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1 Carlito Azevedo

Carlito Azevedo

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Carlito Azevedo

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Nascido no Rio de Janeiro em 1961, é editor, crítico e poeta brasileiro. Carioca da Ilha do Governador, Azevedo cursou a faculdade de letras na UFRJ, voltando sua atenção para a poesia francesa, a qual vem traduzindo regularmente. Conhece José Lino Grünwald que o apóia em sua estréia com o livro Collapsus Linguae (1991), com o qual ganhou o prêmio Jabuti. Em 1992 Antonio Carlos Secchin já destacava o fato de a estréia de Azevedo fornecer “elementos interessantes para uma reflexão acerca da formação cultural de nossos poetas”, em especial pelo fato de o poeta ter consciência de não se confundir com suas fontes próximas, a Poesia Marginal, a Poesia Concreta e a de João Cabral de Melo Neto, ainda essas fontes sejam facilmente identificáveis. Em seguida publicou As Banhistas (1993), que tem como centro uma série de poemas com o mesmo título, que pode ser vista como o modelo de sua poética; Sob a Noite Física (1996); e Versos de Circunstância (2001). Em 2001, reuniu seus poemas na antologia Sublunar (1991-2001). É editor desde 1997 da revista de poesia Inimigo Rumor (mesmo título do livro Enemigo Rumor, de Lezama Lima), primeiro em parceria com o poeta Júlio Castañon Guimarães e posteriormente ao oitavo número com o poeta Augusto Massi. É coordenador da coleção de poesia Ás de colete. Foi contemplado com a Bolsa Vitae de literatura (1994/1995). Carlito Azevedo é um dos poetas mais ativos da geração 90. As referências eruditas contidas na poesia de Carlito Azevedo — escritores como Baudelaire, Mallarmé e Drummond, artistas como Cézanne, Rothko e Vieira da Silva — podem confundir o leitor, sugerindo um poeta que trabalha apenas no registro culto do jogo intertextual e intersemiótico. E, no entanto, a citação tem aqui a função de refinar os sentidos, de se apropriar de um instrumental poético que permita uma abertura para o real. Carlito escreve dentro da tradição do flâneur baudelairiano (o transeunte que vive o choque da vida moderna, a dupla experiência do intenso e do provisório), atualizando-o na pele do poeta carioca que registra os signos de uma cidade vertiginosa. Dentre aqueles nomes, o mais presente em sua poesia é o autor de Claro Enigma. O Drummond de Carlito Azevedo, todavia, não é o poeta da "vida besta", provinciana, mas o Drummond do espanto diante do mundo. E, se é errado cindir a obra do escritor itabirano, o fato é que Drummond teve como efeito colateral, na poesia contemporânea, um culto à dicção ligeira cujos exageros a obra de Carlito Azevedo veio compensar, recuperando, pela "vertigem do ato", "cada fragmento nosso, perdido,/ de dor e de delicadeza". Um título como Sob a Noite Física (1996, extraído de versos em que Drummond descreve o gravurista Oswaldo Goeldi como um "pesquisador da noite moral sob a noite física") mostra até que ponto ele quer falar de uma realidade concreta sem perder a dimensão existencial, "moral" — como indica o poema "Vers de Circonstance", cujo primeiro verso ("Entre fraga e desabrigo") se refere ao drummondiano "Fraga e Sombra".

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Ao mesmo tempo, ele evita cuidadosamente cair na abstração formalista, conforme escreve em "Ao Rés do Chão": "A idéia é não ceder à tentação/ de escrever o poema desse não-// lugar, desse círculo congelado,/ sem vasos comunicantes, fechado// em si, em sua pose, sua espera,/ a idéia é alcançar a outra esfera". A "outra esfera" está bem aqui, ao alcance das mãos, é "uma flor alheia a símbolos", mas cuja violenta presença só é perceptível "sob o duplo incêndio/ da lua e do neon", ou seja, a partir desse abalo da percepção que ele busca na imagem pietórica — como no livro As Banhistas (1993), que parte da tela homônima de Cézanne, ou no poema "Vieira da Silva" ("a verruma/ é o trunfo/ a aresta/ é o naipe/ a água do/ relógio/ marca a hora/ do desastre"), leitura de "Os Jogadores de Cartas", quadro da pintora portuguesa também inspirado em tela do artista francês. A poesia de Carlito Azevedo mostra como é possível estabelecer um corpo-a-corpo com outros códigos sem necessariamente fazer poemas ilustrativos ou exceder o registro verbal. Obras: Collapsus Linguae (1991), As Banhistas (1993), Sob a Noite Física (1996, edição portuguesa Cotovia) e Versos de Circunstância (2001). Sublunar (1991-2001) é uma antologia, embora o poeta recuse essa noção, preferindo o conceito de uma nova arrumação, por tema, na esteira do que fez Carlos Drummond de Andrade.

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ÁGUA FORTE Carlito Azevedo Girando ritmadamente (ela submersa no inferno denso e negro do café) esta pequena colher de prata da qual vês apenas — preso entre teus dedos — o cabo sem grandes arabescos fazes emergir em torvelinho a partir da tona líquida escura uma nuvem de fumaça até teu rosto que a recebe sorrindo de ESSES POETAS – Uma antologia dos anos 90, org. por Heloisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. QUATORZE PARA O MEIO-DIA Carlito Azevedo O olhar, grande oblíquo, descobre num corpo oferto outro corpo, cavo, que diz não, e o que esse, seu duplo, dessangra, ressuda, à ponta, ao calor do olhar-aguilhão sublima um terceiro que é todo espinhaço de luz (como são

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as horas de perda, os paramos, certas manhãs de verão) de ESSES POETAS – Uma antologia dos anos 90, org. por Heloisa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

Na noite física Carlito Azevedo (desentranhado de um poema de Charles Peixoto) A luz do quarto apagada, na escuridão se destaca a insônia que nos atraca, dois gêmeos na bolsa d’água. Ao despertar levo as marcas que de noite rabiscavas em minha pele com a sarna ávida de tua raiva? E em você a cega trama algum mal pôde? ou maltrata ainda, que penetrava concha, espádua, gargalhada? E, em nosso rosto essa raiva aberta? que estranha lava é essa que, rubra (baba de algum diabo), se espalha? A luz do quarto apagada, na escuridão se destaca a fúria que nos atraca, dois gêmeos na bolsa d’água. BANHISTA Carlito Azevedo Apenas em frente ao mar um dia de verão - quando tua voz acesa percorresse, consumindo-o, o pavio de um verso até sua última sílaba inflamável - quando o súbito atrito de um nome em tua memória te incendiasse os cabelos - (e sobre tua pele de fogo a

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brisa fizesse rasgaduras de água) Do livro: as banhistas, Carlito Azevedo, Editora Imago RÓI Carlito Azevedo Rói qualquer possibilidade de sono essa minimalíssima música de cupins esboroando tacos sob a cama imagino a rede de canais que a perquirição predatória possa ter riscado pelo madeirame apodrecido se aguço o ouvido capto súbito o mundo dos vermes Do livro: collapsus linguae, Carlito Azevedo, Editora Lynx 3. Menino Carlito Azevedo A pérola fria o topázio quente dividiam seu rosto ao meio: olhos de gato, olhar de gamo Do livro: as banhistas, Carlito Azevedo, Editora Imago. ESTRAGADO Carlito Azevedo No jardim zoológico um ganso as patas afundam na lama e ele imperial como uma macieira em flor

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mas está estragado como qualquer um pode ver estragado pensa que foi para isso que o resgataram do dilúvio mas não resgataram o signo estragaram o ganso Do livro: collapsus linguae, Carlito Azevedo, Editora Lynx

Abertura Carlito Azevedo Desta janela domou-se o infinito a esquadria: desde além, aonde a púrpura sobre a serra assoma como fumaça desatando-se da lenha, até aqui, nesta flor quieta sobre o parapeito — em cujas bordas se lêem as primeiras deserções da geometria. Vaca negra sobre fundo rosa Carlito Azevedo Até os cinco anos jamais havia visto um trem de carga; e até os oito anos jamais um meteorologista. A garota com sobrinha chinesa foi um dia a minha garota com sombrinha chinesa, e a este que brinca na areia da praia chamamos nosso filho, pois é o que é, como a bola azul em suas mãos é a bola azul em suas mãos e o verão é outra bola azul em suas mãos. As coisas são o que são e sei que antes de precisar outra vez barbear-me já terão voltado para o frio de seu novo país. E talvez em meus sonhos voltem a fazer falta as três dimensões desse mundo espesso, sublunar, como uma vaca negra sobre fundo rosa.

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Vers de circonstance Carlito Azevedo "Coisas assim ocorrem quando estamos a ponto de tornar real uma possibilidade que está sempre escapando." Caminho com Marília até a Lagoa, mas a volta Para casa já é outra escrita na fumaça, a Nomeação de um "vestígio", de uma tristeza. Os remadores se esforçam, a garota anseia não ser nada mais do que a continuação da bicicleta e sua fuga, nós somos sua neutralização. Você mesmo acorda e pode imaginar: "hoje pintarei toda a manhã e a tarde inteira" sem nunca ter sido ou tentado ser pintor. "Pequena xícara preferida, colherinha a transportar, anos a fio, dunas e dunas de café solúvel, os dias nos querem sempre assim? à sua pulseira branca unidos, ansiando sempre por novas flores, outra primavera, um possível jardim?" Lagoa Carlito Azevedo Tendo às costas (como asas pensas que a tarde abre e fecha) o dorso cobreado da montanha e os reflexos de cobre da lagoa, a menina com o gato traduz, à mais que perfeição, os veios profundos, invisíveis e subterrâneos, a nos unir a quem amamos, e quando ele lhe estira sobre o colo as patas ponteadas, ela, para não acordá-lo, até seu olhar pôe na ponta dos pés.

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Nova passante Carlito Azevedo 1. sobre esta pele branca um calígrafo oriental teria gravado a sua escrita luminosa — sem esquecer entanto a boca: um ícone em rubro tornando mais fogo suor e susto tornando mais ácida e insana a sede (sede de dilúvio) 2. talvez um poeta afogado num danúbio imaginário dissesse que seus olhos são duas machadinhas de jade escavando o constelário noturno: a partir do que comporia duzentas odes cromáticas — mas eu que venero (mais que ouro verde raríssimo) o marfim em alta-alvura de teu andar em desmesura sobre uma passarela de relâmpagos súbitos, sei que na pele pálida de papel pede palavras de luz 3. algum mozárabe ou andaluz decerto te dedicaria um concerto para guitarras mouriscas e cimitarras suicidas (mas eu te dedico quando passas no istmo de mim a isto este tiroteiro de silêncios esta salva de arrepios)

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Salto Carlito Azevedo Se alguma pedra pudesse tornar-se lírios seria esta Se alguma pedra o salto de um tigre e não o tigre Seria esta alguma as letras do alfabeto seria esta esta só pontas que pulsa coração da casa que acabas de deixar para sempre Paisagem japonesa para Aguirre Carlito Azevedo Pensei nos ventos frios que sopram da Sibéria enrolando-se em seu pescoço, na pesca do salmão e na corrida da raposa fugindo do seu covil rumo à plantação de batatas; mas aqui, neste quase morro de Lopes Quintas, com pedregulhos ao fundo, você pousa agora o jarro sobre a mesa e é quase como se pousássemos também nossas vidas sobre tudo isso e sorríssemos; pode ser a coisa mais simples, como a taça de café que aquece agora as palmas de nossas mãos ("ó doce hebréia") e cheira bem; além, o jóquei iluminado, a lagoa que nos veste como camisa ensopada; olhamos a lua, amamos o mar.

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Limiar Carlito Azevedo Os pés premindo a inexistente relva do asfalto duro da rua sem vida a não ser a que lhe dás quando subitamente cruzas o espaço e somes num átimo deixando entretanto no ar qualquer coisa de tão botticelliano quanto num crepúsculo mediterrâneo uma colhedora de mimosas a que um homenzinho cedesse a passagem à espera (desesperada) de um sorriso As banhistas Carlito Azevedo I a primeira — um capricho de goya, alguém diria — apodrece como um morango cuspido ou ameixas sangüíneas: entre as unhas uma infusão de manganês esboça a única impressão de vida, pois tentar romper a membrana verde — a bolha de bile, coágulo a óleo — que lhe cobre o sexo fugidio como uma lagartixa (sorri para esta e deixa que em tuas mãos uma palavra amarga se transforme em lilases da estação passada) II (a segunda — máscara turmalina em vez de rosto, o músculo da coxa dispara atrás da presa: o ofegante e mínimo arminho pubiano grain de beauté — exposta está em nenhum beaubourg sonnabend mas sim dorme e não para mim mas através da sua e da minha janela sob a

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conivência implícita dos suntuosos sol e cortina) III a terceira — um rothko (mas não baptismal scene um bem mais nervoso que isso) sua pose — curto-circuito sur l'herbe — lembra um espasmo doem seus olhos esmagados pelo coturno do fogo que agora lhe descongela sobre os cílios uma constelação de gotas d'água desabando sobre a íris IV um dibujo de lorca esta toda boca de tangerina e auréola sobre o bico do seio — a quarta — exata como a foice das ondas ao fundo ou a precisão absoluta dos dois filetes púrpura — e daí para violeta-bispo — rasgando-lhe o branco dos olhos como se visse coroa de espinhos (desta passa direto para a sexta) V e veja como se anima esta súbita passista-tinguely: os braços abertos em mastros de caravela, leões-marinhos dançando ritmos agilíssimos, da espiral do umbigo jorra denso nevoeiro até, à

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altura dos ombros, quase condensar-se num parangolé de brumas (se a fores encarar faça-o como que por entre frinchas de biombo, olhos de diable amoureux) VI aproxima-te agora desta última: ela esta que não está na tela: ela aproxima-te e te detém longamente deixa que isso leve toda a vida — também cézanne levou toda a vida tentando esboçando (obsedado em papel e tinta e lápis e aquarela e tela e proto/tela) estas banhistas fora d'água como peixes mortos na lagoa ou na superfície banhada de tinta — uma tela banhada é uma banhista hélas! e não usamos mais modelos vivos ou melhor os nossos dois únicos modelos:a crítica e a língua estão mortos por isso antes de partires daqui para a vida turva torvelinho a turba antes de te misturares ao vendaval das vendas à ânsia de mercancia cola o teu ouvido ao dela: escutarás o ruído do mar como eu neste instante na ilha de paquetá ou na ilha de ptyx? Em tintas de latim Carlito Azevedo Neste exato instante iluminam a vida, fulgor único logo liquidado por um bater de portas: pouco mais sei sobre as meninas além dessa chispa que finda em estrondoso trovão; sei que enquanto em tintas de latim minhas pupilas vão virando papiros (e meus cílios, paliçadas), nelas, em seus olhos-glicínias,

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nem por isso algum azul mais ou menos se turva ou tur malinas. Vers de circonstance Carlito Azevedo Eram três mulheres e a noite descia de seus olhos em ondas de aroma escuro eram três sob o lençol branco * eram três almofadas três relâmpagos de mãos dadas * três gargalhadas de febre afiada contra jasmineiros * fazia frio nas vespas e não no ar — nos peixes e não no mar — e nem no corpo e nem no desejo * pois uma ria como ágata branca outra era branca a terceira era de Sefarad

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Maldoror Carlito Azevedo "Va-t-il nous déchirer" S. M. vês a mesa? e sobre a? virado de lá para cá por preciosos instrumentos cirúrgicos — sonda? chumbo? bomba? — o pulmãzinho do rouxinol? POR TRÁS DOS ÓCULOS ABAULADOS Carlito Azevedo P/ Walter Gam ....E acordei me debatendo no carpete do hotel miserabilizado ao som do mantra televisivo, convulsionado. Um gole de café ajudou a dissipar a aura ferruginosa do pesadelo. Era isso o que eu sempre quis dizer quando falei em fundo do coração. Toda a noite me obcecaram em sonho aqueles peixes fluorescentes: fluxo cínico que eu acompanhava da janelinha do avião; ou que justamente me seguia? assustadoramente me seguia? Contra tal gratuidade e incompletude, qual antídoto? O sorriso do efebo, talvez, retirando dos jeans surrados fotografias de afeto e destruição, todo ele, aliás, afeto e destruição, como me escreveu depois num guardanapo de papel com encantadores desenhinhos? Uns olhos que faziam tudo valer a pena? Os da garota-esquimó, fã de Darwin, a quem eu desejaria dedicar um poema chamado "Galápagos" por ter dito que eu agora tinha um lugar para dormir. A busca de meu próprio rosto no alfabeto azul-ozônio que subia, livre, tatuado,

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braço acima e céu acima, até a praia de flamingos de um colo nu, órbita de miçangas lunares, sublunares. Não há resposta, camponês, nunca houve em céu algum, vida alguma, isso de respostas na veemência de uns espelhos. E assim, enquanto avançavam as horas no Relógio de Júlio de Abreu e ficavam para trás todos os sorrisos ("e esquilos brincavam nesses sorrisos como se sobre ramas", sussurrava uma voz volátil), dentro do táxi, no fundo do coração, disparado, seguia comigo o rosto de Marília. (Do livro inédito: Margens)

MARGENS Carlito Azevedo 1 Nem procurar, nem achar: só perder. Como o tremulante cachecol florido de Andi a flutuar no céu por alguns segundos antes de desaparecer completamente na noite escura da Marina da Glória, onde, por causa da névoa, os barcos ancorados, com nomes como Estrela-Guia e Celacanto, também pareciam querer fugir de si mesmos. 2 "De modo que a lanterna deste aqui por um instante deixa de brilhar para como que reaparecer mais adiante, mais fulgurante, na popa daquele outro ali. Olhe ao redor, estamos no Rio de Janeiro ou fomos lançados na paisagem complexa de um conto tradicional chinês?" 3 (O cachecol, ainda) Ele rodopiou no ar e desenhou com uma das extremidades vários círculos dourados, uma espécie de hélice. Parecia seguir para o mar, mas uma lufada o lançou para o outro lado: uma seta acesa e maleável sobre o canteiro de gerânios, na direção das pistas de alta velocidade do Aterro do Flamengo. Batemos uma foto e prometemos voltar amanhã. Não à Marina,

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mas ao Museu de Arte Moderna, e ver a "Biblioteca sem nome", o Monumento do Holocausto da Judenplatz, de Rachel Whiteread. 4 Por isso esse poema não começa com um menino, com um menino cantor sobre uma barca, com uma barca cortando a água e o nevoeiro, com um nevoeiro adensado por árias do folclore polonês e refrões militares prussianos na voz de uma menino cantor. 5 "Quando chegamos ao nosso acampamento, comemos alguma coisa, e nossas garotas logo foram se deitar. Nós ainda nos demoramos um pouco vendo tevê, fumando, e pela janela não cessávamos de ver o fantástico fundo de chamas de todas as cores imagináveis: vermelho, amarelo, verde, violeta, e de repente..." 6 Vai ficar mais difícil estacionar carros aqui na Judenplatz e não é um monumento bonito e eu teria preferido que tivessem por fim se decidido a utilizar aquela solução anti-spray pois ninguém também vai gostar de ver suásticas pintadas sobre ele, eu não gosto dele, mas já que está aí eu e ninguém vai querer ver suásticas pintadas sobre ele. 7 "Ele me pergunta se minha garota já foi casada e eu: 'Não. Mas esteve muito apaixonada antes. Aquele que ela amava foi ferido, gravemente, seus órgãos saíam-lhe do corpo. Ela os recolocou com suas próprias mãos, levou-o para o hospital. Ele morreu. Puseram-no na vala comum, ela o exumou, deu-lhe uma sepultura.' Para ele, este simples episódio é o cúmulo da virtude." 8 "Ele me perguntou: 'e se ela começa a gritar muito alto você usa as mãos para cobrir sua boca ou deixa que ela grite o quanto tiver para gritar?' Depois ele me perguntou: 'E o que ela faz da vida?', e eu: 'Trabalha numa editora alpina'. E ele: 'Ah, sim?', e eu: 'Sim, sim. Ela escreveu e publicou guias de montanha. Ela editou uma revista alpina."

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9 Rachel Whiteread (ao ver seu monumento finalmente inaugurado): - Foram cinco anos de inferno. 10 Estou falando de dias ensolarados, estou falando de dias escuros, quer dizer, estou falando de flores, sim, de lombadas de livros, portanto de douraduras, isso quer dizer, de crianças brincando e nadando na água da inundação, de queimar as cartas do escritor famoso, da fumaça subindo e deixando aquela mancha no teto, eu não estou falando das colinas de Berkeley mas dos entregadores de pizza porto-riquenhos de Berkeley, dos entregadores de pizza húngaros de Santiago, dir-se-iam livros que não se abrem, de portas que não se abrem, de sonhos que não, de um pesadelo recorrente, de uma resina, um cavalo correndo, não são livros de areia. 11 Con frecuencia, en artículos publicados en la prensa o en los mismos intercambios de la calle, los vienenses cuestionaban tanto la "oportunidad" como la misma "necesidad" de recordar el Holocausto. Tras el estudio de los distintos proyectos, el jurado seleccionó la propuesta de la joven escultora británica Rachel Whiteread. En el camino quedaban múltiples obstáculos: desde la insistente oposición de la ultraderecha (ahora sumada a la coalición gobernante), hasta las mismas organizaciones de sobrevivientes (insatisfechos con el diseño de Whiteread por su contenido excesivamente "abstracto"). Ellos argumentaban que las víctimas del extermínio "no murieron en abstracto". 12 (epílogo, à maneira do teatro de Gertrude Stein) Dir-se-iam pétalas. Aquelas? Estas. Antes profusão. Dir-se-iam montes de merda. Dir-se-iam céus. Camuflagens. O que é a Legião Condor? Dir-se-ia fixo? fúcsia? Dir-se-ia farpado? Figuração. Troncos. Cepos. Minas terrestres (mas aqui, aos teus pés, crescem agora essas florezinhas azuis e roxas). Dir-se-iam maiúsculas. Toda a tarde? Entre lobo e cão. Dir-se-iam pescadores.

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Nada assemelha. Um chamado à ordem, e no entanto trovões. Hematomas no lago, dir-se-ia entrever. Dir-se-ia chuva de ouro? Eram vagões? Ali, hipoglicêmico. (Do livro inédito: Margens)

SOB O DUPLO INCÊNDIO Carlito Azevedo Sob o duplo incêndio da lua e do neon, sobre um parapeito de mármore, entre duas cortinas jogadas pela brisa marinha que ao mesmo tempo às suas coxas e costas dispensava um hálito incontínuo, inundando de rubro o restrito perímetro de seu jarro em cerâmica e contrastando , imemorial, com a transitoriedade de tudo ali

(hotel, amor, carros, dia, noite)

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uma flor alheia a símbolos atingia seu ponto máximo de beleza. de 41 POETAS DO RIO, org, Moacyr Félix. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998 LIMIAR Carlito Azevedo A via-láctea se despenteia. Os corpos se gastam contra a luz. Sem artifícios, a pedra acende sua mancha sobre a praia. Do lixo da esquina partiu o último vôo da varejeira contra um século convulsivo. de 41 POETAS DO RIO, org, Moacyr Félix. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998

SERPENTE Carlito Azevedo O nome como veneno e o poema como antídoto extraído do próprio nome de 41 POETAS DO RIO, org, Moacyr Félix. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1998

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BAJO PROGRAMA Carlito Azevedo Pequenas peças, algum lirismo que a ironia mediatize entretanto< pouco caso como o resto — uma pessoa que surja de repente e da qual note-se apenas o cigarro, aliás, a cinza que tomba enormemente, manhãs, mais do que noites. A flor ausente. de Sob a Noite Física, Cotovia, 2001 LIMIAR Carlito Azevedo A via-láctea se despenteia. Os corpos se gastam contra a luz. Sem artifícios, a pedra acende sua mancha sobre a praia. Do lixo da esquina partiu o último vôo da varejeira contra um século convulsivo. de Sob a Noite Física, Cotovia, 2001 VENTO Carlito Azevedo A manhã e alguns atletas desde cedo que estão dando voltas — á Lagoa. Outros seguem para o Arpoador (onde o ar é de sal e insônia e a beleza ri com urna flor de álcool entre os dentes). O mar desdobra suas ondas sob o violeta dos olhos da menina no alto da pedra. Um falsete fica reverberando sem querer morrer. Dos cabelos desgrenhados de meu filho se desprega, ao vento, como um sorriso, como um relâmpago, um pensamento triste. De Sob a noite física, Cotovia (1996)

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NA GÁVEA Carlito Azevedo Enquanto o vento sopra contra a flor caduca da pedra, um som mais belo que o som das fontes nos seduz a invocar do cubo da treva nosso de cada noite que nos dê — não outro dia, cbuva nos cabelos, lampejos do sublime entre pilotis de azul e abril, mas apenas a vertigem do ato, o vermelho do rapto, a chegada ao fundo mais ardente, onde tornar a reunir cada fragmento nosso, perdido, de dor e de delicadeza. De Sob a noite física, Cotovia (1996)

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