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Carimbó - negritude, indianeidade e caboclice: debates sobre raça e identidade na música popular amazônica (década de 1970). TONY LEÃO DA COSTA * Qualquer pessoa que visitasse Belém nos dias de hoje mais cedo ou mais tarde ficaria sabendo por seus moradores que o gênero musical que dá identidade àquela cidade e à parte significativa do estado do Pará é o carimbó. Dependendo do período do ano e do lugar em que o visitante circulasse é possível que ele se deparasse com apresentações de grupos musicais e/ou folclóricos que tocam e dançam o carimbó. De fato o turista não encontraria tantos eventos cotidianos com o carimbó, teria que procurar um pouco para encontrar bares onde o gênero fosse veiculado regularmente, mas mesmo assim seria provocado a conhecer a música que representa um elemento importantíssimo da identidade local. Mesmo que efetivamente o carimbó tenha uma presença menor frente à veiculação de gêneros massivos como o brega, o tecnobrega, o sertanejo, o pagode ou o samba, ele funciona como a referência central da identidade sonora do “povo” da Amazônia e/ou do Pará. Ele não só seria a música “popular” por excelência, mas seria também uma das marcas de definição desse mesmo “povo” como um povo caboclo. 1 Se isso é assim hoje, a história do processo de construção do carimbó como marca sonora da identidade local é bem mais longa e pode ser descrita, mesmo que de forma fragmentaria. Pois vejamos. Uma cronologia da “invenção” do carimbó De fato, se fosse possível resumir em poucos parágrafos a história da “descoberta” do carimbó no Pará, ela seria definida por pelo menos quatro momentos, quais sejam: (a) momento do olhar repressivo ou proibitivo, (b) momento do discurso folclórico, (c) momento do carimbó como “música popular” de identidade regional e (d) período da patrimonialização” institucional nacional. No primeiro momento, o carimbó foi situado indiferenciadamente no conjunto dos sons populares vistos como “bárbaros”, do mundo da rua e da “desordem”, pelo pensamento * Universidade do Estado do Pará (UEPA), Doutor em História. 1 Importa considerar que a diversidade musical e identitária do estado do Pará não me permite fazer generalizações excessivas. Em algumas regiões do estado, sobretudo naquelas marcadas por forte processo de imigração recente, o “carimbó”, e outros ícones da identidade cultural mais associada à região de influência de Belém, é praticamente inexistente, seja como prática cotidiana seja como elemento simbólico da tradição musical.

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Carimbó - negritude, indianeidade e caboclice: debates sobre raça e identidade na

música popular amazônica (década de 1970).

TONY LEÃO DA COSTA*

Qualquer pessoa que visitasse Belém nos dias de hoje mais cedo ou mais tarde ficaria

sabendo por seus moradores que o gênero musical que dá identidade àquela cidade e à parte

significativa do estado do Pará é o carimbó. Dependendo do período do ano e do lugar em que

o visitante circulasse é possível que ele se deparasse com apresentações de grupos musicais

e/ou folclóricos que tocam e dançam o carimbó. De fato o turista não encontraria tantos

eventos cotidianos com o carimbó, teria que procurar um pouco para encontrar bares onde o

gênero fosse veiculado regularmente, mas mesmo assim seria provocado a conhecer a música

que representa um elemento importantíssimo da identidade local. Mesmo que efetivamente o

carimbó tenha uma presença menor frente à veiculação de gêneros massivos como o brega, o

tecnobrega, o sertanejo, o pagode ou o samba, ele funciona como a referência central da

identidade sonora do “povo” da Amazônia e/ou do Pará. Ele não só seria a música “popular”

por excelência, mas seria também uma das marcas de definição desse mesmo “povo” como

um povo “caboclo”.1

Se isso é assim hoje, a história do processo de construção do carimbó como marca

sonora da identidade local é bem mais longa e pode ser descrita, mesmo que de forma

fragmentaria. Pois vejamos.

Uma cronologia da “invenção” do carimbó

De fato, se fosse possível resumir em poucos parágrafos a história da “descoberta”

do carimbó no Pará, ela seria definida por pelo menos quatro momentos, quais sejam: (a)

momento do olhar repressivo ou proibitivo, (b) momento do discurso folclórico, (c) momento

do carimbó como “música popular” de identidade regional e (d) período da

“patrimonialização” institucional nacional.

No primeiro momento, o carimbó foi situado indiferenciadamente no conjunto dos

sons populares vistos como “bárbaros”, do mundo da rua e da “desordem”, pelo pensamento

* Universidade do Estado do Pará (UEPA), Doutor em História. 1 Importa considerar que a diversidade musical e identitária do estado do Pará não me permite fazer

generalizações excessivas. Em algumas regiões do estado, sobretudo naquelas marcadas por forte processo de

imigração recente, o “carimbó”, e outros ícones da identidade cultural mais associada à região de influência de

Belém, é praticamente inexistente, seja como prática cotidiana seja como elemento simbólico da tradição

musical.

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hegemônico da cidade de Belém e região. Dessa fase, as primeiras referências de que se têm

notícias aparecem em leis dos municípios de Vigia e Belém, no final do século XIX. Na

capital do estado do Pará, por exemplo, a Lei n. 1.028, de 5 de maio de 1880, do Código de

Posturas, tratava o carimbó da seguinte maneira: “É proibido, sob pena de 30.000 reis de

multa: (...) Fazer bulhas, vozerias e dar autos gritos (...). Fazer batuques ou samba. (...) Tocar

tambor, carimbó, ou qualquer outro instrumento que perturbe o sossego durante a noite”

(Código de Posturas de Belém apud SALLES; SALLES, 1969: 260). Nota-se, com isso, que a

lei municipal referia-se ao instrumento “carimbó” e o tratamento dado é muito parecido com o

que ocorreu com as manifestações da cultura popular negra ou mestiça no restante do Brasil

durante o século XIX. Uma postura eminentemente proibitiva e repressiva por parte das

autoridades e por importantes frações do mundo da cultura “erudita” (SANDRONI, 2001).

Na década de 1930, seguindo-se ainda essa mesma lógica, o jovem intelectual Jarbas

Passarinho referiu-se ao carimbó de modo a associá-lo às manifestações da religiosidade afro-

brasileira, dizendo que “a liturgia negra” [tinha] “esboçado no horizonte das crendices

brasileiras, painéis cheios de doloroso sentimento de idolatria”. Quanto ao instrumental do

carimbó, descrevia: “um tambor cilíndrico imitando sons dolentes que penetram a alma

rústica dos homens de cor” (PASSARINHO apud FIGUEIREDO, 2008: 224-225).2 Os termos

usados por Passarinho mostravam, desde aquela época, uma perspectiva conservadora no

campo da cultura, indicando que o pensamente social do contexto do modernismo local tinha

mais de uma faceta em relação à cultura popular.

Digo mais de uma faceta porque, ao mesmo tempo em que Jarbas Passarinho

escrevia, outros intelectuais demonstravam uma postura diferente em relação ao carimbó,

qualificando-o como manifestação da riqueza popular folclórica da região amazônica. É então

que temos o segundo momento do processo de “descoberta” do carimbó, inaugurado ainda

sob o pensamento modernista da geração de artistas como Gentil Puget, Waldemar Henrique,

Bruno de Menezes, entre outros.

Waldemar Henrique foi um dos primeiros artistas do mundo “erudito” a compor um

carimbó, em 1934.3 Anos depois, coube ao poeta Bruno de Menezes a tarefa de fazer um

breve registro “etnográfico” da música, em uma matéria para o jornal Folha do Norte, em

1948. A matéria surgia a pretexto de uma dúvida que existia na época sobre o verdadeiro

2 Outras informações sobre a fonte: Carimbó. Guajarina, v. 1, n. 5, 1937. 3 O carimbó pode ser encontrado em uma gravação recente, em: HENRIQUE, Waldemar. Waldemar inédito e

raro Henrique. Belém: SECULT-PA, 2005. Projeto Uirapuru, v. 14. 1 CD.

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termo referente ao “carimbó”, o nome do tambor. Mas, para além dessa questão, o texto trazia

uma descrição que mostrou ao público alguns elementos importantes e pouco conhecidos até

então.

Descreve-se o carimbó como um evento “folclórico”, uma prática existente no

campo, aparentemente pouco presente na capital do Pará: seria uma “manifestação de

ambientes tradicionais e do anonimato realizado por gentes do interior paraense (...)

canoeiros, pescadores, regatões, freteiros, moradores ribeirinhos”. Relataram-se as regiões por

onde era comum ser encontrado o carimbó: região atlântica do Salgado e cidades da ilha do

Marajó. Observa-se que suas informações tinham por base a visita de um grupo de carimbó da

cidade de Marapanim, interior do estado, à Belém. Tudo indica que, naquele período, boa

parte dos criadores de carimbó estava nas cidades do interior ou vivendo nas margens da

cidade de Belém, bem longe das matérias da imprensa e de outras fontes que tratavam da

música e da vida cultural da capital.4

No que diz respeito aos instrumentos do carimbó, são citados os “tabaques”,

“carimbós” ou “curimbós”, que seriam a base percussiva da música. Dada sua força, os

tambores sobrepujavam os demais instrumentos do conjunto. Em relação às origens étnico-

raciais do carimbó, dizia Menezes: “Estava viva a maneira do toque indígena no instrumento,

que tem ressonâncias africanas”, o que o levava a concluir o seu caráter mestiço. Isso também

porque Bruno de Menezes notou a aparência física dos músicos de carimbó: “todos morenos

acaboclados”. E, de outro lado, por conta da estrutura dos “conjuntos” de carimbó, que

mostravam, segundo ele, “evidente sincretismo musical, com as ‘jazz’ de instrumentos

heterogêneos”. Concluía dizendo que os apreciadores da música eram, sobretudo, homens e

mulheres de “pigmentação acusando resíduos raciais de nossa formação étnica”.5

4 A existência rural do carimbó, posteriormente, foi assimilada pela análise acadêmica. Alexandre Cunha

(CUNHA, 2003.) afirma, a este respeito, que, dançado nos terreiros da capital no final do século XIX, teria

ocorrido um processo de exclusão dessa música das grandes cidades para as áreas urbanas menores ou mesmo

para áreas bastante rurais, como Zona do Salgado, ilha do Marajó e região do baixo Amazonas. Eu tendo a

acreditar que se tratava muito mais de uma questão de visibilidade do carimbó para o mundo urbano, o mundo

do “centro” de Belém, e não uma ausência completa da música na periferia da cidade. Isso não me faz negar a

“exclusão” do carimbó e da cultura popular em geral. Parto do princípio de que a “hipermargem” de Belém do

Pará, com sua ampla ligação (fluxos e refluxos) cultural com os interiores do estado, sempre permaneceu como

um corredor seguro e aberto por onde o carimbó e outras manifestações da cultura popular puderam circular com

alguma liberdade, ou então se “aquilombar” em momentos de conjuntura desfavorável. Explico melhor a

definição de “hipermargem” e o seu papel como mediador da cultura popular na região de Belém do Pará em

outro trabalho: COSTA, 2013. 5 Entrevista a Bruno de Menezes. In: MENEZES, Bruno de. “Carimbó” a Mr. Colman traz dúvida sobre folclore.

Folha do Norte, Belém, 13 fev. 1958. Caderno 1, p. 3, 6 e 7.

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É interessante notar que as descrições posteriores não fugiriam muito de alguns

aspectos apresentados por esse depoimento. Considero que o texto de Bruno de Menezes

estabeleceu um modelo descritivo que permaneceu nas décadas seguintes. Depois dele, outros

folcloristas se dedicaram ao tema do carimbó, como Pedro Tupinambá em 19616 e depois em

1977,7 Vicente Salles e Marena Salles (SALLES; SALLES, 1969, op. cit.), José Ubiratan

Rosário8, entre outros.

Chegamos, então, ao terceiro momento da “descoberta” discursiva do carimbó.

Momento de sua “urbanização”, no sentido em que ele foi se territorializando aos poucos em

todo o conjunto urbano da cidade de Belém, a partir de sua incorporação pela indústria

cultural, pela assimilação no discurso de parte da intelectualidade artística e, sobretudo, pela

ação dos artistas populares e suburbanos de carimbó. Essa foi a fase em que o carimbó entrou

na agenda identitária da região, estabelecendo-se com símbolo comentado e debatido à

exaustão, como se verá a seguir. Foi a partir da década de 1970 que se estabeleceram as bases

simbólicas do “tema” carimbó no conjunto da sociedade local.

Nos anos 2000 teve andamento ainda um fenômeno que eu poderia considerar como

uma quarta fase da história do carimbó: o período da “patrimonialização” institucional. O

acontecimento foi fruto de um processo de mobilização da sociedade paraense, especialmente

a partir da criação da “Campanha Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro”, que reuniu artistas

do mundo do carimbó, intelectuais e irmandades religiosas e culturais de várias cidades do

Pará. A campanha começou a ser pensada em 2005, por ocasião da realização do 4º Festival

de Carimbó de Santarém Novo. Naquele momento se estabeleceu um diálogo entre a

Irmandade de Carimbó de São Benedito e o IPHAN Regional Pará/Amapá. Acompanhei

aqueles acontecimentos pela impressa e assisti aos últimos capítulos da trajetória que levaria

ao reconhecimento do carimbó como patrimônio cultural brasileiro. Esse fato foi consumado

durante a 76ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em Brasília, em 11 de setembro de

2014.9

6 TUPINAMBÁ, Pedro. Carimbó. Folha do Norte, Belém, 5 fev. 1961. Caderno 1, p. 6. 7 TUPINAMBÁ, Pedro. Carimbó. Espaço, Belém, ano 1, n. 2, nov. 1977. p. 20. 8 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24

fev. 1974. Caderno 3, p. 4. 9 Algumas informações sobre esse tema podem ser encontradas aqui: O país está em festa: Carimbó é Patrimônio

Cultural brasileiro. Disponível em:

<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=18607&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia

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Década de 1970 e os debates sobre o carimbó

Contudo, ao considerar esses vários momentos da história do carimbó, entendo que

nenhum período levou a um debate público tão amplo quanto a terceira fase, na qual o

carimbó saiu da condição de música interiorana e periférica/suburbana para a condição de

música comercial veiculada por rádios, TVs, discos e shows. O processo de assimilação do

carimbó à indústria cultural local/nacional nos anos 1970 levou a uma ampla discussão na

sociedade paraense em torno da ideia de “deturpação” daquele gênero musical. Foi o

momento de consolidação das duas principais tendências do carimbó, conhecidas como “pau-

e-corda” e “moderno”. No primeiro grupo estavam os que defendiam a “preservação” do

carimbó e valorizavam o modelo tradicional de se tocar e produzir, enquanto que no segundo

grupo ficaram aqueles que defendiam a sua “modernização” e propagavam o carimbó mais

“comercial” que se utilizava de instrumentos como guitarras, baixos e baterias (COSTA,

2010).

As discussões sobre o carimbó tinham ainda mais uma faceta, tema que mais me

interessa neste artigo: qual seria a origem étnico-racial do carimbó? Indígena, africano,

português e/ou caboclo? Essa era a pergunta que jornalistas, folcloristas, intelectuais,

produtores da música e a sociedade de modo geral faziam na década de 1970. Esse debate

teve uma relevância muito grande, superando a temática do meramente musical, na medida

em que, a partir de uma música, passou-se a discutir a formação do “povo” amazônico, que

seria, em última instância, o produtor/consumidor do carimbó. Redescobria-se a Amazônia

concomitantemente a uma “descoberta” do carimbó.

Muitas entrevistas, artigos, crônicas da impressa local preocuparam-se em dizer o

que afinal de contas seria o carimbó: “Quem dança samba é sambista. Quem dança carimbó é

o que? Carimbozeiro é uma boa palavra”, dizia-se em um jornal em 1973.10 Seria ele talvez “o

nosso jazz, sem escolas nem cultura, feito de imaginação e de talento” do povo?,

argumentava-se, em outro periódico, em 1972.11 Em que cidade ou região do estado do Pará o

carimbó teria surgido? Foram realizadas pesquisas sobre o carimbó das cidades de Irituia,

Capanema e Bragança pelo Projeto Rondon, em 1971, e as matérias foram veiculadas na

>. Acesso em: 20 abr. 2015; e: Carimbó – Patrimônio Cultural Brasileiro. Disponível em:

<http://campanhacarimbo.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 abr. 2015. 10 TRANSAS: o papagaio e um bicho inteligente. A Província do Pará, Belém, 27 mar. 1973. Caderno 2. 11 ALENCAR, Gualter Loiola de. A alma simples de carimbó. O Liberal, Belém, 13 ago. 1972. Caderno

Domingo, p. 2.

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imprensa.12 O mesmo ocorreu com o carimbó da cidade de Curuçá, objeto de reportagem do

jornal O Liberal em 1972.13

No que diz respeito ao grupo étnico-racial que teria criado a música, em artigo de

Serzedello Machado, de 1973, aparece a tese de que o carimbó seria fruto de influências

mistas das “culturas lusitanas, negras e ameríndias”. O autor do artigo fazia referência à fala

feita pela folclorista Maria Brígida sobre o assunto em um Congresso dos Tribunais de

Contas, que ocorreu em Belém naquele ano. Machado descreveu o carimbó de maneira bem

detalhada no que diz respeito às indumentárias usadas pelos dançarinos, aos instrumentos e ao

canto.14 Infelizmente, a tese da tripla contribuição de “raças” não foi explicada em detalhes

pelo autor do texto. Talvez isso tenha ocorrido porque a maioria dos “críticos” do carimbó

estivesse mais preocupada em saber se ele era mais “negro” ou mais “indígena”, além de

caboclo, obviamente!15

Em 1974, o debate se ampliou com a entrada de José Ubiratan Rosário, professor da

Universidade Federal do Pará. Em fevereiro daquele ano, ele publicou um artigo no jornal A

Província do Pará, intitulado Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”.16 O texto

começa por definir historicamente duas regiões econômicas que se implantaram na Amazônia

desde a colonização: uma de economia extrativista, na qual a presença do indígena seria

maior, e outra de economia agrária, que teria como principal braço de trabalho o negro. Estas

duas áreas compreendiam o que fora antes a província do Grão-Pará e Maranhão. Ubiratan

Rosário direcionou o seu estudo especificamente para a Amazônia Oriental, antes do processo

de expansão para o oeste. Com o estabelecimento de rotas de tráfico de escravo para essa

área, o negro se multiplicaria quantitativamente, “deixando qualitativamente a marca ainda

indelével de sua lúdica e sua coreografia no folclore amazônico, oriental, sobretudo”. Belém

assumiria, desse modo, o papel de centro irradiador de cultura da região e seria um dos

12 A este respeito, conferir: Rondon promove filmes sobre o carimbó: Irituia. A Província do Pará, Belém, 19

jan. 1971; “Rondon” documenta folclore regional. Folha do Norte, Belém, 2 fev. 1971. Caderno 1, p. 12. 13 ALENCAR, Gualter Loiola de. A alma simples de carimbó. O Liberal, Belém, 13 ago. 1972. Caderno

Domingo, p. 2. 14 MACHADO, Serzedello. Carimbó, dança do meu povo. A Província do Pará, Belém, 18 nov. 1973. Caderno

4, p. 2. 15 Observe-se que, apesar de a maioria dos textos se preocuparem muito mais com as influências negras e/ou

indígenas no carimbó - muito mais do que com uma influência europeia -, não foi raro que a tese das três raças

aparecesse. Anos antes da difusão massiva do carimbó, e, consequentemente, antes dos grandes debates sobre

esse tema, o escritor Monteiro Teixeira sinalizou essa questão em um poema intitulado “Bailado das três raças”,

publicado em 1960. Conferir: TEIXEIRA, Monteiro. Bailado das três raças. Amazônia, Belém, ano 6, n. 66, jun.

1960. 16 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24

fev. 1974. Caderno 3, p. 4.

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espaços onde a cultura negra se realizaria, sobretudo em áreas como o bairro do Umarizal,

onde havia forte presença dessa população. Segundo o pesquisador, a presença negra teria

deixado suas marcas na região em uma área que iria das redondezas da cidade de Belém até

São Luís do Maranhão.

Surgiria, então, a manifestação cultural que ficou conhecida como lundum. Essa

cultura musical negra teria passado por um processo de miscigenação e de assimilação à

cultura numericamente mais expressiva, a do caboclo. Havia um processo de mestiçagem já

existente desde o início da colonização, aquela do branco e do índio, que daria origem ao

caboclo. Apareceria agora o negro, tributando a essa cultura pré-existente alguns signos

novos. Porém, como ele se encontrava em menor número, a cultura negra acabaria sendo

assimilada pela cultura cabocla. O africano “se dilui até reduzir-se a uma percentagem cada

vez menor na demografia regional”, dizia. Para o autor, pesou também o fato de ter havido a

interrupção do tráfico negreiro para a Amazônia ainda no século XIX, o que teria contribuído

para a redução numérica dos negros e a consequente absorção da cultura negra nas novas

formas de música cabocla que surgiam. Assim Rosário explica esse processo histórico:

O caboclo – de cultura ainda indefinida entre a branca europeia e a amarela nativa

– herdará naturalmente por convívio e até por identificação de condição social e

econômica (classe ou status) o folclore negro, especialmente a lúdica e a

coreografia, em que traços culturais funcionalmente são assimilados pela nova

cultura que se elabora (a cabocla) mas onde os negros ou seus descendentes

mestiços mantêm a tradição ancestral africana da dança, do ritmo e sobretudo do

instrumento básico – o tambor, chamado “carimbó”, pelo africano.

A cultura negra, que se aclimatava nos trópicos e se irradiava para toda a região,

passaria por um duplo processo, influenciando e sendo influenciada, gerando, assim, o que

viria a ser depois o carimbó. O lundum, que apareceria pela presença negra, seria, na

interpretação de José Ubiratan Rosário, a base para o surgimento do carimbó. Tendo em vista

as vicissitudes do processo histórico local, o lundum iria transformar-se “ao calor da mudança

da dinâmica cultural” e seria “recriado” em duas outras formas distintas, o retumbão, gênero

ligado à Marujada de Bragança,17 e o carimbó propriamente dito, mais comum na região do

Salgado e na região guajarina. Neste momento, o carimbó já não seria mais o tambor de

origem negra, teria se tornado um “conjunto coreográfico de dança-instrumento-música”,

17 Dança de origem rural da região de Bragança, nordeste do estado do Pará. É dançada e cantada, apresentando

personagens fixos, como a Capitoa do Navio, o Piloto, o Mar-e-Guerra, o Embaixador e os Marujos. É ligada à

Festa de São Benedito, que inicia no dia 25 de dezembro nesta cidade, com cortejo, bailado e indumentária

peculiar. Uma das músicas mais importantes da manifestação é o retumbão, conhecido na região como retumbão

bragantino.

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constituído pela ação do negro e do caboclo a partir da inspiração do primeiro.18 Daí que,

resumindo sua tese, Rosário definiu o carimbó como elaboração cabocla de inspiração negra.

O problema final deste processo seria que, uma vez redescoberto o carimbó pela sociedade

urbana paraense, já que ele teria ficado “aquilombado” por longo período pelos interiores do

estado, ele passaria por um processo de deturpação, chegando assim em cidades como

Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo.

Meses depois do texto de José Ubiratan Rosário, entrou em cena um morador e

pesquisador do município de Cametá, argumentando que este ritmo era, na verdade, criação

daquela cidade. Mário Martins dizia à repórter do jornal O Liberal que todos estavam errados

a respeito do carimbó.19 Para começar, criticava a postura de artistas de fora do estado que

começavam a aparecer na grande imprensa nacional, declarando serem criadores da música

paraense. Citava o famoso apresentador de TV Flávio Cavalcante, o qual teria afirmado em

seu programa ser o carimbó originário do Caribe. Além deste, criticava também o cantor

“cafona” Waldick Soriano, que teria afirmado, em uma emissora de TV do Rio de Janeiro, ser

ele o verdadeiro inventor do carimbó.

Em sua interpretação, o verdadeiro nome da manifestação folclórica não seria nem

“corimbó”, nem “carimbó”, mas sim “curembó”. O curembó seria criação dos africanos,

trazido para a região primeiro como coro, já que os tambores não existiam ainda, os quais

teriam sido criados na Amazônia. Esse coro configurava-se na forma de “canções dolentes,

justificadas pelo cativeiro em que viviam os negros”. Para este pesquisador, o “cametaense” –

morador do município de Cametá –, em período remoto, teria se apropriado desse canto e

acrescentaria os tambores e a onça, que fariam a marcação do ritmo.20 Argumenta que o

batuque seria chamado, no início, de “samba” ou “curembó”, mais tarde tornado o “carimbó”,

com a corruptela do termo original, devido ao uso popular. Em resumo, para ele, o carimbó

era criação do povo cametaense e daí teria sido difundido para outras áreas do estado do Pará.

Pensando bastante diferente de Ubiratan do Rosário e de Mário Martins, o artista

plástico conhecido por Arerê tinha outra interpretação sobre o carimbó. Por volta de 1974,

teria feito pesquisas no interior do estado do Pará sobre este tema, particularmente, no

18 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24

fev. 1974. Caderno 3, p. 4. 19 Entrevista a Mário Martins. In: SILVA, Coely. Entrevista a Mário Martins: as verdades históricas do carimbó,

que é “curembó”. O Liberal, Belém, 23 jul. 1974. p. 8. 20 A “onça” é um pequeno tambor de couro, que tem uma extremidade aberta. No seu interior, existe uma vareta

fina que, grudada ao centro do couro, pela parte de dentro do tambor, é puxada com a mão e um pano molhado

para gerar um som forte, responsável pela marcação do ritmo.

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município de Curuçá. Para ele, o carimbó era, na verdade, uma manifestação do folclore

herdado diretamente dos índios da Amazônia, em sua pureza e originalidade, mas que, àquele

momento, já se apresentava “destruído parcialmente pela influência portuguesa” ou pelo que

ele chamava de “influência de alguns povos invasores de nossa terra”.21

Argumentava que a influência negra no Brasil estava em gêneros como samba,

lundum, merengue e frevo. Já o carimbó seria oriundo da Amazônia e, consequentemente, de

criação indígena. Essa música começaria a perder sua originalidade ainda no período colonial,

com a chegada dos primeiros jesuítas que iniciaram o processo de exploração da mão de obra

indígena. Mesmo assim, alguns grupos nativos, tais como os “Andirás”, teriam deixado como

herança manifestações culturais - entre elas o carimbó - que os padres jesuítas consideravam

como imorais.

A palavra carimbó teria sua origem também em um costume indígena. Seria o nome

dado tanto a um cipó como a uma árvore da Amazônia e significaria “tronco ou toro de pau”.

Sua origem etimológica viria do Tupi ou da língua geral falada na Amazônia no período

colonial. Era, na verdade, o “cury-bo” ou “curimbó”, que significaria exatamente o pau oco

ou furado.

Suas observações são bastante interessantes e detalhistas. Segundo suas afirmações,

os índios, à noite, alimentavam a fogueira no centro da aldeia com paus secos, reuniam-se à

sua volta para cantar e dançar ao som do curimbó, o pau oco revestido de couro em uma das

extremidades. Os temas cotidianos de sua aldeia eram os assuntos que se cantavam,

acompanhados do instrumento percussivo. Os índios dançavam formando enormes círculos ao

redor da fogueira e cantavam cobertos de pinturas feitas de urucum e jenipapo. O artista

plástico dizia que esse seria o “carimbó primitivo, puro e autêntico de nossos índios”, que

começava a sofrer a censura dos jesuítas e, mais tarde, passaria por modificações resultantes

tanto da presença branca como da presença negra na Amazônia.

A descrição de Ararê é tão detalhista que ele chega a dar informações minuciosas de

como seriam os instrumentos usados pelos indígenas nessa fase do “carimbó primitivo”. Os

instrumentos seriam compostos de uma flauta de imbaúba, uma espécie de maracá feito de

cabaças com pedrinhas de milho em seu interior, tambores de 2 metros de comprimento por

cerca de 50 cm de diâmetro e reco-reco de bambu com entalhes. Posteriormente, os tambores

21 Entrevista a Arerê. Carimbó, nem de Curuçá, nem de Marapanim, mas da Amazônia. O Liberal, Belém, 8 set.

1974. Caderno 2, p. 15.

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seriam reduzidos no processo de transformação do “carimbó primitivo”. Só muito tempo

depois instrumentos como viola e clarinete seriam introduzidos.

Em sua cronologia do carimbó, existiria o que ele chamou de nova fase, em um

momento já, aparentemente, de colonização, onde os índios costumavam sair do roçado e

realizar uma espécie de festa. Nela, era efetivado um ritual no qual se amarrava um índio a um

tronco, sob o efeito de bebida, e iam todos para a aldeia, onde o carimbó era tocado e ouvido a

longas distâncias. Esse ritual seria o “putirum” ou “mutirum”, com uma dança que já

apresentava diferenças em relação à praticada com o “carimbó primitivo”. Arerê posicionou-

se também quanto ao lugar de surgimento do carimbó. Para ele, em oposição ao que se falava

na imprensa, a música não era originária de nenhuma cidade em particular, já que ocorria na

Amazônia como um todo. Por fim, afirmava que a influência do negro não era verdadeira,

pelo menos não no “carimbó primitivo”, considerado pelo artista como exclusivamente

indígena.

É instigante pensar de onde aquele artista plástico tirou tantas informações sobre o

que ele chamou de “carimbó primitivo”, uma vez que ele não esclarece nada sobre suas

fontes.22 Posso, entretanto, arriscar uma hipótese. Vicente Salles e Marena Salles, no já citado

artigo publicado em 1969, já haviam feito conhecer um fragmento informativo de José

Veríssimo, que dava notícia de um ritual dos índios Maué em 1882. O ritual tinha

características muito próximos ao “carimbó primitivo” descrito no texto de Arerê. José

Veríssimo falava de uma dança chamada de “gambá”, cuja origem seria um instrumento com

o mesmo nome. Assim ele a descreve:

O gambá tira o nome do instrumento que nele serve: um cilindro de 1 metro de

comprimento, feito de madeira oca, em geral de molongó ou jutaí, com uma pele de

boi esticada em uma das extremidades à guisa de tambor, ficando a outra aberta.

Tocam-no assentados em cima, batendo com as mãos abertas sobre a pele. A

orquestra compunha-se de dois destes instrumentos e mais duas caixas a que

chamam tamborins, fazia um grande barulho pouco melódico que parecia ser muito

apreciado por eles. (VERÍSSIMO, 1889 apud SALLES; SALLES, 1968: 261).

No início dos anos 1970 o artigo de Vicente Salles e Marena Salles foi uma das mais

importantes fontes de pesquisa sobre o carimbó. No campo eminentemente acadêmico, ou

seja, para além das matérias dos jornais da imprensa diária, os autores também defendiam a 22 Em verdade o próprio artista é um tanto quanto obscuro para mim, uma vez que não encontrei informações

detalhadas sobre sua trajetória. Consta apenas que era natural de Pernambuco e que tinha predileção por temas

indígenas pré-coloniais e coloniais. Em minhas pesquisas não consegui identificar o nome oficial de Arerê.

Alguns dados sobre o artista podem ser acessados aqui: O artista plástico Arerê abre mostra sobre a cerâmica do

oeste do Pará. Disponível em: <http://paginadaffa.blogspot.com.br/2011/08/o-artista-plastico-arere-abre-

mostra.html>. Acesso em: 13 abr. 2015.

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tese do carimbó como herdeiro de tradições indígenas e mestiças, do passado, configurado, no

presente, como uma música de característica claramente “cabocla”. É possível que Arerê o

tenha lido neste período e, por meio das informações de José Veríssimo contidas naquele

texto, tenha se lançado a uma pesquisa no sentido de buscar as fontes indígenas do carimbó.

Porém suas informações não falam em índios Maué, e sim em índios “Andirás”. Os Maué,

descritos por José Veríssimo, habitavam a margem esquerda do rio Uariaú, afluente do

Andirá, na época, em região da província do Amazonas. Os Maué habitavam exatamente uma

região próxima ao rio “Andirá” e Arerê fala em índios “Andirás”. Estaria talvez aí a ligação

entre as afirmações de Arerê e o texto de José Veríssimo.

Seja como for, importa observar que seu olhar é bastante diferente de tudo o que

havia sido falado até então sobre o carimbó. Sua postura é em defesa de um “carimbó

primitivo”, que seria, segunda sua opinião, mais “autêntico” por ser feito apenas por índios.

Tanto portugueses como negros aparecem como povos invasores.

Assim, o debate em torno do carimbó insidia indiretamente sobre a história da

composição étnico-racial da Amazônia. Isso fica mais claro na fala de outro “crítico”, João da

Cruz Borges Neto, que escreveu artigo em 1974, no jornal A Província do Pará. Lá,

comparava a polêmica sobre a origem do carimbó à antiga polêmica sobre a “descoberta” do

Brasil. Assim dizia: “à imagem do que sucedeu com o descobrimento do Brasil, atribuindo-se

o feito a espanhóis, uns, e a portugueses, outros, a polêmica [estava] estabelecida, pelas

divergentes opiniões emitidas (...)”.23 Tentando encerrar o assunto, dizia que cidades como

Cametá, Marapanim, Curuçá e Vigia não estavam fazendo mais do que “dançar algo que não

passa de novidade antiga”, já que a origem do carimbó era mesmo indígena, o que já havia

sido relatado pelo sertanista Willy Aureli em suas viagens, em 1952, pelos rios Araguaia,

Xingu e Tapirapé. Nesses lugares, o sertanista teve contato com os índios Tapirapé e Carajá e

os viu dançar e tocar algo muitíssimo parecido com o carimbó. João da Cruz ficava também

ao lado de pessoas que pensavam como Ararê, defendendo a origem indígena do carimbó.

Nas décadas seguintes esse debate continuaria, mas desde então os seus termos já se

encontravam definidos e expostos a todos.

Negritude, indianeidade e caboclice: carimbó como música dos grupos subalternos

23 NETO, João da Cruz Borges. Novidade antiga. A Província do Pará, Belém, 27 out. 1974. Caderno 3, p. 6.

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Considero que na década de 1970 o debate acerca do carimbó se amplificou em

decorrência da incorporação do gênero à indústria cultural. Mas esse debate também

respondia a uma temática mais antiga e que ainda hoje permanece viva: o tema da

especificidade étnico-racial da identidade amazônica. Na verdade o fenômeno do carimbó

muitas vezes aparece apenas como um capítulo da história do “caboclo” como personagem

principal da ideia de “povo” local, a partir de discussões veiculadas desde pelo menos o final

do século XIX.24 Assim temos em Bruno de Menezes um carimbó de ribeirinhos “morenos

acaboclados”; em Ubiratan Rosário, um carimbó de inspiração negra, mas com elaboração

efetiva de caboclos; em Mário Martins um coro negro que depois foi apropriado e difundido

pelo “cametaense” (o caboclo da cidade de Cametá); e, em Vicente Salles e Marena Salles, no

artigo de 1969, uma música cabocla.

Considere-se ainda que, na década de 1970, o tema do carimbó também recebia

influências do contexto político-cultural da ditadura inaugurada em 1964. O “carimbó

caboclo” e “popular” satisfazia em parte a necessidade do estabelecimento de um “povo”

nortista, “autêntico”, frente a uma conjuntura política repressora, na qual muitos estudantes e

intelectuais se engajavam na crítica ao mercado e à indústria cultural como forma paralela e

concomitante de luta contra o regime político (COSTA, 2008).

O caboclo, sua música e sua cultura davam contornos inteligíveis a esse “povo”

desejado por parte da população paraense, seja a população especialmente engajada contra o

regime, seja o conjunto dos indivíduos que exerciam historicamente a função de

“consciência” da identidade local. O caboclo passava a ser tipificado e, consequentemente, a

ser vigiado para que permanecesse como “autêntico caboclo”, re-folclorizado no mesmo

momento em que o carimbó passava a ser amplamente veiculado nos meios de comunicação

de massa. Isso explica por um lado a defesa do carimbó “pau-e-corda” por alguns grupos,

assim como a eleição de um ser social “típico” com produtor deste carimbó. O legítimo

carimbó estaria associado ao “caboclo da gema”, como se vê mais uma vez na imprensa da

época:

Mas o bom mesmo de carimbó é José Zacarias, moço humilde, de 24 anos, caboclo

da gema e hábil na movimentação de braços e pernas, que sai requebrando e

rodando... se abaixa, levanta... arrasta a sandália e gira e volteia... um bamba,

24 Busquei fazer uma revisão desse tema em relação ao campo musical e da cultura popular a partir da

“hipermargem” de Belém do Pará. Conferir: COSTA, 2013, op. cit.. Apesar de a produção sobre o tema ser

bastante ampla, posso citar ainda algumas abordagens bastante relevantes, em: LIMA, 1999; RODRIGUES,

2006 e RODRIGUES, 2008; e, BOYER, 1999.

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enfim. (...) Magali, a cabocla de 14 anos, é outra que tem carimbó nos pés e no

sangue. Ela busca o parceiro... e se curva à direita, à esquerda, pra frente, pra

trás... bamboleia, gingando, dançando, suando, sorrindo... e lá vai carimbó, a noite

inteirinha.25

Essa associação do caboclo com o carimbó, ambos autênticos, explica, ainda, a

dificuldade em se aceitar esse “caboclo” não só como criador de um carimbó “moderno”, mas

também como criador permanente de uma cultural popular que é, ao mesmo tempo, de

consumo massivo. Sabe-se que em Belém outros gêneros musicais estabeleceram uma

tradição enraizada no gosto popular. Essa tradição pode ser definida como “brega”, que forma

um conjunto heterogêneo de ritmos que foram criados e/ou assimilados nas periferias da

cidade de Belém durante todo o século XX, em festas de “aparelhagens” sonoras, em rádios

populares que veiculavam a música “povão”, em “rádios” improvisadas de feiras e bairros de

periferia, em clubes de subúrbio, etc. (COSTA, 2011; COSTA, 2013, op. cit.). Nos anos 1970,

a esse efeito, muitos personagens que faziam parte do mundo do carimbó, seja na sua versão

“pau-e-corda” seja na sua versão “moderna”, também conviviam com práticas de festas

populares suburbanas onde as aparelhagens sonoras veiculavam tanto a musica

“autenticamente cabocla” como as músicas da indústria cultural. Em longo prazo o resultado

disso foi o aparecimento de gêneros musicais ditos “popularescos”, como a lambada, a

guitarrada, o brega e atualmente o tecnobrega.

No caso da cultura popular massiva que era produzida concomitantemente ao

carimbó, ela também acabava sendo avaliada pela noção de “caboclo autêntico”, sonhado e

desenhado como o ribeirinho, o interiorano idílico, no máximo o suburbano, o “povo” mestiço

originário das matas amazônicas. Neste sentido, muitas vezes o “caboclo” aparecia como um

herói engessado, onde sua legitimidade só era válida na medida em que esse caboclo fosse

“legitimamente caboclo”, puro, e não contaminado pelo mercado, pela indústria cultural, pelo

mundo urbano, etc.

Uma segunda questão importante é o fato de que outros personagens, por uma

presença física evidente, acabaram forçando sua entrada na tradição do carimbó e do

“caboclo”. Negros e indígenas se fizeram ouvir, mesmo que também eles estivessem um tanto

quanto “folclorizados” e tidos como personagens do passado. O índio de Arerê que teria

produzido o mais autêntico dos carimbós, um “carimbó primitivo”, de um tempo quase

mítico, é sempre um ser do passado. Consequentemente o índio do presente estaria ausente da

25 SIMÕES, Carlos. Na onda do carimbó. Folha do Norte, Belém, 4 jan. 1972. Caderno 2, p. 1.

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cultura local. A presença indígena, por mais que seja pronunciada por muitos, é, na prática,

silenciada.26 O negro também se fazia presente, mas se encontrava mestiçado ou subsumido

em uma cultura mais forte que seria a do caboclo, como mostra, por exemplo, o texto de

Ubiratan Rosário. Indiretamente o “caboclo”, mais uma vez, neutralizava outras tradições

raciais subalternas, a negra, que paradoxalmente lhe era formadora. A existência do “caboclo”

incorporava e enfraquecia uma potencial presença afro-indígena, uma vez que ele, como ser

hibrido, seria um depositário de uma cultura indígena/negra anterior somada à presença

branca, também anterior.

O “carimbó caboclo”, portanto, é apresentado como manifestação cultural

“autêntica”, que se queria pura, frente ao mercado, por um lado; mas é visto como híbrido, no

que diz respeito às questões raciais, por outro. Seria o resultado do contato de vários povos

(negros, indígenas e em menor medida brancos), mas que acabava por subsumir a herança

desses povos no presente da cultura musical. Tem-se, assim, em certa medida, um “povo” e

uma música racializados (ou talvez essencializados) na figura do caboclo frente ao mercado;

mas, ao mesmo tempo, ambos, música e criador, encontram-se desracializados no tempo

presente, em relação aos demais grupos formadores do povo local (particularmente negros e

indígenas). Essa visão impossibilita a desenho do caboclo como a representação do conjunto

subalternizado no longo contexto da colonização na Amazônia. De fato, o carimbó é a

expressão de uma cultura popular que foi sedimentada com a chegada de muitos povos

(incluindo aí o europeu, o migrante nordestino da época da borracha, etc.). Porém os agentes

principais da construção dessa cultura popular foram os grupos subalternizados dentro sistema

colonial e escravista, particularmente o indígena, o negro e o próprio caboclo. Na forma como

o caboclo foi retratado nos anos 1970, como o agente por excelência de um “povo”

amazônico “típico”, mesmo que também formado de outros povos subalternizados do passado

(negros e indígenas), perdeu-se parte da riqueza de experiências histórica advindas com a

expansão do carimbó. Na medida em que o carimbó se expandiu, e consequentemente foi

assimilado e narrado por outros agentes, seu caráter de música de povos subalternizados e

26 Fenômeno parecido pode ser encontrado no caso da Vila de Mazagão Velho no estado do Amapá, onde se

realizam duas importantes festas populares: o marabaixo e a festa de São Tiago. A primeira é marcadamente

negra e a segunda é vista como a herança da longínqua presença portuguesa. Entre a presença negra

“contemporânea” e a presença portuguesa em um passado remoto, a imagem do indígena se encontra

invisibilizada, tida como algo também distante, tanto no tempo como geograficamente, uma vez que esse

personagem “selvagem” seria apenas o habitante das matas longínquas. O limite deste texto não me permite

estabelecer uma comparação mais apurada sobre esses dois casos. Mais detalhes sobre Mazagão Velho, conferir:

BOYER, 2008.

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racializados no processo de colonização, tendeu a ser “tipificado” ou “folclorizado” na figura

de um ser híbrido e de certa forma “pacificador” das histórias de resistência e das marcas

raciais. Esse processo não foi uniforme em cada autor citado, alguns deles inclusive devem

ser vistos, em sua complexidade, como agentes que pensaram a Amazônia do ponto de vista

dos grupos racial e socialmente marginalizados: como é o caso de Bruno de Menezes e de

Vicente Salles.27 Mas no conjunto do pensamento sobre o carimbó a categoria “caboclo

autêntico” acabou predominando como modelo ideal na narrativa histórica de longo prazo.

Porém, negros, negras, homens e mulheres indígenas conformaram parte dessa

narrativa, que não só fala da história da música mas da história da cultura amazônica no

presente. Eles são ainda sujeitos que precisam de um discurso vivificador e presentificador no

contexto da história do carimbó e da cultura local. O caboclo é, assim, um “herói” (ou anti-

herói) complexo, que tanto narrou resistências como debilitou falas de sujeitos atualmente

invisibilizados.

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Belém, 2008.

27 No campo da poesia modernista, por exemplo, Bruno de Menezes foi o responsável por elevar ao primeiro

plano estético a presença da música e da cultura negra em obras como Batuque (1993), publicado originalmente

em 1930. No caso do campo historiográfico, no inicio da década de 1970, o negro ainda estava à espera de entrar

com vigor no cenário da cultura local. Esse trabalho foi feito no decorrer daquela década, em boa parte, por

conta das obras de Vicente Salles. O mesmo folclorista que tratou inicialmente a cultura do carimbó como uma

arte diretamente associada ao caboclo em seu texto de 1969 (SALLES; SALLES, 1969, op. cit.), mas tarde

escreveria obras hoje consideradas clássicas como O negro no Pará sob o regime de escravidão (2005),

publicada originalmente em 1971.

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