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i CARLA DE OLIVEIRA MULHERES CUIDADORAS, MULHERES PROFESSORAS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA CRECHE ÁREA DE SAÚDE DA UNICAMP CAMPINAS 2014

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CARLA DE OLIVEIRA

MULHERES CUIDADORAS, MULHERES PROFESSORAS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA CRECHE ÁREA DE SAÚDE DA

UNICAMP

CAMPINAS 2014

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  Ficha catalográfica

Universidade Estadual de CampinasBiblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Oliveira, Carla de, 1982- OL4m OliMulheres cuidadoras, mulheres professoras : história, memória e formação

profissional na Creche Área de Saúde da Unicamp / Carla de Oliveira. –Campinas, SP : [s.n.], 2014.

OliOrientador: Maria do Carmo Martins. OliDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educação.

Oli1. Educação infantil. 2. Memória. 3. Formação profissional. I. Martins, Maria do

Carmo,1964-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Caregivers women's, teachers women's : history, memory andvocational training in Creche Área de Saúde da UnicampPalavras-chave em inglês:Early Childhood EducationMemoryVocational trainingÁrea de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e ArteTitulação: Mestra em EducaçãoBanca examinadora:Maria do Carmo Martins [Orientador]Adriana Missae Momma-BardelaRúbia Cristina Cruz MenegaçoData de defesa: 27-11-2014Programa de Pós-Graduação: Educação

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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Resumo

A Educação Infantil vem consolidando-se como campo de pesquisa tanto no que se refere às práticas pedagógicas, quanto no processo de formação profissional para atuação nesta área, que, a partir de 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (9.394/96), passa a constituir a primeira etapa da Educação básica nacional. Sobre este segundo tópico (formação profissional) foi que a presente dissertação de mestrado pretendeu abordar e contribuir para o campo de pesquisa a partir da discussão da temática. O texto em questão fundamentou-se no trabalho com as histórias de vida, e valeu-se do conceito de memória como categoria de análise, relacionando assim, história e memória na construção de uma “pequena” história da Educação Infantil. Tomou para isso, como pano de fundo, uma creche fundada em 1990, dentro da Universidade Estadual de Campinas, cujas protagonistas do trabalho foram mulheres que ingressaram na instituição desde o início de seu funcionamento, e que continuam no mesmo local, exercendo hoje, a profissão regulamentada de professoras, com formação em nível superior, realidade muito diferente da que conheceram há 24 anos, quando eram ainda denominadas “recreacionistas”. A pesquisa, além de possibilitar um resgate histórico sobre a criação da instituição creche no país, apontou em grande medida, para a problematização no que tange à formação profissional. Afinal de contas, o curso de Pedagogia, hoje indicado como curso superior para atuar nesta etapa de ensino, prepara para atuação com crianças de 0 a 3 anos? Longe de buscar uma resposta única para a questão, as memórias aqui narradas apontaram para a formação em contexto como possibilidade de repensar antigas práticas e reinventar a atuação do profissional que lida com uma faixa etária repleta de especificidades.

Palavras-chave: Educação Infantil, memória, formação em contexto.

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Abstract

Early Childhood Education has been consolidated as a field of research both

in regard to teaching practices, and in the process of vocational training for work in

this area, which, from 1996, with the promulgation of the Lei de Diretrizes e Bases

(9394 / 96), becomes the first stage of the national Basic Education. On this

second topic (vocational training) was that this dissertation master's degree

intended to contribute to the search field from the discussion of the theme. The text

in question was based on the work with the stories of life, and he took advantage of

the concept of memory as a category of analysis, thus linking history and memory

in the construction of a "small" history of early childhood education. For this, as a

backdrop, a creche founded in 1990, inside the Universidade Estadual of

Campinas, whose protagonists were working women who entered the institution

since the beginning of its operation, and keep on in the same place, acting today,

regulated profession of teachers, graduated in higher education, very different from

that experience they had 24 years ago, when they were still called "recreationists".

The research, in addition to enabling a historical review of daycare institution in the

country, noted largely for questioning in relation to vocational training. After all, the

pedagogy course, nowadays considered higher education to work in this stage of

education, prepares for action with children 0-3 years? Far from seeking a single

answer to the question, memories recounted here pointed to the vocational training

in context to rethink old practices and reinvent the acting of the professional who

handles with a so specific age group.

 

Keywords: Early Childhood Education, memory, vocational training.

   

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Sumário

Resumo...................................................................................................................vii

Abstract....................................................................................................................ix

Sumário....................................................................................................................xi

Agradecimentos......................................................................................................xv

Relação de Figuras................................................................................................xvii

Relação de Siglas...................................................................................................xix

Introdução...............................................................................................................1

A Creche Área de Saúde: o início da história e antecedentes teóricos....................3

Memória e história de vida........................................................................................8

A formação profissional e em contexto...................................................................12

Os documentos.......................................................................................................13

As professoras e suas memórias: o trabalho com as entrevistas...........................14

Objetos biográficos.................................................................................................18

Capítulo I: O surgimento da creche como instituição social: a Creche Área de Saúde e sua herança histórica............................................................................21

As creches no Brasil...............................................................................................21

A década de 1980: o Estado de São Paulo e a redemocratização da sociedade................................................................................................................26

O Cantinho da Física na UNICAMP........................................................................38

A Creche Área de Saúde........................................................................................42

Século XX e as trabalhadoras das creches............................................................45

Capitulo II: Mulheres cuidadoras e suas memórias. A creche na década de 1990........................................................................................................................51

Primeiros fios da memória......................................................................................51

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Treinamento X formação em contexto na creche: uma primeira experiência..............................................................................................................61

Início de funcionamento: a chegada das crianças..................................................63

Capítulo III: Mulheres professoras e suas memórias. A profissionalização.................................................................................................75

O retorno aos estudos no início dos anos 2000.....................................................75

As novas professoras da creche.............................................................................80

A formação em nível superior.................................................................................84

Final dos anos 2000: mudanças no trabalho e reconhecimento do nível superior...................................................................................................................93

A formação continuada e em contexto...................................................................98

Capítulo IV: Mulheres cuidadoras, mulheres professoras: a importância

da formação continuada e da valorização da experiência..............................103

As mulheres da/na história...................................................................................103

Experiência e pobreza..........................................................................................106

Tecendo fios entre experiência e formação..........................................................110

Bibliografia..........................................................................................................119

Artigos de Jornal...................................................................................................119

Fontes e Documentos...........................................................................................119

Fotografias............................................................................................................121

Livros e Artigos.....................................................................................................121

Anexos.................................................................................................................127

Anexo I: Roteiro de questões para as entrevistas................................................127

Anexo II: Transcrições das entrevistas.................................................................128

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À minha tia Silvana, que infelizmente hoje está somente em minha memória, ou na história sobre ela, que é possível para mim, rememorar.

   

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xv    

Agradecimentos

O processo de formação que a pós-graduação me possibilitou não teria

ocorrido da mesma maneira se não pudesse contar com muitas pessoas que de

formas diferentes caminharam comigo. A todos e todas, meus sinceros

agradecimentos.

Primeiramente, à professora Carminha, por todas as orientações,

conversas, ensinamentos. Sobretudo por me ensinar que o caminho da pesquisa

pode ser leve e apaixonante. Por toda sua humildade, paciência e

comprometimento.

Aos meus queridos colegas do grupo: Priscila, Maurício, Giselle, Getúlio,

Rayane e Carla. Obrigada pelas trocas intelectuais e afetivas. Pessoas tão

diferentes de mim, mas que juntos, formamos um grupo de professores

pesquisadores, com ideias comuns de uma educação melhor em nossos

respectivos segmentos de trabalho.

Às professoras Bianca e Adriana, pela minuciosa leitura que fizeram em

meu texto de qualificação e apontaram caminhos para o desenvolvimento e

finalização da pesquisa.

À minha irmã Carolina, pelas leituras e pelas escutas; mais que isso, pelo

caminhar de toda a vida.

Ao Henrique, que mesmo durante as dificuldades da vida a dois, sempre

me incentivou a seguir em frente com os estudos.

Ao meu filho Vinícius, por me tirar da solidão da escrita e me levar para

brincar e comer pastel com água de coco.

À minha avó e meu avô, por cuidarem do meu filho durante minhas

ausências.

Ao meu cunhado Paulo, por todo “auxílio tecnológico”.

Aos meus pais, Silvia e Carlos, pela vida.

Às minhas amigas professoras Karina, Sandra e Marcela, muito mais que

colegas de trabalho, participaram cada qual a sua maneira, do processo de

elaboração desta dissertação.

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À minha amiga professora Rosineide, pela ajuda na leitura, pelo

compartilhar das fontes, e por todos os anos de trabalho que temos juntas,

dividindo os mesmos desejos, angústias e alegrias na Educação Infantil.

Às professoras protagonistas deste trabalho, representadas aqui por seus

nomes fictícios: Ana, Antonia, Eliana, Flor e Maria Queiróz. Obrigada por

confiarem em mim e serem parceiras desta pesquisa. Vocês, sem dúvida, fizeram

e fazem a diferença na história da Educação Infantil.

Por fim, e talvez mais importante, agradeço a todas as crianças da Creche

Área de Saúde que passaram por minhas mãos e meus saberes de professora.

Vocês me mostraram e me mostram a cada dia o significado particular que o

trabalho público deve ter. A vida faz mais sentido quando estou com vocês.    

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Relação de Figuras

Figura 1: Ficha de controle diário das atividades dos bebês que frequentavam o CCI, a ser preenchida pela atendente responsável pela criança...........................34

Figura 2: Imagem destacada no jornal da UNICAMP datado de 20/01/1990 que informava à comunidade sobre a construção da nova creche...............................51  

Figura 3: “Trepa-trepa”: brinquedo do parque do Maternal....................................64  

Figura 4: Peniqueiro utilizado no processo de retirada de fraldas das crianças..................................................................................................................79  

Figura 5: Brinquedo escorregador do parque do Maternal II..................................82  

Figura 6: Armário de medicamentos da sala de enfermagem................................85  

Figura 7: Mesa utilizada pelas crianças para atividades diversas: refeições, pinturas, colagens, etc............................................................................................91

Figura 8: Cadeirinha utilizada pelas crianças.........................................................92

Figura 9: Brinquedo gira-gira do parque do Maternal II........................................117

 

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Relação de Siglas

CAD............................................................................. Câmara de Administração

CAS...................................................................................Creche Área de Saúde

CCI.........................................................................Centro de Convivência Infantil

CECI......................................................................Centro de Convivência Infantil

CECOM........................................................... Centro de Saúde da Comunidade

CICF....................................................... Comunidade Infantil Cantinho da Física

CLT................................................................Consolidação das Leis do Trabalho

CONSU..............................................................................Conselho Universitário

DEdIC.......................................... Divisão de Educação Infantil e Complementar

DNCr..............................................................Departamento Nacional da Criança

ESTEC.......................................................................Escritório Técnico de Obras

FCM....................................................................Faculdade de Ciências Médicas

FUSSESP.....................Fundo Social da Solidariedade do Estado de São Paulo

HC..........................................................................................Hospital de Clínicas

INAM.............................................. Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição

IRCAMP....................................................Instituto de Reabilitação de Campinas

LBA.................................................................... Legião Brasileira de Assistência

LDB......................................................... Lei de Diretrizes e Bases da Educação

NUDECRI.......................................... Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade

PPP............................................................................Projeto Político Pedagógico

PRODECAD............................................Programa Integral de Desenvolvimento

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da Criança e do Adolescente

SIARQ........................................................... Sistema de Arquivos da UNICAMP

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xxi    

 

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi

sentados na terra escovando osso. No começo achei que

aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali

sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois

aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles

faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles

queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações

que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo

pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum

lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu

queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados

dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras

possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas

significâncias remontadas. Eu queria então escovar as

palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para

escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos.

Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha.

Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto,

trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que

eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a

eles, meio entressonhado, que eu estava escovando

palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu

joguei a escova fora.

Manoel de Barros1

   

                                                                                                                         1  BARROS,  Manoel.  Memórias  Inventadas.  São  Paulo.  Editora  Planeta,  2010.    

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1    

Introdução

Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é uma outra história. Inacabamento.2 (RICOEUR, 2007, p.172)

Este é um trabalho sobre memória. Não somente a memória das

professoras que iniciaram suas atividades como recreacionistas de uma creche

chamada Área de Saúde há vinte e quatro anos. As memórias destas mulheres

em certa medida encontram-se com as minhas, pois iniciei também um percurso

profissional que em determinado momento da história cruzou-se com o destas

professoras, tendo como cenário, a creche. Atuo nesta creche, como professora

de educação infantil desde o ano de 2004, quando fui convocada após a

aprovação no concurso público para tal função. Neste período, já havia concluído

o curso de magistério, cujo diploma foi exigido para o trabalho na instituição,

diferentemente da exigência requerida de minhas colegas professoras, cujas

memórias foram aqui narradas. Em 2004 ainda, cursava a graduação em

Psicologia, finalizada no ano de 2006. Atuei por um período como psicóloga clínica

infantil, pois o trabalho na creche de 30 horas semanais me permitia exercer outra

profissão.

No entanto, meu percurso de vida pessoal e profissional foi se direcionando

cada vez mais para o trabalho com os bebês e as crianças pequenas, e com o

tempo acabei optando pela atuação como professora, embora minha formação em

psicologia, e mais precisamente, os estudos em psicanálise iniciados na

graduação e que fazem parte de minhas leituras e reflexões até hoje exerçam

influência em meu trabalho e na maneira como concebo as relações e o

desenvolvimento das crianças. O viés psicanalítico sem dúvida permeou toda a

escrita deste texto, não com o intuito de psicanalisar as histórias, mas sim, na

ideia proposta por Lacan de conceber a psicanálise como uma ética, um

                                                                                                                         2  RICOEUR,  Paul.  A  memória,  a  história,  o  esquecimento.  Tradução  de  Alain  François  et  al.    Campinas:  Editora  da  UNICAMP,  2007.  

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2    

compromisso com o desejo que, embora inconsciente, é definidor de nossas

escolhas, de nossos atos3.

Mesmo já possuindo uma graduação, o trabalho na creche exigiu outra

formação acadêmica, no curso de Pedagogia, cuja conclusão se deu em 2011.

Antes ainda desta segunda graduação, participei, entre os anos de 2008 e 2009,

do curso de Especialização em Sexualidade Humana – Latu Sensu-, na Faculdade

de Educação da UNICAMP.

Meu percurso profissional foi relacionando-se à área da Educação, e o

interesse pela Educação Infantil ficando cada vez mais nítido. Trabalhos de

Conclusão de Cursos, artigos escritos, comunicações apresentadas em eventos.

Tudo sempre voltado para o trabalho com as crianças pequenas, e,

principalmente, para a divulgação de práticas desenvolvidas na Creche Área de

Saúde - CAS. A dissertação em questão apresentou a história desta instituição tão

repleta de significados para mim. O recorte da memória (minha própria e das

professoras entrevistadas) demarcou um olhar peculiar desta história já contada

em outros trabalhos, que foram aqui também abordados.

Este é também um trabalho sobre histórias de vida. Nesse sentido,

memória e histórias de vida entrecruzam-se intimamente. As professoras

entrevistadas foram convidadas a rememorar suas trajetórias desde quando

ingressaram na creche, em 1990, e, embora o foco das entrevistas fosse o

processo de formação profissional em serviço, a creche fez e ainda faz parte de

suas histórias em todas as instâncias, inclusive a pessoal.

Por fim, este é um trabalho sobre formação profissional e em serviço. As

professoras da creche ingressaram por concurso público, mas sem nenhuma

formação profissional requerida, sendo exigência para atuação, qualquer tipo de

experiência prévia com crianças, ainda que fosse com o próprio filho, conforme

narrado por elas. A partir de mudanças no cenário político e educacional nacional,

como a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, a

                                                                                                                         3  Psicanalista  francês  que  propõe  um  retorno  às  leituras  de  Freud,  fundador  da  Psicanálise  e  que,  destaca,  em  suas  obras,  especialmente  no  “Livro  7:  A  ética  da  psicanálise”,  a  questão  do  desejo  inconsciente  que  permeia  todas  as  nossas  ações  e  relações  e,  quão  fundamental  seria  o  sujeito  responsabilizar-­‐se  deste  fato,  assumindo  uma  ética  do  desejo.  

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3    

formação passou a fazer parte do contexto da creche, tendo início com o então

curso de magistério, em nível médio, e dando continuidade aos estudos com a

formação em nível superior em Pedagogia. Além disso, outras modalidades de

cursos fizeram parte da construção profissional das professoras.

Assim, memória, histórias de vida e formação profissional são categorias de

trabalho que questionam e refletem sobre uma história aparentemente linear, mas

que se apresentou como um processo social e político de lutas e conflitos, tanto

no que se refere à concepção de criança e infância, quanto na formação do

profissional que atua com a faixa etária de 0 a 3 anos. A formação de nível

superior em Pedagogia, embora não seja exigência requerida para atuação na

creche, é hoje o curso que legitima a profissão de professor de educação básica

no país. Contudo, tal formação é sinônimo de qualidade do trabalho na creche? O

que mudou, na prática, para as antigas recreacionistas que se formaram

professoras?

A questão da formação foi, ao longo do texto, delineando-se como principal

pergunta de pesquisa a ser problematizada. A história da creche e as memórias

das professoras abarcaram uma série de temáticas que aqui podem ser

encontradas, tal como o percurso histórico da educação infantil, um pouco sobre

suas práticas, a vida das mulheres trabalhadoras e sua condição feminina.

Contudo, a própria história e o desejo da pesquisadora acabaram por buscar uma

costura entre todo este contexto com os fios que envolvem a formação do

professor de educação infantil.

A discussão do trabalho, obviamente, não se concluiu com respostas

universais, tampouco verdades absolutas, - até pelo fato de que os pesquisadores

sobre a formação profissional do professor apontam para opiniões e concepções

divergentes sobre a questão - mas pretendeu suscitar uma discussão acerca do

campo de conhecimento e sugerir novos caminhos para o trabalho na educação

infantil. Como fios de um tecido que começam a se unir para formar uma colcha,

iniciei um percurso histórico que teve início há mais de vinte anos, e que ainda

hoje continua a ser costurado...

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4    

A Creche Área de Saúde: o início da história e antecedentes teóricos

Contar a história de uma creche chamada Creche Área de Saúde é

escrever uma narrativa no mínimo, peculiar. Por várias vezes, já pude compartilhar

experiências sobre esta creche em momentos diversos e para diferentes públicos

(em trabalhos apresentados em eventos sobre educação infantil, por exemplo). As

perguntas que chegam a respeito do nome da instituição são de todos os tipos:

“Essa creche fica dentro do hospital?”, “Cuida de crianças doentes?”, “É para

atender filhos de médicos?”.

De fato, o nome faz menção ao vínculo que a creche apresenta, desde sua

origem, a um segmento de atividade específica da Universidade Estadual de

Campinas – UNICAMP -, e que, durante as décadas de 1980 e 1990 consolidou-

se no campus de Barão Geraldo, local de construção da CAS. Entre os anos de

1985 – quando foi inaugurado o primeiro leito do Hospital de Clínicas da

UNICAMP - HC – até o início dos anos 90, vários setores do hospital conhecidos

nos dias de hoje – Centro de Saúde da Comunidade da UNICAMP- CECOM -

Hemocentro, Centro Cirúrgico, enfermarias – já haviam sido instalados no campus

(LIMA, ROCHA, PINSETTA, 2002).

A transferência do Hospital de Clínicas da UNICAMP da região central do

município para Barão Geraldo impulsionou a criação de uma creche que

funcionasse de acordo com os “turnos” de trabalho das mulheres do HC com filhos

em período de amamentação. Dessa forma, a referência à área médica da

Universidade se fez presente não somente no nome da creche, mas também

instituiu um conjunto de práticas, como o funcionamento aos finais de semana e

feriados, por exemplo. Contudo, à medida que mudam as concepções sobre

criança e infância, e a creche passa a fazer parte da educação básica, de acordo

com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN Nº 9.394) o

vínculo com a saúde torna-se alvo de conflitos e questionamentos que, dentre

outras histórias, fazem parte das memórias aqui narradas4.

                                                                                                                         4  Capítulo  I  –  Da  Composição  dos  Níveis  Escolares.  Art.  21º.  A  educação  escolar  compõe-­‐se  de:  I-­‐  educação  básica,  formada  pela  educação  infantil,  ensino  fundamental  e  ensino  médio;  

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5    

Dentro da Universidade, a Creche Área de Saúde é o último local a ser

construído para atender filhos e filhas de funcionárias, entrando em funcionamento

em 19905. Antes dela, outras três unidades foram construídas durante a década

de 1980, respectivamente, o Centro de Convivência Infantil – CECI - prédios do

berçário e do maternal, e o Programa de Desenvolvimento da Criança e do

Adolescente – PRODECAD. Suas histórias se aproximam em determinados

pontos, distanciam-se em outros, e, alguns autores já abordaram recortes da

história deste conjunto de instituições que, no passado, foi denominado

“Programas Educativos da UNICAMP. O primeiro deles refere-se à dissertação de

mestrado de Magali Fagundes Reis (1997), que construiu uma narrativa sobre a

primeira creche inaugurada na Universidade, o Centro de Convivência Infantil,

CECI. Em seu trabalho intitulado “A creche no trabalho...o trabalho na creche. Um

estudo sobre o Centro de Convivência Infantil da Unicamp: Trajetória e

Perspectivas”, a autora, que foi pedagoga da Creche Área de Saúde apresentou

um panorama político e social da época que deu origem aos primeiros anos do

CECI, denominado, na época, CCI (que tinha o mesmo significado de Centro de

Convivência Infantil). Segundo Reis, a primeira manifestação em prol da

construção de uma creche dentro da Universidade ocorreu no ano de 1975,

quando um ofício foi enviado à Coordenadoria de Assistência Social:

A implantação de uma creche na Unicamp apresenta-se como oportuna medida a ensejar que família e universidade se beneficiem e se reforcem. A promoção do bem estar físico, espiritual e social do homem constitui o objetivo primordial da universidade (...) As mães que trabalham ou estudam na universidade deixam de dedicar a atenção, o cuidado e carinho aos filhos (...) muitas destas mães, não contando com pessoas capacitadas para suprir sua permanente ausência do lar, sentem-se preocupadas, angustiadas e tristes com reflexos visíveis no desempenho de suas atividades na Unicamp. (UNICAMP, 1975, apud REIS, 1997, p. 36)

                                                                                                                         5  No  início  de  funcionamento,  as  creches  contavam  com  vagas  apenas  para  mulheres  trabalhadoras  da  Universidade.  Com  o  passar  dos  anos,  novas  reivindicações  foram  feitas,  e  os  servidores  homens  também  passaram  a  ter  direito  de  vaga  para  seus  filhos  na  creche,  e  a  questão  de  gênero  deixou  de  ser  fator  de  exclusão.    

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6    

Ainda no trabalho de Reis (1997) destacou-se a criação da creche

“Cantinho da Física”, localizada dentro do Instituto de Física da Universidade, que

atendia apenas crianças cujos pais ou mães trabalhassem na Unidade. Esta

creche funcionou entre os anos de 1982 a 1986, e, embora nunca tenha sido parte

dos Programas Educativos da UNICAMP, deu origem às primeiras profissionais

pedagogas que, com a inauguração do CECI, passaram a compor a equipe do

novo local. Algumas especificidades do Cantinho da Física foram abordadas no

Capítulo I deste trabalho.

A dissertação de Reis fez uma crítica à creche no que se refere ao

aleitamento materno como exigência para que a mulher trabalhadora tivesse vaga

para seu bebê. Este dado apareceu também nas narrativas das professoras da

CAS, mesmo sendo uma creche criada já nos anos 90. É importante

contextualizar a questão do aleitamento materno, já que na década de 1980 havia

Programas Nacionais de incentivo a tal prática, como destacou Sousa (2006), A Assembleia Mundial de Saúde estabeleceu, em 1981, o Código Internacional de Comercialização de Sucedâneos do Leite Materno e nesse mesmo ano foi implementado o PNIAM (Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno), pelo Ministério da Saúde, ligado ao Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAM). As atividades do PNIAM tinham o objetivo de atingir todos os grupos e segmentos sociais, tais como: profissionais de saúde, serviços de saúde, inclusive os hospitais, a mãe e suas condições trabalhistas, escolas, comunidade em geral e indústria dos alimentos infantis. (SOUSA, 2006, p.30)

A partir do dado anteriormente apresentado, pode-se considerar que, dentro

da Universidade, havia todo um contexto que favorecia a exigência determinada

pela creche CECI, uma vez que se tratava de um local destinado a filhos e filhas

de mulheres trabalhadoras que deveriam ter assegurado seus direitos trabalhistas

(CLT 1943), e que seria dirigido por uma mulher, enfermeira, até então profissional

da área da saúde da UNICAMP. Além disso, o histórico da instituição creche, de

maneira geral, é marcado pelo viés da saúde e assistência, e a este resgate

histórico é destinado um capítulo desta dissertação.

Sueli Palmen (2005) também abordou a origem das creches em seu

trabalho. A autora apresentou em sua dissertação um panorama da criação delas

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7    

nas Universidades Estaduais Paulistas: Universidade de São Paulo –USP -,

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP -, e Universidade Estadual

Paulista – UNESP -, trazendo ao leitor uma série de fontes documentais sobre os

processos de construção, organização e implementação das creches que tinham

por objetivo abrigar e cuidar dos filhos dos servidores paulistas. Embora a

dissertação da autora tenha contribuído com as questões históricas das creches

universitárias, por questões metodológicas seu trabalho não foi muito utilizado

como referência na presente narrativa, que optou pela ênfase da memória como

fonte de pesquisa.

Sobre a questão da formação de professores, Pinheiro (2006) que foi

primeiramente professora do PRODECAD e em seguida atuou como

coordenadora pedagógica da Creche Área de Saúde apresentou em sua

dissertação “A formação profissional na prática cotidiana: o que nos contam as

educadoras” narrativas de professoras comparadas com profissionais de outra

creche do município de Campinas. Abordou o processo de formação em serviço

das professoras, tanto no que se refere à formação acadêmica, quanto na

iniciativa de formação oferecida pelos Programas Educativos da UNICAMP (CAS,

CECI e PRODECAD) desde 1992, por meio de eventos denominados “Jornada

dos Educadores” e “Aprimoramento profissional”. Pinheiro valeu-se de narrativas

das professoras sobre a formação em serviço e a visão delas sobre o trabalho, e

pontuou também, um pouco da concepção de educação infantil que permeava a

organização da formação por parte da então “equipe técnica” dos Programas6.

Alguns aspectos de seu trabalho foram aqui abordados pela proximidade da

temática da formação profissional.

Por fim, destaco a dissertação de Arnais (2003) que, embora tivesse como

tema principal, a inclusão de crianças com deficiência na creche, teve em seu

contexto, o espaço da CAS, e as professoras e crianças como suas personagens,

já que a autora atuou como coordenadora pedagógica da instituição desde sua

inauguração, sendo também diretora do local em um dado período.

                                                                                                                         6  Equipe  técnica:  denominação  dada  à  equipe  gestora  de  cada  uma  das  unidades  dos  Programas  Educativos,  composta  por  enfermeiras,  pedagogas,  psicólogos,  nutricionistas,  e  assistente  social.  

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8    

Além das dissertações aqui apresentadas, trabalhos de Conclusão de

Curso, tanto de graduação quanto de especialização em áreas diversas foram

escritos sobre os Programas Educativos da UNICAMP. Dentre eles, destaquei

alguns escritos também por professoras do programa que dissertaram sobre seu

local de trabalho: Rosineide Santos da Silva abordou a prática das professoras de

berçário em “Os saberes e fazeres das professoras de bebês: construindo pontes

entre a teoria e a prática” (2006). Já a professora Luciane Siqueira das Chagas em

seu trabalho de conclusão do curso de Pedagogia intitulado “Construção da

Pedagogia da Educação Infantil e a formação continuada e em serviço das

professoras da Creche Área de Saúde” (2006), falou sobre a Jornada dos

Educadores da UNICAMP, a história, os objetivos e as primeiras organizações

deste evento que fez e ainda faz parte do contexto da DEdIC, como uma proposta

de formação e aprimoramento profissional.

A também professora Suellen Pierri, contou um pouco sobre a história do

Centro de Convivência Infantil (CECI) no trabalho “Contando histórias: O Centro

de Convivência Infantil da UNICAMP (2011).

Memória e história de vida

Mas o que significa então escrever mais uma história, dentre tantas já

existentes sobre as creches da UNICAMP? Qual a relevância e a contribuição que

esta temática ainda pode abarcar? Consideramos, em primeiro lugar, que este

trabalho trouxe uma importante relação entre história e memória, e este é o

principal fio que costura todo o tecido deste texto7. O trabalho a partir da memória

como construção social apresentou um diferente recorte daqueles que até então

encontrei em diversos autores que tiveram a creche e os Programas Educativos

como contexto, e, nesse sentido, valho-me de Bosi, quando, em entrevista narrada

                                                                                                                         7  Até  aqui,  a  introdução  vêm  sendo  escrita  na  primeira  pessoa  do  singular  por  se  tratar  de  uma  contextualização  da  pesquisadora  em  sua  pesquisa,  ou  seja,  os  caminhos  que  me  levaram  a  construir  a  dissertação.  Contudo,  o  uso  do  plural  a  partir  do  momento  em  que  o  texto  destaca  as  concepções  teóricas  e  metodológicas  refere-­‐se  à  parceria  imprescindível  com  a  professora  orientadora  Maria  do  Carmo  Martins,  que  permitiu    que  os  caminhos  da  pesquisa  fossem  trilhados  de  uma  maneira  não  usual,  sem  descaracterizar  o  rigor  metodológico  necessário  à  pesquisa  científica,  porém,  destacando  a  importância  de  se  construir  outras  possibilidades  narrativas  nas  ciências  humanas.  

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9    

para a Revista do programa de pós-graduação em comunicação social da

Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas tratou da questão da memória,

Porque o passado reconstruído não é um refúgio, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar. Então, a memória deixa de ter aqui um caráter de restauração do passado e passa a ser a memória geradora do futuro: memória social, memória histórica e coletiva. (BOSI, 2012, p. 196)

Sendo a memória categoria de análise presente em todo o trabalho, faz-se

necessário contextualizar em que perspectiva fizemos aqui uso deste conceito.

Em uma primeira leitura, pode parecer que o trabalho com a memória é algo

puramente subjetivo e intrínseco ao sujeito que narra suas histórias de vida. Uma

questão puramente individual. Se assim o fosse, estaríamos então simplesmente

contando uma história de pessoas anônimas. De fato, não é esta a proposta do

trabalho com a memória, mas sim, na possibilidade de, a partir da individualidade

de sujeitos que vivem em um contexto comum, contribuir para a reflexão sobre

processos sociais, culturais e políticos do período em que viveram. Martins (2007)

apresentou em seu artigo sobre História, Currículo e Práticas Pedagógicas uma

definição sobre o trabalho com a memória,

Algunas veces a memória es un refugio bucólico, un puerto seguro. Otras veces activamos la temática de la memoria para hablar de la identidad del sujeto, de las innumerables possibilidades de construcción de identidades individuales y colectivas, hablamos de memoria para hablar de cultura. Estas imágenes sobre memoria y su asociación con la evocación, como sucedió con las lenguas latinas presentan la memoria como central en la identificación del sujeto con los procesos vividos, con la possibilidad de continuar viviendo, con los deseos y los temores. La memoria vincula, en esse caso, razón y emoción, remite a los sentidos de la experiencia vivida y a la capacidad de lidiar con los tiempos y espacios del sujeto. Por supuesto que la memoria no se valoriza únicamente porque nos permite um enorme adelanto cognitivo, relativo al aprendizaje constante y creciente, sino porque com ella activamos el pensamiento, actualizando el pasado. (MARTINS, 2007, p. 137)

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10    

A definição destacada pela autora apresenta a ideia central sobre a

memória que o texto pretendeu abordar. Embora fazendo parte da gama de

processos cognitivos do ser humano, a memória é também parte da construção da

identidade dos sujeitos, que só é possível pela vivência do coletivo, da cultura.

Dessa forma, qualquer trabalho que pretendesse abordar a questão da memória

de maneira puramente psíquica, ou da mesma maneira, tratar das histórias de

vida a partir apenas das configurações sociais do trabalho, por exemplo,

empobreceria a narrativa que se constitui quando pensamos em sujeitos que não

se dividem entre interno/externo. Esta dicotomia, herança da ciência positivista

não se configurou como aporte teórico para este trabalho. Nem mesmo quando

destacamos a questão da memória a partir de uma perspectiva psicanalista,

visivelmente presente nos escritos benjaminianos, com os quais dialogou-se aqui,

é solicitado que se faça esta separação. Figueiredo Filho (2006) em artigo que

destacou possíveis afinidades entre história e psicanálise fez um apontamento

pertinente para o tema em questão:

O historiador ou cientista social que queira fazer uso da psicanálise, evidentemente deve ter o devido cuidado para não psicologizar os processos sociais, esvaziando-se dos móbices econômicos e políticos. Os abusos são facilmente cometidos, e os erros que dele derivam podem ser grosseiros, como a tentativa de explicar o nazismo e a perseguição aos judeus a partir do complexo de Édipo de Hitler. Vimos, tanto no caso do pintor, quanto no da persistência da agressividade e da destrutividade humanas, a atuação de forças psíquicas, de ordem inconsciente. A maneira como elas se expressam, necessariamente, estão em acordo com a cultura e os aspectos históricos vividos pela sociedade em questão. Por estes motivos, estamos convencidos de que a História e a Psicanálise são ciências afins, e que, adequadamente trabalhadas, podem contribuir para a elucidação de processos históricos. (FIGUEIREDO FILHO, 2006, p.9)

Fazer uso aqui da psicanálise em relação com memória e história aponta

para o fato de que embora os estudos psicanalíticos tenham como foco os

processos internos do sujeito e, fundamentalmente, o inconsciente, não

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consideram o indivíduo e seus processos como isolados do social e da cultura8.

Qualquer interpretação da teoria freudiana nesse sentido apresentar-se-ia como

superficial e incompleta. Renato Mezan, psicanalista e estudioso dos escritos

Freudianos, realizou uma análise das obras do autor em “Freud, pensador da

cultura”, em que destacou a indissociação dos estudos da psicanálise e sua

relação com o contexto social,

A ideia de uma vida pulsional desligada da “realidade” é um conceito vazio, já que, mesmo se ela não se reduz às relações com outrem (na medida em que as pulsões são internas ao corpo), a satisfação da pulsão – seja ela sexual, agressiva ou de autoconservação – está vinculada necessariamente à existência de objetos exteriores à psique do indivíduo. É por essa razão que Freud pode afirmar que a psicologia individual é desde o início psicologia social. (MEZAN, 2006, p.506)

O próprio criador da psicanálise, em seu texto “Projeto de uma psicologia

científica”, de 1895, descreveu minuciosamente os processos neurológicos dos

quais faz parte a memória, e complementou que aquilo que é lembrado ou

esquecido vai além do aparato físico neural, relacionando-se com aquilo que é

específico de cada sujeito, do que habita sua consciência, e principalmente, de

seu inconsciente. (FREUD, 1996)

Embora não se trate, contudo, de uma dissertação sobre a psicanálise é

certo que, em inúmeras passagens em que me inscrevi no texto alinhavaram fios

de reflexão a partir desta base teórica, bem como dialogaram com autores

também neste recorte. Dentre eles, Walter Benjamin, que abordou a temática da

história e sua relação com a memória, especialmente, sobre os conceitos de

memória e rememoração. Dessa maneira, Gagnebin (2006) abordou a

rememoração em Walter Benjamin como sendo,

Uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao

                                                                                                                         8  Inconsciente:  para  Freud,  o  inconsciente  é  a  esfera  mais  ampla  do  aparelho  psíquico,  composto  ainda  pelas  instâncias  pré-­‐consciente  e  consciente.  O  inconsciente  “é  a  verdadeira  realidade  psíquica;  em  sua  natureza  mais  íntima,  ele  nos  é  tão  desconhecido  quanto  a  realidade  do  mundo  externo,  e  é  apresentado  de  forma  tão  incompleta  pelos  dados  da  consciência  quanto  o  mundo  externo  pelas  comunicações  de  nossos  órgãos  sensoriais”.  (FREUD,  2001,  p584)  

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esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente (GAGNEBIN, 2006, p.55)

No que se refere às relações entre história e memória iniciamos os

trabalhos a partir de uma sistematização para tal abordagem, haja vista a gama de

possibilidades que o trabalho com a memória apresenta. Nóvoa (1992) destacou

que as produções acerca das memórias da profissão docente e das histórias de

vida enquadram-se nas chamadas “abordagens (auto) biográficas que, para o

autor, ao mesmo tempo em que são ricas narrativas também apresentam

dificuldades tamanha a diversidade metodológica,

Esta diversidade dificulta a categorização dos estudos centrados nas histórias de vida dos professores. Cada estudo tem uma configuração própria, manifestando à sua maneira preocupações de investigação, de acção e de formação. É muito difícil separar analiticamente as distintas abordagens (auto)biográficas, na medida em que elas se caracterizam justamente por um esforço de globalização e de integração de diversas perspectivas. (NÓVOA, 1992, p. 20)

No entanto, o autor destacou no mesmo texto uma categorização

fundamentada nos objetivos e nas dimensões que as pesquisas desejam alcançar

e que, embora não se tratem de categorias exclusivas, configuram fatores

privilegiados em cada um dos tipos de estudos. Para tanto, uma diversidade de

estratégias e materiais podem ser utilizados, sendo destacados, diários, materiais

escritos ou orais, fotografias, número irrestrito de entrevistados, entre outros. De

acordo com a categorização proposta por Nóvoa (1992), é possível considerar que

o presente trabalho construiu para sua pesquisa “objetivos essencialmente

emancipatórios, relacionados com a dimensão investigação-formação versus

profissão (de professor)”. Nesta perspectiva, o trabalho configurou-se como

emancipatório porque a narrativa pretendeu dar voz aos professores que

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apresentam suas histórias de vida e percurso profissional, sendo possível, ao

revisitar o passado, refletir também sobre o presente. Vale dissertar aqui sobre a

expressão “dar voz aos professores”, utilizada pelo autor: não se considera que,

antes deste trabalho os professores “não tinham voz”, ou qualquer interpretação

no sentido de que eram silenciados. A questão que se coloca é tão somente o fato

de tornar pública uma narrativa de um grupo de pessoas comuns que, através de

suas histórias, de vida e de profissão, dentro de um determinado contexto social,

tem algo a contar. E tais histórias, relacionam-se à construção de um campo de

conhecimento, que é a Educação Infantil.

Não podemos mais fechar os olhos para o fato de ser a memória uma das grandes categorias responsáveis pela identificação do indivíduo com o grupo social. Junte-se a isso o fato de poder, ao resgatar a memória das pessoas envolvidas, atribuir publicamente a elas uma dimensão política que o isolamento e o trancafiamento das lembranças individuais não permitiriam. (MARTINS, 1996, p. 19)

A formação profissional em contexto

As histórias de vida das professoras personagens deste texto entrelaçaram

seus fios quando passaram a fazer parte de um grupo de mulheres trabalhadoras

de uma creche. Além do trabalho, a formação profissional também surgiu como fio

que as uniu, e, nesse sentido, a perspectiva teórica encontrada nos trabalhos de

Ivor Goodson (1992) sobre as histórias de vida de professores trouxe importante

contribuição para a análise das narrativas,

a vida dos professores pode ajudar-nos a ver o indivíduo em relação com a história de seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecção da história da vida da sociedade esclarecendo assim, escolhas, contingências e opções com que se depara o indivíduo (GOODSON, 1992, p. 75)

Os trabalhos de Goodson configuraram-se como importante aporte teórico à

medida que o autor trabalha com as histórias de vida de professores sempre

buscando uma relação com o contexto histórico, político e social de cada época.

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Para tanto, diferencia, em sua língua de origem os termos “life story” e “life

history”, sendo o primeiro definido como relatos de vida que, ao serem situados

em um contexto histórico são transformados em “life histories”. Nas palavras do

autor, “la tarea de esta transformación es hacer visible lós modos em que lós

relatos de vida personales están mediados por imperativos culturales y políticos

más amplios”(GOODSON, 2005).

Assim, tão relevante quanto abordar a importância que a formação

profissional demarcou nas histórias de vida das professoras da CAS, é abordar

esta profissionalização no contexto histórico mais amplo da inserção da creche

como instituição social e sua demanda de atuação. A obra de Ivor Goodson

corrobora para esta análise de mão dupla.

Os documentos

Para a construção desta narrativa optamos pela utilização de fontes

documentais que materializaram a história de construção e implementação da

creche, encontradas tanto dentro da própria instituição, quanto no Sistema de

Arquivos da Universidade – SIARQ: processos que tratam da construção da

creche, convênio entre instituições que implantaram as primeiras atividades

(Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP -, Fundo Social da

Solidariedade do Estado de São Paulo – FUSSESP -, Faculdade de Ciências

Médicas da UNICAMP – FCM), edital do processo seletivo de recreacionistas,

relatórios sobre o primeiro ano de funcionamento da creche.

A narrativa é construída usando documentos. Estes emitem sinais que teremos que desvendar. Para poder desvendar esses sinais, transformamos os documentos em fontes, nas quais saciamos a nossa sede de conhecer (MARTINS, 1996, p. 15)

Os documentos foram tão importantes quanto as entrevistas,

complementando-as. Embora o destaque tenha sido mantido nos relatos das

professoras, ao longo do trabalho, tais fontes trouxeram informações em

instâncias que as histórias de vida não puderam abarcar.

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As professoras e suas memórias: o trabalho com as entrevistas

Ao optar pelo trabalho a partir de entrevistas, foi necessário primeiramente,

elencar um critério de escolha das professoras. Como o trabalho dizia respeito à

questão da memória da instituição, o primeiro ponto a ser definido foi encontrar as

professoras aprovadas no primeiro concurso público para atuar na creche logo no

início de seu funcionamento, em 1990. A fonte documental que continha esta

informação, contudo, apontava para o nome de cinquenta aprovadas e que foram,

aos poucos, convocadas. Destas, algumas já não atuavam mais, outras, foram

para outras unidades de trabalho (como o CECI, por exemplo, já que hoje, é

possível esta mobilidade). Surgiu então, o segundo critério de escolha:

estabelecer relação entre nomes de aprovadas no primeiro concurso público para

recreacionista (UNICAMP, SIARQ, 1990) e nomes de atuais professoras do

quadro profissional da Creche Área de Saúde. Encontrei seis nomes.

Dessa forma, o trabalho foi tecido com recortes da história obtidos a partir

de entrevistas individuais com as professoras da creche que foram contratadas

através do primeiro concurso público para a “nova creche da UNICAMP” 9. No que

se refere às questões metodológicas, o primeiro passo foi realizar um encontro

com as seis professoras da creche que foram aprovadas para a função de

recreacionistas, em 1990, a partir dos dados encontrados em fontes documentais.

Neste dia, tivemos a oportunidade de narrar um pouco sobre meu trabalho e

verificar a disponibilidade das professoras em participar das entrevistas. Todas

concordaram em participar da pesquisa e apresentaram melhores datas e horários

para a realização desta etapa. Logo em seguida, iniciamos o processo de

elaboração das entrevistas, optando pela efetivação de momentos individuais com

cada uma delas, e elaborando um roteiro inicial de questões comuns a todas. As

questões tinham como objetivo contribuir para a rememoração de alguns períodos

                                                                                                                         9  De  acordo  com  o  Comitê  de  Ética  em  Pesquisa  –  CEP  -­‐,  trabalhos  que  envolvem  seres  humanos,  como  é  o  caso  da  utilização  de  entrevistas,  devem  ser  submetidos  à  aprovação.  Dessa  forma,  o  presente  trabalho  foi  encaminhado  ao  órgão  responsável  no  dia  08/05/2013,  sendo  aprovado  no  dia  10/06/2013,  sob  o  parecer  de  número  299.841.  Após  a  aprovação,  as  entrevistas  foram  realizadas.  

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marcadamente históricos para a creche, como o ingresso das professoras, o

concurso pelo qual foram aprovadas, os estudos do magistério e a formação

superior, e as práticas pedagógicas desenvolvidas ao longo dos anos. (Anexo I)

No entanto, a intenção também foi deixar as histórias surgirem à medida que as

professoras fossem narrando suas memórias, e que a pesquisadora também

colocasse questões adicionais nas entrevistas, de acordo com aquilo que seria

rememorado por cada uma. Não gostaríamos que as entrevistas ficassem

limitadas a um roteiro de perguntas, mas algumas foram importantes para iniciar

as histórias. Para construir uma documentação a partir da história oral, seguimos

os quatro “passos” descritos por Vidal (1998), sendo eles: a preparação da

entrevista (seleção das personagens, roteiro, cuidados com equipamento), a

situação da entrevista, transcrição, e por fim, o retorno da transcrição ao

entrevistado.

Da preparação da entrevista, que corresponde ao primeiro passo, de início

seriam realizadas seis entrevistas, com cada uma das professoras escolhidas por

serem as únicas que continuam em exercício na creche até os dias de hoje. Uma

delas, no entanto, estava com problemas de saúde no período determinado para a

realização deste procedimento da pesquisa, e, posteriormente, entrou em período

de férias institucionais. Dessa forma, não foi possível entrevistá-la, definindo-se

então, cinco professoras participantes do trabalho. O equipamento e situação de

entrevista foram o mesmo para todas, sendo estes momentos realizados em uma

sala da própria instituição, com duração aproximada de uma hora.

A transcrição foi o passo mais trabalhoso, demandando muito tempo e

concentração para que as falas fossem o mais literal possível, sem interpretações

por parte da entrevistadora. A única alteração feita nas transcrições foi com

relação a nomes. Em alguns momentos das entrevistas, as professoras relataram

acontecimentos envolvendo nomes de outras pessoas, como por exemplo, de

diretoras e coordenadoras que atuaram na creche e, nesses casos optamos por

preservar os nomes, substituindo-os por nomenclaturas dos cargos ocupados à

época, e, em alguns trechos, apenas a letra inicial dos nomes.

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Por fim, sobre o retorno da transcrição, as entrevistadas tiveram a

oportunidade de ler, aprovar ou solicitar ajustes às transcrições, bem como

escolher o nome fictício de suas personagens, além de se apresentarem na

narrativa. A escolha de outro nome que não o verdadeiro foi importante para que

se sentissem mais seguras com relação ao que seria posteriormente publicado,

pois se trata de um passado recente, e de uma história a qual todas ainda fazem

parte, ou seja, a creche continua em funcionamento e a maioria dos integrantes

desta história continua atuando no mesmo local.

As entrevistadas então foram as seguintes:

Ana – 43 anos: Foi entrevistada no dia 13/06/2013. Ingressou na creche

tendo cursado o Ensino Médio e nunca havia atuado com crianças. Já trabalhava

na universidade, exercendo função administrativa. Ao longo dos anos, concluiu o

curso de magistério (nível médio), e ingressou na graduação em Biologia, mas não

chegou a finalizar. Depois se formou em Pedagogia.

Antônia – 54 anos: Foi entrevistada no dia 14/06/2013. Atuava como técnica

em enfermagem no setor de Pediatria do Hospital de Clínicas da UNICAMP

quando realizou o concurso para a função de recreacionista da creche. Concluiu o

magistério e há alguns anos o curso superior em Pedagogia.

Eliana – 49 anos: Foi entrevistada no dia 12/06/2013. Ingressou na creche

com escolaridade de nível médio. Antes de começar a trabalhar como

recreacionista já trabalhava com crianças, em uma escola de educação infantil

exercendo o cargo de “monitora de ônibus” de transporte escolar. Cursou

magistério e pedagogia.

Flor – 51 anos: Sua entrevista foi feita no dia 11/06/2013. Ao prestar o

concurso da creche, já trabalhava com crianças como monitora na educação

infantil. Havia concluído o ensino médio, e posteriormente, fez magistério e

Pedagogia.

Maria Queiróz – 63 anos: Entrevista realizada em 17/06/2013. É a única das

professoras entrevistadas que, ao ingressar na creche, já havia concluído o curso

de magistério. Trabalhava como empregada doméstica quando participou do

concurso para recreacionista, e, permaneceu exercendo ambas as funções

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durante muitos anos. Concluiu o curso de Pedagogia e também uma

especialização.

É importante pontuar que, além da apresentação das profissionais aqui

destacadas, no decorrer do texto, à medida que suas falas apareceram pela

primeira vez na narrativa, logo em seguida escrevi um breve relato apresentando-

as novamente, mas, desta vez, pela perspectiva delas mesmas, ou seja, solicitei a

cada uma, uma escrita sobre como gostariam de se apresentar aos leitores. Das

cinco, Antonia foi a única que preferiu que eu mesma redigisse. Maria Queiróz

pediu alguns dias para pensar e escrever. No entanto, um acontecimento trágico

ocorreu em sua vida durante este período. Sua única filha faleceu vítima de um

atropelamento. Dessa forma, Maria ficou por um período afastada do trabalho, e

optamos por escrever sua apresentação.

Uma vez estabelecidas as questões metodológicas, iniciou-se o processo

de escrita da narrativa. O primeiro capítulo do trabalho apresentou um panorama

histórico da origem da instituição creche no país ainda no final do século XIX e,

posteriormente, os precedentes históricos, dentro da Universidade, que

contribuíram para o surgimento da Creche Área de Saúde. Assim, destacou-se

uma série de acontecimentos contextualizados na década de 1980. Já no capítulo

seguinte emergiram as primeiras memórias das professoras sobre o início de

funcionamento da creche, suas atividades, o concurso público para o cargo de

recreacionista, e a chegada das crianças. As memórias perpassaram

aproximadamente uma década. No item três, demarcou-se um novo período a

partir dos anos 2000, tanto para a CAS quanto para a Educação Infantil de

maneira geral, já que se tratava de um momento histórico de novas exigências

legais para a atuação com crianças de zero a três anos de idade. As cuidadoras

tornam-se professoras10. Os fios entrelaçaram-se em um último capítulo,

                                                                                                                         10  O  termo  “cuidadora”  apareceu  em  grande  parte  da  narrativa,  inclusive  como  adjetivo  emergente  no  título.  Muito  embora  a  nomenclatura  inicial  de  trabalho  das  mulheres  da  creche  fosse  “recreacionistas”,  como  destacado  no  edital  do  Concurso  Público  aqui  utilizado  como  fonte,  o  termo  cuidadora  foi  marcante  nas  entrevistas  e  definiu  uma  prática  comum  desde  os  primórdios  do  trabalho  em  creche  por  se  tratar  de  um  atendimento  a  crianças  pequenas,  que  dependem  da  figura  do  adulto.  Ao  longo  do  tempo,  as  práticas  começaram  a  ser  questionadas  e  necessariamente  relacionadas  à  educação,  instaurando-­‐se  então,  o  binômio  “Cuidar  e  educar”  como  práticas  indissociáveis  na  educação  infantil.  

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finalizando um pequeno tecido, um recorte sobre a história da Educação Infantil e

as professoras que constituíram suas vidas neste contexto. Apresentam-se as

contribuições finais para esta temática e a compreensão, a partir das histórias e

memórias, de que o caminho da formação profissional é necessário e

fundamental, mas problemático quando não se considera a experiência do

trabalho e as especificidades de atuação com crianças de 0 a 3 anos. Quais as

possibilidades a seguir, então?

Objetos biográficos

Em uma última consideração no que se refere à introdução do texto,

destaco as razões pelas quais optamos pela utilização de algumas imagens que

vão, pouco a pouco, surgindo em meio à trama do tecido desta história, e que de

certa forma, apresentaram-se como um “bordado” em meio à costura de fios da

creche. As imagens refletem aquilo que Bosi (2003) denominou de “Objetos

Biográficos”, que seriam aqueles que, em certa medida envelhecem com seus

donos e são praticamente incorporados à vida das pessoas.

São estes os objetos que Violette Morin chama de objetos biográficos, pois envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-múndi do viajante... Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva do morador. (BOSI, 2003, p.26)

Assim, na tentativa de relacionar memória, história e imagens, busquei, nos

espaços da creche, e com a ajuda das professoras, objetos que, assim como elas,

estão na creche desde seu primeiro dia de funcionamento. É certo que, alguns

deles não permaneceram no espaço apenas por uma relação de afeto com as

pessoas que ali estão; pode-se pensar sobre eles, como uma espécie de “Cultura

Material” de um espaço voltado ao atendimento de crianças; ou ainda, refletir

sobre a dificuldade de um órgão público adquirir novos bens materiais para o

trabalho. Inúmeras seriam as possibilidades de reflexão sobre as imagens aqui

apresentadas. Contudo, a opção de relacioná-las às narrativas e histórias de vida

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contribuiu para a temática do trabalho. “Nossa, isso aqui ta aqui desde sempre!”,

disse uma das professoras. “Passei minha vida olhando para isso aqui no parque”,

contou-me outra.

O processo de identificação dos objetos biográficos aconteceu em um dia

de trabalho. No horário de descanso das crianças, perguntei às professoras se se

lembravam de materiais que estavam na creche desde 1990. Imediatamente, Ana

levantou-se do chão, onde estava sentada ao lado de uma criança que já dormia

em seu colchão, e me levou aos objetos. Olhava para uma mesa, e recordava-se

de uma história. E então, realizávamos o registro fotográfico. E assim aconteceu

com alguns dos objetos que cotidianamente utilizamos com as crianças. Por

vezes, reclamamos por se tratar de algo “tão velho”. Outras, sequer nos damos

conta disto, talvez por já estarem tão incorporado em nossa rotina de trabalho.

Quanto mais voltados ao uso quotidiano mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos de madeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e se abranda. (BOSI, 2003, p.26)

 

A partir destes fios que começaram a ser tecidos na presente introdução, o

trabalho buscou em suas linhas uma costura que valorizou a relação história e

memória para narrar o percurso histórico de uma instituição e suas profissionais,

alinhavando os depoimentos das histórias de vida destas mulheres com as tramas

políticas, sociais e culturais da história da educação infantil. Mais ainda, o olhar

destas professoras acerca de todo este percurso. O que a história pôde contribuir

para problematizar os desafios da profissão?

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Capítulo I: O surgimento da creche como instituição social: a Creche Área de Saúde e sua herança histórica.

As creches no Brasil

Em muitos paizes da Europa, que se acham na vanguarda da civilisação e do progresso, há uma instituição, filha da caridade, destinada á primeira infância, cujos beneficos resultados a experiência tem cabalmente demonstrado, de sorte que nestes ultimos tempos Ella se tem generalisado de modo notável. Essa instituição philantropica é denominada em francez creche, nome que conservamos, já porque falta em nossa língua um termo que o traduza perfeitamente, já também porque tal denominação se acha aceita por todos quantos aqui e em Portugal tem tratado desse assumpto. [...] No Brazil ainda não existe a creche, entretanto sua necessidade me parece palpitante, sobretudo nas actuaes condições em que se acha o nosso paiz depois da moralisadora e humanitária lei de 28 de setembro de 1871, em virtude da qual nelle não nasce mais um so escravo. (VINELLI, A CRECHE, in Jornal “A mãi de família, 1879)

A citação acima, parte da primeira edição do Jornal “A mãi de família”

(1879) que teve publicação no Rio de Janeiro e circulou até 1888, trazia, pela

primeira vez no país, informações sobre o surgimento da instituição creche na

Europa. Além da informação, apontava para a necessidade de creches também no

Brasil, que promulgara a “Lei do ventre livre”11 (BRASIL, 1871). Segundo a

publicação do jornal, as escravas, teriam enorme dificuldade em encontrar um

local para trabalhar ao chegarem com seus filhos nos braços. No entanto, caso

“exista na proximidade do lugar em que Ella trabalha um asylo em que Ella possa

deixar durante o dia sem receio, o filhinho, em que ella possa vir dar-lhe de mamar

[...] vêde como a scena muda. [...]”

O redator principal e também fundador do jornal, Dr. Carlos Costa, era

médico higienista e se propunha, nas páginas de comunicação, a ensinar tudo

aquilo que dizia respeito à educação física da criança a partir dos conhecimentos

das “ciencias dos homens”, já que para ele, as mulheres da sociedade brasileira

não cumpriam de maneira adequada seu papel:

                                                                                                                         11  De  acordo  com  a  Lei  do  Ventre  Livre,  também  conhecida  como  “Lei  Rio  Branco”,  todas  as  crianças,  filhas  e  filhos  de  mulheres  escravas,  a  partir  de  28  de  setembro  de  1871,  nasceriam  livres.  

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As mulheres em nosso paiz não cumprem tanto quanto deviam os sagrados deveres de mães... umas por vaidade, outras por pobreza e finalmente muitas por desculpada ignorância não cumprem sua missão sublime, a unica que lhes foi confiada, a da Maternidade! (A mãi de família, 1879, p.1)

Dessa forma, tinham destaques matérias sobre o aleitamento materno,

moléstias da infância, e a nova instituição creche. Este último item, principal para

nós, propunha um local para filhos das escravas, ou seja, não seria um abrigo

adequado para toda e qualquer criança, mas sim, destinado à infância pobre da

época.

A “Mai de família” voltava-se para a leitura de mulheres brancas e da elite, e

teve boa aceitação no Rio de Janeiro, circulando também em São Paulo e Minas

Gerais (CARULA, 2012), e foi neste período, que começaram a surgir no país

algumas iniciativas de atendimento à primeira infância. Iniciava-se ainda, por

influência da organização de tal atendimento nas sociedades europeias, a

distinção entre os termos creche e jardins de infância. O primeiro, como já

destacado, voltado aos filhos de mulheres pobres e operárias e de até dois anos

de idade. Às crianças um pouco mais velhas, os jardins de infância, por sua vez,

destacar-se-iam como um “lugar propício para o desenvolvimento e cultivo de

bons hábitos”, porém, apenas para os filhos da elite do Rio de Janeiro

(KUHLMANN JR., 2000).

Ainda tratando-se da preocupação com a infância pobre brasileira, a

literatura demarcou a instituição creche como sendo também uma solução para o

problema enfrentado com a “casa dos expostos”, já que, havendo um local de

abrigo para as crianças, a mãe não mais necessitaria abandonar seu filho e, ao

mesmo tempo poderia trabalhar, “contribuindo” para nova organização da

sociedade12.

                                                                                                                         12  A  “casa  dos  expostos”  ou  “roda  dos  expostos”  abrigava,  tanto  na  Europa,  quanto  no  Brasil,  bebês  abandonados.  Em  geral,  localizavam-­‐se  anexas  aos  hospitais  e  eram  mantinhas  pelas  Santas  Casas  de  Misericórdia.  Segundo  Kuhlmann  Jr.,  (2000),  os  bebês  eram  deixados  em  uma  espécie  de  roda  de  madeira,  que  garantia  o  anonimato  daquele  que  ali  deixasse  a  criança.  A  casa,  encaminhava  os  bebês  à  amas  de  leite  

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Cabe aqui uma breve ressalva destacando duas questões que, embora, ao

longo da pesquisa não se configuraram como principais fios condutores, mas que

em certa medida permearam toda a discussão acerca da formação profissional

daquela que compreendemos hoje como professora de educação infantil. O

primeiro ponto tratou da concepção de criança que, desde os primórdios da creche

voltou-se a atenção os discursos científicos, demarcando a relação não muito bem

definida entre diversas áreas de conhecimento, como saúde e educação, por

exemplo. Este ponto desmistifica a ideia de uma história linear do trabalho na

creche que define um processo único de passagem da assistência à educação e

que as Leis atuais consolidaram. Verificou-se, ao longo da pesquisa que,

considerando o contexto da época, era possível visualizar também concepções

educativas na creche. Na mesma medida, é possível encontrar, ainda nos dias de

hoje, unidades de educação infantil e concursos que não exigem a formação

profissional para atuar com as crianças pequenas. Esta visão, contudo, não é

consensual entre autores que dissertam sobre a temática, mas é a ideia aqui

defendida.

O outro ponto refere-se a figura demarcada do gênero feminino. Ambos,

criança e mulher, são público alvo a quem se destinava o discurso da importância

do surgimento da creche. A criança, sempre de infância pobre que deveria ser

protegida. Já a mulher, ora para aquelas de abastadas classes sociais que

necessitariam da mão de obra da mulher pobre, ora, para a própria mulher pobre

que, sem condições para sustentar seu filho, deveria aderir ao “mal necessário” da

creche para garantir sua sobrevida13. E, sobretudo, a mulher cuidadora das

crianças que passaria então a atuar na creche. De fato, não é possível negar a

influência destes discursos durante todo o percurso que a creche percorreu,                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    que  os  criavam  até  a  idade  para  poderem  frequentar  o  internato.  A  creche  surgiria  então,  como  uma  alternativa  para  que  as  famílias  pobres  não  abandonassem  seus  filhos  na  roda.  13  Segundo  pesquisas  como  a  de  Vieira  (1988)  o  termo  “mal  necessário”  foi  utilizado  para  caracterizar  a  necessidade  de  adesão  ao  atendimento  das  creches  no  início  do  século  XX  pelas  mulheres  pobres  por  duas  questões  principais.  A  primeira  delas,  já  destacada  no  texto,  pela  necessidade  de  trabalhar  para  sobreviver  e  sustentar  o  filho.  A  segunda  dizia  respeito  ao  fato  de  que,  havia  na  época  uma  prática  realizada  por  mulheres  que,  em  suas  próprias  casas  cuidavam  de  crianças  vindas  de  várias  famílias  enquanto  as  mães  estavam  trabalhando.  Estas  mulheres,  chamadas  de  “cuidadeiras”  ou  “tomadeiras  de  conta”,  segundo  a  literatura  não  adotavam  hábitos  corretos  e  necessários  aos  cuidados  de  crianças  tão  pequenas,  e,  este  atendimento,  era  responsável  pela  grande  taxa  de  mortalidade  infantil.  

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tampouco desconsidera-lo aqui. Tais discursos estiveram presentes em toda a

construção narrativa sobre as mulheres professoras do século XXI. Embora a

questão demarcada do gênero não emergiu como categoria de análise, em

momentos diversos ela apresentou-se como pano de fundo no texto.

Retomando o processo de implementação das creches no Brasil, Kuhlmann

Jr. (2000) ressaltou que somente no ano de 1899 foi criada a primeira creche no

país, justamente no Rio de Janeiro, para atender aos filhos de operárias da

“Fábrica de Tecidos Corcovado”. A partir desta primeira referência, o autor

destacou uma série de outras iniciativas, mas que foram paulatinamente

acontecendo no cenário nacional, não acompanhando a demanda existente à

época. Antes disso, destacou o surgimento dos então denominados “jardins de

infância”, sendo o primeiro deles fundado em 1875 no Rio de Janeiro, e, e no

Estado de São Paulo, em 1896, em anexo ao Colégio Caetano de Campos.

O texto de Kuhlmann Jr. apresentou um panorama riquíssimo de

informações sobre este período histórico do surgimento das creches no Brasil,

associando a instituição à criação de diversos órgãos de proteção à infância que

emergiam no cenário político, como a fundação do “Instituto de Proteção e

Assistência à Infância do Rio de Janeiro” no mesmo ano em que fora inaugurada a

primeira creche no país. O instituto foi responsável, no início do século pela

criação de outras creches, porém, não sendo o único órgão a desempenhar tal

atividade. Em 1908, por exemplo, a entidade “Patronato de Menores”, organizada

por juristas e senhoras da sociedade carioca, criava a “Creche Central”. Em São

Paulo, a “Associação Feminina Beneficente e Instructiva” também organizava o

atendimento em creches. (KUHLMANN JR., 2000). No mesmo sentido, Spada

(2005) corroborou em seu artigo com a história de implantação das primeiras

creches no país, associando-as a iniciativas de natureza filantrópica,

as creches em muitos aspectos aproximavam-se dos asilos infantis, pois as entidades que foram instaladas em São Paulo, no final do século XIX, como as de Anália Franco, têm o intuito de minimizar os graves problemas de miséria vividos por mulheres e crianças, além do importante atendimento em regime de internato oferecido às crianças órfãs e abandonadas.

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Um aspecto de grande influência na caracterização do tipo de serviço prestado pela creche, bem como sua percepção – pelos funcionários e pela população – como um local que oferece atendimento caritativo aos desvalidos tem suas origens no próprio processo de criação da instituição e também no fato de que o Estado não teve qualquer participação na implantação e funcionamento inicial das instituições de atendimento infantil. Este atendimento é, durante um longo período, realizado por entidades de natureza filantrópica, quase que exclusivamente por entidades religiosas, especialmente pela igreja católica. (SPADA, 2005, p.3)

O discurso de proteção à infância perpassava pelas diversas áreas de

conhecimento, ocasionando em todo o cenário nacional iniciativas para

organizações de creches. Aqui, as primeiras relações entre assistência, higiene e

saúde e educação começaram a estabelecer-se, mais ainda sem um foco definido.

A falta de uma política pública nacional que unificasse e solidificasse as propostas

de trabalho permitiam que iniciativas com infinidades de propósitos e objetivos

fossem criadas sem uma reflexão sobre a creche que passava lentamente a

integrar a gama de instituições sociais. Em geral, as iniciativas eram tidas como

“favores” de órgãos sociais à população pobre, e não um dever do Estado, como

se compreende na atualidade.

Assim, na primeira metade do século XX ocorreu uma paulatina expansão

das creches no país. Um dos marcos políticos que se relacionou intimamente a

essa expansão foi a publicação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT- de

1943. Nela, destacava-se a importância das empresas prestarem atendimento aos

filhos da mulher trabalhadora, como destacado no artigo 389:

Art. 389. Todo empregador será obrigado: [...] Parágrafo único. Quando não houver creches que atendam convenientemente à proteção da maternidade, a juízo da autoridade competente, os estabelecimentos em que trabalharem pelo menos trinta mulheres, com mais de 16 anos de idade, terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar, sob vigilância e assistência, os seus filhos no período de amamentação. (BRASIL, CLT, 1943)

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Ainda sobre a década de 1940, Vieira (1986) destacou a criação de

políticas voltadas a assistência à maternidade, e, com isso, uma série de

instituições passaram a trabalhar ativamente nesta questão. Assim, o

Departamento Nacional da Criança (DNCr), o Ministério da Educação e Saúde e a

Legião Brasileira de Assistência (LBA) seriam órgãos atuantes na criação de

creches. Destacou-se neste período o fato de que, as iniciativas, embora ainda

existentes, de criação de creches por entidades filantrópicas, estas passariam a

dividir seu espaço com órgãos governamentais. Interessante também foi verificar a

denominação do órgão “Ministério da Educação e Saúde”, que já pelo nome,

demarcava a relação entre as áreas de conhecimento e que permanece até os

dias atuais nas creches.

Destacados alguns dos marcos importantes do início do século XX, que

consolidaram a creche como uma instituição social, ainda com um caráter de

assistência às famílias pobres (embora já existissem outros órgãos voltados à

educação das crianças pequenas), é na década de 1980, ou seja, no contexto de

redemocratização do Estado que, no interior da Universidade Estadual de

Campinas, ocorreu o surgimento da primeira creche. Iniciava-se o trabalho que

passaria a ser denominado posteriormente “Programas Educativos da UNICAMP” 14.

A década de 1980: O Estado de São Paulo e a redemocratização da sociedade

Durante a década de 1980, o Estado de São Paulo foi marcado por uma

série de mudanças políticas e sociais. Dessa forma, antes de abordar o

surgimento da CAS como um órgão específico, e a história em que as

protagonistas deste trabalho estavam inseridas, destacou-se um pouco sobre o

contexto social da época, bem como a implantação, dentro da Universidade, de

                                                                                                                         14  Posteriormente,  em  2010,  a  nomenclatura  do  órgão  foi  alterada  para  Divisão  de  Educação  Infantil  e  Complementar  da  UNICAMP.  

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outros órgãos que foram também criados com o intuito de atender as crianças da

comunidade.

Sader (1988) contextualizou a década de 1980 em sua obra “Quando novos

personagens entraram em cena”, que tratou dos movimentos e reivindicações

sociais deste período em que era urgente e emergente que o Estado criasse

projetos que atendessem a tais manifestações.

Embora as pessoas se encontrem, de saída, numa sociedade estruturada já de determinada maneira, a constituição histórica das classes depende da experiência das condições dadas, o que implica tratar tais condições no quadro das significações culturais que as impregnam. E é na elaboração dessas experiências que se identificam interesses, constituindo-se então coletividades políticas, sujeitos coletivos, movimentos sociais. (SADER, 1988, p.44-45)

O autor destacou que as décadas de 70 e 80 foram marcadas por grandes

lutas e movimentos sociais de trabalhadores que, embora “engolidos” pelo sistema

capitalista de produção, foram se constituindo como sujeitos coletivos e, como

resultado desta coletividade, organizaram-se movimentos como as “comunidades

de base”, “clube de mães”, entre outros que alteraram a concepção de um sujeito

individual, para um sujeito que se constitui nas relações sociais e de trabalho. A

questão do trabalho feminino, que ascendia à época, conota ainda outra

especificidade destas relações destacada pelo autor,

Há finalmente uma outra característica marcante para compreensão dos significados presentes na experiência do trabalho nesse período: a crescente participação da mulher nas atividades remuneradas. A percentagem das mulheres na população economicamente ativa da Grande São Paulo passou de 25,4% em 1950 para 28,2% em 1970 e 32,8% em 1980. Houve aumento da participação feminina em praticamente todos os setores e ocupações, inclusive em ramos industriais até então mais resistentes ao trabalho da mulher a partir de critérios como o da menor resistência física [...] Professoras, enfermeiras, secretárias, além das operárias não qualificadas, parecem reunir a maioria das categorias do trabalho feminino. (SADER, 1988, p.85)

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Caracterizar o trabalho marcadamente feminino desta época é importante já

que os dados sobre a origem das creches da UNICAMP indicam que as vagas

para as crianças deveriam ser prioritariamente para filhos de mulheres

trabalhadoras e em período de amamentação, o que faz referência ao artigo 389

da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, 1943) aqui já citado. Também é

importante dizer que, no que se refere à criação das creches – CECI e CAS –

fontes documentais apontaram para a composição de um clube de mães que teve

participação ativa por determinado período nestas instituições.

A partir da nova configuração política e social e a inserção feminina cada

vez maior no mundo do trabalho, uma das medidas tomadas pelo Governo do

Estado de São Paulo, sob assessoria do Fundo de Assistência Social do Palácio

do Governo (FASPG) foi a criação do Decreto N. 18370 de 08/01/1982, que

determinava a instauração do Programa Centros de Convivência Infantil- CCI -,

em resposta à grande demanda social que dirigia as mulheres para o trabalho fora

do lar, e que precisavam de um local para abrigar e cuidar de seus filhos durante o

tempo em que estivessem no trabalho. Dessa maneira, os Centros de Convivência

Infantil surgem tendo como característica a

prestação de serviços a um segmento populacional determinado: mães, trabalhadoras do serviço público, assalariadas. Desta forma, o universo a que se destina ao nível institucional é: a administração pública direta (secretarias estaduais), e a administração pública indireta (Autarquias – por exemplo as universidades e empresas estatais).” (REIS, 1997, pag. 64-65).

O projeto de implantação dos CCI’s fundamentava-se ainda em dados que

remetiam às mudanças sociais da época, como a existência de um número

reduzido de creches, - principalmente para o atendimento de alguns órgãos

estaduais -, o crescente número de mulheres no mercado de trabalho e a

necessidade de atender seus filhos (SÃO PAULO, 1998, apud REIS, 1997, p. 64).

O Governo do Estado de São Paulo, por meio da criação desse programa de atendimento a infância e sua família, tinha como meta o ajustamento das repartições públicas estaduais às determinações da Consolidação das Leis Trabalhistas (1943),

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quanto ao atendimento aos filhos de suas funcionárias no local de trabalho, quando este tivesse em seu quadro mais de 30 mulheres trabalhando. Até mesmo as universidades públicas estaduais, cuja administração caracteriza-se como descentralizada, deveriam se adequar ao referido decreto pelo fato de comporem o quadro das repartições públicas. (PALMEN, 2005 p.181)

O mesmo Governo do Estado, chefiado por Paulo Maluf que começava a

implantar os CCI’s no início da década de 1980, indicou o nome do Dr. José

Aristodemo Pinotti ao cargo de reitor da Universidade Estadual de Campinas,

elegendo o 11º nome indicado em consulta pública à comunidade.

Em 1981, o Conselho Diretor (Condi), precursor do Consu (Conselho Universitário), formado predominantemente por diretores de unidade, delegou às entidades de representação das três categorias (alunos, funcionários e estudantes) a realização de consulta paritária à comunidade. Porém, o governador do Estado à época, Paulo Maluf, selecionou o 11º colocado na consulta, o professor José Aristodemo Pinotti, para o cargo de Reitor no período de 1982 a 1986 (USP, ADUSP, 2005).

A escolha do novo reitor trouxe grande insatisfação à comunidade, que

havia indicado como primeira escolha em consulta pública o nome do professor

Paulo Freire. A nova gestão, então, precisava dar início às suas atividades

atendendo a algumas demandas dos trabalhadores, dentre elas, a abertura de

uma creche para filhos e filhas de funcionárias que, retornando ao trabalho após a

licença maternidade de quatro meses (ou menos em alguns casos), teriam ainda,

o direito de amamentar, de acordo com o artigo 396 da “Consolidação das Leis do

Trabalho” (BRASIL, CLT, 1943)15. A primeira iniciativa que se teve registro então

foi a de alugar uma casa nas proximidades da Universidade, para atender a 30

bebês. O ano era 1982. A casa alugada configurou-se como o início das

atividades do atual Centro de Convivência Infantil, o CECI, à época, sob a sigla de

CCI, que correspondia também ao Programa Estadual que começava a entrar em

vigor.

                                                                                                                         15  Art.  396.  Para  amamentar  o  próprio  filho,  até  que  este  complete  6(seis)  meses  de  idade,  a  mulher  terá  direito,  durante  a  jornada  de  trabalho,  a  2(dois)  descansos  especiais,  de  meia  hora  cada  um.  

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As reivindicações por creches na Universidade iniciaram-se, contudo,

segundo Reis (1997) antes deste período. E, por parte da UNICAMP enquanto

empregadora, a primeira manifestação em prol da construção de uma creche

ocorreu no ano de 1975, quando um ofício da própria Coordenadoria de

Assistência Social é divulgado abordando a questão:

A implantação de uma creche na Unicamp apresenta-se como oportuna medida a ensejar que família e universidade se beneficiem e se reforcem. A promoção do bem estar físico, espiritual e social do homem constitui o objetivo primordial da universidade (...) As mães que trabalham ou estudam na universidade deixam de dedicar a atenção, o cuidado e carinho aos filhos (...) muitas destas mães, não contando com pessoas capacitadas para suprir sua permanente ausência do lar, sentem-se preocupadas, angustiadas e tristes com reflexos visíveis no desempenho de suas atividades na Unicamp. (UNICAMP, Processo administrativo nº 3384. 1975, apud REIS, 1997, p. 36)

A autora apontou ainda que neste período, as reivindicações sindicais em

defesa dos direitos trabalhistas, já incluíam em sua pauta a criação da creche. A

então chamada Associação dos Servidores da Unicamp – ASSUC -recebia críticas

por ser composta por funcionários da “alta burocracia da universidade”, e surgiu

então, uma nova chapa de caráter sindical, que incluía em sua luta a creche como

um dever do Estado:

POR UMA CRECHE QUE ATENDA ÀS NOSSAS NECESSIDADES...CRECHE é obrigatório por lei. A maioria dos servidores da UNICAMP (funcionários e professores) tem crianças pequenas em idade não-escolar. Propomos uma comissão de creche formada por interessados, que deverá ser apoiada e incentivada pela Diretoria da Associação, para batalhar por uma creche, que deverá ser mantida pela UNICAMP em condições estabelecidas pelos servidores. (Boletim da ASSUC, s/d, apud REIS, 1997, p.48).

A casa alugada para receber as crianças foi uma resposta dada pela reitoria

para “acalmar os ânimos” da comunidade, após sete anos do primeiro ofício que

abordava a reivindicação. E, embora o atendimento inicial reproduzisse o

pensamento do início do século de abrigar e dar assistência às crianças,

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aparentemente sem nenhum planejamento das questões educativas, tanto no que

se refere às profissionais que atuariam com as crianças, quanto em questões de

instalações, materiais e mobiliário, a supervisão do local já era realizada por uma

profissional da área da educação.

No ano de 1992, já havia mais de 150 CCI’s no Estado de São Paulo, não

havendo, contudo, nenhuma articulação entre eles. O trabalho de Reis (1997)

destacou que o programa CCI dispunha de diretrizes a serem seguidas na

implantação das creches, mas o Projeto era utilizado apenas como roteiro para

estas instituições, e que, na verdade, só foi colocado em prática nas repartições

públicas que dispunham de recursos humanos e financeiros para tal.

Retomando a discussão sobre a vinculação histórica tanto com as questões

de abrigo e cuidado de crianças, quanto com o trabalho feminino, o CCI da

UNICAMP, que iniciou seu atendimento com capacidade para apenas 30 bebês

em 1982 (UNICAMP, DEdIC, sem data). Tinha como critério para seleção de

matrículas que a servidora da Universidade estivesse em período de

amamentação e esta configurar-se como exclusivamente natural, ou seja, o

aleitamento materno. No ano seguinte foi construído o prédio do CCI, à Rua

Monteiro Lobato, com capacidade para 120 crianças, entre dois meses a dois

anos de idade, porém, mesmo com a ampliação das vagas, o critério da

amamentação natural permaneceu. Neste mesmo ano, no mês de setembro

(UNICAMP, SIARQ, 1984) a direção do espaço elaborou um documento no qual

apresentava seus critérios para atendimento, e também seu primeiro “Regimento

Interno”, que tratava da organização do trabalho.

No início do documento destaca-se que, no mês de abril do ano de 1983, o

Reitor da Universidade designou uma Comissão que ficou responsável por

organizar e implantar o Centro de Convivência Infantil no campus. Dessa forma,

foram criadas então, duas comissões, sendo que uma delas ficou responsável por

organizar os trabalhos no berçário, e a segunda, foi designada para o futuro

maternal, para as crianças mais velhas. Dentre os trabalhos das comissões,

destacaram-se visitas a creches de outras localidades, estudos sobre o tema

creche, seleção de materiais, escrita de documentos, elaboração de treinamento

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para os funcionários. O documento enfatizou ainda que o aleitamento materno

como critério de seleção justificava-se pelo fato de não haver vagas suficientes

para atender a demanda dos trabalhadores da Universidade, e que, sendo este

um dos critérios para utilizar dos serviços da creche, favoreceria o maior número

de funcionárias, além de contribuir para o desenvolvimento das crianças.

Após inúmeras deliberações, a Comissão chegou a duas conclusões principais: dever-se-ia encontrar uma solução que permitisse favorecer o maior número possível de funcionárias e promover o desenvolvimento satisfatório das crianças. Considerou-se que a maneira mais efetiva de favorecer o maior número de funcionárias seria através de um Berçário para bebês que estivessem sendo amamentados. O fato da lei permitir que a mãe deixe o serviço para amamentar, duas vezes por dia, até o bebê completar 6 meses de idade, significaria uma maior rotatividade no preenchimento das vagas, do que aceitando crianças até qualquer idade fixada arbitrariamente. A exigência da amamentação visava para os bebês o melhor no que diz respeito a sua alimentação nos primeiros meses de vida e consequentemente para sua saúde tanto física quanto emocional, porque os vários contatos diários com a mãe favorecem e fortalecem o elo mãe-filho. (UNICAMP, CCI, Regimento Interno, 1983)

A comissão preconizava ainda que seis meses de amamentação não

seriam suficientes para o bebê, e, dessa forma, a criança ficaria no berçário até os

nove meses de idade, podendo, após este período, ser amamentada pela mãe,

apenas no início da manhã, antes dela sair para o trabalho, e depois, ao final do

dia, quando a mãe retornasse para casa.

Interessante notar que a valorização do aleitamento materno foi uma prática

que permeou por muito tempo o trabalho das creches dentro da Universidade e de

como esta norma para frequentar a creche foi se naturalizando ao longo do tempo

para esta comunidade específica. Nota-se ainda, a força de um discurso científico,

no caso, da saúde, que ensinava e orientava as mulheres a cuidar de seus bebês,

bem como o Dr. Carlos Costa do século XIX. Maria Queiróz, quando iniciou suas

atividades da Creche Área de Saúde, em 1990 deparou-se também com esta

realidade. E aqui, uma primeira memória aparece no trabalho,

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porque no começo só tinha vaga a mãe que amamentava, porque o intuito era trazer a mãe pra amamentar aqui, [...] Tinha aquela coisa de achar que se a mãe não amamenta, ela não é boa mãe. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.174)

Maria Queiróz tem voz fina, bem baixinha, tom de criança. Dentro dela, a

força de quem saiu do Nordeste menina para buscar uma vida melhor em São

Paulo. Embora esteja na creche desde a década de 1990, nunca deixou os

afazeres domésticos na casa da senhora que a acolheu em sua chegada à

Campinas. Cuidou da casa e da patroa até sua morte, há pouco tempo. As

crianças do Maternal II pensam que Maria Queiróz é mágica, pois de vez em

quando troca sua peruca e aparece totalmente diferente na creche, além de pegar

as cigarras que aparecem nas árvores do parque para cantar em suas mãos.

A memória de Maria acerca da exigência da amamentação natural nos

primórdios da CAS, contudo, foi um pouco diferente das orientações destacadas

no primeiro regimento interno da instituição (UNICAMP, CAS, 1989). Nele, há a

referência também à crianças que poderiam frequentar o berçário mesmo sendo

alimentadas com leite artificial. No entanto, na página sete, sobre os critérios de

seleção para admissão das crianças, indicava-se que, em caso de demanda maior

que a oferta, o primeiro critério de desempate para a vaga seria o fato de o bebê

ser alimentado pelo leite materno.

Ainda sobre o documento redigido um ano após o início das atividades do

CCI berçário, foi possível encontrar alguns pontos que, além da valorização do

aleitamento materno, também se constituíram como práticas da época. Dentre

eles, a ideia de se ter um berçário que funcionasse como “a continuação do lar”. O

local deveria fornecer assistência integral à criança, possuir um espaço tranquilo e

sadio. No caso da falta de vagas, haveria ainda uma classificação sócio-

econômica, que classificava famílias de menor renda com maior pontuação e,

portanto, melhor classificada para conseguir a vaga. Este critério reforçava a ideia

existente na origem da instituição creche de que o serviço deveria destinar-se às

crianças carentes e de fato, não havia ainda, neste período, nenhuma menção

legal de que o Estado deveria garantir creche para todos, por se tratar de um

direito da criança.

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O trabalho das cuidadoras, denominadas de “atendentes de berçário”

também foi destacado em outra fonte documental, que dizia respeito ao

“Regulamento Interno do CCI”.

Zelar pelo bem-estar da criança, receber as crianças, verificando seu estado geral, higiene pessoal e as trocas de roupas; anotar na ficha de controle diário qualquer informação fornecida pela mãe com relação à saúde da criança; efetuar os cuidados rotineiros de higiene tais como: banho, asseio de cavidades, troca de fraldas; pesar as crianças semanalmente; caso necessário, efetuar controle de temperatura; administrar alimentação complementar segundo as necessidades da criança; manter em ordem a unidade da criança; anotar a informação correspondente à alimentação e à eliminação da criança na ficha de controle diário. Na mesma ficha deverá anotar observações a respeito do estado geral da criança; comunicar à auxiliar de Enfermagem qualquer alteração no comportamento da criança; preparar a criança e suas roupas para a saída diária do Berçário (UNICAMP, CCI, Regulamento Interno do CCI, sem data)

.

Figura 1: Ficha de controle diário das atividades dos bebês que frequentavam o CCI, a ser preenchida pela atendente responsável pela criança. Fonte: UNICAMP/SIARQ

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O fragmento do Regimento do CCI que indicava as funções da atendente

de berçário, bem como a ficha de controle diária acima apresentada são fontes

que indicam uma atuação voltada para as relações de cuidado e higiene dos

bebês, ilustrando o modelo de trabalho preconizado à época para o atendimento

em creches, conforme aqui já destacado. É possível supor, contudo, que as

práticas de cuidado não se configuravam como únicas dentro da rotina de

trabalho, pois o espaço, desde sua implantação, já contava com uma pedagoga

em sua coordenação. No entanto, o que chama a atenção é o fato de que, estas

práticas de cuidado vinculadas à saúde e assistência perduraram por muitos anos.

Quando eu ingressei na creche, por exemplo, no ano de 2004, por meio de um

concurso público para o cargo já denominado “professor de educação infantil nível

médio”, uma das ações realizadas pelas professoras semanalmente era o controle

de peso das crianças. No trocador, local específico para higiene e troca de fraldas,

havia uma balança e uma prancheta e todas as segundas-feiras, as professoras

pesavam e registravam o peso das crianças de seu grupo. Somente neste período

começou-se a questionar tal tarefa e a pesagem passou a ser feita pela

enfermeira da creche. Nesse mesmo sentido, Maria Queiróz rememorou

algumas práticas que permearam o trabalho ainda na década de 1990,

Antigamente a gente tinha que dar remédio pra criança, lembra quando a gente administrava remédio, fazia inalação, ficava mais ou menos meia hora pra fazer uma inalação, vinha criança com piolho, e gente catava os piolhos das crianças, conjutivite, sabe coisas que não era pra criança ficar na creche, mas ficava. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p. 177)

Retomando os fios sobre a origem das creches dentro da Universidade, em

1983 o clube de mães que havia se constituído na época redigiu o “Regulamento

do Clube de Mães” (UNICAMP, CCI, 1983). O documento apresentava as

responsabilidades do Clube no trabalho do CCI, dentre elas, as “atividades

sociais”, as quais se incluía a promoção de festas em datas comemorativas, a

organização de festas de aniversários das crianças e das “tias” (professoras),

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compra de materiais, e contribuição em dinheiro mensal. O clube de mães, ao

mesmo tempo em que tem destaque como uma nova organização de um

movimento social, tais quais aqueles descritos por Sader (1988), em especial, a

organização que surgiu na periferia sul de São Paulo ainda na década de 1970,

também implicava em práticas de participação ativa das mães no trabalho da

creche, o que, nos anos seguintes, com as mudanças Legais na área da

Educação, constituiu razão de conflito, especialmente com as “mães do hospital”,

mas esses são fios que serão tecidos adiante. Em 1986, mais duas ações que denotavam o despreparo da Universidade

foram realizadas para atender a crescente demanda dos funcionários pela

ampliação de vagas na creche, bem como da extensão do “benefício” às crianças

de dois a quatro anos. O salão nobre da Faculdade de Educação da Unicamp foi

ocupado por uma equipe do Centro de Convivência Infantil, ampliando o

atendimento das crianças por faixa etária (UNICAMP, CCI, 1986). Além dele, outra

casa próxima à reitoria foi alugada para ampliar o número de vagas para a faixa

etária entre dois e três anos. No ano de 1986, as primeiras crianças que

ingressaram no CCI – denominados “os pioneiros”-, já deveriam frequentar o que

hoje denominamos de “pré-escola”. Na ocasião, a seguinte circular foi enviada às

famílias:

Da: Coordenadora do Centro de Convivência Infantil Às mães usuárias do CCI: informamos às mães que: 1) Em relação as crianças da casinha: com data prevista para o dia 02/06/86, 19 crianças da casinha (os pioneiros) passarão para o salão nobre da Universidade, em espera do prédio definitivo da pré-escola. [...] Aproveitamos para solicitar as mães das crianças do grupo da Magali que doem um prato para seus filhos, porque os pioneiros levarão seus pratos (doados pelas mães) quando forem embora. [...] (UNICAMP, CCI, Circular Interna n 002/86, 1986)

Cabe aqui uma reflexão sobre o fato de que neste período, havia um projeto

Estadual para a implantação de creches dentro das Universidades. No entanto,

pelo menos no que se refere ao CCI da UNICAMP, não havia recursos financeiros

nem para a compra de pratos para a alimentação das crianças. O trabalho foi, aos

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poucos, se constituindo, pelo comprometimento dos profissionais que ali iniciaram

suas atividades, pelas mães que se configuraram como um movimento social, e

algum apoio oriundo da própria Universidade. Todos os espaços físicos,

originalmente foram impróprios, começando pelo berçário, maternal e por fim, a

pré-escola. Finalmente, em 1987, a construção de um segundo prédio foi

concretizada, e o CCI, tendo sua nomenclatura modificada para CECI contava

então com um local próprio para atender as crianças com idade entre quinze

meses a quatro anos16. Com o novo prédio, construído com salas amplas,

ambiente externo com brinquedos de parque, tanque de areia, refeitório,

visualizava-se o início de um trabalho mais vinculado à educação e às questões

pedagógicas, do que a assistência à mulher trabalhadora.

No período posterior, mais precisamente nos oito anos que se seguiram, a

UNICAMP construiu três prédios com a finalidade de prestar atendimento aos

filhos de servidoras, sendo cada um, correspondente a uma parte de uma colcha

de retalhos que, mais tarde, formaria os “Programas Educativos”. Em meio a

tantos fios, a história foi delicadamente se constituindo e novas linhas foram

trazendo outros personagens: novas crianças, novas leis, novas concepções

sobre a educação. Dessa forma, em 1987, foi inaugurada a “Escola Municipal de

Educação Infantil – EMEI Maria Célia Pereira” através de um convênio entre a

UNICAMP e a Prefeitura Municipal de Campinas. Por ser uma escola municipal,

atendia, além de filhos de funcionários, crianças moradoras da região, com idade

entre quatro e seis anos, período escolar denominado pré-escola. Interessante

notar que o espaço físico da EMEI era dividido com o CECI. Ao entrar no prédio

de três andares, na rampa de entrada do lado direito ficavam as crianças

matriculadas na EMEI. No lado oposto, funcionava o Maternal do CECI.

No ano de 1988, iniciava-se o atendimento das crianças com idade entre 7

a 14 anos, no Programa de Integração e Desenvolvimento da Criança e do

Adolescente – PRODECAD. O órgão foi criado também para atender uma

demanda já existente. Havia muitos filhos de funcionários que frequentavam o

                                                                                                                         16  A  mudança  na  nomenclatura  refere-­‐se  à  questão  de  que,  dentro  do  Hospital  de  Clínicas,  havia  um  departamento  que  já  utilizava  a  sigla  CCI,  que  correspondia  ao  Centro  de  Controle  de  Intoxicações.  

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ensino fundamental em escolas da região de Barão Geraldo. No entanto, as

escolas tinham seu funcionamento em meio período do dia. Os pais, trabalhando

em jornada de 40 horas semanais, requeriam um local para deixar seus filhos no

período oposto ao da escola regular. Em 1987, a Universidade firmou um convênio

com o Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP-, e o Fundo Social de

Solidariedade do Estado de São Paulo – FUSSESP-, e tem início a construção do

PRODECAD. Antes disso, contudo, assim como a história da origem da creche

CECI, uma casa foi alugada para iniciar o atendimento.

Dentre os objetivos gerais e específicos do atendimento deste novo espaço

educacional, estava a organização de atividades que promovessem a formação

integral da criança e do menor deficiente carente, em consonância com as

Diretrizes do Governo do Estado, promover ações integradas da área da saúde e

educação, contribuindo para o desenvolvimento físico, social, emocional e

cognitivo, favorecendo sua integração social, fazer parcerias de trabalho com

Faculdades e Institutos da Universidade, atuar como centro de difusão de modelos

e técnicas de atendimento, estabelecendo programas de estágio e treinamento de

profissionais (UNICAMP, 1987). Ainda segundo o convênio, a população atendida

deveria ser a de filhos de funcionários da universidade, com prioridade aos mais

“carentes”, bem como crianças provenientes de famílias menos favorecidas que

residissem próximas ao campus.

O Cantinho da Física

Fez-se necessário aqui, um pequeno recorte da história que tratou da

criação de uma creche intitulada “Cantinho da Física”. A dissertação de Reis

(1997) apresentou esta instituição desconhecida por muitos que fazem parte da

comunidade da UNICAMP, e, remeter-se a ela neste trabalho é importante, pois,

além do fato de que esta creche também se configurou como parte da história da

educação infantil dentro da Universidade, hoje, 16 anos após a escrita da autora

que apresentou esta creche em seu trabalho, novos fios da história surgiram em

meio ao tecido desta narrativa por meio de fontes documentais encontradas.

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Existiu, portanto, no início da década de 1980 uma creche dentro do

Instituto de Física Gleb Wattagin (IFGW), conhecido como “Cantinho da Física” –

CICF. Segundo Reis (1997), os dados obtidos foram através de entrevistas com

funcionários que trabalharam no Instituto no período, considerando que eles

próprios relataram que todos os documentos referentes à creche foram queimados

por um dos diretores.

A CICF foi uma creche alternativa, seja por tratar-se de uma iniciativa da própria comunidade do instituto, seja por ter características diferentes das do CECI, tanto no que se refere à estrutura funcional, quanto pela participação da família na organização e gestão da creche. [...] A CICF teve apoio e incentivo da reitoria, tendo inclusive, a presença de assessores do reitor em sua inauguração, em outubro de 1983. Também houve a contribuição da reitoria na contratação de pessoal. [...] Tais fatos levaram os dirigentes do Instituto a considerar a CICF como uma atitude inovadora, que seria bem-vinda principalmente para as funcionárias, pois acreditavam que com a creche as funcionárias poderiam trabalhar melhor. Também a oferta de vagas era extensiva a alunos e professores, o que a diferenciava do CECI, que atendia apenas a filhos de funcionárias durante o período de amamentação. Além do que, a instalação da CICF significava uma certa independência em relação aos órgãos centrais da universidade (REIS, 1997,p.72).

Embora a informação cedida à época de que não haveria mais documentos

sobre o Cantinho da Física, o Sistema de Arquivos da UNICAMP – SIARQ -,

dispõe atualmente dos seguintes materiais: Regimento Interno, Regulamento e

Normas para utilização do Cantinho da Física, todos datando do ano de 1984 e

assinados pelo então Diretor do Instituto de Física, Marcus Guenter Zwanziger.

Também destaquei que uma das primeiras funcionárias da CICF, que, atuou

posteriormente no CCI e foi diretora dos Programas Educativos da UNICAMP,

cedeu-me cópia do “Regimento Interno da CICF”, documento em que algumas

informações foram encontradas:

Regimento da Comunidade Infantil “Cantinho da Física” IFGW/ UNICAMP Art. 1º: A Comunidade Infantil “Cantinho da Física” “CICF”, instalada no pavilhão de ensino do Instituto de Física “Gleb

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Wattaghin”, da UNICAMP tem como finalidade abrigar, entreter e educar, os filhos de servidores discentes e docentes durante o expediente normal, de acordo com o presente Regimento Interno. Art. 2º: A CICF proporcionará às crianças matriculadas os seguintes benefícios:

I) Alimentação: fornecida conforme orientação nutricional para as diversas idades, nos horários convenientemente estipulados. Quando houver necessidade de alimentação diferente daquela fornecida pela CICF, juntamente com prescrição médica, deverá ser trazido pronta de casa.

II) Medicação: que será ministrada à criança mediante receita médica, cumprindo aos responsáveis fornecerem os respectivos medicamentos e receita.

III) Recreação: com atividades variadas, sob orientação da equipe técnica.

IV) Aconselhamento e orientação Pedagógica para as crianças e, em função destas, extensivos aos seus responsáveis através do Psicólogo. Nos casos em que se fizer necessário, haverá orientação de encaminhamento para as instituições que disponham dos recursos necessários para o atendimento, sempre que tais recursos não possam ser fornecidos pela CICF.

V) Educação: através de pessoal especializado e mediante material criteriosamente selecionado para atender ao desenvolvimento geral de cada criança. [...] (UNICAMP, SIARQ, 1984)

O regimento da creche tratava ainda do número máximo de crianças a

serem atendidas (35), e dos serviços prestados:

Capítulo III – Dos serviços oferecidos e das responsabilidades dos pais Art. 8º: A CICF oferecerá seus serviços a crianças compreendidas na faixa etária de 3 meses a 5 anos e 11 meses, distribuídas em: Berçário, Maternal, Infantil I e Infantil II. Art. 9º: A mudança de uma turma para outra será feita levando-se em consideração a maturidade da criança e não a idade cronológica. Somente quando ocorrer mudança da criança do berçário para o maternal, será considerado para efeito de adaptação ao novo ambiente, e quando necessário, o acompanhamento de um responsável (pai ou mãe) passarem a cumprir a rotina estipulada nas normas de operação. [...] Art. 10º Será vedada a entrada nos recintos da CICF de criança que, embora matriculada, se apresente sem a higiene devida, febril ou portadora de moléstia infecto-contagiosa. [...] Art. 20º: Berçário e Maternal: os profissionais da CICF com experiência em infantes prestarão os seguintes serviços:

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I. Receber as crianças, verificando: estado geral, higiene pessoal, trocas de roupas e caderneta.

II. Conferir a caderneta; passar as informações à equipe para facilitar o melhor atendimento; anotar as anormalidades da criança verificadas na CICF para o responsável tomar ciência.

III. Manter em ordem a unidade da criança (sacola, objetos pessoais). IV. Controlar as crianças que pertençam ao grupo. V. Brincar e conversar com as crianças. VI. Ministrar as refeições. VII. Incentivar as crianças quanto à aceitação de novos alimentos. VIII. Dar banhos diários. IX. Dar banhos de sol. X. Fazer as trocas de fraldas. XI. Zelar pelo material de consumo e permanente que estejam sob

sua responsabilidade, conservando-os em perfeito estado de limpeza e funcionamento.

XII. Anotar as informações constantes da ficha-padrão de controle diário.

XIII. Comunicar o responsável pelo setor de saúde, qualquer alteração no comportamento da criança.

XIV. Fazer a estimulação sensório-motora progressiva de acordo com a idade-maturidade da criança. Preparar as crianças e suas roupas para a saída (UNICAMP, SIARQ, 1984).

No artigo 21º, o regimento versava sobre os serviços prestados ao Infantil I

e II. Os profissionais que atuavam nesta faixa etária deveriam realizar todas as

ações descritas acima, aumentando o repertório de ações para estimulação das

crianças: “fazer a estimulação verbal, corporal, auditiva, visual, tátil, olfativa,

gustativa, da linguagem, motora e coordenação espacial”.

A CICF contava ainda com o trabalho de psicologia, nutrição e

enfermagem, fazendo parte de uma “equipe técnica”, juntamente com o

coordenador pedagógico.

A creche funcionava em horário administrativo da Universidade, das

08hs.:30min. às 17hs.:30min., e, neste período, organizava a rotina das crianças e

das famílias, a partir do momento que instituiu o horário da visita (pais ou mães

deveriam, no horário de seu almoço, visitar os filhos na creche), além de dois

intervalos durante o dia para amamentação dos bebês menores de seis meses de

idade.

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Os detalhes sobre o funcionamento do Cantinho da Física disponíveis em

seu Regimento Interno foram relevantes já que a Creche Área de Saúde, embora

inaugurada somente em 1990, manteve algumas práticas que se originaram na

CIFC. A formação da equipe técnica, por exemplo, seguia a mesma configuração.

As atribuições das “cuidadoras” das crianças, também. Este recorte da história,

em certa medida, desmistificou a ideia de que, as práticas da CAS, fossem

totalmente vinculadas à área hospitalar. “Vistoriar” as crianças, averiguar se

estavam em “bom estado geral”, eram práticas higienistas, mas não de

pertencimento exclusivo de uma creche vinculada ao hospital. Estas práticas

apontam para a linha histórica de uma educação infantil já apresentada aqui. No

entanto, há que se considerar também que, no Cantinho da Física, havia uma

preocupação com relação aos “estímulos” e atividades que contribuíssem para o

desenvolvimento das crianças.

Em 1986, as atividades do Cantinho da Física foram encerradas, e as

crianças atendidas, foram então acolhidas pelo CECI, que havia ampliado seu

número de vagas.

A Creche Área de Saúde17

Quando a CAS foi criada, toda uma estrutura havia sido organizada dentro

da Universidade, atendendo aos filhos e filhas das servidoras (em sua grande

maioria), e servidores que ali trabalhavam. A área da saúde, por sua vez,

necessitava de vagas na creche em horário compatível com a jornada do hospital,

os chamados “turnos”, e, embora o CECI atendesse algumas mães trabalhadoras

do hospital, o horário administrativo de funcionamento da creche não resolvia a

questão das mães. Além do vínculo com a área médica da Universidade, outra

característica marcante da CAS é que ela iniciou suas atividades em prédio                                                                                                                          17  Nas  fontes  documentais  utilizadas,  nota-­‐se  que  a  CAS  recebeu,  no  início,  diferentes  nomenclaturas:  Creche  do  Hospital  de  Clinicas  da  UNICAMP,  creche  sub-­‐programa  PRODECAD,  Creche  da  Área  da  Saúde,  Creche  Área  de  Saúde.  As  diferentes  denominações  dificultaram,  inclusive,  a  pesquisa  de  documentos  no  SIARQ,  pois,  quando  se  optava  para  a  pesquisa  nos  arquivos  com  um  dos  nomes,  os  outros  que  são  diferentes  excluíam-­‐se  automaticamente  da  pesquisa.  No  entanto,  a  partir  do  momento  em  que  se  institui  a  creche  como  parte  dos  “Programas  Educativos  da  UNICAMP”,  todos  os  documentos  que  seguem  passam  a  nomear  a  creche  como  “Creche  Área  de  Saúde”.  Assim,  na  narrativa  este  foi  o  nome  definido.  

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próprio. Não houve nenhuma casa alugada ou espaço adaptado para receber os

bebês. A demanda existia e a iniciativa de construção veio por parte da própria

Faculdade de Ciências Médicas, que, ao firmar parceria de trabalho com outros

órgãos conveniados, conseguiu recursos para o início da obra e por sua

manutenção. No ano de 1987 começou a tramitar na Universidade o processo de

efetivação do convênio para a implantação da creche, entre os meses de agosto

(data encontrada na primeira versão do texto enviada à Procuradoria Geral da

Universidade) e outubro (quando o documento foi aprovado pela Câmara de

Administração – CAD-, e Conselho Universitário - CONSU)(UNICAMP, 1987).

A composição do convênio teve a seguinte configuração: Universidade

Estadual de Campinas – UNICAMP-, Fundo Social de Solidariedade do Estado de

São Paulo- FUSSESP-, Instituto de Reabilitação de Campinas – IRCAMP-,

Faculdade de Ciências Médicas- FCM- e Hospital de Clínicas- HC-, ficando a cada

um, as seguintes responsabilidades (UNICAMP, 1987):

UNICAMP: responsável pela construção do prédio, localizado em anexo ao

PRODECAD, dispondo de 1000m² de área livre e 300m² de área coberta. Além da

construção, deveria colaborar com recursos financeiros para a alimentação das

crianças, a refeição dos funcionários, materiais de apoio e consumo,

equipamentos e utensílios necessários às atividades do Programa, dentro de suas

possibilidades;

FUSSESP: prestação de assessoria técnica ao Programa, em consonância

com os Programas do Governo do Estado. Também colaborar na alimentação

suplementar;

Faculdade de Ciências Médicas: Repassar ao IRCAMP 5% da verba extra-

orçamentária, durante seis meses consecutivos a partir da assinatura do convênio

(prazo este que poderia ser ampliado). Colaborar com pessoal especializado para

o trabalho, em caso de solicitação do IRCAMP;

Hospital de Clínicas: responsável pela alimentação da creche, incluindo

sábados, domingos e feriados, bem como pela lavagem de roupas. Deveria ainda

fornecer medicamentos e materiais de consumo necessários ao atendimento,

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colaborar no transporte dos usuários, e fornecer pessoal especializado, caso

solicitado pelo IRCAMP;

IRCAMP: administrar todas as atividades do convênio e colaborar com a

UNICAMP por meio de repasses financeiros. Elaborar também, planos de

atividades para as crianças, considerando os Programas das Secretarias do

Estado e da Educação. Promover recursos para manutenção de equipamentos e

utensílios, e por fim, fornecer atendimento médico e dentário aos usuários.

O mesmo documento que identificava as partes e suas atribuições na

implantação da creche, também dispunha dos objetivos gerais e específicos do

atendimento. A creche deveria ter como objetivo geral, “a promoção do bem estar

do menor, em consonância com os planos e diretrizes do Governo do Estado”, e

acolher os filhos de servidores da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital

de Clínicas. Como objetivos específicos destacava-se o atendimento às crianças

entre dois meses a três anos de idade, o favorecimento ao desenvolvimento físico,

emocional, social e cognitivo dos usuários, e sua posterior integração ao

PRODECAD. A atuação da creche, também deveria tornar-se um modelo de

atendimento, e receber, inclusive, crianças portadoras de deficiência e/ou atraso

no desenvolvimento.

O documento foi finalizado, com a indicação de um Conselho Normativo, a

ser constituído após a conclusão das obras. O referido conselho ficaria

responsável pela construção do primeiro Regimento Interno, e pela política

assistencial da creche, sendo constituído por representantes da Reitoria, do

FUSSESP, IRCAMP, Faculdade de Ciências Médicas, Serviço Social da

UNICAMP, ASSUC, Clube de mães da FCM e HC.

No ano seguinte, quando teve início as obras, fez-se necessário a

instituição de uma comissão que acompanharia toda a execução, uma vez que o

conselho seria criado posteriormente. Assim, em 1988, o Reitor da Universidade

determinou a seguinte portaria (UNICAMP, SIARQ, GR nº332/87):

Fica criada, junto à Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários, uma Comissão de Assessoria Técnica, composta pelos elementos abaixo, para, sob a coordenação do primeiro,

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exercer o acompanhamento da implantação da creche da Faculdade de Ciências Médicas do Hospital de Clínicas desta Universidade, até a posse do Conselho constituído nos termos da Clausula Quinta do convênio IRCAMP/UNICAMP: Renato Arruda Fagundes, Cecília Guarnieri Batista, Lucilia Eliana Moreira Sandoval, Dra. Sofia Helena Valente de Lemos Marini, Dra. RiyokoTsuda Bellentani, Sergio Antonio de Simone, Gioconda Picarelli Russo, Paulo Roberto Barbosa Crivelenti. (Em 10 de dezembro de 1987).” Paulo Renato Costa Souza – Reitor da Universidade (UNICAMP, SIARQ, 1987)

Sobre os integrantes da Comissão de Assessoria Técnica indicados pelo

Reitor ressalto que, à parte os funcionários do Núcleo de Desenvolvimento e

Criatividade – NUDECRI - e do Escritório Técnico de Obras – ESTEC - (Sergio

Antonio e Paulo Roberto), que ficaram responsáveis pela obra da creche, os

demais integrantes eram todos pertencentes à área da saúde da UNICAMP,

possivelmente, por se tratar de uma instituição para atender a demanda específica

desta população. Renato Arruda exercia sua atividade como dentista desde 1983.

Cecília Guarnieri era psicóloga e veio como representante do IRCAMP para

compor a comissão. Lucila, que tem como formação acadêmica a enfermagem,

diretora do CECI e, provavelmente fez parte da comissão pela experiência que já

tinha adquirido com a primeira creche da UNICAMP. Dra. Sofia era pediatra e

docente da Faculdade de Ciências Médicas, e Gioconda Picarelli atuava como

Assistente Social do Hospital de Clínicas. A enfermeira Riyoko Tsuda Bellentani,

que à época era funcionária do Hospital de Clínicas, tornou-se diretora da Creche

Área de Saúde desde sua inauguração e permaneceu até o ano de 1999.

Desta forma, em fevereiro do ano de 1988 teve início a construção da

creche do Hospital de Clínicas. O projeto arquitetônico foi elaborado pelo

NUDECRI, e sua execução ficando sob responsabilidade do ESTEC. As

instalações ficaram prontas em março de 1990, e o início das atividades data de

26 de junho do mesmo ano. Sua localização foi escolhida justamente pela

proximidade com a área hospitalar da Universidade. Seu início de atendimento,

assim como o CECI, destinava-se exclusivamente à mulher trabalhadora e em

período de amamentação, e, posteriormente, ampliou seu número de vagas aos

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servidores e também alunas. A história desta creche entrelaça-se com histórias de

vida de mães, crianças, profissionais da área da saúde, e, fundamentalmente,

mulheres, em especial àquelas que desde o início de seu funcionamento

estiveram naquele espaço atuando junto às crianças, de início como

recreacionistas, e depois, constituindo-se como profissionais da Educação. Esta

história, foi contada por elas a partir do início da década de 1990, quando a

Universidade divulgara o concurso público para a função de recreacionista para o

trabalho na creche que acabara de ser construída, e naquele mesmo ano,

ingressaram na instituição.

Século XX e as trabalhadoras das creches

O trabalho diretamente com as crianças das creches do século XX é

demarcado pela ausência de formação profissional para a função. Embora

existisse o interesse de diferentes áreas do conhecimento, e houvessem

iniciativas que definiam algumas funções dentro da instituição com um nível maior

de instrução, como aqui já demarcado, descrevi aqui um panorama geral do

processo de formação que ocorreu neste período e que ainda no século seguinte

teve influência na organização do trabalho junto aos pequenos de 0 a 3 anos de

idade.

Quando a creche foi criada, ainda nos últimos anos do século XIX, o curso

Normal, que formava professores para atuação no ensino primário já existia.

Accácio (2006) destacou a trajetória das escolas normais brasileiras, demarcando

o surgimento da primeira delas na então província do Rio de Janeiro, em 1835. No

ano seguinte, outra escola normal foi criada na Bahia e, em São Paulo, em 1846,

o curso normal foi fundado e destinado somente a homens.

Este primeiro panorama de instrução de professores no país caracterizava-

se como escasso e com pouca preparação para atender ao ensino primário.

Inicialmente destinado à formação de professores homens, somente anos depois

foi instaurada a educação mista (homens e mulheres), porém sendo ainda os

alunos separados por salas de acordo com o gênero. Nesse contexto, a

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creche ainda era instituição inédita no país, e ainda assim, quando surgiu, não

havia vínculo entre creche e educação. No entanto, é possível supor, como

destacado por Kuhlmann Jr. (2000) que algumas das professoras formadas pelo

curso normal, posteriormente, encontraram, nas creches um campo de trabalho,

Mesmo que em geral, as mulheres que atuassem diretamente com as crianças nas creches não tivessem qualificação, é de se supor que muitas das que participavam ativamente da supervisão, da coordenação e da programação das instituições eram professoras, carreira escolar que se oferecia para a educação feminina, inclusive para as religiosas, responsáveis pelo trabalho em várias creches. A educação da mulher previa a sua preparação nos mistérios da puericultura, de modo que se tornassem mães-modelo. (KUHLMANN JR., 2000, p.479)

A educação da mulher para se tornar boa mãe seria suficiente para o

trabalho junto às crianças. Caberia, contudo, àquelas cuja formação profissional

diferenciava-se por terem concluído o curso normal, à supervisão e coordenação

do trabalho. Tal realidade definia uma questão importante nas práticas cotidianas

da creche. Por um lado, mulheres que cuidavam das crianças partindo, em grande

medida, de sua própria experiência enquanto mãe; de outro, coordenadoras e

supervisoras formadas pelo curso normal, mas que, provavelmente, não tiveram

nenhum conteúdo ou preparação específica para a atuação neste novo espaço

que começava a ter lugar na sociedade. Não fazendo parte da educação, por certo

o trabalho com os bebês e crianças pequenas não seria referendado no curso de

formação de professores da época. Assim, seria uma profissão a ser construída,

inventada, independentemente do grau de instrução ou função que ocupasse

qualquer pessoa dentro da creche.

Este perfil de organização de atendimento perpassou todo o período em

questão e sua semelhança com o século XXI, não seria mera coincidência. No que

se refere à criação do CECI e da CAS, no período de vai dos anos 80 até a virada

do século, o trabalho também se pautava em tal configuração, ou seja, a

supervisão e coordenação da creche destinava-se às pedagogas (não mais o

magistério), que dividiam o trabalho com outras áreas de conhecimento, como a

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enfermagem, por exemplo. Àquelas contratas para atuarem com as crianças

(recreacionistas), não havia exigência de formação.

Se o curso normal enfatizava em seus primórdios o ensino primário, em

1896, no Estado de São Paulo criava-se o primeiro jardim de infância do município

ligado ao Ensino Normal do Colégio Caetano de Campos, que deveria então,

viabilizar o estágio para as professoras formadas pela nova proposta educacional

da República. Abria-se aqui, mais um campo de trabalho para as professoras: a

educação pré-primária.

O jardim-de-infância anexo à Escola Normal Caetano de Campos, construída na cabeceira da praça da República na capital de São Paulo, é a primeira instituição pública a ser criada, em 1896, materializando-se a proposta educacional do Partido Republicano Paulista. A escola primária e o jardim anexos seriam um local de estágio para as professoras e difundiriam modelos para as escolas oficiais em todo o estado, por meio da Revista do Jardim de Infância, que teve dois números publicados (KUHLMANN JR., 2000, P.477).

Kishimoto (1988) ressaltou, contudo, que a iniciativa do Colégio Caetano de

Campos permaneceu como único modelo que atrelava a formação do professor e

seu campo de estágio por pelo menos trinta anos, fato que possibilita a reflexão

acerca da falta de uma política do Estado que enfatizasse a formação do

professor para a atuação na Educação Infantil.

Também a partir daí, a profissão, inicialmente demarcada pelo gênero

masculino, passava a ser função das mulheres. Como exemplo, verificou-se que,

em 1901 a Escola Normal do Distrito Federal restringiu as matrículas do curso

normal exclusivamente às moças. (ACCÁCIO, 2006)

Data dos anos 30 o surgimento dos cursos de Pedagogia no país e, neste

período inicial, somente duas Universidades Federais ofereciam a habilitação para

atuação dos professores na etapa que se denominava pré-escolar. Nas duas

décadas que se seguiram, esta habilitação foi extinta, retornando aos cursos

federais somente na década de 1960. Nos anos 50, uma Universidade Estadual e

cinco particulares passaram a oferecer tal formação (KISHIMOTO, 1988).

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A oscilação na oferta de cursos que formassem professores para atuar na

educação infantil somava-se a uma precária expansão do atendimento para a

faixa etária. A mesma autora que apresentou dados anteriormente indicados

ressaltou ainda que, nos anos 50, por exemplo, haviam 500 pré-escolas no estado

de São Paulo, que seriam fiscalizadas por um serviço composto por professores

“emprestados” de outros órgãos, e sequer possuía um estatuto próprio que

regesse o trabalho. (KISHIMOTO, 1988). Importante frisar que até aqui, não

apareciam informações referentes às creches, cenário mais complicado ainda,

mas difícil de precisar pela falta de dados estatísticos. No entanto, confirmou-se,

no mesmo texto a questão do exercício do trabalho junto às crianças realizado

fundamentalmente por leigos.

Finalizando o panorama geral da formação profissional (ou falta dele) que

caracterizou o século XX e, consequentemente, teve influência na formação do

profissional que hoje atua em creche, apresentaram-se dados de pesquisa

realizada em 1998 que verificava a formação de professores de pré-escola no

Brasil. De um total de 219.593, 20% possuíam formação de nível superior,

contrapondo-se à 66,57% com ensino médio completos. Os demais integrantes do

percentual total, praticamente distribuíram-se entre aqueles que haviam concluído

o ensino fundamental, e outros que não finalizaram esta etapa de escolarização

(KISHIMOTO, 1988).

É neste período (final da década de 1990) que a política nacional

determinava a “Década da Educação”, ou seja, a previsão de que, no prazo de

dez anos as políticas de formação profissional para a educação básica deveriam

prever a formação em nível superior dos professores. E, no intuito de corroborar

para tanto, criava-se uma nova modalidade de curso: o “Normal superior”. E aqui,

uma breve explanação acerca desta modalidade de ensino para formar

professores por duas questões: a primeira, pelo fato de que o curso normal

superior emergiu nas memórias de uma das professoras aqui entrevistadas. Além

disso, tratava-se de uma formação específica para atuação em educação infantil e

séries iniciais do ensino fundamental. A narrativa destacou a iniciativa de

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separação entre pedagogia e normal superior como retrocesso na formação de

professores.

O artigo 63 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, MEC, Lei

nº9394/96, 1996) destaca a seguinte questão sobre a formação dos profissionais

da educação:

Art. 63. Os institutos superiores de educação manterão: I - cursos formadores de profissionais para a educação

básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do ensino fundamental (BRASIL, 1996).

Dessa maneira, o Conselho Nacional de Educação regulamentava em

1999, os cursos normais superiores com a finalidade de formar professores, em

geral, que já atuavam na educação infantil e/ou séries iniciais do ensino

fundamental. Com uma carga horária inicial de 3200 horas, o tempo de duração

do curso poderia ser reduzido para até 1600, sendo 800 atribuídas àqueles que já

haviam concluído o nível médio na modalidade normal, e ainda, 800 horas

atribuídas à atividades de práticas de ensino para todos que já atuavam na área

da educação. (KISHIMOTO, 1999). Dentre as críticas que tal modelo de formação

recebeu, destacam-se a separação entre formação profissional e formação

universitária e práticas de ensino sem supervisão ou problematização. O curso

normal superior foi extinto no ano de 2006, prevalecendo a formação universitária

e o curso de Pedagogia como aquele responsável pela formação de professores

no país.

Vale lembrar, contudo, que a legislação vigente, ao mesmo tempo em que

legitima o professor desde a educação infantil, valorizando seu processo de

formação continuada, também acaba por flexibilizar as exigências para atuação na

área. Como exemplo, é possível citar a Lei nº 12796, de 2013, que faz alterações

na LDB de 1996, porém, mantém o mesmo conteúdo ao abordar, no artigo 62, a

formação do professor:

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Art. 62.: A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal (BRASIL, 2013).

Tais informações sobre o processo histórico de formação de professores e

origem e expansão das creches no país apontam para uma série de contradições

que já estavam presentes no surgimento da CAS, em 1990, e que, no decorrer de

sua primeira década de funcionamento apenas reiterou, não somente na CAS,

mas na educação infantil de maneira geral, o campo de conhecimento ainda em

construção e em disputa. Afinal, ao mesmo tempo em que a LDB de 1996 integra

a educação infantil na educação básica, cria um curso destinado àqueles que já

atuavam com as crianças pequenas. Além disso, enfatiza a formação continuada,

mas delibera o nível médio como suficiente para atuação.

Contudo, o capítulo seguinte retorna aos anos de 1990 e apresenta as

protagonistas da narrativa que passariam ainda por todo este processo.

 

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Capítulo II: Mulheres cuidadoras e suas memórias. A creche na década de 1990.

Primeiros fios da memória

Figura 2: Imagem destacada no Jornal da UNICAMP datada de 20/01/1990 que informava a comunidade sobre a construção da nova creche.

Fonte: SIARQ/UNICAMP

Creches preveem mais 470 vagas “Creche 24 horas Ao lado do prédio da pré-escola, também próximo ao Pronto-Socorro, e com projeto do Laboratório de Habitação do Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade (Nudecri), a creche para atender aos filhos do pessoal da saúde terá cerca de mil metros quadrados de área interna construída e de área externa. O local está em fase de acabamento e deverá estar pronto em fins de março. Até lá, as crianças serão atendidas no Ceci, porém no horário normal de funcionamento. (...) A proposta, no entanto, é que essa creche receba as crianças durante 24 horas, em esquema de três turnos, sendo 120 crianças de dois meses e meio a quatro anos em cada período (...)” (Jornal da UNICAMP, 20/01/1990)

O jornal da UNICAMP anunciava aos servidores que a nova creche estava

quase pronta. De lá para cá, vinte e quatro anos se passaram. Para tecer os fios

desta história poderia escolher diversas maneiras, e buscar interlocução com

diferentes perspectivas teóricas. O tecido que decidi costurar, contudo, buscou

alinhavar suas linhas a partir das histórias de vida e de formação das professoras

e o trabalho do pesquisador a partir da memória e, principalmente, do conceito de

história e rememoração em Walter Benjamin,

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O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico (BENJAMIN, 1985, p.232).

O texto “Sobre o conceito de história” (1940) de Walter Benjamin destacou

o termo rememoração como fundamental para o trabalho do historiador que rompe

com a ideia linear da construção histórica,

Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo (BENJAMIN, 1985, p.232).

A impossibilidade de “desfiar os acontecimentos” é perceptível, por

exemplo, no capítulo anterior. Mesmo sendo uma escrita que se baseou em

fundamentação teórica sobre a história da instituição creche, seu surgimento no

Brasil e seu desenvolvimento por determinado período, os estudos benjaminianos

contribuem para um olhar histórico não linear. As rupturas e conflitos de cada

período, a relação dúbia entre educação e assistência, os “estilhaços” do passado

em constante relação com o presente, tecem fios que se entrelaçam o tempo todo,

e põe em prova inclusive aquilo que a história “oficial” tem a contar. Ou seja, a

historicidade de uma instituição está para além de sua legalização ou daquilo que

quaisquer documentos oficiais possam abarcar. E aqui então, defini-se a

importância de relacionar história e memória.

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Assim, passado e presente costuram-se na história da creche tanto no que

se refere às fontes documentais, quanto nas fontes orais, como é o caso das

memórias que emergem ao texto a partir de agora. De início, as professoras

foram convidadas a rememorar seu ingresso na instituição, narrando um pouco

sobre as atividades que exerciam antes de iniciar o trabalho na creche,

aproximadamente no período em que a notícia de jornal acima circulava dentro da

Universidade.

eu trabalhava, era monitora de ônibus, sabe assim, numa escolinha que tinha no Cambuí, e a gente ficava assim, no ônibus orientando as crianças, e descia com as crianças, tinha um guarda-sol enorme que a gente descia se tava chovendo, pra levar as crianças até o adulto que vinha buscar, e, tanto quando levava pra casa, quando trazia pra escola, e.... a gente ia cantando com eles, brincando, era monitor de ônibus mesmo, era essa minha profissão. (ELIANA, 2013, p.145)

Eliana é educadora há vinte e oito anos e durante todo este período sempre

trabalhou com educação infantil. Quando pedi a ela que pensasse em uma

apresentação sobre si mesma, e sobre o que gostaria que as pessoas soubessem

sobre ela, destacou o fato de que jamais poderia ter feito outra coisa na vida,

senão estar com as crianças. “As crianças me ensinaram, principalmente, a não

levar a vida muito a sério”.

O trabalho de Eliana como monitora de ônibus era suficiente para

comprovar sua experiência de trabalho com crianças, conforme exigia o edital

Nº014/90 (UNICAMP, SIARQ, 1990), que tornava público o processo seletivo para

a função de “Técnico de Atividades Operacionais Médio A (Recreacionista)”, na

Universidade. As condições para inscrição eram que o candidato tivesse no

mínimo 18 anos, 2º Grau incompleto e experiência prévia com crianças, em

quaisquer segmentos de trabalho. Cabe aqui, uma informação importante no que

se refere a alguns trabalhos que dissertaram sobre a creche, e citaram

informações sobre o concurso em questão.

Dois Trabalhos de Conclusão de Curso – TCC – e uma dissertação de

mestrado apresentaram como fonte documental o edital de número 018/88

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(UNICAMP, SIARQ, 1988) que trazia informações sobre um processo seletivo

público para o cargo de recreacionista. Acontece que tal informação não procede,

considerando que este concurso provavelmente referia-se ao CECI, pois, no ano

de 1988 (publicação do edital), a CAS não estava pronta. Além disso, as fontes

documentais encontradas, tanto no SIARQ, quanto na CAS, que tratavam

sequencialmente, do edital de abertura do concurso, da relação dos candidatos

habilitados, e finalmente, da convocação para o início dos trabalhos, formam uma

parte importante do tecido da história da creche que havia sido narrada

erroneamente. Afinal de contas, um dos trabalhos que utilizou como referência o

edital errado, trazia a informação de que, para ingressar na CAS, a recreacionista

deveria possuir o curso de magistério, o que não se confirmou, nem a partir da

documentação correta, tampouco com as memórias das entrevistadas.

Retomando a questão sobre as exigências para a realização do concurso

das recreacionistas, a candidata Antonia trazia em sua história de vida outro tipo

de experiência com crianças,

Então, eu tava no hospital. Porque na verdade assim, era duas coisas que eu tinha um sonho, era ser professora e ser enfermeira. Primeiro era ser professora, mas era aquela coisa de criança né, que você tem sempre uma professora que você gosta e admira. Então queria ser professora. Mas depois, quando eu tinha uns 15 anos eu decidi que ia ser enfermeira. E eu vim pra Campinas e aí tive uma oportunidade de fazer um cursinho de 3 meses que era de atendente de enfermagem, e foi na época que a UNICAMP tava realmente chamando o pessoal pro hospital começando aqui em Barão Geraldo. Daí vim, e era como atendente. Aí no caminho eu falei, meu Deus não é isso que eu quero. Eu trabalhava na pediatria e aí assim, me deixava muito triste as coisas, sabe, eu ficava deprê mesmo (ANTONIA, 2013, p.136).

Antonia não quis apresentar-se no texto, preferiu que eu escrevesse algo

sobre ela. O que dizer sobre a primeira professora que conheci ao ingressar na

creche? Ao chegar à creche, em meu primeiro dia de trabalho, passei a conhecer

os espaços e a observar a atuação das recreacionistas. Encontrei Antonia, no

espaço denominado “trocador”, em um momento de higiene de um dos bebês de

sua turma. Mãos tranquilas e afetivas trocavam a fralda enquanto palavras em tom

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suave conversavam com a criança que a olhava atentamente. Próximo a ela, no

carrinho, outro bebê aguardava sorridente sua vez de ser atendido. Esta é a cena

que aparece como uma das primeiras memórias que tenho logo que ingressei na

creche. A professora Antonia me fez desejar estar ali, mesmo que à época,

fossem para mim tão nebulosos e indefinidos os objetivos do trabalho na creche,

me fez pensar sobre quão privilégio seria fazer parte da vida de alguém tão

pequeno e vulnerável.

Outro exemplo de que a experiência prévia a que o edital se referia fazia

menção a qualquer tipo trabalho em que houvesse contato com crianças, fosse

como babá, monitora, enfermeira, ou simplesmente, mãe apareceu também na

narrativa de Ana,

minha ex sogra trabalhava aqui e falou que ia ter um concurso pra professor, não, pra recreacionista e ela conhecia a diretora que era a R., a R. era diretora dela na época e ela falou que ia vir pra creche e que ia pegar bastante funcionários e que tinha que ter experiência com criança, não importa ser professora ou ter trabalhado em alguma creche, não. Tinha que ter experiência com criança e eu tinha experiência com o meu próprio filho (ANA, 2013, p.121).

Ana é professora da creche desde seu primeiro dia de funcionamento e a

faixa etária que mais se identifica e gosta de trabalhar são as crianças de zero a

dois anos (berçário). Relatou que, nesses mais de vinte anos como educadora da

mesma instituição, já fez parte da educação de centenas de crianças. Fato este,

que lhe traz muito orgulho. Para ela, cuidar e educar é um prazer. Dentre tantas

crianças e tanto tempo, já teve até mesmo a oportunidade e o privilégio de cuidar

de uma criança filha de uma mulher que fez parte de sua primeira turma, em 1990.

Passar por esta e outras tantas experiências a deixa muito feliz e realizada.

Das cinco professoras entrevistadas e aprovadas no concurso, apenas Flor

tinha experiência profissional como auxiliar em uma escola de educação infantil.

No que se refere à formação profissional, Maria Queiroz havia concluído o antigo

curso de magistério. Ana, Antonia, Eliana e Flor tinham o Ensino Médio completo.

Maria Queiroz, que concluiu o magistério no ano de 1985, trabalhava como

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empregada doméstica e morava na casa em que exercia esta atividade. O local de

sua residência era próximo ao Colégio Carlos Gomes, que oferecia o curso na

época. Então trabalhava e estudava. Sua experiência com crianças foi

comprovada por uma carta de uma ex-patroa de que Maria havia atuado com

babá.

As experiências das candidatas às vagas de recreacionistas da nova creche

remeteram ainda a um período anterior à promulgação da Constituição Federal de

1988. Embora a Creche Área de Saúde tenha sido inaugurada em um período pós

Constituição de 1988, não houve exigência nem de experiência, nem formação

profissional específica para o trabalho com educação infantil, fato que refletia

ainda os aspectos legais existentes antes da última publicação do novo

documento Constitucional. A última versão, contudo, já apresentava a importância

da valorização do magistério e da elaboração de plano de carreira para os

profissionais da área em seu artigo 206:

O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I- Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II- Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o

pensamento, a arte e o saber; III- Pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência

de instituições públicas e privadas de ensino; IV- Gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V- Valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da

lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurando regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;

VI- Gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII- Garantia de padrão de qualidade. (BRASIL, 1988)

Em 1990, a professora Maria da Gloria Gohn, à época, representante da

Pró-reitoria de Assuntos Comunitários da Unicamp – PREAC- (UNICAMP, acervo

DEdIC, 1990), órgão da Universidade ao qual a creche vinculou-se em 1992,

apresentou um estudo que tratava da Legislação Brasileira a respeito da criança

de zero a seis anos de idade. A autora destacava em seu texto a primeira Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional datada de 1961, e que este documento

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tratou da educação pré-escolar – à época denominada de educação pré-primária –

em dois de seus artigos. O primeiro deles, artigo 23º apenas mencionava que a

educação pré-primária era voltada para as crianças menores de sete anos de

idade, e o artigo seguinte incentivava que empresas que contassem com os

serviços de mulheres que tivessem filhos em idade pré-primária criassem

instituições de educação18.

Dessa forma, na LDB de 61 não houve nada específico, nem com relação

ao atendimento educacional para esta faixa etária, nem com relação à formação

dos profissionais para atuarem junto às crianças. A próxima versão das Diretrizes

Nacionais para Educação foi publicada dez anos depois, em 1971, pela Lei Nº

5692, mas que novamente abordou a questão da Educação pré-primária de

maneira superficial. No entanto, a autora destacou que, a despeito da omissão

legal, a década de 70 é marcada pelo surgimento de berçários e maternais em sua

grande maioria particulares, voltados para a população das classes média e alta, e

a criação de uma rede de pré-escolas públicas. Contudo, nos anos 70 ainda é

marcante a questão assistencial e médica para todo e qualquer atendimento

voltado a crianças até sete anos. Em nível nacional, por exemplo, em 1972 é

criado o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição – INAM -, órgão este

vinculado ao ministério da saúde que tinha como objetivo propor programas de

assistência alimentar para esta população. Já na década de 1980, a demanda

social por creches fez com que o Governo iniciasse o projeto dos Centros de

Convivência Infantil – CCI - como já destacado no primeiro capítulo deste trabalho,

além de uma série de novas iniciativas, dentre elas, a criação do “Fórum Nacional

de Educação”. Esse período foi marcado também pela publicação da Constituição

Federal, que, pela primeira vez,

Inaugura um novo momento na história da legislação para as crianças de 0 a 6 anos. Constitui-se um novo sujeito jurídico: o direito da criança de 0 a 6 anos. Após sua promulgação, surgem

                                                                                                                         18  Art.  23º:  A  educação  pré-­‐primária  destina-­‐se  aos  menores  até  sete  anos,  e  será  ministrada  em  escolas  maternais  ou  jardins  de  infância.  Art.  24º:  As  empresas  que  tenham  a  seu  serviço,  mães  de  menores  de  sete  anos,  serão  estimuladas  a  organizar  e  manter,  por  iniciativa  própria,  ou  em  cooperação  com  os  poderes  públicos,  instituições  de  educação  pré-­‐primária.  

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debates em torno de um novo projeto de lei para a Educação Nacional levando a construção de uma nova terminologia: a Educação Infantil para a faixa etária de 0 a 6 anos. (UNICAMP, 1990, p.2)

Após a promulgação da Constituição de 1988 muito começou a ser

discutido sobre a Educação Infantil que começava a se instituir, buscando cada

vez mais desvincular-se das questões de assistência. Repasse de verbas, direito

das crianças, objetivos da educação infantil, instituição de grupos de trabalho

voltados para a temática, enfim, uma série de novas organizações do Estado

entraram em atividade neste período que precedeu a nova e última versão da Lei

de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgava em 1996. Gohn

(Unicamp, 1990) destacava o “Projeto Jorge Hage”, elaborado em 1990 como um

dos precursores para uma nova LDB:

o projeto Jorge Hage foi elaborado a partir de uma articulação entre diferentes setores que participaram das discussões em torno de uma proposta de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em junho de 1990, o substitutivo que levou o nome de seu relator, o deputado baiano do PSDB, Jorge Hage, foi aprovado pela Camara Federal. Ele contém todo um capítulo sobre a Educação Infantil. [...] A Educação Básica foi subdividida em três grandes fases: a Infantil, de 0 a 6 anos; a Fundamental de 7 a 14 anos e o Ensino Médio, posterior ao fundamental. A Educação Infantil foi subdividida em dois ciclos: creches para a faixa etária de 0 a 3 anos e pré-escolas para 4 a 6 anos. Ela é considerada como a 1º etapa da Educação Básica (UNICAMP, 1990, p. 13).

Sobre a Constituição de 1988, faz-se oportuno atentar para o fato de que o

atendimento em creche aparece no documento em dois tópicos diferentes, sendo,

o primeiro deles, enfatizando o local como direito social dos trabalhadores e em

assistência aos seus filhos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [...] XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

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Na seção destinada à educação, a creche insere-se um direito a ser

garantido pelo Estado:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

Em meio a toda esta discussão política que ocorria no cenário nacional,

dentro da UNICAMP surgia a Creche Área de Saúde. Em sua organização, a

relação destacada por Kuhllmann (2000) no capítulo anterior entre educação e

assistência seria notada por fatores como a não exigência de formação das

recreacionistas, porém, coordenadas por uma pedagoga; a direção da unidade

desempenhada por uma enfermeira deslocada do Hospital de Clínicas para a

creche apontava para o vínculo com a saúde, que inclusive deu nome à

instituição. Mesmo o CECI, de 1982, originalmente configurando-se como uma

proposta de Centro de Convivência infantil, contava com a enfermagem em sua

direção. Mas a relação com a área da saúde, a princípio, não incomodou Flor.

Trazendo em sua história uma experiência de trabalho em outra instituição de

educação infantil, quando chegou à CAS percebeu o espaço como diferenciado e

inovador:

Antes eu já trabalhava com criança, em uma escolinha como auxiliar, mas era muito diferente. Uma creche nova, cheirava tudo a novo, um espaço totalmente diferenciado. Eu lembro que até suspirava, eu tava encantada, porque era uma coisa que nenhuma escolinha tinha. E quando a gente chegou ainda não tinha criança, então nós enfeitamos a creche. Pintamos, recortamos, colamos. E ficou tão bonito! Eu lembro que em uma das salas tinha um enfeite de coração com um zíper, e desse coração saía um monte de coraçõezinhos. Muito legal! (FLOR, 2013, p.160)

Aprovada em 22º lugar no concurso público para recreacionista da creche,

Flor atua no mesmo local desde então, sendo no berçário, seu período de maior

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experiência. Para ela, tudo passou muito rápido, “o tempo voou diante de meus

olhos”. É apaixonada por contar histórias, com certeza por carregar em sua

memória as que sua mãe contava quando Flor era criança. “As crianças da rua

vinham até minha casa ouvir as histórias de mamãe”. De vez em quando é

possível ver Flor, andando pela creche, fantasiada de princesa, com sua fila de

crianças atrás, inventando algum conto. Com sua voz forte, impossível não notar.

A voz alta, no entanto, pronuncia palavras de carinho para os pequenos, que são

diariamente, recebidos e chamados de “meus amores”, “flor do campo”, “meus

queridos”.

O encantamento de Flor remete a duas questões. A primeira delas é o fato

de que a Creche Área de Saúde foi pensada e construída exclusivamente para

receber as crianças. Diferentemente daquilo que a história destacou como

iniciativas pouco preparadas de atendimento ao público infantil (geralmente locais

adaptados sem nenhuma especificidade para a faixa etária), sua construção foi

pensada em módulos, separando as crianças por idade. Cada um dos módulos

dispunha de banheiros e cozinhas próprios, destinados às crianças que ali

estariam, além de três áreas externas separadas. O berçário, com espaço para o

“banho de sol” dos bebês. O maternal I com um pequeno parque com tanque de

areia, e o Maternal II, para as crianças de 2 a 3 anos, com um parque bem maior,

com amplo espaço para brincar. Para sua inauguração, foi feita uma lista de

compras de tudo aquilo que era necessário para receber as crianças: berços e

colchões novos, utensílios de cozinha, materiais de enfermagem, dentre tantos

itens requisitados ao Hospital de Clínicas da UNICAMP e que foram atendidos

(UNICAMP, DEdIC,1990). A inauguração daquele espaço foi uma ação

totalmente inovadora. Até mesmo em meu caso, que cheguei em 2004, contratada

mediante concurso público já para o cargo de professora e havia cursado

magistério entre os anos de 1997 e 2000, nunca tinha vivenciado, nos estágios

obrigatórios do curso, espaço destinado às crianças da maneira como aquela

creche se organizara. Dessa forma, embora a visão de início ainda remetesse à

assistência e ao direito da mãe trabalhadora, o espaço físico já apontava para

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uma mudança de paradigma no que se refere às práticas pedagógicas da

Educação Infantil.

Contudo, a segunda questão trazida a partir da rememoração de Flor

aponta para uma reflexão passível de ser realizada a partir dos estudos da

memória e que contribui para pensar sobre a atuação do professor de educação

infantil. Se é verdadeira a premissa de que “não existe um ‘passado em si’, mas

apenas um passado visto com os olhos do presente” (OTTE, 1996), com os olhos

de hoje, algumas das iniciativas trazidas por Flor não seriam vistas da mesma

maneira. A inovação pode ser compreendida no sentido de que tudo foi pensado

para receber as crianças. Os adultos se prepararam e organizaram o ambiente

para a chegada dos bebês, o que foi e é fundamental. Mas hoje, algumas práticas

como a decoração do espaço são questionadas a partir de uma nova concepção

de educação infantil, compreendida muito mais no sentido de centrar-se na

produção da própria criança e na construção de espaços ricos em vivências e

possibilidades de exploração e desenvolvimento. Assim, este “modelo” de

creche não seria mais tão inovador. Longe de criticar o passado, ele deve ser

revisitado e repensado a partir do presente. Reflexão esta que se relaciona às

histórias de vida, mas fundamentalmente, à formação profissional.

Treinamento X formação em contexto na creche: uma primeira experiência

E sobre tal formação, foi ainda em 1990 que aconteceu o primeiro

“treinamento”, para as recreacionistas contratadas, logo nos primeiros dias de

trabalho. Durante as entrevistas, vários termos surgiram para denominar esta

primeira semana: treinamento, curso de formação, palestras, estágio. De fato, foi

um período organizado pela equipe técnica como um momento de treinamento

inicial para o trabalho, já que muitas não tinham nenhuma experiência dentro de

uma creche. E, mesmo para aquelas que tivessem, estava ali sendo inaugurado

um espaço diferenciado, com horários específicos e turnos de trabalho. Embora as

entrevistadas não se recordem ao certo quantos dias ficaram neste processo,

estimou-se que este período durou uma semana inteira de trabalho, dividindo-se o

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tempo entre reuniões e orientações, além de um estágio no CECI, que era a

creche que já funcionava na Universidade desde 1982.

cheguei aqui na creche, e fomos fazer um estágio em vários lugares, né, berçário e maternal, lá no CECI. No berçário amei! Meu Deus é isso! É isso mesmo que eu quero pra mim, é aqui mesmo que eu quero ficar. Aí fiquei 15 anos trabalhando no berçário. Eu me apaixonei pelos bebês (ANTONIA, 2013, p.137).

Após o período de estágio no CECI, as professoras tiveram uma espécie de

treinamento com as profissionais da então denominada equipe técnica,

Depois veio aqui pra creche, aí a coordenadora pedagógica dava as instruções, a gente ficou quase uma semana e não tinha criança, era só treinamento. Aí de orientação tinha assim, eu lembro que teve uma dinâmica que ela trazia uma boneca pra gente saber como trocar a criança, mas isso era da enfermagem, e tinha uma dinâmica também sobre a mãe, como se fosse a mãe que chegava com a criança, então alguém chegava na mãe e perguntava o que ela comia, sabe aquele procedimento que a gente tem, saber o que a criança gostava de comer, se tinha chupeta, se tinha alguma restrição a comida, ah, muita coisa. A gente conheceu o espaço, procurou saber as duplas com quem que iria ficar. No começo eu fiquei com a Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu primeiro grupo (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p171).

Ana também rememorou esta primeira semana de trabalho com as

orientações que teve, e, em especial, seu encantamento pelo trabalho com os

bebês,

Do jeito pra trocar, o banho a alimentação, mais voltada mesmo pra higiene pessoal e o cuidado mesmo com as crianças. É, e também, aí depois o meu estágio foi no berçário do CECI. Lá naquele prédio, lá embaixo. Era aquele prédio e nisso acho que elas ficavam observando a gente, né, não sei, não lembro direito, mas acho que tinha alguém observando, pra vê o perfil, porque, depois que terminou que elas foram separar as professoras pros módulos que era berçário, maternal I e maternal II, elas disseram que eu tinha perfil pra berçário. E eu adoro o berçário (ANA, 2013, p. 122).

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Contudo, a partir daquilo que foi destacado nas narrativas, não é possível

nomear este período como um momento de formação. Havia o objetivo de

transmitir informações e conhecimentos acerca do trabalho e inclusive um tipo de

estágio supervisionado pela equipe técnica da unidade. No entanto, as atividades

centravam-se no treino, nas ações práticas a serem desempenhadas pelas

recreacionistas. Não parece ter havido um compartilhar de conhecimentos entre a

equipe, e nem reflexão sobre a atuação na creche. O trabalho reflexivo seria

fundamental para que se considerasse este momento da histórica como formação

em contexto, para além de um treinamento. Ainda assim, até os dias de hoje, as

professoras rememoram este período como importante para o trabalho, e, quando

algum funcionário (professor ou estagiário) ingressa na creche sem nenhum

momento específico de formação inicial (ou até mesmo treinamento) anterior ao

contato com as crianças – fato que é visto constantemente na realidade atual – há

a vivência por parte do grupo de uma perda na qualidade do atendimento a ser

oferecido.

Os fios da história da Creche Área de Saúde começaram a costurar-se

então da seguinte maneira: prédio recém-construído, recreacionistas concursadas,

equipe técnica formada por enfermeiras, assistente social, psicóloga, nutricionista,

pedagoga, toda uma equipe para os serviços gerais, recursos financeiros oriundos

do convênio entre órgãos distintos, curso preparatório para as cuidadoras. Tudo

pronto para receber as crianças, que no dia 26 de junho de 1990, começaram a

chegar.

Início de funcionamento: a chegada das crianças

Eu lembro que na minha primeira turminha a primeira criança foi um menino que chamava R., porque a gente começava assim com 2, 3 crianças, depois iam chegando mais e ia aumentando, e o R. era levado, gente, como no começo era só ele, então era tudo pra ele, só ele então, ele ficava solto, corria naquele espaço grande só pra ele, ahhh, ele era levadinho, loirinho, bem levadinho” (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.171,172).

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Maria Queiroz rememorou R. com muita emoção e ternura, pois foi a

primeira criança de quem cuidou na creche. Logo que ingressou, foi alocada no

módulo que ficavam as crianças do Maternal I, com idades entre um e dois anos.

Na entrevista, perguntei a ela como era o trabalho neste início da creche,

A gente dava o lanche, depois ia pro parque, fazia atividade, atividade não, brincava de bola, bambolê, brincava. Depois da brincadeira a gente entrava, ia tomar banho, trocava, depois ia pro almoço, almoçava, dormia, aí a mãe chegava e ia embora, não tinha aquele planejamento que você fazia todo dia, depois que começou o planejamento. Aí a coordenadora já tinha o planejamento semanal que ela fazia, era ela que fazia e a gente desenvolvia aquilo lá. Então às vezes ela colocava: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, ela que fazia e a gente colocava em prática alguma atividade que se encaixasse ali dentro, e o projeto era uma folhinha, não tinha esse projetão que a gente faz hoje, com objetivos, essas coisas. Era uma folhinha de projeto, por exemplo, do dia das mães, projeto da semana da alimentação, quer dizer, tinha projeto mas já vinha pronto, era ela quem dava pra gente fazer, pra executar (MARIA QUEIRÓZ, 2013, 172, grifo meu).

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Figura 3: Trepa-trepa: brinquedo do parque do Maternal Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013

A imagem do brinquedo “trepa-trepa” vincula-se às memórias de Maria

Queiróz e traz a reflexão sobre os materiais utilizados para brincar na educação

infantil. Todas as crianças que passaram pela creche, de alguma maneira

passaram também por entre o emaranhado de traves horizontais e verticais que

permitem aos corpos explorar, subir, descer, passar por dentro, por cima e por

baixo. É possível supor, porém, por sua altura, que o “trepa-trepa”, instalado na

CAS em 1990 era um brinquedo utilizado por crianças mais velhas, maiores.

Embora o objeto ainda seja o mesmo, sua altura foi reduzida há alguns anos atrás,

serrando-se a base. Isso porque as crianças, por volta dos três anos já

conseguem subir até o topo do brinquedo, o que, comparando-se à altura delas,

acabava por tornar a brincadeira perigosa pela possibilidade de queda. Assim,

ressalta-se a ideia da invenção da educação infantil, e da não reprodução de

práticas vindas do ensino fundamental. Nesse, sentido, os objetos tão habituais no

cotidiano da creche devem também ser utilizados para tal problematização.

Assim como a imagem do trepa-trepa, muito pode ser dito a partir da

memória de Maria Queiroz com relação ao trabalho desenvolvido no início dos

anos 90. A começar pela palavra “atividade”, que ela mesma, em sua fala, corrigiu

pelo termo “brincava”. Esse é um importante ponto de discussão até os dias de

hoje quando se reflete sobre o trabalho na creche e que será discutido adiante. Na

realidade, a partir do momento em que a creche passou a fazer parte da educação

básica, configurando-se como um espaço educativo e de direito da criança, há que

se reinventar as práticas de atuação. Surgia então um conflito entre aquilo que

antes era aceito (brincar) e aquilo que agora se pretende ensinar (pedagógico). O

que se defende, contudo, é que não haja tal dicotomia, e que todos os momentos

dentro da rotina da creche estejam contemplados na proposta pedagógica,

inclusive a brincadeira19. E, ao “corrigir” sua fala, Maria Queiroz talvez

                                                                                                                         19  O  conceito  de  trabalho  pedagógico  é  abordado  por  diversos  autores  que  atuam  nos  estudos  sobre  a  educação.  No  que  se  refere  à  educação  infantil,  especificamente,  optei  aqui  pelo  conceito  utilizado  no  

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demonstrasse que esta concepção ainda não é tão claramente definida nos dias

de hoje. Ou seja, há uma compreensão de que nos anos 90 ainda não havia

intencionalidade naquilo que era proposto às crianças, diferente do que ocorre

hoje.

No entanto, brincar como proposta pedagógica ainda é alvo de conflitos,

como se fosse uma palavra que uma professora não devesse utilizar. Então,

substitui brincar por atividade. Em recente publicação, o Ministério da Educação

promove reflexão acerca da temática, definindo a brincadeira como:  

a atividade principal da criança. Sua importância reside no fato de ser uma ação livre, iniciada e conduzida pela criança com a finalidade de tomar decisões, expressar sentimentos e valores, conhecer a si mesma, as outras pessoas e o mundo em que vive. [...] A pouca qualidade ainda presente na educação infantil pode estar relacionada à concepção equivocada de que o brincar depende apenas da criança, não demanda suporte do adulto, observação, registro nem planejamento (BRASIL, MEC, 2012, p.11).

Ainda sobre as memórias de Maria Queiróz, mais uma de suas falas

apontaram para as práticas das recreacionistas na creche.

Não, aqui era só cuidar, o tipo de atendimento era ó cuidar, tinha aquela coisa da recreação que a gente brincava com as crianças. Não tinha aquela coisa de colocar no papel, por exemplo, brincar de bola, não tinha nenhum objetivo pra atingir como uma atividade dirigida era só brincar, e todas as atividades eram assim, não tinha objetivo específico. No fim em toda a brincadeira a criança retém alguma coisa e aprende, mas não era pensado nisso, era brincar por brincar (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.173).

Esta reflexão, segundo ela, veio após a formação profissional e os estudos

sobre educação infantil, muito tempo depois que iniciou o trabalho na creche.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    documento  “(Parâmetros  Nacionais  de  Qualidade  para  a  Educação  Infantil  –  Volume  II  –  (Brasil,  MEC,  2006,  p.32)  )  no  que  se  refere  à    proposta  pedagógica.  Nesse  sentido,  destaca:  a  organização  intencional  das  atividades,  tanto  livres  quanto  dirigidas;  a  interação  entre  as  diversas  áreas  do  conhecimento  e  a  intervenção  dos  profissionais  que  atuam  diretamente  com  as  crianças  para  suprir  suas  necessidades.  Toda  o  trabalho  deve  ser  permeado  por  práticas  de  cuidar  e  educar  como  ações  indissociáveis.    

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Antes, contudo, para ela, o trabalho consistia no brincar, na recreação. No

entanto, Maria Queiroz destacou que o planejamento escrito pela pedagoga da

creche mencionava que o trabalho das recreacionistas deveria atingir algum

objetivo: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, como apresentou

em sua fala. Mas como o planejamento chegava pronto, “pra executar”, era como

se a ação, a prática ainda não fosse capaz de tecer fios junto aos aspectos

teóricos sobre a educação infantil que começavam a se alinhavar através da

história. Duas questões podem ser apontadas aqui: a divisão que historicamente é

estabelecida entre o trabalho prático e o saber teórico, e mais uma vez, a divisão

entre brincar e educar.

O primeiro ponto e que emergiu fortemente na creche somente nos anos

2000, com a chegada das “novas” professoras remetia à crítica na história da

educação infantil pela pouca exigência de formação para atuação junto às

crianças, mas que de certa forma era suprida pela formação da coordenação ou

direção, que, no surgimento das creches, aparecia como o curso normal, e,

posteriormente, com a formação em nível superior (pedagogia ou normal

superior). Afinal de contas, qual seria a finalidade de uma cuidadora possuir

formação acadêmica? O que seria pré-requisito para aquelas que iriam somente

brincar com as crianças?

Então a gente fazia assim mais era a parte de cuidar, muito cuidar e mais aquela coisa assim da recreação mesmo, a gente tinha muita coisa assim, toda data tinha festa da primavera festa não sei do quê, brincadeira não sei do quê, porque toda data comemorativa tinha que ter aquelas brincadeiras porque era recreação com a criança a criança brincava muito, então a gente fazia dinâmicas no parque, porque tinha que ser assim porque era recreação, e a criançada..... ah, criança é sempre criança né (ELIANA, 2013, p.148).

Eliana também trouxe em sua fala referência às práticas de cuidado e o

trabalho baseado nas brincadeiras. Apontou ainda, para uma característica

marcante no trabalho da educação infantil, que se relacionava à celebração de

“datas comemorativas”, prática hoje também questionada. No entanto, Maria, a

única recreacionista entrevistada que havia concluído o curso de magistério

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relatou que inclusive em seu curso as datas comemorativas eram apresentadas

como importantes na educação,

A gente dava muito papel pras crianças, mas tudo já feito pra criança pintar, desenho mimeografado, eu me lembro que eu tinha uma pasta enorme, a professora do magistério mandava a gente fazer aquelas pastas coloridas de datas comemorativas, e aquilo lá era uma sensação pra mim. Usava porque era a prática da época. Não tinha uma que não usava aquela pasta. Tinha aqueles desenhos do dia do índio, aquilo lá pra gente é uma relíquia. (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.172)

E assim, o trabalho com as crianças foi iniciando sua trajetória. A instituição

de uma rotina de cuidados diários, com trocas de fraldas no caso do berçário,

banhos, alimentação, sono, foi importante para organizar o trabalho, e, nesse

sentido, a questão da assistência e saúde foi marcante, inclusive porque algumas

práticas da área da saúde foram incorporadas como parte do trabalho das

recreacionistas, como pesar as crianças semanalmente, aferir temperatura,

ministrar medicamento. Práticas estas, inclusive, que perduraram até o ano de

2004, quando as professoras do novo concurso público começaram a chegar e

questionar a finalidade das mesmas.

O trabalho começou, e os anos foram passando. Muitas crianças e suas

mães viveram naquele espaço, que seguiu por anos uma rotina de trabalho

pautada no direito da mulher trabalhadora, e nas práticas de cuidado e assistência

às crianças pequenas. As recreacionistas que trabalhavam aos sábados,

domingos ou feriados, de acordo com uma escala mensal organizada pela equipe

técnica, tinham direito à folga durante a semana, assim como a organização do

trabalho do hospital, e, tal gerenciamento perdurou por muitos anos,

naturalizando-se como prática comum da creche.

Em tanto tempo de trabalho, muitas histórias, infinitas memórias. Muitas

delas ficaram na lembrança das recreacionistas, e, algumas foram rememoradas

nas entrevistas, e, como destacou Seligman-Silva (2000) em seu artigo

“Auschwitz: história e memória”, em que trata dos desafios da historiografia em

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lidar ainda com um passado recente e das memórias do período nazista, em que

se estimou a morte de aproximadamente seis milhões de judeus, não há como

separar, de forma rígida, história e memória, e, nesse sentido, o historiador pode

valer-se da psicanálise para refletir sobre as memórias da história. Nesse sentido,

Se é verdade que no campo da memória ocorre uma seleção dos momentos do passado e não o seu total arquivamento, ou seja, a memória só existe ao lado do esquecimento, por outro lado, cabe ao historiador – assim como individualmente a cada um de nós- não negar ou denegar os fatos do passado, mesmo os mais catastróficos. Como na figura do catador de trapos que Benjamin identifica com a do historiador: devemos salvar os cacos do passado sem distinguir os mais valiosos dos aparentemente sem valor, a felicidade do catador-colecionador advém da sua capacidade de reordenação salvadora desses materiais abandonados pela humanidade no seu caminhar cego em direção ao “progresso” (SELLINGMAN-SILVA, 2000, p. 84).

A partir da psicanálise é possível pensar que não por acaso, uma destas

memórias “catastróficas” foi selecionada por Ana em sua entrevista. No ano de

1991, quando teve início sua nova turma de bebês, uma das crianças passou mal

na creche e veio a óbito. O ocorrido foi a primeira memória que Ana abordou em

sua entrevista, e trouxe muita emoção naquele momento de rememoração.

Primeiramente, relatou um fato ocorrido no CECI, antes da inauguração da Creche

Área de Saúde:

Na verdade eu era mensageira né, e trabalhei 3 anos e 9 meses no CAISM, e, tive 1 filho aos 18 anos, e na época que eu tive meu filho faleceu uma criança no berçário do CECI, e eu ia trazer meu filho, fui na entrevista de gestante tudo, ia trazer, mas na minha licença faleceu uma criança e eu fiquei com medo e não quis trazer ele a creche, chorei muito, vim trabalhar 1 dia, minha irmã até ficou com ele, ele tava com 4 meses, e no outro dia eu vim e pedi demissão. Aí fiquei em casa com ele 9 meses, antes de prestar o concurso pra recreacionista (ANA, 2013, p. 121).

Depois relatou o ocorrido com seu grupo de crianças,

Aí esses bebês entraram no começo do ano, em 91, em maio mais ou menos e era época de greve, e a gente revezava pra greve,

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então em um dia saía uma, outro dia, a outra. E naquele dia eu não tava bem, eu me senti mal, e aí a gente voltava pra creche pra revezar com o horário de almoço de quem tinha ficado porque não tinha quem ficasse com as crianças. E aí tinha entrado essa criança, uma menina, e era o terceiro dia dela na creche, ela tinha três meses. E a mãe falou que era pra coloca-la pra dormir de lado, não era pra colocar de bruços, só que a gente tinha uma norma da enfermagem, a gente tinha que pôr todo bebê de bruços, não interessa o que a mãe falava. E essa menina mamava na mamadeira. Aí nesse dia eu fui almoçar, e a gente almoçava no restaurante do HC, aí eu cheguei na porta do restaurante e não entrei. Voltei pra creche. Quando eu cheguei, tinha gente do lado de fora chorando, aí eu entrei assim, e foi horrível, porque eu senti que tinha alguma coisa errada. Aí me explicaram que a mãe veio amamentar, e eu justamente não queria trazer meu filho por causa disso, eu tinha medo, e aí aconteceu justo comigo né, porque era da minha sala, aí a mãe veio amamentar às 11 horas da manhã, eu tinha saído um pouquinho antes, e agente fazia assim, pegava a criança, trocava e ia colocando no berço e a gente ficava fazendo aquele caminho dentro do quarto e olhando, mesmo que estivesse sozinha, você ficava toda hora entrando com um, com outro, e era na porta do quarto o trocador, sempre na porta, e aí a mãe veio e a professora falou que tinha acabado de colocar no berço, e eu lembro que ela gritava, tinha um choro diferente e até se arranhava, parecia que tinha uma dor, sabe, e aí quando a mãe foi pegar ela tava roxa, aí a mãe começou a gritar, e ela tava de bruço, a mãe gritava: você matou minha filha, eu falei que não era pra coloca-la de bruços. Aí a enfermagem fez os primeiros socorros, e levaram ela pro HC, aí já foi direto pra UTI. Aí a gente foi até lá pra ver, aí ela tava entubada, era muito pequenininha, magrinha, foi horrível. Aí naquele dia eu não fui embora, a gente saía cedo, mas eu fiquei aqui fora sentada, aí quando foi umas 4 horas tocou o telefone a diretora atendeu e começou a chorar, a criança tinha falecido. Eu fiquei desesperada. No outro dia a gente foi no enterro, a mãe não olhava pra gente, mas depois saiu um laudo depois de uns 15 dias falando que ela tinha um problema no coração. Porque assim, ela não tinha vomitado, nada, então foi um problema no coração que a mãe também não sabia. E essa menina era a segunda filha dessa mãe, e aí depois ela teve outra filha, mas ela não trouxe mais pra creche. E depois ela veio e nos pediu desculpas, tudo. E isso foi uma tristeza pra mim porque aconteceu justo na minha sala, eu que tinha tanto medo, e eu lembro que depois a gente não colocava criança nenhuma naquele berço, era estranho, o quarto era pra 10 bebês, mas a gente nunca tinha 10, era sempre 9 (ANA, 2013, p.124,125).

Ana chorou muito neste momento da entrevista, a sensação era de que

aquela tragédia acabara de acontecer, nem parecia que havia se passado vinte e

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dois anos. E, no acervo da creche, o único documento encontrado sobre o ano de

1991 tratava exatamente deste fato, um relatório escrito pela diretora na época,

em que foi descrito todo o ocorrido naquela manhã de maio. De fato, mesmo não

havendo culpados pelo ocorrido, algumas práticas mudaram na creche após

aquele dia. Sempre que houvesse crianças dormindo nos quartos, era obrigatória

a permanência de um adulto. A orientação se mantém até os dias de hoje.

Além disso, o ato de lembrar configura-se como um processo seletivo. Para o sujeito que narra, é impossível narrar tudo, lembrando-se apenas dos momentos significativos do passado. No ato de lembrar, evocamos momentos vividos, remontamos a vivências, trazemos à memória conteúdos vividos, valendo-nos de nossas referências atuais. Nesse ato, experiência e memória se imbricam num processo de metamorfose no qual a identidade se constitui (VIEIRA, 2006, p.16).

De certa forma, a experiência vivida por Ana fez parte de sua constituição

como professora, tanto que ela fez questão de narrar esta história. Tornar pública

esta história, talvez a libertasse de um “fantasma” do passado. Mesmo depois do

ocorrido, ela permaneceu trabalhando no berçário por quinze anos. Além disso,

suas memórias apresentaram ainda outra questão, comum às mulheres que

trabalharam e trabalham na creche. Sua grande maioria foi formada por mulheres,

profissionais e mães, cujos papéis em certa medida misturavam-se em

determinadas épocas, pois, sempre que alguma mulher trabalhadora da creche

tinha um filho, ao retornar da licença maternidade, voltava como profissional, e

como ‘mãe de creche”, e seus filhos tinham vaga na instituição. Nem sempre foi

assim,

Eu lembro também que não iam dar vaga pra gente, quem era mãe não tinha vaga. Aí depois de um certo tempo que completou tudo o quadro de vagas, a lista de espera, aí sobrou as vagas e eu pude trazer meu filho, e ele veio com 1 ano e 2 meses, no maternal I (ANA, 2013, p.126).

Depois, o direito à vaga para os filhos e filhas das mulheres trabalhadoras

da creche constituiu-se como prática comum. Então as mulheres tinham seus

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filhos, quando retornavam ao trabalho, passavam a atuar nos módulos do

Maternal I ou Maternal II, já que as crianças ficavam no berçário. Quando o filho

crescia e mudava para o Maternal I, se a mãe estivesse trabalhando lá tinha que

trocar de espaço também. E assim, a atuação das mulheres mães ficava sempre

vinculada ao seu filho, até o momento em que este saía da creche, mais ou menos

com quatro anos de idade.

E assim a década de 1990 se passou. O trabalho na CAS solidificou-se e

constituiu-se como referência na Universidade. Muitas mulheres trabalhadoras da

área da saúde tiveram seus filhos na creche.

Tive uma criança na minha primeira turma, um menino que nasceu de seis meses e meio, pesava 650 gramas, cabia numa caixinha de sapato. Ele teve fechamento precoce da moleira e teve que fazer uma cirurgia, e como ele ficou na incubadora queimou a retina, então ele era uma criança que não enxergava e também não podia bater a cabeça. E aí foi difícil! Ele começou a engatinhar e como a gente ia fazer? Ele não podia bater, não podia cair. Aí ele ficou mais tempo no berçário do que as outras crianças, porque demorou mais para engatinhar e andar, e quando ele começou a andar foi para o maternal I. Mas assim, a gente tinha 9 crianças mais ele, nossa turma era de 10 crianças. Com o tempo ele conhecia todas as professoras pela voz e ele ficou na creche até os 4 anos e ele ia sozinho a todos os espaços da creche. Pouco tempo atrás fiquei sabendo que hoje ele é músico. Mas trabalhar com essa criança foi um desafio muito grande (ANA, 2013, p.129).

A equipe de funcionários se manteve por todo o período. Em 1996, com a

promulgação da LDB, novos fios começam a transformar o tecido desta história.

Nas entrevistas, uma das questões dirigidas referia-se a este momento político,

queria saber se as entrevistadas recordavam-se de alguma discussão a respeito

das novas Leis para a Educação Nacional, e, principalmente, da nova exigência

da formação profissional para o trabalho com a educação infantil,

Quando começou a mudar a Lei e disseram que todo mundo tinha que ser professora, mas um pouco antes disso a coordenadora já começou a falar algumas coisas pra gente. A gente fazia o planejamento e passava pra ela e ela via acho que quinzenal e ela dava ok. Então ela já fazia isso antes da Lei que começou a exigir que todo o profissional da Educação tinha que ter pedagogia ela já

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tinha um fundamento disso aí. Então antes da lei, a creche já tava virando educação (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.174).

Quando Maria Queiróz relatou que, mesmo antes da LDB, a creche “já

estava virando educação”, evidencia algumas práticas que, ainda durante a

década de 1990 começavam a trazer para o âmbito da creche um direcionamento

para o trabalho. Sobre estas práticas, foi possível rememorar nas narrativas as

reuniões que a equipe realizava leitura de materiais que traziam reflexões acerca

do trabalho. E, no contexto maior dos Programas Educativos da UNICAMP, teve

início, em 1992, a “Jornada de Educadores”, que, segundo Chagas (2006) foi o

primeiro evento que integrou todas as unidades do programa (CAS, CECI e

PRODECAD) com o objetivo de oferecer formação em serviço. A autora destacou

que a jornada de educadores, a princípio era oferecida durante o horário de

trabalho, mas que, a partir de 1996, passou a suspender suas atividades em um

dia específico do ano destinada à formação.

No ano 2000, o evento completava sua décima edição, e dispunha inclusive

de inscrições para a comunidade externa à Universidade. Então, para resgatar um

dos objetivos iniciais da jornada, que era a integração entre as unidades a jornada

passava a acontecer a cada dois anos, intercalando suas atividades com um novo

evento que foi denominado “Encontros de Aprimoramento Profissional”, restritos

aos Programas Educativos (CHAGAS, 2006).

E eu lembro que na creche sempre teve um tipo de formação em serviço, até antes de vocês entrarem já tinha, a gente lia algumas coisas, até mesmo da LDB, a gente tinha reunião, às vezes uma vez por mês no sábado vinha todo mundo. Aí tinham os encontros, tinham as jornadas (FLOR, 2013, p.166).

Com relação à retomada dos estudos, tanto em nível médio, quanto

superior, as mudanças passaram a acontecer também nos anos 2000, quando as

cuidadoras iniciaram a costura de novos fios de suas histórias, de vida e

profissionalização, sempre mantendo como tecido de fundo, a creche.

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Capítulo III: Mulheres professoras e suas memórias. A profissionalização

O retorno aos estudos no início dos anos 2000

Uma década de trabalho havia se passado. O trabalho na creche era

organizado em uma rotina diária de atividades, em grande medida, baseadas em

ações de cuidado – troca, banho, alimentação, horário de sono -, entre algumas

brincadeiras denominadas como recreação. Cabe ressaltar aqui, o cuidado em

não se cometer nenhum tipo de anacronismo, pois, da mesma maneira que o

trabalho a partir da memória não abarca uma história linear ou desenvolvimentista,

também não é possível pensar em um trabalho melhor ou pior sem que

contextualize as questões. Assim, como já foi aqui problematizado, as práticas

constituíam-se como aquilo que era possível, ou seja, era a prática que se tinha, e

que inclusive ainda hoje permeia uma série de discussões no campo de pesquisa

sobre a educação infantil, em especial, a creche, e esta é uma importante reflexão

que o trabalho a partir da rememoração possibilitou. Nesse sentido, a narrativa de

Flor destacou pouco sobre as práticas dos primeiros anos de trabalho, e algumas

relações que já eram estabelecidas entre o cuidar e o educar, ainda que não

houvesse clareza da concepção que se estabeleceria a posteriori sobre a

importância deste binômio.

era muito assim cuidar mesmo, muita higienização, era pautado muito no cuidar mesmo e nós trocávamos muitas idéias entre nós sobre o que fazer na sala de atividade, fazia muita coisa com giz de cera, eu lembro que nós cantávamos muito, contávamos muitas histórias de livros, eu sempre tive materiais de feltro que era algo diferenciado na época, aquele famoso flanelógrafo, algumas das meninas tinham fantoches, então eu lembro que a creche começou a comprar isso, livros, a pedagoga muitas vezes trazia as atividades e nós desenvolvíamos, então nós trocávamos muito entre nós, então ficou aquele grupo ali das amigas. Eu vejo sempre as crianças daquela época como felizes, nós não éramos tão didáticas, mas nós éramos amorosas (FLOR, 2013, p.164).

A rememoração de Flor compõe um cenário do trabalho à época. Pensava-

se sobre possíveis materiais, utilização de livros para contação de histórias,

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fantoches, enfim, algumas iniciativas denominadas hoje como “pedagógicas” já

apareciam neste período. E quando Flor disse que elas (as recreacionistas do

passado) não eram “tão didáticas”, porém “amorosas”, é como se dissesse que

hoje, com a formação, algo mudou na relação com as crianças. Afinal, o professor

de educação infantil pode ser amoroso? Ou demonstrar afeto implica não se tornar

um profissional qualificado? Quem é, e o que faz o professor de educação infantil

nos dias de hoje? São questões que permearam toda a narrativa e que ao final,

buscaram algumas possibilidades de respostas para tais inquietações.

As narrativas das professoras destacaram que, aproximadamente ao final

da década de 1990, a coordenação da unidade começou a falar sobre a nova LDB

e sobre a obrigatoriedade da profissionalização para atuar na Educação Infantil,

considerada a partir de 1996 então, como primeira etapa da Educação Básica.

Uma das questões dirigidas nas entrevistas foi relacionada a esta questão legal

com o intuito de perceber se houve alguma discussão acerca das novas Diretrizes

Nacionais para a Educação na creche. Ana contou que uma das coordenadoras

da creche fez uma reunião com todas as recreacionistas e orientou sobre a

necessidade de adequação à nova Lei,

A coordenadora começou a falar da LDB, que todo mundo tinha que ter o magistério, mas em Campinas não tinha mais nenhuma escola que oferecesse o magistério, isso a gente já tava no ano 2000 e pouco já, acho que 2003, e daí só tinha o curso de magistério em Hortolândia, e era à distância, ou então em Paulínia que era todo dia20. Aí eu optei por Hortolândia, que era 3 vezes na semana, por causa das crianças, porque o P. ainda era bebê. E foi um sacrifício total (ANA, 2013, p.128).

Assim, o primeiro grupo de recreacionistas iniciou o curso de magistério no

início dos anos 2000. Foi uma primeira iniciativa de uma série de novos

acontecimentos que foram alterando as linhas da história desta creche.

                                                                                                                         20  Optei  por  utilizar  o  termo  “coordenadora”  todas  as  vezes  que  as  entrevistadas  mencionaram  o  nome  da  então  coordenadora  pedagógica  da  creche,  por  conta  de  manter  o  anonimato  da  profissional.  

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Fui fazer o magistério em 2002 e tinha uma pressão pra gente ir estudar sim, eu não sei o que poderia acontecer com a gente, mas tinha que ir estudar, porque ficava aquela coisa no ar, aí foi aquela luta pra gente conseguir fazer, aí começamos a fazer em Paulínia, e foi muito legal porque eu realmente não tinha noção nenhuma de nada. Não conhecia nenhum autor, nem de Vygostky, Freinet, Piaget, nada! Por que pra gente era realmente cuidar da criança e pronto! Então o magistério foi muito bom mesmo, eu acho que pra todas nós. No primeiro dia de aula eu cheguei em casa quase 2 horas da manhã, porque não tinha perua pra gente ir embora (ANTONIA, 2013, p.139).

Utilizando a metáfora dos fios que vão tecendo a história, foi como se novos

fios, com cores totalmente diferentes daquilo que se estava habituado a usar

chegassem para compor o tecido da história. Afinal, não se tratava apenas de

voltar aos estudos, mas sim de iniciar uma série de discussões sobre as práticas

daquela instituição, que haviam se perpetuado por uma década. Por exemplo: se a

LDB exigia a profissionalização, dentro da Universidade não havia nenhum plano

de carreira para estas mulheres que estavam voltando aos estudos. Não haveria

nenhum aumento salarial ao concluírem o curso. Outra questão que apareceu

posteriormente tratava-se do fato de que a creche não tinha – e ainda não tem –

nenhum vínculo com órgãos institucionais da Educação Nacional, como as

secretarias municipais ou estaduais. Não há registro junto ao Ministério da

Educação sobre a existência desta creche, aliás, como era a realidade de todas as

creches públicas existentes dentro das Universidades Paulistas – USP, UNICAMP

e UNESP-. Mas esta questão fomentou discussões em um período posterior, a

princípio, a questão pautava-se na viabilidade para que aquelas recreacionistas

voltassem a estudar.

Não me lembro muito bem, mas eu acho que foi porque disseram que se não tivesse magistério não ia poder ficar na creche, aí a maioria começou a estudar, e eu lembro que as meninas iam ter que estudar longe, e com isso o que aconteceu: essas meninas trabalhavam à tarde, e à tarde tinham menos crianças e menos adultos, então nós tivemos que socorrer a turma da tarde. E eu trabalhava de manhã, aí eu tinha que revezar, ia um dia de manhã, outro dia à tarde, porque esse curso tinha só lá em Paulínia, então elas tinham que sair mais cedo pra pegar condução e ir estudar á noite. Eu lembro que eu ficava no berçário pra ajudar e naquela

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época eu lembro que eu fiquei com a R., que foi na época que o pessoal do concurso novo já tinha chegado (FLOR, 2013, p.163).

O curso de magistério realizado pela primeira turma teve duração de um

ano e oito meses. Quando concluíram, foi a vez de um novo grupo iniciar os

estudos. Neste grupo estava Eliana e para ela, voltar a estudar aconteceu

somente pelo medo de ficar longe das crianças,

Tinha um boato assim, que quem não fizesse o magistério ia ter que sair da creche, então pensa o medo que ficou o povo! Como que a gente ia largar as crianças! Mas era só boato porque teve uma que nunca quis estudar e tá aqui até hoje. Mas eu fiquei com tanto medo de ficar longe das crianças que eu fui fazer. E logo que eu terminei já iniciei a Pedagogia (ELIANA, 2013, p.153).

Este processo durou entre os anos de 2002 a 2005, aproximadamente, e foi

nesta mesma época que novas funcionárias, aprovadas no concurso público

começaram a chegar. As recreacionistas passaram a construir uma nova história,

rumo à profissionalização. E, embora a nomenclatura e a carreira ficassem ainda

estagnadas por mais um tempo, as práticas começaram a mudar.

O curso de magistério me fez olhar para a criança de maneira totalmente diferente, a gente começa a ver a influencia que temos na vida daquela criança, porque antes a gente tinha umas coisas assim: “ah, deixa ele chorar, daqui a pouco ele dorme” sabe, e às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso em como a gente era ignorante mesmo, então eu vejo que mudou bastante, o olhar para a criança mudou, então eu vejo hoje que eu tenho algo mais a fazer. Às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso, nossa como a gente era ignorante, então o olhar com a criança mudou (ANTONIA, 2013, p.139).

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Figura 4: Peniqueiro utilizado no processo de retirada de fraldas das crianças Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.

A imagem do móvel denominado “peniqueiro” ilustra a narrativa de Antonia

sobre o olhar diferenciado que se passou a ter sobre a criança21. O processo de

retirada de fraldas constitui-se como prática comum na creche. No entanto, no

passado determinava-se uma idade aproximada para o treino de controle do

esfíncter e iniciava-se este trabalho com todo o grupo de crianças. O móvel com

capacidade para três penicos, um ao lado do outro, indicava a proposta de retirar

fraldas de maneira coletiva. No banheiro do maternal havia três peniqueiros como

o da foto. Hoje, no entanto, a ideia de que é preciso observação atenta às

questões maturacionais, físicas e emocionais da criança, apresenta a retirada de

fraldas como um processo individual, e, embora o móvel ainda seja utilizado (mas

                                                                                                                         21  O  móvel  denominado  peniqueiro  é  um  objeto  particular  das  creches  da  UNICAMP.  Não  se  tem  conhecimento,  por  exemplo,  de  ser  um  utensílio  disponível  para  compra,  já  que  era  feito  pela  unidade  de  Marcenaria  da  Universidade.  Segundo  as  professoras  e  a  diretora  da  CAS  que  inicou  seu  trabalho  ainda  na  década  de  1980  no  CECI,  o  peniqueiro  foi  criado  no  CECI,  provavelmente  pensado  pela  primeira  diretora  do  espaço.  Em  1990,  algumas  peças  foram  levadas  para  a  nova  creche  CAS.  

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com uma criança por vez), a concepção acerca desta importante etapa do

desenvolvimento da criança é outra.

As novas professoras da creche A chegada das novas professoras à creche foi lembrada em todas as

entrevistas, mesmo não fazendo parte do roteiro inicial de questões. Dois

concursos públicos seguidos foram realizados, respectivamente, em 2003 e 2004.

O primeiro deles, divulgado através do Edital Nº038/2003 (UNICAMP, 2003) tinha

como exigência mínima a formação em nível médio/magistério e experiência

profissional, mas a nomenclatura do cargo ainda era recreacionista. Já o processo

do ano seguinte (Edital 19/2004) não exigia comprovação de experiência, e tinha

como exigência o magistério, ou o curso normal superior, ou a graduação em

Pedagogia, também aceitando se o candidato habilitado estivesse cursando, e,

embora a exigência na formação fosse maior, o salário das novas servidoras era o

mesmo do que o daquelas que ainda não tinham formação específica22.

Dentro do grupo de funcionárias da creche, houve uma espécie de divisão,

ficando então as recreacionistas antigas e as “novas professoras”. As entrevistas

rememoraram este período, ao mesmo tempo com entusiasmo já que todas

apresentaram de maneira positiva o fato de novas pessoas, com outras

experiências ingressarem na creche, mas também com certa tristeza, falando

sobre um período em que o trabalho das então cuidadoras foi desvalorizado por

parte da equipe técnica,

quando chegavam as colegas novas, traziam experiências, porque nós ficamos muito tempo só nós aqui, tinham as contratadas da Funcamp mas era só nós, e assim, ficamos muitos anos só, eu

                                                                                                                         22  Perguntei  à  atual  diretora  da  CAS,  que,  nos  anos  2000  atuava  como  pedagoga  do  CECI  o  motivo  da  diferença  entre  os  dois  processos  seletivos  no  que  se  refere  à  comprovação  de  experiência  em  um  deles.  Apesar  de  não  ter  total  certeza  da  resposta,  relatou  que  o  primeiro  concurso  visava  principalmente,  as  recreacionistas  que  atuavam  na  creche  em  regime  de  trabalho  da  FUNCAMP  (  contratação  de  cargos  não  efetivos),  e  que  passavam  por  um  processo  de  demissão.  Com  a  abertura  do  concurso,  muitas  delas  tiveram  a  oportunidade  de  realizar  a  prova  e  serem  aprovadas.  Contudo,  a  aprovação  não  foi  suficiente  para  o  número  de  vagas  existentes,  e,  por  isso,  no  ano  seguinte,  novo  processo  foi  aberto,  mas  sem  a  exigência  da  experiência.  

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trabalhei praticamente 12 anos com a mesma colega, tinha assim no módulo, mas a gente não trocava, não tinha a experiência que tem agora, e... eu lembro bem do primeiro concurso que teve, depois acho que de 16 anos, e que chegaram as colegas novas assim e traziam ideias novas, coisas novas, eu acredito que elas aprenderam com a gente e nós aprendemos também, mas era muito bom (ELIANA, 2013, p.154,155).

As memórias de Eliana apresentaram de maneira positiva a chegada das

novas colegas de trabalho, depois de muito tempo em que o mesmo grupo se

manteve. No entanto, outras memórias narraram momentos de conflito desta

história, ou seja, alguns nós em meio a costura da história da creche,

No começo, como a gente vinha de uma educação mais assistencialista, vocês vieram dar uma coisa nova pra gente sabe, vocês traziam coisas novas e a gente aprendia, já não era mais só aquela coisa de atividade no papel, começaram todo mundo fazer os projetos, as oficinas, então pra gente que vinha de uma coisa bem fechada de só comer, dormir, brincar, foi bom. A gente tinha o tempo de experiência, mas parecia aquela coisa do “Tempos modernos”, era uma máquina de trocar criança, a gente fazia tudo rapidinho. Uma vez a coordenadora falou que a gente era “braçal” sabe, e vocês eram de fazer projeto (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.178).

Quando Maria falou sobre o “trabalho braçal”, a qual a equipe técnica se

referia ao comparar as atividades das “antigas recreacionistas” com as “novas

professoras”, o sentimento era de desvalorização de um trabalho que foi realizado

por anos.

A coordenadora falava umas besteiras pra gente, falava que a gente tinha que grudar em vocês porque vocês sabiam das coisas e a gente não sabia nada. Eu lembro que antes de vocês chegarem ela fez uma reunião e falou que vocês iriam chegar, que ia ter gente nova, algumas estavam fazendo faculdade, outras já tinham terminado, mas o ar da conversa era sempre no sentido de que a gente era burra e não sabia nada, era assim que a gente se sentia (ANA, 2013, p.131).

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Figura 5: Brinquedo Escorregador do Parque do Maternal II Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada po Karina de Oliveira, 2013.

A ação das crianças de descer pelo escorregador remete a uma ação

contínua e repetitiva. Subir a escada e sentar-se à base que fica no alto dele,

esticar as pernas e deixar o corpo deslizar pela inclinação do brinquedo. Vez ou

outra aparece alguma criança que escorrega de maneira diferente. Abre as pernas

ao invés de fechar, ou escorrega com a cabeça para baixo, enfim, faz outro uso de

um objeto tão naturalizado nas brincadeiras do parque, indicando que não há um

jeito certo e único para se escorregar.

O mesmo movimento aconteceu com a chegada da nova equipe de

professoras à creche. O discurso preparado pela equipe técnica (de que estavam

chegando profissionais capacitadas) tinha a intenção de renovar antigas práticas,

mas, ao mesmo tempo em que havia este desejo, elas também estavam há muito

tempo nesta equipe, desde seu início, constituindo uma relação difícil de se

alterar. Dessa forma, o fator de mudança então seriam as novas profissionais que

ali chegavam. Porém, a atitude delas causou muito mais conflito do que

aproximação, que somente a convivência de trabalho foi capaz de superar.

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Então eu lembro de uma fala de uma chefe que ela falou assim: agora está entrando gente capacitada! E quando ela disse isso nós ficamos paradas assim, olhando, porque era como se nós em todo esse tempo não tínhamos feito nada, e você vai falar o que pra uma pessoa dessa. E quando esse pessoal entrou, praticamente para “nos ensinar”, então o que nós fizemos: nos afastamos e deixamos elas aparecerem para ver o que elas iam nos ensinar. [...] E a gente via que se falava-se muito, mais atuava-se pouco. Uma vez estávamos no parque, e tinha um menininho, e eu ficava só observando que muitas coisas eram de assustar mesmo, porque falava-se muito bem, escreve-se maravilhosamente bem, então eu ficava só olhando, porque você imagina eu que ainda ia fazer o magistério falar alguma coisa pra uma tão gabaritada, eu não tinha o poder da caneta, digamos assim, mas eu observava muito, e o menino no parquinho e a professora tratava mal o menino, ela falava “não suporto esse menino”, “esse menino fede”, ela pegou a fralda e lançou no rostinho do menino, o menino vivia com uma fraldinha bem encardidinha, mas é criança né. E essa professora era considerada como ‘a top’!” (FLOR, 2013, p.165).

Flor, Ana e Maria Queiróz mais uma vez contribuíram, por meio de suas

memórias, com a reflexão necessária acerca do suposto conhecimento que a

formação profissional implicava, contra a experiência daquelas que possuíam

somente a prática do trabalho. Aqui, a dicotomia não se fazia presente somente na

relação das mulheres cuidadoras e suas chefias. A dubialidade permeava também

o próprio grupo de colegas, recreacionistas e professoras. Quem delas estaria

preparada para atuar na creche? Aquilo que elas observavam, na prática, era que

a formação não significava um trabalho de qualidade para as crianças. A formação

técnica muitas vezes até desconsiderava as práticas de cuidado como essenciais

para a faixa etária. E, de fato, quando viam algumas práticas e logo imaginavam

que algumas das profissionais que ingressaram na creche não ficariam ali por

longa data, com o tempo se confirmou.

Em meio a conflitos, novas e antigas funcionárias atuando juntas, o trabalho

foi sendo realizado, afinal, as crianças continuavam chegando, crescendo e

convivendo naquele espaço, e, em 2005 praticamente todas as recreacionistas já

haviam concluído o magistério. Também se tornaram professoras!

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A formação em nível superior

Aí terminou o magistério, então eu pensei: agora não preciso fazer mais nada! Mas assim, eu gostei do que eu fiz, porque muita coisa que eu vi ali eu já fazia mas não sabia o porquê. Por exemplo: no berçário, tinha as atividades mas não era registrada (escrita), eu não sabia nada sobre o desenvolvimento do bebê (ANA, 2013, p.128).

Assim, as cuidadoras que tinham tantos anos de prática passaram a

conhecer também alguns aspectos teóricos sobre a Educação a partir do

magistério. Junto a elas, as professoras recém-chegadas que também possuíam

uma fundamentação teórica acerca do trabalho passaram a questionar algumas

condutas, como por exemplo, o fato de as professoras ministrarem medicamentos,

aferirem temperatura e até mesmo realizarem procedimentos como inalações em

crianças que frequentavam a creche, muitas vezes doentes. Eliana rememorou

bem este período,

A gente começou a estudar e queríamos mostrar que o professor não é pra fazer isso, ainda mais com tanta enfermeira aqui. Na época tinha tanta enfermeira na creche. E aí aconteceu comigo de questionar a enfermeira e ela me dizer que era uma colaboração que eu tinha que dar e eu falei que não era, porque uma criança minha teve que fazer 15 sessões de inalação e eu fiz as 15, e nessa época a gente começou a fazer projeto pedagógico, e às vezes tinha que parar com a atividade pra ir fazer inalação, e a gente começou a questionar (ELIANA, 2013, p.153).

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Figura 6: Armário de medicamentos da sala de enfermagem Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.

A sala de enfermagem, onde se localizava o armário de medicamentos,

tinha lugar de destaque no pavimento central da creche. Depois, as mudanças nos

espaços foram alterando tal localização, mas o móvel continua em utilidade, hoje,

muito mais usado pela própria enfermeira da creche em ações pontuais, como por

exemplo, os primeiros atendimentos a uma queda de criança, picada de inseto, do

que àquilo rememorado por Eliana anteriormente.

A partir de então, muito se começou a discutir sobre as práticas na creche.

A equipe contava com reuniões semanais para planejamento do trabalho e

estudos. Foi também durante esse processo que se começava a falar na

possibilidade de continuidade dos estudos, ou seja, de que a LDB previa que

todos os profissionais da Educação Básica deveriam cursar o nível superior em

Pedagogia. No entanto, na época, a maioria das professoras não se mobilizou

com essa questão, mas Ana não foi uma delas,

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Então, aí em 2005 tinha um convênio entre as prefeituras de Campinas e da região com a UNICAMP, que era o PROESF, que era o curso de Pedagogia para quem atuava na área, e era assim: os professores da Faculdade de Educação coordenavam e orientavam os mestrandos e doutorandos que davam aulas neste curso23. E aí a gente tinha terminado o magistério em 2004 então eu incentivei as meninas porque era uma oportunidade pra gente, porque o convênio era só para as prefeituras, mas o sindicato daqui foi atrás e conseguiu liberar pra gente também. E era a última turma do PROESF. Só que as meninas ficaram com medo, acharam que a prova seria igual ao vestibular, muito difícil. Mas não custava tentar! Aí elas não quiseram, as professoras mais velhas, da minha época, algumas meninas novas do concurso foram, mais eu não conhecia direito, então eu fui sozinha. No dia de fazer a inscrição eu não tinha dinheiro e quase desisti, mas aí a V. me ligou no final da tarde, dizendo que ia imprimir minha inscrição e ia pagar pra mim. E nessa época a gente ir estudar não ia mudar o salário em nada, mas eu achava que ia ser bom pra gente, pro nosso trabalho, mas aí eu fui. E foi um sacrifício, porque era todo dia, e meus filhos eram pequenos (ANA, 2013, p.129).

Assim como Ana, várias outras professoras que só tinham o magistério e

acabavam de ingressar na creche, aproveitaram a oportunidade que o PROESF

viabilizou e foram estudar. Além da formação profissional, o curso de Pedagogia

também possibilitou o estreitamento de laços entre as professoras, e a equipe foi

se tornando cada vez mais uma unidade, graças aos objetivos comuns de trabalho

e formação.

Aí depois da faculdade eu conseguia fazer os projetos. Em 2006 quando eu ainda estava estudando, eu lembro que no maternal I a gente fez o projeto da casinha que foi super legal, aquele ano o trabalho fluiu, e ao mesmo tempo em que eu estava estudando também tinham vocês novas do concurso (ANA, 2013, p.130).

                                                                                                                         23  PROESF:  Programa  Especial  para  a  Formação  de  Professores  em  Exercício  na  Rede  de  Educação  Infantil  e  Primeiras  Séries  do  Ensino  Fundamental  da  Rede  Municipal  dos  Municípios  da  Região  Metropolitana  de  Campinas.  Curso  oferecido  pela  Faculdade  de  Educação,  do  qual  algumas  professoras  da  creche  fizeram  parte.  O  programa  funcionou  entre  os  anos  de  2002  a  2008  e  formou  um  número  aproximado  de  1600  professores  que  já  atuavam  na  área.  (SIVALLE,  2009)  file:///D:/Carla/Downloads/SivalleLucianaTeston_TCC.pdf  

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Eliana trouxe em sua narrativa o fato de ter ingressado no chamado curso

“Normal superior” juntamente com a dúvida se tal graduação seria adequada para

sua função. E, por fim, a extinção do mesmo e sua mobilidade para o curso de

Pedagogia. Este exemplo demarcou um pouco sobre o período destacado por

Kishimoto e que foi aqui descrito.

então eu lembro que eu comecei fazendo o curso, era normal superior, e o pessoal falava que esse curso não iria valer mais, e eu queria fazer pra poder melhorar meu salário, eu não queria sair da UNICAMP, [...] Só que eu tava fazendo, era eu, a Flor, mais um pessoal. Aí o que aconteceu: no meio do curso eles mudaram a grade do curso, porque realmente não ia mais ter esse curso. Aí aumentaram o curso em 6 meses, e aí virou Pedagogia (ELIANA, 2013, p.154).

Na mesma medida em que o magistério e a continuidade da formação em

nível superior emergiram nas narrativas como possibilidade outra de desempenhar

o trabalho junto às crianças e, principalmente, a maneira de compreender as

relações que se estabeleciam entre saúde, assistência e educação na creche,

desde sempre naturalizadas na equipe, os estudos foram também criticados pela

ausência de relação entre os saberes e as práticas da creche.

Mas eu aprendi realmente muito pouco lá (na faculdade). Era um grupo que não queria nada com nada sabe, porque eu acho assim, mesmo sendo à distância, se você quiser aprender e aproveitar, você consegue, dá pra fazer muita coisa, mas aí a professora também não queria. Duas vezes eu cheguei a discutir na sala, mas aí, mesmo no meu grupo de colegas, elas realmente só queriam o diploma, então não adiantava (ANTONIA, 2013, p.140).

A dificuldade em estabelecer esta relação aparecia ao longo da história,

seja na dicotomia entre o saber da coordenação pedagógica e o trabalho “braçal”

das recreacionistas; seja no impacto que as “novas professoras” trouxeram ao

chegarem à creche com diploma, porém com pouca ou nenhuma experiência. E,

nas narrativas, muitas vezes a formação profissional apareceu como importante

pelo fato da retomada aos estudos e pela legitimação de um saber que já existia

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nas recreacionistas. Porém, o conteúdo do curso em si não se destacou como

principal elemento para aprimorar o trabalho,

O magistério ajudou muito! A faculdade também ajudou. Porque nas aulas nós conversávamos entre nós. Tinham pessoas de outras áreas que também contribuíram, porque nessa época o Estado começou a pedir para os professores de outras áreas a Pedagogia também. Então foi enriquecendo. [...] Eu acho que o conhecimento amplia, te abre novos horizontes. Você aprende mais, presta mais atenção, fica com os ouvidos mais antenados nas crianças (FLOR, 2013, p.166).

Há que se problematizar esta questão. Por que a profissionalização, que

deveria contribuir, aprofundar, aprimorar a prática acaba por surgir como fator de

conflito?

Kishimoto (2005) publicou artigo sobre a temática que vai ao encontro com

as questões pontuadas pelas professoras. Nele, analisou doze relatórios de

avaliação de cursos de Pedagogia com magistério em Educação Infantil de

instituições privadas. Tais documentos referiam-se ao período entre 1998 e 2001.

De acordo com os dados da pesquisa, de maneira geral os cursos eram

organizados em dois grandes blocos, sendo o primeiro e maior das disciplinas de

formação comum, e as demais relacionadas a habilitações (pelos menos duas). A

estrutura curricular enfatizava a formação do pedagogo e falha na falta de

especificidade, principalmente no que tange à Pedagogia da Infância,

O desenvolvimento e a aprendizagem, tratados de forma teórica e positivista, não contemplam o contexto da criança até os seis anos, não focam seus saberes, as questões de subjetividade, pluralidade e diversidade culturais, gênero, classe social e etnia. A superposição e a fragmentação de conteúdos são constantes, sem eixos integradores para a formação do adulto, futuro(a) professor(a) e da criança (KISHIMOTO, 2005, p.3).

Outro ponto importante destacado pela autora tratou da falta de foco na

formação do professor pesquisador. Para ela, o professor incentivado e orientado

a formar-se também como pesquisador, tem maior capacidade de refletir sobre

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sua própria prática, torna-se mais competente, documenta mais seu trabalho,

aproximando teoria e atuação. No entanto, os cursos de Pedagogia compilavam

as disciplinas de pesquisa a teorias metodológicas e métodos estatísticos, o que

acabava por produzir um efeito oposto no professor, distanciando-o da pesquisa

(KISHIMOTO, 2005).

Os cursos de Pedagogia analisados pela autora destacaram-se ainda pelo

pouco conteúdo específico sobre Educação Infantil, constituindo em torno de dez

a dezesseis por cento da grade curricular. Dado este refletido diretamente na

prática do trabalho. E mais uma vez, cabe aqui a pergunta: o que faz um professor

de creche? O que se trabalha com crianças tão pequenas, com os bebês?

Considerando o período estudado por Kishimoto (2005), pode-se supor que,

possivelmente, as recreacionistas da creche, ao retomarem seus estudos, foram

inseridas nesta forma de matriz curricular dos cursos de nível superior em

Pedagogia. Assim, embora todas as narrativas destacassem a importância da

retomada dos estudos, o conteúdo em si dos cursos não emergiu claramente em

suas falas. Em alguns momentos, como destacou Eliana, era possível visualizar a

prática ao ouvir a teoria,

Tinha coisa que a gente via e ria porque a gente tava lá na aula e a professora falava alguma coisa e uma olhava para a outra e ria, porque ela falava de coisas que a gente fazia mas não sabia o porquê. E ela tava mostrando pra gente, a teoria! (ELIANA, 2013, p.153).

Havia, portanto, um processo de legitimação dos saberes já existentes. No

entanto, não ficou evidente nas narrativas, que houve uma apropriação deste

saber teórico. Nenhuma das entrevistadas chegou de fato, a abordar nenhuma

questão teórica, e, esta constatação, vai ao encontro dos estudos de Kishimoto

(2005) aqui abordados. Se não há uma ênfase na formação do professor

pesquisador, e se os conteúdos visam muito mais o trabalho no ensino

fundamental do que na educação infantil, como corroborar de fato, com aquelas

que voltaram aos estudos muito mais por uma necessidade do que por um desejo,

e que já atuavam na creche há tanto tempo? É certo que a retomada dos estudos

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possibilitou certa clareza e entendimento acerca do trabalho pedagógico a ser

desenvolvido na creche. Porém, ficou claro ainda, relacionando as narrativas com

uma breve análise sobre os cursos, que não é qualquer trabalho pedagógico que

pode ser considerado adequado dentro da educação infantil, especialmente, na

creche.

Como exemplo material, as imagens que seguem da mesa e cadeira

utilizadas na creche ilustram a importância de pensar sobre este ponto. Estes

objetos que têm finalidades diversas (desde alimentação, até realização de

atividades como desenhos, pinturas, etc), vêm de um modelo do ensino

fundamental. O tamanho não é adequado às crianças da creche, ou seja, sua

altura não permite, por exemplo, que uma criança de dois anos, permaneça

sentada com os pés alcançando o chão. Há alguns anos, algumas das mesas

disponíveis na creche tiveram sua altura adaptada, seus pés foram diminuídos

para que ficassem mais baixas.

À parte a questão do tamanho adequado dos objetos, sua funcionalidade

também pode ser questionada, uma vez que a realização de atividades

consideradas pedagógicas em que as crianças permaneçam sentadas em

cadeiras, também é uma reprodução do modelo de trabalho do ensino

fundamental. Fazer um desenho, por exemplo, precisa ser necessariamente

utilizando cadeira e mesa? Não há outras possibilidades a serem inventadas na

educação infantil? Certamente que sim.

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Figura 7: Mesa utilizada pelas crianças para atividades diversas: refeições, pinturas, colagens, etc. Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de

Oliveira, 2013.

A ausência de conteúdos sobre o trabalho na creche evidencia a falta de especificidade da Educação Infantil, reitera a antecipação da escolaridade e o descuido com pressupostos de qualidade, como a integração entre o cuidado e a educação. (KISHIMOTO, 2005, p.)

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Figura 8: Cadeirinha utilizada pelas crianças

Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.

As relações de cuidado para com a criança pequena não emergiram em

nenhuma das entrevistas como parte do saber pedagógico ou das teorias

estudadas no curso superior. E, muito embora conseguissem estabelecer relações

entre seu trabalho e aquilo que vivenciavam nos cursos de pedagogia, aquilo que

elas já tinham como saber a partir das vivências no trabalho eram supostamente

desvalorizados pelo discurso acadêmico e científico que se estabelecia.

Agravando ainda mais a situação, algumas professoras que ingressaram nos

concursos de 2003 e 2004 traziam em suas experiências práticas do ensino

fundamental diferente daquilo que era vivência na creche. Ora, mas então o que

elas faziam em sua atuação era correto, ou precisavam mudar?

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Porque tinha muita atividade que a gente fazia, por exemplo, atividade de percepção que a gente fazia com os pequenininhos, tinha muita professora do concurso novo que acordava criança para fazer atividade e muitas vezes eu falava em reunião que não deveria ser assim, eu não era compreendida, porque aí a gente tava vendo só a teoria e jogando a criança fora (ELIANA, 2013, p.154).

O dilema entre “novas” e “antigas” professoras refletia um pouco da

realidade do trabalho na educação infantil. O discurso científico cada vez mais

desconsiderava práticas originárias do atendimento em creche, porém incitava

uma nova organização baseada muitas vezes no saber escolarizado do ensino

fundamental que, por sua vez, não seria adequado à faixa etária que compreende

a educação infantil. Emerge fortemente nesse sentido, no passado mas

especialmente no cenário atual, uma disputa entre as diversas áreas de

conhecimento no campo da educação infantil.

Final dos anos 2000: mudanças no trabalho e reconhecimento do nível superior À parte as diferentes concepções sobre o trabalho na creche que

paulatinamente emergiam na equipe, a relação entre as professoras se fortalecia,

e a profissionalização mais uma vez tornava-se alvo de fios conflituosos com a

equipe técnica, principalmente com as profissionais da área da saúde. Nesta

época, a creche contava com uma enfermeira na direção da unidade, além de três

outras que faziam inclusive o trabalho de supervisão das professoras. Os anos de

2005, 2006 aproximadamente foram períodos de muitos questionamentos a

respeito do trabalho. A pesagem semanal dos bebês no berçário já não era mais

feita pelas professoras, que apenas levavam as crianças à balança e cabia à

enfermeira tal procedimento (que, posteriormente, foi extinto). Aparentemente

estas ações poderiam ser vistas como simples, mas para toda a equipe mudar

práticas que permaneceram por muitos anos configurou-se como grande tensão.

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Como se os fios que tecessem aquela história estivessem para romper a qualquer

momento.

E teve uma vez quando eu tava cursando a faculdade que a diretora me chamou na sala dela e falou: mas pra quê tanta pedagoga na creche? Não precisa. Esse curso vai ter o diploma da UNICAMP? É igual? E eu mesmo assim insisti, porque eu queria estudar, queria crescer, entender as coisas, porque eu gostava do meu trabalho eu queria melhorar para as crianças. Então a gente tinha o incentivo pra estudar da parte das pedagogas, mas da parte da enfermagem não tinha incentivo nenhum (ANA, 2013, p.133).

No contexto maior dos Programas Educativos da UNICAMP – CAS, CECI,

PRODECAD, EMEI Maria Célia Pereira e Escola Estadual Sérgio Pereira Porto

(sendo estes dois últimos órgãos conveniados, cujos profissionais não faziam

parte dos servidores da Universidade) -, a busca pela profissionalização e os

questionamentos com relação ao trabalho do professor também acontecia. No

PRODECAD, no entanto, os professores eram todos pedagogos, pois a exigência

da formação profissional foi requerida no edital do concurso. Os professores

reivindicavam valorização profissional, credenciamento das creches junto ao órgão

competente. As equipes técnicas de cada unidade reuniam-se com a direção geral

dos Programas Educativos e indicavam que novos fios precisariam começar a ser

tecidos. A direção geral, por sua vez, ocupada por uma das primeiras pedagogas

do CECI, também atuava para que algumas mudanças começassem a acontecer.

No dia 25 de janeiro do ano de 2007, um documento foi enviado à Coordenadoria

da Diretoria Geral de Recursos Humanos – DGRH -, órgão da Universidade do

qual os Programas eram – e são ainda – vinculados, descrevendo um pouco sobre

o trabalho desenvolvido nas unidades, bem como as reivindicações dos

profissionais que lá atuavam. (UNICAMP, DEdIC, 2007).

Sobre o trabalho desenvolvido, o documento referia-se à nova LDB e os

requisitos apontados pela lei sobre a profissionalização dos profissionais que

atuam nas creches, o que justificou, no ano de 2002, a criação de duas novas

funções na carreira da Universidade, sob a nomenclatura de “Professor de nível

médio em Educação Infantil” (para atuação nas creches) e “Professor de nível

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superior para Educação Infanto-juvenil” (para atuação no PRODECAD). No que

se referia às reivindicações dos professores, o documento seguia com cinco

pautas: Projeto Político Pedagógico – PPP -, Credenciamento dos Programas

Educativos na Secretaria Estadual de Educação, Direito à aposentadoria especial,

carreira dos professores e jornada de trabalho e salários (UNICAMP, DEdIC,

2007).

Sobre o Projeto Político Pedagógico destacava-se a necessidade de

unificação dos programas, constituindo um documento único elaborado por vários

segmentos da comunidade da qual os Programas Educativos faziam parte.

Também neste item tratava-se da criação de um Conselho de Escola. A

elaboração do PPP também seria requisito para atenderem ao próximo tópico da

pauta, que abordava a necessidade do credenciamento dos Programas

Educativos junto à Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo.

Dizia que, os CCI’s da UNESP, por exemplo, já haviam sido credenciados.

O documento tratava ainda sobre a aposentadoria especial, prevista na

Legislação trabalhista para professores da Educação Básica com 25 anos em

serviço, além da necessidade da UNICAMP em rever a questão da carreira. Este

ponto trazia dados importantes sobre a situação dos professores com relação à

formação profissional. Em 2007 havia noventa e nove vagas certificadas para

professores de nível médio nos Programas. Destes, vinte e oito haviam concluído

a graduação, seis concluiriam naquele ano e mais quinze no ano seguinte. Oito

professoras haviam ingressado no curso também em 2007, com término da

graduação previsto para 2010. Dessa forma a implantação de um plano de

carreira para esta categoria fazia-se necessário.

No último tópico, sobre jornada de trabalho e salários, a reivindicação vinha

no sentido de ampliar a jornada de trabalho dos professores que atuavam 30

horas semanais, considerando quatro horas diárias com as crianças, e outras

duas em demais atividades afins, como planejamento pedagógico, organização de

materiais, reuniões pedagógicas. No CECI, e em alguns casos na CAS, o trabalho

de oito horas diárias já existia, mas as professoras permaneciam todo o período

com o grupo de crianças, ficando por conta da equipe técnica a organização de

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horários, dentro da rotina do grupo, para planejamento (durante o horário de sono

das crianças, por exemplo).

De todos os tópicos levados à reitoria, o que se referia ao Projeto Político

Pedagógico era o “nó mais fácil de desatar”. Afinal, o documento já tinha uma

primeira versão escrita por uma comissão que havia sido criada para trabalhar em

sua elaboração, composta por vários integrantes da equipe. O Regimento Interno

para todo o Programa também estava pronto. Para validar tal documentação,

faltava a aprovação da Câmara de Administração da Universidade – CAD- órgão

que no dia 14/04/2009 aprovou o Regimento Interno (UNICAMP, SIARQ, 2009), e

em 02/06/2009 aprovou o PPP. (UNICAMP, SIARQ, 2009). Interessante notar que,

em ambos os documentos, a nomenclatura de “Programas Educativos” foi alterada

para “Divisão de Educação Infantil e Complementar – DEdIC-. A mudança no

nome dos programas consolidava a união das unidades CAS, CECI e

PRODECAD além de configurar uma ação rumo ao credenciamento, pois, se o

registro junto ao órgão da Educação acontecesse de maneira individual, o

PRODECAD provavelmente não conseguiria vincular-se por se tratar de uma

educação não-formal. Dessa forma, a unificação por meio de uma “divisão de

educação” englobaria creche, pré-escola e agora, educação complementar.

Ainda no ano de 2009 a pauta específica de reivindicações retornou no

período em que os trabalhadores da Universidade entraram em greve na época da

campanha salarial, entre os meses de maio e junho. Uma nova coordenação

acabara de chegar à Diretoria Geral de Recursos Humanos da UNICAMP –

DGRH, unidade a qual a DEdIC é vinculada.

E depois, em 2009 quando eu já tinha terminado a faculdade, teve a greve e a Dra. P. veio e a UNICAMP reconheceu o nível superior de quem já tinha aí as meninas que não tinham feito a pedagogia ficaram desesperadas e foram fazer também (ANA, 2013, p.133).

Interessante resgatar este período da DEdIC, mais precisamente, um dia

em específico que fez a diferença na história das professoras. Em todos os

períodos de greve na universidade, a creche realizava sua mobilização, porém

sem interromper totalmente seu atendimento. Em geral, havia uma espécie de

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revezamento entre as professoras para atender uma quantidade mínima de

crianças. No ano de 2009, contudo, um destes dias de mobilização foi diferente.

No primeiro dia em que a nova coordenadora do DGRH assumiu sua função,

todas as professoras da creche interromperam seu atendimento (com exceção

daquelas recém-contratadas e que estavam ainda em período probatório)

reivindicando, entre tantos itens da pauta específica, o reconhecimento da

escolaridade em nível superior.

No ano seguinte, as professoras graduadas em Pedagogia tiveram seu

curso reconhecido e avançaram no plano de carreira da Universidade, de nível

médio, para nível superior. Contudo, neste período houve uma mudança geral de

carreira dentro da Universidade. Todos os servidores passaram a integrar a

denominada “Carreira PAEPE” (Profissional de Apoio ao Ensino, Pesquisa e

Extensão), e, as professoras, além de não serem atendidas na reivindicação de

uma carreira específica para o magistério, ainda “perderam” a nomenclatura de

professoras, sendo, portanto, consideradas dentro do quadro geral dos

funcionários, como “técnicas”.

A diretora não incentivava a gente a nada. Ela falava: ‘não adiante vocês irem estudar porque isso aqui não vai mudar’. A coordenadora também chegou a falar, ainda mais sendo uma faculdade à distância. Mas eu achava assim, que pelo menos eu ia ler, ia ter aquele compromisso de estudar. E foi bom, porque realmente depois de 1 ano que eu tava estudando teve uma grande mudança aqui que foi com relação ao salário né (ANTONIA, 2013, p.139).

Ainda assim, aquelas que não haviam começado a estudar tiveram o

incentivo do aumento salarial e também foram em busca de formação. Juntamente

com a retomada dos estudos, outras mudanças ocorriam neste período. Em 2010,

a professora R., que havia ingressado no ano anterior como assessora

pedagógica na unidade DGRH, assumiu a direção da Divisão de Educação Infantil

e Complementar. Ela, que havia concluído seu doutorado em Educação, alterou

toda a organização da então equipe técnica que ali permanecera por 20 anos,

retirando a enfermagem das funções de direção e supervisão das unidades,

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delegando tais funções às pedagogas. Ponto importante também e do qual a

presente narrativa limitou-se a abordar, foi a iniciativa de um curso específico

voltado para o trabalho com crianças de 0 a 3 anos de idade, considerando-o

como parte importante do processo de profissionalização das professoras e

permitiu a reflexão acerca da especificidade do trabalho na creche.

E o trabalho com a organização do espaço, o trabalho com os cantos, isso não foi nem na faculdade, foi no curso, o trabalho com o bebê também, porque na faculdade eu não aprendi nada sobre o bebê, foi com ela, o trabalho com berçário as pessoas não sabem, não conhecem, então o curso trouxe muita coisa, e agora aquela coisa de trabalhar no berçário com planejamento e não com projeto ficou melhor ainda (ANA, 2013, p.133,134).

No ano de 2012, um diretor administrativo passa a compor o trabalho com a

diretora R., e, ao final deste mesmo ano, a direção pedagógica deixa a DEdIC,

ficando a cargo do profissional recém-chegado, a direção geral do órgão. Em

2013, alterava-se novamente o organograma da equipe, compondo juntamente

com a direção, a assessoria pedagógica, assumida por mim, e as diretoras das

unidades (CAS, CECI e PRODECAD) formando um conselho pedagógico que

deveria atuar em conjunto nesta nova organização. No entanto, a eleição de um

novo reitor no mês de maio do mesmo ano, inviabilizou toda a proposta de

trabalho, pois a reitoria nomeou nova profissional para a direção geral da DEdIC e

esta modificou novamente a organização da equipe. Mas estes são fios a serem

tecidos em outras histórias, quiçá por outras memórias.

A formação continuada e em contexto Durante todo o tempo de funcionamento das creches da Unicamp,

iniciativas de formação continuada passaram a ter espaço dentro da rotina de

trabalho. Considerando sempre a época e as concepções políticas, educacionais e

sociais marcantes no trabalho da creche, os cursos tinham nomes, conteúdos e

organizações diversas. O evento denominado “Jornada dos Educadores da

Unicamp”, por exemplo, acontecia desde 1992, e foi ganhando contornos e

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costuras diferentes com o passar dos anos. Tal iniciativa deliberava dois dias

anuais de suspensão do atendimento às crianças que eram destinados à

formação dos profissionais das creches e do PRODECAD.

No ano de 2010, contudo, a direção geral das Unidades que acabara de

assumir a gestão propôs um curso diferenciado e específico para as professoras

das creches. Com formação em educação e especialização strictu sensu em

educação infantil, a diretora coordenara ainda o curso PROEPRE, voltado para a

formação do profissional de creche24. A partir então desta experiência, propôs a

organização de um curso para as professoras da DEdIC. Foram organizadas três

turmas de professoras para a realização do curso, de duração aproximada de 1

ano, com aulas semanais. À parte os conflitos que surgiram desta organização (o

curso era obrigatório e ofertado dentro do horário de trabalho, o que exigia uma

série de arranjos na dinâmica junto às crianças, o que resultou em muitas críticas

à gestão), a formação foi abordada pelas professoras entrevistadas como positiva

e fator de grandes mudanças na prática pedagógica na creche.

Mas o curso dela deu uma visão de criança, das atividades, de trabalhar os cantos, lá na minha sala tem o cantinho da fantasia, trabalhar com grupos pequenos, porque antes a gente fazia com todo mundo de uma vez e às vezes não conseguia, e no começo eu achava que tinha que ficar que nem mãe, com todo mundo, tudo as crianças perto da gente, então no começo eu não gostei de dividir os grupinhos, mas com o tempo eu vi que dividir o grupo fica mais fácil, você coordena melhor o trabalho, dá pra dar mais atenção pras crianças (MARIA QUEIROZ, 2013, p.176).

O conteúdo do curso ministrado pela própria diretora, e que eventualmente

contava com alguns professores convidados trazia questões específicas da

Educação de zero a três anos de idade. Partindo de apontamentos teóricos como

o histórico das creches no Brasil, e a psicologia do desenvolvimento da criança

(conteúdos comuns nos cursos universitários), um segundo bloco enfatizava a

importância dos materiais e espaços físicos ricos em vivências para as crianças, e                                                                                                                          24  PROEPRE:  Programa  de  Educação  Infantil  e  Ensino  Fundamental.  Criado  na  década  de  1980  por  um  convênio  entre  o  Ministério  da  Educação  e  a  Faculdade  de  Educação  da  Unicamp,  visa  a  formação  continuada  de  professores.    Disponível  em  http://www.proepreemacao.com.br/?page_id=398,  acesso  em  30/07/2014.  

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a atuação do professor neste espaço muito mais como organizador do mesmo,

mediador e observador dos bebês. Para tanto, além dos textos o curso oferecia

vídeos e vivências baseados no modelo de educação infantil europeu,

principalmente no trabalho desenvolvido em “Reggio Emilia”25.

Os projetos desenvolvidos a partir do interesse e curiosidade das crianças

foram temas de diversas aulas do curso de formação. A prática denominada como

“Pedagogia de Projetos”, difundida em diversos países já era conhecida pelas

professoras da creche, porém, aprofundada com a formação.

Também se discutiam as culturas infantis, linguagens e expressões das

crianças, além da importante documentação e avaliação pedagógica do trabalho,

que deve estar presente durante todo o processo. Uma das temáticas que mais

chamava a atenção referia-se ao trabalho no berçário e na possibilidade de

oferecer novas e positivas vivências aos bebês. O conceito de “educador-

referência” e da atenção exclusiva e individual às crianças de menor idade

fundamentavam-se na obra de “Emmi Pikler”, totalmente desconhecidos por nós

até então, embora, na prática, Eliana, por exemplo, já tinha consigo alguns

fundamentos deste trabalho26,

Uma vez eu tava filmando uma criança pra um estágio do magistério. E eu fui filmar uma professora do concurso novo que chegou trocando uma criança, e ela me falou assim: “mas você vai me filmar nessa atividade decadente?” E eu pensei meu Deus, coitada dessa criança que tá na mão dessa professora. Porque tudo o que você faz é uma atividade, você vai conversar com a criança enquanto tá trocando... A criança vai passar um tempo da vida dela usando fralda, então pra ela aquele momento é importante (ELIANA, 2013, p. 150,151).

                                                                                                                         25  A  abordagem  Reggio  Emilia  tem  origem  na  cidade  italiana  de  mesmo  nome  é  referência  mundial  de  excelência  em  Educação  Infantil.  Sua  história  tem  inicio  após  a  Segunda  Guerra  Mundial,  período  em  que  toda  a  comunidade  uniu  forças  para  reconstruir  a  cidade  e  apostaram  na  importância  da  escola  para  as  crianças.  Assim,  o  sistema  criou  um  trabalho  inovador,  cuja  filosofia,  currículo  e  metodologia  de  trabalho  e  organização  são  considerados  como  um  dos  melhores  do  mundo.  26  Emmi  Pikler  foi  uma  pediatra  húngara  que  trabalho  também  no  pós-­‐guerra  com  bebês  órfãos.  Seu  trabalho  consistia  no  cuidado  com  os  bebês  baseado  no  respeito  e  atenção  individual.  Seu  trabalho  também  é  referência  e,  embora  se  trate  de  um  contexto  diferente  do  encontrado  na  creche,  tem  importante  contribuição  no  que  se  refere  ao  desenvolvimento  do  bebê  e  na  relação  que  se  estabelece  entre  adulto  e  criança.  Disponível  em  http://pikler.org/PiklerPractices.html,  acesso  em  30/07/2014.  

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As narrativas das professoras trouxeram exemplos de como o curso de

formação específico pôde contribuir efetivamente para a mudança e reinvenção

das práticas. Mas que isso também as deixou um pouco “perdidas”. Mais uma vez

o discurso científico se apresentava como o saber adequado para o trabalho com

a educação de 0 a 3, e desconsiderava a experiência de trabalho construída por

anos. A diferença, é que de fato, o conteúdo do curso contribuía para reflexão e

aprimoramento das práticas, mas na mesma medida, indicava o certo e o errado,

estando a atuação das antigas recreacionistas, nesta última posição. Hoje no berçário, por exemplo, eu trabalho muito o “cesto do tesouro”, que foi uma coisa que veio com o curso da R. que valeu pra caramba! Você percebe a alegria da criança de mexer nos materiais diferentes do cesto. Mas eu também vejo que muitas coisas as crianças perderam com esse negócio que às vezes a gente não sabe mais o que pode ou não fazer (ELIANA, 2013, p.153).

Não era mais permitido, por exemplo, trabalhar com desenhos prontos,

estereotipados. A “nova” pedagogia da infância pretendia extinguir dos espaços da

creche quaisquer produções realizadas pelos adultos. As paredes – salas,

corredores, salão, área externa – deveriam conter produções das crianças, tornar

visíveis as criações daqueles que são os protagonistas da creche: os pequenos. E

ainda, a grande maioria das ações dos adultos deveria pautar-se na observação

atenta dos interesses de cada grupo, desenvolvendo assim, os projetos.

A afirmação acima vai de encontro com aquilo que se defende aqui neste

trabalho – muito embora o foco dele não seja a problematização das práticas

pedagógicas na educação infantil -, ou seja, a creche e a pré-escola devem atuar

no sentido de valorizar as experiências das crianças e oportunizar vivências de

criação e aprendizagem. No entanto, ao apontar para esta nova concepção ao

grupo que atuou durante vinte anos de outra maneira, os conflitos certamente

emergiriam.

Além disso, a imposição daquilo que a partir de então seria o “certo” em

detrimento das práticas anteriores trouxe certo desconforto ao grupo. O que

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significava então tudo aquilo que as professoras tinham vivido dentro da CAS até

então. Estava tudo errado?

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Capítulo IV: Mulheres cuidadoras, mulheres professoras. A importância da formação continuada e da valorização da experiência.

 

O título deste último capítulo que segue amarrando os fios da história aqui

narrada aponta para algumas possibilidades e reflexões acerca do campo de

conhecimento da Educação Infantil e busca algumas respostas para questões ao

longo do texto apresentadas. Assim, ao finalizar este pequeno recorte sobre as

histórias de vida, trabalho e formação de cinco mulheres professoras da Creche

Área de Saúde, mereceu destaque a condição feminina, que desde o título do

trabalho é demarcada, a valorização da experiência, e a formação continuada

como possibilidade de reinvenção das práticas de atuação na creche.

As mulheres da/na história A condição feminina não apareceu no texto como categoria de análise de

pesquisa. Isso porque as memórias das professoras em nenhum momento

apresentaram essa questão como fundamental na constituição de suas vidas

profissionais. Um fator que pode ter levado a isso pode se dever ao roteiro de

questões que não enfatizava este ponto. Contudo, mesmo quando livres para

narrarem suas histórias, em momentos não dirigidos das entrevistas, o fato de

serem todas mulheres não apareceu como marcante em suas trajetórias.

Ainda assim, a história do surgimento das creches como instituição social

está sempre atrelada à questão feminina, seja pelo direito da mulher trabalhadora

que precisa inicialmente, de um abrigo para seu filho, seja pelo exercício do

magistério que aos poucos foi se tornando um campo marcado pela separação do

gênero.

E, nas memórias das professoras, a questão feminina apareceu em alguns

momentos marcada pelos conflitos de gênero que também têm grande influência

da sociedade, como rememorou Ana,

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Meu marido brigava porque não queria que eu estudasse, rasgava meus livros de ciúmes. E eu ia lá e comprava de novo. Nossa, foi uma tormenta, era ciumento demais, ele me levava e me buscava e mesmo assim ainda rasgava os meus livros. Eu comprava de novo, às vezes eu comprava e pedia pra meninas guardarem na casa delas (ANA, 2013, p.128).

O exemplo de Ana demarcou a luta destas mulheres para voltar aos

estudos. Dentre tantas dificuldades encontradas (falta de apoio da chefia, conciliar

a vida no trabalho com a vida pessoal e os estudos), havia ainda a condição

sexista colocada pela sociedade. E, apesar de não se tratar aqui de um trabalho

sobre gênero, fez-se importante demarcar esta questão. Afinal de contas, quais

marcas são imbuídas em mulheres que passaram por estas experiências? Como

bem apontou Goodson, histórias de vida e de profissão são como fios que se

entrelaçam no contexto em que as pessoas encontram-se inseridas.

In studying the teacher’s life and work in a fuller social context, the intention is to develop insights, often in a grounded and collaborative manner, into the social construction of teaching. In this way, teachers’ stories of action can be reconnected with ‘histories of context.’ Hence teacher stories, rather than passively celebrating the continual reconstruction of teaching, will move to develop understandings of social and political construction. It is a move from commentary on what is to cognition of what might be27 (GOODSON, 2008, p.16).

Além da condição de gênero, a questão racial apareceu nas memórias de

três das professoras entrevistadas. Em duas delas, a condição racial veio à tona

de maneira velada, mas o fato de ambas serem negras possibilitou realizar tal

amarra de fios. Flor falou sobre a questão da aparência física como fator marcante

no momento da chefia escolher em qual locar ela deveria atuar.

                                                                                                                         27 Tradução  livre:  Ao  estudar  vida  e  trabalho  do  professor  em  um  contexto  social  completo  ,  a  intenção  é  desenvolver  uma  compreensão  ,  muitas  vezes  de  forma  fundamentada  e  colaborativa,  para  a  construção  social  da  função  do  professor  .  Desta  forma,  histórias  de  professores  em  serviço  podem  ser  reconectadas  com  "  histórias  de  contexto".  Portanto  histórias  de  professores,  em  vez  de  celebrar  passivamente  a  reconstrução  contínua  do  ensino,  passam  a  desenvolver  a  compreensão  de  uma  construção  social  e  política.  É  um  movimento  de  comentar  sobre  o  que  é  a  cognição  do  que  poderia  ser.  

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Tudo novo, muita gente diferente, eu sempre fui muito tímida, então tinha muita gente diferente que eu tinha que conversar. É... eu lembro, deixa eu ver... de professoras também negras, deixa eu ver se eu não to sendo maldosa, tinha eu e Maria Queiroz, só (FLOR, 2013, p.160).

Aparentemente, só havia mulheres brancas no berçário no início do

atendimento, em 1990. E, não por acaso, ela teve como parceira de trabalho,

Maria Queiróz, também negra. E ainda, o primeiro espaço físico de trabalho foi a

“última salinha”, no Maternal I.

A chefia falava que as pessoas tinham “perfil”. Assim, tinham pessoas que tinham perfil para trabalhar no berçário, mas na realidade era a aparência que contava. Eu elas falavam que tinha perfil para o maternal I e o II. Berçário não. Não era só pra mim que elas falavam não (FLOR, 2013, p.164). No começo eu fiquei com a Flor, depois eu fiquei com outra professora, mas primeiro foi com a Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu primeiro grupo (MARIA QUEIRÒZ, 2013, p.175).

A questão racial apareceu em outra vertente na narrativa de Ana. Seu

primeiro filho, que frequentou a creche, era negro, e, segundo ela, havia uma

relação de preconceito até mesmo de algumas das colegas recreacionistas, que

tinham posturas diferentes de trabalho com as crianças determinadas pela cor da

pele ou até mesmo condição econômica.

tem uma coisa muito triste que aconteceu no maternal I quando ele tava lá, como mãe eu falo, assim, me doeu muito foi que ele as meninas faziam diferença pela cor, tinha muito isso [...] as mães que eram enfermeiras, médica, tinha um tratamento diferente.... isso foi muito ruim e assim eu como professora mesmo trabalhando lá dentro elas me tratavam mal (ANA, 2013, p.126).

Possibilitar que temáticas como estas viessem à tona nas entrevistas e que

ganharam visibilidade na narrativa permitiu, além de consolidar a questão

metodológica proposta por Nóvoa (1992) que define o trabalho da história oral

como campo essencialmente emancipatório, pensar também na creche como

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instituição social que tem uma infinidade de discursos que precisam ser cada vez

mais problematizados pelos profissionais e pesquisadores interessados na

educação de 0 a 3 anos. A creche, parte da educação básica e instituição

consolidada na sociedade é lugar de conflitos, ora aparentes, ora velados, mas

principalmente, de histórias que permitem a criação de novos discursos, outros

olhares, reinvenção de práticas.

E, interessante pontuar que estas questões (racial e de gênero) que não

eram temas contemplados no roteiro inicial das entrevistas surgiram em falas

pontuais em exemplos de situações vividas pelas professoras. Por que utilizar

deste espaço demarcado (narrativas que seriam utilizadas em um trabalho

acadêmico) para abordar situações tão pessoais? Retorno então, aos pontos

essenciais e introdutórios do trabalho, que apontam para a indivisível relação entre

as questões sociais e pessoais, e àquilo que a psicanálise pode contribuir neste

sentido. Olhar para o sujeito como alguém que realiza suas escolhas, - no caso,

que “escolhe” suas memórias – a partir de conteúdos internos, mas que estão em

constante relação com seu contexto.

Experiência e Pobreza Inicio este tópico com um trecho do texto “Experiência e pobreza” de Walter

Benjamin, em sua obra “Magia e Técnica, Arte e Política” (1985) para fomentar

algumas considerações e reflexões que foram possíveis a partir deste trabalho

que reuniu história e memória.

Havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio de tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: “Ele é muito jovem, em breve poderá compreender”. Ou: “Um dia ainda compreenderá”. Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em

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provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1985, p.114)

A transmissão da verdadeira experiência por meio das narrativas é

marcante neste trecho da obra de Benjamim, tema inclusive, que o autor abordou

também em outro texto – “O Narrador”- salientando uma série de aspectos que

têm levado à modernidade ao fim das narrativas. Ambos ficaram em minha

memória marcadamente após a realização das entrevistas, momento em que

todas as professoras rememoraram o quanto sua experiência de trabalho com as

crianças não pôde ser transmitida para a nova geração de professoras que

ingressou na creche nos anos 2000. Ao contrário, era preciso aprender com as

novas profissionais. É certo que o novo tem muito a contribuir e isto também foi

destacado pelas entrevistadas. No entanto, havia ali uma experiência de mais de

uma década e que todas trouxeram o sentimento de “descarte” de suas vivências.

E, assim como o vinhedo da parábola, certamente não havia ali nenhum tesouro a

ser encontrado nas práticas das professoras, mas sim, experiências de cuidado,

de relações entre adulto e criança que valiam mais que ouro, pois aquelas

pessoas fizeram da creche uma das experiências fundamentais em suas vidas,

A creche é a minha vida. Eu gosto muito de bebês, de criança, é um lugar que eu trouxe os meus filhos, e apesar de terem coisas que eu não gostei, é um lugar muito bom. A creche da UNICAMP, a CAS, eu acho que é diferente, é um lugar que eu gosto, e se alguém me falar que eu tenho que ir para o CECI eu não vou, não só pelo lugar mas pelas pessoas que trabalham e você acaba tendo um vínculo com as pessoas, acho que quando eu aposentar eu vou continuar vindo aqui, e não é só a creche, a UNICAMP, porque eu entrei aqui com 15 anos, e tudo o que eu vivi foi aqui dentro. E quando você não gosta de criança você não fica tanto tempo assim, mas eu gosto e por isso eu fiquei. Tem gente que trabalha mesmo só por causa do dinheiro e não por causa das crianças. E eu não (ANA, 2013, p. 134).

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A desvalorização da experiência e a importância que o trabalho na creche

possui para a experiência de vida que Ana trouxe na narrativa vêm ao encontro

com alguns trabalhos de Ivor Goodson sobre os professores e suas histórias de

vida. Em trabalho intitulado “A luta pelo significado privado e o propósito público”

(2007), o autor apresentou dados sobre pesquisas que vêm realizando nos últimos

30 anos de sua carreira que tem foco em histórias de vida e histórias de trabalho.

Em uma delas, em que pretendia levantar dados sobre as mudanças que vêm

ocorrendo ao longo do tempo nas escolas, entrevistou professores que foram

distribuídos em três grandes grupos, sendo critério de divisão a atuação

profissional em cada período. Dessa forma, o grupo I era formado por professores

que atuaram nos anos de 1950 a 1960; o segundo grupo contava com

profissionais que trabalharam nos anos de 1970 e 1980; já o terceiro, professores

da década de 1990 até os dias atuais. Uma das questões feitas a todos os

entrevistados referia-se a algum projeto de vida, algo que quisessem falar a

respeito. Para os dois primeiros grupos, a educação apareceu como seu

significado de vida e projeto de trabalho.

Ensinar, para muitos deles – embora, naturalmente, não para todos – era sua ‘vida de trabalho’ e uma fonte duradoura de paixão e compromisso. Ensinar deu às suas vidas significado pessoal como um projeto coletivo ou vocação que expressava valores e crenças profundas. Então, nas suas vidas profissionais, o significado pessoal e o propósito público estavam carregados de equilíbrio que fornecia sentido e significado à vida do trabalho (GOODSON, 2007, p.15).

O terceiro grupo, porém, remetia-se à educação “apenas como um

trabalho”, cujo engajamento era mínimo e suas práticas bem longe de se

organizarem a partir de um propósito de vida profissional. A diferença marcante

entre os dois primeiros grupos e o último é a questão principal para o autor

remeteu ao seu título. Se não há um significado privado para aquele trabalho, fica

difícil desenvolver um propósito publico para uma prática extremamente coletiva

como requer a docência. E, as professoras da creche, embora tenham ingressado

no trabalho docente na década de 1990, elas, pelo menos as entrevistadas,

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corroboraram com os dados dos dois primeiros grupos da pesquisa realizada em

escolas americanas e canadenses. Apresentaram, em suas narrativas, o trabalho

como parte de suas vidas, tanto que permanecem atuando até os dias de hoje. E

o que elas viram em muitas das professoras que ingressaram depois, foi essa

“mecanização” de um trabalho reconhecido como “profissional”, mas que não tinha

nenhum valor pessoal para aqueles que desempenhavam suas tarefas.

Obviamente que assim como bem destacou Goodson, não é possível generalizar

essa característica para todos, e, no caso da creche, acredito ainda que quem

tinha esse perfil particular, não conseguiu se manter no trabalho por duas razões

principais: a primeira diz respeito ao salário, que até o ano de 2009 não era

atrativo aos professores.

Em segundo lugar, considero que o trabalho na creche define uma prática tão

peculiar e ainda em construção para os profissionais da educação, que somente é

possível se manter no campo de atuação se algum sentido particular for atribuído

ao trabalho. Ou seja, para atuar junto aos bebês e crianças pequenas não basta

aplicar um projeto pedagógico, tampouco preparar uma aula, conforme as

disciplinas metodológicas orientam os alunos. E, como destacou Barbosa (2010),

quando pensamos nas crianças bem pequenas, isto é, nos bebês temos dúvidas sobre como propor este currículo. Ora, não será certamente através de aulas, de exposições verbais, mas a partir da criação de uma vida cotidiana com práticas sociais que possibilitem alargar horizontes, ampliar vivências em linguagens, para que os bebês experienciem seus saberes. Serão exatamente esses primeiros saberes, essas experiências vividas principalmente com o corpo, através das brincadeiras, na relação com os outros – adultos e crianças – que irão constituir as bases sobre as quais as crianças, mais tarde, irão sistematizar os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico. [...] Educar bebês não significa apenas a constituição e a aplicação de um projeto pedagógico objetivo, mas implica em colocar-se, física e emocionalmente, à disposição das crianças e isto exige dos adultos comprometimento e responsabilidade (BARBOSA, 2010, p.5).

Há que se apontar ainda, que as “novas profissionais”, muitas vezes

traziam a referência de atuação do ensino fundamental e valiam-se de tal

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experiência para o trabalho com as crianças pequenas. O que acontece é que

realizar este caminho não contempla as especificidades do trabalho na creche,

configurando-se como prática inadequada.

Sobre o sentido privado que cada um atribui à profissão, Antonia

rememorou o período em que voltou ao trabalho, após nove meses de

afastamento para o tratamento de um câncer,

Só de voltar já me sinto melhor. O médico não queria me liberar, mas eu quis muito voltar. Eu tava careca ainda, e isso foi uma coisa que me pegou bastante, aí voltei de lenço, e as meninas falavam: joga esse lenço fora, aí que decidi tirar o lenço, o cabelo tava bem curtinho aí eu passava uma maquiagem, e as meninas falavam que eu tava parecendo a Elis Regina. E aí eu fui voltando aos poucos e deu tudo certo, porque trabalhar faz tão bem! Principalmente se for com criança (ANTONIA, 2013, p.141).

Tecendo fios entre experiência e formação

A parte que eu gosto mesmo é de cuidar, tanto que eu falo que Deus coloca as pessoas certas na minha vida, porque eu sempre fico com parceiras de trabalho que gostam dessa parte, e que apesar de toda essa parte pedagógica ser importante, a gente sabe que tem uma parte que é assim, não cuidar só e trocar, por exemplo, mas de você conversar, de você ensinar, e que são coisas que você não precisa escrever nem aparecer e que são muito importantes, e eu gosto mesmo, das crianças, de fazer as coisas com elas. (ANTONIA, 2013, p.142)

Dessa forma, o intuito aqui não é rememorar o passado de práticas das

professoras como algo idealizado nem supervalorizado. Tampouco, afirmar que a

formação em magistério e nível superior garantiu o sucesso do trabalho na creche.

A continuidade dos estudos é fundamental. Embora a composição dos

conteúdos curriculares dos cursos de formação de professores não se configurou

como adequada à realidade do trabalho com a educação infantil, ficou evidente

que o contato com as leituras, autores, a contextualização histórica da educação

impulsionaram as professoras a visualizaram outras formas do trabalho, tanto com

as crianças quanto entre as relações hierárquicas estabelecidas na creche. Além

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disso, a formação em nível superior legitimou o trabalho das antigas

recreacionistas, que passaram a ser consideradas professoras.

Por outro lado, a falta de referência de um trabalho que integrasse cuidado

e educação, que possibilitasse um olhar para as práticas de cuidado (já existentes

na experiência das professoras) como parte fundamental do processo, acabava

por reforçar referências do ensino fundamental e desconstruir o trabalho na

educação infantil. Obviamente, há que se rever antigas práticas, mas parte-se do

pressuposto, a partir da construção desta narrativa, de que muitas das práticas de

cuidado duramente criticadas, necessitariam apenas, de uma melhor

problematização dentro do contexto de trabalho para integrar-se ao movimento

educativo que deve ser específico na creche, ou seja, uma maneira de cuidar e

educar da criança que não há em nenhum outro espaço de vivência que ela possa

ter.

Tal problematização deve ocorrer na formação continuada e em contexto. A

iniciativa do curso específico para atuação em creche, destacado no capítulo

anterior (embora não tenha sido conduzido no sentido de valorizar a experiência)

apontou para esta costura de fios que culmina na qualidade e identidade do

trabalho.

Nesse sentido Campos (2002) defende a importância da formação em

contexto para garantir um trabalho na educação infantil baseado em reflexão

sobre a prática e consolidação da autonomia do professor que está em constante

formação,

Nesse processo, o papel de educadores e educadoras emancipados, com um domínio de conhecimentos necessário para ser autores de sua própria prática, é fundamental. A capacidade de leitura e escrita, a autonomia pessoal e intelectual que possibilita a busca de informações ou escolha de materiais, a identidade profissional bem definida, condição para um bom contato com as famílias e a comunidade, a abertura para incorporar novos conhecimentos e práticas no trabalho com as crianças, são condições adquiridas ao longo da escolaridade básica obrigatória, de uma formação profissional prévia e em serviço, de uma educação continuada e de uma experiência de trabalho refletida e constantemente revista (CAMPOS, 2002, p.XXI).

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Para a autora, embora tais características não possam ser encontradas em

professores leigos, quando estes são submetidos ao processo de formação, estão

mais abertos às mudanças, embora possam também ser mais dependentes,

dificultando o processo de autonomia profissional.

Esta concepção vai ao encontro com as memórias das professoras da

creche, conscientes sobre a mudança das práticas e da importância da formação.

E, no que se refere à formação básica obrigatória, tanto as pesquisas quanto as

histórias de vida revelaram não adequadas ao trabalho na creche, mas que pode

ser ampliada, modificada e reinventada a partir da formação continuada e em

contexto.

Na tentativa de responder às questões aqui levantadas a partir de tudo o

que foi explicitado considerou-se então que, para um trabalho supostamente ideal,

que compreenda as especificidades da faixa etária entre 0 a 3 anos de idade, faz-

se necessário que as instituições de educação infantil, no caso, as creches,

ofereçam às suas professoras e professores a possibilidade de formação

continuada. E, mais que isso, que a equipe consolide-se a partir de uma reflexão

constante sobre suas próprias práticas, contribuindo inclusive para que o

profissional da educação trilhe caminhos rumo à pesquisa. A formação em serviço

só faz sentido quando em relação com o cotidiano da creche.

Vale refletir ainda sobre o fato de que os processos formativos não devem

tornar-se uma imposição ao trabalho, tampouco definir-se como únicos no que se

refere às concepções teórico-metodológicas. O que a experiência na creche tem

demonstrado é que, quando há espaço para a valorização da experiência

juntamente com a reflexão acerca do trabalho, os próprios profissionais sentem a

necessidade da formação continuada. Contudo, quando a formação é imposta

como tarefa obrigatória e às vezes sem contextualizar o espaço e as práticas já

existentes na creche, pouca contribuição é notada.

Sobre as relações de cuidado presentes na rotina de trabalho da instituição,

há que se valorizar cada uma das ações, já que o atendimento a crianças de tão

tenra idade abarcam uma relação de dependência do adulto. Trocar fraldas,

alimentar o bebê, coloca-lo para dormir são tarefas do professor de creche. E aqui,

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vale a pena abordar um ponto fundamental que difere a CAS de outras instituições

de educação infantil.

Devido ao fato de a legislação flexibilizar a formação do profissional de

educação infantil e séries iniciais (é possível ingressar na área apenas com o nível

médio na modalidade normal, como aqui já destacado), é comum, nos municípios,

como é o caso de Campinas, as creches contratarem dois profissionais distintos:

agentes de apoio infantil e professores, sendo os primeiros, com menor

escolaridade, incumbidos das funções voltadas ao cuidado (banho, trocas,

alimentação). Já aos professores graduados em nível superior, são atribuídas as

tarefas denominadas pedagógicas. A presente narrativa, contudo, foi realizada em

uma creche onde não há essa divisão de trabalho que organiza-se, em grande

medida, na desvalorização das ações de cuidado, e como se estas não pudessem

ser atribuições do professor de creche.

A ideia aqui defendida é a de que o professor de creche deve ter, em suas

atribuições, o cuidado e a educação das crianças em sua integralidade, sendo

estas práticas indissociáveis. E, as professoras protagonistas do presente texto

trouxeram em toda sua trajetória de vida e profissão a importância de construir e

consolidar tal prática. Em nenhum momento, mesmo depois de graduadas em

Pedagogia elas cogitaram a possibilidade de separar cuidado e educação na

creche. E, talvez, este seja o maior aprendizado que suas histórias podem trazer.

A relação entre creche e área de saúde – condição específica da instituição

aqui estudada - também mudou, e, embora ainda existam lutas a serem

enfrentadas, como a busca pelo credenciamento da creche, o fim do

funcionamento aos finais de semana e feriados (atendimento compreendido hoje

como assistência à família e não parte do processo educativo, devendo, portanto,

ser delegado a outro órgão que não a DEdIC), as professoras partilham de novas

ideias sobre como o trabalho deveria hoje ser conduzido, embora há que se

considerar a história da instituição.

Sobre a relação com o hospital, facilitou a vida das mães, foi uma luta delas, mas para as professoras e para as crianças não, isso

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não é bom. As crianças têm que ficar com a família, e hoje, mesmo o plantão sendo remunerado eu acho que ele tem que acabar, o direito à educação é garantido sim, mas de segunda a sexta-feira. Em janeiro também, porque que tem que ficar aberta a creche? Ela tem uma especificidade diferente, mas isso pra criança não é bom. Ela chega e não tem a professora que é a referência, as crianças são outras, ela chora, sofre (ANA, 2013, p.135).

As reflexões sobre o vínculo com a área de saúde da Universidade

emergiram claramente a partir do momento em que as professoras teceram fios da

história rumo à profissionalização, costura esta, feita na coletividade do trabalho.

No começo, que eu não entendia nada de Pedagogia, pra mim era tudo normal, era aquela coisa de cuidar mesmo, tinha a parte da saúde, da enfermagem. Aí depois do magistério eu comecei a ter outra visão, comecei a ver que não era só isso que a criança precisava, então aquela coisa de fazer muitas trocas de fralda no dia, tudo muito limpo, não precisava nada daquilo. O importante é a gente ver que a criança ta bem, brincando, está feliz. Então antes a creche era a extensão do hospital né (ANTONIA, 2013, p. 143).

Hoje, as professoras da creche trabalham todas juntas, sem distinção entre

“velhas” e “novas” funcionárias. Se há conflitos? Certamente! Seria possível um

local onde há história não haver divergências? As rememorações trouxeram

relatos de um período de grande mudança na creche e na Educação Infantil de

maneira geral. No entanto, a “grande” história da invenção deste modelo

educacional para as crianças pequenas não é capaz de abarcar tensões e

conflitos existentes do lado de dentro das instituições. No caso da Creche Área de

Saúde, estas nuances apareceram nas entrevistas, ora de maneira explícita, ora

imbuídas nos discursos, quase que escapando da oralidade consciente. Dentre

elas, o conflito entre as áreas educação e saúde foi o mais visível. Ao mesmo

tempo em que há a luta pelo fim dos plantões, pelas férias institucionais e recesso

nos meses de janeiro e julho, há ainda o vínculo histórico de um local construído

para este tipo específico de atendimento. Ao mesmo tempo em que as

professoras reconhecem o papel educacional da creche e anseiam por mudanças,

também titubeiam em algumas de suas narrativas.

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Porque eu acho que aqui não visa bem a criança, mas sim a mãe que vem trabalhar, eu sei que desde o começo essa creche foi feita assim, e a gente tenta mudar mas o histórico dela é esse, é pra mãe que precisa trabalhar não é pensando na criança. E a mãe quando vem sempre pergunta: ele comeu? Fez cocô? Não pergunta assim: ele fez alguma coisa diferente (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p. 176).

Já sobre a relação conflituosa um tanto quanto velada refere-se ainda à

questão da formação profissional das antigas recreacionistas e daquelas que

ingressaram professoras. Embora hoje todas tenham passado pelo processo de

formação e sejam consideradas “igualmente professoras”, a marca de uma história

de assistência que estas mulheres viveram e guardam em suas memórias,

provoca, às vezes, certo pesar pelas mudanças, como se o tempo vivido tivesse,

em certa medida, sido “melhor”

mas era diferente, era uma coisa assim artesanal sabe, dava banho na criança, trocava a criança, era diferente de hoje, a gente tinha mais um vínculo assim, não é que hoje não é afetivo, era mais de cuidado sabe, hoje a gente tem mais restrição assim, não é restrição assim que você pode dar amor assim, mas era diferente, você tinha mais contato físico com a criança, hoje em dia você tem o contato mas é diferente, tem os carrinhos pra levar, antigamente era tudo no colo, no abraço, você pegava a criança e levava no colo, agora não, você pega a criança e coloca no carrinho, você não tem mais aquela coisa do contato olho a olho com a criança, era ruim pra coluna, mas esse contato pra criança eu acho que era melhor né (MARIA QUEIRÓZ, 2013, p.176).

Apareceu ainda, em algumas falas, a ideia de que realmente, as novas

professoras são as reais detentoras do conhecimento pedagógico, como quando

Antonia referiu-se à escrita e registro do trabalho pedagógico.

Então, eu escrevia, mas era difícil. Depois melhorou, mas eu sempre tive muita dificuldade de escrever, pra escrever uma coisa pequena eu levava muito tempo, porque eu mesmo fico olhando e pensando que não tá bom, porque eu quero fazer uma coisa bonita, mas eu sei que não é por aí, porque você vai aprendendo fazendo, não tem outro jeito né, mas ainda tenho dificuldade. Mas melhorou bastante porque no começo era um desastre. Ás vezes eu anotava as coisas aqui, levava pra casa e ficava tentando fazer

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alguma coisa que ficasse legal, e depois que chegou esse grupo novo de professoras, aí tinha sempre alguém que queria fazer, aí a gente vai deixando. E eu adorei quando vocês chegaram! (ANTONIA, 2013, p.142).

Encerrando aqui a escrita desta narrativa, porém não a ampla temática, o

que se propõe é que se valorize cada vez mais a formação em contexto. As

experiências aqui rememoradas comprovam aquilo que os pesquisadores

dissertam sobre as possibilidades de construção de uma educação infantil de

qualidade que só é possível com a formação continuada, que traga, além de

recursos teóricos, espaços para que estes profissionais tragam suas experiências

de vida e profissão, na tentativa de unir saberes e recriar os mesmos. Talvez não

seja o único, mais é um caminho possível a construir.

As memórias aqui narradas constituíram fios de uma pequena história da

educação infantil, que iniciou seu atendimento com práticas de cuidado e

assistência, de acordo com os preceitos de cada época, e seguiu por um avanço

significativo de formação profissional e mudanças de concepções para uma nova

visão de atuação com as crianças pequenas. Certamente muitas outras histórias

poderiam ser narradas sob este fio condutor com diferentes personagens. Mas

esta é a história de uma creche chamada “Área de Saúde”, um local onde é

possível encontrar professoras que fizeram da profissão parte fundamental de

suas vidas. A relação com o trabalho público, com as questões coletivas da

profissionalização são tão marcantes que inclusive suas memórias são parecidas,

e os momentos de luta, conflitos e conquistas são narrados por todas de maneira

muito semelhante.

Olhar para o passado da creche a partir de uma perspectiva presente

remeteu as professoras a uma reflexão sobre como a concepção de infância e

educação infantil mudou. No entanto, os conflitos, as dúvidas sobre como atuar,

as dificuldades com relação à escrita e pesquisa na área apontam para a

necessidade de aprofundar cada vez mais a temática sobre a construção do

profissional de educação infantil, especialmente, de creche.

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Apresentando por fim, a imagem do brinquedo “gira-gira” que há mais de

vinte anos destaca-se como tão “especial” para as crianças quando brincam no

parque, é possível pensar em seu movimento em relação com o trabalho na

creche. Ou seja, o “gira-gira” realiza um movimento de rotação que nunca cessa,

roda e está sempre no mesmo lugar. Assim, podem permanecer as práticas

quando não problematizadas e questionadas, e é o cessar deste movimento que o

trabalho com a formação em contexto deve possibilitar. Contudo, mesmo girando

sempre em si mesmo, o brinquedo precisa dos pezinhos de todas as crianças ali

inseridas tocando no chão de areia do parque e movimentando-se numa mesma

direção. Quando uma criança se cansa de girar todos têm de parar os pés para

que ela desça, e, então, a brincadeira recomece. A formação em contexto precisa

de todos, cada qual com suas memórias, suas experiências, porém com os

mesmos objetivos, a mesma busca por um trabalho de cada vez mais qualidade.

Nesse sentido, todos só tem a ganhar, especialmente, as crianças.

Figura 9: Brinquedo gira-gira do parque do Maternal II

Fonte: Acervo pessoal. Foto tirada por Karina de Oliveira, 2013.

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Anexo I - Roteiro de questões para as entrevistas:

1) Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco sobre sua entrada

na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o que você fazia

antes, enfim, como estava sua vida na época.

2) Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com as crianças

durante o período em que elas ficavam na creche?

3) E o que estava acontecendo na creche nessa época em que as

recreacionistas voltaram a estudar?

4) Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que mudou?

5) Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso, alguma coisa que

você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na educação

infantil?

6) E como você vê essa relação da creche com a área da saúde, tanto no que

se refere à chefia, quanto na relação com as mães.

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Anexo II - Transcrições das entrevistas

1º Transcrição:

Data: 13/06/2013

Professora entrevistada: Ana

Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco

sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o

que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.

Na verdade eu era mensageira né, e trabalhei 3 anos e 9 meses no CAISM,

e, tive 1 filho aos 18 anos, e na época que eu tive meu filho faleceu uma criança

no berçário do CECI, e eu ia trazer meu filho, fui na entrevista de gestante tudo, ia

trazer, mas na minha licença faleceu uma criança e eu fiquei com medo e não quis

trazer ele à creche. Chorei muito, vim trabalhar 1 dia, minha irmã até ficou com

ele, ele tava com 4 meses, e no outro dia eu vim e pedi demissão. Aí fiquei em

casa com ele 9 meses, antes de prestar o concurso pra recreacionista. Aí fiquei

em casa com ele nove meses e a minha ex sogra trabalhava aqui e falou que ia

ter um concurso pra professor. Não, pra recreacionista e ela conhecia a diretora

que era a R. A R., ela era diretora dela na época e ela falou que ia vir pra creche e

que ia pegar bastante funcionários e que tinha que ter experiência com criança,

não importava ser professora ou ter trabalhado em alguma creche, não. Tinha que

ter experiência com criança e eu tinha experiência com o meu próprio filho.

Pesquisador: Não importava se era com o filho (experiência)?

Não, tinha que ter alguém que colocasse que você cuidou, e como eu tinha

experiência com ele (filho) mesmo, pôde. Eu fiz a inscrição e eu lembro que na

época tinham quinhentos inscritos e a gente fez a prova no ETECAP e eu falei:

nossa com tanta gente, eu não vou nem passar, era muita gente naquela época,

hoje tem muito mais, né. Eu lembro que iam pegar de cem a cento e cinquenta

professores, porque, não era só pra a CAS, iam pegar pro CECI também, para o

período manhã, tarde e noite na época falavam. E eu pensava: bom, talvez, eu

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passe, talvez não, mais eu estava sem esperança nenhuma. Aí , quando saiu o

resultado eu tinha passado em 5º lugar, porque, na entrevista eu caí com a ex-

diretora do CECI e ela pediu pra eu contar a minha experiência com o P., não,

com o B. (filhos) e aí tudo o que eu falava era na faixa etária de berçário, e eu

acho que ela gostava muito de berçário, não sei né, eu acho que ela gostava.

Porque, ela se empolgou em e ouvir contando que ele fazia, o que ele comia. E

também na prova caiu sobre as vacinas, sobre o desenvolvimento, tudo eu sabia.

Tinha tudo fresquinho na minha cabeça. Então, tive uma boa avaliação na

entrevista e na prova também e aí fique em 5º lugar. Aí, já chamou na primeira

turma. Creche nova, né! A gente teve reunião com as enfermeiras, eu lembro.

Pesquisador: Você lembra o mês que você começou, aqui?

A prova na verdade foi no começo do ano, era pra começar a trabalhar em

maio, é verdade, e aí não, ...., no mês de maio foi no CAISM que eu comecei a

trabalhar e aqui era junho e aí tiveram as palestras, reuniões com enfermeiras

falando de cuidado, né, orientação de cuidado. A pedagoga eu nem me lembro

dela falando, eu não lembro. Eu lembro mais das enfermeiras.

Pesquisador: Você lembra mais ou menos o que elas falavam?

Do jeito pra trocar, o banho, a alimentação, mais voltado mesmo pra higiene

pessoal e o cuidado mesmo com as crianças. É, aí depois o meu estágio foi lá no

berçário do CECI. Lá naquele prédio, lá embaixo. Era aquele prédio, e nisso acho

que elas ficavam observando a gente, né, não sei, não lembro direito, mas acho

que tinha alguém observando, pra ver o perfil, porque, depois que terminou e elas

foram separar as professoras por módulos que eram berçário, maternal I e

maternal II, elas disseram que eu tinha perfil pra berçário. E eu adoro o berçário.

Eu fiquei quinze anos no berçário, mesmo, eu adoro berçário, gosto muito

do berçário. Aí, selecionaram as professoras, separaram, eu lembro que eu fiquei

no berçário junto com a A., que hoje não trabalha mais na creche, fez curso

técnico de enfermagem. Aí, a inauguração da creche foi antes da gente começar

a trabalhar, tanto é que tem uma placa lá que fala do dia da inauguração, esse dia

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a gente não tava aqui ainda. A inauguração parece que foi em março, abril, é uma

data diferente de quando começamos a trabalhar. A gente foi a primeira turma a

trabalhar.

Daí inaugurou o prédio, pra começar a trabalhar mesmo foi assim, eu

lembro que foi uma semana de estágio e reuniões, tudo certinho, e aí começou.

Meu horário era das 07:00 às 13:00hs. A minha entrada foi dia 19 e a minha turma

eu lembro eram crianças do CECI. Eles já tinham entre 8 a 9 meses, uma turma

um pouquinho maior, não tinha ninguém tipo assim, que terminou a licença e já

veio pra creche. As crianças do CECI que as mães trabalhavam no hospital, todas

elas vieram pra creche, né, inclusive as crianças maiores também, maternal I,

maternal II, subiu tudo e junto subiram algumas professoras do CECI.

Pesquisador: Ah, Elas vieram!

Elas vieram junto, foram formando duplas, né. Eu lembro que a minha dupla

era com a A., as minhas crianças eram de oito meses, eu lembro até o nome de

algumas crianças da época.

Pesquisador: Mais essas professoras que vieram, elas eram do concurso

anterior, né?

Elas eram, né, no caso que nem a F., uma professora bem antiga, ela nem

era recreacionista, era atendente de enfermagem, atendente ao publico, elas

tinham um outro nome, não tinham essa nomenclatura.

Pesquisador: Mais ficavam com as crianças?

Ficavam com as crianças. Elas já tinham 15, 10 anos de creche, já, então

elas vieram e eu lembro que eu falei, assim, nossa, 10 anos! Eu não vou ficar tudo

isso aqui, não,...eu tô aqui há vinte e três. Eu era a mais nova das professoras.

Pesquisador: Eu, quando entrei falei a mesma coisa.

E eu não quero sair nunca, porque a gente gosta do que faz, né. Eu, lembro

que a dona R. falava que eu era a caçula, porque, eu tinha dezenove anos, eu era

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a professora mais nova, recreacionista mais nova da creche e ela me chamava

bastante atenção de tudo, parecia que eu não sabia nada.

Aí depois quando terminou a primeira turma minha, foi uma coisa do destino

não sei nem se você leu o livro, foi muito chocante pra mim. Porque dai, no outro

ano eu lembro que a A. falou assim: “agora a gente vai pegar bebezinho, a gente

vai ter que tomar o maior cuidado, que eles são diferentes desses, né”, ela era

mais experiente, já era mais velha que eu, acho que ela tinha uns trinta anos né.

Eu, falei é verdade a gente tem que tomar o maior cuidado! E fiquei meio com

medo mesmo de pegar os recém-nascidos, tipo assim, vinham com três meses.

Então, aí chegou a hora de pegar esses bebês, eu lembro que eles

entraram no começo do ano também.

Pesquisador: 91?

Isso. Aí esses bebês entraram no começo do ano, em 91, em maio mais ou

menos e era época de greve, e a gente revezava pra greve, então em um dia saía

uma, outro dia, a outra. E naquele dia eu não tava bem, eu me senti mal, e aí a

gente voltava pra creche pra revezar com o horário de almoço de quem tinha

ficado porque não tinha quem ficasse com as crianças. E aí tinha entrado essa

criança, uma menina, e era o terceiro dia dela na creche, ela tinha 3 meses. E a

mãe falou que era pra colocá-la pra dormir de lado, não era pra colocar de bruços,

só que a gente tinha uma norma da enfermagem, a gente tinha que pôr todo bebê

de bruços, não interessava o que a mãe falava. E essa menina mamava na

mamadeira. Aí nesse dia eu fui almoçar, e a gente almoçava no restaurante do

HC, aí eu cheguei na porta do restaurante e não entrei. Voltei pra creche. Quando

eu cheguei, tinha gente do lado de fora chorando, aí eu entrei, e foi horrível,

porque eu senti que tinha alguma coisa errada. Aí me explicaram que a mãe veio

amamentar, e eu justamente não queria trazer meu filho por causa disso, eu tinha

medo, e aí aconteceu justo comigo né, porque era da minha sala. Aí a mãe veio

amamentar às 11 horas da manhã, eu tinha saído um pouquinho antes, e agente

fazia assim, pegava a criança, trocava e ia colocando no berço e a gente ficava

fazendo aquele caminho dentro do quarto e olhando, mesmo que estivesse

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sozinha, você ficava toda hora entrando com um, com outro, e era na porta do

quarto o trocador, sempre na porta. E aí a mãe veio e a professora falou que tinha

acabado de colocar no berço, e eu lembro que ela gritava, tinha um choro

diferente e até se arranhava, parecia que tinha uma dor, sabe, e aí quando a mãe

foi pegar ela tava roxa, aí a mãe começou a gritar, e ela tava de bruço, a mãe

gritava: “você matou minha filha, eu falei que não era pra coloca-la de bruços”. Aí

a enfermagem fez os primeiros socorros, e levaram ela pro HC, aí já foi direto pra

UTI. A gente foi até lá pra ver, aí ela tava entubada, era muito pequenininha,

magrinha, foi horrível. Aí naquele dia eu não fui embora, a gente saía cedo, mas

eu fiquei aqui fora sentada, aí quando foi umas 4 horas tocou o telefone a R.

atendeu e começou a chorar, a criança tinha falecido. Eu fiquei desesperada.

No outro dia a gente foi no enterro, a mãe não olhava pra gente, mas

depois saiu um laudo depois de uns 15 dias falando que ela tinha um problema no

coração. Porque assim, ela não tinha vomitado, nada, então foi um problema no

coração que a mãe também não sabia. E essa menina era a segunda filha dessa

mãe, e aí depois ela teve outra filha, mas ela não trouxe mais pra creche. E depois

ela veio e nos pediu desculpas, tudo. E isso foi uma tristeza pra mim porque

aconteceu justo na minha sala, eu que tinha tanto medo, e eu lembro que depois a

gente não colocava criança nenhuma naquele berço, era estranho, o quarto era

pra 10 bebês, mas a gente nunca tinha 10, eram sempre 9. Nós, A gente não

trocava muito de sala, ficava sempre na mesma sala e a dupla era a mesma, tanto

é que eu trabalhei com a A. durante dez anos, depois ela foi pra tarde, ela fez um

curso de enfermagem foi pro HC. Saiu da creche e eu continuei no berçário. Eu

tinha os filhos e voltava, porque, não podiam ficar com a mãe, né, no mesmo lugar

trabalhando. E aí, fiquei durante quinze anos assim.

Eu sempre fugia da pedagogia, também, eu fui fazer biologia em 1994, fiz

três anos de biologia, tinha um filho só, falava que ia ter um filho só.

Só que no terceiro ano de biologia fiquei grávida da G., porque, eu tive que

tirar o DIU, porque, tava com uma infecção. Continuei estudando, tava de licença

e continuei estudando, tava no segundo ano quando fiquei grávida dela, mais aí o

médico falou, assim, “você vai tomar anticoncepcional durante a amamentação”,

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eu tomei, era uso contínuo. Só que ela no sexto mês ela não quis mais mamar,

não mamava de jeito nenhum, mesmo assim, eu continuei a cartela. Terminei

cartela eu fui ao médico e aí eu tava grávida do terceiro. Eu quase morri. Aí parei

de estudar. Eu não queria outro filho de jeito nenhum, nossa, pra mim foi um

susto. Eu olhava pra G. com seis meses eu chorava, chorava muito, não

trabalhava direito mais. Levei muita bronca por causo disso. E assim, eu

lembro que por causa dos filhos na avaliação, a chefia sempre me falava que eu

vivia em função dos filhos, e eu era mal avaliada. Assim, eu falo que o meu

trabalho até hoje é o mesmo, não mudei o jeito de trabalhar, então, tudo era

motivo, tipo assim se tava doente eu ia dar um remédio, não podia. Não podia

passar no corredor pra ver os meus filhos. Eu lembro também que não iam dar

vaga pra gente, quem era mãe não tinha vaga na creche. Aí, depois de um certo

tempo que completou todo o quadro de vagas, a lista de espera, aí sobrou as

vagas e eu pude trazer meu filho, e ele veio com 1 ano e 2 meses, no maternal I.

E tem uma coisa muito triste que aconteceu no maternal I quando ele estava lá,

como mãe eu falo, assim, me doeu muito foi que as meninas faziam diferença pela

cor, tinha muito isso (choro).

Pesquisador: As professoras?

As professoras, as mães que eram enfermeiras, médicas, tinham um

tratamento diferente.... isso foi muito ruim e assim, eu como professora mesmo

trabalhando lá dentro elas me tratavam mal, eu não podia passar pelo maternal I,

me davam bronca mesmo. (choro) Eu lembro uma vez que assim, quando ele

entrou era fralda de pano, a gente tinha que trazer as fraldas dobradas e tinha um

jeito certinho de dobrar a fralda.

Pesquisador: Quem ensinava?

A enfermagem na época. Elas ensinavam a gente e a gente, ensinavam as

mães. Naquela semana, como se fosse o planejamento hoje, elas ensinavam

numa boneca como colocava a fralda e como era dobrada essa fralda. O jeito era

muito bom, eu gostei do jeito porque a gente usava fralda de pano e a gente

explicava pra mãe quando a mãe vinha na matrícula, certinho. Tinham seis trocas,

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a calça plástica, três calças plásticas eu lembro, e os saquinhos, até hoje os

saquinhos. (para colocar roupa suja)

Era terrível, imagina levar uma fralda de cocô no fretado, né, aquilo virava

uma bomba. E na história que aconteceu com meu filho, eu lembro que eu

entreguei ele de manhã e a gente fazia a primeira troca, óbvio, porque era fralda

de pano, fralda descartável só pra ir ao médico e olha lá. Aí eu troquei ele de

manhã, moreninho, você já viu meu filho, troquei ele e coloquei essa fralda no

saquinho, quando eu vim buscar ele, ele tava chorando muito e a hora que eu

peguei eu já senti, tava de cocô e eu fui trocar. Nossa isso me doeu muito, ele

tava todo assado na carne viva, saiu até aguinha. Eu lavei dei o meio banho e fui

trocar, fui pegar a fralda na bolsa, ele tava encharcado e eu vi que só eu tinha

trocado ele de manhã. A troca que eu fiz de manhã ficou o dia inteiro, nossa, mais

ele tava em carne viva, eu troquei tudo e naquela hora eu não falei nada, fui

embora chorando. E era assim, tinha uma professora que ela não trabalha mais na

creche, que ficava na prancheta, eu lembro que era a única que tinha magistério,

ela ficava na prancheta e na recepção, não ficava com as crianças como a gente

faz hoje. Eu lembro que a gente tinha que falar tudo da noite pra ela, eu vim no

outro dia de manhã, cuidei dele voltou quase seco e, eu falei pra ela assim, olha

ontem aconteceu isso, só eu que fiz a troca, ele tava todo assado, ninguém trocou

ele. Ela me respondeu assim: “você tinha que ter falado na hora, agora eu não vou

saber se você tá falando a verdade ou não”. Não acreditou no que eu falei! Então

assim, desprezavam as minhas crianças, as de baixa renda e a cor também, eu

falo que é verdade.

Pesquisador: Bom, queria voltar um pouquinho na questão da formação

profissional. Você teve que parar de estudar e quando você entrou aqui na creche,

você tinha terminado o ensino médio?

Eu tinha o ensino médio. Eu fui pra biologia, saí da biologia por causa dos

filhos, mais quando eu tava com cinco filhos eu lembro que a pedagoga começou

a falar do problema da LDB, que tinha que ter magistério, mais em Campinas não

tinha mais o magistério, não tinha em lugar nenhum.

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Pesquisador: Que ano era? Você lembra?

Eu lembro que eu entrei na Pedagogia na Unicamp em 2005, foi em

seguida. 2003, alguma coisa assim, tinha alguma coisa da lei.

A coordenadora começou a falar da LDB, que todo mundo tinha que ter o

magistério, mas em Campinas não tinha mais nenhuma escola que oferecesse o

magistério, isso a gente já tava no ano 2000 e pouco já, acho que 2003, e daí só

tinha o curso de magistério em Hortolândia, e era à distância, ou então em

Paulínia que era todo dia. Aí eu optei por Hortolândia, que era 3 vezes na semana,

por causa das crianças, porque o P. ainda era bebê. E foi um sacrifício total. Meu

marido brigava porque não queria que eu estudasse, rasgava meus livros de

ciúmes. E eu ia lá e comprava de novo. Nossa, foi uma tormenta, era ciumento

demais, ele me levava e me buscava e mesmo assim ainda rasgava os meus

livros. Eu comprava de novo, às vezes eu comprava e pedia pra meninas

guardarem na casa delas.

Aí, eu lembro que terminou, foi um ano e oito meses, mais ou menos,

lembro que a gente terminou em outubro de 2004 e em 2005 tava fresquinho

ainda, né, tinha acabado e não ia estudar mais de jeito nenhum, né, era só o

magistério tava bom.

Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que

as recreacionistas voltaram a estudar?

Então, primeiro, porque assim pra mim, minha mãe sempre quis que eu

fizesse o magistério e eu não fiz. A escola que eu fui tinha a opção de fazer o

magistério, minha mãe falando, minha mãe que queria, e eu não. Não, quero ser

professora. Mas não teve como fugir, o destino me levou. Saí da Unicamp, voltei

pra Unicamp. Eu era recreacionista, não tinha a ver com o professor,

recreacionista era o cuidado. E aí a pedagoga falou tanto do magistério que a

gente tinha que se adequar a nova lei, que eu fui fazer, aí, eu gostei.

Eu lembro que a coordenadora fez uma reunião e falou, e as meninas

resistentes, quase ninguém queria ir. Aí, cinco dias não dava pra mim de jeito

nenhum, por causa dos filhos. Aí fomos fazer o curso a distância, ocupava o

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tempo do mesmo jeito, porque tinha um monte de coisa pra fazer em casa, né. Aí

terminou o magistério, então eu pensei: agora não preciso fazer mais nada! Mas

assim, eu gostei do que eu fiz, porque muita coisa que eu vi ali eu já fazia mas não

sabia o porquê. Por exemplo: no berçário, tinham as atividades mais não era

registrada (escrita), eu não sabia nada sobre o desenvolvimento do bebê.

Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que

mudou?

No berçário tinham as atividades, mas não era registrada e tipo assim o

desenvolvimento, as fases eu não sabia, eu não entendia nada, pra subir, descer,

engatinhar, não sabia. Pra mim é o normal do ser humano, não deixa de ser, mais

as atividade que a gente fazia eram com música, a gente cantava muito com eles

no salão, deixava dormir, assim, eu lembro que depois começava acorda pra fazer

atividade e não precisava nada disso, coitado deles.

A gente deixava dormir, a preferência era o sono e alimentação, o básico

aqui do berçário, o cuidado. Mais tinha no berçário os brinquedos, o espelho, os

rolos pra subir, pra descer, eles faziam isso normal, mais eu não sabia porque, né,

aí eu comecei a entender. Ah, esqueci de falar de uma criança que eu tive lá na

primeira turma.

Pesquisador: Pode falar.

Tive uma criança na minha primeira turma, um menino que nasceu de seis

meses e meio, pesava 650 gramas, cabia numa caixinha de sapato. Ele teve

fechamento precoce da moleira e teve que fazer uma cirurgia, e como ele ficou na

incubadora queimou a retina, então ele era uma criança que não enxergava e

também não podia bater a cabeça. E aí foi difícil! Ele começou a engatinhar e

como a gente ia fazer? Ele não podia bater, não podia cair. Aí ele ficou mais

tempo no berçário do que as outras crianças, porque demorou mais para

engatinhar e andar, e quando ele começou a andar foi para o maternal I. Mas

assim, a gente tinha 9 crianças mais ele, nossa turma era de 10 crianças. Com o

tempo ele conhecia todas as professoras pela voz e ele ficou na creche até os 4

anos e ele ia sozinho a todos os espaços da creche. Pouco tempo atrás fiquei

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sabendo que hoje ele é músico. Mas trabalhar com essa criança foi um desafio

muito grande.

Pesquisador: Bom, então você acabou o magistério e foi fazer pedagogia?

Aí, foi. Terminou o magistério Então, aí em 2005 tinha u convênio entre as

prefeituras de Campinas e da região com a UNICAMP, que era o PROESF28, que

era o curso de Pedagogia para quem atuava na área, e era assim: os professores

da Faculdade de Educação coordenavam e orientavam os mestrandos e

doutorandos que davam aulas neste curso. E aí a gente tinha terminado o

magistério em 2004 e então eu incentivei as meninas porque era uma

oportunidade pra gente, porque o convênio era só para as prefeituras, mas o

sindicato daqui foi atrás e conseguiu liberar pra gente também. E era a última

turma do PROESF.

Só que as meninas ficaram com medo, acharam que a prova seria igual ao

vestibular, muito difícil. Mas não custava tentar! Aí elas não quiseram, as

professoras mais velhas, da minha época, algumas meninas novas do concurso

foram, mais eu não conhecia direito, então eu fui sozinha. No dia de fazer a

inscrição eu não tinha dinheiro e quase desisti, mas aí a V. me ligou no final da

tarde, dizendo que ia imprimir minha inscrição e ia pagar pra mim. E nessa época

a gente ir estudar só que não ia mudar o salário em nada, mas eu achava que ia

ser bom pra gente, pro nosso trabalho, mas aí eu fui. E foi um sacrifício, porque

era todo dia, e meus filhos eram pequenos.

Aí, eu lembro que tinham quinhentos inscritos e quatrocentas vagas, quase

um por um, difícil alguém não entrar, né, mesmo assim ficou cem na lista de

espera e eu falei, meninas vocês perderam. Ninguém queria ir, não iria mudar o

salário, não iria mudar nada, gente mais é uma coisa boa, né. É uma experiência

nova e a gente vai trazer coisa pra creche. E ninguém quis, de jeito nenhum.

                                                                                                                         28  PROESF:  Programa  Especial  para  a  Formação  de  Professores  em  Exercício  na  Rede  de  Educação  Infantil  e  Primeiras  Séries  do  Ensino  Fundamental  da  Rede  Municipal  dos  Municípios  da  Região  Metropolitana  de  Campinas.  Curso  oferecido  pela  Faculdade  de  Educação,  do  qual  algumas  professoras  da  creche  fizeram  parte.  

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Aí, eu fui com sacrifício, imagina todo dia, os filhos pequenos, o P. tava com

cinco, quatro anos, eu tinha que pagar alguém pra ficar com eles Aí, primeiro

semestre tudo bem. As meninas tavam me ajudando, eu ia de carona com outra

professora que era da rede, tava dando tudo certo, saía daqui às 13:00 horas. No

segundo semestre mudou o meu horário pra oito horas diárias. Aí... fiquei doente,

entrei em depressão, não vim trabalhar mais, não tomava nem banho mais, não

queria fazer mais nada, nem cuidar da crianças.

Fiquei afastada. Era mês de junho, férias de julho, começou agosto e eu

não queria voltar. Aí, eu passei na psiquiatra e ela me deu uns remédios, eu sei

que ela foi aumentando as doses, foi trocando, porque não tava resolvendo. Eu

lembro que já tava na terceira semana de agosto e eu não tinha ido à aula

nenhum dia. Fiquei nove meses afastada.

Pesquisador: A mudança de horário mexeu com tudo na sua vida, né?

Foi, mexeu. Eu lembro que eu falei pra pedagoga “deixa a gente pagar com

horário de almoço, a gente sai às 14:30 e faz o horário de almoço direto”. Não

podia. “Pelo amor de Deus M. a gente tem que organizar a nossa vida”, Eu não

tinha culpa se o meu contrato tava errado, eu nem sabia que eu assinei um

contrato de oito horas e trabalhava seis. Por causa do bendito do HC, eu não tive

culpa, e tudo que a gente pedia pra chefe ela negava. Mais, aí, quando eu voltei

eu desabafei com ela, o médico da perícia era mais louco do que eu (risos), eu já

tinha engordado vinte quilos tomando os remédios e ele falou pra mim que eu não

tinha Deus, por isso que eu tava daquele jeito. Eu disse, eu tenho Deus, sim, se

eu tivesse ouvido tudo que ele me disse, eu saía dali e me matava. Porque, o

médico ao invés de me ajudar, ele me deixou louquinha. Eu falei, eu não sou isso,

eu tenho Deus, eu não tô doente, eu não tenho mais nada, eu vou voltar a

trabalhar.

E voltei a trabalhar e nem peguei alta da psiquiatra, ela não me deu alta, até

hoje eu não voltei mais no consultório. Falei: vou trabalhar, eu não sou essa louca

que ele tá falando que eu sou, não sou. Mais quando eu voltei a R. tinha ido

trabalhar em Hortolândia, saía as onze horas e pagava com horas pra ir trabalhar

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em outro lugar. Então ela pôde e a gente não... Aí eu falei tudo pra ela

(pedagoga):

M., eu fiquei doente por causa de você, nada pode nessa creche, tudo o

que a gente vai pedir é não, não, não...e pra algumas pessoas vocês falam sim.

Por que? Ela tentou me explicar mais não resolveu, não, não explicou nada. E aí

fiquei muito magoada, mais enfim, continuei a faculdade, voltei, aí comecei a fazer

projeto, não sabia fazer projeto, não sabia fazer nada, eu lembro que eu voltei, no

segundo semestre de 2006. Aí depois da faculdade eu conseguia fazer os

projetos. Em 2006 quando eu ainda estava estudando, eu lembro que no maternal

I a gente fez o projeto da casinha que foi super legal, aquele ano o trabalho fluiu, e

ao mesmo tempo em que eu estava estudando também tinham vocês novas do

concurso. E aí as meninas novas, vocês novas traziam coisas novas pra gente,

né, acho que foi muito legal, a pedagoga falava uma besteiras pra gente que a

gente tinha que grudar em vocês, vocês sabiam tudo, a gente não sabia nada

(risos) e aí foi bom, a faculdade ajudou bastante.

Pesquisador: Como foi isso quando a gente entrou? Como foi?

A gente perdeu as amigas, foi chato, coitadas né, elas estavam aqui há

quinze anos pela FUNCAMP, algumas passaram no curso e outras não, foi difícil,

mais eu lembro que agente teve uma reunião antes de vocês entrar e a

coordenadora falava umas besteiras pra gente, falava que a gente tinha que

grudar em vocês porque vocês sabiam das coisas e a gente não sabia nada. Eu

lembro que antes de vocês chegarem ela fez uma reunião e falou que vocês iriam

chegar, que ia ter gente nova, algumas estavam fazendo faculdade, outras já

tinham terminado, mas o ar da conversa era sempre no sentido de que a gente era

burra e não sabia nada, era assim que a gente se sentia.

Pesquisador: Vocês se sentiam assim?

Foi. E teve uma vez quando eu tava cursando a faculdade que a diretora

me chamou na sala dela e falou: mas pra quê tanta pedagoga na creche? Não

precisa. Esse curso vai ter o diploma da UNICAMP? É igual? E eu mesmo assim

insisti, porque eu queria estudar, queria crescer, entender as coisas, porque eu

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gostava do meu trabalho eu queria melhorar para as crianças. Então a gente tinha

o incentivo pra estudar da parte das pedagogas, mas da parte da enfermagem não

tinha incentivo nenhum.

E ela me humilhou muito, desde o magistério. Então, ela falou assim “seu

marido vai te deixar”? Eu peguei e falei pra ela assim: eu quero estudar, eu quero

crescer, eu quero entender o que eu faço, eu quero, é o que eu gosto de fazer, eu

trabalho com as crianças. Durante todo esse tempo, quantos anos eu já tinha aqui,

quem não gostava de trabalhar com crianças saiu, foi embora, não ficou aqui na

creche e era o que eu gostava de fazer. Ela falou muita besteira.

Pesquisador: Tinha o incentivo pra estudar mas ao mesmo tempo não

tinha.

O incentivo vinha das pedagogas porque, da parte da enfermagem a gente

nunca teve incentivo nenhum, nenhum... Era das pedagogas mesmo, mas as

enfermeiras nunca incentivaram não, nunca. E aí, eu até falei pra meninas,

ninguém quis ir das veteranas. Aí , voltando em 2006 a gente teve esse projeto, e

em 2008 as meninas falavam pra que estudar, se a gente não vai ter aumento de

salário. Gente, eu pegava a CAD que diz que quando você tem nível superior,

você tem que ir pro superior, não interessa. E depois, em 2009 quando eu já tinha

terminado a faculdade, teve a greve e a Dra. P. veio e a UNICAMP reconheceu o

nível superior de quem já tinha. Aí as meninas que não tinham feito a pedagogia

ficaram desesperadas e foram fazer também.

Se eu tivesse ouvido o que ela falava (a diretora) eu não teria estudado. Eu

não teria, tinha largado tudo, porque, o jeito que ela falou, jogou um balde de água

fria. Ela me humilhou muito, mas pra mim foi um desfio, porque se a pessoa fala

que você não vai conseguir aí que eu quero fazer mesmo e vou até o fim. Falou

não, agora eu vou. E aí, isso me deu mais vontade de ir mesmo pra desafiar o que

ela falou, porque, foi muito chato. E aí, tô pondo em prática tudo o que eu aprendi.

Pesquisador: E falando ainda da formação o que você acha que te ajudou

no trabalho na educação infantil?

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A prática mudou. Porque, eu comecei a registrar, eu via que eu falhava, às

vezes a gente fazia umas coisas que não tinha nada a ver, né, e a pedagogia me

ajudou a trazer o trabalho assim, dentro da sala, não estimulando, mais assim, eu

vejo nas crianças, eu trabalho assim, vendo o desenvolvimento delas, eu vejo isso

acontecendo, coisas que eu fazia espontaneamente e nem percebia o que tava

acontecendo, aconteciam algumas coisa mais aí com a pedagogia eu consigo ver

bem claro, né, o que é bom, o que acontece realmente seguindo a teoria, né,

assim, tá na teoria e na prática, acontece sim. A gente consegue ver o

desenvolvimento da criança, perfeito. A R., o que ela trouxe, e o trabalho com a

organização do espaço, o trabalho com os cantos, isso não foi nem na faculdade,

foi no curso, o trabalho com o bebê também, porque na faculdade eu não aprendi

nada sobre o bebê, foi com ela, o trabalho com berçário as pessoas não sabem,

não conhecem, então o curso trouxe muita coisa, e agora aquela coisa de

trabalhar no berçário com planejamento e não com projeto ficou melhor ainda.

Então, assim, era mais o teórico a gente via as fases e o que ela trousse foi

bom, porque, isso acontece nos cantos da sala. O bebê a gente deixar mais ele

sozinho.

Tem que ter a formação. Eu lembro que a gente tinha assim formação

também com a pedagoga, até antes de vocês entrarem, sempre teve a formação.

Ela vinha com algumas coisas novas até mesmo da LDB elas passavam, tinha

reunião uma vez no mês, no sábado vinha todo mundo, passavam algumas coisa,

sim. Aí, tinham os encontros, tinha a jornada mais uns cursos específicos... eu

acho assim as pessoas criticaram a R., tudo bem, mais tem coisa boa também

que acrescentou muito na creche, você viu Carla mudou tudo!

Pesquisador: Você me contou um monte coisas e muitas coisas de

sofrimento que você passou, muita dificuldade, tudo assim que de certa forma tem

haver com a creche, né, mais de tudo isso, você ainda trabalha na creche.

A creche é a minha vida. Eu gosto muito de bebês, de criança, é um lugar

que eu trouxe os meus filhos, e apesar de terem coisas que eu não gostei, é um

lugar muito bom. A creche da UNICAMP, a CAS, eu acho que é diferente, é um

lugar que eu gosto, e se alguém me falar que eu tenho que ir para o CECI eu não

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vou, não só pelo lugar mas pelas pessoas que trabalham e você acaba tendo um

vínculo com as pessoas, acho que quando eu aposentar eu vou continuar vindo

aqui, e não é só a creche, a UNICAMP, porque eu entrei aqui com 15 anos, e tudo

o que eu vivi foi aqui dentro. E quando você não gosta de criança você não fica

tanto tempo assim, mas eu gosto e por isso eu fiquei. Tem gente que trabalha

mesmo só por causa do dinheiro e não por causa das crianças. E eu não.

E mesmo com tantos problemas e dificuldades eu agarrei, eu queria não só

pra mim mais pras crianças também, como mãe também, né, e ajudou bastante,

nossa, é isso aí.

Pesquisador: E pra finalizar, como você vê essa relação da creche com a

área da saúde, tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.

Eu acho que ajudou muito pras mães, eu falo assim, as pessoas criticam

“ah, abre no final de semana” mais ela foi criada pra isso, porque, as mães não

tinham com quem deixar os filhos. Eu penso mais na faixa etária de berçário, não

falando maternal I e II, porque, depois a criança fica maior, dá pra deixar, mais

quando é bebê você quer ele perto, você não confia às vezes nem no marido pra

deixar. A gente é mãe sabe, a gente tem um jeitinho diferente e elas confiam

bastante no trabalho aqui. Então, ela foi criada já pra isso, as mães lutaram pra ter

essa creche específica pro hospital por causa do horário de turno delas, do final

de semana toda aquela correria e já trabalham num ambiente difícil.

Pesquisador: Você disse que pras mães foi muito bom e pra nó

professoras, pra criança tem alguma relação? Afeta alguma coisa no trabalho,

esse vínculo com o hospital, os plantões, até que você falou que tinha essa

diferença de mãe que é do hospital, enfermeiras.

Sobre a relação com o hospital, facilitou a vida das mães, foi uma luta

delas, mas para as professoras e para as crianças não, isso não é bom. As

crianças têm que ficar com a família, e hoje, mesmo o plantão sendo remunerado

eu acho que ele tem que acabar, o direito à educação é garantido sim, mas de

segunda a sexta-feira. Em janeiro também, porque que tem que ficar aberta a

creche? Ela tem uma especificidade diferente, mas isso pra criança não é bom.

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Ela chega e não tem a professora que é a referência, as crianças são outras, ela

chora, sofre. Então, eu dou plantão, porque, preciso do dinheiro, os filhos estão

crescendo, faculdade, escola, tem que pagar. E aí, eu venho no plantão sim, mais

eu sinto que a mãe, ela tem com quem deixar. Tem plantão que não traz...e de

uma hora pra outra já não traz mais, porque, muda de escola e não traz mais.

Mesmo sendo remunerado eu acho que ele tem que acabar, a criança tem direita

a educação de segunda a sexta, sábado e domingo, não, é família. Mesmo que

pague alguém pra ficar dentro da sua casa, não dá o auxílio, dá o auxílio pro final

de semana.

Pesquisador: Ana precisamos encerrar. Quero muito te agradecer por toda

a história que você me contou. Foi muito bom! Obrigada!

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2º Transcrição:

Data: 14/06/2013

Professora entrevistada: Antonia

Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco

sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o

que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.

Então, eu tava no hospital. Porque na verdade assim, era duas coisas que

eu tinha um sonho, era ser professora e ser enfermeira. Primeiro era ser

professora, mas era aquela coisa de criança né, que você tem sempre uma

professora que você gosta e admira. Então queria ser professora. Mas depois,

quando eu tinha uns 15 anos eu decidi que ia ser enfermeira. E eu vim pra

Campinas e aí tive uma oportunidade de fazer um cursinho de 3 meses que era de

atendente de enfermagem, e foi na época que a UNICAMP tava realmente

chamando o pessoal pro hospital começando aqui em Barão Geraldo. Daí vim, e

era como atendente. Aí no caminho eu falei, meu Deus não é isso que eu quero.

Eu trabalhava na pediatria e aí assim, me deixava muito triste as coisas, sabe, eu

ficava deprê mesmo, é, crianças que eram da idade de minha filha, na época eu

tinha a C., que você vê ali morrer, então mexia muito comigo, eu não conseguia

muito separar. Aí eu dizia, ai não quero ficar aqui, o que que eu faço, mas também

precisava trabalhar, era concursada, não queria sair.

Pesquisador: E quantos anos você tinha?

Acho que eu tava com 26 anos. Daí, realmente. Meu Deus o que que eu

vou fazer da minha vida. Eu não posso sair, mas também não quero ficar. Aí eu fui

fazer pedagogia lá em Itu. Comecei, mas fiz um semestre e parei, porque daí foi

quando eu tive a Camila, então quando eu comecei fazer lá, C. era bebê, daí eu

desisti. E assim, eu trabalhava à noite na época, e aí eu queria passar pra manhã,

pra poder estudar à noite, e na época era a R. lá no hospital, que depois veio ser a

diretora daqui da creche né. E eu tinha muito medo dela, ela era muito brava,

muito autoritária né. Eu sei que eu vim um dia conversar com ela e ela disse não

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tem vaga e pronto. Mas eu preciso estudar. Na verdade eu já tinha começado,

só que como eu trabalhava 12/60, trabalhava uma noite e folgava duas, então eu

ia nesses dois dias e faltava um, e reivindicando essa vaga aí de manhã. Fiquei

assim, uns seis meses fazendo essa maluquice. Dava mais plantão de fim de

semana, pra poder folgar e ir. Tinha a C. bebê então realmente era uma loucura.

Aí, o que que aconteceu. Apareceu a creche aqui, foi na época que construiu a

creche. E eu falei, é isso mesmo. Vou prestar concurso de novo. Eu queria vir

direto, mas não podia. Aí prestei o concurso e já comecei logo, acho que passei

em 12º lugar e já fui chamada em seguida. Eu lembro que comecei fazendo o

treinamento aqui, e dando plantão lá um pouquinho, umas duas semanas. Saía do

plantão e vinha direto pra cá.

Cheguei aqui na creche, e fomos fazer um estágio em vários lugares, né,

berçário e maternal, lá no CECI. No berçário amei! Meu Deus é isso! É isso

mesmo que eu quero pra mim, é aqui mesmo que eu quero ficar. Aí fiquei 15 anos

trabalhando no berçário. Eu me apaixonei pelos bebês. E cheguei na creche e

encontrei a R.! E eu tinha medo dela sabe. Ela era uma pessoa muito autoritária,

só que ela gostava de pessoas que trabalhassem bem, pra ela se fosse assim

tava tudo certo, então eu sempre me dei muito bem com ela. Aí fiquei no berçário,

e era só cuidar, e era muito gostoso. Primeiro a gente começou, e tinha um grupo

muito pequeno. Aí trouxe minha filha pra cá, e ela foi uma das que estreou o

Maternal I. E era só cuidar mesmo, nós passamos alguns anos assim, não tinha

cobrança, não tinha nada.

Pesquisador: E como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam

com as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?

Só cuidava e brincava. Aquela coisa de por as crianças no chão, brincar,

isso a gente fazia, oferecia os brinquedos, preparava o ambiente, brincava com

eles, dava comida, colocava pra dormir, era isso. Aí minha primeira parceira foi a

C., que até já faleceu, depois foi a R., trabalhei com várias pessoas, mas a maioria

já não ta mais aqui, já saiu. Então, e era gostoso porque era aquela vidinha

tranquila, não tinha muita cobrança, não tinha nada, depois, não sei bem quando

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começou, mas depois começou uma fala assim: agora vocês precisam registrar o

trabalho.

Pesquisador: Fazer o planejamento?

É, mas não era bem ainda planejamento, nem falava esse nome, era pra

escrever o que acontecia, um relatório de desenvolvimento, que é o que a gente

faz agora, mas não era muita coisa, isso foi quando as coordenadoras começaram

a fazer psicopedagogia, porque daí elas começaram a trazer uma outra visão.

Pesquisador: Elas também foram estudar?

Sim, elas também foram, e aí as pessoas novas que chegavam aqui,

estagiários por exemplo, se sentiam meio deslocadas, foi quando começou aquele

projeto acolhimento, acho que começou não foi nem por causa dessas pessoas,

mas por causa dos pais porque, eu não lembro agora o que que a gente foi fazer

que se percebeu assim que os pais não conheciam ninguém da administração, a

única referência dos pais era realmente a tia, os pais não sabiam nem que tinha

pedagoga, que tinha psicólogo, eles não tinham noção do que era a creche, era só

trazer o filho, cuidou dele tá ótimo, era isso, então elas começaram a perceber que

elas não apareciam na história do trabalho, aí então saiu esse projeto

acolhimento, que fazia parte o grupo de gestante. Muitas mães não

conseguiam amamentar, e aqui na creche isso foi mais tranqüilo porque elas

começaram esse trabalho antes, durante a gestação de orientação, porque lá na

outra creche a gente ouvia falar que lá no CECI no começo um dos critérios pra

conseguir uma vaga era amamentar, então acho que muitas mães nem

conseguiam amamentar de tanto medo, de tanta pressão, tanto que aqui teve a M.

R. que fez o trabalho dela de mestrado sobre isso. Então depois disso, aqui na

CAS elas começaram esse grupo de gestante e foi um trabalho bem bonito que

elas fizeram, porque as mães chegavam aqui muito mais tranquilas e aí já não era

mais assim: se não amamentar não tem vaga. Aí teve esse projeto acolhimento aí

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logo depois começou a ter que registrar o trabalho. Aí foi na época em que a gente

foi fazer o magistério, em 2002.

Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que

as recreacionistas voltaram a estudar?

Então, fui fazer o magistério em 2002 e tinha uma pressão pra gente ir

estudar sim, eu não sei o que poderia acontecer com a gente, mas tinha que ir

estudar, porque ficava aquela coisa no ar, aí foi aquela luta pra gente conseguir

fazer, aí começamos a fazer em Paulínia, e foi muito legal porque eu realmente

não tinha noção nenhuma de nada. Não conhecia nenhum autor, nem de

Vygostky, Freinet, Piaget, nada! Por que pra gente era realmente cuidar da criança

e pronto! Então o magistério foi muito bom mesmo, eu acho que pra todas nós. No

primeiro dia de aula eu cheguei em casa quase 2 horas da manhã, porque não

tinha perua pra gente ir embora. Não tinha perua e eu cheguei em casa quase

duas da manhã, meu marido falou: ah, você não vai mais! Mas depois a gente

conseguiu um perueiro aí deu tudo certo. Foi muito bom!

Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática, o que

mudou?

O curso de magistério me fez olhar para a criança de maneira totalmente

diferente, a gente começa a ver a influencia que temos na vida daquela criança,

porque antes a gente tinha umas coisas assim: “ah, deixa ele chorar, daqui a

pouco ele dorme” , sabe, e às vezes eu fico lembrando dessas coisas e penso em

como a gente era ignorante mesmo, então eu vejo que mudou bastante, o olhar

para a criança mudou, então eu vejo hoje que eu tenho algo mais a fazer. Às

vezes eu fico lembrando dessas coisas e eu penso, nossa como a gente era

ignorante, então o olhar com a criança mudou. Então depois que a gente foi

estudar, a gente passou a ver que sempre tem algo a mais que a gente pode

fazer, então o magistério foi muito bom, pra mim foi melhor que a faculdade. A

faculdade pra mim foi uma furada, na verdade só serviu pra melhorar meu salário,

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por causa do diploma, tanto que quando eu fui fazer eu pensei: é melhor isso do

que nada.

A diretora (da creche) não incentivava a gente a nada. Ela falava: ‘não

adiante vocês irem estudar porque isso aqui não vai mudar’. A coordenadora

também chegou a falar, ainda mais sendo uma faculdade à distância. Mas eu

achava assim, que pelo menos eu ia ler, ia ter aquele compromisso de estudar. E

foi bom, porque realmente depois de 1 ano que eu tava estudando teve uma

grande mudança aqui que foi com relação ao salário né, e ainda bem que eu tinha

feito. Mas eu aprendi realmente muito pouco lá. Era um grupo que não queria

nada com nada sabe, porque eu acho assim, mesmo sendo à distância, se você

quiser aprender e aproveitar, você consegue, dá pra fazer muita coisa, mas aí a

professora também não queria. Duas vezes eu cheguei a discutir na sala, mas aí,

mesmo no meu grupo de colegas, elas realmente só queriam o diploma, então não

adiantava. A gente se reuniu algumas vezes em casa, e era tão bacana sabe, às

vezes terminava a aula e aí tinha um debate, e eu acho uma delícia essas coisas

porque a gente aprende muito com o outro né. E a gente tinha um grupo bem rico

porque tinha psicólogos, tinha professores com experiências em outras escolas,

mas estavam ali porque também precisavam deste diploma, mas tinha muita

experiência, mas não deu. Eu fiquei muito decepcionada. Tanto que ainda tenho

uma coisa dentro de mim que diz assim: um dia eu ainda volto a estudar. Porque

também um dos meus sonhos era ser psicóloga, então ainda vou fazer.

Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso,

alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na

educação infantil?

Olha, tinha as jornadas né, que sempre apresentavam coisas interessantes,

principalmente a dos últimos anos que trouxeram projetos e trouxeram bastante

idéias pro trabalho. Eu fiz uma fez um curso que foi sobre as creches lá da Itália,

que foi a A. L. G. que trouxe, e ela até chegou a vir aqui visitar e até fez um monte

de críticas, aquelas coisas né, e também teve o curso da R. (diretora da DEdIC),

que eu gostei. Pra mim, sempre que tem algo de novidade eu acho que a gente

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sempre aprende. Então eu li alguns textos dela, algumas idéias, algumas dicas

que ela deu, foi bem bacana sim. Eu não conheci a R. antes porque quando ela

chegou eu saí, porque fiquei doente e fiquei de licença um tempo, e assim, eu

gostava dela, mas eu acho assim, que há um jogo político por traz de tudo e que a

pessoa que ta ali naquela posição representa um papel né, mas eu gostei do

curso viu. Eu não aproveitei muito porque eu tava doente e teve alguns encontros

que eu não vim, e acho que depois deste tratamento meu eu fiquei um pouco fora

do ar, sabe, então algumas coisas pra mim ficou meio distante, mas aquilo que eu

consegui aproveitar foi bom. Não sei, eu acho que assim, pra algumas pessoas

que tem mais bagagem, sei lá, não gostaram, mas pra mim que não tenho, foi

bom. E a R. na verdade representou um papel muito importante aqui, porque ela

trouxe uma grande mudança, talvez ela fez de forma errada, mas foi muito

importante porque algumas coisas que tinham que mudar. Não sei se ia ter

alguém bonzinho que ia fazer e agradar todo mundo, e eu acredito que pra ela

também não foi nada fácil não, e ela buscou muitas coisas né, algumas deram

certo, outras não.

Pesquisador: E quanto tempo você ficou afastada?

Fiquei nove meses. E foi muito difícil ficar longe das crianças. Tanto que o

médico não queria deixar eu voltar sabe, mas eu precisava trabalhar, precisava

voltar. Pra mim ia me fazer bem, ia fazer eu ficar melhor mais rápido. E ele viu

meus exames e perguntou se eu tinha certeza de que queria voltar a trabalhar. E

eu insisti. Aí ele me liberou. E realmente, mesmo assim, que eu tava com o corpo

muito endurecido ainda, é difícil voltar, e ainda tô em tratamento na verdade, mas

Só de voltar já me sinto melhor. O médico não queria me liberar, mas eu quis

muito voltar. Eu tava careca ainda, e isso foi uma coisa que me pegou bastante, aí

voltei de lenço, e as meninas falavam: joga esse lenço fora, aí que decidi tirar o

lenço, o cabelo tava bem curtinho aí eu passava uma maquiagem, e as meninas

falavam que eu tava parecendo a Elis Regina. E aí eu fui voltando aos poucos e

deu tudo certo, porque trabalhar faz tão bem! Principalmente se for com criança A

criança tem uma energia tão boa. E aí eu fui me recuperando. De vez em quando

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tenho uns piripaques, esses dias mesmo fiquei mal, e no ano passado, nesta

mesma época fiquei mal também. É assim, você vai fazendo o tratamento e

parece que vai sobrecarregando o organismo, aí chega uma hora que estressa

tudo sabe, mas agora eu já to bem melhor. Mas é muito difícil porque é uma coisa

que não depende de você. É o seu corpo que ta doendo, que tá mal, a cabeça até

que ta melhor, mas o corpo não acompanha sabe, então é difícil, tem que ter

muita fé em Deus e muito apoio. Mas a gente supera tudo. Mas eu to feliz, só que

agora eu acho que eu quero aposentar, sabe Carla, quando der. Eu amo o que eu

faço, mas agora eu acho que eu fiquei muito pra trás das coisas, nessa parte

pedagógica né.

Pesquisador: Por que você acha isso?

Não sei, de repente eu fiquei assim, num impasse, porque eu vejo que eu

consegui deslanchar no que eu penso, mas muitas vezes não consigo expressar,

essa parte de tecnologia também é difícil, não encontro tempo pra fazer essas

coisas, e particularmente não gosto muito. A parte que eu gosto mesmo é de

cuidar, tanto que eu falo que Deus coloca as pessoas certas na minha vida,

porque eu sempre fico com parceiras de trabalho que gostam dessa parte, e que

apesar de toda essa parte pedagógica ser importante, a gente sabe que tem uma

parte que é assim, não cuidar só e trocar, por exemplo, mas de você conversar, de

você ensinar, e que são coisas que você não precisa escrever nem aparecer e

que são muito importantes, e eu gosto mesmo, das crianças, de fazer as coisas

com elas.

Pesquisador: Mas e os seus registros pedagógicos, que você começou a

me contar lá no começo da entrevista, que chegou um momento em que precisava

começar a registrar. Como é hoje?

Então, eu escrevia, mas era difícil. Depois melhorou, mas eu sempre tive

muita dificuldade de escrever, pra escrever uma coisa pequena eu levava muito

tempo, porque eu mesmo fico olhando e pensando que não tá bom, porque eu

quero fazer uma coisa bonita, mas eu sei que não é por aí, porque você vai

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aprendendo fazendo, não tem outro jeito né, mas ainda tenho dificuldade. Mas

melhorou bastante porque no começo era um desastre. Ás vezes eu anotava as

coisas aqui, levava pra casa e ficava tentando fazer alguma coisa que ficasse

legal, e depois que chegou esse grupo novo de professoras, aí tinha sempre

alguém que queria fazer, aí a gente vai deixando. E eu adorei quando vocês

chegaram!

Eu acho que deu até vida pra creche. A creche mudou a cara, mudou tudo

na verdade, porque você vê pessoas que querem fazer algo diferente que quer

mudar, que quer colocar em prática aquilo que aprendeu. Nossa foi muito bacana.

Essa parte foi o que eu mais gostei porque a creche realmente mudou de cara.

Tanto que eu trabalhei no CECI e a gente vê a diferença em tudo, até na parte

física, no mobiliário, em tudo. Tinha coisa lá que eu via e falava: gente, vocês

ainda tão nesse tempo. Então foi muito bom. Eu falo que tem pessoas que não

querem nada com nada, mas tem pessoas que gostam né.

Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,

tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.

No começo, que eu não entendia nada de Pedagogia, pra mim era tudo

normal, era aquela coisa de cuidar mesmo, tinha a parte da saúde, da

enfermagem. Aí depois do magistério eu comecei a ter outra visão, comecei a ver

que não era só isso que a criança precisava, então aquela coisa de fazer muitas

trocas de fralda no dia, tudo muito limpo, não precisava nada daquilo. O

importante é a gente ver que a criança ta bem, brincando, está feliz. Então antes a

creche era a extensão do hospital né. E eu gostava muito da psicóloga da creche,

porque como ela não veio do hospital, ela tinha um olhar totalmente diferente. E

sabe que das pessoas que chegaram neste grupo de professoras novas, tem três

pessoas que eu destaco: você, a R. e a A. Foram as pessoas que mais ficaram

comigo. Foi uma pena que eu fui pro CECI, eu acho que eu perdi muito, na

verdade eu voltei no tempo, e a gente via o tanto que a creche área de saúde tava

à frente do CECI, e ainda bem que eu voltei. Eu gostava muito de lá,

principalmente do berçário, porque tem muita diferença do espaço do berçário

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para o maternal. No berçário é um grupo que trabalha bem, que também

conseguiu melhorar nessa questão de fazer projetos, mas não tinha também muita

cobrança né, a Diretora, na verdade não queria nem que fizesse. Eu lembro

quando a professora I. chegou lá com o computador dela e com alguns projetos,

nossa, a enfermeira já começava a cortar quando a gente sentava junto pra ver os

materiais. Aqui também tinha né, algumas coisas tinham que ser do jeito que as

enfermeiras queriam. O problema é que elas não queriam ouvir o outro lado,

porque poxa vida, se você ta vendo que tá chegando coisa nova, porque não

deixar espaço pras pessoas trazerem, mas elas não queriam, porque já era medo

né de perder o poder. Eu entendo que pra elas foi difícil mesmo. Porque aqui o

espaço era delas, a diretora foi escolhida a dedo, ela veio do hospital e essa

creche era dela né. E depois que ela aposentou e veio a outra diretora enfermeira

ficou pior ainda né, porque ela era arrogante, porque a primeira era autoritária,

mas tinha um carinho muito grande entendeu, então eu até acho que ela ouvia um

pouco mais a gente, e a outra trazia você pra perto dela, fazendo você pensar que

ela era boazinha, mas não era nada disso.

Pesquisador: Antonia, infelizmente nosso horário de entrevista está

terminando, vamos ter que parar, mas eu queria muito mesmo te agradecer,

queria dizer que a minha história de mistura com a de vocês um pouco, e não sei

se você vai se lembrar mas a primeira professora que eu conheci quando cheguei

na creche foi você, e eu me lembro que eu nunca tinha pegado um bebê no colo

antes, e eu via você fazendo tudo com as crianças com tanta tranqüilidade e

paciência e eu fiquei te observando em tudo pra poder aprender com você. E eu

poderia escrever esta história de muitas maneiras, poderia entrevistar muitas

outras profissionais que passaram por aqui, mas eu não quis, porque eu admiro

muito a história que vocês construíram aqui e por tudo que eu pude aprender aqui

com vocês.

Obrigada Carla, e eu também gostaria de falar uma coisa pra você. Eu te

admiro muito mesmo, do fundo do meu coração. Eu lembro uma época que você e

a R. formaram uma dupla no Maternal I, e eu achava muito bacana porque você

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não tinha nojo de nada, você metia a mão nas coisas, fazia cada coisa com as

crianças, e eu pensava assim, nossa uma moça tão bonita, estudada e tudo e

realmente gosta do que faz, faz de tudo pelas crianças!

Muito obrigada Antonia, por tudo!

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3º Transcrição

Data: 12/06/2013

Professora entrevistada: Eliana

Pesquisador: eu queria saber um pouquinho como que você ficou sabendo

desse processo seletivo, se foi um processo seletivo, se foi por concurso, se teve

prova, o que você fazia antes, como foi essa entrada sua na creche.

Eu trabalhava, era monitora de ônibus, sabe assim, numa escolinha que

tinha no Cambuí, e a gente ficava assim, no ônibus orientando as crianças, e

descia com as crianças, tinha um guarda-sol enorme que a gente descia se tava

chovendo, pra levar as crianças até o adulto que vinha buscar, e, tanto quando

levava pra casa, quando trazia pra escola, e.... a gente ia cantando com eles,

brincando, era monitor de ônibus mesmo, era essa minha profissão.

Pesquisador: quantos anos você tinha?

Ah eu comecei, eu acho que eu tinha uns 16, 17 anos, é, era monitor de

ônibus. E eu lembro que, quando eu comecei eu falava assim: nossa, eu ainda

vou ganhar pra fazer isso! Porque era muito gostoso, a criançada né, é gostoso.

Aí, lá mesmo tinha algumas colegas que falaram depois com o tempo que tava,

que ia ter o concurso, que ia abrir uma creche na Unicamp, que já tinha o CECI,

mas ia ter outra creche, que era pra área hospitalar, e que ia trabalhar meio

período, ainda tinha isso né, naquele tempo. E aí todo mundo resolveu fazer

inscrição, daí eu fui perguntar pra minha sogra, que trabalhava no CAISM, e ela

falou “Ah, vai ter mesmo”. Aí eu lembro que no último dia eu vim fazer a inscrição.

Aí fiz a inscrição, nós fizemos a prova. Na época tinha a prova, depois tinha uma

dinâmica, que eles chamavam e a gente fazia uma dinâmica, eu lembro que já foi

com a R. que era a diretora na época, tinha, ... ah, quase todo do mundo da época

tava: a E., a E. acho que foi a última pessoa que conversou comigo, e eu não me

esqueço que tava eu e a Maria Queiróz, se não me engano, e, depois tinha essa

dinâmica, e depois a gente fazia uma entrevista sozinha, que no meu caso foi com

a E., que era a última coisa, e daí somavam-se essas notas que eles davam, tal, e

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aí eu não lembro muito bem minha classificação, eu sei que logo depois, porque

nessa época ia chamar muita gente, veio até algumas meninas do CECI e tal, e aí

nós começamos na creche, e eu lembro assim, que no começo não tinha quase

criança, e eu tive que vir, até vim, fiz o aprimoramento, tal, mas eu não consegui já

na época ficar porque a Unicamp tava em greve e eu não consegui fazer os

exames que tinham que ser feitos, bem naquela época acho que ficou 60 dias de

greve, acho que era a mais longa, tal, nós tivemos que esperar, e aí depois nós

começamos, na época assim, não tinha, tava-se fazendo matrícula, logo

começaram as crianças, e eu ficava muito assim, é, ajudando no começo que eu

cheguei, e depois logo eu já peguei uma turminha no maternal II, na época a gente

ficava muito tempo com a mesma turma e com a mesma colega, demorava assim

pra trocar. Só que assim, era tudo muito diferente né, é assim, a gente brincava

porque hoje a gente lembra parecia Buffet mesmo, sabe, aquelas coisas que

sobravam de aniversário a gente trazia, colocava tudo muito no alto, a gente não

tinha uma visão assim, era o que a gente, assim, uma ia passando pra outra, é o

que se tinha. Mas a gente já tinha alguma sensibilidade, alguma noção, porque

quando a gente começou a estudar que a gente fazia porque assim, eu falava

assim “nossa a gente fazia isso e eu não sabia muito bem por que, porque a gente

tinha que mostrar pras crianças, mostrar o que era da natureza, mostrar o mundo,

e a gente com o tempo ia vendo a concretização do aprendizado conforme eles

iam crescendo, ia mostrando as coisas pra eles, e eles iam aprendendo, vendo o

desenvolvimento de cada um, era assim.

Pesquisador: quando você entrou, você tinha acabado de fazer o ensino

médio, e você não fez magistério? Como foi?

Não fiz magistério, porque na verdade pedia o ensino médio e cursando

ainda, e na prova tinha assim, eles pediram alguma coisa de matéria de

magistério, eu lembro que tinha alguma coisa de Piaget que eu fui atrás de um

livro pra estudar, de uma prima minha que tinha feito magistério, porque eu nunca

nem tinha ouvido falar de Piaget naquela época, nada disso porque eu não tinha

estudado nada disso, e....., mas caiu muita coisa da área de saúde, porque na

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época era muito assistencialista porque eram as enfermeiras.... então caía assim ,

eu lembro nitidamente da minha prova de cair assim: as vacinas que uma criança

é obrigada a tomar no primeiro ano de vida, e eu sabia porque eu já tinha meu

filho, na época.

Pesquisador: você já tinha se casado?

É, eu casei com 18 anos. Então, eu lembro que caiu isso, caiu como

dedetizar areia, caiu umas coisas assim que era típico da área da saúde, mas caiu

alguma coisa de alguns livros que eles pediram pra ler. Eu lembro que caiu sobre

sexualidade infantil, que era um livro que eu não lembro o autor, mas eu lembro

que na dinâmica eu tava muito nervosa, com medo, e eles me fizeram uma

pergunta, e eu lembro que eu não fui muito bem na prova, assim, tirei a nota que

precisava tirar pra passar, mas na dinâmica minha nota melhorou muito porque na

verdade a R. me perguntou uma pergunta sobre a sexualidade infantil, como eu

agiria no caso e era justamente o que eu tinha lido, a parte que eu tinha lido do

livro que eu me interessei muito, tal, e que eu fui muito bem no que ela perguntou

e foi quando minha nota melhorou. Então caía alguma coisa de teoria, mas caía

muita coisa sobre saúde, enfermagem, e foi assim.

Pesquisador: e exigia alguma experiência com criança?

Exigia. A gente tinha que trazer uma carta da instituição onde você

trabalhava, e assim, essa carta podia ser, como a minha escolinha lá não era

registrada, porque antigamente tinha muito isso né, então podia ser da dona, da

proprietária da escola, ou então eu lembro de colegas que trouxeram uma carta

que trabalhava de babá, sabe assim, não precisava ser uma coisa oficial, não

precisava estar registrado na carteira, e na época eu não era mesmo nem

registrada, eu tinha um contrato de trabalho de monitora de ônibus. Então foi onde

eu trouxe essa carta, e era só o que precisava, e muita gente chegou cursando o

ensino médio mesmo. E tinha algumas colegas nossas que fizeram o concurso

antes e que entraram pra trabalhar no CECI e o concurso de lá era de técnico de

enfermagem, pra enfermeira, não era pra professora.

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Pesquisador: mas pra atuar com as crianças?

É. Porque era bem assistencialista mesmo e porque a creche era direito da

mãe né, não era direito da criança. Então era assim, a mãe tinha o direito e queria

um lugar pra deixar seu filho, tanto é que a gente seguia rigorosamente os

horários da mãe, o horário da mãe almoçar. Se mudou o horário do restaurante,

mudou o nosso também. Se as mães saíam em certo horário por causa do

fretado, a gente saía também. Seguia rigorosamente os horários da mãe.

Pesquisador: e você lembra assim de uma discussão que teve bem no

começo quando abriu a creche que iria funcionar de noite?

Lembro. No meu contrato ta, que se precisasse, a gente ia ter que dar

plantões esporádicos, e se precisasse, eu era uma das pessoas que foi contratada

para trabalhar à noite. Se tivesse a demanda, se as mães se interessassem na

época, só que daí não aconteceu. Nunca abriu à noite, não teve o número

suficiente de crianças, mas a estrutura da creche era pra abrir à noite, já tinha até

as funcionárias certas que iriam trabalhar à noite, não sei se eram todas que

entraram na época, mas o meu contrato é específico isso. Mas na época você não

se atentava pra nada disso, porque o que você queria era começar a trabalhar,

ficar com as crianças. Na época era recreacionista.

Então a gente fazia assim mais era a parte de cuidar, muito cuidar e mais

aquela coisa assim da recreação mesmo, a gente tinha muita coisa assim, toda

data tinha festa da primavera festa não sei do quê, brincadeira não sei do quê,

porque toda data comemorativa tinha que ter aquelas brincadeiras porque era

recreação com a criança a criança brincava muito, então a gente fazia dinâmicas

no parque, porque tinha que ser assim porque era recreação, e a criançada..... ah,

criança é sempre criança né, em toda época. E eu não sei, a gente brincava muito

mais com eles do que o que a gente vê hoje, mesmo no maternal I que é uma

faixa etária que a criança não brinca sozinha, ainda precisa brincar com ela né, e

mesmo no Maternal II que ela já brinca sozinha, parece que a gente brincava

muito. Ah, era muito divertido, tanto é que a gente comenta que não vimos o

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tempo passar, porque eu acho que quando a coisa foi boa você não vê passar. E

nós passamos nossa vida inteira aqui, porque você passa todos os momentos

bons, as dificuldades, nós passamos tudo aqui. As lutas que tivemos que

correr atrás de muita coisa pra mudar, e ao mesmo tempo era tão bom. E quando

chegavam as colegas novas, traziam experiências, porque nós ficamos muito

tempo só nós aqui, tinham as contratadas da Funcamp mas era só nós, e assim,

ficamos muitos anos só, eu trabalhei praticamente 12 anos com a mesma colega,

tinha assim no módulo, mas a gente não trocava, não tinha a experiência que tem

agora, e... eu lembro bem do primeiro concurso que teve, depois acho que de 16

anos, e que chegaram as colegas novas assim e traziam ideias novas, coisas

novas, eu acredito que elas aprenderam com a gente e nós aprendemos também,

mas era muito bom. Elas achavam muitas coisas estranhas, algumas elas

elogiavam, muita gente veio de trabalhos mais difíceis, creches que tinham muitas

dificuldades.

Pesquisador: Você lembra de alguma coisa que elas viam e achavam

estranho?

O que elas estranhavam muito era a parte de saúde, porque nós tínhamos

as enfermeiras que ficavam aqui o tempo todo. Muitas vezes a gente dava

remédio, por exemplo, sulfato ferroso para os bebês, eram as professoras que

davam meia hora antes do almoço, mesmo tendo um monte de enfermeira na

creche. Termômetro, era a gente que colocava. Inalação, porque falava-se que a

criança ficava mais confortável com a professora, que era recreacionista, então

era a gente que acabava muitas vezes fazendo, e elas achavam isso tudo muito

estranho, na realidade delas não existia isso. E nesse concurso a categoria ficou

um pouco dividida porque o pessoal da equipe técnica e também algumas

professoras queriam que nesse concurso exigisse “pedagogia cursando”. Só que

outra parte não achava justo porque a gente tinha várias colegas que só tinham o

magistério, que eram da Funcamp e iam ser mandadas embora, e não poderiam

prestar o concurso por causa disso. Então foi outra luta que a gente teve,

fizemos mobilizações, paramos em frente à reitoria. E o pessoal achava que a

gente tava retrocedendo, mas na verdade era por causa das colegas, pois muitas

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delas acabaram passando e estão com a gente até hoje. Então o concurso aceitou

o magistério. E naquela época a gente já tava também fazendo o magistério.

Aí nós terminamos o magistério e ficamos assim um tempo. Depois que nós

começamos a fazer pedagogia que ainda tem uma última turma que ta acabando

agora. Mas na época, tinha pressão de todo lado, porque falavam que a gente

tinha que estudar, mas ao mesmo tempo quando a gente reivindicava alguma

coisa, por exemplo, quando a gente via vocês questionando as coisas e a gente

questionava também e dizia que a gente também tava estudando, tinha gente da

chefia que falava: mas quem ta falando que vocês têm que estudar? Vocês não

sabem se vão mudar na carreira. Tinha umas coisas assim. Mas ué, o estudo

nunca é perdido né, o conhecimento né, então era a resposta que a gente tinha,

porque tinham algumas professoras que queriam estudar pra prestar outros

concursos né, mas tinha um grupo que já tava aqui há muitos anos, e que a gente

não queria sair da UNICAMP, então eu lembro que eu comecei fazendo o curso,

era normal superior, e o pessoal falava que esse curso não iria valer mais, e eu

queria fazer pra poder melhorar meu salário, eu não queria sair da UNICAMP, mas

eu poderia prestar o concurso do PRODECAD, porque lá o pessoal ganhava

melhor, aí eu até perguntei pra Diretora de lá se esse curso valia, e ela me disse

que sim, que era pra eu fazer. Só que eu tava fazendo, era eu, a Flor, mais um

pessoal. Aí o que aconteceu: no meio do curso eles mudaram a grade do curso,

porque realmente não ia mais ter esse curso. Aí aumentaram o curso em 6 meses,

e aí virou Pedagogia. Mas eu cheguei a prestar o concurso do PRODECAD e

passei. Só que antes eu tava fazendo estágio e no estágio eu descobri uma coisa:

eu não queria trabalhar com as crianças grandes, sabe quando você descobre que

gosta dos pequenininhos? Eu sentia tanta falta da creche, daquele barulho de

criança pequena brincando, sabe! Eu não gostava muito dos grandes. Aquela

coisa assim do bebê que fala com você com o olhar, o maternal I que me

encantava mais porque no maternal I tudo acontece, você vê a concretização do

aprendizado em cada coisa, começam a falar, as gracinhas, começam a comer

sozinhos, controle do esfíncter, então, todo aquele processo. Tanto que tinha

gente que reclamava que sentia muita dor no corpo quando ficava lá, e eu nunca

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senti nada, acho que é porque eu gosto muito. Acho que a criança tem uma

coisa que te ensina que é nunca levar nada muito a sério.

Uma vez eu tava filmando uma criança pra um estágio do magistério. E eu

fui filmar uma professora do concurso novo que chegou trocando uma criança, e

ela me falou assim: “ mas você vai me filmar nessa atividade decadente?”. E eu

pensei meu Deus, coitada dessa criança que ta na mão dessa professora. Porque

tudo o que você faz é uma atividade, você conversar com a criança enquanto ta

trocando... A criança vai passar 1 tempo da vida dela usando fralda, então pra ela

aquele momento é importante. Então aquilo eu achei um desrespeito tão grande

com a criança , porque pensa bem, a mãe pega o filho, que é o bem mais precioso

que ela tem e te entrega, pra você tomar conta, educar, cuidar, e essa professora

falou aquilo. E ela já tinha entrado na creche com pedagogia e acho que já tinha

mestrado, mas não tinha nenhuma sensibilidade de perceber que isso também é

uma atividade. Gente, o que é trocar uma fralda! É um carinho para a criança,

você ta cuidando dela. Então ao mesmo tempo que entraram profissionais que

enriqueceram a creche, muitas que vieram a gente falava, nossa, essa não vai

ficar, não é isso que ela quer, trabalhar com criança pequena. E a maioria foi

embora mesmo, porque não era aquilo. Às vezes viam a gente penteando o

cabelo das crianças e falavam, ué, mas virou salão de beleza aqui! Mas não era

nada disso, a criança pedia pra você prender o cabelo dela, que que tem demais?

É um cuidado né, não dá pra separar. E eu não sei como que consegue separar

as coisas, porque a criança é um todo, você não separa o cuidar e o educar.

E tem outra coisa que eu vejo de diferença entre as professoras mais

antigas e as novas que é assim, o chamar atenção. Porque assim, eu não gosto

que me chamem atenção na frente dos outros então, não são todas, mas eu já vi

muitas vezes as colegas levando a criança pra um canto pra conversar e chamar a

atenção quando precisa, então eu vejo que isso a gente aprende mesmo com a

experiência sabe.

Pesquisador: E porque você acha que pensa assim, nessa sua maneira de

enxergar o trabalho, você acha que vc pensava assim desde quando vc chegou

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aqui, ou foi por conta da experiência, da formação, o que fez vc ser a professora

que vc é hoje?

Olha, eu tinha uma professora da faculdade que dizia assim: que em uma

turma de pedagogia ela conseguia ver quem tinha sensibilidade e seria uma boa

professora e quem não ia, porque às vezes você tem muita teoria mas também

você não teve a prática. A prática te ajuda sim, mas eu acho que a sensibilidade, o

cuidado ao outro, o respeito à criança, então um pouco eu acho que já vem com a

pessoa. A experiência ajuda, mas às vezes a gente vê por exemplo, uma

estagiária, sem experiência, mas que você vê o carinho, a dedicação que ela tem,

então você vê que ela vai ser um ótima professora. Lógico que também tem gente

que vai trabalhar a vida inteira e não vai ter essa sensibilidade que eu to falando.

Então eu acho que tem que gostar mesmo de trabalhar com os pequenos. Eu não

consigo me ver em outro lugar. O meu medo das mudanças, cada vez que

mudava um reitor, uma direção, o meu medo era me tirar das crianças, eu não

consigo me ver fazendo outra coisa. Ficar com as crianças pra mim é tão fácil,

que mesmo com as mudanças, as novas exigências de trabalho eu sempre achei

que tudo eu podia aprender, porque fazer o que eu gosto eu já faço, então o resto

eu aprendo. Então eu já vi professora com muito conteúdo, mas que se ficar 5

minutos sozinha com um grupo grande de crianças ela fica apavorada. Então, pra

mim, eu não vejo a hora passar quando eu to com as crianças, até hoje. E o

momentos mais difíceis que eu tive na minha vida, eu pensava assim: meu Deus,

como eu queria ta lá na creche com as crianças. E de um tempo pra cá, quando

eu tiro férias, eu sinto falta desse ambiente. Esse ambiente pra mim é o mais

saudável que tem. Muita gente pergunta como a gente consegue ficar aqui nessa

choradeira, mas eu não tenho essa visão, eu gosto do berçário, dos bebês, é o

local que eu sinto menos cansaço, parece que recarrega minhas energias. Lógico

que tem época que a gente fica mais cansada, quando ta chegando perto das

férias, mas não é uma coisa assim.... eu acho que eu nasci pra isso. É um

trabalho que nunca fica monótono, nunca fica rotineiro. E eu não conseguiria ficar

em um lugar pra trabalhar parada.

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Pesquisador: Bom, vamos voltar a falar sobre a formação profissional, em

que ano você foi fazer o magistério?

Foi mais ou menos 2002, 2003. E logo depois a gente foi fazer pedagogia,

porque daí começou aquela conversa de que ia ter que fazer pedagogia, que o

magistério não ia valer mais. Então, nem todas fizeram logo, mas eu, a Flor, a

Ana.

Pesquisador: E por que vc foi fazer o magistério? Porque em 96 saiu a LDB,

então pra vocês irem estudar, teve alguma discussão nesse sentido? Teve alguma

pressão?

Bom, a equipe técnica não queria que a gente fosse fazer, porque o que

prevalecia era a enfermagem. Até teve uma reunião que a gente questionou o

negócio da inalação, que a gente não queria mais fazer, porque a gente tava

estudando pra ser professora e elas disseram: mas quem falou que vocês tinham

que ir estudar? E a gente queria mostrar que a gente tava estudando, que queria

fazer outras coisas com as crianças. A gente começou a estudar e queríamos

mostrar que o professor não é pra fazer isso, ainda mais com tanta enfermeira

aqui. Na época tinha tanta enfermeira na creche. E aí aconteceu comigo de

questionar a enfermeira e ela me dizer que era uma colaboração que eu tinha que

dar e eu falei que não era, porque uma criança minha teve que fazer 15 sessões

de inalação e eu fiz as 15, e nessa época a gente começou a fazer projeto

pedagógico, e às vezes tinha que parar com a atividade pra ir fazer inalação, e a

gente começou a questionar.

E o estudar mesmo, Carla, foi assim, tinha um boato assim, que quem não

fizesse o magistério ia ter que sair da creche, então pensa o medo que ficou o

povo! Como que a gente ia largar as crianças! Mas era só boato porque teve uma

que nunca quis estudar e tá aqui até hoje. Mas eu fiquei com tanto medo de ficar

longe das crianças que eu fui fazer. E logo que eu terminei já iniciei a Pedagogia.

Mas teve uma que nunca foi fazer e que ta aí até hoje, nunca aconteceu nada com

ela. E a gente ganhava tão pouquinho na época que a gente foi pedir ajuda na

Unicamp pra poder pagar. E hoje é que a gente vê que ganhava muito pouco, mas

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aquele pouco era tão bom porque a gente era tão feliz no que fazia, então... Então

todo mundo foi estudar, e eu acho que a maioria acho que foi por causa da Lei

mesmo, que a educação infantil ia fazer parte da educação básica. Aí fizemos o

magistério e todo mundo fico feliz que ia ficar na creche. E aprendemos tanta

coisa, e assim, tinha coisa que a gente via e ria porque a gente tava lá na aula e a

professora falava alguma coisa e uma olhava pra outra e ria, porque ela falava de

coisas que a gente fazia mas não sabia o porquê. E ela tava mostrando pra gente,

a teoria! E aí, quando a gente ia fazer, por exemplo, um relatório de avaliação da

criança, a professora ensinava a gente a fazer este relatório dento das teorias, e

muitas vezes a gente já fazia, ou era a pedagoga da creche que fazia, porque lá

no CECI era diferente, porque era a pedagoga que escrevia, mas na CAS a gente

já escrevia nessa época, então era tudo dentro do que a gente falava. E às vezes,

a psicóloga da creche por exemplo, perguntava pra gente o que a gente achava

de alguma coisa sobre a criança. Aí no outro dia, ela tava conversando com a mãe

e falando tudo o que você falou pra ela! Então pegava a fala de sua experiência,

porque era você que conhecia a criança! Então a gente ria muito. E nós não

fizemos o magistério todo mundo no mesmo lugar. Uma turma fez em Paulínia e

outra turma fez em Hortolândia. Mas todas nós víamos que a gente fazia as coisas

com as crianças, não sabia direito porque tinha que ser feito, mas já tinha a

sensibilidade pra fazer.

Pesquisador: E o que você consegue trazer do magistério para a sua

prática? Mudou alguma coisa depois que você fez o magistério ou não?

A prática mudou porque eu comecei a registrar, eu via as coisas que eu era

falha, porque às vezes a gente fazia algumas coisas que não tinha nada a ver, e a

Pedagogia me ajudou a entender o trabalho dentro da sala e a ver o

desenvolvimento das crianças, que hoje eu consigo ver, e antes as coisas

passavam por mim e eu não conseguia perceber, eu consigo estudar aquela teoria

e visualizar na prática com as crianças.

Porque tinha muita atividade que a gente fazia, por exemplo, atividade de

percepção que a gente fazia com os pequenininhos, tinha muita professora do

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concurso novo que acordava criança pra fazer atividade e muitas vezes eu falava

em reunião que não deveria ser assim, e eu não era compreendida, porque aí a

gente tava vendo só a teoria e jogando a criança fora, porque a concretização do

aprendizado é assim, por exemplo, você mostrar uma fruta pra criança, depois

mostrar no livro, depois a criança pegar, experimentar, enfim, e depois a mãe vir te

contar que passou na feira com o filho e ele reconheceu aquela fruta que você

trabalhou, isso é concretização do aprendizado, é a criança aprendendo com

alegria! Porque o projeto principal da creche tem que ser a criança feliz na creche.

A escola boa é aquela que a criança ta feliz. Ela estando feliz ela aprende. Então

quando eu via as professoras tirando fotos das atividades e as crianças chorando,

eu pensava: isso ta errado e a teoria tem que mostrar pra gente que isso ta

errado. Muitas vezes, em algumas festas que a gente fazia, Carla, a gente

expunha as crianças, e eu aprendi isso com a teoria e prometi pra mim mesma

que nunca mais iria fazer isso. A gente queria mostrar pros pais, porque eles

ficavam muito felizes de ver, e a gente esquecia das crianças. Então era um

sacrifício muito grande aqueles ensaios para aquelas festas! E a partir do

momento que eu vi na teoria que a criança não precisa disso, que na verdade fica

tudo lindo, mas a que custo você fez aquilo! A depois que a gente estudou isso

mudou. Tinham as festas, mas a gente começava a dançar, por exemplo, e

ficava observando as crianças, e a gente começava a imitar os passos deles!

Então era tão mais fácil e tão natural porque vinha deles! E é tão engraçado

porque as crianças do Maternal I querem mostrar tudo o que eles aprenderam,

então a coisa fluía que era uma beleza. Então eu aprendi com a teoria nesse

ponto. Porque no começo.... nossa.... a gente pegava pesado com as crianças pra

ensaiar. As crianças de quatro anos dançavam a quadrilha inteirinha, com os

passos tudo, pensa no custo que foi aquilo. E peça de teatro que eles

apresentavam! A gente expunha eles, e eles não queriam. Eu lembro de uma

menininha que depois que eu fui aprender a teoria, de como a criança tem seu

tempo pra se desenvolver, e às vezes você força isso, então essa menina ensaiou

tudo, mas no dia da festa ela vestidinha de bruxa tinha que entrar, e ela não

entrou e eu fui ver o que tava acontecendo e ela tava de grito porque não queria

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entrar. E assim, chefia pressionando porque precisava entrar, e eu falei assim, não

quer entrar, então não vai entrar né. Aí mudou o repertório da apresentação e ela

não entrou. Porque não tava sendo nada prazeroso pra criança, era um estresse

pra ela, mas tinha que ser feito. Acho que na minha época também fizeram isso

comigo, porque eu tenho muito trauma de muita coisa e eu acho que é disso.

Então com a teoria eu aprendi isso, que a criança, primeiro ela te ensina, então a

gente tem que observar o que ela traz, e depois, dentro dos interesses dela você

consegue ensinar tudo. Mas se não for do interesse dela, se não for de acordo

com a faixa etária, se você tiver forçando a barra pra mostrar porque é bonito, ta

tudo errado. E isso eu aprendi não só com a teoria, mas com muito do que vocês

trouxeram pra gente sabe, que nós conseguimos mudar também a mentalidade da

equipe técnica né, porque as festas também geravam muito lucro, sabe, então

tinha a dança, mas tinha que acabar logo a dança, pra começar vender logo as

coisas, sabe, e até hoje eu vejo isso por exemplo, na própria escola do meu filho,

então ainda é muito forte isso.

Pesquisador: É, eu penso que talvez, não é que nós ensinamos vocês. Nós

chegamos com um pensamento e vocês já estavam estudando e começando a

pensar diferente, então nós nos juntamos e tivemos mais força.

É verdade, e isso foi muito bom! Hoje quando eu passo e vejo os espaços

todos modificados, aquelas coisas todas preparadas realmente para a criança,

porque antes o espaço era preparado para a mãe, pro profissional, pra ser mais

fácil pra ele, pra criança não estragar, era tudo no alto, tadinhos eles não viam

quase nada, no começo era assim, e parecia um Buffet. Pensa numas festas que

eram um verdadeiro Buffet! Hoje não. É tudo coisa deles, coisa simples, que eles

se identificam. Mas também era a visão de criança que tinha na época né. E

assim, se você pegar nossos materiais antigos, assim, umas pastas que a gente

ainda tem, tinha assim, desenhos sabe, um cachorro por exemplo, não tinha a

imagem do cachorro de verdade, era um desenhinho, e eu desenhava!! E as

atividades, era assim, não tinha um tempo pra fazer a atividade, era assim, ah,

tem que fazer então vamo fazer logo, põe a mão logo aí na tinta, o que era aquilo!

E hoje não, você curte cada momento, você observa a criança colocando o

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dedinho na tinta, sentido, você vê o olhar dela. É muito diferente. Eu lembro

que antigamente eu também tinha assim, moldes de máscaras, tipo, do coelhinho

da páscoa, eu pintava o rostinho deles, tudo isso eu fazia até pouco tempo, e

depois que as meninas fizeram o curso da R., elas falavam: “O Eliana, não é mais

pra fazer isso!” Porque eu não fiz o curso. Pasta com molde de EVA, eu tinha

também e as meninas também falavam que não era mais pra usar. Mas mesmo

que eu não fiz o curso eu tentava ver aquilo que as meninas traziam pra poder

mudar também. Mas hoje em dia, de vez em quando alguém ainda vem e me

pede alguma coisa dessa pasta! Porque eu sou da época que a gente fazia

chapeuzinho de jornal e as crianças iam embora usando no dia da independência!

Hoje ninguém mais faz isso, mas as crianças adoravam brincar! Então parece que

também ficou uma coisa assim, ninguém sabe muito bem mais o que pode fazer

com as crianças pequenas! Hoje no berçário, por exemplo, eu trabalho muito o

“cesto do tesouro”, que foi uma coisa que veio com o curso da R. que valeu pra

caramba! Você percebe a alegria da criança de mexer nos materiais diferentes do

cesto. Mas eu também vejo que muitas coisas as crianças perderam com esse

negócio que às vezes a gente não sabe mais o que pode ou não fazer.

Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais algum curso,

alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o trabalho na

educação infantil?

Bom, teve o magistério, a pedagogia, o curso da R. que eu não fiz, mas

aprendi muito com as meninas que fizeram, e as jornadas que tinham aqui, tinha

uns cursos que às vezes divulgavam e a gente fazia sorteio pra poder participar,

mas nada muito específico para a formação.

Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,

tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.

Olha eu acho o seguinte, mudou-se muita coisa, mas ainda se tem alguma

coisa da creche área de saúde, lá do início. Pela cobrança das mães, que não

entendem muito que a creche ta mudando, eu acho que é uma coisa lenta, se vê

no caso das férias por exemplo, né, e assim, até hoje, as minhas crianças que

davam plantão na época, as crianças depois de fazerem quatro anos, passavam

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pro PRODECAD, e ali não davam plantão, mas as mães continuavam sendo da

área de saúde, então aí elas se organizavam porque não tinha pra onde trazer a

criança, e quando a gente falava isso, às vezes pra equipe técnica, elas falavam

que não importava porque a gente era da área de saúde. Quando a gente

reclamava dos atrasos da mãe, e isso até hoje é assim, a gente escuta: “ah mas

essa mãe trabalha no centro cirúrgico”, então, eu acho que se caminhou muito,

melhorou-se muito, hoje as mães vêm dar os remédios quando precisa, mas ainda

temos um laço com a area de saúde muito forte. As próprias mães por saberem

desse laço, exigem mais dessa creche do que do PRODECAD por exemplo, elas

cobram muito. E pelas mães terem conseguido essa conquista de ter a creche, a

gente sabe hoje que a creche é direito da criança e não da mãe, mas elas ainda

vêem como direito delas. Eu acho que devagar vai mudar, mas ainda tem isso.

E com relação à chefia eu acho que já mudou totalmente nossas práticas.

Eu acho que a gente tem uma autonomia hoje, a própria enfermagem incentivava

as mãe as passar algumas informações sobre a criança primeiro pra elas, e isso

prejudicava o trabalho porque nosso trabalho é feito com a confiança das mães na

gente também, mas acho que isso mudou muito. A enfermeira que tem hoje ela

não se intromete em nada em nosso trabalho, ela só contribui e atua na área dela.

Pesquisador: Bom, queria agradecer muito, obrigada por participar do

trabalho.

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4º Transcrição

Data: 11/06/2013

Professora entrevistada: Flor

Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco

sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o

que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.

Você sabe que eu me lembro. Eu passei em vigésima primeira no concurso,

atrás da V. Nós conversávamos uma com a outra e engraçado que tinham duas

turmas, uma era do DGRH e a outra era do HC.

Pesquisador: Como assim?

Assim, era como se cada órgão tivesse ficado com uma turma, tivesse

separado, como se fosse o registro da gente, não lembro direito, eu só sei que por

exemplo, pra votar, eu tinha que ir votar no hospital, e outro pessoal votava no

DGRH, era diferente. Quem me entrevistou foi a R. (diretora). Antes eu já

trabalhava com criança, em uma escolinha, fiquei lá pouco tempo, mas eu

trabalhava.

Pesquisador: Quantos anos você tinha?

Ai meu Deus! Eu tinha uns vinte e cinco anos mais ou menos. E eu fiquei

muito feliz quando eu vi meu nome na lista dos aprovados. Eu tava tão apreensiva

que eu olhei primeiro na lista dos reprovados. Falei Ah, meu nome não está lá,

agora então vou ver nos aprovados! Então pra mim foi uma surpresa. Eles logo

me chamaram, acho que passou um mês. E quem me incentivou pra fazer esse

concurso foi o meu colega, o E.. Ele olhou no jornal e me disse que era pra

recreacionista. Aí eu falei, acho que eu vou prestar. Daí estudei né, mas acredito

que não tinha assim, o que você estudar, mas mesmo assim eu comecei a

estudar, a ver principalmente que era uma área hospitalar, de zero a tal idade, eu

sabia até as vacinas, hoje eu não sei mais, mas eu sabia direitinho. E... não tinha

muitas pessoas prestando porque na minha época o serviço público não era tão

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bem remunerado como é hoje em dia entendeu, então eu lembro que tinham umas

duzentas, trezentas pessoas, e passei! Daí fiquei muito feliz quando eles me

chamaram pra fazer exame de sangue e tal, e daí nós iniciamos na creche.

Tudo novo, muita gente diferente, eu sempre fui muito tímida, então tinha

muita gente diferente que eu tinha que conversar. É... eu lembro, deixa eu ver... de

professoras também negras, deixa eu ver se eu não to sendo maldosa, tinha eu e

Maria Queiroz, só! Eu lembro da primeira colocada que passou se não me engano

foi a A., a A. acho que passou em décimo, só sei que foi um pessoal bom aí. Daí

nós fomos conversando, eu lembro que quem nos recepcionou foi a diretora e a

pedagoga, as duas enfermeiras, é, no início eu lembro dessas. Elas conversaram,

nos levaram pra conhecer a creche, cada ambiente. Porque era uma coisa que

nenhuma escolinha tinha, e ainda não tinha criança na creche. Então teve todo

esse momento de preparação, nós conversamos por vários dias, nos

apresentamos, e elas deram um curso pra nós.

Pesquisador: E você se lembra desse curso, como foi?

Ai, não lembro...mas lembro que elas falaram sobre a criança, falaram que

eram mães do hospital, depois teve uns dias que elas trouxeram muitos materiais

e nós enfeitamos a creche. Antes eu já trabalhava com criança, em uma escolinha

como auxiliar, mas era muito diferente. Uma creche nova, cheirava tudo a novo,

um espaço totalmente diferenciado. Eu lembro que até suspirava, eu tava

encantada, porque era uma coisa que nenhuma escolinha tinha. E quando a gente

chegou ainda não tinha criança, então nós enfeitamos a creche. Pintamos,

recortamos, colamos. E ficou tão bonito! Eu lembro que em uma das salas tinha

um enfeite de coração com um zíper, e desse coração saía um monte de

coraçõezinhos . Muito legal! Eu gostei muito e isso ficou bem fixo na minha

memória. E a minha primeira companheira foi a Maria Queiróz. Nós ficamos, eu

não lembro se foi a ultima ou a penúltima sala do Maternal I. Na minha turma

eu não lembro do nome das crianças, mas a companheira eu lembro. E nós

ficamos juntas um tempão. Porque era assim antigamente, nós ficávamos com a

mesma companheira pelo menos dois anos. E quando sua turma fazia aquela

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transição, por exemplo, do maternal I para o maternal II, você ia junto com a

turma. Praticamente você entrava com a turma e saía com ela. Quando sua turma

saía para outra escola, aí você voltava ou para o maternal I ou para o berçário,

tinha essa escolha. A chefia falava que as pessoas tinham “perfil”. Assim, tinham

pessoas que tinham perfil para trabalhar no berçário, mas na realidade era a

aparência que contava. Eu elas falavam que tinha perfil para o maternal I e o II.

Berçário não. Não era só pra mim que elas falavam não. Mas também eu nunca

me propus a trabalhar no berçário, e tinham pessoas que gostavam.

Pesquisador: Mas por que te veio à memória essa questão da aparência?

É. Porque quando nós entramos eu era particularmente bem simples,

porque eu venho de um lar simples, assim, no trajar mesmo, entendeu? Então, as

meninas do berçário, eram, vamos dizer assim, mais charmosas. Mas era um

lugar que trabalhava-se muito também! Cada sala tinha dez crianças! O pessoal

trabalhava muito no berçário. E antigamente no berçário não tinham aquelas

gradinhas, era aquele espaço, lá, o quadrado, então os bebês passavam ali por

baixo, e era uma loucura, porque o pessoal ficava correndo atrás dos bebês.

Então, ao passar do tempo foi havendo aquelas reformas, elas foram nos ouvindo,

vendo que era melhor mudar o espaço, colocar um portão, e elas mesmas foram

vendo a necessidade do ambiente. Mas no maternal I nós éramos um pouco mais

livres na escolha de atividades, a pedagoga muitas vezes ensinava, muitas vezes

nós trazíamos coisas. Mas era muito assim, cuidar mesmo! Cuidar, higiene.

Depois de um tempo eu lembro que nós pedimos luvas. Não tinha ventiladores

nos banheiros, respiradores, e isso fazia muita falta. Então imagina um ambiente

onde você troca criança o tempo todo, então ficava aquele cheiro né. A

higienização do chão das salas! Nossa, você não via pó. Tinha muita preocupação

com a limpeza.

Pesquisador: Bom, vamos voltar um pouquinho. Você me contou que antes

de entrar na creche você tinha trabalhado em uma escola. Nesse período você já

tinha o magistério?

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Não ainda não tinha.

Pesquisador: E por que você decidiu então trabalhar com crianças?

Porque eu já tinha um pouco de experiência né. Lá na escolinha eu não era

professora eu era auxiliar de sala e então eu vi que eu gostava de trabalhar com

criança, e antigamente não se exigia a formação. Tanto que no concurso daqui

precisava só ter a experiência e não necessitava nem estar em registro em

carteira. Podia ser uma carta da escola, podia até ser uma carta dizendo que você

era babá, e teve meninas que trouxeram. Então não tinha exigência nessa área. E

de estudo pedia acho que o colégio completo.

Pesquisador: Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com

as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?

Por incrível que pareça nós já fazíamos algumas atividades. Mas era muito

assim cuidar mesmo, muita higienização, era pautado muito no cuidar mesmo e

nós trocávamos muitas ideias entre nós sobre o que fazer na sala de atividade,

fazia muita coisa com giz de cera, eu lembro que nós cantávamos muito,

contávamos muitas histórias de livros, eu sempre tive materiais de feltro que era

algo diferenciado na época, aquele famoso flanelógrafo, algumas das meninas

tinham fantoches, então eu lembro que a creche começou a comprar isso, livros, a

pedagoga muitas vezes trazia as atividades e nós desenvolvíamos, então nós

trocávamos muito entre nós, então ficou aquele grupo ali das amigas. Eu vejo

sempre as crianças daquela época como felizes, nós não éramos tão didáticas,

mas nós éramos amorosas, eu via pelas salas né, na maneira como recebíamos

as crianças. Tinham crianças também muito trabalhosas, que nós muitas vezes

não sabíamos o que fazer. Eu tive uma menininha que era um “show”. Ela gritava,

fazia birra, se jogava no chão, ah não sabíamos o que fazer com ela. E tinham

outros também que eu não lembro mais essa menina me marcou. E hoje eu vejo

ela e está uma moça.

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Pesquisador: Bom aí passou um tempo e vocês tiveram que fazer o

magistério. E o que estava acontecendo na creche nessa época em que as

recreacionistas voltaram a estudar?

Olha eu não me lembro muito, mas eu acredito que foi porque disseram que

se não tivesse magistério a gente não ia poder ficar na creche. Aí a maioria

começou a fazer. Eu lembro que algumas meninas iam estudar em um lugar longe

e com isso o que aconteceu, essas meninas trabalhavam à tarde, e a tarde tinham

menos crianças e menos adultos, e elas iam ter que sair mais cedo, aí nós que

éramos da manhã tivemos que socorrer a turma da tarde. Então eu trabalhava

um dia de manhã, outro dia à tarde, porque as meninas tinham que sair antes das

seis horas da tarde, aí nós ficávamos pra dar o suporte a elas, eu lembro que eu

ficava no berçário. E fizemos isso por vários dias, uma semana era eu, depois

vinha outra, eu acho que fiquei fazendo isso uns três meses, era cansativo, acho

que eu vinha três vezes por semana, segundas, terças e quartas. Aí depois que

esse grupo acabou, outro grupo foi, aí eu fui fazer o magistério, fomos eu, a Eliana

e a Ana, e nós fizemos lá em Hortolândia. A gente ia alguns dias na semana, mas

a aula era puxada, porque quando você tem um professor é uma coisa, mas

quando você não tem você tem que estudar por si só, tem que se aplicar, tem um

monte de coisa pra fazer em casa. Eu lembro que uma época nós fomos pro

berçário e estávamos todas estudando. Daí a Ana terminou e já foi fazer a

faculdade aqui na UNICAMP, e nós não fomos fazer ainda, fizemos depois. Só

que nessa época estudar ainda era mais fácil, por causa do nosso horário. Nós

trabalhamos acho que por quinze anos, imagina você trabalhar tanto tempo das

sete às 13:19hs. Os plantões pra nós, já estávamos acostumadas, porque o

pessoal que trabalhava no berçário da manhã era acostumado a dar muitos

plantões, uma faixa de três no mês, porque o número da tarde era menor. Aí

depois da mudança do horário passou um tempo, aí agruparam toda a turma de

quarenta horas no maternal I. E essa transição do horário foi horrível, impactante,

porque nem houve uma prévia, foi uma coisa assim, amanhã tem que começar a

cumprir o horário, e pras crianças também foi uma confusão porque tava tudo

mudando, então pra mim foi muito impactante, muitas coisas nós tivemos que

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deixar de fazer, a Ana ficou doente. E antes da gente chegar neste módulo da

turma de quarenta horas, nós tínhamos que ajudar a turma da tarde, e era um rolo

porque nós tínhamos trabalhado muito de manhã porque as nossas salas eram

lotadas de crianças. Aí as crianças saíam e iam embora, aí nós fazíamos nosso

horário de almoço. Aí você chegava do almoço e tinha que ajudar a turma da tarde

que tinha menos crianças. E pra nós isso era o fim! E nós víamos também que

muitas das meninas da tarde se favoreciam disso e saíam. Largavam o parque pra

nós cuidarmos e iam tomar café de meia hora, quarenta minutos, e nós ficávamos

como.... cuidadoras! Esta é a palavra! Em sala nós tínhamos que entrar na sala,

sendo que o número de crianças era bem menor que o nosso. Isso pra nós era

estressante, porque você já tinha dado conta da sua sala inteira e muitas vezes

não tinha ajuda nenhuma, e à tarde tínhamos que ajudar turmas com seis crianças

às vezes, coisa que a própria professora do grupo dava conta. Às vezes já tinham

as duas professoras e nós entrávamos como terceira. E quando nós ficávamos na

sala dos professores, a chefe se incomodava com a nossa presença ali, não

podíamos ficar paradas. Uma coisa estressante, terrível, que incomodava, como

se nós não trabalhássemos, e nós tínhamos trabalhado o dobro de manhã, porque

as salas eram superlotadas, e até hoje é assim, o número de crianças da tarde é

bem menor do que o da manhã. Elas tinham mais tempo pra fazer muito mais

coisas, e muitas vezes de manhã nós não tínhamos tempo, tínhamos que ficar

com a criança mesmo.

Pesquisador: Você sentia alguma diferença na relação entre chefia e

professoras? Você acha que algumas eram tratadas como cuidadoras e outras

como professoras?

Ah sim! Isso daí ocorreu principalmente quando entrou as meninas do

concurso. Então, eu lembro da fala de uma das chefes que foi assim: “Agora está

entrando gente capacitada!” Tinha gente formada, psicóloga, eu lembro que

entraram várias, e eu lembro que eu sentia assim, era como se nós, em todo o

tempo que passou, não tínhamos feito nada! E você vai falar o que pra uma

pessoa dessa. O tempo dirá! Nada como o tempo. E quando esse pessoal entrou,

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que diziam praticamente que iam nos ensinar, então o que nós fizemos, nos

afastamos e deixamos elas aparecerem pra ver o que elas iam nos ensinar. E

olha, muita coisa não era boa. Falava-se muito, mas atuava-se pouco.

Pesquisador: E você se lembra de algum exemplo que você viu e que te

marcou?

Então eu lembro de uma fala de uma chefe que ela falou assim: agora está

entrando gente capacitada! E quando ela disse isso nós ficamos paradas assim,

olhando, porque era como se nós em todo esse tempo não tínhamos feito nada, e

você vai falar o que pra uma pessoa dessa. E quando esse pessoal entrou,

praticamente para “nos ensinar”, então o que nós fizemos: nos afastamos e

deixamos elas aparecerem para ver o que elas iam nos ensinar. E a gente via que

se falava-se muito, mais atuava-se pouco. Uma vez estávamos no parque, e tinha

um menininho, e eu ficava só observando que muitas coisas eram de assustar

mesmo, porque falava-se muito bem, escreve-se maravilhosamente bem, então eu

ficava só olhando, porque você imagina eu que ainda ia fazer o magistério falar

alguma coisa pra uma tão gabaritada, eu não tinha o poder da caneta, digamos

assim, mas eu observava muito, e o menino no parquinho e a professora tratava

mal o menino, ela falava “não suporto esse menino”, “esse menino fede”, ela

pegou a fralda e lançou no rostinho do menino, o menino vivia com uma fraldinha

bem encardidinha, mas é criança né. E essa professora era considerada como ‘a

top’! Eu peguei o menino e falei: vem cá querido, fica aqui. “Ai, é melhor mesmo”,

ela falou. Eu vi professoras que perto da mãe da criança, era uma santa, mas

depois.... Nós falávamos, não. Por que? Porque elas eram as top! Elas eram

tratadas com diferença né, porque era um pessoal melhor, mais gabaritado. Claro

que também teve coisas boas. Eu lembro que uma das chefes dizia assim: “A

prática sobrevive sem a teoria, mas a teoria sem a prática não”. Então a gente

tinha a prática e elas tinham a teoria. Então nós juntamos. Muitas delas nos

ensinaram muita coisa boa. Teve meninas muito bacanas, um pessoal mesmo

muito legal! Porque a gente tem que estar aberta pra aprender. Ninguém sabe

tudo. Então, hoje em dia eu vejo assim, que antes eu tinha a prática, depois que

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eu também passei a estudar eu vi que a teoria também ajuda muito. Ela me

alicerça no que eu vou fazer, porque eu posso dar determinada atividade e eu sei

falar o porquê estou fazendo aquilo, porque se a gente não conhece a gente faz

mas não sabe o porquê

Pesquisador: E dos cursos que você fez, quais você acha que te ajudaram

com o trabalho na educação infantil?

Olha, teve tanto curso bom.

Pesquisador: Você acha que o magistério contribuiu pra sua prática?

O magistério ajudou muito! A faculdade também ajudou. Porque nas aulas

nós conversávamos entre nós. Tinham pessoas de outras áreas que também

contribuíram, porque nessa época o Estado começou a pedir para os professores

de outras áreas a Pedagogia também. Então foi enriquecendo. E as companheiras

que você vai trabalhando também elas vão enriquecendo sua prática, e você vai

lendo e vai aprendendo muita coisa. O magistério foi uma coisa muito gostosa. Eu

acho que o conhecimento amplia, te abre novos horizontes. Você aprende mais,

presta mais atenção, fica com o ouvido mais atento nas crianças. Como se diz na

linguagem de hoje, você fica mais antenado, até mesmo a tecnologia hoje ajuda

muito. Muitas coisas você pode buscar, pesquisar, você lê muita coisa legal. Ah,

lembrei que antigamente as chefes também davam muita coisa, folhinha, textos

pra gente ler. E eu lembro que na creche sempre teve um tipo de formação em

serviço, até antes de vocês entrarem já tinha, a gente lia algumas coisas, até

mesmo da LDB, a gente tinha reunião, às vezes uma vez por mês no sábado

vinha todo mundo. Aí tinham os encontros, tinham as jornadas. Tudo isso

enriqueceu sim. E além disso, eu acho que você trabalhar em um local que você

gosta, com pessoas que você gosta ajuda muito! Nós estamos trabalhando há

muitos anos juntas, então às vezes só no olhar você já sabe. Eu lembro que uma

vez tinha um menininho que tava no parque do maternal II. Tava eu e a Eliana. Aí

aquele menino se escondeu e a mãe chegou. E ele tava ali perto mas foi questão

de segundos e ele sumiu. Uma só olhou pra outra.... e já começamos a procurar o

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menino. Não precisamos nem falar nada, uma olhou pra outra, aí uma já viu ele.

“Ah, ele ta aqui, vem cá” Aí já achou e levou pra mãe. Foi tão engraçado! E até

hoje é assim. E uma nunca fala pra outra que a outra não sabe! Então o que uma

sabe fazer, a outra não sabe e estamos sempre juntas, em grupo, entendeu. O

que eu não sei a outra faz. Eu sinto que somos unidas, mas é porque nos

conhecemos há muito tempo. E nós não ficamos ofendidas se uma fala pra outra

que alguma coisa não vai dar certo, alguma atividade. A gente sempre ta trocando

ideias, sentamos pra conversar, então nós somos assim. E eu gosto de trabalhar

com as meninas. E é isso.

Pesquisador: A gente vai precisar encerrar porque nosso tempo já esgotou.

Eu só gostaria de te contar um pouco, porque a minha história se mistura com a

de vocês um pouco, e talvez você nem se lembre do que eu vou contar. Em 2008,

eu fui trabalhar de manhã, eu trabalhava à tarde e consegui uma vaga que eu

queria no período da manhã. Quando eu fui, depois, eu fiquei sabendo que a

equipe técnica havia falado pra vocês que eu estava indo ensinar o trabalho, na

época estávamos fazendo as “oficinas”.

Ah, eu lembro dessa fala!

Pesquisador: Mas essa fala nunca foi minha!

Eu imagino, porque infelizmente elas tinham essas posições.

Pesquisador: Eu acredito que muitas vezes elas não queriam entrar em

discussões sobre o trabalho com a gente e acabavam de certa forma jogando isso

pro grupo, então quando eu cheguei de manhã eu sentia todo mundo meio

esquisito comigo, e eu percebia aquilo mas não entendia, e eu fui parar bem lá na

sua sala! Eram você e a Eliana. Mas aí eu lembro que eu comentei o que a gente

tava fazendo à tarde com as crianças e perguntei se vocês queriam fazer e vocês

foram super abertas, e vocês inclusive já faziam também, só não chamavam de

oficinas, já dividiam os grupos das crianças, preparavam as salas, enfim, e aí eu

lembro que eu cheguei um dia com um livro que tinha um monte de frutas

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desenhadas, e aí de repente, você viu o livro, saiu da sala e voltou com um monte

de frutas de verdade pra complementar a história e as crianças amaram! Então eu

queria dizer que pelo menos pra mim, eu sempre aprendi com vocês, eu nunca

tive um olhar de querer ensinar!

Ai amada! Fiquei até emocionada. Eu fico feliz viu, e por isso é que

importante a gente vivenciar, porque às vezes as pessoas falam, mas nada como

você estar ali na prática, se envolver, ficar junto ali da pessoa. E eu acredito que

você também contribuiu pra nós também, porque Carla, é bom você trabalhar com

outras pessoas, pessoas que sabem, ajuda! Porque onde eu sou fraca, você pode

ser forte, e a gente nunca pode estar fechada para o aprendizado, toda pessoa

tem alguma coisa de bom pra te ensinar. Eu digo sempre pras meninas que não

podemos passar nesse mundo sem fazer algo de bom pra alguém. Às vezes uma

palavra que você fala pode mudar o dia de uma pessoa. Eu sempre penso que

quando meus olhos fecharem nesse mundo eu quero que as pessoas se lembrem

de mim com muito carinho!

Pesquisador: Muito obrigada Flor.

5º Transcrição

Data: 17/06/2013

Professora entrevistada: Maria Queiróz

Pesquisador: Gostaria que você me contasse primeiramente um pouco

sobre sua entrada na creche, ou seja, como você ficou sabendo do concurso, o

que você fazia antes, enfim, como estava sua vida na época.

Eu fiquei sabendo através de uma colega minha que trabalhava aqui, ela

falou do concurso, aí eu me interessei e vim, e nesse tempo eu trabalhava na

dona C. Aí eu vim e fiz o concurso e aguardei a chamada né.

Pesquisador: E o que você fazia lá na dona C.?

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Eu era empregada lá, empregada doméstica, mas eu passei no concurso

mas não saí de lá, continuei lá.

Pesquisador: E por que você quis vir trabalhar com criança? Você já tinha

trabalhado com criança?

Não, nunca tinha trabalhado com criança, mas como eu tinha já me

formado, eu tentei trabalhar na área minha, e vim pra creche como

recreacionistas. Eu lembro que era pra trabalhar com criança, pra desenvolver

atividades, mas não era bem professora, porque no começo a gente não era

professora, era mais pajem né. A gente vinha pra cuidar, dar banho, dar comida,

dá atividade, embora a gente já sabia fazer mas não tinha aquele foco

pedagógico, era mais brincar por brincar.

Pesquisador: E quantos anos você tinha?

Tinha uns 37 por aqui, porque hoje eu tô com 61. Olha, como o tempo

muda não, naquele tempo eu tinha cabelo.

Eu vim da Bahia. Eu demorei muito pra estudar. Tudo meu foi sempre

atrasado. Eu saí do grupo, demorei quase dez anos sem estudar, depois eu voltei

e era diferente de agora, eu fazia por etapa, aqui também eu fiz por etapa. Eu vim

da Bahia com uns trinta e poucos anos, e deixei minha menina lá com um ano, e

hoje ela tá com trinta. Eu deixei minha menina dez anos lá com minha irmã.

Quando ela completou dez anos aí eu trouxe porque ela já tava grandinha e aí

morava comigo também, lá na dona C.

Pesquisador: E por que você veio pra cá?

Porque lá não tinha expectativa de vida, era só trabalhar, trabalhar, às

vezes casar, ter filhos, então eu não queria isso pra minha vida não, então vim

embora e aí foi um sufoco, minha irmã comprou a passagem e falou: quer ir

Maria? E foi uma coisa de repente, decidi, falei, vou embora, aí deu aquele cinco

minutos, e nem pensei duas vezes. E nessa trajetória eu trabalhei em casa de

família uns três anos, depois eu fiquei na casa da Cidinha.

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Pesquisador: E aí na casa da Dona C. você começou a estudar? Você fez o

magistério?

É, eu fiz o magistério.

Pesquisador: E por que você foi fazer magistério?

Porque era mais fácil pra mim porque eu morava perto do Carlos Gomes e

lá tinha.

Pesquisador: E você estudou e logo apareceu esse concurso?

Não eu me formei em 1985, mas aí eu fiquei lá trabalhando e depois que

apareceu essa oportunidade. Aí eu fiz o concurso, passei e tô aqui até hoje.

Pesquisador: E você lembra da prova?

Ah, a prova, não é que nem agora não, era coisa assim, do dia-a-dia, eu

lembro que tinha umas questões assim que, se podia oferecer peixe pra criança,

se o peixe era inócuo, e eu pensei gente que palavra? O que é “inócuo”? Quer

dizer assim, que não tem perigo, que a criança pode comer que não tem perigo

sabe. Hoje em dia ninguém mais vai falar isso numa prova né. Também tinha uma

que falava da criança que mexia na sexualidade, nas partes íntimas, perguntava o

eu achava e o que que a gente poderia fazer, então eu respondi assim que ela

tava apresentando alguma coisa que ela não conseguia expressar, então ela ia

procurar alguma coisa pra dar prazer pra ela né, então ela procurava o que mais

agradava ela fazer que era mexer nas partes íntimas dela. Tinha outras coisas,

mas o que eu lembro mais era essas duas coisas da prova.

Depois teve uma entrevista, mas eu não lembro muito com quem foi a

entrevista, não sei se foi com as diretoras do CECI, eu sei que teve uma mesa

redonda, que todo mundo fazia perguntas, eu não sei muito bem, eu sei que eu

me saí bem porque eu tô aqui hoje. O pessoal falava assim pra gente olhar pra

pessoa no olho, ter resposta objetiva sabe, se você não souber não ficar

enrolando.

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Pesquisador: E exigia alguma experiência com criança?

Exigia sim. Lá na Bahia eu tomei conta de duas crianças, mas não é assim,

trabalhar como babá, é diferente daqui, mas aí minha irmã me mandou uma carta

de lá dizendo que eu tinha cuidado dessas crianças. É porque não precisava ser

professora, porque naquele tempo nem existia professora, tinha gente que não

tinha nem o ensino médio ainda, tinha só o fundamental, não era tão exigente,

tinha que saber ler e escrever mais não exigia grandes conhecimentos e

fundamentação sobre o assunto. Daí eu comecei, acho que foi no mês de junho.

Aí vinha fazer o curso, não é curso, é, treinamento.

Pesquisador: Como foi o treinamento?

Ah, o treinamento, do que eu lembro é que a gente vinha e ficava lá

embaixo, no CECI berçário, depois fiquei nessa parte aqui em cima com as

crianças, tinha também uma casa que tinha do outro lado de lá, não era aqui, era

lá na frente onde era aquele restaurante, tinha uma casinha que eu fiquei ali

também, mas era diferente, era uma coisa assim artesanal sabe, dava banho na

criança, trocava a criança, era diferente de hoje, a gente tinha mais um vínculo

assim, não é que hoje não é afetivo, era mais de cuidado sabe, hoje a gente tem

mais restrição assim, não é restrição assim que você pode dar amor assim, mas

era diferente, você tinha mais contato físico com a criança, hoje em dia você tem o

contato mas é diferente, tem os carrinhos pra levar, antigamente era tudo no colo,

no abraço, você pegava a criança e levava no colo, agora não, você pega a

criança e coloca no carrinho, você não tem mais aquela coisa do contato olho a

olho com a criança, era ruim pra coluna, mas esse contato pra criança eu acho

que era melhor né.

Pesquisador: Bom, mas isso no berçário você fala né?

É, mas até os grandinhos também, porque eu trabalhei uns dez, doze anos

no maternal. No berçário não é que eu não dou conta é que pras crianças do

berçário exige muito assim a hora de comer, eu lembro que numa greve, criança

pequenininha, eu e uma outra professora, eu dei comida pra uma criança que não

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era pra comer, depois me disseram que essa daí não come mas eu dei comida pra

ela, gente! E depois? Teve que falar pra mãe né, porque a criança tinha quatro

meses e eu dei papinha pra ela, eu sei que ela conseguiu comer né, ela comeu

mas não era pra comer. Ai com essas crianças pequenininhas, na greve trocou

completamente o ritmo das crianças, na hora de dormir a gente dava comida, na

hora de acordar a gente levava pra dormir, eu sei que ficou uma coisa que a gente

não via a hora que essa greve acabasse pra poder voltar tudo ao normal, e eu não

me dou muito com as crianças de berçário, gosto mais dos maiorzinhos, porque é

quando tão aprendendo a linguagem, sabe, que já interage com a gente, com os

bebês a gente também interage, mas com os maiores de um ano assim é diferente

né, aí que começa a aplicar as coisas.

Pesquisador: Mas vamos voltar lá no seu treinamento, você ficou um tempo

lá embaixo no CECI, o que mais teve no treinamento?

Depois veio aqui pra creche, aí a pedagoga dava as instruções, a gente

ficou quase uma semana e não tinha criança, era só treinamento. Aí de orientação

tinha assim, eu lembro que teve uma dinâmica que ela trazia uma boneca pra

gente saber como trocar a criança, mas isso era da enfermagem, e tinha uma

dinâmica também sobre a mãe, como se fosse a mãe que chegava com a criança,

então alguém chegava na mãe e perguntava o que ela comia, sabe aquele

procedimento que a gente tem, saber o que a criança gostava de comer, se tinha

chupeta, se tinha alguma restrição a comida, alguma, ah, muita coisa. A gente

conheceu o espaço, procurou saber as duplas com quem que iria ficar. No começo

eu fiquei com a Flor, depois eu fiquei com outra professora, mas primeiro foi com a

Flor, a gente ficou com uma turminha no maternal I na última salinha, foi meu

primeiro grupo.

Eu lembro que na minha primeira turminha a primeira criança foi um menino

que chamava R., porque a gente começava assim com 2, 3 crianças, depois iam

chegando mais e ia aumentando, e o R. era levado, gente, como no começo era

só ele, então era tudo pra ele, só ele então, ele ficava solto, corria naquele espaço

grande só pra ele, ahhh, ele era levadinho, loirinho, bem levadinho.

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Pesquisador: Como era desenvolvido o trabalho? O que vocês faziam com

as crianças durante o período em que elas ficavam na creche?

A gente dava o lanche, depois ia pro parque, fazia atividade, atividade não,

brincava de bola, bambolê, brincava. Depois da brincadeira a gente entrava, ia

tomar banho, trocava, depois ia pro almoço, almoçava, dormia, aí a mãe chegava

e ia embora, não tinha aquele planejamento que você fazia todo dia, depois que

começou o planejamento. Aí a coordenadora já tinha o planejamento semanal que

ela fazia, era ela que fazia e a gente desenvolvia aquilo lá. Então às vezes ela

colocava: coordenação motora, desenvolvimento da linguagem, ela que fazia e a

gente colocava e prática alguma atividade que se encaixasse ali dentro, e o

projeto era uma folhinha, não tinha esse projetão que a gente faz hoje, com

objetivos, essas coisas. Era uma folhinha de projeto, por exemplo, do dia das

mães, projeto da semana da alimentação, quer dizer, tinha projeto mas já vinha

pronto, era ela quem dava pra gente fazer, pra executar

Pesquisador: De todas as professoras que eu entrevistei até agora você foi

a única que já tinha feito magistério, então você acha que o magistério contribuiu

pra sua prática, o que mudou?

Ah sim, o modo de pensar né, de ver a criança, porque o magistério de

antigamente tinha muita coisa, a gente fazia estágio, acho que tinha dois anos de

estágio, ia uma vez por semana e ficava a manhã inteira lá na escola, então tinha

muito contato com as crianças, embora fossem crianças grandes , mas era

diferente porque a gente já tinha uma visão de educação, de criança, eu acho que

serviu muito pra mim. A gente dava muito papel pras crianças, mas tudo já feito

pra criança pintar, desenho mimeografado, eu me lembro que eu tinha uma pasta

enorme, a professora do magistério mandava a gente fazer aquelas pastas

coloridas de datas comemorativas, e aquilo lá era uma sensação pra mim.

Pesquisador: E aí você usava na creche?

Usava porque era a prática da época. Não tinha uma que não usava aquela

pasta. Tinha aqueles desenhos do dia do índio, aquilo lá pra gente é uma relíquia.

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Aí a gente usava junto porque tinha o mimeógrafo que a gente passava pras

professoras, mas também tinha mais gente que trazia. Tinha uma menina que era

a sensação porque ela foi a primeira que passou do concurso e eu acho que ela já

tinha feito magistério, e ela era super antenada sabe, ela tinha tudo, tinha os

materiais, tinha tudo.

Pesquisador: E qual você acha que era a visão de educação da época?

Acho que a visão era bem tradicional né, embora eu não exerci a minha

profissão com crianças maiores, só no estágio, mas a gente não tinha livre acesso

à criança, às vezes a gente ficava só sentada o fundo da sala, a professora da

sala falava que se a gente interferisse as crianças já mudavam, ficavam agitadas.

Então a gente ficava de lado, anotando o que a professora fazia, alguma coisa que

ela pedia pra ajudar a criança na lição.

Eu fiz concurso na prefeitura e passei no concurso pra trabalhar no ensino

fundamental, mas eu não fui, fiquei com medo de enfrentar aquelas crianças

grandes, e eu já trabalhava na creche.

Pesquisador: Mas no magistério você não teve contato com a creche?

Porque eu também fiz magistério e na época eu me lembro que o único estágio de

educação infantil era na pré-escola. Então quando você entrou aqui você achava

que tinha alguma coisa a ver com educação?

Não, aqui era só cuidar, o tipo de atendimento era ó cuidar, tinha aquela

coisa da recreação que a gente brincava com as crianças. Não tinha aquela coisa

de colocar no papel, por exemplo, brincar de bola, não tinha nenhum objetivo pra

atingir como uma atividade dirigida, era só brincar, e todas as atividades eram

assim, não tinha objetivo específico. No fim em toda a brincadeira a criança retém

alguma coisa e aprende, mas não era pensado nisso, era brincar por brincar.

Pesquisador: E o que estava acontecendo na creche nessa época em que

as recreacionistas voltaram a estudar?

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Quando começou a mudar a Lei e disseram que todo mundo tinha que ser

professora, mas um pouco antes disso a coordenadora já começou a falar

algumas coisas pra gente. A gente fazia o planejamento e passava pra ela e ela

via acho que quinzenal e ela dava OK. Então ela já fazia isso antes da Lei que

começou a exigir que todo o profissional da Educação tinha que ter pedagogia ela

já tinha um fundamento disso aí. Então antes da lei, a creche já tava virando

educação. E a gente tinha que ir estudar. Só que essa creche aqui é diferente né

porque aqui é educação quando convém, quando não convém é assistencialista.

Pesquisador: Por que essa creche é diferente?

Porque eu acho que aqui não visa bem a criança, mas sim a mãe que vem

trabalhar, eu sei que desde o começo essa creche foi feita assim, e a gente tenta

mudar mas o histórico dela é esse, é pra mãe que precisa trabalhar não é

pensando na criança. E a mãe quando vem sempre pergunta: ele comeu? Fez

cocô? Não pergunta assim: ele fez alguma coisa diferente?

Pesquisador: Mas você acha que isso mudou?

Algumas mães sim, mas ainda continua, porque até hoje a mãe não chega

pra perguntar nada sobre a parte educativa. Aqui as mães pensam que é um lugar

pra criança comer, brincar, ficar e ir embora, elas não valorizam bem o nosso

serviço.

Pesquisador: E como você se sente pensando nisso?

Ah, eu não espero muito delas sabe, eu desenvolvo meu trabalho mas sem

pensar no que a mãe pensa, eu penso na criança. Eu penso que eu tenho tanta

coisa que a mãe não tem, porque a mãe tá lá trabalhando e eu tô aqui com o filho

dela então eu faço o máximo que eu posso pra dar um atendimento, pra educar,

tudo o que eu faço eu dou uma pitadinha do que eu tô estudando em relação ao

respeito com o outro, ver que todo mundo tem seu espaço ali dentro, essas coisas

né, e as mães não vêem essas coisas, elas nem percebem que a gente faz esse

trabalho, você já percebeu isso Carla? Elas não percebem o trabalho tão legal que

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a gente faz com as crianças, ela chega, deixa a criança, vai embora, sabe, não

procura saber o que o filho aprendeu. Eu vejo também no ônibus, em vez da

mãe perguntar á criança com foi seu dia, a primeira coisa é dar lanche pra criança,

como se aqui ela não tivesse comido nada, e enche a criança de coisa pra ela

ficar quieta e a mãe conseguir dormir no ônibus, às vezes a criança nem quer

comer, quer conversar. E esse negócio de comida aqui sempre foi um problema

porque fica aquela coisa de assistencialismo. Lembra quando tinha o lanche que a

criança levava embora? Eu gostei quando a R. tirou porque é uma coisa que

não é pra fazer aqui, aqui é educação, não é pra valorizar esse tipo de coisa, aqui

a gente tem que valorizar outro tipo de coisa, às vezes a gente ia desperdício,

jogava o lanche fora, nem isso a mãe ensinava a criança. É que nem esse

plantão, que quando fala que vai tirar aí as mães valorizam, porque a maioria das

mães traz porque é comodidade pra elas, não é que precisa tanto, tem mãe que

não precisa, a gente vê que tem mãe que não permite que o pai tome conta do

filho, elas dizem que preferem trazer pra creche do que deixar com o marido, você

acha que isso é coisa que mãe fale pro marido e pro filho dela, que prefere trazer

pra uma pessoa diferente, do que deixar cm o pai curtir o filho dele, tem criança

que vem pra creche de domingo a domingo.

No começo eu não pensava assim, eu pensava que a creche era mesmo

direito da mãe, que a mãe tinha que trabalhar e era direito dela, então se a creche

tá aqui é pra ela usar né, mas depois a gente vai vendo que não é desse jeito, não

é assim, e eu acho que eu comecei a pensar diferente por que a gente vê o

comportamento da criança, eu acho que a criança que fica muito tempo na creche

cresce sem ter um amigo vizinho. Eu acho que não dá mais pra fazer um tipo de

educação que não faz bem pra criança, que não vai desenvolver uma coisa legal

pra ela, acho que a experiência do dia-a-dia me fez pensar assim, a criança

educada assim não cria vínculo com outras coisas, com a família, com os avós,

não tem convívio com a família, porque a criança fica aqui direito. Aí quando a

mãe tá de folga a criança vem porque a creche é direito da criança, a mãe não vê

que a criança tem que ter um momento dela. Eu até me ponho no lugar da mãe,

porque algumas realmente tem só a creche, nem marido tem, mas independente

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da situação da mãe a gente tem que fazer o melhor pra criança que tá ali, então

minha visão é essa. Mesmo que a gente ache que a mãe não devia trazer, a

criança tá ali e a gente tem que cuidar, fazer o melhor com carinho. Se a gente

parar pra pensar o que é tomar conta de uma criança, gente, você tem que saber

mesmo, porque qualquer coisa de errado que a gente faz com ela, eu vejo na

creche, tem certos adultos que a criança não quer ficar, tem receio, chora,

pergunta se a pessoa veio hoje, é difícil porque as vezes a pessoa faz e nem

sente que tá fazendo aquilo né, não pensa que pode desenvolver algum trauma na

criança, acha que criança pequenininha não pensa naquilo né.

Pesquisador: Pesquisador: Bom, falando ainda da formação, teve mais

algum curso, alguma coisa que você fez e que você acha que te ajudou com o

trabalho na educação infantil?

Eu fiz um curso com a A. L. G. lá na faculdade de Educação. Ela falava

muito sobre o direito da criança, colocava vídeo pra gente assistir, ela enfatizava

também o direito das mães, ela falava assim que se a mãe não quer amamentar é

direito dela, porque a creche incentivava a amamentação, porque “porque no

começo só tinha vaga a mãe que amamentava, porque o intuito era trazer a mãe

pra amamentar aqui, [...] Tinha aquela coisa de achar que se a mãe não

amamenta, ela não é boa mãe.

Também tinham os fóruns, as jornadas, o curso da R. que eu gostei

também . A R. deu uma visão diferente de educação, embora ela trouxesse uma

visão diferente, de outra cultura lá da Europa, ela queria tirar os plantões, falava

que educação é de segunda a sexta-feira, isso ela não conseguiu, mas conseguiu

restringir o atendimento nas férias, já mudou porque antes fechava só duas vezes

por ano, 25 de dezembro e 01 de janeiro, você acha que uma creche educacional

é pra ter esse atendimento? E isso porque não teve à noite, mas essa creche foi

feita pra ter à noite, não teve porque não teve demanda, mas se tivesse tinha

gente que ia trazer a criança aqui só pra dormir.

Mas o curso dela deu uma visão de criança, das atividades, de trabalhar os

cantos, lá na minha sala tem o cantinho da fantasia, trabalhar com grupos

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pequenos, porque antes a gente fazia com todo mundo de uma vez e às vezes

não conseguia, e no começo eu achava que tinha que ficar que nem mãe, com

todo mundo, tudo as crianças perto da gente, então no começo eu não gostei de

dividir os grupinhos , mas com o tempo eu vi que dividir o grupo fica mais fácil,

você coordena melhor o trabalho, dá pra dar mais atenção pras crianças, todo

mundo se acomoda, não fica aquela coisa que você não consegue controlar a

situação, é diferente.

E também teve a faculdade que ajudou. No começo eu fiz só porque

precisava né, tanto que eu fui uma das últimas a fazer o curso, mas seu quisesse

continuar a trabalhar com criança tinha que fazer, então eu gostei. Agora eu tô

fazendo a pós em Educação Moral chama “Educação, valores e cidadania na

escola”, e eu tô gostando porque dá uma visão diferente de pessoa, a gente passa

a valorizar o outro, o direito do outro, a diversidade, a inclusão, a capacidade da

criança de realizar as coisas.

Pesquisador: E se você nunca tivesse estudado nada, você acha que seria

uma pessoa diferente hoje?

Ah, eu ia ser diferente sim, não ia ter essa visão que eu tenho agora porque

a gente precisa adquirir conhecimento né Carla, se a gente não conhece, como vai

aplicar alguma coisa, porque a gente até pode ter alguma habilidade inata, mas

quanto mais você sabe mais você se empenha, então se eu tivesse estacionado lá

no magistério a minha visão era pequenininha, tinha ficado com aquela visão de

que criança tem só que brincar, comer, sabe, hoje eu sei que tenho que pensar na

criança e seu desenvolvimento como um todo, não pedacinho por pedacinho né.

Pesquisador: E como você vê essa relação da creche com a área da saúde,

tanto no que se refere à chefia, quanto na relação com as mães.

Eu acho que ela só existe por causa da área da saúde, porque ela foi fundada

pras mães então às vezes eu penso que por mais que a gente tente tirar esse

vínculo, ela vai continuar sendo, vai ser difícil a gente quer uma coisa diferente,

mas o histórico dela não tem como.

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Eu acho que enfermeira tem que ta na área de enfermagem, como aqui não

é pra criança doente, então ela tem que tá na área dela. Antigamente a gente

tinha que dar remédio pra criança, lembra quando a gente administrava remédio,

fazia inalação, ficava mais ou menos meia hora pra fazer uma inalação, vinha

criança com piolho, e gente catava os piolhos das crianças, conjutivite, sabe

coisas que não era pra criança ficar na creche, mas ficava. E isso aconteceu até

pouco tempo, parou quando começou a chegar as novas do concurso.

Pesquisador: E como foi?

No começo, como a gente vinha de uma educação mais assistencialista,

vocês vieram dar uma coisa nova pra gente sabe,vocês traziam coisas novas e a

gente aprendia, já não era mais só aquela coisa de atividade no papel,

começaram todo mundo fazer os projetos, as oficinas, então pra gente que vinha

de uma coisa bem fechada de só comer, dormir, brincar, foi bom. A gente tinha o

tempo de experiência, mas parecia aquela coisa do “Tempos modernos”, era uma

máquina de trocar criança, a gente fazia tudo rapidinho. Uma vez a pedagoga

falou que a gente era “braçal” sabe e vocês eram de fazer projeto.

Mas se Deus quiser eu vou continuar trabalhando até setenta anos, tenho

mais dez anos ainda pra trabalhar.

Pesquisador: Maria, estamos chegando ao final de nossa entrevista,

gostaria muito de te agradecer por tudo!

Imagina, eu que agradeço, se eu lembrar de mais alguma coisa eu venho te

contar.