3/C5- escuta os tiros e mais nada...T3/P2- Quem faz a violência?T3/C5- Os bandidos.

Que violência é esta que existe nesta escola?

Episódio 36: Vocês já viram alguma cena de violência?Entrevista 2-T3/C5- Não.T3?C3- Eu já.T3/C5- Só na escola!T3/P2- Pode me contar? ( direciona para Joseane)T3/C3- Eu não lembro!T3/P2-Não lembra?T3/C4-Eu já ! ( levanta o dedo para falar) Eu vi uma pessoa perder o pescoço naminha frente.

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Podemos perceber nos episódios anteriores que estas crianças

moram num lugar onde convivem com a violência: “troca de tiros”, uma

pessoa que perde a cabeça na frente da criança, porém continuam dizendo

que a escola é um lugar violento. Observemos ainda os próximos episódios:

Episódio 38: Violência com a criançaT3/P2- Você pode me contar alguma cena de violência que você tenha visto, semme falar nome?T3/C8- Violência? Tem uma violência comigo. (abaixa a cabeça)T3/P2-- Violência com você. Então me conta como é que foi essa violência?T3/C8- Sempre quando eu venho pro colégio, tem uma menina que chama Fabiana e fica implicando comigo toda hora. Aí a mãe dela conversou com a minha mãe.. Elas conversaram. Aí quando eu tô sozinha fica me dando dedão, xingando... Aí,uma vez ela puxou o meu cabelo aí nós saímos no tapa. Eu dei tapa nela. Eu deisoco nela... (esconde o rosto)

Percebemos que o termo violência foi re- significado por estas crianças

que estão utilizando este termo para denominarem , aqui, “brigas de

crianças”.

3.3.4 Violência no IEPIC

Campo da pesquisa o IEPIC é o cenário de grande parte de situações

até aqui relatadas, para sair deste lugar vago da violência como discurso,

perguntamos: tem violência no IEPIC? E mais: conte- nos uma cena .

Episódio 37: E onde você mora, tem violência láEntrevista 3-T3/C8- TemT3/P2-- Quem é que faz a violência lá?T3/C8- ah tia! Não vou falar o nome não.T3/P2-- Não precisa falar o nome .T3/C8-alguns meninos .T3/P2-- Alguns meninos que moram lá?T3/C8- Algumas meninasT3/P2- que moram lá?T3/C8- É

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Episódio 39: Tem violência no IEPIC?Entrevista 1-T3/C1 e C2- Existe! T3/C1 e C2 - BastanteT3/P2- Quem faz violência no IEPIC?T3/C1- Todo mundo.T3/P2– Você concorda?T3/C2- Todo mundo também.T3/P2 - Todo mudo? Me conta assim, uma história de violência aqui no IEPIC, quevocês saibam.T3/C1-Na hora da saída, bem um garoto bem tava batendo bem no outro garoto limpinho. Aí o garoto bem não agüentava e ele disse: para, para, aí ele sentou bem e ficou assim.( tampou os olhos com as mãos e abaixou a cabeça no colo ).Aí bem o negócio bem foi lá . Ele bem foi lá e deu um chute naquele lugar dele.T3/P2- E você, lembra de outra história?T3/C2- Eu não sei se essa história é verdade, mas falaram que um dia o garoto brigoutanto que chegou a arrancar um pedaço da orelha dele. A orelha não, o dedo. Quebrou odedo dele. Não sei se é verdade não.T3/P2- Você não viu?T3/C2- Não vi. Mas tão falando.T3/P2 –Você lembra de alguma coisa que você tenha visto, que você considere violento?T3/C1- Ela viu isso que eu falei , junto comigo. ( apontando para C2) (C2sinalizapositivamente com a cabeça)

O que constatamos aqui novamente é uma “ briga de criança”, que

ainda que seja ou não violenta, tem como sujeito a criança. Além das

histórias que se contam ...

Episódio 40: Tem violência no IEPIC?Entrevista 2T3/C3,C4 e C5 sinalizam positivamenteT3/C5- Tem . Pô, muita!T3/P2- Quem faz a violência no IEPIC?T3/C3, C4 e C5-- O s alunosT3/P2- Os alunos? Que tipo de violência (referindo- se a C4)você pode me explicar alguma coisa que você tenha visto de violenta no IEPIC?T3/C4- Dar pedala Robinho, ficar batendo nos outros...(A pesquisadora dirige- se para C3 que sinaliza com a cabeça negativamente)T3/P2-Você nunca viu nenhuma situação de violência?T3/C3- Já.T3/P2- Então, me conta uma.T3/C3- Briga ...Das garotasT3/P2-- As garotas brigam? (C3 sinaliza que sim)T3/C5- Elas brigam muito... Uma puxa o cabelo da outra...T3/P2-- Vocês brigam?T3/C5- Um dia só!

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Puxar cabelo, dar “pedala Robinho”, podem ser comparados à troca

de tiros ?

Episódio 41: Tem violência no IEPIC?Entrevista 3-T3/C8- Muita. (sinaliza com as mãos)T3/P2-- Muita? Quem faz a violência no IEPICT3/C8- Os alunos, as pessoas de fora, só.T3/P2- Me conta uma história de violência que você tenha visto aqui no IEPIC. Você lembra de alguma coisa que você já viu?Então me conta. Como é que foi? (Abaixa a cabeça, pensa)T3/C8-- Essa história, história aconteceu na quinta- feira passada.T3/P2-O que aconteceu quinta- feira passada aqui?T3/C8-- Um menino aqui, um menino aqui. Eles estão brincando aí, ficou um xingando o outro,xingando o outro. Aí o outro foi pra cima do outro,o outro foi pra cima do outro. Um pra cima do outro, aí começou a briga. Aí veio adiretora e falou : Anda! Vamos pra sala! Aí um menino falou: não tia, ele fica brigandocomigo. Aí ele pegou o menino levou ele, jogou no chão e um deu tapa no outro.

O que vemos mais uma vez é a re- significação do discurso da

violência social para o ambiente “escola pública” e então nos perguntamos:

como esta criança se vê e se pensa neste contexto sócio- discursivo?

3.4 A visão infantil sobre autoridade

“Ele se achava na região dos asteróides 325, 326, 327, 328329 e 330. Começou, pois, a visitá- los, para procurar umaocupação e se instruir.O primeiro era habitado por um rei. Orei sentava-se, vestido de púrpura e arminho, num trono muitosimples, posto que majestoso.”(trecho retirado do livro: “OPequeno Príncipe”, p.37)

O Pequeno Príncipe, ao sair em busca do conhecimento como

fazem nossas crianças depara-se imediatamente com uma figura de

autoridade: o rei. Na escola e na família as crianças convivem com figuras de

autoridade, em ambos os casos com grande peso na formação delas, não

importa o tamanho do trono, o que importa é fazer de seu reino majestoso.

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De acordo com Fernandes,

“o educador torna- se prisioneiro do Outro, só é ativo como eenquanto porta- voz do padrão da normalidade do mundoadulto. Não é como sujeito que ele encontra a criança, mascomo padre, juiz, rei, governante, hipnotizador, colonizador,segundo o repertório que o Outro apresenta e obriga adramatizar. Comprometido com o fantasma, seu lugar nacena oscila entre o sedutor - sei o que lhe falta, tenho o quelhe falta, mire- se nesse espelho (do Outro)[...] e o censor –sua vigilância contínua avalia os desvios e retifica a rotagraças a punições cuja visada é a vergonha e a impotência”.(1994,p. 149)

Este é o papel da autoridade: representar o Outro.

3.4.1 Figuras de autoridade

No episódio a seguir vemos a criança apontando as figuras que

representam tal papel, seja em casa ou na escola. Aqui discutem o poder delas:

quem é mais bravo? Quem pode mais?

Episódio 42: Quem é mais brava a mãe ou a professora?T1/C5- A professora!T1/C1- A mãeT1/C2- A minha mãe! (levantando o dedo)T1/C1- A professora até que é boazinhaT1/C8- A minha mãe é mais brava.T1/C5- A professora não é brava, mas as estagiárias...T1/C7- É. (restante da fala não identificada)T1/C5- O pai é mais bravo.T1/P1- O pai é mais bravo?T1/C9- A mãe !T1/C5-- Não. O paiT1/P1- Quem é mais bravo: os pais ou a professora ?T1/G- os paisT1/C2- O meu pai.

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“Ser mais bravo”, pode indicar uma ação sancionadora mais

diretamente ligada ao corpo, ou um xingamento, meios estes utilizados pela

família, diferente da escola que se utiliza, de punições simbólicas.

Independente do lugar que se exerce este “poder” a autoridade

desempenha a mesma função e utiliza para isto meios distintos, mas cujos

objetivos são os mesmos. O que diferencia os pais da professora é a forma do

exercício da autoridade. Enquanto a escola busca o autocontrole , a família

trabalha na imposição de limites e inibição de comportamentos, o que segundo

Daniel Thin, faz com que “os pais sejam com freqüência percebidos pelos

professores como fracos do ponto de vista da autoridade que exercem sobre

suas crianças (ao mesmo tempo ‘ muito rígidos’ e ‘ muito permissivos’)”.

(2006,p.12)

Escola e família trabalham com prêmios e punições diferentes. Embora

nem sempre a escola concorde com os métodos de disciplina da família , que

muitas das vezes envolvem agressões físicas, recorrem a elas quando sua

autoridade está em xeque.

Observemos o episódio a seguir que utilizamos na relação família e

escola, e o repetimos aqui com o intuito de reforçar a situação da professora que

busca apoio da família através da punição e ao mesmo tempo como nos

mostrou Fernandes (1994) “visando a vergonha e a impotência da criança.”

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Episódio 43: Sua professora gosta da sua família?Entrevista 1-T3/C2- Ela nem conhece.T3/C1- A minha também nem conhece.T3/C1- A minha não conhece a minha mãe.T3/P2- É? Mas o que ela diz assim, ela fala alguma coisa sobre a sua família, sobrea sua casa, sobre as coisas que vem da sua casa? (C2 sinaliza que sim)Fala? O que ela fala?T3/C2- É. Ela vive falando que vai encontrar com a nossa mãe, que vai falar oque a gente ta aprontando na sala de aula. Que queria muito conhecer a minhamãe. Até ontem mesmo. Ontem eu tinha falado que a minha mãe tava grávida aí ontem ela já perguntouse a minha mãe já sabia o que era o bebê. Eu falei que era homem.E é.T3/C1- Ela não conhece minha mãe, ela não conhece... Eu acho que ela conhecemeu irmão sim. Mas , eu não sei. É que ... a minha professora, se a gente apronta, elavai lá, quando vê a mãe fala pra ela tudo,minha mãe bota de castigo.T3/P2- Mas, ela gosta da sua mãe?T3/C1- Gosta quando ela bota a gente de castigo.Fabiana- O que ela fala? Sua professora fala o que sobre isso? Quando ela ficasabendo , quando ela fez uma queixa e a sua mãe te botou de castigo? O que elafala?T3/C1- Ah, ela fala. Poxa, a Thaynara e a Thayane ,eu vou imitar ela, a Thaynara e aThayane ta hor –rí- vel ! Elas estão conversando na hora da aula, na hora do recreioelas sobem atrasadas e ainda elas ficam bem de besteirinha bem na sala,conversando...

Yves de La Taille desenvolveu um trabalho intitulado “Vergonha: a ferida

moral” no qual apresenta a evolução do sentimento de vergonha e a sua

progressiva associação com a moral, segundo ele, este está ligado ao

sentimento de auto- respeito , necessário à honra, motivação essencial ao agir

moral, condição para a expressão do respeito pelas outras pessoas.

E o que percebemos na escola é que a exposição da criança,

fazendo-a sentir vergonha é uma tática. De acordo com Fernandes (1994),

“´[...] o sistema de penalidades escolares é o veículo da inscrição interna da

linguagem do Outro:a censura se transforma em vergonha e a punição em culpa.”

(p. 165) Estamos, portanto, falando de sentimentos morais no processo de

socialização.

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Quando nos referimos ao “ sentimento moral” , o fazemos de acordo

com Yves de La Taille, que ao citar a personalidade moral o define como

sentimentos que a pessoa experimenta e a leva à uma virtude.

3.4.2 Autoridade e Afeto

Segundo Piaget (1988) o respeito é ”um sentimento misto,[...] composto

simultaneamente de afeição e de temor [...] cuja importância excepcional na

formação ou no exercício da consciência moral foi ressaltada por todos os

moralistas.” (p. 64) Ou seja, o respeito se dá através de um misto do amor e

do medo. O que busca a autoridade senão o respeito? Fernandes (1995) nos

diz que a autoridade no papel de “colonizador não é um domesticador que

obriga externamente a criança,[...] seu desejo é obrigá-la internamente. (p. 152)

É o que Durkheim chamou de “ idéia sugerida”.

Não obrigamos o outro, mas buscamos seduzi-lo, a tarefa é fazê-lo

desejar . E na escola a figura de autoridade que melhor desempenha este

papel é o professor. Aquele que estabelece com a criança o laço afetivo.

Não é raro entre professores ouvirmos queixas de que os alunos de outra

professora não respeitam as demais. Ora o respeito se dá por duas vias: o

“afeto” e o “medo” e na escola fazemos isto muito bem. Observemos o

episódio a seguir:

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Episódio43: Vocês acham que as professoras ou a professora gostam de vocês?T1/C7- Eu acho (sinalizando também com a cabeça)T1/C3- sinaliza que simT1/C8- neste momento, não responde, nem demonstra reação, enquanto todos falamjuntosT1/C10- a professora não gosta de mim, porque ela passa muito dever.T1/C5- As estagiárias dá pra olhar no olhar delas e ver que elas não gostam da genteT1/P1- Por que?T1/C5- Sei lá, elas maltratam a genteT1/P1- A professora, não?T1/C5- Não. As estagiárias.T1/C5- Elas querem jogar nossas coisas fora.T1/C8- abaixa a cabeça, tampa o rosto e diz: a professora ela não gosta dos alunos que não respeitam ela

Duas situações aqui a nós demonstram relevância: as estagiárias que

maltratam a gente, “dá pra olhar no olhar delas que elas não gostam da

gente” a professora “não. As estagiárias” . As professoras só querem o bem de

seus alunos. Quando não gosta de algum aluno, não gosta porque ele não a

respeita. A culpa é do aluno. Ele é que não merece o seu afeto.

Em uma de nossas visitas ao IEPIC, testemunhamos uma cena que

confirma a diferença da autoridade que encarna o afeto e aquela que

encarna o medo e que relatamos a seguir:

Estávamos no corredor à espera de Filipe, inspetor de disciplina do

Colégio, o único naquele prédio. Parados no corredor, bem em frente à sala

dos professores que estava vazia, e à sala do Filipe que segundo os sujeitos

desta pesquisa , é denominada “sala do terror”, quando ouvimos o diálogo que

lá ocorria e assistimos parte do acontecimento – o que a visão do corredor

nos possibilitou enxergar.

Sentado numa cadeira atrás de uma mesa estava Filipe que

repreendia uma aluna de mais ou menos 9 anos, por ter desobedecido às

regras da sala de aula. Do outro lado da mesa estava a aluna sentada numa

cadeira, ao seu lado abaixada , estava a professora da turma consolando-a,

inclusive acariciando-a enquanto esta chorava ao ouvir a bronca de Filipe.

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É a professora companheira que só levou o caso ao inspetor, pois era

necessário. Aquela bronca era importante para a menina. Era o seu dever! E

Filipe encarna o terror. É ele quem briga, é cruel . Junto com as estagiárias

demonstra não gostar das crianças.

Episódio 44: Vocês acham que as professoras ou a professora gostam devocês?T1/C10- Ela gosta de mim porque ela passa muito dever.T1/P1- Ah! Ela gosta.T1/C10- Ela não gosta de mim porque ela passa muito dever.T1/P1- Gosta ou não gosta?T1/C10- Gosta.

O que percebemos aqui é a contradição. Pelas nossas observações,

nos parece que C10 “brinca” com a contradição. A professora gosta de mim.

Sei disso! No entanto, percebe o dever como castigo. Se ela gosta de mim, por

que passa tanto dever?

3.4.3 Autoridade e as regras

“_ Ah ! Eis um súdito, exclamou o rei ao dar com oprincipezinho.[...] como estava cansado, bocejou._É contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse omonarca. Eu o proíbo ._ Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz umalonga viagem e não dormi ainda..._ Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos quenão vejo ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridadepara mim. Vamos, boceja! É uma ordem!_ Isso me intimida... eu não posso mais... disse oprincipezinho todo vermelho._ Hum! Hum ! respondeu o rei. Então ... então eu te ordenoora bocejares e ora...Ele gaguejava um pouco e parecia vexado.”( trecho retiradolivro: “O Pequeno Príncipe”, p.37 - 38)

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Episódio 45: Quem que vocês acham que inventou essas coisas: o que deve fazer,o que não deve fazer? O que pode fazer? O que não pode fazer?

T1/C9-- A diretora.( falam todos juntos, não identificamos)T1/C10- Fazer bagunça, conversar, brincar.T1/P1- Mas quem inventou esta regra? O Marlon falou assim: não pode responder aprofessora, não é? Quem inventou? Quem disse isso: não pode xingar a professora?T1/C2- Minha mãe que disse.T1/C6- Nossa mãeT1/C9-- Nossa professora, nossa tia

Quem inventou estas regras? A diretora, a autoridade maior.

Episódio : 46 Quem inventou as regras da sala?T1/C2- A professoraT1/C1- Não os alunos que escreveramT1/C2- Mas a professora que dita as regras pra gente escrever.T1/C1-É.

O poder da autoridade reside na obediência que os “súditos” tem de

suas regras. Uma regra que não é respeitada por ninguém não tem validade.

Será que somos nós que devemos aceitar e interiorizar as regras ou são

elas que devem ser razoáveis para que todos as aceitem?

“Porque o rei fazia questão fechada que sua autoridadefosse respeitada. Não tolerava desobediência. Era ummonarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava ordensrazoáveis. Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general setransformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, aculpa não seria do general, seria minha [...]É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar,replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Seordenares a teu povo que se lance ao mar, farão todosrevolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porqueminhas ordens são razoáveis.” ( trecho retirado livro: “OPequeno Príncipe”, p 38- 40)

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A autoridade só é assim reconhecida se encarnar as regras. Segundo

Durkheim (1984),”o que a idéia de regra encerra, independente da idéia de

regularidade. É a noção de autoridade”. (p. 128)

Como nos disse Fernandes (1994) o professor é o porta- voz,“o mestre como pessoa particular que aplica o castigo, maslimita- se a ser o representante de regras escritas gerais,supra- pessoais. Ele mesmo deve se submeter à ‘ sentenças’ ,impondo- se o silêncio, mostrando em cada momento oexemplo daquele que cumpre as ‘ regras’”. (Vicent, Lahire eThin, 2001, p.31)

3.4.4 Autoridade e sanções

Devemos sempre atrelar a autoridade às sanções? Se à autoridade

cabe representar as regras, poderíamos dizer que a sanção: prêmio ou

punição, é o que a regula? Apresentaremos a seguir as punições da casa e da

escola. Como estes lugares se distanciam e se aproximam a partir das

sanções aplicadas pelas “autoridades“ na visão da criança .

3.4.4.1 As punições de casa

De acordo com Thin (2006) , a escola e a família trabalham com

punições diferentes, enquanto a escola trabalha com as regras e tem suas

sanções regimentadas, a casa trabalha com os limites. A transgressão

destes se apresentam como briga .

Episódio 47: O que acontece se você xingar em casa?

Entrevista 1-T3/C2- No primeiro dia eu fico sem dente.(as duas se olham e riem)T3/C1- No primeiro dia eu fico engessada.

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Se estes castigos de fato acontecem ou permanecem na ordem do

discurso, o que nos interessa, é que o discurso destas crianças, nos revelam

qual o significado das punições domésticas para elas.

Episódio 49: O que acontece se você xingar em casa?Entrevista 3-T3/C8- Minha vó bota pimenta na boca, dá um tapa na boca e bota ovoquente.T3/P2- O quê? Não escutei.T3/C8-- Um ovo cozido na boca.

Este foi um momento que nos fez calar, talvez tenhamos sentido a

presença do ovo cozido em nossa boca. Para ajudar- nos a compreender o

significado da situação recontamos um trecho do texto “NEGRINHA” de

Monteiro Lobato.

Negrinha era uma menina órfã, filha de mãe escrava, vivia sempre

escondida pela casa da patroa, uma senhora, mestra na arte de judiar de

crianças. E foram estas as personagens da história do ovo quente, relatada

a seguir:

Episódio 48: O que acontece se você xingar em casa?

Entrevista 2-T3/C3- Não.T3/P2- O que acontece se xingar em casa?T3/C3- a gente apanha.T3/P2- Apanha?T3/C5-- A mãe fala que vai botar pimenta na nossa boca...T3/C4- Fica de castigo.

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“ Uma criada nova furtara do prato de Negrinha – coisa de rir –um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. Acriança não sofreou a revolta – atirou-lhe um dos nomes comque a mimoseavam todos os dias.– "Peste?" Espere aí! Você vai ver quem é peste - e foi contar ocaso à patroa.[...]– Eu curo ela! – disse, e desentalando do trono as banhas foipara a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.– Traga um ovo.Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e demãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de péuns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam amísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardavatrêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou aponto, a boa senhora chamou:– Venha cá!Negrinha aproximou-se.– Abra a boca!Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. Apatroa, então, com uma colher, tirou da água "pulando" o ovo ezás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse,suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse.Negrinha urrou surdamente, pelo nariz.Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceberaquilo. Depois:

_Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?“

O ovo quente é uma tradição brasileira de castigo, que acompanha a

história dos escravos. “Negrinha” assim como C8 são destinatárias dessas

práticas.

Conforme Thin (2006), a autoridade da família de classe popular “se

manifesta sob a forma de sanções contextualizadas, isto é, sanções aplicadas

diretamente ao ato repreensível ou reprovado, e que têm como objetivo primeiro

interromper o ato.” (p.11)

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3.4.4.2 As punições da escola

Ainda na busca de compreender o significado da punição merecida

para quem xinga em casa, trazemos a fala desta criança sobre a punição

da escola.

Episódio 50: O que acontece se alguém xingar na escola?

Entrevista 3-(abaixa a cabeça, esconde o rosto)T3/C8- Não acontece nada tia !T3/P2-Nada? E por que não pode, então?T3/C8-- Por que é um palavrão.T3/P2- Não vai acontecer nada com quem xingar?T3/C8- Vai tomar uma suspensãoT3/P2 – Ah então acontece alguma coisa. Acontece?T3/C8- Acontece

Ora para esta criança que vive sob a ameaça da dor da tortura

física, ainda que tenha ficado somente na ameaça - disso não sabemos - o

simbólico perde sua validade e então banaliza: “não acontece nada”. O que é

uma suspensão comparada com um ovo fervendo dentro da boca?

De acordo com Fernandes (1994),

“a eficácia da pena depende da administração racional daspunições. Ela deve parecer respeitável e não absurda, [...] Épor isso que a punição ‘ só mantém toda a sua virtude quandopermanece no estado de ameaça’ (E.M.,p. 166).Em sumaquanto mais se ascende na escala das punições, tantomaior sua ineficácia.”(p. 167)

Observemos os episódios seguintes:

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Episódio 2: O que acontece se alguém xingar na escola?Entrevista 1-T3/C1- Manda pra diretoria.T3/C2- Leva suspensão, vai pra sala da diretora.T3/C1-É ! Vai pra sala mais horrível do mundo (fala tampando a boca, olhandopara a amiga)Entrevista 2-T3/C3- SuspensoT3/C5-Vai pra sala do FilipeT3/C4- ExpulsoT3/P2- Na sala do Filipe...T3/C5- Leva uma suspensão.

A suspensão e a expulsão são punições da ordem do simbólico. O

que elas representam é o afastamento da criança do ambiente escolar, a

perda do direito à escola. Para estas crianças cuja escola é vista como

possibilidade de uma vida melhor, estarem na escola não é visto como um

direito, mas como quase uma oportunidade, tornando a sala do Filipe, a

sala do terror, a “sala mais horrível do mundo”...

Episódio 53: O que é sala do Felipe?

T1/C6- É aquele homem lá de óculos.T1/C7- Ele não usa óculosT1/C8- Ele usa simT1/C2- É um homem que busca a gente lá em baixo.T1/G-todos falam juntos. Não conseguimos identificarT1/C1- Ele vai lá na minha sala e fala pro meu primo que é da minha sala. Fala assim praum monte de pessoa: vem você! Vem você! Vem você! (aponta com o dedo imitando a situação). Vai lá em baixo fica falando... E aí quando agente quer fazer xixi que a gente sobe de volta, ele fala para ir todo mundo pro banheirode baixo, chega lá ta trancado.T1/C8- fala não identificadaT1/G- (Falam todos juntos e não identificamos as falas)(T1/C1 gesticula com os braços, parece estar falando sobre brigas, percebemospalavras soltas)T1/C1- Bate aqui, bate aqui, bate aqui.T1/C5- E a diretora não faz nada só no ar condicionado sentada.T1/C5- A diretora... parece que ela fica lá no ar condicionado... só isso

No entanto, ao mesmo tempo, que temem à autoridade do Filipe, que

não é a autoridade maior da escola, atacam a autoridade da diretora como

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vemos no episódio acima quando a criança diz “E a diretora não faz nada só no

ar condicionado sentada.”

Ao compararmos a autoridade doméstica com a autoridade escolar,

percebemos a criança demarcando a diferença:a escola pune quando o aluno

não compreende a diferença entre casa e escola.

Episódio54: Quem coloca mais de castigo os pais ou as professoras?T1/Cnid-Minha mãe (criança não identificada)T1/C10- A professoraT1/C1- Meu pai.T1/C5- A gente confunde a nossa casa com a escola.

É o sujeito justificando a sanção como merecedora pela criança

que não percebe tal diferença. Quem é que demarca a diferença entre a

casa e a escola?

Episódio 55: Quem é que não deixa trazer brinquedo, ter brinquedo na escola?T/3/C1- A professora.T3/P2- E se trouxer , o que acontece?T3/C2- Ela pegaT3/C1- A tia pega! E fica com ela por um mês inteiro e depois no final do ano ela entrega.(sinaliza com a mão ...)T3/C2- Final do ano não. Final do mês.T3/C1- É mesmo.

É a professora que não deixa trazer brinquedo. É a professora que

sinaliza “parece que tá em casa. Tá na sala de aula”, ou seja, a autoridade

escolar cobrando o cumprimento das regras

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Episódio 56: O que pode fazer em casa que não pode fazer na escola?Entrevista 2-T3/C5- – Ficar mais relaxado em casa. Na escola não pode.T3/P2–Como assim relaxado?T3/C5- Ah , descansar assim... E na sala não dá.T3/P2- Por que não dá?T3/C5-Porque a professora fala: parece que ta em casa. Ta na sala de aula!T3/C4- Na sala ao pode fazer nada.T3/P2- É. O que pode fazer me casa que não pode fazer na escola?T3/C4-Brincar.T3/P2- Brincar? Só isso? Na escola não pode brincar?T3/C4-Só no recreio mesmo.T3/P2- E você? (direcionando para C3)T3/C3- Não sei.T3/P2-Não sabe? O que você costuma fazer em casa que você não faz na escola?T3/CCC3- Brincar.

O que percebemos nos episódios descritos sobre a autoridade e

sanções é que cada uma delas representam as regras do seu contexto: na

escola é o simbólico que pune utilizando castigos “morais” - a exposição do

aluno , levando-o ao sentimento de vergonha ou a aceitação da culpa, e a

família de classe popular utilizando- se de castigos corporais.

3.5 Universo Socializador da escola

A escola como desejava Durkheim é o ambiente moralizador por

excelência . Sua função está intimamente ligada ao processo de socialização.

Queremos adentrar a lógica infantil e conhecer pelos olhos da criança o

papel da escola.

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3.5.1 Ações desejadas

Episódio 57: O que as professoras gostam que vocês façam?T1/C5- Dever.T1/G-Dever de casa, passar de ano, aprender,T1/C2--dever, dever, dever...DesenharT1/C9- ObedecerT1/C6- Não fazer bagunça, não gritar.T1/C2- quando a gente desenha pra ela.T1/C10- Faz o dever de casa.T1/C7-. Respeito

Estas são segundo as crianças ações desejadas pela escola

representada pela professora. Como podemos observar no episódio a seguir

estas se repetem.

Episódio 58: coisas muito legais que a gente pode fazer na escolaque seja muito legal.

T2/C5- Você passou na matéria...T2/C8- Você é inteligenteT2/C4-Passar de ano.T2/C8- Você é bom aluno.T2/P1-O que é ser bom aluno?T2/C5-- Respeitar a professoraT2/P1- Então põe aí. Você respeitou a professora.T2/C8- Respeita tia! Respeitou não, você respeitaT2/C2- Não jogar lixo no mar. ( se reportando a uns cartazes que estavam presos naparede no fim da sala)T2/P1- Na escola.T2/C2- Mas não pode jogar lixo no mar.T2/P1- Eu sei, mas não jogar lixo no mar. Tem mar no IEPIC?

Episódio 59:– O que a gente pode fazer de bom ?T2/C6-Não jogar lixo no chão.T2/C9- Respeitar a estagiária.

Relevante se faz destacar a regra enquanto proibição. Solicitamos que

as crianças dissessem –nos “coisas muito legais ” de se fazer na escola e

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o que nos responderam? Entre outras, não jogar lixo no chão, por que não

dizer jogar o lixo na lixeira?

Episódio 60:– O que mais a gente faz na escola...T2/C9-- Você não fazer violênciaT2/P1- Não fazer violência?T2/C2- Você não...T2/C1- (fala não identificada)T2/C5- Você não comeu chiclete dentro da sala de aula.T2/P1-Peraí. Olha só. É legal não comer chiclete? Você não comeuchicletedentro da sala de aula. É isso?T2/C5-ÉT2/P1- Ou você não faz violência?

Não comer chiclete na sala de aula, não fazer violência... É a regra

descrita pelo negativo. É a força da punição!

Episódio 61: O que é respeitar ela?

T1/C8- Não responder ela. RespeitoT1/C5-Não fazer bagunça!

Dentre as ações desejadas não fica dúvida que a mais importante

é respeitar a professora. No episódio, sobre as “coisas muito legais” de se

fazer na escola, a criança afirma que ser bom aluno é “respeitar a

professora.” E logo após corrige: “ respeita tia! Respeitou não, você respeita”. Não

pode ser um fato isolado, tem que ser contínuo, desrespeitar a professora é

algo quase imperdoável.

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Bom aluno é aquele que corresponde às expectativas da

professora. Eis algumas falas das professoras, quando questionamos os

critérios por elas escolhidos, denominando os sujeitos da pesquisa como

bom aluno:

1- “Faz as atividades com muita rapidez. É esperta. Faz mais

exercícios do que qualquer um outro da turma.”

2- “Sempre corresponde ao que lhe é solicitado. Não apresenta

dificuldades de aprendizagem. Fala- se com ela apenas uma vez.”

Episódio 62: Como é que um bom aluno se comporta?

T1/C9- Ficar quieto e obedecer aos professores.T1/C6- Ter um bom estudo... deixar ela falar.T1/C3- não responde, parece resistirT1/P1- (insiste com C3), como é que é um bom aluno?T1/C3- responde em baixa voz, não conseguimos identificar.T1/C7-Acho que ... aprender mais (trechos não identificados)T1/C5-(resposta não identificada)T1/C8- ser estudioso (esconde o rosto e ri.)T1/C2- Ser estudioso, obedecer à professora as estagiárias. Não fazer bagunça, não falarmuito na sala de aula...T1/C8- Respeitar ... aprender... só!T1/C1- Fazer aquilo que as professoras gostam: estudar, aprender. Não pode ficarbrigando dentro da sala...T1/C2- (Fala não identificada)T1/C10- ter disciplina, educação, aprender, nunca repetir o ano.T1/Cnid-ter higieneT1/C11-Não brincar...(restante da fala não identificada)

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3.5.2 Ações indesejáveis

O que de pior uma criança pode fazer na escola? Como podemos

verificar nos episódios a seguir o pior é fazer o que a professora não gosta,

aquilo que lhe aborrece, “ela gosta de viver em paz!”

Episódio 63: Qual é pior coisa?

T1/C10- A pior coisa é responder.T1/C6-- Ficar parado na frente dela. Ficar respondendo, ficar sentado na frente dela...ficar enchendo o saco dela. Ela gosta de viver em paz!T1/C9- De responder ela.T1/P1- E tem gente que responde ela?T1/C9- sinaliza que simT1/C2- Na minha sala em vários.T1/C8- cantar música de funkT1/C10-Xingar elaT1/P1- Como é que xinga a professora? Xinga nome feio?! Alguém faz isso aqui?T1/G-sinaliza que simT1/C2- Chama ela de chata!

É novamente o sentimento de respeito aparecendo. Faltar com o

respeito alheio é uma das piores ações que alguém pode cometer. No episódio a

seguir, surge a desobediência.É a escola trabalhando como queria Durkheim,

incentivando o aparecimento do “espírito de disciplina”.

Episódio 64: Coisas muito ruins de acontecer na escolaT2/C5- Ir pra sala do terror!T2/C5-Ir pra sala da diretoraT2/P1- Mas não é ir pra sala da diretora. Eu to falando o que é que a gente não pode fazer na escola? Fala uma coisa muito ruim.T2/C2-Não brigarT2/C9- Não desobedecer a professoraT2/P1-l- Desobedecer a professora é bom ou ruim? T2/G - RuimT2/P1- Vai ganhar um castigo?T2/C9-sinaliza que sim.

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Episódio 65: Fala alguma coisa muito ruim de acontecer na escola. Que aprofessora fica muito zangada

T2/C5- Não fazer o dever de casa.T2/C7- Fugir

Brigar, xingar a professora, bater no amigo, não fazer tarefa de casa,

matar aula, desobedecer à professora, fazer guerra de tangerina... Estas são

ações indesejáveis na escola. Mas o que é o pior?

Episódio 67: O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim? Fala umacoisa muito ruim?

T2/C9- BrigarT2/C7- Não. Empurrar um amigo da escada.T2/C5- Não. Dar um soco na cara.T2/P1-- Peraí. Fala alguma coisa que faz a gente ir pra sala do Felipe. Fala umacoisa que faz a gente ir pra sala do Felipe?T2/C2-Fazer bagunça na sala de aula.T2/C5-Ficar correndo no corredorT2/C5-BrigarT2/P1-- Brigar de bater ( gesticula) ou de discutir?T2/C8- Brigar de baterT2/C8- ( fala não identificada)T2/P1- O que que ela falou?T2/C2-Guerra de tangerinaT2/C8- Espirrou tangerina no meu olho tiaT2/P1- Assim: você fez guerra de tangerina. Fazer guerra de tangerina é bom ou ruim?T2/G- – RuimT2/C6- Espirra dentro do olho. Arde!

Como vemos não há um consenso, algumas vezes surgem regras

estabelecidas: não fazer bagunça, não ficar correndo no corredor, mas em

outros casos surgem situações de desrespeito ao outro: bater, atirar algo,

diríamos ações de brutalidade com os outros, como confirma o episódio

seguinte:

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Episódio 67: pensa no pior que se pode acontecerT2/C9-- AtirarT2/P1- Atirar... tiro?T2/C7-- Pedra.T2/P1- Bota assim, atirar qualquer coisa (pedra) atirar no colegaT2/C2- Atirar pedra!

Vemos a criança se apropriando da lógica social da escola. Ela

compreende o que pode e o que não pode e vai além, percebe regras que

servem para manter o ambiente comum organizado e às que se referem

diretamente ao respeito pelo outro. Apesar de não ser um consenso entre

elas, percebemos algumas crianças que hierarquizam as regras dizendo- nos

que há aquelas que não devem ser transgredidas e outras que ainda estão

presas à sanção. Se “fazer bagunça na sala de aula” ou “ficar correndo no

corredor”, pode levá-los à Sala do Filipe, é algo muito grave.

3.5.3 Discussão infantil sobre ação e sanção

A cada atitude nossa corresponde uma conseqüência , ou seja, a

cada ação uma sanção, que pode ser um prêmio ou um castigo. Assim

funciona o nosso universo regulador.

Episódio 68: Ser inteligente vale quanto?

T2/C5- Pule 7 casas.T2/C2- Não só pode valer 4T2/P1- Por que? Fala por que? Fala!T2/C2--( fala não identificada)T2/P1- Ta então, vale 4 casas. Você é inteligente ganha 4 casas.T2/C8-- Não tia

Ser inteligente vale 4 casas, e respeitar a professora? Como vimos nas

ações desejáveis é a mais importante, um bom prêmio é ter a possibilidade

de jogar o dado duas vezes e avançar no jogo.

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Episódio 69: Você respeitou a professora, você ganha o que?T2/C2-- Ganha umas 6 casasT2/Cnid- 5T2/P1- 5? Também tem outras coisas que você pode ganhar. Você pode jogar odado de novo. Tem várias coisas que você pode fazer.T2/C5- Pode jogar o dado duas vezes.T2/P2- Jogar o dado duas vezes?JT2/C5- É!

Vale ressaltar que o que vale não é o respeito por uma pessoa, mas

pela professora- autoridade pelo afeto, no episódio a seguir acompanhamos a

discussão sobre o valor da sanção de quem respeitou a estagiária: avançar

uma casa. Respeitar a estagiária não vale tanto: “as estagiárias são chatas lá

na sala ”.

Episódio 70: Você respeitou a estagiária, você ganha o que?T2/C5-As estagiárias são chatas lá na salaT2/C2- É muito chata.T2/P1- Você respeitou a professora jogou o dado duas vezes, você respeitou aestagiária ganha o que?T2/C2-- Pula 1 casaT2/C9- mostra com o dedo o número 1T2/C8- 3!T2?C2- mais 1T2/C8- Ah, ta!

Não fazer violência é algo importante e de valor, avança 7 casas, vale

mais que respeitar a estagiária e ser inteligente .

Episódio 71: Você não faz violência. Vale o que?T2/C9- 5T2/C8- 7T2/C2- 5T2/P1- TaT2/C2- 5T2/P1- Você não fez violência aonde?T2/C9- na sala de aulaT2/C2- Na escolaT2/P1- Foi isso. Foi ele que falou aonde?T2/C9- Na sala de aulaT2/P1- Você não fez violência na sala de aula você pulou 7 casas.

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No episódio a seguir podemos perceber como o imperativo das

regras se coloca com força diante das ações. Surge a discussão sobre o que

é mais importante respeitar a professora ou não jogar lixo no chão? E é a

mesma criança que frisa a importância de se respeitar à professora , que

agora questiona o valor da sanção.

Episódio 72: Põe assim: você jogou lixo na lixeira. Quanto que ganha?T2/C2- Parabéns!Vale 3T2/C9- mostra 4 dedos.T2/C8-- 7 tia.T2/P1- Mas é mais legal. Olha aqui:passar na matéria ganha 6 casas. Respeitar a professorajoga o dado duas vezes. Não jogar lixo no chão, vale mais do que tudo isso aqui?T2/C8-- Não. Vale 2 casas.T2/P1-- Não mas o que é mais importante. Jogar o lixo na lixeira ou respeitar a professora?T2/G-- Respeitar a professoraT2/C5-Respeitar a professora!T2/P1-l- É isso que vocês acham? Então não pode ser prêmio maior. Tem que serequivalente.T2/C8-Não tia. Jogar lixo na lixeiraT2/P1- É mais importante do que respeitar a professora?T2/C8- É!T2/C2-– Não é!T2/C8 Ah! ( deita no chão e esconde o rosto)T2/P1-- Eu não to falando que não é importante Ana Carolina. É muito importante.Eu to perguntando o que é mais importante.T2/C8- Não jogar lixo no chão.T2/P1-- O que que é mais grave: jogar lixo no chão ou não respeitar a professora?T2/C2-- Não respeitar a professoraT2/C5-- Se não respeitar a professora você vai pra sala do terrorT2/P1- É? Então bota aí vai pra sala do terror. Ah não! Ir pra sala do terror é castigo. Andequantas casas?T2/C9- 3 !T2/C2-Não 2!

A sanção facilita o entendimento da gravidade da ação, não respeitar a

professora tem destino certo: a sala do terror!

No episódio a seguir a questão é não comer chiclete na sala de

aula. Além de merecer prêmio, a discussão gira em torno do que é mais

importante, entre outros, para os sujeitos da pesquisa não comer chiclete é

mais importante do que respeitar a estagiária.

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Episódio 73: Querem do chiclete também?

T2/P1- você fez uma coisa boa porque você não comeu chiclete. Você ganha quanto?O que você ganha?T2/ C9- 6T2/G- 5T2/C2- Não. 2 casasT2/C8-- 5T2/P1- Deixe eu lembrar aqui pra vocês. Ser inteligente você pula 4 casas. Passar na matéria vale 6 casas, não fazer violência na sala de aula ganha 7 casas.Respeitar a estagiária vale 1 casa. Jogar lixo na lixeira vale 2. Respeitar a professora faz você jogar o dado 2 vezes. Não comer chiclete, vale quanto?T2/G- 5T2/P1- Vale mais do que ser inteligente?T2/G- Não. 3!T2/C6- Não tia, vale 2T2/P1- Dois é o mesmo do lixo na lixeira.T2/C8-- 3.T2/P1- 3? Então vai.T2/P2- Você não comeu chiclete na sala, na escola...T2/C2- Eu comoT2/C8- Na sala de aulaT2/P1-No prêmio você não comeu chiclete aonde?T2/C9- Na sala de aula.T2/P1- Por que , fora da sala de aula pode comer chiclete?T2/G- Pode!T2/P1- Então ta. Na sala de aula.T2/P3- Vale mais do que respeitar a estagiária?T2/C9- NãoT2/P3- Ali. Respeitar a estagiária pula uma casa. Não chupar chiclete, não mastigarchiclete vale mais do que isso?T2/G- sinalizam que sim inclusive C9T2/P1 É Eles acham que respeitar as estagiárias não é muito legal...

Desobedecer a professora é muito grave: “Imagine quem faz uma coisa

dessa... ” a punição deve ser equivalente.

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Episódio 74: Desobedecer a professora é bom ou ruim?T2/G - RuimT2/P1- Vai ganhar um castigo?T2/C9- sinaliza que simT2/P1- Qual é o castigo?T2/C1- Pular três casasT2/P1- Pular pra frente?T2/G- Não, não. VoltarT2/C7- mostra dois dedos.T2/P1- Desobedecer a professora volta duas ? Quanto é ruim?T2/C2- Você volta duas casas.T2/C3- 7 casas.T2/P1-Não. Se você obedece a professora joga duas vezes o dado e aí fala se você não respeitar a professora , você desobedecer. A professora fala assim:Não pode sair da sala aí você sai correndo da sala e foge da sala . Então você vai voltar...T2/C2- Volta 6 casas!T2/P1-- Isso é muito ruim, né?T2/C1-– Imagine quem faz uma coisa dessa...

Xingar como já vimos é algo “proibido”, seja em casa ou na escola. O

que é mais grave, desobedecer à professora ou xingar o amigo? Como

podemos verificar no episódio relatado a seguir , por pior que seja

desobedecer a professora, para uma das crianças, xingar um amigo é visto

como mais grave. Vale ressaltar que a criança que discute a gravidade da

situação e se coloca no lugar do outro, ou seja, nos termos piagetianos, é

uma criança capaz de se descentrar e enxergar o ponto de vista alheio, é a

mesma criança que anteriormente frisou a importância de se respeitar à

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professora e relativizou tal respeito ao comparar com a importância de se

valorizar a ação de jogar lixo no chão.

Pode parecer um pouco contraditório, mas se ao avaliarmos tal

questão nos dermos conta que estamos falando daquela criança que realiza

atividades como :” [...] arrumar casa, lavar louça, varrer o quintal.” E ainda é a

mesma criança que ao xingar em casa, recebe a ameaça da avó que

coloca “pimenta na boca, dá um tapa e bota ovo quente... Um ovo cozido na

boca.” Olhando desta forma, talvez possamos pensar que xingar é algo

imperdoável : “ se eu xingar você, vai gostar?”

Episódio 75: Mas xingar quem? A professora ou os amigos?

T2/P1- Aqui. Vamos imaginar nós estamos na classe a professora tá lá na frente, aí a gente vai e fala um xingamento pro colega, um xingamento muito ruim. É isso que você tafalando?Então põe assim:você xingou o seu colega. É isso?T2/C5-Volte 6 casasT2/P1-Você xingou seu colega. Virou pro seu colega do lado e falou: bobo feio, cara de mamão , alguma palavra feia. Isso vai acontecer uma coisa boa ou ruim com você?T2/C2-- Volte 6 casasT2/C8-- 27 casasT2/P1-Você desobedeceu a professora, você voltou 6 , se você xingou o seu colega você vaivoltar...T2/G-5,6,7,4T2/P1- se você falar 7, quer dizer que é pior xingar o colega do que desobedecer a professora. É isso?T2/C8- ÉT2/C2-–Não.T2/C8- Ta bom.T2/P2- por que você acha que é?T2/C8-se dirige para C2 e diz: se eu xingar você vai gostar?T2/C2- Não. Mas é ruim desobedecer a professora.T2/C8- Abaixa a cabeça.T2/P1- Ana Carolina Você ta certa. Fala pra mim. Você acha pior xingar um colega do quedesobedecer a professora? Então põe aí.T2/ C2-( fala não identificada)T2/P1- Esse é da Ana Carolina. Quantas casas irá voltar?T2/C8- 7 casas

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Segundo as crianças , sujeitos desta pesquisa, ir para a sala do Felipe é

algo realmente aterrorizante. O que seria grave a ponto de merecer uma

punição deste tipo? Brigar, bater, empurrar um amigo da escada.

Observemos o episódio seguinte:

Ir para a sala do Filipe como uma das piores punições é uma sanção

relacionada a situações graves. Ao questionarmos os sujeitos da pesquisa

quanto a ações que levem a tal sanção, percebemos situações de

desrespeito a regras estabelecidas como: “fazer bagunça na sala de aula”;

mas também percebemos situações por eles definidas como mais graves,

àquelas que faltam o respeito com o outro como : “brigar de bater”. No

episódio que segue, as crianças nos apresentam “a guerra de tangerina”

como uma situação grave que analisamos por dois aspectos: na visão da

escola, a desordem coletiva com a merenda escolar e na visão da criança que

já foi vítima, a dor causada. Observemos :

Episódio 76 : O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim?Fala uma coisa muito ruim.

T2/C5- Vai pra sala do FelipeT2/P1- Ta. Mas aqui não tem a sala do Felipe. Só se a gente fizer a sala do Felipe aqui, aí você vai ficar de castigo na sala do Felipe sem jogar uma rodada.T2/C7- Uma não tia, duasT2/P1- Ta. Na sala do Felipe você vai ficar duas rodadas sem jogar. Então vamos lá. O que é tão grave que faz você ir pra um castigo assim? Fala uma coisa muito ruim.T2/C9- BrigarT2/C7- Não. Empurrar um amigo da escada.T2/P1- Ta. Alguma coisa violenta ?T2/C8- Empurrar da escada.T2/P1- Você empurrou um amigo da escada É muito ruim?T2/C5- Não. Dar um soco na cara.T2/P1- Peraí. Fala alguma coisa que faz a gente ir pra sala do Felipe.T2/C2- Fazer bagunça na sala de aula.T2/C5-Ficar correndo no corredorT2/P1- Isso é mais grave do que bater ?T2/C5-BrigarT2/P1- Brigar de bater ( gesticula) ou de discutir?T2/C8- Brigar de baterT2/C5- De baterT2/P1- Então bota assim:você brigou entre parênteses bater no colega. Vá pra sala doFelipe . Sabe que quem for pra sala do Felipe vai ficar sem jogar, né?

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Fazer guerra de tangerina: molecagem de criança, mas é grave ,

dizem aqueles que já foram alvo : “espirra dentro do olho. Arde!” Vale uma forte

punição. E deixar de cumprir a tarefa de casa, o quanto isto é grave? Como

podemos perceber no episódio a seguir, a discussão demonstra o desacordo

entre as crianças .

Episódio 77 : Fazer guerra de tangerina é bom ou ruim?T2/G-– RuimT2/P1- Que castigo?T2/C6- Espirra dentro do olho. Arde!T2/P1-ÉT2/C7- Fica três rodadas sem jogar.T2/P1-Fica três rodadas sem jogar. É tão ruim assim?T2/G Não!T2/G-É sim!T2/P1- O que acontece com quem faz guerra de tangerina ?T2/C2- Uma rodada sem jogarT2/G – 2T2/C8- 100 rodadas sem jogar.T2/C9- 1 hora na sala do Felipe.T2/P1- 1 hora?T2/C2-A gente escolhe um e essa pessoa tem que trocar os seus pontosT2/P1- Ta. Então põe aí. Troca os seus pontos pelo... Ah peraí. Se você faz guerra detangerina e escolher trocar os pontos com quem ta ganhando? Você ganhou um prêmioT2/C5- 1 hora lá fora.T2/C9- é.T2/P1- Uma hora é muito tempo, gente.T2/C2- Não... Troca com quem tem menos pontos que a gente.( todos falam juntos)T2/P1- Então ta. Vamos fazer: você fez guerra de tangerina e troca os pontos com quem tem menos pontos?T2/C5- Volta pro começo!T2/C8- É.T2/C9-- ÉT2/P1- Volta pro começo!

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A insatisfação da criança que não conseguiu fazer valer sua vontade nos

faz perguntar: qual a sua relação com a tarefa de casa? Faz sentido , quando

ao avaliarmos descobrimos que esta é a criança que nos diz que: “e ela

(referindo-se a mãe ) também vive enchendo meu saco dizendo que se eu

não estudar, eu não vou ter um trabalho direito.”

Episódio 78 : Não fez o dever de casa, volte quantas casas?T2/ C9- 1. PulaT2/C7 – 10T2/C9-1T2/P1- é tão grave assim?T2/C7- é.T2/P1-- é muito ruim. Volte quantas casas? Ele falou 1 ela falou dez.T2/C5- Uma? Uma nãoT2/P1-- é muita diferença. Quanto que é grave?T2C4- 3T2/P1- 3?T2/C7- Então 5T2/P1- 3 ou 5?T2/C6- 5T2/9- 3T2/P1- Se a gente volta 5 casas quer dizer que é muito grave. Gente não fazer o dever de casa volta quantas casas?T2/G- 3,5,3T2/C7- 5!T2/C9- 3!T2/C7- 5!T2/C9- 3!T2/C7-5!T2/P1- Joseane vai decidir.T2/C7- 5!T2/P1- Joseane quantas casas?T2/C3- 3T2/P1- ProntoT2/C2- Chata. Porcaria!T2/P1- Oh. Xingou o colega, vai voltar 7 casas...

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Fugir da escola merece como sanção ir para a sala do Filipe:

suspensão. Mas isso ainda não é o que de pior pode acontecer.

O pior é a sala da diretora. Espaço fantasiado pelas crianças : “ parece

que ela fica lá no ar condicionado... só isso ”.

4.1 O olhar da criança sobre o mundo moral

O que vê a criança ao olhar para o mundo moral no qual está

inserida? Mais do que regras, que de acordo com La Taille, é o que cabe à

moral, identifica também o que está por trás das regras , os ideais, ou seja, a

ética.

Nas seções que seguem, vemos que as crianças além de

compreenderem o universo moral escolar inserem- se neste ambiente não

Episódio 79 : Você fugiu do colégio.T2/C8- Volte 10 casas.T2/P1- Olha você ta normal no recreio, de repente você sobe no muropula o muro e sai correndo para rua. Então?T2/C9- Toma uma suspensãoT2/P1-Aqui, o que é suspensão?T2/C8- Vai pra sala do FelipeT2/P1- Vai pra sala do Felipe

Episódio 80: O pior que pode acontecer ?T2/C9- A diretora!JT2/C5-Ir pra sala da diretoraT2/C9- AtirarT2/P1- Atirar... tiro?T2/C7- Pedra.T2/P1- Bota assim, atirar qualquer coisa (pedra) atirar no colegaT2/C2- Atirar pedra!T2//P1 -Então aqui eu vou fazer a sala da diretora. Aqui é a sala da diretora. A sala da diretora faz gente ficar 3 rodadas sem jogar. Pronto!

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como alguém que aceita um “mundo instituído” , mas como alguém que

partilha deste . É a criança que se mostra como sujeito da sua socialização.

4.2 As regras das crianças

Ainda tratando das relações sociais apresentamos o olhar das

crianças sobre as regras escolares, não como compreendem ou interpretam

as regras do mundo social, mas como sujeitos da socialização pensam e

organizam o universo social da escola.

E se as crianças pudessem criar as regras , que regras teríamos?

Foi esta a proposta: reinventar as regras da escola!

O que vemos a seguir, não é muito diferente da ordem social vigente.

Poderíamos então tomar esta criança como sujeito de sua socialização?

Sim. Afinal, não fugir da grade que cerca a sociedade atual não significa não

ser ator social. Se nos fosse dado à oportunidade de inventar uma nova

ordem social, não faríamos muito diferente. Não desconstruir a organização

social historicamente constituída não significa ser heterônomo, mas demonstra

que a criança não só é capaz de compreender as regras escolares como as

lógicas socializadoras da escola re-significando o seu processo de

socialização fazendo-se sujeito deste. Observemos o episódio 1 sobre as

regras escolares.

Episódio 81: E se vocês fossem fazer as regras. Que regras fariam?T1/C10- Não xingar.(falas não identificadas)T1/C2- Eu ia inventar não ver TVT1/C5 -A diretora não mandar na gente.T1/C1- Não ter brigaT1/C9-- Não ter violênciaT1/C8- Não ter confusão T1/C10- Não ter bagunçaT1/C9-Não responder a tiaT1/C5- Não ter venda de drogas aqui na escola.T1/C7- Porque tem (sinaliza afirmativamente com a cabeça)

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Dentre as regras das crianças, uma contradiz o princípio de

autoridade máxima, autorizado pela família. No confronto entre lógicas

socializadoras distintas, percebemos a possibilidade de ver romper a

heteronomia, embora não possamos dizer que esta criança seja autônoma.

Segundo Freitas (2003),“Piaget chamou de autonomia a capacidade do sujeito deelaborar normas próprias, a qual se constitui nas relaçõesde cooperação: ‘ esta autonomia é empregada aqui semuma conotação filosófica. Ela designa somente apossibilidade do sujeito de elaborar, ao menos em parte, suaspróprias normas’.(Piaget, 1954, p. 534)“ (p.93)

Entendemos que a vida em sociedade não nos permite ter normas

próprias. Somos autônomos moralmente quando percebemos que podemos

transgredir regras para sermos éticos. Piaget descreveu o desenvolvimento

moral iniciando- o no nascimento, período denominado por anomia, que se

caracteriza pela incapacidade de obedecer regras, devido a dificuldade de

compreensão causada pela incipiência dos quadros mentais, atravessando pela

heteronomia, momento no qual a criança já interioriza as regras mas as

conhece como coação do adulto, visando chegar a autonomia, estágio no qual

o indivíduo é capaz de tomar decisões por si mesmo, identificando- se como co-

autor das regras e responsável por sua manutenção.

O que colocamos em discussão na teoria piagetiana é seu o caráter

universal, e que a nós se apresenta como algo desvinculado do contexto

sócio- cultural.

Um determinado conjunto de relações sociais não é universal, cada

grupo social desenvolve e mantém sua cultura. Piaget, em sua teoria atrelou o

desenvolvimento moral ao desenvolvimento cognitivo. Mas será que a moral

se constrói assim como o pensamento? Se uma família privilegia um

conjunto de valores, estes farão parte da construção moral das crianças

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desta família, o que significa que nem todas as crianças terão a mesma

base para o desenvolvimento. Culturas diferentes privilegiam organizações

sociais diferentes. Entendemos que Piaget assim concebe o desenvolvimento

moral próximo do racional até porque em seu modelo a justiça se faz a própria

moral. E sendo esta uma virtude racional , pode-se pensar que a moral aspire

ser, na teoria piagetiana, universal.

Nesta pesquisa percebemos o surgimento de outros sentimentos

morais, apontando para a presença de outras virtudes no desenvolvimento

moral das crianças – sujeitos desta pesquisa, o que nos permite pôr em

questão a universalidade de uma teoria sobre o desenvolvimento moral.

Apresentaremos agora os sentimentos morais encontrados e as virtudes às

quais os trançamos.

4.3 Para além das regras

Durante a realização deste trabalho sentimentos morais emergiram

das conversas das crianças, o que a nós mostrou que esta criança não

somente conhece, pensa e re- significa a lógica socializadora da escola, como

tem um julgamento ético destas ações. Assim como nós, a criança respeita a

regra moral, mas é capaz de olhar para além da regra buscando os

fundamentos éticos que levou a sociedade à elaboração destas.

Com o objetivo de aprofundarmos os dados que encontramos, até

aqui dividimos o grupo em grupos menores, conforme a descrição a seguir:

a) uma dupla- C1 e C2, duas amigas “quase inseparáveis” estudam na

mesma turma, sentam em carteiras próximas. Durante os dias que estivemos

com eles, se mostraram muito amigas;

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b) C3, C4 e C5 – crianças da mesma idade e série, mas de turmas

separadas , no caso de C5, sua fala destoa de todos: é a fala que mais

reproduz o discurso social do pobre, porém na terceira pessoa. Ela não se

reconhece ali;

c)C8- criança que optamos em realizar esta parte da entrevista

individualmente por termos observado o seu comportamento que se destacou

durante todo o trabalho.

A metodologia utilizada para esta parte da entrevista foi, a mesma

utilizada por Piaget, Kolhberg e Yves de La Taille, pesquisadores que

trabalham na busca da compreensão do desenvolvimento moral. Em relação

ao método empregado, concordarmos com Piaget (1994) quando diz que, “o

único bom método no estudo dos fatos morais consiste, seguramente, em

seguir de perto o maior número possível de casos individuais.”(p.22) No

entanto, o nosso objetivo aqui é o de aprofundar algumas falas destas

crianças coletadas em outros momentos e que a nós pareceu estarem

envolvidas por sentimentos morais. Ainda, acreditamos nos pequenos grupos

por favorecerem o diálogo.

Apresentaremos a seguir algumas falas que nos fizeram unir tais

crianças à elaboração do dilema :

O primeiro sentimento por nós percebido foi o sentimento de respeito

pela autoridade do professor . O valor atribuído à obediência à professora ,

bem como a estima das famílias destas crianças pela escola e o aparente

sentimento de amizade entre C1 e C2 , nos fez elaborar um dilema moral

envolvendo o respeito pela autoridade do professor, pela obediência e o

sentimento de amizade a nós traduzido, na virtude fidelidade. Observemos

algumas falas destas crianças que nos levaram a preparar tal dilema.

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Apresentação dos dilemas

De acordo com os episódios (13 e 25), para estas crianças escola é

lugar de estudar. Outra observação que fizemos foi a de que estas crianças

são acompanhadas pelas famílias e que estas tem grande expectativa sobre

o desempenho escolar de seus filhos, como podemos observar no episódio

(6).

O episódio (1) nos mostra a preocupação destas crianças em relação à

possibilidade da professora recorrer à família relatando sobre o

comportamento das crianças na escola. No episódio (3) definem ser bom aluno

como sinônimo de ser obediente. E quando falamos sobre desobediência, no

episódio (10) uma delas nos responde: “imagine quem faz uma coisa dessas...”

Estas foram algumas falas que nos levaram a apresentar a estas

crianças o dilema a seguir que tem a intenção e colocar em confronto a

amizade e a autoridade:

Mariana é uma aluna muito boa, e tem uma melhor amiga, que se chamaAlice, as duas fazem tudo juntas, são muito amigas mesmo. Na semana quepassou a Mariana ficou doente e perdeu muitas aulas de matemática. No diaque ela voltou para a escola, a professora resolveu dar uma prova da matériaque a Mariana tinha perdido. A prova começou e a professora avisou quenão queria que colassem de jeito nenhum. Mariana estava muito nervosa,desesperada, porque não sabia nada, e Alice sabia tudo, e acabou a provarapidinho. A professora então teve que sair para resolver um problema, epediu para Alice que tomasse conta da turma. Mariana, desesperada, pediu

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pro amigo que estava do lado dela para ensinar ela a fazer um problemade matemática. Alice vê a amiga colando e... O que será que ela faz?

A seguir o diálogo das crianças com a pesquisadora:

P2- O que será que ela faz?

C2 - Alice entregou a Mariana para a professora.

C1- Eu também acho. Concordo!

P2- Por que?

C1- Porque isso não pode fazer . Senão tira um zero bem grande, né? (parece

esperar confirmação)

Problematizamos a questão:

P2- Mas se a professora não soubesse que ela tinha colado ela não ia

ganhar um zero bem grande. Ia?

C1- Não. Se a outra contasse ia.

Inserimos a criança na situação: já não é mais o que a criança acha

que Alice faria, mas o que ela acha que deve fazer...

P2- Você acha que ela deve contar?

C2- Eu acho. Porque a professora...

C1- Também

C2- A professora não gosta que cola das provas dos outros e deixou a

Alice cuidando da sala. É obrigação dela falar.

Percebemos o grande peso da obediência. A cola não é julgada por

si, pelo o que ela representa, mas pelo fato de que “a professora não gosta

que cola [...]”, no entanto, se você fosse a Mariana...

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P2- E se você fosse a Mariana, que tivesse ficado doente e aí você não

tivesse, aquela matéria você não aprendeu. A professora ensinou e você não

tava na sala.Na hora da prova você não sabia nada. De repente você pediu

pro amigo do lado te ajudar e aí a sua amiga vai e conta pra professora.

Como é que você ia se sentir?

C2 Ah sei lá. Ia achar que era injusto. É porque eu tava doente, não sabia nem

a primeira resposta da prova. Aí vai lá a professora deixa a minha melhor

amiga cuidando da sala e vai lá e me entrega. Isso não é melhor amiga.

Percebemos que quando se trata do geral, ela opta pela autoridade,

mas ao colocarmos a situação no particular, ela opta pela amizade. O que a faz

rever o seu julgamento é o ponto de vista.Colocando-se como sujeito da

situação , relativiza a justiça e a autoridade da regra.

O que neste momento conta já não é mais a cola ou a obediência à

professora, o sentimento do respeito pela professora é ofuscado pelo

sentimento de amizade: “isso não é melhor amiga”. Percebemos nesta fala a

palavra injustiça ligada ao sentimento de amizade. Injusto quer dizer que ela

se refere à fidelidade como regra . Aponta outras relações não legitimadas

pelo nosso social.

P2- Então, se você fosse a Mariana, você acharia injusto e se você fosse

Alice, você ia entregar a Mariana?

C1 e C2- Eu não.

P2- Por que não?

C2- Ah! Porque ela é minha melhor amiga e também porque tava na sala

de aula pra aprender. Não tava no corredor correndo, tava doente em casa.

P2- Mas você acha que a Alice aqui da história , Mariana e Alice, a Alice deve

contar então, pra professora?

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C2- Não.

C1- Eu concordo.

São as crianças refazendo seus julgamentos...

P2- Então mudaram de idéia?

C1- Não.

P2-Vocês não falaram que ela devia contar?

C2- Ah, agora eu mudei.

P2-Você mudou?

C2- Mudei.

P2-Por que você mudou?

C1- Porque isso ia... A minha amiga podia tirar um zero bem grande né, aí

ela podia repetir o ano aí eu não ia falar pra professora, por isso. É melhor

ficar com a amiga no outro ano do que perder a amiga nesse ano que ela ta

agora, pra ela ficar no outro ano. Não dá!

P2- Você acha mais importante manter a amizade ou falar pra professora?

C2- Eu acho manter a amizade

C1- Eu também.

O segundo dilema apresentado ao grupo formado pelas crianças C3, C4

e C5, traz novamente a amizade no confronto com a autoridade da

professora. O sentimento de respeito pela figura do professor é algo que se

destaca no trabalho. No entanto, para o grupo a seguir parece que este está

atrelado à punição equivalente ao desrespeito à autoridade. Uma das crianças

selecionadas para este grupo, C5 mostrou-nos através de suas falas

reproduzir um discurso social elaborado para o pobre, quase determinando

que este sujeito está fadado a viver à margem da sociedade. O que nos levou

a elaborar um dilema que colocaria duas pessoas em questão: a professora-

autoridade por todos respeitada e uma criança- aluna deste colégio, que

segundo C5 “não tem alunos de qualidade.”

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A criança indicada neste trabalho por C5 é considerada na escola como

“boa aluna”. Podemos conferir na fala da professora, quando solicitamos a

esta que nos explicasse o critério utilizado denominando os alunos indicados

como bom ou mau aluno, sobre esta aluna, nos disse: “ É uma aluna

‘madura’, tem muito estímulo em casa, os pais são presentes e participativos.”

Enquanto que os demais alunos: C3 e C4, são considerados “ maus alunos”,

pelas professoras. Observemos a fala das professoras sobre estes ao

solicitarmos que nos explicassem os seus critérios denominando estes como

maus alunos:

C3- “Não tem dificuldade de aprendizagem, mas não tem limite. Seu

problema é de limite!”

C4- “Não faz o exercício, ele é ‘respondão’, não quer ir para a sala de aula,

além de não querer copiar nada. O aluno não leva o seu material para a escola.

Ele também é muito implicante”.

No episódio (4), observamos a fala de C5 sobre a escola, que se

assume como lugar para estudar, na voz desta criança, e assim o faz

porque é necessário, como se possibilitar liberdade, fosse o mesmo que abrir

espaço para brigas, confusões, em uma palavra: indisciplina. Esta mesma

criança no episódio (2), reafirma que a escola não é boa porque não tem

“alunos de qualidade...”

Durante o jogo de regras, enquanto discutíamos sobre o valor das

sanções relativas as regras: jogar lixo na lixeira e respeitar a professora, C5

no episódio (7), explica o valor através da sanção aplicada ao desrespeito

destas.

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Estas foram algumas falas que nos levaram à elaboração do dilema

a seguir que tem a intenção e colocar em confronto a amizade e a

autoridade.

Eram duas meninas da terceira série que eram muito amigas.Uma eraMariana e a outra Alice. Num dia, quando voltaram do recreio, encontrarama professora muito triste porque disse que a Alice tinha rasgado o seu livro.Alice disse que não tinha sido ela, mas todos os alunos ficaram do lado daprofessora.

A seguir o diálogo das crianças com a pesquisadora:

P2- Se isso acontecesse com você e a sua amiga, ou seu amigo o que você faria?

Acreditaria na sua amiga ou ficaria do lado da professora?

C5- Do lado da professora

C3- Do lado da professora

C4- Do lado da professora também

P2- Por que?

C5- Porque a amiga pode estar mentindo!

Ela é enfática. A criança pode mentir, então problematizamos:

P2- E a professora, não?

C5- Não.

P2- Alguém já passou por uma situação parecida com essa?

(sinalizam que não)

O discurso de C5 é forte e conduz de certa forma o grupo.

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P2- Se você fosse a Alice, vamos supor, um de cada vez. Se C3 fosse a Alice

e a C5 fosse amiga de C3. Então C3 estaria dizendo que ela não teria

rasgado o livro. Você acreditaria na sua amiga?

C5- Acreditaria.

P2- É? E por que nesta situação você ficaria do lado da professora?

C5- Porque a Alice poderia estar mentindo.

P2- E por que a Alice poderia estar mentindo e C4 não?

(Depois de um tempo em silêncio, C5 sorri)

O sorriso nos mostra a dúvida da aluna e então, insistimos:

P2- Você disse que a Alice poderia estar mentindo e você ficaria do lado da

professora . Mas, se fosse C3 e a sua professora, você disse que ficaria do

lado de C3, certo?

C5 - Certo.

P2- Por que?

C5- Mas alguém pode ter ido na sala, rasgado o livro da professora e colocado

a culpa na Alice.

P2- Repete!

C5- Alguém poderia ter rasgado o livro e colocado a culpa na Alice

P2- Que alguém?

C5- Outro aluno da sala.

P2- E aqui no caso da Alice e da Mariana, também não poderia ter acontecido

isso?

C5- Poderia.

P2- E você ficaria do lado da professora ou do lado da Alice?

C5- Do lado da Alice. (sorri)

P2- Do lado da Alice? Então você mudou de opinião. Mudou?

(sinaliza que sim)

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P2- E você, C3, se a Alice fosse a C5. Você ia acreditar nela ou você ia

ficar do lado da professora?

C3- Do lado da C5.

P2- Por que?

C3- Ah porque a C5 não mente.

P2- A C5 não mente. E a Alice mente?

(sinaliza levantando os ombros indicando que não sabe)

Ora como falar de alguém que eu não conheço? A Alice pode mentir,

mas C5 é “boa aluna”, não mente !

P2- E C4, o que você acha disso?

C4- Ficar do lado do meu amigo.

P2- Por que?

C4- A professora deve ta mentindo.

P2- E o seu amigo pode ta mentindo?

C4- Não.

P2- Não? Por que você acha que ele não pode ta mentindo e a sua

professora pode?

C4- Porque ele é o meu melhor amigo.

P2- Ele é o seu melhor amigo. E para você ele não iria mentir?

C4- Pra mim não.

Estamos falando aqui do respeito pela autoridade da professora que

é colocado em questão pelas crianças quando estas se deparam tendo

como controvérsia, a fala de um amigo. Não é de qualquer aluno que

estamos falando, mas de alguém que se conhece. Mais uma vez

percebemos, a virtude fidelidade atrelada as relações destas crianças. Na

fala de C4 , é a professora que pode mentir, mas ao ser perguntado sobre a

possibilidade do amigo mentir a resposta é clara: “pra mim não.” Ele pode

mentir pra qualquer pessoa, mas pra mim... ele é meu amigo, me é fiel

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De acordo com Comte-Sponville (1999)

“ fidelidade à lei, não como divina mas como humana, nãocomo lei universal mas como particular ( mesmo que essa leiseja universalizável, e deve sê-lo), não como lei atemporalmas como histórica: fidelidade à história, fidelidade àcivilização e às Luzes, fidelidade à humanidade do homem![...] “ ( p.22)

Fidelidade ao amigo, se a tenho por alguém , certamente foi

conquistada. Não queremos julgar moralmente os fatos, mas mostrar que ao

nos desenvolvermos moralmente outras virtudes que não a justiça

entrelaçam- se a nós, o que pode muitas vezes traduzir-se em “dramas

morais” que seria a “ luta “ de duas virtudes: a fidelidade de um amigo e a

justiça- pelo sentimento do que é certo fazer, que como em toda luta o

objetivo é a vitória de uma sobre a outra.

O respeito à autoridade foi quebrado! A amizade prevaleceu ao

respeito pelo professor. Mais uma vez percebemos nesta pesquisa , que uma

teoria sobre a moralidade que se traduza unicamente em justiça não nos é

suficiente.

O terceiro e último dilema traz outras virtudes: a generosidade e a

gratidão. Como colocado anteriormente este dilema foi apresentado a uma

criança: C8.

C8, se mostrou no episódio (3) como uma criança que trabalha, no caso

desta pesquisa a única que nos relatou realizar trabalhos domésticos, ou

seja , que possui experiências distintas. No episódio (4) percebemos outra

situação que a distingue das demais crianças: os castigos corporais.

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Em entrevista com outras crianças, surge como punição doméstica

para a ação de xingar, apanhar, “a mãe fala que vai botar pimenta na

nossa boca”. Mas no caso de C8, não é a fala de alguém que diz que vai

botar pimenta, mas alguém que “bota pimenta na boca, dá um tapa e bota ovo

quente.” Castigos estes, que comparados ao da escola: uma suspensão, que

é do simbólico, ofusca a gravidade da punição escolar .

Ao nos depararmos primeiramente com o episódio (50), vimos C8

como uma criança destemida, talvez atrevida, disposta a colocar em xeque a

autoridade escolar. Mas ao analisá-la isoladamente percebemos que não é

assim. Esta criança respeita a autoridade escolar, como podemos verificar no

episódio (58) , além de valorizar um “bom aluno”, que aparentemente busca

ser, como podemos observar na fala da professora : “Ela é sempre atenciosa,

educada, faz os exercícios corretamente, os quais sempre vêm prontos de casa.

Ela está sempre pronta a ajudar o professor e os colegas”. O esforço

demonstrado por C8 para ser um “bom aluno” a nós se apresentou também

como busca do afeto da professora.

No próximo episódio vemos surgir a presença do dinheiro como

valor...

Episódio 82: Você passou na matéria, isso é bom ou ruim?T2/G- Bom!T2/P1- A gente vai ganhar um prêmio ou vai ganhar um castigo?T2/C8- Dez reais!

Dado este para nós relevante e que foi utilizado no dilema que a

apresentamos . Mas o que mais nos chamou atenção nesta criança foi a fala

que aparece no episódio ( 75).

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Nesta fala percebemos a criança capaz de se colocar no lugar do

outro e desafia a amiga: “se eu xingar você vai gostar?” E além disso,

relativiza a autoridade da professora ao comparar as ações. Estamos

falando de ações diferentes e que esta criança atribui valores diferentes:

desobedecer à professora é ruim, mas comparado a xingar um amigo, ou

seja, desrespeitá- lo é pior. Entendemos que quando esta criança frisa em

outro episódio citado anteriormente: “respeita tia! Respeitou não, você respeita”,

não é a figura da autoridade – a professora, que é importante respeitar, mas o

que tem valor aqui é o sentimento de respeito. É o que Piaget chamou de

reciprocidade. Esta criança se coloca no lugar do outro. É o imperativo

categórico de Kant, que diz que devemos sempre agir de maneira que a nossa

ação possa se transformar numa máxima universal: “se eu xingar você vai

gostar?”

Por estas observações , elaboramos um dilema onde confrontamos o

mérito de um bom aluno e a generosidade .Observemos o dilema a ela

apresentado:

Era uma vez uma menina chamada Joana, que era a única menina que eraestudiosa da sua classe. Enquanto todas as crianças faziam bagunça, elaestudava e fazia as tarefas que a professora passava. Um dia a diretora fezum concurso para ver quem fazia a melhor redação, e Joana ganhou oconcurso. O prêmio era 10 reais. Joana tinha trazido de casa várias coisasgostosas pro seu lanche neste dia, mas foi até a cantina, na hora dorecreio, e gastou o dinheiro do prêmio comprando um cachorro-quente euma lata de refrigerante. Joana adorava cachorro-quente. Quando foi sentarna mesinha para comer o lanche, Joana percebeu que uma outra menina dasua idade que nunca levava merenda estava sentada na sua frente. O nomeda menina era Jaqueline, e ela nunca falava nem brincava comninguém.Estava sempre sozinha.Joana viu, assustada, quando Jaquelineestava comendo um pão com manteiga, e uns meninos vieram correndo e

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derrubaram o pão de Jaqueline no chão, e ainda por cima pisaram no pãodela.

P2- Como acaba esta história?

(pensa e responde de cabeça baixa)

C8-Joana foi lá perto da menina e ofereceu o lanche dela.

A pesquisadora insiste:

P2-Ofereceu que lanche? O que ela trouxe de casa ou o cachorro quente?

C8- O cachorro quente.

P2- Por que?

C8- Porque o menino derrubou o lanche dela

P2- Mas se você fosse a Joana, você faria isso?

C8- Claro!

P2-Claro, por que claro?

C8- Porque a menina tava sem nada pra comer ,tia.

Apesar da certeza que esta criança nos passa de que não há outra

coisa a ser feita, insistimos:

P2- Mas, cachorro quente é o que você mais gosta. Mesmo assim você dava

pra ela?

(sinaliza que sim)

C8- Dava.

P2- Você já passou por uma situação como essa, alguma vez?

(sinaliza positivamente)

P2- Você consegue se lembrar e me contar?

C8- Ah, não!

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Ah não!? O que a faz se recusar ? Não lembra? Ou não quer se

expor como a criança que em algum momento, por algum motivo que

desconhecemos tenha ficado sem lanche? Insistimos:

P2- Você se lembra de alguma vez que você tenha tido uma atitude dessa?

C8-Não.

P2- Não? Alguém já fez alguma coisa parecida com você? Por você?

(sinaliza positivamente com a cabeça)

P2- Já?

(sinaliza que sim)

P2- Você lembra? Pode me contar?

C8- Não. (abaixa a cabeça)

P2- Não?Por que não pode?

C8- Não lembro muito. (mantém a cabeça abaixada)

P2-Conta o que você lembra.

C8- A Jayane

P2- Então conta pra mim rapidinho, o que é que a Jayane fez?

C8-Não quero contar não tia. Eu não lembro muito não, tia.

P2-Conta só o que você lembra. A Jayane foi legal com você alguma vez. Foi

isso?

C8-Foi.

Percebendo que C8 não estava se sentindo muito à vontade para

os contar então perguntamos:

P2- Você não quer falar?

C8 - Não. (sinalizou negativamente com a cabeça)

P2- Então ta. Uma pena ...

C8 -Não quero falar disso não, tia. Isso é passado.

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P2-Eu sei que é passado. Mas eu não conheço esse passado. Queria

saber...Então, só olha pra mim, pra gente terminar aqui. Numa certa situação

a Jayane foi legal com você. Foi isso?

C8- Foi

Depois de muito insistir, porém respeitando a vontade da criança , esta

resolveu nos contar .

P2- Como é que foi essa situação? Não tem nada a ver com lanche?

C8- Não.P2- Não?C8- Eu vou te contar. É que a Jayane, ela sempre trazia um biscoito de casa e

ela me dava, mas eu tinha lanche.

Percebemos aqui a criança que enfatiza o fato de ter lanche, o que a

nós parece dizer que não quer passar pela criança que não leva lanche, o

que justifica a dificuldade que encontramos para que ela nos relatasse o

episódio.

P2-Ah! E você gostava desse biscoito?

C8- Gostoso! Era aquele de goiabada que você trouxe naquele dia, sabe?

P2-Sei.

C8- Era aquele...

P2-Como é que você se sentia quando a Jayane dava o lanche dela pra

você.

C8- Eu não sentia nada, ela que dava...

P2-Mas, você ficava feliz, se sentia bem?

C8- Não. Eu tinha o meu lanche.

Confirmando nossa suspeita ela mais uma vez destaca: “eu tinha o

meu lanche.”

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Porém o que mais nos interessa aqui é a primeira resposta desta

criança: “Joana foi lá perto da menina e ofereceu o lanche dela.” E ao

insistirmos perguntando: você faria isso?, nos responde imediatamente: “claro!”

Mas cachorro quente é o que você mais gosta. Mesmo assim você dava pra

ela? Responde- nos : dava”, afirmando também com a cabeça. Do que estamos

falando aqui? De generosidade. De acordo com Comte-Sponville (1999), “ A

generosidade é a virtude do dom. Não se trata mais de "atribuir a cada um o que é

seu", como dizia Spinoza a propósito da justiça, mas o de lhe oferecer o que não é

seu, o que é de quem oferece e que lhe falta.” ( p. 75 )Que obrigação moral teria

C8 em doar o seu lanche preferido?

Nenhuma. Quem poderia lhe obrigar a tal ação? Quem poderia dizer

que seria seu dever doar o seu lanche, o que ela mais gostava, que ganhou

por merecer a uma criança que não era sua amiga: não falava com ela, não

brincava com ela ?

Isto é generosidade!

Mas não só. Percebemos em C8, a capacidade de se colocar no

lugar do outro, é a reciprocidade. C8, não só consegue se perceber no lugar

daquela menina que não tinha lanche, mas lembra de um momento em que

alguém teve uma atitude “generosa” com ela e parece ter aprendido com o ato:

podemos falar em gratidão.

De acordo com Comte- Sponville (1999), a gratidão é uma virtude e

“O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar queela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, porconseguinte, há mérito - apesar do prazer ou, talvez, por causadele - em senti-la.” (p.116)

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Enfim, percebemos em C8, sentimentos e virtudes que contradizem o

modelo de criança heterônoma ou não- normal, bem como nos dois dilemas

anteriores. Retomemos:

Nos dois primeiros dilemas, que tratam do confronto entre a amizade

e o respeito à autoridade, temos como primeira e imediata resposta das

crianças, a escolha pela autoridade . Elas são claras e determinadas ao optarem

pela autoridade. Mas quando são levadas a mudarem o seu ponto de vista,

inserindo- se na situação, fazendo-se sujeito desta, optam pela fidelidade ao

amigo. O que estas crianças estão nos mostrando? Há uma outra forma de

se relacionar que não esta baseada unicamente na justiça, das regras

hegemônicas, consideradas universais.

Estamos falando, porém, de uma lógica contextualizada, onde o

sujeito não vê somente a regra, mas o contexto, do qual faz parte . Esta não

é universal, mas relativa às experiências e vivências, ainda que haja um

entendimento da existência das regras hegemônicas.

De acordo com La Taille, podemos traduzir a ética como os ideais e a

moral como as regras. Diríamos que estamos falando de uma teoria onde os

pólos da questão dialoguem: a moral, na praticidade das regras e a ética no

valor das virtudes. Não estamos desconsiderando as regras desta sociedade

pautada em uma concepção de justiça, mas apontando para a necessidade

de abarcamos outras virtudes nas relações sociais. Estas crianças estão nos

mostrando que é possível. Basta mudarmos o nosso ponto de vista e

assumirmo-nos como sujeitos de nossa moralização ou, ainda, assumir nossa

autonomia.

Enfim, não se trata aqui de discutir heteronomia ou autonomia moral,

ou mesmo classificar estas crianças como heterônomas ou autônomas

como fez Piaget, mas de apresentá-las como sujeitos da sua socialização,

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que pensam o universo moral sob uma lógica distinta da lógica vigente que

não desconsideram, mas que também não se restrinjam à ela. O que nos faz

afirmar que há um trançamento de virtudes no desenvolvimento moral.

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RETRANÇANDO A CRIANÇA:O SUJEITO SOCIAL

“Não havendo assunto pequeno, mas pequeno investigador,cada aspecto da cultura, cada ângulo da atividade humana,permite porcentagem analítica bem inferior a seu volume real.”

Luís da Câmara Cascudo

Este trabalho pretendeu compreender a fala da criança de maneira a

colocá-la num patamar de seriedade junto dos discursos considerados legítimos

sobre o processo de socialização. As falas apreendidas nos encontros com o

grupo de crianças nos proporcionaram um levantamento de dados que se

interrelacionaram neste trabalho nas seguintes categorias: definição de criança,

família e escola: visões que se cruzam, a visão infantil sobre autoridade, universo

socializador da escola e o olhar da criança sobre o mundo moral. Estas categorias

construídas configuraram- se como grandes temas, nos quais procuramos abarcar

a visão da criança sobre a socialização na escola.

A partir da compreensão da fala dos sujeitos desta pesquisa, faz- se

necessárias algumas reflexões, sobre as questões implicadas na temática

discutida, o que faremos a seguir, em forma de considerações finais.

A criança que se apresentou nesta pesquisa, demonstra não somente

apreender o discurso e a lógica social vigente, como fazer-se sujeito desta ao

refletir, reelaborar e re-significar a voz do Outro. Diferente do que esperava

Durkheim, que pensava a criança como um “selvagem” que só após a inculcação

das normas sociais se libertaria do egoísmo próprio do ser humano para a vida em

sociedade, a criança participa dos processos de seu meio social como sujeito que

fala e pensa. Bem como, ao analisarmos os dados, discordamos de alguns pontos

da teoria de Jean Piaget, importante referencial teórico sobre o desenvolvimento

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infantil, que pensa esta criança heterônoma, ou seja, aquela que segue a regra de

outrem.

Não se trata afinal de apresentarmos a criança como heterônoma ou

autônoma moralmente, mas de discutir sobre o lugar dessa criança no processo

de socialização. Será que podemos dizer que essa criança simplesmente aceita a

regra do mundo adulto?

Não. O que apreendemos neste trabalho, foi a fala da criança que nos diz

que pensa sobre o seu papel na sociedade. É a criança como aluno, em primeiro

lugar. Criança como sinônimo de ser aluno, aquele que precisa ser formado. Em

segundo, a criança como diferente do adulto, diferenças físicas, diferenças de

atividades: compreendendo- se como um ser diferente do adulto nos mostra que

possui uma lógica diferente deste. Mas ao nos mostrar isto, demonstra que

enxerga a expectativa do mundo social do adulto em relação a ela. Não é a

criança que não fala ou que não sabe o que falar, mas é o adulto que não ouve,

porque não sabe ouvir criança.

Esta criança percebe e aponta as diferenças entre as duas instituições

sociais em questão neste trabalho: família e a escola. Instituições estas,

responsáveis fundamentais no processo de socialização desta criança.

Percebendo a diferença entre estes dois lugares distintos – casa e escola –lê a

relação muitas das vezes conflituosa, mas que também firma parcerias (quando

se percebem impotentes). Há, porém, diferenças e espaços demarcados com a

intenção de não haver confusão nos papéis: é a criança – filha e a criança – aluno.

Neste espaço-tempo da infância, em que a criança lê as lógicas

socializadoras da escola e da família, percebemos que esta lê, reflete e se

apropria do discurso social. E estamos aqui falando de uma sociedade perversa,

como nos diz Thin, que pensa e espera da criança de classe popular nada além

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155

da marginalização, ou seja, de ser um agente da violência . É a criança vendo a si

como sujeito da violência.

Percebemos na criança, sujeito da nossa pesquisa, a possibilidade de

transgressão. Transgressão como movimento e instauração da dúvida. É a

criança quebrando a hegemonia do social e suas leis, através do confronto

entre lógicas socializadoras distintas, coloca em questão o papel da autoridade

através do riso.

A transgressão como movimento de quebra da hegemonia representa

a possibilidade da construção da autonomia como nos fala Piaget. O sujeito

da nossa pesquisa, se mostra neste movimento no confronto entre as lógicas

socializadoras distintas: lógica familiar e escolar. É neste cenário que realiza a

sua leitura e reelabora o discurso tornado-se sujeito dele. Como podemos

então, desqualificar o espaço doméstico “ por seus interesses restritos, muito

individuais” como nos disse Durkheim?

Será que podemos desqualificar virtudes como a fidelidade, a

generosidade no desenvolvimento moral da criança por representar

sentimentos morais da esfera privada?

O que vimos neste estudo nos permite colocar em discussão o império

da virtude justiça como expressão de toda a moral. Considerando porém, que

sendo a virtude justiça a mais racional de todas, à escola – lugar da racionalidade

cabe fazer valer a sua supremacia, uma vez que esta pode ser traduzida com os

critérios objetivos que a escola conhece e compreende. Porque assim se moldou.

A escola se fundou numa sociedade que se construiu nas bases da justiça.

Mas o que nos interessa aqui, é que essa criança, sujeito da nossa pesquisa

nos diz que é possível pensar uma moral diferente.

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Sabemos que as demais virtudes não podem ser explicadas racionalmente,

não porque são subjetivas, mas porque as retiramos do espaço da

racionalidade, dessa forma como ensiná-las? Mas ao colocá-las em discussão

juntamente com a justiça, abrimos um espaço para a valorização de um outro

modo de pensar. É uma lógica diferente, mas possível, porque se apresenta

nas entrelinhas das nossas relações sociais.

Educar a criança tendo como princípio a educação integral, como nos

propõe os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental,

primando pela ética, significa reavaliar que tipo de educação moral tem proposto a

escola. Para isto recomendamos além do aprofundamento destas questões em

pesquisas posteriores, uma reavaliação no currículo do curso de formação de

professores, como forma de discutir o desenvolvimento moral e o processo de

socialização, espaço este por nós desconhecido na grade que compõe este curso

e que se apresenta a nós de extrema importância .

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Anexo

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Roteiro de entrevista para as crianças grandes

1a parte: Perguntas comuns a todos:

Iden

tific

ação Nome e idade

O que você pode fazer em casa que não pode fazer na escola? Quem éque não deixa? O que acontece com quem faz?O que você pode fazer na escola que não pode fazer em casa? Quem éque não deixa? O que acontece com quem faz?Pode xingar na escola? O que acontece? Pode xingar em casa? O queacontece?

Reg

ras

na c

asa

e na

esco

la

Quando você bate em alguém em casa, o que acontece? Quando vocêbate em alguém na escola, o que acontece?Sua mãe gosta da sua escola? O que sua mãe mais gosta na escola ? Oque sua mãe não gosta?Sua professora gosta da sua família? O que sua professora diz da suafamília?Se a professora não passa dever de casa, o que a sua mãe fala? E o queela fala quando a professora passa muito dever?

Rel

ação

fam

ília

e es

cola

Se você não conseguir fazer o dever de casa por algum motivo, o que aprofessora fala?Existe violência no IEPIC?Quem faz a violência no IEPIC?Me conta uma história de violência que tenha acontecido no IEPIC.Existe violência onde você mora?Quem faz a violência lá?Me conte uma história de violência que tenha acontecido onde você mora.Você tem medo de alguém na sua casa? Por que?Você tem medo de alguém na sua escola? Por que?

Vio

lênc

ia n

a es

cola

e n

a

casa

É certo bater no amigo? E se ele te bater primeiro?

Fala

da

cria

nça Se você pudesse mudar alguma coisa na escola, o que você mudaria?

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