9
. marcado a Idade do Bronze - mesmo se sua forma conti.nuavare- cordando a dos velhos Estados federais, com um Grande Rei su- bordinando soberanos e potentados menores. A legitimação do p0- der monárquico continuava a passar, como antes, pela religião, mas em alguns casos - como no reino de Israel e nos dois Estados menores em que. depois veio a dividir-se- segundo formas inéditas. O surgimento de imensos impérios levou, ainda, à necessidade de de- finir a atitude dos Grandes Reis em relação aos deuses e cultos das diversas partes de seus territórios. Por estas é outras razões, o pri- meiro milênio a.C. apresenta forte originalidadequando o comparamos às épocas precedentes. 2 BAIXA MESOPOTÂMIA NO MilÊNIO INICIAL DA VIDA E EGITO CIViliZADA o NOSSO TEMA Não é nosso objetivo descrever a história política do anti- go Oriente Próximo, e ainda menos a sua história religiosa. Este livro se destina a esclarecer as relações entre política e religião, no âmbito da teoria, das concepções, mas também naquele, mais concreto, de como lidavam os reis com os santuários e seus sacerdotes. É óbvio, entretanto, que não o poderemos fazer sem fornecer algum esboço das estruturas político-institucionais e religiosas vistas em seu contex- to histórico. - Acabamos de focalizar a grande diversidade que marca a nossa temática no espaço e no tempo. Ela nos força, sob pena de excessiva superficialidade, a algum tipo de escolha, não sendo possível que abordemos todos os casos de todos os períodos.Sendo assim, os pró- ximos capítulos se ocuparão - no tocante às relações entre o poder po- lítico e a religião - do Egito e da Baixa Mesopotâmia no terceiro milê- nio a.C., tomando portanto as regiões nucleares do antigo Oriente em sua primeira fase urbana e estatal; do reino hitita, que servirá de exemplo dos Estados federais do segundo milênio a.C., de Israel, caso muito especial no que se refere ao nosso tema, exemplificando ainda os pequenos e médios Estados independentesda fase inicial da Idade do Ferro (passagem do segundo para o primeiro milênio a.C.). Posto que todas as datas de que falaremos são anteriores à era cristã, eliminaremos doravante a expressão "antes de Cristo" (a.C.). O lONGO CAMINHO EM DIREÇÃO À URBANIZAÇÃO NA ÁSIA OCIDENTAL O Oriente Próximo asiático já conhecia, por volta de 7000, al- deias neolíticas plenamente sedentárias, ou seja, comunidades que baseavam sua subsistência numa agropecuária estável e não mais na caça, na pesca e na coleta de plantas selvagens. Quatro mil anos de- pois, por volta de.3100-2900, a Baixa Mesopotâmia estava já urbani- zada, apresentando quatorze cidades mais importantes que subordina- vam outras menores.e numerosas aldeias. Trata-se, de fato, da mais artiga região do planeta a urbanizar-se. Por isto mesmo, no Velho Mundo, constituiu-se na única área que efetuou por si só tal processo, sem dispor de modelos externos a que se pudesse referir. Foi preciso, ao longo de quatro milênios, ir ,achando soluções para os problemas novos que fossem surgindo, enquanto o modo de vida urbano ia se consolidando. Por essa' razão o processo foi tão longo. No Egito, do Neolítico pleno às cidades, passaram-se dois milênios e meio, bem menos tempo do que na Mesopotâmia. No entanto, supõe-se q~e os egípcios puderam aprender com o processo mesopotâmico de criação de cidades, iniciado antes. Note-se que as primeiras etapas do longo caminho que conduziu ao modo urbano de vida estão apresentadas na Alta mas não na Baixa Mesopotâmia. Esta última região, planície aluvial do Tigre e do Eufra- tes, só foi ocupada permanentemen.tea partir do quinto milênio. Entre 5000 e 3500, conheceu uma fase, a de Ubaid, em que o modo de vida 22 23 .

CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Baixa Mesopotamia

Citation preview

Page 1: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

.marcado a Idade do Bronze - mesmo se sua forma conti.nuavare-cordando a dos velhos Estados federais, com um Grande Rei su-bordinando soberanos e potentados menores. A legitimação do p0-der monárquico continuava a passar, como antes, pela religião,mas em alguns casos - como no reino de Israel e nos dois Estadosmenores em que. depois veio a dividir-se- segundo formas inéditas.O surgimento de imensos impérios levou, ainda, à necessidade de de-finira atitude dos Grandes Reis em relação aos deuses e cultos dasdiversas partes de seus territórios. Por estas é outras razões, o pri-meiro milênio a.C. apresenta forte originalidadequando o comparamosàs épocas precedentes.

2BAIXA MESOPOTÂMIANO MilÊNIO INICIAL DA VIDA

E EGITOCIViliZADA

o NOSSO TEMA

Não é nosso objetivo descrever a história política do anti-go Oriente Próximo, e ainda menos a sua história religiosa. Este livrose destina a esclarecer as relações entre política e religião, no âmbitoda teoria, das concepções, mas também naquele, mais concreto, decomo lidavam os reis com os santuários e seus sacerdotes. É óbvio,entretanto, que não o poderemos fazer sem fornecer algum esboçodas estruturas político-institucionais e religiosas vistas em seu contex-to histórico.

- Acabamos de focalizar a grande diversidade que marca a nossatemática no espaço e no tempo. Ela nos força, sob pena de excessiva

superficialidade, a algum tipo de escolha, não sendo possível queabordemos todos os casos de todos os períodos.Sendo assim, os pró-ximos capítulos se ocuparão- no tocante às relações entre o poder po-lítico e a religião - do Egito e da Baixa Mesopotâmia no terceiro milê-nio a.C., tomando portanto as regiões nuclearesdo antigo Oriente emsua primeira fase urbana e estatal; do reino hitita, que servirá deexemplo dos Estados federais do segundo milênio a.C., de Israel,casomuito especial no que se refere ao nosso tema, exemplificando aindaos pequenos e médios Estados independentesda fase inicial da Idadedo Ferro (passagem do segundo para o primeiro milênio a.C.).

Posto que todas as datas de que falaremos são anteriores à eracristã, eliminaremos doravante a expressão "antes de Cristo" (a.C.).

O lONGO CAMINHO EM DIREÇÃO ÀURBANIZAÇÃO NA ÁSIA OCIDENTAL

O OrientePróximo asiático já conhecia, por volta de 7000, al-deias neolíticas plenamente sedentárias, ou seja, comunidades quebaseavam sua subsistência numa agropecuáriaestável e não mais nacaça, na pesca e na coleta de plantas selvagens. Quatro mil anos de-pois, por volta de.3100-2900, a Baixa Mesopotâmia estava já urbani-zada, apresentandoquatorze cidades mais importantes que subordina-vam outras menores.e numerosas aldeias. Trata-se, de fato, da maisartiga região do planeta a urbanizar-se. Por isto mesmo, no VelhoMundo, constituiu-se na única área que efetuou por si só tal processo,sem dispor de modelos externos a que se pudesse referir. Foi preciso,ao longo de quatro milênios, ir ,achandosoluções para os problemasnovos que fossem surgindo, enquanto o modo de vida urbano ia seconsolidando. Por essa' razão o processo foi tão longo. No Egito, doNeolítico pleno às cidades, passaram-se dois milênios e meio, bemmenos tempo do que na Mesopotâmia. No entanto, supõe-se q~e osegípcios puderam aprender com o processo mesopotâmico de criaçãode cidades, iniciado antes.

Note-se que as primeiras etapas do longo caminho que conduziuao modo urbano de vida estão apresentadasna Alta mas não na BaixaMesopotâmia. Esta última região, planície aluvial do Tigre e do Eufra-tes, só foi ocupada permanentemen.tea partir do quinto milênio. Entre5000 e 3500, conheceu uma fase, a de Ubaid,em que o modo de vida

22 23

.

Page 2: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

era neolítico; a partir de 4500 já se fabricavam objetos de cobre. Osinícios da urbanizaçãoe da escrita caracterizaram a etapa seguinte, ade Uruk, de 3500 a 3100, completando-sea transição à civilização ur-bana no período de Jemdet-Nasr - 3100 a 2900 -, com o qual come-çou a Época Inicial do Bronze.

As cidades nascentes da Baixa Mesopotãmia tiveram de enfren-tar dificuldades consideráveis. A agricultura de chuva não é praticávelna região, cujo povoamento depende dos rios. Tais rios se acham emvazante na parte do ano em que é preciso semear. A cheia tem efeitofertilizador; mas dá-se numa época em que os cereais cultivados estãojá crescidos e, em sua violência, ameaça levá-Iosde roldão juntamentecom rebanhos e casas. Devia-se, portanto, dispor de reservasde águapara irrigação nos meses mais secos,e de obras de proteção contra ospiores efeitos das enchentes fluviais. Estas necessidades levaram aum sistema complexo de barragens, diques, canais de irrigação e ca-nais de drenagem, cuja manutenção e extensão exigiram enorme econstante esforço.

A Mesopotãmia tinha à sua volta estepes habitadas por nômadescriadores a oeste, e a leste montanhas, povoadas analogamente porpastores nômades. A planície fértil do Eufrates e do Tigre tinha deser-Ihesdisputada com armas na mão, já que em muitas ocasiões ten-tavam nela estabelecer-seou, simplesmente, pilhar os assentamentossedentários. Estes últimos, aliás, também competiam entre si pelos re-cursos naturais: águas, campos, bosq'uesde tamareiras. A metalurgianascente não seria possível sem a organização de trocas regularescom o exterior, sendo a Baixa Mesopotãmia desprovida de minérios.Outras matérias-primas ainda - pedra, madeira - só poderiam ser ob-tidas fora da região. As escavações arqueológicas comprovam que,desde a Pré-História, tais trocas foram efetuadas, às vezes a distân-cias muito consideráveis.

A pergunta pertinente para a história político-institucional da re-gião é: quem tinha a responsabilidade de procurar soluções para osproblemas que acabamos de resumir? Uma resposta com plena com-provação documental é impossível, posto que a escrita só apareceuquando a urbanização se estava completando, e a arqueologia nãoilumina facilmente os aspectos institucionais. Assim, o que vamosapresentaragora não passa de uma hipótese.

É nossa opinião que três instituições, sucessivamente mais re-centes, encarregaram-sede enfrentar as dificuldades que apareceramao longo do processo de urbanização e, depois, no período inicial davida já totalmente urbana:órgãos colegiados derivados inicialmente daorganização tribal, mas que sobreviveram à destribalização - já com-

pleta na Baixa Mesopotãmia do terceiro milênio, embora devessemreaparecer as tribos no futuro, em função de imigrações como a dosamoritas e a dos ca/deus;os templos, entendidos também como com-plexos econômicos e administrativos, além de terem funções religio-sas; e o palácio real, igualmente um complexocom múltiplas funções.

O fato de que, no quarto milênio, os edifícios maiores em cadaaglomeração baixo-mesopotãmicafossem invariavelmente templos in-duziu a que diversos especialistas pensassem ser aqueles, desde ocomeço do processo de urbanização,os órgãos institucionais encarre-gados de administrar as comunidades que se urbanizavam.São coisasdistintas, porém, o templo considerado como edifício de culto e comocomplexo econômico e político-administrativo. A primeira coisa nãoimplica necessariamente a outra. Achamos que, embora nas aglome-rações que se transformavam em cidades aos poucos houvesse san-tuários, não existiam ainda os complexos templários; e que naquelafase as decisões mais importantes eram tomadas por dois órgãos quesão atestados em épocas posteriores, embora com funções diminuí-das: o conselho de anciãos (notáveis locais mais do que necessaria-mente pessoas idosas) e a assembléia dos homens livres (não sabe-mos se de todos eles, já que as cidades em formação certamente jánão eram igualitárias). De início, é possível que também mulheres fos-sem admitidas a esses órgãos colegiados, embora tal não ocorresseem períodos posteriores. O surgimento dos templos como complexospolítico-econômicos com controle sobre a administração ocorreu aindano quarto milênio, como se depreende das primeiras fontes escritasdecifráveis. Mas o palácio real como entidade diferente dos templos,deles separada no espaço, só apareceu,segundodados arqueológicos,em pleno terceiro milênio.

Parece-nos necessário postular a seqüência acima para explicardois fatos que diferenciam a Baixa Mesopotãmia do início dos temposhistóricos - isto é, dos primeiros séculos suficientemente iluminadospor fontes escritas - do Egito da mesma época. Primeiro, estar o sulda Mesopotãmia dividido, então, em uma dúzia de cidades-Estadosbem consolidadas e ciosas de sua independência,em contraste com aemergência do Egito histórico já como um reino centralizado. Em se-gundo lugar, existia, ao longo de milênios em cada cidade baixo-me-sopotãmica, privilégios fiscais, legais e de jurisdição reconhecidos aoshomens livres proprietários, vistos como um corpo de cidadãos dota-dos de direitos bem estabelecidos - coisa desconhecida no Egito.Ambos os traços distintivos do sul mesopotãmico se tornam compre-ensíveis se se admitir a origem tribal - e portanto local e dispersa _dos primeiros órgãos colegiados de poder que existiram nas cidades

24 25

~

Page 3: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

t

DAS CIDADES-ESTADOS AOSPRIMEIROS IMPÉRIOS MESOPOTÂMICOS

viviam mercadores estrangeiros, proibidos de instalar-se na cida-de amuralhada. O setor urbano servia de núcleo a um território deextensão variável, mas nunca muito grande, que continha cidades me-nores, povoados, aldeias numerosas, campos, pastagens, bosques detamareiras.

Antes de meados do terceiro milênio, as instituições políticas p0-dem ser imperfeitamente vislumbradas através de poemas épicos, tex-tos religiosos e alguns outros tipos de escritos; as fontes literárias sãoquase sempre tardias mas referidas àquele remoto passado. Em certoscasos também são utilizáveis dados arqueológicos. Estes últimas de-monstram que no início da vida urbana não existiam palácios reais se-parados dos templos. Era no interior destes que, numa parte especialdo santuário, residia um funcionário chamadoen ("senhor'), espécie desumo sacerdote e, nos casos em que fosse do sexo masculino (poisem certas cidades tratava-sede uma mulher), ao mesmo tempo encar-regado da chefia militar e de tarefas administrativas, como aconteciaespecialmente em Uruk.

Alguns autores acham que o en era eleito pela assembléia doshomens livres da cidade-Estado,que em certas ocasiões também p0-dia eleger - temporariamente, em situações de grave perigo externopara a cidade - uni verdadeiromonarca.A monarquia teria sido, então,ocasional, e eletiva em seus primeiros tempos. Outrossim, o ~eideviaconsultar o conselho e a assembléia antes de empreendercampanhasmilitares. Há, pouco antes da metade do terceiro milênio, sinais quealguns interpretam como indicadores da existência de uma "realezasagrada". Nas tumbas reais da cidade meridional de Ur, indivíduos,em certos casos identificados positivamente como reis, foram naquelaépoca enterrados com rica dotação funerária, acompanhados de con-cubinas e serviçais mortos ritualmente, costume que não se manteveem fases posteriores. Estas diversas indicações esparsas sobre asmodalidades de governantes.supremosna Baixa Mesopotâmia são di-fíceis de conciliar e parecem até certo ponto contraditórias. Nãoestá excluído que houvesse então considerável heterogeneidade deuma cidade-Estado a outra, além de evoluções no tempo que mal p0-demos adivinhar.

Na segunda metade do terceiro milênio, o título en tomara-sesomente sacerdotal. O rei, desde havia alguns séculos, passaraa resi-dir em um palácio completamente separado do templo e já não erasumo sacerdote, embora desempenhasse ainda funções religiosas im-portantes, como depois veremos. Os títulos que comumente aparecemna documentação da época são: ensi, "governador', atribuído ao chefede uma única cidade-Estado; e fugaf, "rei" (literalmente: "grande ho-

nascentes,bem como o surgimento relativamente tardio de instituiçõescentralizadoras e subordinadoras como os complexos temporários e amonarquia.

Do ponto de vista lingüístico, a Baixa Mesopotâmia do terceiromilênio dividia-se em duas partes: a Suméria, ao sul, onde predomina-va o sumério, língua sem vínculos conhecidosque deixaria de ser fala-da por volta de 1900; e o país de Ak~ad,ao norte, onde se concentra-vam na sua maioria os que falavam o acádio, língua pertencente aogrupo semita e que viria a prevalecer em toda a região. No passado,acreditava-se terem "sumério" e "acádio" conotações não apenas lin-güísticas: tais categorias eram vistas como reunindo característicasra-ciais, lingüísticas e culturais ao mesmo tempo. Assim, opunha-seumapropensão (supostamente semítica) à propriedadeprivada à propensão(que seria suméria) à economia dominada pelo palácio real ou pelostemplos; ou se pretendia que os sumérios adoravam personificaçõeslocais de forças da natureza,enquanto os semitas tendiam a relacionaros deuses com o direito, a moral e a ordem social. Tudo isto não pas-sa de rematada tolice. As eventuais variações culturais que venham aser percebidas no tempo e no espaço, no tocante à civilização meso-potâmica, deverãoexplicar-se historicamente e não atravésdo pseudo-conceito de "raça". E, na verdade, o que chama a atenção na épocaque abordamos é sobretudo a homogeneidadecultural mesopotâmica,apesar dos dois domínios lingüísticos existentes - aliás, difíceis de cir-cunscrever.

Em toda a Baixa Mesopotâmia, quando, por volta de meados doterceiro milênio, as fontes mais abundantes permitem-nos enxergarcom maior çlareza a situação, encontramos cidades-Estados indepen-dentes. Cada uma delas, em seu setor urbano, compreendia três par-tes: a cidade stricto sensu, amuralhada; o que os sumérios chamavamde "cidade externa", situada fora dos muros, que entremeava zonas re-sidenciais, terras cultivadas e estábulos que, ao que parece, perten-ciam aos residentes das cidades (o que explicaria o aparecimento tar-dio, nestas últimas, dos mercados de víveres); e o porto-fluvial quasesempre, ainda que freqüentado por barcosque também navegavam nogolpo Pérsico -, onde se concentrava o comércio exterior e onde

26 27

Page 4: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

mem"), reservado ao líder que conseguisse estender sua autoridade avárias cidades-Estados,cujos ens; passavam a ser subordinadosseus.A verdadeira monarquia (nam-Iugal) exigia o controle da cidade deNippur, cujo santuário era o centro religioso da Suméria, e era sacra-mentada pelo título de "rei de Kish" (cidade que, segundo parece,exercera a hegemonia no período iniciado por volta de 2900 ou, comodiriam, os sumérios, "depois do dilúvio"). O comando militar, necessá-rio à defesa do território e das rotas comerciais bem como à conquistae ao saque, foi fator essencial no surgimento.de uma monarquia per-manente hereditária e separada dos templos. As funções político-ad-ministrativas destes últimos, como também. as do conselho e da as-sembléia, diminuíram à medida que se consolidava o poder monárqui-co. O título de ens; ligava-se estreitamente às atividades administrati-vas e especialmente à supervisão das obras de irrigação.

A partir de meados do terceiro milênio, o particularismo das cida-des-Estados dá a impressão de chocar-secom uma consciência étnicaunitária na Baixa Mesopotâmia, servindo esta de base a hegemoniascada vez mais extensas, que acabaram desembocando em impériosefêmeros, mas crescentemente coerentes em sua organização.O pri-meiro de tais impérios foi criado por Sargão I, de Akkad (2334-2279),que unificou a Mesopotâmia e seus arredores imediatos, fundandouma capital, Akkad ou Agadé. Exerceuum domínio menos direto sobreregiões mais distantes, sobretudo para manter e ampliar as rotas queabasteciam a Baixa Mesopotâmia em minérios, pedra e madeira, alémde artigos de luxo. A nomeação - ainda que não em todas as cidadesdominadas _de govemadores acadianos, em muitos casos parentesdo rei, pretendia diminuir a autonomia das cidades-Estados.O exércitofoi ampliado, assim como o palácio real como máquina burocrática:Sargão se gabava de que mais de cinco mil homens comessem à suamesa todos os dias. Mesmo assim, o império acádio não durou muito,em função das revoltas internas e dos ataques externos,desaparecen-do de vez, depois de um longo declínio,em 2154.

. Outro império efêmero sucedeu a um período de descentraliza-ção e de domínio de estrangeiros - os gútios provenientes do leste,dos montes Zagros - sobre parte da Baixa Mesopotâmia. O novo im-pério, tendo à frente a terceira dinastia da cidade de Ur, existiu entre2112 e 2004. Foi notável por seu marcante controle econômico. De iní-cio compreendeu a Mesopotâmia inteira e algumas regiões exteriores.Cedo, porém, começou a desintegrar-se. Isto ocorreu apesar de pre-cauções como a separação entre o poder civil e o militar nas cidadesdominadas, um sistema de guamições possibilitado por um grandeexército (caracterizado, em especial, por numerosos mercenários pro-

venientes do Elam, região que faz a transição geográfica entre a planí-cie baixo-mesopotâmica e o montanhoso Irã), um bem organizado cor-reio real, um sistema de remuneração dos burocratas através de ra-ções e de terras dadas em usufruto, esforços em direção a certa unifi-cação da legislação que incluíram a promulgaçãoda primeira compila-ção importante de precedentes judiciários ou "julgamentos típicos" fei-ta na Mesopotâmia: as leis de Urnammu, fundador do império. Tam-bém neste caso, o império sucumbiu às rebeliões internas e aos ata-ques vindos do exterior. as campanhas e imigrações dos amoritas(nômades semitas provenientes do oeste) e os ataques dos elamitas,que destruíram e saquearama cidade de Ur em 2004.

Não obstante o caráter efêmero destes impérios, ao terminar oterceiro milênio o regime monárquico, centrado no palácio real, estavabem consolidado e apresentavacontornos institucionais nítidos na Me-sopotâmia. No interior do Estado, o palácio se tornara econômica epoliticamente muito mais importante do que os templos. No entanto,ainda durante os períodos de apogeu imperial, o poder monárquiconunca se aproximou do modelo autocrático egípcio. Mesmo reis queousaram intitular-se "deuses" reconheciam sua dependência para comas grandes divindades sumero-acadianas. E os homens livres maisimportantes constituíam, em cada cidade, um corpo de cidadãos comdireitos reconhecidos.O papel legislador do rei mesopotâmico, inaugu-rado em escala maior por Urnammu, supunha, aliás, como destinatá-rios dos códigos legais promulgados (ou, mais exatamente, das cole-ções de jurisprudência),cidadãos que tivessem existência própria, nãosendo exclusivamente súditos e dependentes do rei. O objeto da pro-mulgação era, de fato, tentar regular as relaçõesdos cidadãos entre sie com o Estado, além de demonstrar que o monarca cumpria sua fun-ção de promover a justiça nos territórios sob sua administração. Umdos sinais de que a autonomia dos cidadãos era reconhecidafoi a ma-nutenção da assembléia e do conselho nas diversas cidades, mesmo'quando seus poderes foram drasticamente reduzidos.

OS DEUSES E O CULTO

Alguns elementos da evolução das crenças mesopotâmicas notempo podem ser detectados. Enquanto alguns deuses estão compro-vados desde 'muito cedo - Anu, Enlil, Enki... -, outros foram adotadosmais tardiamente na região, como Dagan ou Annunítum. Há exemplos,

2829

Page 5: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

r-

'ainda, de personagens hoje consideradas históricas divinizadas pos-tumamente, como o en Gilgamesh de Uruk. E podem ser percebidasmudanças na forma de encarar e conceber as divindades. Inanna, deinício muito próxima da Grande Mãe pré-históricaem sua qualidade dedeusa do amor e da fertilidade, adquiriu posteriormente também ummarcado caráter militar. O surgimento da monarquia estável e heredi-tária, de hegemonias e impérios, foi projetado no mundo dos deuses,imaginados a partir de meados do terceiro milênio como membros deum Estado organizado e hierárquico em que Anu - ou, em certos ca-sos, Ehlil- presidia o conselho e a assembléia divinos. Em especial, astransformações polfticas humanas influenciaram o mito do deus Ninur-ta, guerreirodescrito como comandante de um exército permanente.

Uma história suficientemente completa da religião mesopotâmicano terceiro milênio, sobretudo em sua primeira metade, não poderia,porém, ser escrita, dado o estado fragmentário das fontes, muitas dasquais, aliás, foram-nos transmitidas em versões bem tardias. Tratare-mos de fazer uma curta descriçãoque se aplica especialmente à partefinal do milênio, quando os cultos locais já haviam sido reunidos numavisão de conjunto - não de todo coerente, porém, para nosso modo mo-demo de ver, pois a religião sumero-acadiana,como todas as religiõesnão-reveladas,evoluía em forma mais livre e complexa do que as reli-giões reveladas posteriorescomo o cristianismo, o islamismo, etc.:

Desenvolvimentos locais sob pressão polftica. crescimentos inacabadose mutações de origem incerta fornecem, em qualquer momento dado dotempo, o que pode ser considerado um conglomerado elástico, para usarum termo geológico. Numa visão diacrõnica, tais transformações são decomplexidade multiforme, nunca vista, desafiando a análise e mesmo aidentificação de seus componentes. (A. Leó 'Oppenheim)

Uma das explicações de tamanha complexidade é que, mais doque de "religião", deveríamos falar de "religiões". Por um lado, o cará-ter localmente variável das crenças e cultos nunca se perdeu de todo.Por outro lado, há três níveis a considerar: a religião sacerdotal dostemplos, centrada no serviço à imagem divina em seu santuário, es-tando este fechado, na sua maior parte, à imensa maioria das pes-soas; a religião monárquica,que se referia às funções religiosas reser-vadas ao soberano e dependia também das preferências de cada reiem matéria de cultos; e a religião dos homens comuns, que só partici-pavam de longe ou como espectadores da maioria das grandes ceri-mônias religiosas oficiais e freqüentavam usualmente pequenas ca-pelas situadas em zonas residenciais. Quase nada se sabe da religião

30

-popular, bastante mais acerca da religião dos templos, ainda mais dareligião monárquica,bem servida de fontes.

As maiores dentre as numerosas divindades sumero-acadianaseram Anu {em acádio An), senhor da abóbada celeste, Enlil, senhor doar que separa o céu da terra, Enki (em acádio Ea), senhor das águas euma espécie de herói cultural encarregado de ordenar a natureza e omundo dos homens, a deusa Ninhursag ou Nintu, mãe cósmica, alémde três deuses identificados com astros: o deus da Lua, Nanna ou Sin;o Sol, Utu (em acádio Shamash), filho de Enlil; e a deusa do planetaVênus, Inanna (em acádio IShtar),senhora da fertilidade que se tomouesposa de Anu mas também estava associada a Dumuzi ou Tammuz,que alguns crêem ser um mortal divinizado e que, como deus, repre-sentava a m'orte e ressurreição anuais da natureza. Estas sete divin-dades (não incluído Dumuzi) constituíam o equivalente divino do con-selho de anciãos e presidiam a assembléia dos cinqüenta deusesmaiores, ou Anunnaki ("filhos de Anu").

Cada grande deus ou deusa, embora fosse objeto de culto emtoda a Mesopotâmia, "residia" no seu santuário principal,situado emuma só das cidades-Estados: assim, o Eanna era a casa de Inanna,em Uruk; o Ekur, a de Enlil, em Nippur; o Ekishnugal, a de Nanna emUr, etc. Habitualmente com seu cônjuge, filhos e outras divindades as-sociadas, o deus ou deusa principal da cidade tinha no grande templolocal o seu palácio, e ali a sua imagem - sendo os deuses mesopotâ-micos sempre representados em forma humana - recebia duas refei-ções diárias, roupas, adereços e outras oferendas, juntamente com asimagens dos membros divinos de sua família e de sua corte.

Os cidadãos comuns não tinham acesso às partes lTIaisíntimasdos templos, consideradas,como os aposentos do deus da cidade. Asestátuas divinas eram visíveis para a massa do.povo unicamente nasfestas em que saíam em procissão. O fiel pOdiaser autorizado, entre-tanto, a.dedicar sua própria estátua na postura de alguém que reza, aqual era então posta na presençadivina.

Os melhores animais sacrificados, as melhores comidas e bebi-das encaminhadas ao templo, destinavam-se à mesa portátil pos-ta diante das imagens divinas duas vezes por dia; mas uma quantida-de muito maior de vitualhas ganhava diariamente os santuários, paraalimentação dos sacerdotes e outros dependentes dos deuses (arte-sãos, músicos, trabalhadorese serviçais diversos, etc.). O culto diário,com seu acompanhamento de orações, não esgotava as obrigaçõessacerdotais maiores: havia numerosos festivais religiosos ao longo doano; em alguns dos quais o rei devia participar pessoalmente. Os sa-cerdotes organizavam-sehierarquicamente e segundo uma estrita divi-são do trabalho. '

31

Page 6: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

Ao lado dos aspectoscentraisda religião- culto diário, festivais -,outros existiam. O domínio dos mortos, visto pelos habitantes da Me-sopotãmia como lugar atroz, era governado pelo deus Nergal e suaesposa Ereshkigal, também associados, ao lado de numerosos dem~nios e de almas não apaziguadas por oferendas dos parentes sobrevi-ventes, às pestes e doenças.Aplacá-Ios,afastando-osdos afligidos porenfermidades ou possessões,propiciar o bom andamento da naturezae da vida social ou individual apelando aos deuses, procurarauscultara vontade divina, eram tarefas que os sacerdotes executavam tantopara reis quanto para plebeus através da magia, de exorcismos,de sa-crifícios propiciatórios, de técnicas diversas de adivinhação e de inter-pretação dos sonhos.

A virtude, a justiça e a ética, comumente associadas a Utu ouShamash, o deus solar, não podiam garantir uma vida feliz no além-túmulo. A noção de um julgamento dos mortos desenvolveu-sepouco.Era sobretudo nesta vida e neste mundo que a religião buscava fun-damentar os princípios de justiça, eqüidade e piedade. As doenças tra-zidas por demõnios eram vistas como punição de alguma ofensa vo-luntária ou involuntária contra os deuses, ou contra certas regras doconvívio social. Mas a ofensa ao deus tanto podia ser moral quanto ri-tual. Eis aqui algumas das perguntas que constam de um texto quedeveria ser lido pelo exorcista:

Pecou ele contra um deus?

É a sua culpa contra uma deusa?Trata-se de uma má ação para com seu senhor,ou de ódio para com seu irmão mais velho?Desprezou ele o pai ou a mãe? (...)Usou ele pesos falsificados?Fixou ele um falso limite [nos campos] ? (...)Apoderou-se ele da esposa de um vizinho?Derramou ele o sangue de um vizinho? (...)(Jacquetta Hawkes)

Em épocas posteriores, dois milanos depois do período que aquiexaminamos, houve, sem dúvida, um desenvolvimento maior da éticamesopotâmica de base religiosa. Nos mitos sumero-acadianos, no en-tanto, os próprios deuses cometiam atos de estupro, adultério, ciúme,engano, roubo, assassinato, embriaguez, etc., sem que aparentementeisto escandalizasse os fiéis. Afinal,da lista de uma centena de mes -elementos ou leis criados pelos deuses e julgados necessários para aboa ordem e a continuidade do universo - constavam a prostituição,ainimizade, a destruição de cidades, a falsidade, o terror, o combate,tanto quanto o sacerdócio, a bondade, a justiça, a paz ou a sabedoria...

32

A MONARQUIA E OS DEUSES NABAIXA MESOPOTÂMIA DO TERCEIRO MILÊNIO

Na concepção mesopotâmica do universo, não há qualquer des-continuidade entre mundo humano, mundo natural e mundo divino.Não há, ainda, oposiçãoentre entes animadose coisas inanimadas,pois tudo é animado,dotado de vontade,portantosuscetívelde res-ponder aos homens de pessoa a pessoa. Isto porque os deuses cria-ram o homem e o universo com tudo que contém, incluindotodas asregras de funcionamento do cosmo e da civilização,e continuam a di-rigire dar coerência à sua criação. Inexistemcortes ou fraturas a sepa-rar o social, o natural e o divino,havendo pelo contráriototal homoge-neidade de princípios e funcionamento entre tais níveis da realidade.

Também a monarquia é uma criação divina.Trata-se do primeiroe mais importante dos elementos ou leis universais (mes). "Arealezadesceu do céu", diz-nosa ListaReal Suméfla; nao uma, mas duasvezes. Com efeito, a primeira humanidadeirritaraos deuses,cujaassembléiadecidiu.eliminá-Iapor meio do dilúvio,uma inundaçãodeque escapou, por ação do deus Enki, o rei Ziusudra (mais tarde, cha-mado Utinapishtim) de Shuruppak, juntamente com sua esposa _constituindoambosa sementede umanovahumanidade. Após o dilú-vio, "a realeza desceu de novo do céu", instalando-se, primeiro,na ci-dade de Kish.

Os homens foram criados para o serviço dos deuses.Já antes dodilúvio, o deus supremo - o texto sumério que se refere ao dilúvio dei-xa nasombrasese tratadeAnuou de Enlil- fundou pessoalmente ascinco primeiras cidades-Estados, deu-Ihes os seus nomes, e atribuiucada uma a uma divindade como centro de seu culto:

A primeira destas cidades, Eridu, ele deu a Nudimmud [Le., EnkiJ, o Ifder;a segunda, Badtibira, ele deu a Latarak;

a terceira, Larak, ele deu a Endurbilhursag;a quarta, Sippar, ele deu ao herói Utu;

a quinta, Shuruppak, ele deu a Sud [Le. Ninlil, esposa de Enlil].

(James. B. Pritchard)

33

1

Page 7: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

DivindadesLocais

Analogamente, no mundo pós-diluviano, cada cidade-Estado"pertencia" ao deus ou deusa que ali ocupava o templo principal. Osseus habitantes - e em primeiro lugar o principal dentre eles por suaposição, fosse o seu título en, ensiou fugal - existiam para servir à di-vindade local. Os governantes supremos são representados às vezescarregandoà cabeça materiais de construção para elevar ou repararbtemplo maior de sua cidade: um exemplo antigo é o do fugaf Urnanshede Lagash (2494-2465).

Em troca, a divindade concedia ao rei o ofício monárquico.Mes-mo os conquistadores.e fundadoresde impérios reconheciama origemdivina do seu poder. Sargão de Akkad (2334-2279) declarou, em umainscrição de Nippur de que temos a cópia em uma tabuinha de barro,

" ~.,":" :~"--'-;:"~%~'\'~)!':

.:,.:;<It~

~\\'''''' 1~

~'

,

~

.

:~I\J1j

.'~

~. ':"j~":O::-,'

) ,.1\ . , .,.~

. ,. '~~; .~ '. ~.~~".

~, . .. -~,;~ { ~'~'~I~\ .

~\I..\0'1"

'I,'

l!t:.'~c-"\ '

~\\:-~.,( '.~ ' ' I:

I " , ' \..

~

.,,'

~' . "" \ 11111,,', '" : ""- ?,~ ..',,' , '. i\\ .~, ,;.,;j' 5 'I

. . . I li' ," \. . . ~ \\ . rr;(i~'; . '11.

~ : '.:: '.! ",". : : ,. :..,t.; ,; '. \'.,'" "L ,:;:. ',' ,. ,,o"" ~., "'''-'''~ " I

~ .i; (.~N~;í,) .c/o'\- ·;;~i\;NÀ~'i':, Ij,.~ . ,~ .:' ;,.~ .':f;i>:Ç'. VI' fí':.,~ li ""~\\n ,§Jrt~ ':;:"\í .~( ', :"~~L~' ~"

,

,-:, .'" ".'(., --, . ,/.-,"". ..':>' ,_~,~~~~~J.' ,.' ..~!fN:'!\,11;::I...

'.' ; : ,', ". : rf<Fw:'~:1 : ! \ \ ! ~:.~ ,,' :' ,'.. lÁ '

~

'

I"If'L"'" ."" -'~

z' ..~. .:=y ";. ?';:; # 'lir..1'~ i' 1 i \! - '.',' " ,.l:, ..,' " ;: :'~\;;::V,i' ~i!; 'I. J

~UI:'''J>ÚM;';~/~'~~N~";';,""'~;~1.~~~~~~Figura 2: RELEVO DE ANUBANlNI: Este bai)(()-relevo vem dos limites orientais da Mesopotâ-mia (montes Zagros), mas está dentro da tradição mesopotâmica: o monarca vitorioso do povomontanhês dos lullubi atribuiu à deusa da fertilidade Inanna (de cujo corpo brotam plantas) asua vitória sobre inimigos aprisionados. Note-se a diferença de escala na representação do reie da deusa, por um lado, e dos vencidos. por outro.FONTE: Wiesner, Joseph. Oriente antigo. Lisboa, Verbo, 1968, p. 48.

ser "rei de Akkad, capatazde Ishtar,rei de Kish,sacerdoteungidodeAnu, rei do país, grande ensi de Enlil", além de afirmar que Enlil lheconcedera todos os territórios entre o Mediterrâneo e o golfo Pérsico.Por sua vez, o primeiro rei da terceira dinastia de Ur, Urnammu (2112-2095), disse no prólogo de suas leis que era rei de Ur, de Sumer e Ak-kad "pelo poder de Nanna", o deus lunar de Ur, e que "de acordo coma verdadeira palavra de Utu" (o deus solar) é que ele "estabeleceu aeqüidade na terra e baniu a maldição, a violência e a luta". O monarcaé um agente da ordem, mas a ordem eacima de tudo cósmica, elavem dos deuses. .

Vínculos Estreitos

Os vínculos entre o'rei e a esfera do divino eram estreitos. O so-berano declarava-se às vezes filho dileto de uma deusa, e que esta oamamentara, sem que isto representasse verdadeira divinização dapessoa real. Urnammu, por exemplo, dizia-se "filho nascido de Ninsun,sua querida mãe que o levou no ventre". Outrossim, o rei tinha direitoàs "sobras" do deus, ou seja, eram-lhe destinadas as refeições postasdLiasvezes por dia diante da principal divindade da cidade,depois queesta as consumia misticamente. Sargão de Akkad inaugurou um outrotraço de união com o mundo divino, a tradição (que durou meio milê-nio) de que a filha do governante supremo se tornasse sacerdotisaprincipal do deus Nanna ou Sin da cidade de Ur.

Vimos anteriormente que as transformações políticas humanas,em especial a consolidação da monarquia e a formação dos primeirosimpérios, tiveram influência na concepção do mundo divino como umEstado cósmico. No entanto, esta maneira de ver, uma vez formada,por sua vez se reflete na teoria ao mesmo tempo religiosa e políticaacerca dos poderes terrestres.Cada deus mais importante foi encara-do como uma espécie de cidadão do Estado cósmico presidido porAnu e Enlil; a "sua" cidade-Estadoera, neste mundo terrestre,o domí-nio de onde retirava comida, roupa e alojamento. Os cidadãos locais,seus servidores, participavam de sua riqueza, ou seja, a prosperidadehumana aparecia como um subprodutoda ab.undãnciaque o deus pro-piciava à sua cidade para seus próprios fins pessoais. O Estado hu-mano funcionava como prolongamento ou setor do Estado cósmico,divino. Em nome do deus da sua cidade - ou, nos períodos imperiais,do deus da cidade capital - o monarca governava,julgava, agia, com-batia. Em outras palavras, teoricamente o rei não passavade capataz,mordomo ou representante da divindade, e assim o reconhecia em

34 35

1

Page 8: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

seus textos.· Isto implicava a necessidade de consulta permanentedos designios supremos do deus. Antes de decidir-se e agir, o rei me-sopotâmico consultava e interpretava, por meio dos sacerdotes, asmensagens divinas que lhe chegavam nos seus próprios sonhos, naforma de acontecimentos portentosos, inscritas nas entranhas dosanimais sacrificados. Com o tempo, verdadeiros catálogos de interpre-tações desses signos da vontade divina foram compilados para servirde base às consultas.

Note-se que pode ser perigoso estender em forma excessiva ateoria, confundindo-a de todo com a realidade social. Pretendeu-seháalgumas décadas, por exemplo, que em meados do terceiro milênio ostemplos - e portantoos deuses- fossemos proprietáriosefetivosdetodas as terras cultivadas de cada cidade-Estado:foi a teoria da "cida-de-templo". Isto demonstrou ser falso, e aliás não é algo necessáriopara que se cumpra a concepção ideológica de uma propriedadeemi-nente suprema da divindade sobre a cidade. Do mesmo modo, o avan-ço progressivo do palácio real sobre as terras e rendas tributárias dostemplos, mesmo se em certas ocasiões foi visto como um abuso a sercorrigido- por exemplo e sobretudo nos textos acerca das reformaspassageirasdo ensi Urukagina de Lagash(2351-2342)- acabou por secumprir irrevogavelmentesem, no entanto, afetar a teoria de serem osdeuses os "donos" do mundo dos homens. Esta não passava de umaconcepção teórica, cujo corolário prático era, simplesmente,que os go-vemantes supremos tivessem sempre o cuidado (como de fato tinham)de agir em nome dos deuses e de garantir adequada e generosamenteos seus santuários e o seu culto.

A continuidade que se pressentiaentre os níveis humano, naturale divino da realidade conduziu a que o rei - como intermediário desig-nado pelos deuses entre eles mesmos e os homens - participasse deum festival, estranho e curioso para nós modemos, destinado a liberaros poderes cósmicos da fertilidade,' isto é, a garantir anualmente acheia dos rios, a germinação dos cereais, a multiplicação dos homense dos rebanhos. Referimo-nos ao matrimônio sagrado, cerimônia emque o monarca,encarnando um deus, unia-se,uma vez por ano, a umasacerdotisa que representava a deusa da fertilidade, Inanna ou Ishtar.O festival em questão só está solidamente atestado a partir do iníciodo segundo milênio, mas a maioria dos especialistas o considera mui-to antigo, ligando-se mesmo, talvez, ao culto pré-históricoda deusa daTerra, a Grande Mãe. Os textos acerca de tal cerimônia não deixamdúvidas sobre as finalidades da mesma. Num deles, diz a oração diri-gida à deusa, referindo-seao rei a quem ela se vai unir ritualmente:

36

Possa ele tornar os campos produtivos como o cultivador,Possa ele multiplicaros rebanhos como um pastor de confiança.Sob seu reinado,que hajaplantase grãos,Que, no rio, hajaáguade sobra,

Que no campo possa haver uma segunda colheita [literalmente: grãotardio),

Que no pântanohajapeixes e os pássaros façam muito ruído,Que nos caniçais cresçam, altos, os juncos velhos e novos,Que na estepe cresçam, altas, as árvores,Que nas florestas os cervos e cabras selvagens se multipliquem,Que o jardim irrigadoproduza mel e vinho,Que nos sulcos as alfaces e verduras cresçam altas,Que no paláciohaja longa vida,Que ao Tigre e ao Eufrates a águada cheia seja trazida,Que em suas margens a erva cresça alta, e possam os prados sercobertos,

Que a sagrada rainha da vegetação acumule o grão em altos montese pilhas,

Ó minha rainha, rainhado universo, a rainhaque abarca o universo,Que ele desfrute de longos dias em teu regaço sagrado!(Pritchard)

Num tal contexto, que significou a divinização do próprio rei,qcorrida nos séculos finais do terceiro milênio? Com efeito, Naram-Sin

(2254-2218), neto de Sargão de Akkad, assumiu em suas inscrições otítulo de "deus de Akkad" e o de "espOso de Ishtar-Annunítum". Mais

tarde, o segundo rei da terceira dinastia de Ur, Shulgi (2094-2047),também se divinizou em vida, no que foi imitado por seus sucessores,sendo que, neste caso, organizou-se um verdadeiro culto em que aimagem real recebia oferendas em templos e capelas como qualqueroutra divindade. É possível que a divinização do rei - aliás passageiraem termos do conjunto da história da Mesopotâmia - não manifestas-

se a intenção de apontar uma mudança de natureza do monarca, massim de função: com a construção imperial, o rei passava a desempe-nhar um papel no mundo muito mais amplo e exaltado do que no pas-sado, e por tal razão comparável ao dos deuses. É também razoável

pensar que se visse numa tal decisão a apropriação direta, pelo rei,das funções judiciárias e legislativas divinas, encarregando-se osoberano, pessoalmente, do conjunto de compromissos e oprigaçõesque dava forma à vida social (assim, por ocasião da celebração decontratos, as partes e testemunhas deviam jurar pelos deuses e pelorei divinizado).

Por fim, não se exclui a tentativa de criar um laço direto de leal-dade entre o monarca e os súditos de impérios heterogêneos, nos

37

1

Page 9: CARDOSO, C. F. Baixa Mesopotamia

quais eram fortes os elementos dispersivos. Seja como for, mesmo osreis divinizados em vida proclamaram sua submissão e serviço aos

grandes deuses sumero-acadianos,aos quais não buscaram equiparar-se e que certamente não queriam substituir.

Sistemas Locais de Poder

o SURGIMENTO DO ESTADO FARAÔNICO NO EGITO

Existem provas indiretas da presença de sistemas locais de p0-der já consideráveis algumas centenas de anos antes da unificação dopaís: existência de artesãos de alta qualificação produzindo grandesquantidades de objetos cerimoniais e de vasos de pedras duras ou dealabastro; presença de celeiros de grande capacidade; passagem docobre martelado a frio à metalurgia, o que supunha a exploração deminas, o transporte e armazenagemdo minério; construçõescomo asde Hieracômpolis,que exigiram para sua ereção algum sistema de dis-tribuição de rações aos trabalhadores e, portanto, algum sistema detributos que permitisse armazenarexcedentes de cereais.

As obras de irrigação, então incipientes, eram da alçada local eregional, não podendo ser consideradas como causa direta da forma-ção do Estado centralizado. Elas parecem muito ligadas, porém, àformação de cerca de quatro dezenas (um pouco menos no início) deentidades territoriais regionais, os spat Ounomos, que mais tarde fun-cionariam como províncias do reino unificado. É possível imaginar pri-meiro nos nomos o aparecimentodas relações urbano-ruraisnascentese o surgimento em caráter pioneiro de núcleos político-territoriaisdefi-nidos, cujo,conflito deve ter desembocado em confederaçõescrescen-tes e, por fim, no reino do Egito, duplo mas unido sob um único mo-narca. Segundo Jean Vercoutter, desde o Neolítico foi tomando formaa separação entre dois blocos culturais: um deles se situava em voltado Fayum (bacia do lago atualmente chamado Birket Karun, a oestedo ponto em que o Vale e o Delta do Nilo se unem) e nos limites doDelta a noroeste,mas sem chegar até o Mediterrâneo;o outro, no Valedo Nilo entre Assiut e Tebas. A diferenciação cultural cedeu lugar auma fusão, formando-se uma civilização única pouco antes da unifica-ção. Objetos que se estendem no tempo do final do períodoPré-Dinás-tico até a primeira dinastia histórica parecem indicar ligações do Egitocom a Baixa Mesopotâmia na fase de aproximadamente 3100 até2900. Alguns autores, como Walter Emery, não hesitaram em basear-se em tal fato arqueológico para falar em uma "raça diná~tica" que,vinda do país do Eufrates e do Tigre, invadira o Egito, trazendo a civili-zação e mesmo a unidade política. Esta teoria está hoje desacredita-da: a civilização egípcia tem profundas raízes africanas, embora semdúvida também recebesse influências asiáticas em geral e mesopotâ-micas em particular através das trocas de longa distância.

/

Entre o Neolítico pleno e o surgimento do reino unificado se pas-saram no Egito dois milêniqs e meio ou mesmo, segundo certos auto-res, dois milênios somente, entre 5000 e 3000. A partir da fase de el-Badari (4500-4000,mas tais datas são muito inseguras),que inaugurao chamado Período Pré-DiQástico,já surgem no registro arqueológicoalguns objetos de cobre martelado, pelo qual fala-se às vezes de Pe-ríodo Eneolítico: a verdade é, porém, que por muito tempo o modo d~vida das aldeias neolíticas permaneceu inalterado por tal inovação. Esobretudo nos últimos séculos do Pré-Dinástico - os quais correspon-dem ao final do quarto milênio - que mudanças sociais maiores pas-sam a ser perceptíveis a partir da arqueologia, caracterizando a fasegerzeense ou de Nagada 11. /

O sítio arqueológico de Hieracômpolis, bem ao sul do Vale doNilo egípcio, ti,nhano final do Pré-Dinástico uma população importanteque se estava concentrando em aglomerações fortificadas, numa re-gião que contava tom um templo prestigioso e com boas condiçõespara a irrigação baseada nos tanques ou bacias formadas e fertilizadasnaturalmente pelo rio. Isto atraía tal população, numa época de dete-rioração climática que fez abandonar cada vez mais as antigas este-pes saarianas que atravessavam radical desertificação. A diversifica-ção dos graus de riqueza das tumbas mostra, na segunda metade doquarto milênio, uma população socialmente estratificada e já não igua-litária. Há sinais, também, de conflitos com a Núbia (que não passa dacontinuação do Vale do Nilo ao sul do Egito), que podem ter favoreci-do localmente a passagem de formas mais difusas de poder a gruposmilitares definidos com numerososdependentes.

Não é somente em Hieracômpolis que a arqueologia demonstraa existência de uma diferenciação social naquela época. De um modogeral, enquanto anteriormente as tumbas maiores e mais ricas seapresentavamespalhadas nos cemitérios, nos últimos séculos do quar-to milênio elas tenderam, pelo contrário, a serem agrupadas além dese tornarem ainda m~is ricas.

38 39

1