CARBOIDRATOS BIOLOGIA

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    24 CINCIA HOJE v o l . 3 9 n 2 3 3

    CARBOIDRATOS

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    O acar que as pessoas pem no caf, as fibras de uma folha

    de papel e o principal constituinte da carapaa de um besouro

    so substncias que pertencem ao mesmo grupo: os carboidratos.

    Sabe-se, h muito tempo, que essas substncias atuam

    como reservas de energia do organismo, mas estudos recentes

    revelam que elas tm outras e importantes funes biolgicas.

    Esses resultados indicam que muitos carboidratos podem ter aplicao

    na medicina. Substncias desse grupo extradas de ourios-do-mar,

    por exemplo, apresentam propriedades que as apontam como

    candidatos a substitutos da heparina, um dos compostos naturais

    mais utilizados hoje como medicamentos em todo o mundo.

    O acar que as pessoas pem no caf, as fibras de uma folha

    de papel e o principal constituinte da carapaa de um besouro

    so substncias que pertencem ao mesmo grupo: os carboidratos.

    Sabe-se, h muito tempo, que essas substncias atuam

    como reservas de energia do organismo, mas estudos recentes

    revelam que elas tm outras e importantes funes biolgicas.

    Esses resultados indicam que muitos carboidratos podem ter aplicao

    na medicina. Substncias desse grupo extradas de ourios-do-mar,

    por exemplo, apresentam propriedades que as apontam como

    candidatos a substitutos da heparina, um dos compostos naturais

    mais utilizados hoje como medicamentos em todo o mundo.

    Vitor Hugo Pomine Paulo Antnio de Souza MouroLaboratrio de Tecido Conjuntivo, Hospital Universitrio Clementino Fraga Filho,

    e Instituto de Bioqumica Mdica, Universidade Federal do Rio de Janeiro

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    !

    Os carboidratos so as macromolculas mais abundantes na natureza.

    Suas propriedades j eram estudadas pelos alqui-mistas, no sculo 12. Durante muito tempo acredi-tou-se que essas molculas tinham funo apenasenergtica no organismo humano. A glicose, porexemplo, o principal carboidrato utilizado nasclulas como fonte de energia. O avano do estudodesses compostos, porm, permitiu descobrir ou-tros eventos biolgicos relacionados aos carboidra-tos, como o reconhecimento e a sinalizao celu-lar, e tornou possvel entender os mecanismosmoleculares envolvidos em algumas doenas cau-sadas por deficincia ou excesso dessas molculas.O avano cientfico permitiu conhecer de modo

    mais detalhado as propriedades fsico-qumicas doscarboidratos, resultando na explorao dessas ca-ractersticas em diversos processos industriais,como nas reas alimentar e farmacutica. Um doscarboidratos com maior utilizao mdica a he-parina, composto de estrutura complexa, com aoanticoagulante e antitrombtica (reduz a formao

    de cogulos fixos trombos no interior dos vasossangneos), obtido de tecidos animais, onde ocor-re em baixa concentrao. A necessidade de maiorproduo de medicamentos desse tipo, devido aoaumento da incidncia de doenas cardiovasculares,e os efeitos colaterais associados heparina vmaumentando, nos ltimos tempos, o interesse pelabusca de substitutos para esse composto.Recentemente, no Laboratrio de Tecido Con-

    juntivo, do Instituto de Bioqumica Mdica da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro, extramos deourios-do-mar e de algas marinhas novos compos-tos, conhecidos como fucanas sulfatadas e galac-tanas sulfatadas, com propriedades semelhantess da heparina. Experimentos mostraram que taiscompostos agem como anticoagulantes e antitrom-bticos em camundongos, ratos e coelhos, emborano tenham, nos organismos de origem, funesbiolgicas relacionadas coagulao. Com isso,abrem perspectivas promissoras para o desenvol-vimento de substitutos da heparina.

    De adoantesa medicamentos

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    Um grupo distintode molculas

    Os carboidratos, tambm conhecidos como glic-dios ou acares, so molculas constituintes dosseres vivos, assim como protenas, lipdios e cidosnuclicos (figura 1). A combinao das diferentesfunes bioqumicas de cada uma dessas molcu-las permite a integridade da clula e de todos osprocessos metablicos, fisiolgicos e genticos dosorganismos vivos. Antigamente, acreditava-se queos carboidratos estavam envolvidos apenas comfunes estruturais e energticas. Isso decorria dadificuldade tcnica no estudo qumico e biolgicodesses compostos.A partir da dcada de 1970, o surgimento de

    tcnicas avanadas de cromatografia, eletroforesee espectrometria permitiu ampliar a compreensodas funes dos carboidratos. Hoje existe um novoramo da cincia a glicobiologia voltado apenaspara o estudo desses compostos. Sabe-se agora queeles participam da sinalizao entre clulas e dainterao entre outras molculas, aes biolgicasessenciais para a vida. Alm disso, sua estruturaqumica se revelou mais varivel e diversificadaque a das protenas e dos cidos nuclicos.Os primrdios do estudo de carboidratos esto

    ligados ao seu uso como agentes adoantes (mel)

    ou no preparo do vinho a partir da uva. Nos escri-tos dos alquimistas mouros, no sculo 12, h refe-rncias ao acar da uva, conhecido hoje comoglicose. Os relatos iniciais sobre acares na hist-ria vm dos rabes e persas. Na Europa, o primeiroagente adoante foi sem dvida o mel, cuja com-posio inclui frutose, glicose, gua, vitaminas emuitas outras substncias.H indcios de que Alexandre, o Grande o

    imperador Alexandre III da Macednia (356-323a.C.) introduziu na Europa o acar obtido dacana-de-acar, conhecido hoje como sacarose (e oprimeiro acar a ser cristalizado). A dificuldadedo cultivo da cana-de-acar no clima europeu le-vou ao uso, como alternativa, do acar obtido dabeterraba (glicose), cristalizado em 1747 pelo far-macutico alemo Andreas Marggraf (1709-1782).A histria dos carboidratos est associada a seuefeito adoante, mas hoje sabemos que a maioriadesses compostos no apresenta essa propriedade.A anlise da glicose revelou sua frmula qumi-

    ca bsica CH2O, que apresenta a proporo deum tomo de carbono para uma molcula de gua.Da vem o nome carboidrato (ou hidrato de carbo-no). Tal proporo mantm-se em todos os com-postos desse grupo. Os mais simples, chamados demonossacardeos, podem ter de trs a sete tomosde carbono, e os mais conhecidos glicose, frutosee galactose tm seis. A frmula desses trs a-cares a mesma, C6H12O6, mas eles diferem noarranjo dos tomos de carbono, hidrognio e oxig-nio em suas molculas.Os monossacardeos, principalmente as hexo-

    ses, podem se unir em cadeia, formando desde dis-sacardeos (com duas unidades, como a sacarose,que une uma frutose e uma glicose) at polissaca-rdeos (com grande nmero de unidades, como oamido, que tem cerca de 1.400 molculas de gli-cose, e a celulose, formada por entre 10 mil e 15mil molculas de glicose). Embora muitos polissa-cardeos sejam formados pela mesma unidade

    Figura 1. Estruturas representativas de algumasmacromolculas biolgicas: em A, cido desoxirribonuclico,ou DNA (as fitas laterais representam os carboidratosligados a grupos fosfatos e as hastes do interior, em azul,vermelho e branco, so as bases nitrogenadas que formamo cdigo gentico); em B, albumina, protena maisabundante do plasma, com 585 aminocidos e ricaem estruturas espirais conhecidas como hlices(cada cor representa uma regio da protena);em C, micela, uma estrutura formada por vrias molculasde lipdio em soluo aquosa (as linhas verdes representama cauda hidrofbica e as esferas azuis a cabeahidroflica); em D, a glicose, principal monossacardeoda natureza, formada por tomos de hidrognio (em cinza),oxignio (em vermelho) e carbono (em verde)

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    (glicose, no caso do amido e da celulose), as dife-renas em suas estruturas, como presena ou node ramificaes e variedade nas ligaes entre asunidades, conferem a eles propriedades fsico-qu-micas muito diversas.Outro polissacardeo importante a quitina, que

    constitui o exoesqueleto a carapaa dos artr-podes (insetos e crustceos). A estrutura molecularda celulose e da quitina impede que sejam digeri-dos pelas enzimas do nosso trato gastrintestinal.A celulose, presente na madeira, o composto or-gnico mais abundante no planeta. Como o filo dosartrpodes tem o maior nmero de espcies e indi-vduos na natureza, a quitina outro polissacardeoabundante. Alm disso, os cidos nuclicos (DNAe RNA), molculas responsveis pela hereditarie-dade e encontradas em todos os seres vivos, tmacares (ribose e desoxirribose) em suas estrutu-ras. Os carboidratos, portanto, so os compostosbiolgicos predominantes na natureza (figura 2).

    De combustveisa reguladores

    Os carboidratos so os combustveis da vida. Elesarmazenam a energia nos seres vivos, na forma deamido e glicognio (outro polissacardeo), e a libe-ram para as reaes metablicas quando so de-gradados (em especial a glicose). Atuam aindacomo doadores de carbono para a sntese de outrosconstituintes das clulas. So os principais produ-tos da fotossntese, processo em que a energia solar transformada em energia qumica pelas plantase depois transferida, atravs da cadeia alimentar,para os animais. Estima-se que sejam formadosmais de 100 bilhes de toneladas de carboidratosna Terra, a cada ano, pela fotossntese nesse pro-cesso, as plantas captam a luz solar e usam suaenergia para promover reaes, envolvendo mol-culas de gs carbnico (CO2) e de gua (H2O), queproduzem glicose, armazenada depois como ami-do nos tecidos vegetais.Entretanto, os carboidratos no tm apenas fun-

    o energtica. Esto presentes tambm na super-fcie externa da membrana das clulas. Nesse caso,podem ser glicoprotenas (quando ligados a umaprotena), glicolipdios (se unidos a um lipdio) ouproteoglicanos (quando esto na forma de cadeiasde glicosaminoglicanos um tipo de polissacardeo unidas a uma protena). Essas formas conjugadaspresentes nas membranas atuam como receptorese sinalizadores, interagindo com molculas e ou-tras clulas.

    A remoo de hemcias envelhecidas do sanguefoi um dos primeiros eventos biolgicos estudadosque revelou a participao da estrutura dos carbo-idratos (em glicoprotenas) em um processo de sina-lizao. Hemcias jovens tm, em sua superfcie,glicoprotenas cuja extremidade rica em cidosilico. Quando tais clulas envelhecem, suas gli-coprotenas perdem esse cido e passam a expres-sar, em sua extremidade, a galactose. Esse monos-sacardeo reconhecido por receptores do fgado,que ento capturam e removem da circulao ashemcias velhas.Os grupos sangneos A, B, O e AB so outro

    exemplo tpico de um sistema de sinalizao con-trolado pela estrutura de carboidratos em glico-protenas. Os grupos A e B diferem em apenas umtipo de monossacardeo nos glicolipdios ou gli-coprotenas das hemcias. No A est presente aN-acetilgalactosamina (uma galactose ligada a gru-pos qumicos amino e acetil) e o B tem a galactose a diferena entre esses dois carboidratos est emapenas alguns tomos, mas isso pode levar a umresultado fatal, se o indivduo receber o tipo san-gneo incompatvel em uma transfuso.Os carboidratos encontrados nesses compostos

    mistos tambm funcionam como receptores namembrana celular. A ao de diversas toxinas de !

    Figura 2.A celulose,principalcomponenteda madeira,e a quitina, queforma a carapaaexterna dosartrpodes(como besourose outros insetos,aracndeose crustceos), soos polissacardeosmais abundantesna natureza

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    plantas e bactrias (da clera, da difteria, do tta-no e do botulismo, entre outras) depende da inte-rao com gangliosdios (glicolipdios cidos) es-pecficos de suas clulas-alvo. Por isso, estudos nes-sa rea pretendem projetar agentes teraputicos ca-pazes de inibir essa interao, evitando os efeitosnocivos das toxinas.Em 2005, o glicocientista Lior Horonchik e seus

    colaboradores, do Departamento de Biologia Mole-cular da Escola de Medicina de Jerusalm (em Is-rael), mostraram que a degenerao dos neurnioscausada por infeco pelo pron (protena respon-svel pelo chamado mal da vaca louca) dependeda presena, na superfcie das clulas nervosas, dereceptores (proteoglicanos) que contm glicosami-noglicanos. O pron precisa interagir com essespolissacardeos para entrar no neurnio isso sig-nifica que o papel deles no reconhecimento celu-lar fundamental para o desenvolvimento dessainfeco.Algumas molculas reguladoras da prolifera-

    o de tipos celulares como o fator de crescimen-to para fibroblastos (FGF) e o fator de transforma-o do crescimento ! (TGF-!) tambm atuam in-teragindo com os carboidratos dos proteoglicanos.Essas informaes permitem que os glicocientistasdesenvolvam molculas com o objetivo de regularesses processos biolgicos.

    Doenas relacionadas

    O fato de que muitas doenas, genticas ou adqui-ridas, decorrem de defeitos no metabolismo decarboidratos outro forte estmulo para o estudodesses compostos. A galactosemia, por exemplo, uma doena hereditria rara, caracterizada peladeficincia em enzimas que processam a galactose.Nos portadores, esse carboidrato, normalmente con-vertido em glicose, acumulado na forma de galac-tose-fosfato, o que leva a retardo mental severo e,com freqncia, morte. Recm-nascidos e crian-as com galactosemia no podem ingerir substn-cias com galactose, em particular o leite (a lactose,presente no leite, um dissacardeo formado porglicose e galactose).J a intolerncia lactose, tambm causada por

    deficincia enzimtica, pode ter trs origens: de-feito gentico raro na capacidade de sintetizar alactase intestinal, reduo da produo da enzimadevido a doenas intestinais ou deficincia adqui-rida com o avano da idade. Tanto na galactosemiaquanto na intolerncia lactose, essencial umadieta livre de lactose. Outros exemplos de doenasligadas a desordens no metabolismo dos carboidra-tos so as mucopolissacaridoses, como as sndromes

    Figura 3. Esquemasimplificado da coagulaosangnea. Aps a lesovascular, so ativadasenzimas (fatores plasmticos)que iniciam a cascatade coagulao, at a ativaodo fator X e do fator II(protrombina), responsveispela ativao da trombina,enzima que induzira transformao defibrinognio em fibrina(protena filamentosaque forma os cogulos,interrompendo a perdade sangue). O controleda ao da trombina essencial para regulara cascata, pois ela participadas etapas finais de formaodo cogulo e tambm reforao processo ativando os fatoresintermedirios envolvidos.O co-fator II da heparinae a antitrombina inibema ao da trombinae tm sua atuaoacelerada pela heparina

    LESO VASCULAR Heparina

    Fatores intermedirios

    Co-fator IIda heparina

    Fator Xativado

    Antitrombina

    Protrombina (Fator II)

    Trombina (Fator II ativado)

    Fatores intermedirios

    Polmerode fibrina

    COGULODE FIBRINA

    Inibidoresplasmticos

    Fibrinognio

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    de Hurler e de Hunter, que levam a retardo men-tal e morte prematura.A doena mais conhecida relacionada aos car-

    boidratos o diabetes, decorrente de fatores here-ditrios e ambientais, que levam a uma deficin-cia na produo ou a uma incapacidade de aoda insulina (hormnio cuja funo principal con-trolar a entrada de glicose nas clulas). Nos porta-dores, a quantidade de glicose no sangue aumenta,comprometendo vrios rgos e os sistemas renal,nervoso e circulatrio. A doena pode ser reguladapelo consumo controlado de carboidratos e, em ca-sos mais severos, pela administrao de insulina.Alm do diabetes, uma dieta exagerada em car-

    boidratos pode acarretar outros problemas, comoobesidade, doenas cardiovasculares, tromboses eavano da aterosclerose (depsito de substnciasnas paredes dos vasos sangneos, obstruindo a cir-culao). O excesso na ingesto desses compostostambm intensifica a sntese e o armazenamentode gordura, alm de desestimular os receptores deinsulina nas clulas, gerando a forma mais grave dodiabetes. Esse quadro piora com um estilo de vidasedentrio, que reduz a metabolizao dos glicdios.Em contrapartida, dietas com poucos carboidratostambm podem prejudicar a sade, j que eles soa fonte principal de energia para as clulas.

    Uso industrialdos carboidratos

    Alm da importncia biolgica dos carboidratos,esses compostos so matrias-primas para inds-trias importantes, como as de madeira, papel, fi-bras txteis, produtos farmacuticos e aliment-cios. A celulose o principal carboidrato indus-trial, com um consumo mundial estimado em qua-se 1 bilho de toneladas por ano.Alguns polissacardeos, como gar, pectinas e

    carragenanas, extrados de algas marinhas, so uti-lizados graas a suas propriedades gelatinosas em cosmticos, remdios e alimentos. A carrage-nana empregada para revestir cpsulas (drgeas)de medicamentos, para que o frmaco seja libera-do apenas no intestino, aumentando a sua absor-o. O gar serve ainda para a cultura de microor-ganismos, em laboratrios. Tanto o gar como acarragenana so tambm usados, como espessantes,na produo de sorvetes.A sacarose (extrada da cana-de-acar) o prin-

    cipal adoante empregado na culinria e na in-dstria de doces. O acar invertido (obtido pelaquebra da sacarose, que resulta em uma mistura

    de glicose e frutose) menos cristalizvel, masmuito usado na fabricao de balas e biscoitos. Aquitosana, um polissacardeo derivado da quitina,tem sido utilizada no tratamento da gua (paraabsorver as gorduras), na alimentao e na sade.Por sua atuao na reduo da gordura e do coles-terol, a quitosana pode ajudar no combate obesi-dade, e estudos farmacolgicos recentes compro-varam que ela apresenta efeitos antimicrobianos eantioxidantes.Outro exemplo de polissacardeo usado na in-

    dstria farmacutica o condroitim-sulfato, um tipode glicosaminoglicano. Os colrios oftalmolgicos,em sua maioria, so solues de condroitim-sul-fato, j que esse composto o constituinte predo-minante da matriz extracelular do globo ocular etem grande afinidade por gua, o que permite me-lhor lubrificao. Tambm vem sendo utilizado napreveno e tratamento da osteoartrose, talvez por-que seja abundante em proteoglicanos do tecidocartilaginoso.

    Benefciose riscos da heparina

    Os avanos no estudo das funes dos carboidratosajudaram a entender doenas associadas a essas mo-lculas, a conhecer a ao farmacolgica de algunspolissacardeos e a desenvolver novos compostosdesse tipo com ao teraputica. Um bom exemplo a heparina, um glicosaminoglicano com atuaoanticoagulante e antitrombtica, hoje o segundocomposto natural mais usado na medicina, perden-do apenas para a insulina. Sua utilizao freqen-te por causa da incidncia de doenas cardiovas-culares. Estas, segundo a Organizao Mundial deSade, so responsveis por cerca de 30% das mor-tes em todo o mundo (mais de 16,5 milhes depessoas em 2004). No Brasil, cerca de 70% dasmortes esto associadas a essas doenas, ndice si-milar ao dos pases desenvolvidos.A heparina tem uma potente atividade anticoa-

    gulante porque amplifica a ao de dois compostospresentes no plasma, antitrombina e co-fator II daheparina, capazes de inibir a ao da trombina (en-zima que promove a coagulao) e do fator X ati-vado (protena que acelera a formao da trombina)(figura 3). A heparina interage simultaneamentecom esses compostos e com a trombina ou o fatorX ativado. Essa interao ocorre principalmenteentre as cargas negativas da heparina e as regiespositivas dos inibidores plasmticos e da trombina.A formao desses complexos inibe a ao da trom-

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    bina, interrompendo o processo de coagulao dosangue.O uso clnico desse glicosaminoglicano, no en-

    tanto, apresenta efeitos colaterais, como reduoda quantidade de plaquetas (trombocitopenia) epropenso a hemorragias. Alm disso, a dose ne-cessria para obter o resultado adequado varia depaciente para paciente e a heparina precisa ser ex-trada de tecidos de mamferos (como intestino deporco e pulmo bovino), onde ocorre em baixa con-centrao e ainda apresenta risco de contaminaopor vrus e prons. Os efeitos indesejados dessecomposto, associados ao aumento da incidncia dedoenas tromboemblicas no mundo, motivam apesquisa de novos agentes anticoagulantes e anti-trombticos.

    Esperana nosourios-do-mar

    Muitos compostos tm sido testados, em todo omundo, em busca de novas drogas que evitem oucombatam a trombose. Em nosso laboratrio, subs-tncias extradas de ourios-do-mar e de algumasespcies de algas marinhas revelaram-se fontespromissoras de molculas anticoagulantes e anti-trombticas.Nos ourios-do-mar, os carboidratos que estu-

    damos esto situados na superfcie dos vulos e par-ticipam do processo de fertilizao. Quando o esper-matozide desses animais entra em contato com ogel que recobre os vulos, polissacardeos presen-tes nesse gel induzem, no espermatozide, a cha-mada reao acrossmica. Nessa reao so libera-

    das enzimas que dissolvem o gel, facilitando apenetrao do espermatozide, e uma protena des-te, a actina, polimerizada, formando filamentosque ajudam a expor outra protena, a bindina, emsua superfcie. A bindina liga-se ao seu receptorna superfcie do vulo, desencadeando a fuso dasmembranas dos dois gametas, a liberao do mate-rial gentico do espermatozide dentro do vulo ea fuso dos dois ncleos, formando o zigoto, quedar origem ao embrio.Dois mecanismos diferentes so fundamentais

    para que gametas da mesma espcie de ourio-do-mar se reconheam (figura 4). Um baseado na es-pecificidade da protena bindina (reconhecimentocom base na bindina), e o outro depende da induoda reao acrossmica pelo polissacardeo que re-cobre o gel do vulo (reconhecimento com base nocarboidrato). Se a reao acrossmica no induzi-da, a bindina no exposta e, portanto, no h ferti-lizao. Esse ltimo mecanismo foi descrito em nossolaboratrio, e demonstramos principalmente quecada espcie de ourio-do-mar tem um polissaca-rdeo de estrutura particular recobrindo seu vulo.As anlises desses polissacardeos revelaram que

    so polmeros constitudos exclusivamente por mo-nossacardeos de fucose ou galactose. Esses com-postos tm ainda, ligados estrutura bsica de car-boidrato (CH2O), grupamentos sulfatos idnticosaos encontrados nos glicosaminoglicanos, que con-ferem carga negativa ao polmero. Por isso, so co-nhecidos como fucanas sulfatadas e galactanassulfatadas. Outra observao curiosa que essescompostos exibem grande variedade estrutural, emfuno do tipo de ligao entre os monossacardeose do padro de sulfatao.O reconhecimento de molculas especficas de

    cada espcie de ourio-do-mar, durante a fertiliza-o, tem grande importncia biolgica, pois vriasespcies podem conviver no mesmo ambiente eseus gametas so liberados na gua do mar, ondeocorre a fertilizao. Esse reconhecimento, portan-to, impede a formao de hbridos.

    Figura 4. Mecanismos de reconhecimento entreespermatozide e vulo em ourios-do-mar. Em A,reconhecimento baseado na estrutura, distinta em cadaespcie, da protena bindina na reao acrossmica,ocorre a dissoluo do envoltrio gelatinoso do vuloe a actina (em laranja) polimerizada no espermatozide.Aps esses eventos, a bindina (em verde) exposta,podendo ligar-se ao receptor de membrana(em vermelho) do vulo da mesma espcie. Em B,reconhecimento baseado na estrutura, distinta em cadaespcie, do carboidrato para que a reao acrossmicaocorra, o espermatozide deve ser reconhecido pelospolissacardeos sulfatados presentes no envoltriogelatinoso (em branco) do vulo da mesma espcie

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    SUGESTESPARA LEITURA

    LEHNINGER, A. L.;NELSON, D. & COX,M. M. Princpios debioqumica.So Paulo,Sarvier, 2002.

    MOURO, P. A. S.Use of sulfatedfucans asanticoagulant andantithromboticagents: futureperspectives,in CurrentPharmaceuticalDesign, v. 10 (9),p. 967, 2004.

    VOET, D.; VOET, J. G.& PRATT, C.Fundamentosde bioqumica.Porto Alegre,Artmed, 2000.

    Nossos estudos com fucanas e galactanas sulfa-tadas, de ourios-do-mar e de algas marinhas, de-monstraram que sua ao anticoagulante similar da heparina elas tambm amplificam a inibi-o da antitrombina e do co-fator II da heparinasobre a trombina. Ao contrrio da heparina, obtidade mamfero, essas fucanas e galactanas (sulfatadas)apresentam menores riscos de contaminao porpartculas virais e prons nocivos ao homem, j queso isoladas de organismos marinhos.A estrutura qumica dos polissacardeos sulfa-

    tados de ourios-do-mar, como as anlises revela-ram, mais simples que a dos compostos obtidosde algas marinhas e que a da heparina. Isso permi-tiu estabelecer uma relao entre as estruturas qu-micas das fucanas sulfatadas e galactanas sulfatadasde invertebrados marinhos e sua ao anticoagu-lante (figura 5). Os testes desses compostos em di-ferentes modelos de trombose em animais expe-rimentais mostraram uma potente atividade pre-ventiva contra a trombose, tanto venosa quanto ar-terial. Portanto, esses novos polissacardeos sulfa-tados podem ajudar no desenho estrutural de no-vas drogas com aes especficas sobre cada tipode trombose e com poucos efeitos adversos.Resultados recentes indicaram outras aes te-

    raputicas anticncer, antiviral e antiinflamatria das fucanas sulfatadas de organismos marinhos.No entanto, ainda no foram elucidados os meca-nismos de ao desses polissacardeos nessas ou-tras aes biolgicas, assim como a influncia desuas caractersticas estruturais.

    A contribuioda glicobiologia

    Em sntese, o estudo dos carboidratos e glicocon-jugados vasto dentro da biocincia. Inmeras fun-es podem ser desempenhadas por essas ma-cromolculas, em nvel molecular, celular, tecidualou fisiolgico e at na produo industrial. Semdvida, as descobertas recentes com o estudo decarboidratos contriburam para a compreenso deinmeros eventos biolgicos e para a obteno denovos compostos com aes teraputicas em diver-sas patologias. Assim como as demais reas da pes-quisa bioqumica, a glicobiologia ainda pode cola-borar muito para ajudar a desvendar os processosbiolgicos da natureza.

    Figura 5. Representao molecular da ao anticoagulante dos polissacardeos sulfatados. A trombina (em azul) inibida pela ao da antitrombina (em verde) e do co-fator II da heparina (em laranja). Em ambos os casos,o polissacardeo sulfatado (em cinza) aproxima o inibidor e a trombina, atravs da interao de suas cargas negativascom as cargas positivas dessas molculas (na trombina, a interao ocorre no stio denominado EXO II).Em seguida, o grupo hidroxila (-OH) do aminocido serina (S), presente na trombina, liga-se a aminocidos situadosna extremidade C dos inibidores a arginina (R), na antitrombina, e a lisina (L), no co-fator II de heparina.No entanto, o polissacardeo sulfatado altera o mecanismo anticoagulante do co-fator II da heparina, induzindo nesseinibidor uma modificao estrutural que permite a interao de sua extremidade N com o stio EXO I da trombina