Carl g. Jung - Sobre a Vida Após a Morte

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    Sobre a Vida aps a Mortepor C.G. Jung

    O QUE TENHO a dizer a respeito do depois daqui, e a respeito da vida aps a morte,

    consiste totalmente de memrias, de imagens que vivi e de pensamentos que me atingiramcom vigor. Essas memrias de certa maneira esto subjacentes a todas as minhas obras;pois estas no passam fundamentalmente de tentativas, sempre renovadas, deproporcionar uma resposta questo da interao entre o aqui e o depois daqui. Noobstante, eu jamais escrevi algo expressamente sobre uma vida aps a morte; pois, se otivesse feito, eu teria tido que documentar as minhas idias, e no disponho de nenhummeio para fazer isso. Seja como fo r, gostaria de colocar agora essas idias.

    Mesmo agora, no posso fazer nada alm de contar estrias mitologizar. Talvez sejanecessrio estar-se prximo da morte para adquirir a liberdade necessria para falar sobreela. No que eu deseje que ns tenhamos uma vida aps a morte. Na verdade, eupreferiria no nutrir essas idias. Ainda, devo declarar, para dar realidade o que lhe devido, que, sem que eu deseje ou faa qualquer coisa nesse sentido, pensamentos dessanatureza se agitam em meu interior. No posso dizer se esses pensamentos soverdadeiros ou falsos, mas sei que eles l esto, e posso dar a eles expresso se eu no osreprimir por algum preconceito. O preconceito mutila e fere o fenmeno pleno da vidapsquica. E sei muito pouco a respeito da vida psquica para me sentir no direito ajust-lapor um conhecimento superior. O racionalismo crtico aparentemente eliminou, junto comtantas outras concepes mticas, a idia da vida aps a morte. Isso s pode ter ocorridoporque hoje a maioria das pessoas identifica-se quase que exclusivamente com a suaconscincia, e imaginam ser apenas aquilo que sabem a respeito de si mesmas. E, contudo,qualquer um que tenha um conhecimento superficial de psicologia pode ver quo limitado esse conhecimento. O racionalismo e o doutrinarismo so a doena de nosso tempo; eles

    pretendem dispor de todas as respostas.

    Mas ainda ser descoberta muita coisa que nossa presente viso teria consideradoimpossvel. Nossos conceitos de espao e tempo possuem uma validade apenasaproximada, e, portanto, h um amplo campo para desvios menores e maiores. Em vistade tudo isso, fico de ouvidos atentos aos estranhos mitos da psique, e olho com cuidadopara os variados eventos que atravessam meu caminho, sem me importar se eles seencaixam ou no nos meus postulados tericos.

    Infelizmente hoje o lado mtico do homem desprezado. Ele no pode mais criarfbulas. Como resultado disso muita coisa lhe foge, pois importante e salutar falar

    tambm de coisas incompreensveis. Essa conversa como se contar uma boa estriade fantasma, sentados perto da lareira e fuman do cachimbo.

    O qu os mitos ou estrias a respeito de uma vida aps a morte realmente significam,ou que tipo de realidade existe por trs deles, certamente no o sabemos. No podem osdizer se eles possuem alguma validade alm de seu indubitvel valor como projeesantropomrficas. Antes, devemos ter em mente com muita clareza que no existenenhuma forma possvel de chegarmos a uma certeza com respeito a coisas queultrapassam nossa compreenso.

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    No podemos visualizar um outro mundo regido por leis totalmente diferentes, porquevivemos em um mundo especfico que ajudou a moldar nossas mentes e a estabelecernossas condies psquicas bsicas. Estamos estritamente limitados por nossa estruturainata e, portanto, limitados, por todo nosso ser e pensar, a esse nosso mundo. Ohomem mtico, com certeza, demanda um ir alm disso tudo, mas o homem cientficono pode permitir isso. Para o intelecto, toda minha mitologizao no passa deespeculao ftil. Para as emoes, contudo, constitui uma atividade curativa e vlida;ela proporciona existncia uma graa da qual no gostaramos de nos vermosprivados. Tampouco existe uma boa razo pa ra isso.

    A pa raps icolog ia su sten ta que se trata de prova v lida de um ps-v ida o fa to dos mo rtosse manifestarem como fantasmas ou atravs de um mdium e comunicarem coisasde que somente eles poderiam ter conhecimento. Mas muito embora existam casos bemdocumentados dessa natureza, resta-nos ainda saber se o fantasma ou a voz idntico da pessoa morta ou se se trata de uma projeo psquica, e se as coisas ditasrealmente se derivam do falecido ou de conhecimento que pode estar presente noinconsciente.1

    Deixando de lado os argumentos racionais contra qualquer certeza nesses assuntos, nodevemos nos esquecer de que, para a maioria das pessoas, significa muito supor que

    suas vidas tero uma continuidade indefinida depois da sua atual existncia. Elas vivemcom maior sensibilidade, sentem-se melhores, e ficam mais em paz. Uma pessoa temsculos, tem um perodo inconcebvel de tempo sua disposio. Para que ento essacorreria sem sentido?

    Naturalmente, esse raciocnio no se aplica a todos. Existem algumas pessoas que nosentem nenhum anseio pela imortalidade, e que do de ombros para a idia de sesentarem em uma nuvem e ficarem tocando harpa durante dez mil anos! Existemtambm outras que foram to castigadas pela vida, ou que sentem tal desgosto por suaprpria existncia, que preferem de longe a cessao absoluta continuidade. Mas namaioria dos casos a questo da imortalidade to urgente, to imediata, e tambm to

    inextirpvel que devemos fazer um esforo para compor algum tipo de viso sobre ela.

    Mas como?

    Minha hiptese a de que podemos faz-lo com a ajuda de pistas que nos so enviadasdo inconsciente em sonhos, por exemplo. Geralmente desprezamos essas pistasporque estamos convencidos de que a questo no suscetvel de ter uma soluo. Emresposta a esse compreensvel ceticismo, sugiro as seguintes consideraes. Se halguma coisa que no possamos saber, devemos necessariamente abandon-la, tendo-acomo um problema intelectual. Por exemplo, no sei por que razo o universo veio existncia, e jamais saberei.

    Portanto devo abandonar essa questo tomando-a como um problema cientfico ouintelectual. Mas se me for oferecida uma idia a seu respeito em sonhos ou emconcepes mticas devo tomar nota disso. Eu deveria mesmo construir umaconcepo com base nessas pistas, muito embora ela permanea para sempre comouma hiptese que eu sei que no pode ser provada.

    1Com respeito a conhecimento absoluto no inconsciente, cf. Sincronicidade: Um Princpio Relacional Acausal,emA Estrutura e Dinmica da Psiqu (CW8, pp. 48-segs).

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    Um homem deveria poder dizer que fez seu mximo esforo para formar uma concepoda vida aps a morte, ou para criar alguma imagem dela mesmo que tenha queconfessar seu fracasso. No fazer isso uma perda vital. Pois a questo que lhe posta a imemorial herana da humanidade: um arqutipo, rico em vida secreta, que procuraacrescentar-se nossa vida individual para poder torn-la completa. A razo criafronteiras demasiado estreitas para ns, e gostaria de nos fazer aceitar apenas oconhecido e tambm isso com limitaes para vivermos em uma estruturaconhecida, tal como se tivssemos certeza de at que ponto a vida se estende. Naverdade, dia aps dia ns vivemos muito alm dos limites de nossa conscincia; semnosso conhecimento, a vida do inconsciente tambm est se dando dentro de ns.Quanto mais a razo crtica domina, tanto mais empobrecida se torna a vida; masquanto mais o inconsciente, e quanto mais de mito somos capazes de tornar consciente,tanto mais de vida integramos. A razo supervalorizada tem isso em comum com oabsolutismo poltico: sob seu domnio o indivduo empobrecido.

    O inconsciente ajuda nos comunicando coisas, ou fazendo aluses figurativas. Detmoutras formas, tambm, de nos informar de coisas que pela lgica no teramos apossibilidade de tomar conhecimento. Considere os fenmenos sincronsticos,premonies, e sonhos que se tornam realidade. Lembro-me de uma ocasio, durante aSegundo Guerra Mundial, quando eu voltava de Bollingen para casa. Eu tinha comigo um

    livro, mas no conseguia ler, porque to logo o trem comeou a se movimentar fuitomado pela imagem de algum se afogando. Tratava-se de uma memria de umacidente que ocorrera enquanto eu fazia o servio militar. Durante todo o percurso euno consegui me livrar dela. Parecia-me estranha e pensei, O que aconteceu? Ser queocorreu algum acidente?

    Desci do trem em Erienbach e andei em direo minha casa, ainda perturbado poraquela lembrana. Os filhos de minha segunda filha estavam no jardim. A famlia estavamorando conosco, tendo retornado de Paris Sua por causa da guerra. As crianasestavam de p olhando de forma alterada, e quando perguntei, O que foi, o queaconteceu? elas me disseram que Adrian, o mais novo dos g arotos, havia cado na gua

    no abrigo dos barcos. A gua muito profunda l e como no sabia nadar, ele quase seafogou. Seu irmo mais velho conseguiu pesc-lo para fora. Isso havia ocorridoexatamente no momento em que eu fora tomado pela recordao no trem. Oinconsciente havia me dado uma pista. Por que ele no poderia me informar tambm deoutras coisas?

    Tive uma experincia semelhante antes de uma morte na famlia de minha esposa.Sonhei que a cama de minha esposa era um poo profundo com paredes de pedra. Eraum tmulo, e de alguma forma havia uma sugesto de antiguidade clssica sobre ele.Ento ouvi um suspiro profundo, como se algum estivesse entregando a alma. Umafigura que parecia minha esposa estava sentada no poo e flutuava de forma

    ascendente. Usava uma tnica branca em que havia curiosos smbolos negros.Despertei, chamei minha esposa, e verifiquei que horas eram. Eram trs horas damanh. O sonho fora to curioso que pensei de imediato que ele poderia significar umamorte. s sete horas da manh chegaram as notcias de que um primo de minha esposahavia falecido s trs horas da man h.

    Freqentemente o pr-conhecimento est l, mas no o reconhecimento. E assim certafeita tive um sonho em que estava participando de uma festa de jardim. Vi minha irml, e aquilo me surpreendeu enormemente, pois ela morrera alguns anos antes. Umamigo meu falecido tambm estava presente. O resto eram pessoas ainda vivas. Vi

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    ento que minha irm estava acompanhada por uma senhora que eu conhecia muito.Mesmo no sonho eu cheguei concluso de que a senhora ia morrer. Ela j estmarcada, pensei. No sonho eu sabia exatamente quem era ela. Sabia tambm que elamorava em Basel.

    Mas to logo acordei, no consegui, apesar de fazer todo o esforo, me lembrar dequem era ela, apesar do sonho ainda estar vvido em minha mente. Fiz um quadromental de todas as pessoas que eu conhecia em Basel para ver se as imagens damem ria iriam tocar o sino. Nada!

    Algumas semanas ma is tarde, re cebi not c ias de que uma amiga minha ha via so fr ido umacidente fatal. Soube de imediato que ela era a pessoa que eu vira no sonho, mas quefora incapaz de identificar. A imagem que eu tinha dela era perfeitamente clara ericamente detalhada, pois fora minha paciente por um tempo considervel at um anoantes de sua morte. Em minha tentativa de me lembrar de quem era a pessoa do meusonho, contudo, sua imagem era a que no aparecia em minha galeria de retratos deconhecidos de Basel, embora que, por direito, devesse ser uma das primeiras. Quandopassa por experincias desse tipo - e descreverei outras como essas a pessoa adquirecerto respeito pelas potencialidades e artes do inconsciente. Deve-se, apenas,permanecer crtico e estar cnscio de que tais comunicaes podem possuir tambm um

    significado subjetivo.

    Elas podem estar consoantes com a realidade, e podem tambm no estar. Aprendi,contudo, que as vises que pude compor a partir de tais pistas do inconsciente tm sidomuito gratificantes. Naturalmente, no vou escrever um livro de revelaes a esserespeito, mas devo reconhecer que tenho um mito que me encoraja a olhar maisprofundamente para todo esse campo. Mitos so a forma mais antiga de cincia. Quandofalo de coisas aps a morte, estou falando a partir de uma estimulao interna, e noposso ir alm de contar-lhes sonhos e mitos ligados a esse tema.

    Naturalmente, pode-se questionar de sada que mitos e sonhos referentes continuidade

    da vida aps a morte no passam de meras fantasias compensatrias inerentes nossanatureza toda vida deseja a eternidade. O nico argumento que posso apresentar emresposta a isso o prprio mito.

    Contudo, h indicaes de que no mnimo uma parte da psique no est sujeita s leis doespao e tempo. Prova cientfica disso tem sido fornecida pelos bem conhecidosexperimentos de J. B. Rhine.2 Junto com numerosos casos de pr-conhecimentoespontneo, percepes no-espaciais, e assim por diante dos quais apresentei vriosexemplos da minha prpria vida esses experimentos provam que a psique s vezesfunciona fora da lei espao-temporal da causalidade. Isso indica que nossos conceitos deespao e tempo e, portanto, de causalidade tambm so incompletos. Um quadro

    completo do mundo exigiria o acrscimo de ainda uma outra dimenso; somente entopoderia a totalidade dos fenmenos receber uma explicao unificada. Da o racionalistainsistir at hoje que experincias parapsicolgicas realmente no existem; pois sua visode mundo seriamente afetada pela resposta que se d essa questo. Se tais fenmenosacontecem, o quadro racionalista do universo invlido, por se mostrar incompleto. Assima possibilidade de uma outra realidade por trs do mundo fenomnico torna-se umproblema inescapvel, e devemos encarar o fato de que nosso mundo, com seu tempo,espao e causalidade, relaciona-se com uma outra ordem de coisas por trs ou por baixo

    2Extra-sensory Perception (Boston, 1934); The Reach of the Mind (New York, 1947).

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    dele, em que nem aqui e agora nem mais cedo e mais tarde tm importncia. Estouconvencido de que no mnimo parte de nossa existncia psquica caracterizada por umarelatividade de espao e tempo. Essa relatividade parece aumentar, em proporo distncia da conscincia, em direo a uma condio absoluta de atemporalidade e a-espacialidade.

    No apenas meus prprios sonhos, mas tambm ocasionalmente os sonhos de outraspessoas, ajudaram-me a moldar, revisar ou confirmar minhas idias de uma vida aps amorte. Atribuo particular importncia ao sonho que uma aluna minha, uma mulher deseus sessenta anos, teve uns dois meses antes de sua morte. Ela havia penetrado noalm. Havia uma aula transcorrendo, e vrias mulheres j falecidas, suas amigas, estavamsentadas no banco da frente. Uma atmosfera de expectativa generalizada era dominante.Ela olhava ao redor na busca de um professor ou palestrante, mas no encontravaningum. Ento ficou claro que ela mesma era a palestrante, pois imediatamente aps amorte as pessoas tinham que apresentar o balano da experincia total de suas vidas. Osmortos estavam extremamente interessados nas experincias de vida que os recm-falecidos traziam consigo, exatamente como se os atos e experincias ocorrendo na vidaterrena, no espao e tempo, fossem os decisivos.

    De qualquer maneira, o sonho descreve uma platia das mais incomuns cuja composio

    dificilmente seria encontrada na terra: pessoas ardorosamente interessadas nos resultadospsicolgicos finais de uma vida humana que no foi notvel em qualquer aspecto, nomais do que as concluses que podiam ser dela extradas para nosso modo de pensar.Se, contudo, a platia existisse em um estado de no-tempo relativo, ondeterminao, evento e desenvolvimento tivessem se tornado conceitos questionveis,as pessoas poderiam muito bem estar interessadas precisamente naquilo que faltava emsua prpria condio.

    Quando teve esse sonho a senhora tinha medo da morte e fez seu mximo esforo paradefender-se de quaisquer pensamentos relativos a ela. No obstante, a morte uminteresse importante, especialmente para uma pessoa em envelhecimento. Uma questo

    categrica est lhe est sendo colocada, e ela est na obrigao de respond-la. Para issoa pessoa deveria dispor de um mito sobre a morte, pois a razo nada lhe mostra alm dopoo escuro ao qual est descendo. O mito, contudo, pode invocar outras imagens paraela, imagens teis e enriquecedoras da vida na terra dos mortos. Se a pessoa acreditanelas, ou as recebe com alguma dose de crena, est sendo to certa ou to erradaquanto algum que no acredita. Mas enquanto o homem que desespera marcha emdireo ao nada, aquele que depositou sua f no arqutipo segue as trilhas da vida e vivedireto para sua morte. Ambos, com certeza, permanecem na incerteza, mas um vivecontra seus instintos, o outro vive com eles.

    As figuras do inconsciente tambm so desinformadas, e precisam do homem, ou de

    contato com a conscincia, para poderem chegar ao conhecimento. Quando comecei atrabalhar com o inconsciente, descobri-me muito envolvido com as figuras de Salom eElias. Elas ento retrocederam, mas depois de uns dois anos reapareceram. Para minhaenorme surpresa, estavam completamente inalteradas; falavam e agiam como se nadahouvesse ocorrido no intervalo. Na verdade as coisas mais incrveis tinham ocorrido naminha vida. Tive, por assim dizer, de comear tudo de novo, para dizer a eles tudo o queestivera acontecendo e lhes explicar coisas. Na poca, fiquei muito surpreso com essasituao. Somente mais tarde entendi o que acontecera: no intervalo, os dois haviammergulhado de volta no inconsciente e em si mesmos eu poderia da mesma forma dizercom adequao que eles mergulharam na atemporalidade. Eles permaneceram fora de

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    contato com o ego e com as circunstncias mutantes do ego, e, portanto, ignoravam oque havia acontecido no mundo da conscincia.

    Muito cedo eu aprendera que me era necessrio instruir as figuras do inconsciente, ouaquele outro grupo que frequentemente indistinguvel delas, os espritos dos falecidos.A primeira vez em que experimentei isso foi em uma viagem de bicicleta pelo norte daItlia que fiz com um amigo em 1910. Na volta para casa pedalamos de Pavi a Arona, naparte inferior do Lago Maggiore, e passamos a noite l. Pretendamos pedalar ao longodas margens do lago e em seguida passar por Tessin e chegar a Faido, onde pegaramoso trem para Zurique. Mas em Arona tive um sonho que alterou nossos planos.

    No sonho eu estava em uma reunio de distintos espritos de sculos anteriores; osentimento era semelhante ao que tive mais tarde em relao aos ancestrais ilustres notemplo de rocha negra da minha viso de 1944. A conversa era realizada em latim. Umcavalheiro com uma peruca longa, cacheada dirigiu-se a mim e formulou uma perguntadifcil, cuja essncia no consegui lembrar depois de despertar. Eu o entendi, mas notinha domnio suficiente da lngua para responder-lhe em latim. Senti-me toprofundamente humilhado por esse fato que a emoo me fez despertar.

    No exato momento do despertar lembrei-me do livro em que eu estava ento trabalhando,

    Smbolos e Transformaes da Libido, e tinha tais sentimentos de inferioridade em relao questo no respondida que imediatamente peguei o trem para casa para voltar aotrabalho. Ter-me-ia sido impossvel continuar a viagem de bicicleta e perder outros trsdias. Eu tinha de trabalhar, para encontrar a resposta.

    Foi somente anos mais tarde que entendi o sonho e minha reao. O empelucadocavalheiro era uma espcie de esprito ancestral, ou esprito dos mortos, que havia medirigido perguntas em vo! Era ainda muito cedo, eu ainda no tinha chegado to longe,mas tinha um sentimento obscuro de que trabalhando em meu livro eu estariarespondendo pergunta que me fora feita. Ela fora feita, por assim dizer, por meusantepassados espirituais, na esperana e expectativa de que aprenderiam o que no

    puderam descobrir durante seu tempo na terra, pois a resposta primeiro teria que sercriada nos sculos que se seguiram. Se pergunta e resposta j existissem na eternidade,sempre tivessem estado l, nenhum esforo da minha parte teria sido necessrio, e tudopoderia ter sido descoberto em qualquer outro sculo. Parece haver conhecimentoilimitado presente na natureza, verdade, mas ele pode ser compreendido pelaconscincia apenas quando chega o momento certo. O processo, presumivelmente, como aquilo que ocorre na psique individual: um homem pode passar muitos anos comuma suspeita de alguma coisa, mas s a capta claramente em um momento particular.

    Mais tarde, quando escrevi os Sete Sermes aos Mortos, mais uma vez foram os mortosque me dirigiram questes cruciais. Eles vieram assim o disseram de volta de

    Jerusalm, onde no encontraram o que procuravam. Isso me surpreendeuenormemente na poca, pois de acordo com os pontos de vista tradicionais, os mortos sopossuidores de grande conhecimento. As pessoas tm a idia de que os mortos sabemmuito mais do que ns, pois a doutrina crist ensina que no ps-vida ns deveremos verface a face. Aparentemente, contudo, as almas dos mortos sabem apenas o que sabiamno momento da morte, e nada alm daquilo. Da seu esforo em penetrar na vida paracompartilhar do conhecimento dos homens. Frequentemente tenho um sentimento de queeles esto bem atrs de ns, esperando para ouvir a resposta que vamos dar a eles, e queresposta vamos dar ao destino. Parece-me que como se eles fossem dependentes dosvivos para receber respostas s suas questes, isto , daquelas pessoas que sobreviveram

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    a eles e existem em um mundo de mudana; como se a oniscincia, ou como eu poderiacoloc-la, a oni-conscincia, no estivesse sua disposio, mas pudesse fluir apenas paraa psique dos vivos, para um alma presa a um corpo. A mente do vivo parece, portanto,guardar uma vantagem em relao dos mortos em no mnimo um ponto: na capacidadede atingir cognies claras e decisivas. Tal como o vejo, o mundo tridimensional no tempoe espao como um sistema de coordenadas; o que est aqui separado em coordenadase abscissas pode aparecer l, no no-espao-atemporalidade, como uma imagemprimordial com muitos aspectos, talvez como uma nuvem difusa de cognio cercando umarqutipo. Ao mesmo tempo um sistema de coordenadas necessrio para que sejapossvel qualquer distino de contedos discretos. Qualquer operao desse tipo nosparece impensvel em um estado de oniscincia difusa, ou, como pode ocorrer, deconscincia sem sujeito, sem demarcaes espao-temporais. A cognio, como agerao, pressupe uma oposio, um aqui e l, um acima e abaixo, um antes e depois.Se fosse para haver uma existncia consciente aps a morte, ela teria, assim me parece,que continuar no nvel de conscincia atingido pela humanidade, que em qualquer idadepossui um limite superior, embora que varivel. Existem muitos seres humanos que portodas as suas vidas e no momento de suas mortes ficam aqum de suas prpriaspotencialidades e ainda mais importante aqum do conhecimento que foi trazido conscincia por outros seres humanos durante suas prprias vidas.

    Da sua demanda por alcanar na morte aquela parcela de conhecimento que falharam emconquistar em vida.Cheguei a essa concluso pela observao de sonhos sobre os mortos. Sonhei uma vezque fazia uma visita a um amigo que morrera umas duas semanas antes. Em vida, esseamigo nunca desposara nada alm de uma viso convencional do mundo, epermanecera preso em sua atitude irrefletida. No sonho sua casa ficava em umamontanha semelhante montanha Tullinger perto de Basel. As paredes de um velhocastelo cercavam uma praa consistindo de uma pequena igreja e algumas poucasconstrues menores. Ela me fazia lembrar da praa em frente do castelo de Rappe rswil.Era outono. As folhas das antigas rvores haviam se tornado douradas, e toda a cenaestava transfigurada por uma suave luz do sol. Meu amigo estava sentado a uma mesa

    com sua filha, que havia estudado psicologia em Zurique. Eu sabia que ela falava comele de psicologia. Ele estava to fascinado pelo que ela estava dizendo que me saudouapenas com um ligeiro aceno de mo, como que dizendo: No me perturbe. Asaudao era ao mesmo tempo uma despedida. O sonho me disse que agora, de umamaneira que de fato permanece incompreensvel para mim, ele foi solicitado a percebera realidade de sua existncia psquica, o que ele nunca fora capaz de fazer durante suavida.

    Tive outra experincia da evoluo da alma aps a morte quando mais ou menos umano aps a morte de minha esposa subitamente despertei uma noite e percebi queestivera com ela no sul da Frana, na Provena, e passara um dia inteiro com ela. Ela

    estava empenhada l em estudos do Graal. Isso me pareceu significativo, pois elamorrera antes de finalizar sua obra sobre e sse tema. A interpretao no nvel subjetivo de que minha anima ainda no terminara o trabalho que tinha a fazer no fornecianada interessante; sei muito bem que ainda no terminei com isso. Mas o pensamentode que minha esposa estava continuando aps a morte a trabalhar em seu maiordesenvolvimento espiritual qualquer que seja a concepo disso soou-mesignificativo e teve um significado de confirmao pa ra mim.

    Idias desse tipo so, de fato, imprecisas e proporcionam um quadro errado, como umcorpo projetado em um plano ou, inversamente, como a construo de um modelo

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    quadridimensional a partir de um modelo tridimensional. Elas usam os termos de ummundo tridimensional para se representarem para ns. A matemtica passa por grandesdores para criar expresses para relaes que ultrapassam a compreenso emprica. Deforma muito parecida, super-importante para uma imaginao disciplinada construirimagens de intangveis por meio de princpios lgicos e com base em dados empricos,ou seja, na evidncia de sonhos. O mtodo empregado o que chamei de mtodo daafirmao necessria. Ele representa o princpio da amplificao na interpretao desonhos, mas pode ser mais facilmente ser demonstrado pelas afirmaes implcitas emnmeros inteiros simples.

    O um, como o primeiro numeral, unidade. Mas tambm a unidade, o Uno, Total-(un)idade, individualidade e no-dualidade no um numeral, mas um conceitofilosfico, um arqutipo e atributo de Deus, a mnada. totalmente adequado que ointelecto humano deva fazer essas afirmaes; mas ao mesmo tempo o intelecto determinado e limitado por sua concepo de unidade e suas implicaes. Em outraspalavras, essas afirmaes no so arbitrrias. Elas so governadas pela natureza daunidade e, portanto, so afirmaes necessrias. Teoricamente, a mesma operaolgica poderia ser realizada para cada uma das seguintes concepes de nmero, masna prtica o processo logo chega a termo por causa do rpido aumento emcomplicaes, que se tornam demasiado numerosas para serem tratadas.

    Cada unidade adicional introduz novas propriedades e novas modificaes. Assim, umapropriedade do nmero quatro que as equaes de quarto grau podem ser resolvidas,ao passo que equaes do quinto grau no podem. A afirmao necessria do nmeroquatro, conseqentemente, a de que, entre outras coisas, um pice esimultaneamente o fim de uma ascendente anterior. Como com cada unidade adicionaluma ou mais propriedades matemticas aparecem, as afirmaes atingem talcomplexidade que no podem mais ser formuladas.

    A srie in finita de nm eros natura is co rresponde ao nmero in fin ito de cr iatu ra sindividuais. Essa srie de forma semelhante consiste de indivduos, e as propriedades

    mesmo dos seus primeiros dez membros representam se que representam algumacoisa uma cosmogonia abstrata derivada da mnada. As propriedades dos nmerosso, entretanto. Simultaneamente propriedades da matria, razo pela qual certasequaes podem antecipar seu comportamento.

    Portanto sugiro que afirmaes outras que as matemticas (i.e., afirmaes implcitasem natureza) so de forma semelhante capazes de apontar para realidadesirrepresentveis alm de si mesmas tais como, por exemplo, aqueles produtos daimaginao que desfrutam de aceitao universal ou so distinguidos pela freqncia desua ocorrncia, como toda classe de motivos arquetpicos. Da mesma maneira que nocaso de alguns fatores em equaes matemticas dos quais no podemos dizer a que

    realidades fsicas correspondem, o mesmo ocorre no caso de alguns produtosmitolgicos dos quais no sabemos de incio a que realidades psquicas se referem.Equaes que ditam a turbulncia de gases aquecidos existiram muito antes dosproblemas desses ga ses terem sido investigados com preciso. De forma semelhante, deh muito estamos na posse de mitologemas que expressam a dinmica de certosprocessos subliminares, embora esses processos s houvessem recebido nomes emtempos muito recentes.

    A mx imo conhe cimen to qu e foi alcanado em qu alquer lu gar form a, assim me pa rece , olimite superior do conhecimen to que os mortos podem a lcanar. Talvez essa seja a razo

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    pela qual a vida terrena de to alto significado, e porque o corre de a quilo que um serhumano traz consigo no momento de sua morte seja to importante. Somente aqui, navida na terra, onde os opostos se encontram, pode o nvel geral de conscincia serelevado. Essa parece ser a tarefa metafsica do homem que ele no pode levar a cabosem mitologizar. O mito o natural e indispensvel estgio intermedirio entre oinconsciente e a cognio consciente. verdade que o inconsciente sabe mais do que aconscincia; mas o conhecimento de um tipo especial, o conhecimento na eternidade,geralmente sem referncia ao aqui e agora, no expresso em linguagem do intelecto.Apen as quando ns dei xamo s suas afirma es ampl if ica rem-se, co mo fo i mostradoacima pelo exemplo dos numerais, ele entra na abrangncia de nossa compreenso;somente ento um novo aspecto se torna perceptvel para ns. Esse processo convincentemente repetido em toda anlise de sonho bem sucedida. por isso que to importante no ter nenhuma opinio preconcebida, doutrinria a respeito dasafirmaes feitas pelos sonhos. To logo uma monotonia de interpretao nos atinge,sabemos que nossa abordagem se tornou doutrinria e conseqentemente estril.

    Embora no haja maneira de organizar prova vlida da continuao da alma aps amorte, existem no obstante experincias que nos deixam pensativos. Considero-ascomo pistas, e no pretendo atribuir a elas o significado de insights.

    Uma noite eu estava deitado pensando na morte sbita de um amigo cujo funeral tiveralugar no dia anterior. Eu estava profundamente consternado. Subitamente senti que eleestava no quarto. Parecia-me que ele estava ao p da minha cama e me pedia para ircom ele. No tive o sentimento de uma apario; antes, era uma imagem visual internadele, que expliquei para mim mesmo como um a fantasia. Mas com toda honestidade tivede perguntar a mim mesmo, Tenho alguma prova de que isso uma fantasia? Suponhaque no seja uma fantasia, suponha que o amigo realmente esteja aqui e resolvi que eleera somente uma fantasia isso no seria um ato abominvel da minha parte? E aomesmo tempo eu dispunha de poa prova de que ele ficou diante de mim como umaapario. Ento disse para mim mesmo, A prova no est aqui nem l! Em vez deexplic-lo como sendo uma fantasia, eu poderia muito bem conceder-lhe o benefcio da

    dvida e para fins de experimentao credit-lo com realidade. No momento em quetive esse pensamento, ele foi para a porta e acenou para mim para que oacompanhasse. Ento eu ia ter que jogar com ele! Aquilo era uma coisa com a qual euno contava. Tive de repetir meu argumento para mim mesmo mais uma vez. Somenteento o segui em minha imaginao.

    Ele me guiou para fora da casa, para o jardim, para a rua e finalmente para sua casa.(Na realidade ficava a vrias centenas de jardas da minha.) Entrei, e ele me conduziu aseu estdio. Subiu em uma banqueta e me mostrou o segundo de cinco livros de capavermelha que estavam na segu nda prateleira contando do alto para baixo. Ento a visose desfez. Eu no estava familiarizado com sua biblioteca e no sabia que livros ele

    possua. Certamente eu jamais poderia ter lido l de baixo os ttulos dos livros que elaapontara para m im na segu nda prateleira a partir do alto.

    Essa experincia pareceu-me to curiosa que na manh seguinte fui at sua viva eperguntei-lhe se poderia consultar um livro na biblioteca de seu marido. Com todacerteza, havia uma banqueta aos ps da prateleira tal qual a que eu estivera em minhaviso, e muito antes de eu me aproximar pude ver os cinco livros de encadernaovermelha. Subi na banqueta para poder ver seus ttulos. Eram tradues das novelas deEmile Zola. O ttulo do segundo volume era O Legado dos Mortos. O contedo

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    pareceu-me de pouco interesse. Apenas o ttulo era extremamente significativo emrelao a essa experincia.

    Igualmente importantes para mim foram as experincias dos sonhos que tive antes damorte de minha me. Notcias de sua morte me chegaram enquanto eu estava emTicino. Fiquei profundamente chocado, pois elas chegaram totalmente de sbito, deforma inesperada. Na noite anterior sua morte eu tivera um sonho assustador. Euestava em uma floresta densa, sombria; rochas fantsticas, gigantescas jaziam em meioa enormes rvores de selva. Era uma paisagem herica, primordial. Subitamente ouvium assobio agudo que parecia ressoar por todo o universo. Meus joelhos tremeram.Ento ocorreram rudos em meio aos arbustos, e de seu meio irrompeu um co-lobogigantesco com uma mandbula assustadora, escancarada. sua viso o sangue gelou-me nas veias. Ele passou por mim e eu subitamente soube que o Caador Selvagemhavia mandado que ele levasse embora uma alma humana. Despertei mortalmenteaterrorizado, e na manh seguinte recebi as notcias do passamento de minha m e.

    Dificilmente um sonho me tocou tanto, pois considerao superficial ele parecia dizerque o demnio a havia feito prisioneira. Mas, para ser preciso, o sonho dizia que fora oCaador Selvagem, o Grnhult, ou O que Usa o Chapu Verde, quem havia caadocom seus lobos naquela noite era a estao das tempestades Fhn em janeiro. Fora

    Wotan, o deus dos antepassados alemes, que havia reunido minha me aos seusancestrais negativamente horda selvagem, mas positivamente slig lt, o povoabenoado. Foram os missionrios cristos que transformaram Wotan em um demnio.Em si ele um importante deus um Mercrio ou Hermes, como os romanoscorretamente perceberam, um esprito da natureza que voltou vida no Merlin da lendado Graal e tornou-se, como o spiritus Mercurialis, o procurado arcanum dos alquimistas.Assim o sonho diz qu e a alma de minha me fo i levada para aquele terr itr io ma ior doself que fica alm do segmen to da moralidade crist, para aquela totalidade de naturezae esprito e m que conflitos e contradies so resolvidos.

    Fui para casa imediatamente, e enquanto viajava no trem noturno tive um sentimento

    de grande tristeza, mas o fundo do meu corao eu no podia estar de luto, e isso poruma estranha razo: durante toda a jornada eu ouvia continuamente msica de dana,riso e regozijo, como se um casamento estivesse sendo celebrado. Isso contrastavaviolentamente com a impresso devastadora que o sonho me causara. Aqui haviamusica alegre para danar, risos animados, e era impossvel ceder totalmente minhatristeza. Repetidamente isso chegou a ponto de quase me vencer, mas no momentoseguinte eu me veria mais uma vez absorvido pelas alegres melodias. Um lado meutinha um sentimento de calor e alegria, e o outro de terror e dor; eu era jogado para afrente e para trs entre essas emoes con trastantes.

    Esse paradoxo pode ser explicado se supormos que em um momento a morte estava

    sendo representada do ponto de vista do ego, e no momento seguinte, do ponto devista da psique. No primeiro caso a coisa aparecia como uma catstrofe; como ela tofrequentemen te nos atinge, como se poderes perversos e impiedosos tivessem posto fima uma vida humana.

    E assim a morte realmente uma poro terrvel de brutalidade; no h sentido emse pretender o contrrio. Ela brutal no apenas como um evento fsico, mas muitomais psiquicamente: um ser humano alijado de ns, e o que resta a imobilidadegelada da morte. No h mais nenhuma esperana de um relacionamento, pois todas aspontes foram destrudas de um s golpe. Aqueles que merecem uma vida longa so

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    suprimidos na flor da idade e gente que no serve para nada vive para colher uma idadeavanada. Essa uma realidade cruel que no temos nenhum direito de evitar. Aexperincia real da crueldade e arbitrariedade da morte pode nos amargurar tanto aoponto de nos levar a concluir que no existe um Deus misericordioso, no existe justiae no existe bondade.

    De um outro ponto de vista, contudo, a morte parece um evento alegre. luz daeternidade, ela um matrimnio, um mysterium coniunctionis. A alma alcana, porassim dizer, a metade que lhe falta, alcana a totalidade. Nos sarcfagos gregos oelemento alegre era representado por meninas bailarinas, nos tmulos etruscos porbanquetes. Quando o piedoso cabalista Rabi Simo ben Jochai morreu, seus amigosdisseram que ele estava celebrando seu casamen to. At hoje hbito em muitas regiesse fazer um piquenique nos tmulos no dia de finados. Esses costumes expressam osentimento de que a morte realmente uma o casio festiva.

    Vrios me ses an tes da morte da minha me , em se tembro de 1922, tive um sonho qu ea anunciou. Ele se referia ao meu pai, e causou-me uma impresso profunda. Eu nosonhava com meu pai desde sua morte em 1896. Agora ele aparecia mais uma vez emum sonho, como se tivesse voltado de uma longa viagem. Parecia rejuvenescido e sedespojara de sua aparncia de autoritarismo paterno. Fui para minha biblioteca com ele,

    e fiquei muito contente com a perspectiva de descobrir o que ele estivera fazendo. Eutambm esperava com particular alegria a oportunidade de apresentar a ele minhaesposa e filhos, de mostrar-lhe minha casa e de contar-lhe tudo o que me acontecera eem que eu me tornara naquele intervalo. Eu queria tambm falar-lhe a respeito do meulivro sobre tipos psicolgicos, que fora recentemente publicado. Mas rapidamente vi quetudo isso seria inoportuno, pois meu pai parecia preocupado. Aparentemente ele queriaalgo de mim. Senti isso com muita clareza, e assim me contive de falar sobre meusprprios interesses.

    Ele ento me disse que como eu era afinal de contas um psiclogo, ele gostaria deconsultar-me a respeito de psicologia marital. Preparei-me para fazer-lhe uma longa

    explanao sobre as complexidades do casamento, mas nesse ponto acordei. Noconsegui entender o sonho adequadamente, pois jamais me ocorreu que ele pudesse sereferir morte da minha me. S entendi isso quando ela morreu subitamente emjaneiro de 1923.

    O casamento de meus pais no foi um casamento feliz, mas cheio provas e dificuldadese teste de pacincia. Ambos cometeram os enganos tpicos de muitos casais. Meu sonhofoi um vaticnio da morte de minha me, pois aqui estava meu pai que, aps umaausncia de vinte e seis anos, queria perguntar a um psiclogo as descobertas einformaes mais recentes sobre problemas maritais, pois ele em breve teria de retomarseu relacionamento. Evidentemente ele no obtivera nenhuma melhor compreenso em

    seu estado atemporal e assim tinha de apelar para algum entre os vivos que,desfrutando dos benefcios de novos tempos, poderia dispor de uma nova abordagem daquesto.

    Essa era a mensagem do sonho. No resta dvida de que eu poderia ter descobertomuito mais pesquisando seu significado subjetivo mas por que tive esse sonho logoantes da morte da minha me, que no previ? Ele claramente se referia ao meu pai, emrelao a quem eu senti uma simpatia que se aprofundou medida que eu ficava maisvelho.

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    Como o inconsciente, como resultado de sua relatividade espao-temporal, possuimelhores fontes de informao que a mente consciente que s tem percepessensoriais sua disposio dependemos para nosso mito de vida aps a morte dasmseras pistas proporcionadas por sonhos e revelaes espontneas semelhantes doinconsciente. Como eu j afirmei, no podemos atribuir a essas aluses o valor deconhecimento, muito menos de prova. Elas podem, contudo, servir de base adequadapara amplificaes mticas; elas proporcionam ao intelecto experimentante a matriaprima que indispensvel para a sua vitalidade. Extirpe o mundo intermedirio daimaginao mtica e a mente se torna presa de rigidez doutrinria. Por outro lado,demasiado trfico com esses germes de mito perigoso para mente fracas esugestionveis, pois elas so levadas a tomar vagas insinuaes por conhecimentosubstancial, e a hipostatizar meros fan tasmas.

    Um mito amplamente conhecido do alm formado pelas idias e imagens centradas nareencarnao. Em um pas cuja cultura intelectual altamente complexa e muito maisantiga que a nossa estou, de fato, me referindo ndia a idia de reencarnao to aceita como certa como, entre ns, a idia de que Deus criou o mundo, ou de queexiste um esprito regente. Os indianos cultos sabem que ns no compartilhamos suasidias a esse respeito, mas isso no os perturba. De acordo como o esprito do Oriente,a sucesso de nascimento e morte vista como uma continuidade sem fim, como uma

    roda eterna girando para sempre sem uma meta.

    O homem vive e alcana o conhecimento e morre e comea de novo do incio. Somentecom o Buda emerge a idia de uma meta, nomeadamente a superao da existnciaterrena.

    As nece ssidades m ticas do oc iden ta l exigem uma cosmog onia evolu cionr ia co m umprincpio e uma meta. O ocidental rebela-se contra uma cosmogonia com um comeo eum mero fim, da mesma forma que no pode aceitar a idia de um eterno ciclo deeventos esttico, autocontido. O oriental, por outro lado, parece ter a capacidade dechegar a bons termos com essa idia. Aparentemente no h sentimento unnime a

    respeito da natureza do mundo, tanto quanto no h acordo geral entre os astrnomoscontemporneos sobre essa questo. Para o homem ocidental, a falta de significado deum universo meramente esttico intolervel. Ele precisa supor que ele tem significado.O oriental no precisa fazer essa hiptese; antes ele mesmo a encarna. Enquanto oocidental sente a necessidade de completar o significado do mundo, o oriental aspirapela realizao do significado no homem, despindo o mundo e a existncia de si mesmo(Buddha).

    Eu diria que ambos esto certos. O homem ocidental parece ser predominantementeextrovertido. O homem oriental, predominantemente introvertido. O primeiro projeta osignificado e considera que ele existe em objetos; o ltimo sente o significado em si

    mesmo. Mas o sig nificado est em am bos, dentro e fora.A idia de renascimen to in separvel da idia de ca rm a. A qu est o crucial do ca rmade uma pessoa ser pessoal ou no. Se for, ento o destino preordenado com que umhomem entra na vida representa uma aquisio de vidas anteriores, e existe, portanto,uma continuidade pessoal. Se, contudo, isso no ocorre, e um carma impessoal investido na pessoa no ato do nascimento, ento esse carma novamente encarnadosem que haja nenhuma continuidade pessoal.

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    O Buda foi duas vezes questionado por seus discpulos quanto ao carmahumano ser ou no pessoal. Em ambas as ocasies ele desviou-se da questo,e no entrou no assunto; saber disso, disse ele, no contribuiria para aliberao da pessoa da iluso da existncia. O Buda considerou muito mais tilpara seus discpulos meditar sobre a cadeia nidana, isto , sobre o nascimento,a vida, a idade avanada e a morte, e sobre a causa e efeito do sofrimento.

    No sei a resposta para a pergunta do carma que eu vivo ser o resultado de minhasvidas passadas ou se antes ele no uma aquisio dos meus ancestrais, cuja heranavem junto comigo. Sou uma combinao das vidas desses ancestrais e assim encarnonovamente essas vidas? J vivi antes no passado como uma personalidade especfica eprogredi at aqui naquela vida que agora posso buscar uma soluo? No sei. O Budadeixou aberta a questo, e eu gosto de presumir que ele mesmo no o sabia comcerteza.

    Eu poderia muito bem imaginar que eu poderia ter vivido em sculos pretritos e l terencontrado perguntas que eu ainda no podia responder; que eu teria que nascer denovo porque no cumprira a tarefa que me fora incumbida. Quando eu morrer, meusatos seguiro junto comigo assim que o imagino. Trarei comigo o que fiz. Nointervalo importante eu me assegu rar de no chegar ao fim de mos vazias. O Buda,

    tambm, parece ter tido esse pensamento quando tentou evitar que seus discpulosdesperdiassem tempo com especulao intil.

    O significado da minha existncia que a vida me dirigiu uma pergunta. Ou,inversamente, eu me smo sou um a pergunta que dirigida ao mu ndo, e devo comunicarminha resposta, pois, do contrrio, fico dependente da resposta do mundo. Essa umatarefa de vida suprapessoal, que cumpro somente com esforo e dificuldade. Talvezseja uma qu esto que preocupou me us ancestrais, e que eles no pu deram responder.Poderia ser esta a razo de eu estar to impressionado pelo fato da concluso deFausto no conter soluo? Ou pelo problema que ps Nietzsche a pique: o ladodionisaco da vida, para o qual os cristos parecem ter perdido o caminho? Ou o

    inquieto Wotan-Hermes dos meus ancestrais alemes e francos que prope enigmasdesafiadores?

    O que sinto ser resultante das vidas dos meus ancestrais, ou carma adquirido em umavida pessoal anterior, poderia talvez ser igualmente um arqutipo impessoal que hojefaz intensa presso em todos e exerce um controle particular sobre mim um arqutipotal como, por exemplo,m o desenvolvimento ao longo dos sculos da divina trade e suaconfrontao com o princpio feminino; ou a resposta ainda pendente questognstica referente origem do mal, ou, para colocar de uma outra maneira, aincompletude da imagem divina crist.

    Penso tambm na possibilidade de que por meio da realizao de um indivduo entra nomundo uma questo, qual ele deve dar algum tipo de resposta. Por exemplo, minhaforma de colocar a questo bem como minha resposta podem ser insatisfatrias. Sendoassim, algum que tem o meu carma ou eu m esmo teria de renascer para dar umaresposta mais completa. Poderia ocorrer de eu no voltaria a nascer na medida em queo mundo no precisasse dessa resposta, e que eu tivesse direito a vrias centenas deanos de paz at que algum fosse de novo necessrio para se interessar por essasquestes e pude sse proveitosame nte cuidar de novo da tarefa. Imagino que por ummomento poderia sobrevir uma fase de repouso, at que a poupana que eu tivessefeito em meu tempo de vida precisasse ser retomada.

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    A ques to do ca rm a to obscu ra para mim co mo tambm o o prob le ma dorenascimento pessoal ou da transmigrao de almas. Com uma mente livre e abertaeu ouo atentamente a doutrina indiana da reencarnao, e olho em redor no mundoda minha prpria experincia para ver se em algum lugar e de alguma maneira halgum sinal autntico apontando para a reencarnao. Naturalmente, no incluo ostestemunhos relativamente numerosos, aqui no Ocidente, a favor da crena nareencarnao. Uma crena s me prova o fenmeno da crena, no o contedo dacrena. Esta, preciso ver revelada empiricamente para poder aceit-la. At poucos anosatrs no pude descobrir nada convincente a esse respeito, embora eu guardasse umolhar perscrutador para qualquer sinal dessa natureza. Recentemente, contudo,observei em mim uma srie de sonhos que pareceriam descrever o processo dereencarnao em uma pessoa falecida das minhas relaes. Mas nunca me defronteicom sonhos como esses em outras pessoas, e, portanto, no tenho base decomparao. Como essa observao subjetiva e nica, prefiro apenas mencionar suaexistncia e nada mais. Devo confessar, entretanto, que depois dessa experincia vi oproblema da reencarnao com olhos um pouco diferentes, embora sem estar em u maposio que me permita declarar uma opinio conclusiva.

    Se supusermos que a vida continua l, no podemos conceber nenhu ma outra forma

    de existncia que no seja uma de natureza psquica; pois a vida da psique no exigenem espao nem tempo. A existncia psquica, e acima de todas as imagens internascom as quais estamos aqui lidando, fornece o material para todas as especulaesmticas a respeito de uma vida no alm, e imagino essa vida como uma continuidade nomundo das imagens. Assim a psique poderia ser aquela existncia em q ue o alm ou aterra do s mo rtos est localizada.

    Do ponto de vista psicolgico, a vida no alm pareceria ser uma continuao lgica davida psquica da idade avanada. Com a crescente idade, a contemplao, e a reflexo, asimagens internas naturalmente desempenham um papel cada vez maior na vida dohomem. Seus velhos devem sonhar sonhos.3 Isso, com certeza, pressupe que as

    psiques dos velhos no tenham se enrijecido, ou ficado totalmente petrificadas seromedicina paratur cum mala per longas convaluere moms.4Na velhice comea-se a deixaras memria se desenrolarem diante do olho da mente e, refletindo, reconhecer-se nasimagens internas e externas do passado. Isso como uma preparao para umaexistncia no alm, tal como, na viso de Plato, a filosofia uma preparao para amorte.

    As imagens internas impedem que eu me perca em retrospeco pessoal. Muitas pessoasidosas tornam-se demasiadamente envolvidas em sua reconstruo de eventos passados.Elas ficam aprisionadas nessas memrias. Mas se for reflexiva e se for traduzida emimagens, a retrospeco pode ser um reculer pour mieux sauter (recuar para saltar

    melhor).Tento enxergar a linha que leva da minha vida ao mundo, e para for a do mundonovamente.

    Em geral, a concepo que as pessoas fazem do alm amplamente composta porpensamento desejoso e preconceitos. Da que na maioria das concepes o alm retratado como um lugar agradvel. Isso no me parece ser to bvio. Para mim difcilpensar que aps a morte ns seremos transportados a alguma agradvel ravina cheia deflores. Se tudo fosse agradvel e bom no alm, seguramente haveria algumas

    3Atos 2:17; Joel 2:284O remdio preparado tarde demais, quando a doena fortificou-se pela longa demora.

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    comunicaes amistosas entre ns e os espritos bem-aventurados, e um derramamentosobre ns de bondade e beleza do estado pr-natal. Mas no h nada desse tipo. Por queh essa barreira insupervel entre os falecidos e os vivos? No mnimo a metade dosrelatos de encontros com mortos fala de experincias aterrorizantes com espritosobscuros; e regra geral que a terra dos mortos observe um silncio glido, noperturbado pelo sofrimento dos desolados.

    Seguindo o pensamento que involuntariamente me ocorre: o mundo, sinto, demasiadounitrio para haver um alm em que a regra dos opostos esteja completamente ausente.Tambm l est a natureza, que a seu modo tambm a natureza de Deus. O mundo emque ns entramos aps a morte ser grande e terrvel, como Deus e como toda a naturezaque conhecemos. Nem posso conceber que o sofrimento devesse cessar inteiramente.Devo dizer apenas que o que experimentei em minhas vises de 1944 liberao dacarga do corpo, e percepo de significado proporcionarem-me a mais profundabeatitude. No obstante, havia trevas tambm, e uma estranha cessao de calorhumano. Lembrem-se da rocha negra em que cheguei! Era escura e do mais duro granito.O que isso significa? Se no houvesse imperfeies, se no houvesse nenhum defeitoprimordial no solo da criao, por que haveria qualquer motivo para criar, qualquer desejopor aquilo que deve ser ainda cumprido? Por que os deuses teriam qualquer preocupaocom o homem e a criao? Com a continuao da cadeia nidana at o infinito? Afinal de

    contas, o Buda ope viso dolorosa da existncia o seu quod non, e o cristo esperapela rpida vinda do fim deste mundo.

    Parece-me provvel que no alm, tambm, existem certas limitaes, mas que as almasdos mortos apenas de gradualmente descobrem onde ficam os limites do estado liberado.Em algum lugar l fora deve haver um determinante, uma necessidade condicionando omundo, que busca por um termo ao estado ps-morte. Esse determinante criativo assimo imagino deve decidir quais as almas que se precipitaro de novo no nascimento.Certas almas, imagino, sentem o estado de existncia tridimensional mais abenoado doque o de Eternidade. Mas talvez isso dependa do quanto de completude ou incompletudeelas tenham levado consigo de sua existncia humana.

    possvel que qualquer encanto adicional da vida tridimensional no tenha maissignificado uma vez que a alma haja alcanado certo estgio de compreenso; ela entono teria mais que retornar, uma compreenso mais plena tendo derrotado o desejo porreencarnao. Ento a alma desvaneceria do mundo tridimensional e alcanaria o que osbudistas chamam de nirvana. Mas se resta ainda um carma do qual se necessita livrar,ento a alma recai novamente em desejos e volta vida mais uma vez, talvez o fazendopela percepo de alguma resta para ser completada.

    No meu caso deve ter sido primariamente uma compulso apaixonada por compreensoque produziu meu nascimento. Pois esse o elemento mais forte em minha natureza.

    Esse impulso insacivel para o entendimento criou, por assim dizer, uma conscincia parasaber o que e o que acontece, e para juntar as concepes mticas a partir das escassaspistas do incognoscvel.

    Falta-nos prova concreta de que qualquer coisa nossa seja preservada para a eternidade.Podemos no mximo dizer que existe alguma probabilidade de que algo de nossa psiquecontinue existindo depois da morte fsica. Se o que continua a existir consciente de simesmo, tambm no o sabemos. Se sentimos a necessidade de formar alguma opiniosobre essa questo, poderamos possivelmente considerar aquilo que tem sido aprendidoa partir dos fenmenos de dissociao psquica. Na maioria dos casos em que um

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    complexo de ciso psquica se manifesta, ele o faz na forma de uma personalidade, comose o complexo tivesse uma conscincia prpria. Assim, as vozes ouvidas pelo insano sopersonificadas. Lidei muito tempo atrs com esse fenmeno de complexos personificadosem minha dissertao de doutorado. Poderamos, se quisssemos, aduzir esses complexoscomo evidncia de uma continuidade de conscincia. Da mesma forma, a favor de um talhiptese, enquadram-se certas observaes surpreendentes em casos de sncopeprofunda aps danos agudos ao crebro e em estados graves de colapso. Em ambas assituaes, a perda total de conscincia pode ser acompanhada por percepes do mundoexterno e vvidas experincias onricas. Como a crtex cerebral, o trono da conscincia,no est funcionando nesses momentos, ainda no h uma explicao para taisfenmenos. Pode haver evidncia de haver, no mnimo, uma persistncia subjetiva dacapacidade de conscincia mesmo em um estado de aparente inconscincia.5

    O problema espinhoso do relacionamento entre o homem eterno, o self e o homemterreno no tempo e no espao foi iluminado em dois de meus sonhos.

    Em um sonho, que tive em outubro de 1958, avistei de minha casa dois discos de brilhometlico na forma de lentes, que se moviam num estreito arco sobre a casa e caiam nolago. Eram dois OVNIs (objetos voadores no identificados). Ento um outro corpo veiovoando na minha direo. Era uma lente perfeitamente circular, como a objetiva de um

    telescpio. distncia de quatrocentas ou quinhentas jardas ele ficou imvel por ummomento, e em seguida saiu voando. Imediatamente aps, um outro veio acelerando peloar: uma lente com uma extenso metlica que levava a uma caixa uma lanterna mgica. distncia de sessenta ou setenta jardas ela ficou imvel no ar, apontando direto paramim. Despertei com um sentimento de assombro. Ainda meio no sonho, passou por minhacabea o pensamento: Sempre pensamos que os VNIS so projees nossas. Agorarevela-se que ns somos projees deles. Sou projetado pela lanterna mgica como C. G.Jung. Mas quem manipula o aparelho?

    Sonhei uma vez antes sobre o problema do self (si mesmo) e do ego. Nesse sonhoanterior eu estava fazendo uma viagem a p. Andava por uma pequena estrada por uma

    paisagem montanhosa; o sol brilhava e eu tinha uma ampla vista em todas as direes.Cheguei ento a uma pequena capela margem do caminho. A porta estava entreabertae entrei. Para minha surpresa no havia nenhuma imagem da Virgem no altar, nemqualquer crucifixo, mas apenas um maravilhoso arranjo de flores. Mas ento vi que nocho em frente do altar, diante de mim, estava um iogue sentado em posio de ltus,em meditao profunda. Quando olhei para ele mais atentamente, percebi que ele tinhameu rosto. Fiquei profundamente assustado, e despertei com o pensamento: Aha, ento ele quem est me meditando. Ele tem um sonho, e estou nele. Eu sabia que quandoele despertasse eu no mais existiria.

    Tive esse sonho aps minha doena em 1944. uma parbola: meu si mesmo retira-se

    em meditao e medita minha forma terrena. Para colocar de uma outra maneira: eleassume forma humana para entrar na existncia tridimensional, como se algum estivessevestindo uma roupa de mergulho para poder mergulhar no mar. Quando renuncia existncia no alm, o si mesmo assume uma postura religiosa, como mostra a capela nosonho. Em forma terrena ele pode passar pela experincia do mundo tridimensional, e pormeio de uma maior conscincia dar mais um passo da direo da realizao.

    5 Cf. "Synchronicity: An Acausal Connect ing Principle," in The Structure and Dynamics of the Psyche (CW 8), pp. 506

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    A figura do iogue, ento, mais ou menos representaria minha totalidade inconsciente pr-natal, e o Oriente distante, como ocorre frequentemente em sonhos, um estado psquicoalheio e oposto ao nosso. Como a lanterna mgica, a meditao do iogue projeta minharealidade emprica. Via de regra, vemos essa relao causal ao inverso: nos produtos doinconsciente descobrimos smbolos de mandala, isto , figuras circulares e quaternriasque expressam totalidade, e sempre que desejamos expressar a totalidade, empregamosjustamente essas figuras. Nossa base a conscincia do ego, nosso mundo o campo deluz centrado no ponto focal do ego. Desse ponto olhamos para fora, para um mundoenigmtico de obscuridade, nunca sabendo em que medida as formas sombrias quevemos so causadas por nossa conscincia, ou se possuem uma realidade prpria. Oobservador superficial est contente com a primeira hiptese. Mas o estudo mais acuradomostra que via de regra as imagens do inconsciente no so produzidas pela conscincia,mas possuem uma realidade e uma espontaneidade prpria. No obstante, consideramo-las fenmenos meramente marginais.

    O objetivo de ambos esses sonhos o de levar a efeito uma inverso do relacionamentoentre a conscincia do ego e o inconsciente, e representar o inconsciente como o geradorda personalidade emprica. Essa inverso sugere que na opinio do outro lado, nossaexistncia inconsciente a verdadeira e nosso mundo consciente uma espcie de iluso,uma realidade aparente construda para um propsito especfico, como um sonho que

    parece uma realidade na medida em que estamos nele. claro que esse estado de coisasse guarda uma semelhana muito prxima do conceito oriental de Maya.6

    A totalidade inconsciente, portanto, parece-me o verdadeiro spiritus rector de todos oseventos biolgicos e psquicos. Eis aqui um princpio que aspira por realizao total queno caso do homem significa a consecuo da conscincia total. A consecuo daconscincia cultura no seu mais amplo sentido, e o auto-conhecimento conseqentemente o corao e a essncia desse processo. Os oriental atribuiinqestionavelmente significado divino ao si mesmo, e de acordo com a viso crist antigao auto-conhecimento a estrada para o conhecimento de Deus.

    A questo decisiva para o homem : est ele ligado a alguma coisa infinita ou no? Essa a questo contundente da sua vida. Somente se soubermos que a coisa que realmenteimporta o infinito podemos evitar fixar nosso interesse em futilidades, e em todos ostipos de metas que no so de importncia real. Assim demandamos que o mundo nosconceda reconhecimento por qualidades que consideramos como posses pessoais: nossotalento ou nossa beleza. Quanto mais um homem d nfase a falsas posses, e menossensibilidade tem por aquilo que essencial, tanto menos satisfatria sua vida. Elesente-se limitado porque tem metas limitadas, e o resultado inveja e cime. Seentendermos e sentirmos que aqui nesta vida j temos uma ligao com o infinito, desejose atitudes mudam. Em ltima anlise, s temos importncia por causa do essencial queencarnamos, e se no o encarnamos, a vida desperdiada. Em nossos relacionamentos

    com outros homens, tambm, a questo crucial se um elemento de infinitude seexpressa no relacionamento.

    O sentimento de infinitude, contudo, s pode ser alcanado se estivermos presos aosuperior. A maior limitao para o homem o si mesmo; ela est manifestada naexperincia: Sou somente isso! Somente a conscincia do nosso estreito confinamentoao si mesmo forma o elo com a no-limitao do inconsciente. Nessa conscincia

    6Uma tendncia de questionar o locus da realidade manifestou-se bem cedo na vida de Jung, quando ele aindacriana sentou-se sobre a pedra e brincou com a idia de que a pedra estava dizendo, ou era, Eu. Cf.oconhecido sonho da borboleta em Chuang tzu A.J.

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    experienciamo-nos concomitantemente limitados e eternos, tanto como um quanto comooutro. A nos sabermos nicos em nossa combinao pessoal isto , em ltima instncia,limitados possumos tambm a capacidade de nos tornarmos conscientes do infinito.Mas somente ento!

    Em uma era que se concentrou exclusivamente na ampliao do espao vital e noaumento do conhecimento racional a todo custo, constitui um desafio supremo pedir aohomem que se torno consciente da sua unicidade e da sua limitao. Unicidade e limitaoso sinnimas. Sem elas, nenhuma percepo do ilimitado possvel e,consequentemente, tambm nenhuma chegada conscincia meramente umaidentidade ilusria com aquilo que toma a forma de intoxicao com grandes quantidadese uma avidez por poder poltico.

    Nossa era mudou toda a nfase para o aqui e agora, e assim produziu uma demonizaodo homem e seu mundo. O fenmeno de ditadores e toda a misria que eles produzirambrotam do fato de que o homem foi roubado de transcendncia pela miopia dos super-intelectuais. Como eles, ele caiu vtima da inconscincia. Mas a tarefa do homem ooposto exato disso: tornar-se consciente dos contedos que pressionam desde oinconsciente. Ele no deveria nem persistir em sua inconscincia, nem permaneceridntico com os elementos inconscientes do seu ser, esquivando-se assim do seu destino,

    que o de criar mais e mais conscincia. Tanto quanto podemos discernir, o nicopropsito da existncia humana acender uma luz na escurido do mero existir. Pode-semesmo supor que justamente como inconsciente nos afeta, assim o aumento de nossaconscincia afeta o inconsciente.

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    "As naes so criadas por poetas e artistas, no por mercadores e polticos. Na arteencontram-se os mais profundos princpios da vida." - Ananda Coomaraswamy

    TRADUZIDO POR RDEROCHA MARO DE 2008