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Estudos de Sociologia , Rev , do Prog. de P ós-Graduação em Sociolog ia da UFPE. 6(2): 7-32 CARACTERÍSTICAS CHAVE DO REALISMO CRÍTICO NA PRÁTICA: um breve r esumo" Andre w Sayer Resumo O rea lismo crítico será i ntroduzido através do esboço de alg umas característi cas que distinguem esta abordagem nas ciências sociais. Existe , é claro, uma literat ura filosófica crescente apresentando e debatendo o rea lismo crítico e filosofias rivais, assim como discutindo suas implicações para a c iência soc ial. Ao invés de tentar resumir esta literatura, concentrar-me-ei nas características chave do realismo, indicando alguns dos argumentos filosóficos em seu favor. r,..] Iniciaremos com algumas implicações da tese realista básica acerca da independência que o mundo tem de nosso conhecimento, introduziremos algumas características da ontologia (teoria do que existe) realista, incluindo suas distinções entre o real, o actual e o empírico, sua perspectiva acerca da estratificação do mundo e da natureza das propriedades emergentes. Passaremos, depois, para sua perspectiva distintiva de causação, sua inclusão de uma dimensão interpretativa de ciência social e sua adesão a um projeto de ciê ncia socia l crítica , isto é, de uma ciê ncia social que é crítica das práticas sociais as quais estuda. Na seg unda parte do artigo, voltar-nos - emos para as abordagens rea listas na pesquisa empírica e para uma breve d iscussão de exemplos tirados da prática. • Este artigo foi originalme nte publicado como o capítulo 1 de Andrew Sayer (2000), Realism and Social Science. Londres, Sage. O livro encontra-se disponível nos seguintes endereços: Sage Publ ications Lt d., 6 Bonhill Street, London EC2A 4PU, Inglaterra, Grã -Bretanha. A home page da edi tora é http://www.sagepub.co.uk. Gentilmente cedido pela editora e pelo autor para publicação em Estudos de Sociologia. Tradução de Cynthia Hamlin (UFPE), revisão de Eliane da Fonte (UFPE ) 7

CARACTERÍSTICAS CHAVE DO REALISMO CRÍTICO NA PRÁTICA: um breve resumo

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O realismo crítico será introduzido através do esboço de algumas características que distinguem esta abordagem nas ciências sociais. Existe, é claro, uma literatura filosófica crescente apresentando e debatendo o realismo crítico e filosofias rivais, assim como discutindo suas implicações para a ciência social. Ao invés de tentar resumir esta literatura, concentrar-me-ei nas características chave do realismo, indicando alguns dos argumentos filosóficos em seu favor. r,..] Iniciaremos com algumas implicações da tese realista básica acerca da independência que o mundo tem de nosso conhecimento, introduziremos algumas características da ontologia (teoria do que existe) realista, incluindo suas distinções entre o real, o actual e o empírico, sua perspectiva acerca da estratificação do mundo e da natureza das propriedades emergentes. Passaremos, depois, para sua perspectiva distintiva de causação, sua inclusão de uma dimensão interpretativa de ciência social e sua adesão a um projeto de ciência social crítica, isto é, de uma ciência social que é crítica das práticas sociais as quais estuda. Na segunda parte do artigo, voltar-nosemos para as abordagens realistas na pesquisa empírica e para uma breve discussão de exemplos tirados da prática.

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  • Estudos de Sociologia , Rev, do Prog. de P s-Graduao em Sociologia da UFPE. 6(2): 7-32

    CARACTERSTICAS CHAVE DOREALISMO CRTICO NA PRTICA:

    um breve resumo"

    Andrew Sayer

    ResumoO realismo crtico ser introduzido atravs do esboo de algumas caractersticasque distinguem esta abordagem nas cincias sociais. Existe, claro, uma literaturafilosfica crescente apresentando e debatendo o realismo crtico e filosofias rivais,assim como discutindo suas implicaes para a cincia social. Ao invs de tentarresumir esta literatura, concentrar-me-ei nas caractersticas chave do realismo,indicando alguns dos argumentos filosficos em seu favor. r,..] Iniciaremos comalgumas implicaes da tese realista bsica acerca da independncia que o mundotem de nosso conhecimento, introduziremos algumas caractersticas da ontologia(teoria do que existe) realista, incluindo suas distines entre o real, o actual e oemprico, sua perspectiva acerca da estratificao do mundo e da natureza daspropriedades emergentes. Passaremos, depois, para sua perspectiva distintiva decausao, sua incluso de uma dimenso interpretativa de cincia social e suaadeso a um projeto de cincia social crtica, isto , de uma cincia social que crtica das prticas sociais as quais estuda. Na segunda parte do artigo, voltar-nos-emos para as abordagens realistas na pesquisa emprica e para uma breve discussode exemplos tirados da prtica.

    Este artigo foi originalme nte publicado como o captulo 1de Andrew Sayer (2000),Realismand Social Science. Londres, Sage. O livro encontra-se disponvel nos seguintes endereos:Sage Publ ications Ltd., 6 Bonhill Street, London EC2A 4PU, Inglaterra, Gr-Bretanha. Ahome page da edi tora http://www.sagepub.co.uk. Gentilmente cedido pela editora e peloautor para publicao em Estudos de Sociologia. Traduo de Cynthia Hamlin (UFPE),reviso de Eliane da Fonte (UFPE)

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  • SAYER. Andrew

    AbstractI want to introduce criticai realism by sketching some of the features whichdistinguish its approach to social science. There is of course a growing philosophicalliterature presenting and debating criticai realism and rival philosophies anddiscssing its implications for social science. Rather than attempt to summarisesuch literature I will restrict myself to realism's key features, merely indicatingsome of the philosophical arguments in its favour. r...] We begin with someimplications of the basic realist thesis of the independence of the world from ourknowledge, introduce some features of criticai realism's ontology (theory of whatexists) including its distinctions between the real, the actual and the empirical, itsaccount of the stratification of the world and of the nature of emergent properties.We then move on to its distinctive view of causation, its inclusion of an interpretivedimension to social science, and its endorsement of the project of criticai socialscience, that is a social science which is criticai of the social practices it studies. lnthe second part of the paper we tum to realist approaches to empirical research anda brief discussion of examples from practice.

    As dimenses transitiva e intransitiva do conhecimento

    Ns j nos referimos tese realista bsica acerca da independncia domundo de nossos pensamentos acerca dele. Isto relaciona-se distinofundamental, feita por Bhaskar (1975), entre as dimenses "intransitiva" e"transitiva" do conhecimento. Os objetos da cincia (ou outros tipos deconhecimento proposicional), no sentido das coisas que estudamos - processosfsicos ou fenmenos sociais - formam a dimenso intransitiva da cincia. Asteorias e discursos, como meios e recursos da cincia, so parte de sua dimensointransitiva, embora, como parte do mundo social, elas tambm possam ser tratadascomo objetos de estudo. Teorias e cincias rivais tm diferentes objetos transitivos(teorias sobre o mundo), mas o mundo a que elas dizem respeito - a dimensointransitiva- o mesmo; caso contrrio, elas no seriam rivais (Collier, 1994: 51).Quando as teorias mudam (dimenso transitiva), isto no significa que aquilo como que elas lidam (dimenso intransitiva) necessariamente muda tambm: no existenenhuma razo para crer que a mudana de uma teoria da terra plana para umateoria da terra redonda tenha sido acompanhada de uma mudana na forma daterra. As coisas so um pouco mais complicadas no que diz respeito ao mundosocial, pois o mesmo socialmente construdo, inclui o prprio conhecimento e,neste sentido, no pode ser considerado como existindo independentemente depelo menos um conhecimento prvio, embora seja mais plausivelmente dependentede um conhecimento passado do que do conhecimento de pesquisadorescontemporneos. Quando os pesquisadores mudam de idia, improvvel queeles produzam mudanas significativas nos fenmenos os quais estudam. Na

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    maioria das vezes, os cientistas sociais desempenham o papel modesto de interpretar(construing), no de "construir" (constructing) o mundo social.

    A distino entre as dimenses intransitiva e transitiva da cincia implicaque o mundo no deve ser reduzido nossa experincia acerca do mesmo e,portanto, estritamente falando, equivocado falar do "mundo emprico" (Bhaskar,1975). O realismo crtico no deve, ento, ser confundido com realismo emprico- equivalente ao empirismo - que identifica o real com o emprico, ou seja, comaquilo que ns podemos experimentar, como se o mundo correspondesse aoespectro dos nossos sentidos, sendo idntico quilo que experimentamos. O realismocrtico tambm no deve ser confundido com realismo literrio, na medida em queo primeiro reconhece e enfatiza o carter conceitualmente mediado ou teoricamenteembasado da experincia, enquanto que o segundo o ignora.

    o real, o actual e o emprico

    O realismo emprico considera o mundo como consistindo de objetosatmicos observveis, entre eles eventos e regularidades, como se os objetos notivessem estruturas ou poderes e, em particular, nenhuma qualidade no-observvel.O realismo crtico distingue no apenas entre o mundo e nossa experincia domesmo, mas entre o real, o actual e o emprico, definindo estes termos de formaespecial (Bhaskar, 1975)1. Quando o realista crtico refere-se ao "real", isto no feito de maneira a reclamar um conhecimento privilegiado do mesmo, mas paradenotar duas coisas. Primeiro, o real o que quer que exista, seja natural ousocial, independentemente de ser um objeto emprico para ns e de termos umacompreenso adequada de sua natureza. Em segundo lugar, o real o reino dosobjetos, suas estruturas e poderes. Sejam fsicos, como minerais, ou sociais, comoburocracias, eles tm uma certa estrutura e poderes causais, isto , capacidade dese comportarem de formas particulares, e tendncias causais ou poderes passivos,isto , susceptibilidades a certas formas de mudana. Na dimenso intransitiva dacincia, tentamos identificar estas estruturas e poderes, tais como as maneirasatravs das quais as burocracias podem processar muito rapidamente um grandevolume de informao de rotina em virtude de sua estrutura (organizaohierrquica, especializao e sistemas de preenchimento dos cargos, etc.). Damesma maneira, indivduos, em virtude de sua compleio fsica, personalidade e

    I De maneira estrita, estas so as caractersticas daquilo que Bhaskar (1975) chamou"realismo transcendental", primordialmente, uma filosofia da e para a cincia natural.Realismo crtico uma variante ou desenvolvimento desta, mas relativa cincia social.

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  • SAVER, Andrew

    educao, so capazes de trabalhar; de fato, eles tm esta capacidade mesmoquando esto desempregados e desocupados. Realistas buscam, portanto, identificartanto necessidade quanto possibilidade ou potencial no mundo - que coisas devemir juntas e o que pode ocorrer, dada a natureza dos fenmenos.

    Enquanto o real - nesta definio - refere-se s estruturas e poderes dosobjetos, o actual refere-se ao que acontece se e quando estes poderes so ativados,quilo que estes poderes fazem e ao que ocorre quando eles o so; como quandoos poderes da burocracia so ativados e ela se engaja em atividades tais quaisclassificao e o envio de cobranas, ou quando uma pessoa anteriormentedesocupada faz algum trabalho. Se tomarmos o exemplo da distino marxistaentre fora de trabalho e trabalho, a primeira (a capacidade de desempenhartrabalho), juntamente com as estruturas fsicas e mentais das quais ela deriva, equivalente ao nvel do real, enquanto que, o trabalho, entendido como o exercciodeste poder, e seus efeitos, pertencem ao domnio do actual".

    O emprico definido como o domnio da experincia e, na medida em quea referncia a ele bem sucedida, ela pode ser feita com relao ao real ou aoactual", embora seja contingente (nem necessrio, nem impossvel) que nsconheamos o real ou o actual. Enquanto que ns podemos observar coisas comoa estrutura de uma organizao ou uma unidade domstica, assim como o queocorre quando elas agem, algumas estruturas podem no ser observveis.Observabilidade pode nos tornar mais confiantes acerca do que pensamos existir,mas a existncia em si mesma no depende da observao. Em virtude disto,ento, ao invs de confiar puramente em um critrio de observabilidade para efetuarproposies acerca do que existe, os realistas tambm aceitam um critrio causal(Collier, 1994). De acordo com isto, um caso plausvel para a existncia de entidadesno-observveis pode ser feita atravs da referncia aos efeitos observveis ques podem ser explicados como o produto de tais entidades. Tanto os cientistasnaturais quanto os sociais fazem tais assertivas freqentemente. Por exemplo,muitos lingistas inferiram a existncia de uma gramtica generativa a partir dahabilidade que as pessoas tm para construir sentenas novas, mas gramaticalmente

    2 A linguagemexiste tanto no nvel real - como geradorade gramticas e vocabulrios -quanto no nvel actual- como fala (comunicao pessoal de Nonnan Fairclough).3 Algumasconcepesdestes conceitosdo a impresso de que o domniodo empricospodeexpressarou se referira umsubconjunto do actual, noao real, de formaque estruturase poderes so tratados como inobservveis. Poderes ou potenciais no ativados so,obviamente, no observveis, mas as estruturas cm virtudedas quais eles existem podemo ser (o corpo do trabalhadordesocupado, por exemplo); observabilidade no restrita aoque se move ou muda, pois pelo menos algumas estruturas podem ser observadas.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    corretas.Uma implicao crucial desta ontologia o reconhecimento da possibilidade

    de que os poderes podem existir mesmo quando no exercidos, e, assim, queaquilo que aconteceu ou aquilo que se sabe ter acontecido, no exaure o quepoderia ter acontecido ou tudo o que aconteceu. A natureza dos objetos reaispossibilita e apresenta, em um tempo dado, restries quilo que pode acontecer,mas no predetermina o que ocorrer. Uma ontologia realista torna, portanto,possvel compreender como ns poderamos ser ou tornarmo-nos coisas queatualmente no somos: o desempregado poderia tornar-se empregado, o ignorante,conhecedor, etc.

    Estratificao e emergncia

    Ao distinguir o real, o actual e o emprico, o realismo crtico prope uma"ontologia estratificada", em contraste com outras ontologias "achatadas", povoadas'pelo actual, pelo emprico, ou por uma reduo dos dois. Assim, o realismo empricoassume que aquilo que podemos observar tudo o que existe, enquanto que o"actualismo" assume que o que ocorre de fato no nvel dos eventos exaure omundo, eliminando o domnio do real, dos poderes que podem ou ser ativados , oupermanecer dormentes. Alm disso, o realismo crtico argumenta que o mundo caracterizado pela emergncia, isto , situaes nas quais a conjuno de duas oumais caractersticas -ou aspectos do origem a novos fenmenos, os quais tmpropriedades irredutveis quelas de seus constituintes, ainda que estas ltimassejam necessrias sua existncia. O exemplo fsico clssico deste fato so aspropriedades emergentes da gua, que so bastante diferentes daquelas de seuselementos constituintes, o hidrognio e o oxignio. Da mesma forma, fenmenossociais so emergentes de fenmenos biolgicos, que so, por seu turno,emergentes dos estratos fsicos e qumicos. Assim, a prtica social da conversaodepende do estado fisiolgico dos agentes, incluindo os sinais enviados e recebidosem torno de nossas clulas nervosas, mas a conversao no redutvel a estesprocessos fisiolgicos. Explicaes reducionistas que ignoram propriedadesemergentes so, portanto, inadequadas (Bhaskar, 1975).

    Embora ns no precisemos voltar ao nvel da biologia ou da qumica paraexplicar os fenmenos sociais, isto no significa que os primeiros no tenhamefeito sobre a sociedade. Tampouco significa que podemos ignorar a maneira pelaqual afetamos estes estratos, por exemplo, atravs da contracepo, medicina,agricultura e poluio. Conforme somos crescentemente lembrados hoje em dia,mas como Marx tornou claro em suas Teses sobre Feuerbach ao se referir "atividade humana sensvel", ns somos seres corpreos, e a interao do social

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  • SAYER, Andrew

    com o fsico precisa ser reconhecida".No mundo social, os papis e as identidades das pessoas so freqentemente

    relacionadas internamente, de forma que o que uma pessoa ou instituio pode ouquer fazer depende de suas relaes com outros. Assim, por exemplo, o quesignifica ser um professor no pode ser explicado no nvel dos indivduos, masapenas em termos de suas relaes com os estudantes, e vice-versa. Os poderesdos quais eles podem dispor dependem, em parte, de suas relaes recprocas ecom partes relevantes do contexto, tais como instituies educacionais. Sistemassociais comumente envolvem "dependncias ou combinaes [que] afetamcausalmente os elementos ou aspectos, e a forma e estrutura dos elementos seinfluenciam causalmente e, portanto, tambm o todo" (Lawson, 1997: 64). Relaesinternas residem fora das fronteiras do positivismo, que sistematicamente representaa sociedade de forma equivocada ao apresentar tais fenmenos como redutveis aindivduos ou tomos independentes. Ao mesmo tempo, ns podemos ser afetadospor coisas cuja existncia e posio apenas contingente ou externamenterelacionada nossa prpria existncia, por encontros casuais. As biografias decada um de ns foram influenciadas por tais acidentes de forma crucial.

    Em virtude da sensibilidade extrema das pessoas em relao aos seuscontextos - que deriva particularmente de nossa habilidade de interpretar situaes,ao invs de sermos simples e passivamente moldados por elas - os fenmenossociais raramente tm a durabilidade de muitos dos objetos estudados pela cincianatural, tais quais minerais ou espcies. Quando elas so relativamente duradouras,como muitas instituies o so, isto, normalmente, fruto de uma realizao interna,produto de mudanas contnuas no sentido de se permanecer o mesmo ou, nomnimo, de manter certas continuidades atravs da mudana, e no resultado deum nada fazer. Consequentemente, no podemos esperar que as descries dacincia social permaneam estveis ou no problemticas ao longo do tempo e doespao; neste sentido, uma preocupao com a conceituao inteiramenteesperada e, certamente, no sinal de imaturidade cientfica.

    Causao

    Uma das caractersticas mais distintivas do realismo sua anlise dacausao, que rejeita a viso humeana "sucessionista" que envolve regularidades

    4 Esta complexidade das implicaes da combinao de materialidade e emergncia especialmente importante para se resolver alguns dos problemas levantados nos debatesrecentes sobre essencialismo.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    entre seqncias de eventos (Harr e Madden, 1975; Bhaskar, 1975). Ns jpreparamos o terreno para uma interpretao realista ao fazer a distino entre oreal e o actual, quando introduzimos o conceito de poderes causais. Objetos soestruturas, ou parte de estruturas. "Estrutura" sugere um conjunto de elementosinternamente relacionados cujos poderes causais, quando combinados, soemergentes daqueles de seus constituintes". Assim, estruturas hierrquicas podempossibilitar delegao e diviso de tarefas, vigilncia e eficincia no trabalho.

    Se estes poderes so de fato exercidos, depende de outras condies - nocaso dos trabalhadores desempregados, se eles precisam se sustentar, se existemempregos, etc. Quando os poderes causais so ativados (como quando ostrabalhadores trabalham), o resultado depende, mais uma vez, de outras condies(o tipo de contexto, ferramentas, etc.). Processos sociais tambm so, tipicamente,dependentes das interpretaes que os atores tm uns dos outros, embora muitode desconhecido e de no-pretendido possa ocorrer.

    Conseqentemente, para os realistas, causao no entendida com baseno modelo de sucesses regulares de eventos e, portanto, a explicao no precisadepender de sua descoberta ou da procura de supostas leis sociais. O impulsoconvencional de provar causao atravs da coleo de dados que indiquemregularidade ou ocorrncias repetidas , portanto, equivocada; na melhor dashipteses, estas regularidades podem sugerir onde buscar candidatos a mecanismoscausais. O que causa a ocorrncia de algo no tem nada a ver com o nmero devezes em que observamos sua ocorrncia' . A explicao depende da identificaode mecanismos causais, de como eles operam, e da descoberta de se eles foramativados e sob que condies.

    Movendo-nos na direo contrria, explicar porque um determinadomecanismo existe, envolve descobrir a natureza da estrutura ou objeto que possuiaquele mecanismo ou poder: assim, o poder do professor de corrigir os trabalhosde seus alunos depende de seu conhecimento e qualificao; de ele ser aceito pelaescola e pelo pblico como legtimo, etc.; o mecanismo de preo depende deestruturas de relaes competitivas entre firmas produtoras que buscam o lucro,

    5 Nem todas as estruturas sociais so grandes ou supra-individuais, como estruturasburocrticas ou estruturas de classe. Tambm existem estruturas intra-individuais eintemalizadas, como estruturascognitivas.6 Imaginarque existe [umarelao entreestascoisas] constitui umexemplo doque Bhaskarchama de "falcia epistmica", na medidaem que se confunde uma questo ontolgica-relativa ao que existe (causas) - com uma questo epistemolgica acerca de comodesenvolvemos conhecimento confivel, porexemplo, requerendo-se repetidas observaes(Bhaskar, 1975).

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  • SAYER, Andrew

    etc. Mais uma vez, evidente, nestes exemplos, a dependncia que as estruturassociais tm, inter alia, de compreenses mtuas, em termos da aceitao dodireito do professor de ensinar, e da compreenso do pblico do significado dodinheiro, no caso da competio de preos. Em outras palavras, em lugar do modelopositivista:

    Figura 1O realismo percebe a causao como:

    " Causa >v

    efeito /

    regularidade

    Figura 2

    mecanismo

    estrutura /

    / efeito/evento

    "'-condies (outros mecanismos)

    Apesar do carter enigmtico deste tipo de reconstruo filosfica, muitosmecanismos so comuns, freqentemente identificados em termos de linguagemordinria atravs verbos transitivos, como em "eles construram uma rede deconexes polticas". Tanto na vida cotidiana quanto na cincia social,freqentemente explicamos as coisas com referncia a poderes causais.

    Regularidades consistentes so provveis de ocorrer apenas sob condiesespeciais, em "sistemas fechados". As condies de fechamento so, pfmeiro,que o objeto possuidor do poder causal em questo seja estvel (condio intrnseca)e, segundo, que as condies externas nas quais o objeto esteja situado sejamconstantes (condio extrnseca) (Bhaskar, 1975). Tais condies de "sistemasfechados" no ocorrem espontaneamente no mundo social, ou mesmo em grandeparte do mundo natural, embora a cincia natural possa, freqentemente, produzi-las artificialmente nos experimentos. Nos sistemas abertos do mundo social, omesmo poder causal pode produzir resultados diferentes, de acordo com a maneirapela qual as condies de fechamento so quebradas; por exemplo, a competioeconmica pode levar firmas a se reestruturarem e inovar, ou a fechar. Algumasvezes, mecanismos causais diferentes podem produzir o mesmo resultado; por

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    exemplo, voc pode perder seu emprego por uma variedade de razes . Taisregularidades, como ocorrem nos sistemas sociais , so aproximadas etemporalmente limitadas e, normalmente, so o produto de esforos deliberadospara produzi-las, atravs, por exemplo, do uso de instrumentos como regimesdisciplinares que regulam o incio e o fim da jornada de trabalho, ou de mquinasque marcam o ritmo do trabalho.

    Porque os eventos no so pr-determinados antes que ocorram, masdependem de condies contingentes, o futuro aberto - as coisas podem ocorrerde muitas maneiras diferentes . No entanto, ao olhar retrospectivamente para asmudanas e explic-las, fcil imaginar que o que ocorreu foi sempre a nicacoisa que podia ter ocorrido; a retrospeco pode, s vezes, ser um benefciodbio. Uma das tentaes da explicao social a de se suprimir o reconhecimentodo fato de que, em qualquer instante, o futuro aberto, as coisas podem ocorrerde forma diferente. Isto porque, na medida em que algo ocorre, as possibilidadesso fechadas.

    Sendo assim, existe mais no mundo do que padres de eventos . O mundotem profundidade ontolgica: os eventos derivam da operao de mecanismos,que derivam das estruturas dos objetos, e estes localizam-se em contextos geo-histricos. Isto contrasta com abordagens que tratam o mundo como se ele nofosse mais do que padres de eventos a serem registrados atravs da coleo dedados puntiformes relativos a "variveis", e com a busca das regularidades entreestes eventos.

    Ns notamos anteriormente que o mesmo mecanismo pode produzirdiferentes resultados de acordo com o contexto ou, mais precisamente, de acordocom suas relaes espao-temporais com outros objetos. Estes mecanismos tmseus prprios poderes causais e tendncias que podem disparar, bloquear oumodificar a ao dos objetos a que se referem. Dada a variedade e mutabilidadedos contextos da vida social, esta ausncia de associaes regulares entre "causas"e "efeitos" deve ser esperada. As causas e condies de qualquer mudana socialparticular tendem a se espalhar geogrfica e temporalmente em relao ao pontoem que ocorreram. Isto particularmente marcado na mudana social devido memria. O que os atores fazem em um dado tempo provavelmente afetado pordisposies que foram "sedimentadas" em um estgio anterior, freqentemente,em diferentes locais. Neste sentido, o passado e outros lugares (agora ausentes),esto presentes no aqui e agora (Stones, 1996: 49). Quanta diferena o contextofaz no pode ser especificado no nvel da ontologia, dado que depende da naturezados processos pelos quais [os atores] se interessam; [...] o interesse varia do"camalenico" (chameleon-like), ao relativamente indiferente ao contexto ouindependente dele.

    Freqentemente, dois ou mais objetosque so contingentementerelacionados,

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  • SAYER, Andrew

    no sentido de que podem existir um sem o outro, so postos em contato e interagem(isto , influenciam-se cau salmente) . Assim que isto ocorre, determinadosmecani smos novos podem ap arecer. Isto algumas vezes chamado de"necessidade contingente", gerando uma certa confuso. Assim, contingenteque um time de futebol seja amador ou profissional, mas na medida em que setoma profissional, novas condies e demandas necessariamente aparecem, taiscomo a necessidade crescente de renda para cobrir o pagamento de seusempregados, seja atravs do dinheiro da bilheteria, presentes, propaganda, ou oque quer que seja . Mais uma vez, contingente que ele levante verbas, tornando-se uma companhia pblica, mas se o fizer, de acordo com as regras que governamos direitos dos acionistas, o time se toma susceptvel influncia dos acionistas e ameaa dos encampadores.

    Tipicamente, os cientistas sociais no esto lidando somente com sistemasabertos, mas sistemas abertos nos quais existem muitas estruturas e mecanismosem interao. Isto cria o risco de se atribuir a um mecanismo (e a sua estrutura)efeitos que so de fato devidos a outro. Muita s das controvrsias da cincia socialreferem-se a problemas deste tipo , como as controvrsias relativas aos papisrespectivos do capitalismo e do patriarcalismo ao se considerar o fato de que osalrio das mulheres significativamente mais baixo do que o dos homens. Esteproblema da identificao de responsabilidade causal em sistemas abertoscomplexos pode ser melhor tratado, ou atravs do estudo de exemplos que forneamcontrastes etiolgicos, tal como a aus ncia de uma condio comumenteencontrada, ou se efetuando uma srie de perguntas tipicamente realist as:

    - O que a existncia deste objeto/prtica pressupe? Quais suas pr-condies? Por exemplo, o que o uso do dinheiro pressupe (confiana, um estado ,etc.);

    - O objeto A (ex.capitalismo) pode/poderia existir sem B (ex .patriarcalismo)? (Esta uma outra forma de se descobrir as condies de existnciade um fenmeno social);

    - O que , neste objeto, que o possibilita fazer certas coisas: ex. o queexiste nas associaes profissionais que as tomam aptas a aumentar os salriosde seus membros? o conhecimento especializado de seus membros, suasrestries entrada na profisso, sua dominao pelos homens, etc.? (Naturalmente,podem haver diversos mecanismos trabalhando simultaneamente e talveznecessitemos encontrar formas de distinguir seus respectivos efeitos).

    Note-se que estas questes di zem respeito a necessidade , no aregularidade. Elas nos ajudam a distinguir entre o que pode e o que deve ser ocaso ao estabelecer certas pr-condies. Elas envolvem um pensamento contra-factual , e no associacionista; isto , elas no revelam uma preocupao em seassociar coisas que acontecem, pois isto pode ser um acidente, mas com a

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    determinao de se as associaes poderiam no ter ocorrido. Assim, o capitalismopode sempre, regularmente, ser encontrado juntamente com o patriarcalismo,mas no se segue disto que eles tenham que co-existir como pr-condies mtuas.O patriarcalismo antecede o capitalismo, e pode-se argumentar que o capitalismopoderia existir em uma sociedade no-patriarcal (Sayer, 1995). Ao responder estasperguntas, muito depende de como ns conceituamos os objetos (ex. o que nsqueremos dizer com capitalismo e patriarcalismo? O que est includo nestestermos?).

    Efetuar estas perguntas realistas nos foram a definir melhor nossosconceitos. Assim, se no temos certeza se uma relao entre A e B necessriaou contingente (isto , nem necessria, nem impossvel), esta pergunta requer queespecifiquemos o que h em A ou B que gostaramos de questionar em relao aostatus de suas relaes". Buscar formular estas questes acerca das condiesde existncia dos nossos objetos de estudo fundamental teorizao na cinciasocial (Sayer, 1992; Sayer, 1995: cap. 2).

    Tais julgamentos so, certamente, falveis; contingente que ns conheamosnecessidade ou contingncia, mas nenhuma filosofia da cincia pode prometeruma "estrada real para a verdade", e o realismo crtico no uma exceo" . Emalguma medida, os pesquisadores tendem a efetuar tais perguntas intuitivamente,no importando se se consideram realistas. No entanto, na prtica, eu argumentaria

    7 Alguns' crticos do realismo tm reclamado que nem sempre claro se uma relao necessria ou contingente. Algumas vezes, isto correto, mas quando este o caso, torna-se claro que ainda temos que chegar a uma compreenso satisfatria da situaoem questoe que necessrio um maior esforo no sentido de se conceituar adequadamente os objetoschave, antes que se possa decidir se os elementos em questo so interna ou externamenterelacionados. Como qualquer filosofia da cincia, o papel do realismo crtico somente,como Bhaskar coloca, o de um 'investigador dos subterrneos (underlabourer) e parteiraocasional', e no o de um substituto teoria e pesquisa substantivas. Alm disso, algumaconfuso pode ter resultado de um deslize no uso de dois sentidos diferentes de"contingente", isto , "nem necessrio, nem impossvel", e "dependente", como em "x contingente a y". Enquanto que possvelcombinarestes dois sentidosque so virtualmenteopostos,eu prefironoo fazer, restringindo-me ao usodo termonoprimeirosentidoindicado.Pode-se fazer isto ao mesmo tempo em que se reconhece que todo fenmeno, sejacontingentemente relacionadoou no, tem suas respectivascausas e condies:contingenteno significa "no-causado" .8 Algunscrticosparecemesperaro contrrio. Archer(1987),por exemplo,refere-se minhaidia de que contingente que conheamos necessidade ou contingncia como sendo umproblema fatal para uma filosofia realista.

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  • SAYER, Andrew

    que poucos pesquisadores vo muito longe em questionamentos deste tipo. Almdo mais , a filosofia da cincia e o ensino dos mtodos ortodoxos ativamentedesencorajam tais questionamentos ao priorizar a busca de regularidades e apredio, independentemente do status destas regularidades. Conforme veremosmais adiante, isto tem conseqncias desastrosas para a pesquisa.

    A dimenso interpretativa ou hermenutica

    o realismo crtico reconhece que os fenmenos sociais so intrinsecamentesignificativos e, portanto, que o significado no apenas uma descrio exteriordos fenmenos sociais, mas constitutivo dos mesmos (embora, obviamente, tambmexistam constituintes materiais). Significado deve ser compreendido, no podendoser medido ou contado e, assim, sempre existe uma dimenso interpretativa ouhermenutica na cincia social. Isto aparece mais obviamente em etnografia eanlise do discurso, mas tambm requerido, embora freqentementedesconsiderado, mesmo na anlise de sistemas como economias de mercado, namedida em que eles tambm pressupem que os atores compreendam mutuamentesuas aes. Isto significa que o realismo crtico apenas parcialmente naturalista,pois , embora a cincia social possa usar os mesmos mtodos que a cincia naturalno que se refere explicao causal, ela tambm deve divergir desta ltima noque se refere ao uso do Verstehen ou compreenso interpretativa" . Enquanto queos cientistas naturais necessariamente tm que entrar no crculo hermenutico desua comunidade cientfica, os cientistas sociais tambm tm que entrar naqueledos atores os quais estudam. Em outras palavras, a cincia natural opera em umanica hermenutica, enquanto os cientistas sociais operam em uma duplahermenutica. Estes ciclos implicam um movimento de mo dupla, uma "fuso dehorizontes" entre falante e ouvinte, entre pesquisador e pesquisado, de acordocom o qual as aes e textos deste ltimo nunca falam por si mesmos, ainda que

    9 Parece-me que a concesso de Bhaskar ao an-naturalismo desnecessariamentedepreciada, como se houvesse algum tipo de perda de status ao se distanciar dos mtodosdas cincias naturais (Bhaskar, 1979). A dimenso hermenutica tambm minimizada naconcepo de realismo crtico de Andrew Collier (1994: 247-8). De fato, ele chega perto denegar que o significado constitutivo da prtica social. Isto lamentvel, na medida emque enfraquece o apelo do realismo queles cujos maiores esforos de pesquisa dizemrespeito a um trabalho interpretativo. Para os realistas, os mtodos deve ser apropriadosaos seus objetos, e no h necessidade de se apegar ao naturalismo mais do que apropriado.Para a mais completa anlise da dimenso interpretativa da cincia social, veja Stones, 1996.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    tambm no sejam redutveis interpretao que o pesquisador tem deles.Significados relacionam-se a circunstncias materiais e contextos prticos

    nos quais a comunicao ocorre e aos quais se faz referncia. Ento, emboraendossando muito da hermenutica, o realismo insiste:

    a) nos ambientes e embasamentos materiais da interao comunicativa e,b) na presena de uma dimenso material, no discursiva, da vida social" .Embora seja comum ver a cincia natural como apresentando todas as

    vantagens em relao possibilidade do uso de experimentos e em no ter quelidar com objetos significativos, pode-se olhar a cincia social como tendo umavantagem compensatria, nomeadamente, a de que, na medida em que osfenmenos sociais so dependentes das concepes que os atores tm deles, nsj temos um "acesso interno" a estes fenmenos, ainda que este acesso sejafalvel (Bhaskar, 1979).

    Embora o realismo divida com a cincia social interpretativa a viso de queos fenmenos sociais so conceito-dependentes e tm que ser entendidos,contrariamente ao interpretativismo, o realismo argumenta que isto no elimina aexplicao causal,

    a) porque a mudana material na sociedade tambm tem que ser explicadae,

    b) porque razes tambm poder ser causas, na medida em que elas nosimpelem a fazer coisas, pensar de maneira diferente, etc.

    Em outras palavras, o realismo possui uma concepo mais alargada decausao do que costumeiro, na medida em que no assume que todas as causasdevem ser fsicas . primeira vista, isto pode parecer desconcertante, mas suanegao absurda na medida em que implicaria a irrelevncia causal das razes(Bhaskar, 1979; 1989), como se, por exemplo, quando colocamos um x ao lado donome de algum em uma cdula eleitoral, isto no tivesse nada a ver com o uso darazo relativamente poltica, aos candidatos, etc.

    Aes sempre pressupem recursos pr-existentes e meios, muitos dosquais apresentam uma dimenso social irredutvel s propriedades dos indivduos;assim, falar pressupe uma lngua; uma lngua, uma comunidade e recursosmateriais, como cordas vocais ou outros meios de se efetuar sons inteligveis;abrir uma conta bancria pressupe bancos, dinheiro e regras que governamemprstimos, etc. Ainda que estes recursos e estruturas sociais sejam, eles prprios,produto de aes (no h estruturas sem aes), isto no significa que estruturase aes possam ser reduzidas umas s outras. Assim que se olha para elas no

    10 O papel dos referentes freqentemente desconsiderado em discusses ps-modernasda significao, de maneira que os significados parecem no ter qualquer relao com eles.

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    tempo - tendo-se em mente que elas no podem ser atemporais - ento se tornaclaro que as aes pressupem um conjunto j existente de estruturas que incluemsentidos compartilhados, apesar de estas estruturas deverem sua existncia aofato de que, em um tempo anterior (t-l), as pessoas reproduziram ou transformaramestruturas existentes em um tempo t2 (t-2), atravs de suas aes que foram, porseu turno, possibilitadas e restringidas por estas ltimas (Archer, 1995).

    Por que realismo crtico?

    o realismo crtico oferece um denominador para a cincia social crtica,isto , uma cincia social que crtica em relao s prticas sociais que estuda,assim como a outras teorias. Bhaskar, em particular, tem argumentado que a cinciasocial tem um potencial emancipatrio (1986). As prticas sociais so informadaspor idias que podem ou no ser verdadeiras, e o fato de elas serem verdadeirasou no pode ter alguma influncia naquilo que acontece. Assim, relaes de gneroso geralmente informadas e reproduzidas atravs da crena de que gnero algo natural, e no produto da socializao, de maneira que as desvantagens sofridaspelas mulheres so implicitamente percebidas como desvantagens naturais.Cientistas sociais que meramente reproduziram esta explicao de maneira a-crtica, falharam em seu entendimento de gnero. Para explicar tais fenmenos,deve-se reconhecer esta dependncia que as aes tm dos significadoscompartilhados e, ao mesmo tempo, demonstrar em que aspectos estes significadosso falsos, se o so. Se as perspectivas cientfico-sociais diferem das dos atores,ento os cientistas sociais no podem seno ser crticos do pensamento e aoleigos. Alm disso, como Bhaskar argumenta, identificar compreenses sociaiscomo falsas e, portanto, as aes informadas por elas como falsamente embasadas,implica em que (ceteris paribus) estas crenas e aes devem ser mudadas.

    Realismo e mtodos de pesquisa emprica

    Comparado ao positivismo e ao interpretativismo, o realismo crtico endossa,ou compatvel com, uma gama relativamente ampla de mtodos de pesquisa,mas tem implcito que as escolhas particulares devem depender da natureza doobjeto de estudo e daquilo que se quer apreender acerca do mesmo . Por exemplo,a etnografia e as abordagens quantitativas so radicalmente diferentes, mas cadauma pode ser apropriada para tarefas diferentes e legtimas: a primeira pode serutilizada para pesquisar as normas e costumes de um grupo, a segunda, parapesquisar o fluxo do comrcio mundial. Mais importante, talvez, que os realistas

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    rejeitam receitas metodolgicas que levam as pessoas a imaginar que se podefazer pesquisa simplesmente aplicando estas receitas, sem que se tenha umconhecimento relativamente aprofundado do objeto em questo.

    Os objetos que os cientistas sociais estudam, sejam guerras, discursos,instituies, atividades econmicas, identidades, relaes de parentesco, ou o quequer que seja, so concretos no sentido de que so produto de componentes eforas mltiplas. Sistemas sociais so sempre abertos e, normalmente, complexose "desorganizados" (messy). Contrariamente ao que ocorre em algumas dascincias naturais, no podemos isolar estes componentes e examin-los sobcondies controladas. Temos, assim, que nos basear na abstrao e conceituaocuidadosa a fim de tentarmos isolar os diversos componentes ou influncias emnossas mentes e, apenas depois disso e de considerarmos como estes componentescombinam-se e interagem, podemos esperar retornar ao objeto concreto e multi-facetado a fim de compreend-lo. Muito se baseia na natureza de nossas abstraes,isto , em nossas concepes de componentes particulares e uni-dimensionais doobjeto concreto; se estas abstraes dividem o que , na prtica, indivisvel, ou seelas reduzem a um s componentes diferentes e separados, ento provvel quesurjam problemas. Muito depende das formas de abstrao que utilizamos, damaneira de talharmos e definirmos os objetos que estudamos (Sayer, 1992: cap 3).Infelizmente, o grosso da literatura metodolgica da cincia social ignoracompletamente esta questo fundamental, como se se tratasse, simplesmente, deuma questo de intuio. Assim, muitos tipos de pesquisa social operam comcategorias utilizadas em estatsticas oficiais, ainda que estas categorias sejamfreqentemente baseadas em abstraes pobres ou incoerentes. Considere-se acategoria "servios" como utilizada, por exemplo, no termo "o setor de servios".Espera-se, neste ltimo termo, identificar atividades que tenham alguma coisa emcomum e que se comportam de maneira semelhante quando, de fato, o termoengloba atividades econrnicasque no permitem tal identificao,como transporte,servios de esttica corporal, turismo, seguros e catering. No nadasurpreendente que a categoria no possua o peso explanatrio que muitospesquisadores so tentados a atribuir a ela - por exemplo, servios como a baseda "sociedade ps-industrial"- e que os resultados de tais pesquisas sejaminconclusivos e/ou enganadores. Esta , como Marx colocou, uma "concepocatica". Nenhum grau de sofisticao em mtodos de pesquisa pode compensartais abstraes malfeitas. Apenas se atribuirmos uma maior nfase aos problemasde formao de conceitos e buscarmos os tipos de questes realistas esboadasanteriormente, poderemos evitar tais armadilhas.

    Como notamos anteriormente, dada a presena de sistemas e causasmltiplas nas coisas que estudamos, assim como a possibilidade de causas diferentesproduzirem os mesmos efeitos, sempre existe um risco de relaes causais mal

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  • SAYER. Andrew

    atrbudas. Lembremos nosso exemplo anterior da explicao do poder dasassociaes profigsionas. fcil pensar em diversos mecanismos possveis - aoperao de uma loja fechada, as vantagens advindas da atuao de especialistasperitos, poder patriarcal, a defesa do pblico geral, etc. Pode haver mais do queum mecanismo operando conjuntamente, mas isto o que temos de decidir sequeremos ter certeza de no estarmos atribuindo responsabilidades causaisequivocadas. A atribuio adequada de relaes causais requer abstrao e umprojeto de pesquisa que seja gerado de forma a identificar tais possibilidades.

    Na medida em que os pesquisadores esto preocupados com discursos equalidades significativas de prticas sociais, a compreenso destes no umaquesto de abstrao seguida de sntese concreta, mas de interpretao. No entanto,os realistas adicionariam a isto que, para interpretar os significados subjetivos,temos que relacionar seu discurso aos seus referentes e contextos. Tambm sefaz necessrio lembrar que a realidade social apenas em parte como um texto.Muito do que acontece no corresponde compreenso dos atores; existemconseqncias no-pretendidas e condies no reconhecidas, e as coisas podemocorrer s pessoas independentemente de sua compreenso.

    O desenho da pesquisa tambm requer reflexo acerca de como abstramos.Isto pode ser ilustrado com referncia s diferenas entre projetos intensivos eextensivos (para uma discusso mais detalhada, veja tabela I e cap. 9 do meuMethod in Social Science). Estes desenhos tm propsitos diferentes, mas podemser complementares em alguns projetos de pesquisa. Tradicionalmente, fora daantropologia e talvez da histria, mtodos extensivos foram tomados como a normapara a pesquisa social. Tais mtodos buscam regularidades, na crena de que umgrande nmero de observaes repetidas fornecer-nos-o relaes significativas.Neles, identifica-se a populao e define-se os grupos de maneira taxonmica,com base em atributos comuns (ex. mulheres brancas acima de 60 anos; casasque valem menos do que 50.000,00 libras), e procura-se as relaes quantitativasentre as variveis. Isto ignora ou no considera diretamente os grupos causaisnos quais indivduos particulares (pessoas, instituies, etc.) esto, 'de fato,envolvidos, isto , os grupos ou redes de pessoas, instituies, discursos e coisasespecficas com os quais eles interagem.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    Tabela 1. Pesquisa intensiva e extensiva: um resumo de A. Sayer (1992), Method inSocial Science. Londres, Routledge, p. 243.

    Intensiva ExtensivaPergunta da pesquisa Como um processo opera em Quais as regularidades, os

    um caso particular ou em padres comuns, asum pequeno nmero de caractersticas distintivas decasos? O que produz uma uma populao? O quodada mudana? O que os amplamente determinadasagentes de fato fizeram? caractersticas ou processos

    so distribudos oureoresentados?

    Relaes Relaes substanciais de Relaes formais deconexo. similaridade.

    Tipos de grupos estudados Grupos causais GrupostaxonrrricosExplicao causal da Generalizaes descritivas

    Tipos de respostas produo de certos objetos "representativas", carentesproduzidas ou eventos, embora no de penetrao explanatria.

    necessariamente dosprocessos ou eventosrepresentativos.

    Mtodos tpicos Estudo de agentes Enquetes de larga escala deindividuais em seus populao ou de amostracontextos causais, entrevistas representativa,interativas, etnografia, questionrios formais,anlise qualitativa. entrevistas padronizadas.

    Anlise estatstica.Limitaes Padres concretos reais e Embora representativos de

    relaes contingentes uma populao inteira, sodificilmente sero dificilmente generalizveis"representativas", "mdias" para outras populaes, emou generalizveis. As diferentes tempos e lugares.relaes necessrias O problema da falciadescobertas existiro onde ecolgica ao se fazerquer que seus elementos inferncias sobre oscorrelatos estejam presentes, indivduos. Poderpor exemplo, os poderes explanatrio limitado,causais dos objetos soogeneralizveis para outroscontextos na medida em queso caractersticasnecessrias daquele obietos,

    Testes apropriados Corroboraco. Replicao.

    Uma abordagem intensiva comearia pelos indivduos (mais uma vez, nonecessariamente pessoas individuais), traaria as principais relaes causais

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  • 5AYER, Andrew

    (inclusive discursivas) nas quais eles entram e estudaria sua natureza qualitativa,assim como seu nmero. Pode no ser possvel definir estes grupos causais noincio da pesquisa e, de fato, descobr-Ios e estudar sua operao pode ser umcomponente chave ou o objetivo da pesquisa. Como o nome sugere, pesquisaextensiva mostra-nos, principalmente, o quo extensos so certos fenmenos epadres em uma populao. A pesquisa intensiva preocupa-se, primariamente,com o que faz certas coisas ocorrerem em casos especficos ou, de maneira maisetnogrfica, que tipo de universo de significado existe em uma situao particular.Note, no entanto, que a distino intensiva/extensiva no idntica distinosurvey/estudo de caso: abordagens extensivas podem ser usadas em estudos decaso; abordagens intensivas, no precisam ser limitadas a casos nicos e podemutilizar mtodos no-etnogrficos.

    Pesquisa intensiva e extensiva apresentam foras e fraquezascomplementares, como a tabela sugere. Pesquisa intensiva forte em explicaocausal e na interpretao de significados em seus contextos, mas tende a consumirmuito tempo, de forma que, normalmente, s se pode lidar com um pequeno nmerode casos. No entanto, contrariamente a um preconceito popular, a validade daanlise destes casos e sua representatividade em relao a grandes nmeros soquestes inteiramente separadas; a adequao de uma anlise de um caso nicono tem nada a ver com quantos outros casos semelhantes existem. Pesquisasextensivas nos dizem coisas a respeito da extenso ou dimenses quantitativas decertas propriedades e relaes, mas estas ltimas no so, necessariamente,relaes causais, e seu valor explicativo mnimo. Tentativas de utiliz-Ias comouma forma de gerar explicaes so minadas pela teoria causal sucessionistaimplcita a estas abordagens, que se toma evidente pela sua dependncia da idiade encontrar regularidades em dados puntiformes. De maneira significativa,explicaes estatsticas no so explicaes em termos de mecanismos, mas apenasdescries quantitativas de associaes formais (e no substanciais) (Sayer, 1992).

    Para ilustrar a diferena entre pesquisa extensiva e intensiva, imagine..pesquisadores marcianos que nunca viram um corpo humano antes e que se colocama tarefa de compreender como ele funciona. Aqueles marcianos que adotam apesquisa extensiva selecionariam uma amostragem aleatria de elementos do corpointeiro e procurariam regularidades empricas entre eles, argumentando que istogeraria uma imagem "representativa", a partir da qual seria seguro fazergeneralizaes. Os pesquisadores intensivos comeariam de um ponto particular- pode no importar qual - mas seguiriam as conexes que o rgo ou parte docorpo em questo tm com outras partes do corpo, construindo assim representaesdo sistema ou estrutura do corpo . Toma-se claro que os pesquisadores intensivosestariam mais propensos a gerar explicaes acerca dos mecanismos corporais eno estariam muito preocupados com as acusaes de que seu trabalho no

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  • Caracterscas chave do realismo crtico na prca

    representativo do corpo como um todo. A pesquisa extensiva, informada por umateoria da causao sucessionista e, portanto, preocupada em encontrarregularidades entre eventos ou variveis atomsticas, busca, principalmente,semelhanas e diferenas formais, em detrimento de conexes substanciais. Apesquisa intensiva procura determinar relaes substanciais de conexo e situa asua prtica em contextos mais amplos, iluminando, assim, relaes parte-todo.

    Exernplds de pesquisa realista

    Fornecerei, agora, alguns breves exemplos de uma abordagem realista naprtica da cincia social.

    O primeiro exemplo tirado de uma pesquisa de Ray Pawson e Nick Tilleysobre a avaliao dos programas de polticas pblicas, tais como medidaspreventivas (Pawson e Tilley, 1997). A pesquisa avaliativa um tanto especializadano que se refere s questes que coloca, mas fornece um exemplo bastante maissimples de pesquisa realista que outras pesquisas, constituindo-se, portanto, comoum bom lugar para comear. Pawson e Tilley iniciam com uma crtica realista daabordagem avaliativa ortodoxa, de carter quase-experimental. Esta crtica baseia-se na busca por regularidades e na comparao de resultados em gruposexperimentais e de controle. De fato, aquela abordagem pressupe um sistemafechado no qual uma relao regular esperada entre o evento causa(a implementao do programa) e seus efeitos. Ela pressupem, assim, uma teoriacausal sucessionista. Na verdade, programas sempre so introduzidos em sistemasabertos. Ambas as condies de fechamento apontadas anteriormente so violadas,de forma que a durao de quaisquer regularidades so improvveis: mesmoimprovvel que o programa, em si, seja estvel, dado que depende de como osatores o interpretam e implementam (condio intrnseca), e que o contexto noqual ele implementado varivel e dependente das respostas dos outros atoresao programa. De forma pouco surpreendente, a taxa de sucesso desta abordagemortodoxa, no sentido de gerar lies que possam ser aplicadas em outras situaes, mnima, e a desiluso generalizada. Em contraste com isto, uma abordagemrealista pressupe sistemas abertos e um modelo de causao segundo o qual osresultados da ativao de mecanismos (ex. programas de preveno ao crime)sempre dependem de contextos especficos. As polticas sempre funcionam atravsdas percepes e escolhas dos atores, e a resposta apropriada das pessoas dependede muitas circunstncias possveis, passveis de variao intra - e entre - casos,as quais os pesquisadores devem tentar identificar. Assim, contrariamente visoortodoxa da pesquisa avaliativa, no se trata de uma aplicao mecnica deferramentas padro, de acordo com a qual o conhecimento concreto e uma pesquisa

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  • 5AYER, Andrew

    prvia do fenmeno em questo irrelevante; ao contrrio, fundamental ter umconhecimento relativamente profundo do objeto, assim como efetuar uma pesquisaacerca de contextos e aplicaes particulares.

    pouco provvel que progresso, em termos de conhecimento acumulativo,derive da replicao de estudos ortodoxos quase-experimentais, efetuados naesperana de se produzir descobertas universalmente aplicveis atravs deregularidades empricas entre programas e resultados. Ao invs disso, o progressopressupe pesquisa intensiva, movimentos repetidos entre o concreto e o abstrato,por um lado, e entre casos empricos e teoria geral, por outro.

    No exemplo dos programas de preveno de crimes, os criminosos tmcertas capacidades e escolhem cometer crimes. O programa envolve mecanismostais como medidas de vigilncia e de segurana, com vistas a desativar ocomportamento criminal, ou a bloquear sua realizao. (Note-se que, apesar dametfora mecnica, reconhecemos amplamente que tais mecanismos podem serativados pelas razes dos atores). A maneira pela qual os dois conjuntos demecanismos operam, se operam, dependem de condies contextuais nas quais ocrime e o programa situam-se. Assim, por exemplo, o sucesso de programas quesolicitam informao do pblico dependero da cultura local, de se esta cultura altamente privada ou relativamente comunal, e assim por diante. A pesquisa visa,assim, identificar e explicar diversas combinaes de contextos, mecanismos eresultados e, dada a abertura e complexidade dos sistemas sociais, a lista depossibilidades provavelmente bastante longa. Nenhum mecanismo, ou conjuntode mecanismos, especialmente aqueles no includos no programa, deve serconsiderado como uma caixa preta. Sua identificao no uma questo de seencontrar regularidades mais especficas ou clusters .de associaes estatsticas,pois isto no explicaria os mecanismos em questo, mas apenas redefiniria oproblema. A explicao requer, na maioria dos caso~, pesquisas quantitativas equalitativas, de forma que se descubra o raciocnio (reasoning) e circunstnciasdos atores em contextos especficos - no em abstrao a eles. Responder-sequestes quantitativas acerca do nmero de atores e outros fenmenos relevantescom atributos especficos tambm pode ser importante, mas isto bastante diferentede se compreender os mecanismos em questo.

    Este um exemplo limitado de explicao realista na medida em que elefoca, primariamente, como, e sob que circunstncias, os mecanismos polticospodem bloquear mecanismos como atos criminosos, e no em estruturas ecircunstncias das quais estes mecanismos derivam. No entanto, uma anliserealista-crtica iria alm disso, de forma a considerar tais questes. De fato, istoque seu modelo explicativo sugere.

    Um segundo exemplo, baseado em uma pesquisa minha com Kevin Morgan(Sayer e Morgan , 1986; Morgan e Sayer, 1988), diz respeito explicao das

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    diferenas no desempenho de firmas em uma mesma indstria, intra - e entre -regies li . O desenvolvimento econmico de uma regio , invariavelmente,altamente desigual, com variaes nas regies, no apenas em termos decrescimento ou declnio , mas nos tipos de atividade econmica que elas contm.Este o caso mesmo em uma indstria singular que opera em diversas regies.Tentativas de se explicar este fato so normalmente baseadas em pesquisasextensivas, a partir das quais se classifica as firmas em termos de grupostaxonmicos, como a indstria eletrnica, na esperana de se encontrarregularidades no seu comportamento, como a correlao entre crescimentoempregatcio e disponibilidade de mo-de-obra barata. Tais regularidades soraramente encontradas devido abertura daqueles sistemas. Uma resposta comuma isto consiste em se desagregar a populao em categorias mais especficas, nocaso em questo, produtos eletrnicos de consumo, de componentes, de defesa,etc. Na medida em que estas categorias correspondem a diferentes tipos de firmasque operam sob condies diferentes, tal classificao pode ajudar a esclarecer oestado das coisas, mas independentemente de quo pequenas sejam as categoriasou os grupos taxonmicos, ainda se est lidando com partes de sistemas abertosnos quais tanto os atores principais quanto seus ambientes esto mudandocontinuamente.

    Muito cedo, na pesquisa, mudamos de pesquisa extensiva para pesquisaintensiva, comeando pelas firmas principais e situando-as em seus grupos causais,e no taxonmicos. Duas firmas no mesmo grupo taxonmico - por exemplo,eletrnica de consumo - pode operar em grupos causais bastante diversos,interagindo com diferentes instituies, sob diferentes condies . Rastrear estasconexes para grupos causais mais amplos aumentou a carga de informao,mas, de fato, tornou a explicao muito mais fcil- foi fcil iluminar a questo -porque estvamos explicando o comportamento com referncia s condiesconcretas nas quais ele estava situado, e no com referncia a uma semelhanaformal com outras firmas no mesmo grupo taxonmico. Assim, para muitas firmas,mo-de-obra barata no estava em questo porque elas no usavam trabalhodesqualificado. A produtividade e eficcia de sua mo-de-obra qualificada eramais importante do que seu custo, na medida em que estas firmas competiam,fundamentalmente, atravs da introduo de novos produtos e servios, e no

    11 Esta pesquisa seguiu a tradio de pesquisa industrial inicialmente estabelecida porMassey e Meegan (1982). Para um debate relativo ao uso apropriado de mtodos intensivose extensivos em tpicos semelhantes, veja Keeble (1980) e Sayer (1981). Para um excelente,e mais recente, exemplo de abordagem realista no mesmo campo de pesquisa, veja o trabalhode Nick Henry sobre distritos industriais (Henry, 1992).

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  • SAYER, Andrew

    atravs da reduo no preo de produtos estabelecidos no mercado. Alm disso,em alguns casos, a mudana tcnica alterava a importncia da mo-de-obra barataatravs da automao. Tanto as firmas quanto o ambiente no qual elas operavammudaram ao longo do tempo, e a operao dos mecanismos dependia dasinterpretaes dos atores, algumas vezes, interpretaes contestadas, de formaque era importante descobrir como os atores compreendiam sua situao.Conseqentemente, fazia pouco sentido esperar encontrar regularidades empricasduradouras. Mas ao utilizarmos uma abordagem intensiva, ao efetuarmos questesqualitativas acerca de relaes chave e de como os mecanismos operavam, nofoi difcil encontrar explicaes.

    Desta maneira, foi possvel investigar a maioria das principais firmas nasregies de interesse e, ao final, ns pudemos no apenas entender alguns poucoscasos, mas as tendncias principais. Como no exemplo anterior, o contexto foicrucial. A pesquisa extensiva indiferente ao contexto porque baseia-se em ummodelo de pesquisa quase-experimental nas quais o contexto homogeneizado 12.

    Aqueles que assumem que mtodos de pesquisa extensiva constituem anica abordagem "cientfica" legtima, freqentemente supem que a pesquisaintensiva deve levar a resultados nicos, de interesse local, e\no generalizveis.No entanto, grupos causais no so necessariamente locais. De fato, na pesquisaacima, tais grupos envolveram redes e mercados globais que a pesquisa extensiva,com suas pretenses de produzir resultados "representativos", usualmente ignoram.Ao olhar os objetos em seus grupos taxonmicos, chega-se a um tipo de imagemrepresentativa, mas como nosso exemplo do marciano mostrou, a populao daqual ele representativo pode ser apenas um artefato da pesquisa, ignorando osgrupos causais relevantes aos atores. Ao se situar os atores em grupos causais, apesquisa intensiva prov uma janela para entidades maiores, mostrando como aparte relacionada ao todo; neste sentido, no pode ser de interesse puramentelocal.

    Narrativas de mudana histrica apresentam problemas mais difceis paraa pesquisa social. Um trabalho realista-crtico interessante nesta rea refere-se reviso de estudos sobre a poltica britnica ps-guerra, desenvolvida por Marshet al. (1998). Seu propsito foi expor e discutir alguns problemas padro que surgemno desenvolvimento de narrativas de mudana poltica. Eles criticam, sobretudo,abordagens reducionistas ou unilaterais que tentam explicar o todo em termos deuma parte ou tema nico, tal qual o declnio da economia britnica em termos deuma cultura anti-industrial, ou o thatcheri smo em termos da personalidade e estilo

    12 Muitos mtodos estatsticos bsicos foram desenvolvidos em estudos experimentais(ex. horticultura), nos quais as condies acima podem ser artificialmente produzidas.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    da Sra. Thatcher' , Tal reducionismo invariavelmente resulta na m atribuiocausal e em um contrabando de elementos de outros processos que contribuempara o processo em questo, como se fossem parte integrante da parte selecionada.Em contraste, Marsh et al. defendem uma abordagem multi-dimensional baseadanuma sntese dos elementos mais significativos, cada um dos quais analisadoabstratamente e depois combinados em um movimento de retorno ao concreto,determinando, ao mesmo tempo, sua evoluo e interao no tempo e no espao.A sntese deve ser mais do que uma coleo de fatores e eventos significativos;deve-se especificar como os diversos elementos so, de fato, articulados.

    Problemas tpicos referem-se a abstraes suspeitas, tais quais o pressupostode que o estado relaciona-se externamente com a economia, quando o estado ,ele prprio, um agente econmico fundamental, assim como negligncia da formacomo os elementos identificados em tais abstraes se desenvolvem, mudandoseus poderes. Assim, em relao ao ltimo problema, Marsh et al. criticam aquelasanlises que concebem o thatcherismo como fixo e unificado quando, de fato, amera identificao de um conjunto de idias e movimentos sob um nome nicocomo thatcherismo pode envolver, na melhor das hipteses, pressupostos um tantoherricos e, na pior, a falcia da concretude deslocada (jallacy of misplacedconcreteness).

    Narrativas histricas tambm devem relacionar de maneira satisfatria oideal e o material. Idias, formas de pensar, paradigmas polticos, todos podemproduzir mudana. Por exemplo, alguns comentadores argumentam que aglobalizao no tanto uma fora inexorvel que se impe aos governos nacionais,mas um discurso usado por aqueles governos para reduzir suas responsabilidades.Que tais discursos podem se tornar efetivos, depende de sua adequao prtica,de como eles se relacionam s oportunidades e restries do contexto nos quaiseles so propostos. Sendo realistas, Marsh et al. no reduzem a globalizao anada alm de um discurso, mas argumentam que, pelo menos em parte, o discursolida com algo real. Igualmente, no basta mencionar a vontade e as aes deindivduos e instituies chave, como se isto fosse o bastante para produzirmudana, pois sua eficcia depende de como estas vontades e aes relacionam-se a discursos mais amplos e s possibilidades cambiantes e desiguais do contexto.Aqui, eles endossam a "abordagem estratgica relacional" de Jessop (1990), quediz respeito a como os atores, aes e contextos articulam-se. Ns precisamosconhecer no apenas quais eram as estratgias principais dos atores, mas o que,

    13De maneira semelhante, eles rejeitam, como uma receita certa para o erro, o ideal de umaexplicao instrumentalista que prioriza a parcimnia, como comum na economia neo-clssica.

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  • SAYER, Andrew

    no contexto, possibilitou o sucesso ou fracasso das mesmas. Isto consistentecom o conceito realista de causao e requer a colocao das perguntas realistasacerca das condies necessrias e suficientes mencionadas anteriormente, deforma que se possa decidir acerca de que elementos de um certo contextopossibilitaram o sucesso de uma determinada ao. Freqentemente, o sucessoou insucesso das estratgias dos agentes pode ter pouco ou nada a ver com suasrazes e intenes.

    Agncia e estrutura tambm devem ser articuladas. Existem abordagensque enfatizam a agncia e so relativamente silenciosas acerca da estrutura14;muita pesquisa de arquivo cai na armadilha de se reduzir o contexto s interaesentre os agentes principais, ignorando questes como mudana na economia ouna opinio pblica e as estruturas nas quais os agentes agem. De maneira oposta,os agentes so excludos de muitas das concepes de desenvolvimento da Gr-Bretanha do ps-guerra; por exemplo, concepes que enquadram a questo emtermos do modelo anglo-americano de capitalismo adotado pela Gr-Bretanha,com seu modelo de curto-prazo, dividendos altos, ameaas contnuas de takeovers,e baixos nveis de investimento. Como tantas outras concepes parciais, istoidentifica elementos importantes, mas deixa de lado os atores polticos e essencialmente economicista. Marsh et al. mostram que no raro que taisnarrativas alternem entre tratamentos exageradamente estruturais do passadohistrico e concepes voluntarsticas do passado recente. Que isto facilmenteexcecutado e ainda pode parecer persuasivo, mostra tanto o poder quanto osperigos das narrativas.

    A mudana social evolutiva - dependente de posies anteriores (path-dependent), ainda que contingente; moldada por legados, ainda que afetada porprocessos e condies contingentemente relacionados. Assim, a fraqueza daeconomia britnica no incio dos anos 70, que derivou de deficincias antigas, taiscomo o sub-investimento e a falta demarketing, a falta de treinamento e exposioa mercados competitivos, foi exposta no evento contingente representado pelacrise do petrleo de 1973 que se seguiu guerra do Yom KippurP Ocomportamento tanto seletivo quanto adaptativo; mais uma vez, precisamoscompreender o que est em jogo, nos sujeitos e nos contextos, no sentido depossibilitar resultados particulares.

    14 Em certa medida, a nfase atribuda agncia ou estrutura depende do tipode questoda pesquisa(c.f. Stones, 1996).15 Os perigosde se ignoraro carterde dependncia queo desenvolvimento temde fatoresde desenvolvimento anteriores, como se qualquersociedade pudesse alcanar um estadoespecfico a partirdequalquerpontoinicial, soevidentes nofracasso ruidoso representadopela terapia de choque efetuada no mercado russo.

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  • Caractersticas chave do realismo crtico na prtica

    Marsh et ai. tambm chamam ateno para o problema de escala e fronteirasem tais estudos . Muitas anlises da poltica britnica ps-guerra ignoraram o cenriointernacional, tanto em termos de conexes de mudanas em outros locais, quantoem termos da presena de desenvolvimentos semelhantes em outros pases, comofoi o caso do neo-liberalismo. Este problema equivalente quele apontado emnossos exemplos, tirados dos estudos sobre a indstria, acerca da definio degrupos causais em termos da definio do escopo dos fenmenos causalmenterelevantes para o desenvolvimento do problema em questo.

    Estes so apenas alguns dos problemas do desenvolvimento de narrativasde mudana social e uma indicao de um tratamento realista dos mesmos. [. .. ]Apesar de breve, espero que a discusso destes exemplos seja suficiente parademonstrar algumas das caractersticas chave da pesquisa realista-crtica.

    Concluso

    Este o esqueleto de uma metodologia realista. Muitos pesquisadoresintuitivamente operam desta forma, pelo menos parte do tempo, embora seja fcilparar na metade do processo, na medida em que encontrem algumas associaescomuns entre os fenmenos, sem que se questionem acerca do status destasassociaes. Muitos so desviados de uma abordagem realista pela hegemonia dametodologia positivista, que ignora problemas de conceituao e abstrao, e comsua teoria da causao sucessionista. Mesmo pesquisas que rejeitam o positivismopodem no alcanar uma abordagem realista se permanecerem satisfeitas emencontrar associaes entre fenmenos de interesse, sem que questionem se estasassociaes so necessrias ou contingentes.

    Um tema comum de toda pesquisa realista diz respeito prioridade atribuda conceituao e abstrao, dado que a maneira como "talhamos" e definimosnossos objetos de estudo tende a selar o destino de qualquer pesquisa subseqente.Realistas buscam conexes substanciais entre fenmenos, e no associaesformais ou regularidades. Ao explicar associaes, eles tendem a distinguir aquiloque deve ser o caso, daquilo que meramente pode ser o caso. A explicao domundo social tambm requer ateno sua estratificao, aos poderes emergentesque derivam de certas associaes e s maneiras como a operao de mecanismoscausais dependem de efeitos habilitatores e restritivos dos contextos. Realistastambm reconhecem a dependncia conceitual dos fenmenos sociais e anecessidade de se interpretar aes significativas, embora isto no seja umaalternativa explicao causal, dado que razes podem ser causas.

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  • SAYER. Andrew

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