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17 DEZEMBRO 2010 JANEIRO 2011 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA QUENTIN TARANTINO O que ele tem a ver com o português Manoel de Oliveira? EDUARDO GIANNETTI Uma obra entre a ficção e a não ficção para sacudir o leitor RODOLFO WALSH Escritor argentino estreia no Brasil com dois livros Carlo Ginzburg Ele se transformou em um clássico da historiografia do século 20 e influenciou o Vaticano na abertura dos arquivos da inquisição

Carlo Ginzburg

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Page 1: Carlo Ginzburg

17DEZEMBRO 2010JANEIRO 2011

DISTRIBUIÇÃOGRATUITA

QUENTIN TARANTINOO que ele tem a ver com o português Manoel de Oliveira?

EDUARDO GIANNETTIUma obra entre a ficção e a não ficção para sacudir o leitor

RODOLFO WALSHEscritor argentino estreia no Brasil com dois livros

Carlo GinzburgEle se transformou em um clássico da historiografia do século 20 e influenciou o Vaticano na abertura dos arquivos da inquisição

Page 2: Carlo Ginzburg

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ocorrem eventos nacionais e internacionais Cursos de mestrado e doutorado de excelência (CAPES/MEC) que possibilitam a

continuidade nos estudos

Page 3: Carlo Ginzburg

é uma publicação da ARQUIPÉLAGO EDITORIALAvenida Getúlio Vargas, 901/50690150-003 — Porto Alegre — RS Telefone: (51) 3012-6975www.arquipelagoeditorial.com.brwww.revistanorte.com.br

Conselho editorialCristiano Ferrazzo, Fernanda Nunes Barbosa e Tito Montenegro

EditorVitor Necchi

Colaboraram nesta edição: Atilio Bergamini, Augusto Paim, Delfin, Flávio Ilha, Eduardo Wolf, Fabio Silvestre Cardoso, Felipe Pimentel, Gilmar Fraga, Leandro Pizoni, Leonardo Bomfim, Moa, Pedro Gonzaga, Raul Krebs, Reges Schwaab, Ricardo Araújo, Rodrigo Bonaldo, Roberto Barberena Graña, Rogério Pereira e Sérgio Rodrigues.

Impressão: Edelbra

Imagem da capa: Raul Krebs/Estúdio Mutante (www.estudiomutante.com.br)

ISSN: 1982-212X

editorial

O vigor da entrevistaDizem por aí que as fronteiras andam se diluindo e que ficou fácil, muito fácil estabelecer comunicação com qualquer pessoa. Bastaria um pequeno artefato, mais uma boa conexão e pronto — desfez-se a distância. Isso é verdade, mas o apelo da conversa frente a frente segue irresistível quando se trata de uma entrevista. Testemunhar sem filtros ou mediações a fala do interlocutor eleva o diálogo a uma potência maior e singular. Sendo assim, não se pode deixar passar uma boa oportunidade.

Para esta edição da NORTE, fomos atrás não de uma boa, mas de uma imperdível entrevista com um intelectual que já inscreveu seu nome entre os historiadores mais celebrados do século 20. Trata-se do italiano Carlo Ginzburg, que esteve em Porto Alegre participando do projeto Fronteiras do Pensamento.

O texto no formato pergunta-resposta é precioso porque revela a fala original do entrevistado, por isso deve ser adotado com parcimônia, principalmente nestes tempos em que muitos falam de tudo. Perseguindo esse padrão de qualidade, o doutorando em história Rodrigo Bonaldo perguntou, provocou e debateu com Ginzburg, enquanto o semblante expressivo do animado intelectual era fotografado por Raul Krebs. O resultado se encontra estampado nas páginas desta NORTE.

Vitor [email protected]

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sumário

curtas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

soBrescritos

Quinze anosSérgio Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6

história

Muito além de queijos e vermesRodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

história • entrevista

Carlo GinzburgRodrigo Bonaldo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

páginas do rascunho • entrevista

Eduardo GiannettiFabio Silvestre Cardoso e Rogério Pereira . . . . . 16

livros • resenhas

Diário do hospício e O cemitério dos vivos, Lima BarretoAtilio Bergamini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Essa mulher e outros contos, Rodolfo WalshFlávio Ilha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Operação massacre, Rodolfo WalshReges Schwaab . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Os beats, Harvey Parker, Ed Piskor e Paul BuhleAugusto Paim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Demônios em quadrinhos, Aluísio de Azevedo por GuazzelliDelfin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Narrar, ser mãe, ser pai, Celso GutfreindRoberto Barberena Graña . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

cinema • artigo

Um encontroLeonardo Bomfim . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

cartum

FundamentalismoMoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

humor

Sorria, você está no mundo low-costPedro Gonzaga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

páginas filosóficas

Multiculturalismo, relativismo e coerência (2)Eduardo Wolf e Felipe Pimentel . . . . . . . . . . . . . 40

escritório gráfico

Jean-Paul Sartre por Gilmar Fraga . . . . . . . . . . . 42

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curtas

Schlee, Cirandar e FestiPoa vencem Fato Literário

Livraria Bamboletras completa 15 anos

O escritor e tradutor Aldyr Garcia Schlee, a ONG Cirandar e a FestiPoa Literária foram os vencedores do Prêmio Fato Literário 2010, promovido pelo Grupo RBS com o apoio da Caixa Econômica

personalidade. Ele é autor de duas dezenas de livros, entre eles o recém-lançado romance Dom Frutos. Também eram finalistas as escritoras Lya Luft e Verônica Stigger e a professora de filosofia e literatura da UFRGS Kathrin Rosenfield.

Na categoria projeto literário, o júri oficial premiou a organização não-governamental Centro de Integração de Redes Sociais e Culturas Locais, conhecido como Cirandar, que incentiva a leitura em comunidades carentes e busca fortalecer as bibliotecas comunitárias. Na votação popular, que contabilizou 29.204 votos, o vencedor foi a FestiPoa Literária, evento anual que promove conferências, leituras, palestras e saraus gratuitos em diversos locais da cidade. Entre os finalistas da categoria projeto estavam ainda o Gaúchão de Literatura, torneio literário que promove disputas entre livros pela internet, e a Revista NORTE. Os premiados pelo júri oficial receberam R$ 20 mil, enquanto o escolhido pelo público ganhou R$ 10 mil.

Foi em uma viagem pela Europa que a jornalista Lu Vilella teve a ideia de abrir uma livraria. Visitando lojas de bairro pelo continente, ela achou viável fazer o mesmo em Porto Alegre. Sua especialização em literatura infantil e a paixão pelo tema também contribuíram para que o projeto se concretizasse. Foi então que em 1995 nasceu na Rua da República a Livraria Bamboletras.

No primeiro ano, o acervo era voltado exclusivamente para crianças. A crescente procura por obras de outros gêneros literários pelos pais dos leitores infantis fez com que a livraria abrisse seu leque e passasse a atingir todos os públicos. Junto com a mudança de acervo veio a transferência para outro local. A Bamboletras deixava a Rua da República

para se instalar na Rua General Lima e Silva, no Shopping Nova Olaria.

Aos poucos, com sua “simplicidade involuntária”, como define Lu, a Bamboletras vem conquistando seu público. A localização, em um bairro boêmio e que respira a cultura porto-alegrense, foi fundamental para que a livraria ganhasse adeptos. “O cliente entra na loja e se sente em casa. De cara já escuta algo familiar no som ambiente, uma trilha que certamente escuta em casa, depois disso, o acervo variado faz com que se identifique com a Bamboletras”, explica Lu.

Reduto de músicos, poetas, escritores e jornalistas, a Bamboletras se consolidou como um dos símbolos culturais de Porto Alegre. “A livraria tem a cara da tribo cultural da cidade, e seus componentes,

além de muitas afinidades, têm em mente contribuir para melhorar o mundo através da cultura”, aposta Lu. Conhecer o gosto de seus clientes também é um diferencial da Bamboletras. “Saber quais livros o cliente leu, recomendar certas obras e acertar na dica também é uma ótima maneira de fidelizar o leitor.”

Nem mesmo a competição com megastores e com a internet fez com que a Bamboletras perdesse clientes. E agora, em novembro, completa 15 anos pautados pelo slogan “Livraria para todos os gêneros”. O significado é duplo. “Além de compreender todos os gêneros literários, a Bamboletras também compreende todos os gêneros humanos. Aqui, todos têm seu espaço, não existe preconceito”, proclama Lu. — Leandro Pizoni

Federal. O resultado foi anunciado em 15 de novembro, último dia da Feira do Livro de Porto Alegre, em cerimônia no Clube do Comércio. O júri oficial, composto por 123 votantes, elegeu Schlee na categoria

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Blog debate criação de capas de livrosSamir Machado de Machado fica intrigado. Desconhece como as pessoas descobrem e se interessam pelo SobreCapas (sobrecapas.blogspot.com), página que mantém na internet para apresentar capas de livros e discutir sobre os projetos gráficos. E o interesse vem aumentando. Com pouco mais de um ano (o primeiro post é de 13 de outubro de 2009), o blog recebe uma média de 70 visitas por dia.

O projeto surgiu despretensioso, como forma de arquivar informações. “Toda hora pesquiso nos sites das editoras exemplos que salvo e posto no blog para ter como referência”, revela Samir, que trabalha com design de livros há cerca de 10 anos, é um dos editores da Não Editora e também um dos responsáveis pela concepção dos projetos gráficos da empresa.

O SobreCapas supre uma ausência de publicações no Brasil centradas no design de livros. Ao trazer a discussão para o português, também abriu espaço para a criação nacional, pois a maioria dos que havia eram americanos e, portanto, falavam sobre capas americanas. O fato de mostrar o criador dos projetos é o grande trunfo do blog, que mescla apresentação, entrevistas e reflexões sobre os trabalhos.

Samir entende que uma boa capa precisa ser sincera na relação com o conteúdo da obra e sintetizar o clima criado no livro. Porém, mesmo trabalhando com elas e se confessando um apaixonado pela

criação, acredita que não é uma boa capa que venda um livro. “A função é fazer com que o leitor se interesse pelo livro e o pegue na mão. Se gostar, ele lê a contracapa, se a contracapa for boa, passa para a orelha, e se a orelha continuar interessante, fecha o ciclo e compra o livro”, projeta Samir. Mas ele mesmo é a exceção para seu postulado e já acabou enfeitiçado pelo projeto gráfico. “A única vez em que comprei um livro pela capa foi uma que o Marcelo Martinez criou para O rei do inverno [de Bernard Cornwell, editora Record], um livro de aventura histórica sobre o Rei Arthur”, admite. Era uma sobrecapa impressa em papel metálico que causava impacto na estante. “O verniz é carne de vaca, todo mundo usa e às vezes acaba ficando brega, mas um trabalho como esse é outra coisa. Por sorte o livro ainda era bom”, minimiza Samir.

O blog pode ser considerado reflexo de uma nova mentalidade quanto à aquisição de uma obra. Samir acredita que hoje em dia, mesmo com a digitalização de livros,

quem compra um caderno de papéis também está valorizando o trabalho gráfico desenvolvido com cuidado. O mercado brasileiro, aponta o editor, dividide-se entre antes e depois do surgimento da editora Cosac Naify, a quem atribui um significativo crescimento do nível dos projetos editoriais. “Se tu podes fazer com que o livro fique mais bonito, por que não fazer? Afinal, literatura é arte, e por que não tentar espelhar o conteúdo também na capa?”, provoca Samir. — Ricardo Araújo

Prêmio Açorianos tem nova categoriaOs vencedores da 16ª edição do Prêmio Açorianos de Literatura serão conheci-dos no dia 13 de dezembro, em cerimônia no Teatro Renascença, em Porto Alegre. Além dos livros ganhadores nas dez ca-tegorias (capa, projeto gráfico, infantil, infanto-juvenil, conto, crônica, poesia, narrativa longa, ensaio de literatura e hu-

manidades e especial), serão anunciados os destaques e ainda o Livro do Ano, cujo autor receberá R$ 10 mil.

Uma novidade neste ano é o Prêmio Açorianos de Criação Literária/Conto. Nessa categoria concorrem apenas coletâ-neas de contos inéditas. O vencedor rece-berá R$ 10 mil e terá seu livro publicado

com o apoio da Coordenação do Livro e da Literatura da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre. A apresentação do Açorianos 2010 ficará a cargo da dupla Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky, que interpretam, respectivamente, os perso-nagens Kraunus Sang e Maestro Pletskaya do espetáculo Tangos e Tragédias.

Embora Samir afirme que não

é a capa que vende um livro,

a criação de Marcelo Martinez

para O rei do inverno foi

determinante para que

comprasse a obra

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Quinze anos

soBrescritos • por sérgio rodrigues

SOBRESCRITOSSérgio RodriguesArquipélago Editorial152 páginasR$ 25

Sobrescritos em livroO escritor e jornalista Sérgio Rodrigues começou a publicar os contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog Todoprosa (www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem desde a primeira edição da revista, em novembro de 2007. Histórias do universo literário repletas de ironia, algumas delas foram reunidas no livro Sobrescritos — 40 histórias de escritores, excretores e outros insensatos, publicado pela Arquipélago Editorial, que edita a NORTE.

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Começou a escrever porque tinha quinze anos, porque ninguém parecia querê-lo por perto e porque o que ele mais desejava na vida era reencenar para o mundo o velho número do patinho que se revela cisne no final. Cinquenta e cinco anos depois, pegando com a faca uma pasta rosada extraordinariamente suspeita, es-palhando-a numa torrada quadrada de pacote e jogando tudo na boca de poucos dentes verdadeiros remanescentes, o escritor se lembrou de sua juventude, do princípio daquela ciranda maluca de ler, escrever, ser lido, ler, escrever de novo…

Vinham chamá-lo para cantar parabéns, uma das três coisas que mais abominava no mundo; as outras eram dentista e — o quê mes-mo? Tentou não parecer um perfeito débil-mental enquanto ento-avam aquelas palavras hediondas, às quais sua idade acrescentava agora o pecado do cinismo: muitos anos de vida, essa era muito boa.

Aos quinze anos, não era ainda sequer um escritor: ridículo ter saudade daquilo. E, no entanto, havia alguma coisa ali, no fundo do papel em branco, na relação da palavra com a coisa ou dele mesmo com a coisa, sabia lá ele, mas alguma coisa havia ali, sim, de belo e bom que se perdera por inteiro e que, voltando-lhe à lembrança sem mais nem menos, enquanto lhe cantavam para-béns-pra-você, fez o escritor sentir um calafrio.

Como sempre gostara de uma metáfora, rebuscou: feito o arrepio na alma sentido por quem, caminhando às cegas na noite fecha-da, descobre de repente ter tangenciado um abismo.

Agora pediam discurso, dis-cur-so — aquele corinho ritmado. Ele sabia ser impossível escapar. Setenta anos era uma marca grandiosa demais. Tinha oito romances nas costas, dos quais pelo menos cinco eram bastante dignos e dois, isso era (quase) consenso, autênticos clássicos contemporâneos. O que fazia dele, por qualquer critério crítico que se empregasse, um dos cachor-

ros grandes. Despejou sobre a pequena multidão um discurso desinspirado, soltou dois palavrões, arrancou risadas, agradeceu e foi se refugiar num canto do sofá, só ele e seu copo de uísque. Ninguém tentou impedi-lo. Escritores, socialites, editores, canto-ras, atrizes, bicões de colorações variadas, jornalistas, prostitutas, traficantes e parlamentares entretinham-se uns aos outros no sa-lão repleto de vozes e música.

O escritor fez girar no copo os cubos de gelo. Parecia-lhe tão distante aquele desejo inicial, a fagulha do anseio adolescente até hoje insatisfeito; tão distante, e mesmo assim tão dolorido. Olhando para a multidão matraqueante o escritor pensou, ainda não me querem por perto. Nunca quererão.

Deu um gole largo. Largo demais: um pouco de uísque lhe escor-reu pelo queixo. Nem eu tampouco as quero, pensou, e foi afun-dando no sofá. Suava frio. Foi quando lhe ocorreu, com nitidez tipográfica, o seguinte pensamento:

ESCREVER É TENTAR IMPRESSIONAR QUEM NÃO MERECE.

Depois disso, não soube de mais nada até que o calor o acordou em sua cama ao meio-dia, ressaqueado como há muito não se sentia, e até morrer, um ano e meio depois, de ataque cardíaco, o escritor nunca mais pensou em seus quinze anos. §

Page 7: Carlo Ginzburg

A Prefeitura de Porto Alegre, por intermédio da Secretaria Municipal da Cultura, convida para a Noite do Livro, cerimônia de premiação do Açorianos de Literatura e Açorianos de Criação Literária 2010.

Data: 13 de dezembro de 2010

Hora: 20h

Local: Teatro Renascença Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues Av. Erico Verissimo, 307

Realização

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Cúria arquidiocesana de Udine, complexo arquitetônico do Palácio Patriarcal, Friuli, norte da Itália, verão de 1962. Um jovem interessado nos processos inquisitoriais caminha por entre prédios tão antigos quanto os registros que procura. Era um dia especial. Um “douto sacerdote”, de nome Pio Paschini, ia acompanhá-lo pelos corredores com a promessa de abrir, pela primeira vez, a porta de uma “grande sala cheia de armários em volta”. Aquele arquivo, até então inacessível aos pesquisadores, envolto numa aura de mistério e sigilo, guardava “em perfeita ordem” quase 2 mil documentos referentes ao Tribunal do Santo Ofício. “Senti a emoção de um garimpeiro que dá com uma rocha inexplorada”, escreveria, anos mais tarde, um já renomado historiador Carlo Ginzburg.

Anos passados debruçando-se sobre as tais fontes, sem interromper sua deambulação erudita pelas alas dos arquivos, e Ginzburg daria forma ao que veio ser um primeiro livro, considerado ainda hoje por ele seu estudo mais inovador. Os andarilhos do bem (1966), título brasileiro, contava a história dos benandanti, grupo de friulanos que acreditava defender as colheitas do mau olhado feiticeiro. Suas práticas e rituais de fertilidade, prováveis reminiscências pagãs, foram, no entanto, vistas pelos inquisidores dentro de esquemas de origem culta a respeito da bruxaria. Com o tempo, os “antifeiticeiros” seriam pintados como bruxos. Como o autor sintetizaria mais tarde, as batalhas semânticas na história parecem ser vencidas por quem detém mais poder.

Ginzburg nasceu em Turim no ano de 1939, em uma família de intelectuais judeus. Com cinco anos de idade perderia o pai, Leone, assassinado pelos fascistas. Passou a infância na reclusão do campo, escutando os contos de fadas que a mãe, a escritora Natália Ginzburg, contava-lhe ao pé da cama, para que a fantasia e o sono afugentassem os temores da perseguição.

Sonhava em seguir os passos maternos, mas sua trajetória, após ingressar na faculdade, levou-o ao estudo da história. Hoje, pelas benesses da distância, parece-lhe um tanto óbvio ter se interessado, ainda na juventude, por estudar a feitiçaria — ou, melhor dizendo, pela maneira como os bruxos se enxergavam. Sendo judeu, identificava-se com minorias perseguidas; quando criança, não via a hora de escutar as estórias da mamãe. Mais tarde, a própria ligação entre a bruxaria, o sabá e os contos de fadas seria explorada por ele no livro História noturna.

Estudar essas minorias, mesmo que por acaso, acabaria levando Ginzburg a ocupar espaço na história eclesiástica. Era 1979, e o pesquisador italiano procurava um processo inquisitorial. O original encontrava-se num arquivo em Veneza. O texto era enorme, de modo que o encarregado por copiá-lo pediu “um dinheiro a mais” para realizar a transcrição. O historiador chateou-se e resolveu buscar outra cópia. Acreditava que deveria existir uma em Roma. Mandou uma carta pessoal para o papa João Paulo II, pois os fundos romanos da inquisição estavam interditos. Apelou para questões gerais, declarando-se “judeu, ateu e historiador”, alegando que a Igreja deveria submeter-se ao julgo da história. Não houve resposta. Escreveu outra carta, dessa vez mais burocrática, e recebeu uma resposta do responsável pela seção, o então cardeal Ratzinger. O homem que viria se tornar o papa Bento XVI dizia que tinha mandado checar e que o documento não mais existia. Em 1998, João Paulo II resolveu abrir os arquivos. Na ocasião, Ratzinger declarou que uma carta de 1979, de um historiador chamado Carlo Ginzburg, havia sido muito importante para aquela decisão.

Anos antes, ao procurar evidências sobre os benandanti, Ginzburg deparou com uma sentença bastante longa. “Uma das acusações feitas a um réu era a de que ele sustentava que

MUITO ALÉM DE QUEIJOS E VERMES

história

RODRIGO BONALDO

O historiador italiano Carlo Ginzburg desenvolveu um estilo que envolve o leitor em uma trama minuciosa entre evidências, contradições,

possibilidades, leituras e versões acerca de um objeto

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o mundo tinha origem na putrefação”, registrou mais tarde. Anotou o número do processo e o nome do acusado: chamava-se Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, um moleiro de vida camponesa que havia aprendido a ler. Hoje um velho conhecido dos historiadores, ele defendia, vezes sem conta perante comissões inquisitoriais, que o universo havia sido criado de um colossal queijo podre e que Deus e os anjos eram originariamente vermes que habitavam seu interior. Tudo isso enquanto os juízes registravam-lhe a fala, os trejeitos, mesmo detalhes sutis como um leve rubor — minúcias descritivas que fariam Ginzburg estudar, em curioso texto da década de 1980, o Inquisidor como antropólogo.

Na análise do historiador, aqueles exóticos relatos revelavam o conflito entre duas culturas que ainda habitavam, em dias seiscentistas, espaços similares. A cultura dos inquisidores, erudita, de saber clerical, tendia novamente a classificar as ideias do moleiro segundo diagramas cultos de conhecimento, com seus tratados de demonologia, seus bestiários e processos anteriores. A cultura de Menocchio, popular, com raízes em remotas tradições camponesas, dava uma interpretação

amplamente não canônica à origem católica do mundo: Scandella sabia ler — Ginzburg consegue inclusive mapear os livros que teria lido — e havia interpretado os códigos da cultura erudita de maneira perigosa. Bom exemplo de “circularidade cultural”, termo tomado de empréstimo a Mikhail Bakhtin.

A publicação de O queijo e os vermes em 1976 causou alvoroço entre os historiadores. O livro é hoje considerado um dos grandes clássicos da historiografia do século 20. Suas fontes, seus métodos, seu recorte, enfim, seu personagem eram ao mesmo tempo tão originais quanto bem-vindos dentro de uma atmosfera intelectual dominada pela “história das mentalidades” à la francesa. Mas seus objetivos já eram outros. Aquela historiografia, essencialmente interclassista, estudava o que havia de comum entre “César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”. Não, O queijo e os vermes, carro-chefe do que ficou conhecido como “micro-história italiana”, não buscava as estruturas mentais comuns a uma época. Seu método era a “redução da escala de observação” (termo cunhado por seu colaborador Giovanni Levi), o olhar individual sobre os personagens do passado, o estudo

Ginzburg acredita que a dimensão contextual e microscópica deve ser o princípio organizador da narração

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dos pormenores, da alteridade (e não da identificação) que se estabelecera, certo dia, entre um inquisidor e um camponês.

Mas aqueles episódios individuais ocorridos na Itália do século 16 não deveriam ficar isolados de seu contexto. Longe disso. A relação entre a dimensão contextual e microscópica deve ser, para Ginzburg, o princípio organizador da narração. Sendo assim, afirmava que as condições materiais que credenciaram o resgate de um personagem como Menocchio haviam se dado, por um lado, pela invenção da imprensa — que tornou possível as mãos de um simples moleiro encontrar incunábulos de toda sorte — e por outro, pela reforma protestante — que incentivou a vigilância dos tribunais de inquisição, inundando a Europa com uma perspectiva cristã diversa.

O trunfo intelectual de um trabalho como aquele desenvolvido pelo primeiro Ginzburg dava-se pela não submissão de suas páginas a esquemas deterministas de explicação. A história econômica e social dos anos 1960, influenciada ou não pelo marxismo, tendia a compor narrativas assépticas, que sufocavam o papel dos agentes históricos, movidos por entidades macroestruturais habitadas por “personagens” abstratos como nação, classe, Estado ou ideologia. Seus métodos flertavam com a análise de amplas documentações, organizadas em séries. Era a época de ouro da chamada “história serial”, uma época na qual avançadíssimos computadores a base de cartões perfurados organizavam o emblemático e relevante e dispensavam o estranho e irrelevante. Parecia impossível, para esse tipo de historiografia, “estender às classes mais baixas o conceito histórico de indivíduo”. Os de baixo, caso figurassem na história, só o podiam fazer sem voz, amordaçados pelo pano frio da estatística.

Ginzburg conseguiu mostrar, no entanto, que Menocchio não era inaudível e, menos ainda, irrelevante. Era, com toda certeza que podemos ter, um personagem estranho, excepcional, mesmo para os seus contemporâneos. Mas era também paradoxalmente um porta-voz do normal, no sentido de que conseguiria, mesmo ao custo das chamas inquisitoriais que consumiram seu corpo no distante ano de 1599, relegar à posteridade — com suas palavras grafadas nos autos do Santo Ofício — aspectos preciosos a respeito da cultura camponesa. Foi justamente pelo estudo não preconceituoso acerca do aparente bizarro que se tornou viável captar, no passado, um “outro” em sua dimensão humana. Por trás do estranho, encontrou-se algo como uma poética da verdade. “Menocchio é um de nós”, dizia o historiador italiano, mesmo que seja alguém também “muito diferente de nós”.

O estilo desenvolvido por Ginzburg, já evidente em seus primeiros livros, envolve o leitor em uma trama minuciosa

entre evidências, contradições, possibilidades, leituras e versões acerca de um objeto. O resultado é alcançado por meio de uma erudição atordoante que vez por outra pode se mostrar difícil de penetrar mesmo para o historiador de ofício. Mas esse procedimento possui um motivo sensato. É a consequência instigante, isso sim, da adoção de um modelo epistemológico que o historiador italiano, em ousado artigo de 1979, propunha ser o dominante no âmbito das ciências humanas.

O “paradigma indiciário” foi na verdade uma proposta de método investigativo centrado nos pormenores, nos resíduos, nos rastros mais tímidos, considerados reveladores. Ginzburg via antecedentes desse método em certos críticos de arte oitocentistas, na literatura detetivesca de Arthur Conan Doyle, na psicanálise moderna e na semiótica médica. Todos esses fenômenos intelectuais, por mais diversos que fossem, possuíam em comum a característica de se aterem a sinais considerados irrelevantes ao olhar leigo — fossem esses detalhes o formato das mãos pintadas a óleo por um artista do Quattrocento, as minúcias lógicas em uma investigação de Sherlock Holmes, manifestações do inconsciente em Freud ou ainda o diagnóstico médico com base na análise de sintomas superficiais.

Como dinâmica narrativa, o modelo indiciário seguia a linha não do realismo ingênuo, da victorian naïveté, do narrador onisciente que caracterizou a escrita da história durante tantos anos. No texto de Ginzburg, não se ouve a voz daquele sujeitinho insuportável, petulante e enfadonho que narra a História Universal como Deus narrou o gênese. Pelo contrário, as vozes de sua narrativa admitem a dúvida, problematizam os temas, informam os caminhos abandonados, explicitam a incerteza pela exposição de hipóteses, conferindo ao relato um tom de enigma. Afinal, mesmo “obstáculos da pesquisa sob a forma de lacunas e distorções de documentos devem se tornar parte do relato do historiador” — defenderia mais tarde. Assim, reconhecia a precariedade de nosso relacionamento com o passado ao mesmo tempo em que reafirmava a capacidade de conhecê-lo. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas — sinais, indícios — que permitem decifrá-la”, pensava.

O paradigma indiciário no fundo parecia querer reproduzir o gesto (ou seria o arquétipo?) “talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa”. Se os pré-históricos perseguiam sua comida, o alimento do historiador moderno seria a verdade — ou, ao menos, a “verdade possível”, aquela demonstrável através de documentos.

De 1981 a 1988, anos nos quais a editora Einaudi (Turim) publicou uma revista de Microstorie, Carlo Ginzburg destacou-

história

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se como polemista. Desde cedo já havia protagonizado discussões com Michel Foucault, filósofo que lhe parecia mais interessado nos sistemas discursivos de exclusão do que nos próprios excluídos, com os seguidores de Roland Barthes e, sobretudo, com os desconstrucionistas mais radicais que tendiam a reduzir a história ao suporte linguístico que a contava, espécie de discurso sobre si mesmo condenado à análise intertextual e à fruição estética.

O chiste mais conhecido talvez ainda seja aquele com o primeiro Hayden White, que para ele observava a historiografia como pouco mais que um sonho do historiador, uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa, incapaz de decidir, em nome de uma postura relativista, se determinada representação é mais ou menos adequada à realidade. Suas querelas se arrastaram por anos, e de certa forma intensificaram-se a partir de 1988, quando Ginzburg começa a lecionar na Universidade da Califórnia (UCLA) e encontra, nos Estados Unidos, um clima intelectual marcado pelos desdobramentos relativistas do multiculturalismo.

O relativismo epistemológico, de tendência cética, mostrou-se moralmente problemático. Os debates negacionistas sobre o holocausto formaram um ótimo exemplo. Ginzburg, admitindo conservar “uma lembrança muito nítida da perseguição sofrida”, não demorou a se posicionar. Sua resposta às teses cépticas baseadas na redução da historiografia a sua dimensão literária, foi, outrossim, elegante e em nada emocional. Um esboço preliminar de suas inserções podem ser encontradas em contribuição ao livro Probing the limist of representation, publicado no ano de 1992, agregando diversos autores que tentavam responder se era possível estabelecer uma representação objetiva de um evento traumático, como o holocausto, baseada em documentos e testemunhas, ou se cada interpretação era construída a partir da perspectiva de seu narrador. Suas falas, sempre defendendo a relação entre signos e referentes externos, concretos, atacavam o “pirronismo pós-moderno” (em história, nunca é demais dizê-lo, “pós-modernidade” tornou-se quase um sinônimo de linguistic-turn).

Já no final dos anos 1990 seus aportes teóricos foram compilados em livro que no Brasil sairia alguns anos mais tarde com o nome de Relações de força. Nele, investigam-se os argumentos pós-modernos, logo associados a uma matriz em Nietzsche que dispunha retórica e prova em cantos opostos do conhecimento. Ginzburg volta-se então a Aristóteles. Em uma famosa asserção que durante anos causou imenso imbróglio entre os estudiosos da teoria da história, o filósofo havia declarado, em sua Poética, a inferioridade da história em relação à poesia. Ora, como demonstra o historiador italiano, a obra aristotélica mais importante para a historiografia — no sentido em que ela hoje nos é familiar — não é a Poética, mas sim a Retórica. E a retórica de Aristóteles está intimamente ligada à noção de prova.

É munido dessa ideia de provar que o historiador, seguindo os fios e os rastros que o ligam ao passado — através, por que não, do paradigma indiciário, fruto do conhecimento erudito das fontes primárias —, torna-se capaz de construir representações aproximadas da verdade. E, se a história parece mesmo possuir uma dimensão literária inescapável, deve-se não ignorá-la, mas levá-la a sério e trabalhá-la, jogando para o íntimo da pesquisa (e de sua exposição) as tensões entre narração e documentação.Como um caçador a farejar uma presa, como os moleques de Hänsel und Gretel seguindo rastros de migalhas, da casa à floresta, do lar ao mistério, do senso comum ao conhecimento, do eu ao outro, do micro ao macro, por fim, a obra de Ginzburg demonstra-se o produto de uma reflexão que busca ir muito além de queijos e vermes. §

Rodrigo Bonaldo é mestre e doutorando em história pela UFRGS.

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Ginzburg analisa a obra de Piero della Francesca no livro lançado no Brasil

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“Somos todos cercados pela ficção, pela mentira”Sentado em uma poltrona do saguão do hotel, mãos erguidas dançando ao compasso da fala, o historiador italiano Carlo Ginzburg (1939) explicava a complicada relação entre verdade, ficção e mentira. O homem de cabelos desbastados, longas sobrancelhas formando espinhos que pareciam nascer de seu olhar, já passou dos 70, mas ainda conserva a energia intelectual dos vinte e poucos — por mais que as marcas do tempo, como fios e rastros, testemunhassem uma vida dedicada à erudição dos arquivos e bibliotecas do Velho Mundo. A partir dessas pesquisas, em 1976 publicou O queijo e os vermes, livro que causou alvoroço entre historiadores e é hoje considerado um dos grandes clássicos da historiografia do século 20. Com vários títulos lançados no país, Ginzburg se diz emocionado com o fato de universitários brasileiros aprenderem história a partir de seu legado intelectual. A maturidade do pesquisador — personagem que influenciou o Vaticano na decisão de tornar público os arquivos da inquisição — se revelou durante a entrevista concedida com exclusividade para a revista NORTE em 28 de novembro. Na manhã desse mesmo dia, Ginzburg havia chegado a Porto Alegre para proferir uma conferência no projeto Fronteiras do Pensamento.

O seu trabalho é muito conhecido no Brasil. Como se sente ao saber que os cursos de graduação brasileiros ensinam história com os seus textos?Fico emocionado. Penso também que seja um resultado da mente aberta e do grande trabalho de meu editor Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras. Ele é um dos dois melhores editores com quem já trabalhei na vida, o outro é o italiano Giulio Einauldi. Na verdade, estou muito impressionado com o alto padrão do mercado editorial brasileiro, o que se confirmou com meu lançamento recente pela Cosac Naify.

Analisando Piero é originalmente um trabalho de 1981. O senhor publicou-o no Brasil em 1989 pela editora Paz e Terra. O que há de novo nessa versão que agora é relançada pela Cosac Naify?Essa versão inclui quatro apêndices. Um deles é uma revisão de um aspecto de meu argumento. Eu lembro que tratei da questão em uma palestra em Frankfurt. Alguém chegou a dizer que me ver desmontar minha argumentação original era como presenciar a construção de um castelo e, depois, assistir à fortaleza

ardendo em chamas. Na verdade, eu queria corrigir certo erro que cometi, mas também penso que podemos tirar uma lição desse tipo de experiência. Sou muito preocupado com provas. E, por consequência, também me preocupo com as contraprovas. Quando percebo que estou enganado, gosto de compartilhar a contra-demonstração com meus leitores. Penso que esse procedimento seja instrutivo e excitante. Afinal, convenhamos, se a contraprova não for parte do jogo, seria como numa cena de Antonioni, no filme Blow-up, com pessoas jogando tênis com a rede baixa: não haveria sentido. As contraprovas são parte integrante do espetáculo. Elas devem ser mostradas, explicitadas, debatidas, creditadas. E se isso nos leva a ter nossa autoridade desacreditada, bem, teria a dizer apenas que, para o escritor, esse é um dos lados mais charmosos da boa crítica.

Seu lançamento analisa o trabalho de Piero della Franscesca a partir de dois eixos: em primeiro lugar, a iconografia; em segundo, o comissionamento (o mecenato, o patrocínio) de suas obras, ambos caminhos convergindo na direção de uma “história social da expressão artística”. Certa vez o senhor disse que um dos motivos da popularidade de seus livros no Brasil devia-se ao fato de que possuía uma ótima editora por aqui. Se alguém quisesse analisar o trabalho e a divulgação do pensamento de um historiador moderno — sem cair em idealismo — deveria, em última instância, prestar atenção ao papel que a lógica editorial cumpre? De que maneira o mercado intervém no ofício do historiador?Essa é uma ótima questão. Meus livros foram traduzidos para muitas línguas. Nenhum deles é um verdadeiro best-seller — eu nunca escreveria um. Entretanto, O queijo e os vermes foi um sucesso e, de repente, outros de meus livros foram traduzidos. Esse fato me deixou muito interessado, digamos assim, na capacidade que essas publicações tiveram de “viajar”, como se diz no vocabulário editorial (ou seja, sua “tradutibilidade” para diversas línguas), o que também implicava, em última análise, em se perguntar de que maneira esses livros foram recebidos. Eu posso apenas imaginar como leitores com diferentes bagagens puderam reagir a esses livros, pois, afinal, são textos que não foram escritos para eles. E então teve uma espécie de “valor desconhecido” dentro dessa equação. Considero muito instigante as pessoas poderem reagir a esse tipo de pesquisa

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inscrevendo-as em diferentes pensamentos e formas de educação. É claro que o mercado cumpre um papel. Por outro lado, parece existir algo de imprevisível a respeito da recepção desses livros, e penso que o mercado não pode explicar tudo nesse caso, porque, como disse antes, meus livros não são best-sellers no sentido mais tradicional do termo.

A história e, num sentido amplo, todas as formas de relacionamento com o passado — memórias, biografias, patrimônio, comemorações —, parecem se tornar mais populares nos dias de hoje. O que o senhor pensa a respeito? Quais são as raízes daquilo que já chegou a ser chamado, por Margaret Macmillan, de “fascínio pelo passado”?Não tenho certeza de que exista uma “fascinação pela história”. Alguém poderia argumentar, por exemplo, que o passado está se tornando mais frágil, e não falaria apenas no sentido físico. Penso que a fragilidade do meio ambiente afeta, igualmente, o tempo pretérito; por outro lado, a própria disponibilidade de imagens do passado pode implicar em um tipo de destruição do contexto. Essas constatações me forçariam no mínimo a afirmar que essa “fascinação pela história”, se é que ela existe, apresenta-se como um fenômeno ambivalente. Talvez a “oferta” do passado seja maior, mas é um tipo diferente de passado, e

nele existe veladamente um perigo de perder algo crucial sobre esse passado, que é a sua distância de nós — apenas porque ele se torna facilmente disponível.

No Brasil, história vende mais do que qualquer outro tema — mesmo mais do que auto-ajuda. Por outro lado, esses Best-sellers não são escritos por historiadores, mas por jornalistas. O senhor declarou sempre ter considerado importante escrever pensando em audiências amplas. Como conciliar o rigor de um trabalho acadêmico com uma narrativa atrativa ao público geral?Acredito que essa questão aparece dentro de minha entrada original dentro da escrita da história. De início, pensei que estava interessado em escrever para uma audiência profissional (não diria “acadêmica”). Também acreditava ter interesse em alcançar um público maior — não muito grande, verdade, porque nunca me ocorreu fazer nenhuma concessão à vulgarização histórica (que pode ser legítima, se feita de maneira correta, embora não estivesse interessado nela). Mirar esses dois alvos — a audiência profissional e o grande público — mostra que eu não estava disposto a fazer nenhum sacrifício em termos de rigor. Não sei se fui bem sucedido nisso, nessa tentativa de, por um lado, alcançar um público não limitado aos cursos de história e, por outro, não fazer nenhuma concessão às suas regras mais importantes. Por vezes penso que fiz bem, por outras, não tanto, especialmente quando olho para meus textos e percebo tópicos um tanto áridos. Mas acredito, sim, que ainda existam leitores que não são historiadores profissionais, mas que se sentiram atraídos pelo tipo de pesquisa que realizo. E, novamente, acredito que a abrangência das traduções em diferentes línguas implica que, em alguma medida, meus projetos foram vitoriosos — mas talvez seja um pouco de otimismo da minha parte.

Após mais de 30 anos, o senhor ainda acredita que o assim chamado “paradigma indiciário” é o modelo de facto para as ciências humanas?Por 25 anos eu não usei esse rótulo, temia me sentir preso em uma espécie de logo. Por outro lado, esse conceito poderia funcionar como uma espécie de atalho,um atalho que comportasse a ideia de sempre começar novamente, trabalhando nos resultados, em hipóteses, e então tentar complicá-las, deixando o processo evidente para o leitor, e assim por diante. Defendo que devemos tentar trabalhar nesse sentido. Aquele texto de 1979 foi uma espécie de ensaio em três camadas. Em primeiro plano, havia um argumento histórico — com o termo “história” entendido num sentido amplo. Nessa parte, falava de história conjetural no sentido oitocentista,de caçadores neolíticos e esse tipo de hipóteses gerais. Em segundo plano, aparecia uma espécie de argumento teórico implícito. No fundo disso tudo, havia uma ainda mais implícita autobiografia intelectual. Ora, essa autobiografia intelectual

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estava um tanto oculta. Era eu tentando compreender meu próprio trabalho de historiador — e isso estava por trás das pistas daquele ensaio. Ainda acredito que aquele ensaio possua um potencial interessante. Ele acabou mesmo sendo lido de diversas maneiras. Afinal de contas, quando alguém escreve um livro ou ensaio é como se mandasse uma mensagem que — sabe bem o escritor experiente — em geral retorna de maneira bastante imprevisível. Claro que é preciso uma audiência para isso, mas acredito que Sinais: raízes de um paradigma indiciário possuiu uma boa audiência. Ou, melhor ainda, várias delas.

O senhor ocupou uma cadeira na Universidade da Califórnia (UCLA) até 2008. Hoje em dia, como se apresenta o “clima intelectual” dentro da comunidade acadêmica norte-americana? O linguistic-turn e o pirronismo pós-moderno ainda estão fortes entre os estudantes e professores americanos?Faz alguns anos que não dou aulas nos Estados Unidos. Fiz visitas breves ao país para conferências, palestras e coisas e tal, e irei novamente para a UCLA em janeiro por algumas semanas. Minha impressão, posso estar errado, é de que existe algo como um fenômeno “pós-pós-moderno”, o que não deixa de ser tanto engraçado. Todos sabemos, existem fãs e pós-fãs. Nos Estados Unidos, alguém chegou a dizer que existia uma nova geração de acadêmicos prontos para desmontar ou atacar velhas posições, mas isso é superficial, no final das contas. Não é algo que lida com o que realmente me intriga. O que me interessa são questões e perguntas. E acredito que uma distinção entre essas duas etapas da investigação é muito importante. Eu nunca fiquei muito impressionado pelas respostas dadas pelos pós-modernistas. Acredito que suas respostas foram, em geral, enfadonhas, limitantes, desestimulantes. Mas as perguntas lançadas por eles permanecem. São questões que ainda estão entre nós, sobretudo o desafio de problematizar a referencialidade da história, de qualquer documento que nos ligue ao passado. Isso é algo que deve ser lidado de maneira muito séria. Somos todos cercados pela ficção, pela mentira. Afinal, não deixa de ser por esse motivo que a verdade torna-se ainda mais importante.

Uma crítica estética da historiografia é válida em algum sentido? É possível utilizar instrumentalmente o trabalho de, digamos, Hayden White ou F. R. Ankersmit sem levar seus argumentos até as últimas consequências? Ou, pelo contrário, essas formas de relativismo são sempre perigosas, levando a sabores irracionalistas capazes de permitir que uma moralidade fascista seja reproduzida?Moral fascista seria um pouco demais. Não diria isso. O que eu diria é que certamente existem perigos nessas atitudes, mas, insisto: devemos fazer uma distinção entre perguntas e respostas. Esse é o melhor caminho para uma atitude anti-dogmática, ou anti-ideológica. Porque, como venho dizendo

há anos, especialmente no que se refere à esquerda — a qual pertenço —, existe uma tendência a descartar questões caso suas respostas não sejam satisfatórias, o que é lamentável e, no fundo, cede argumentos aos nossos opositores. É por isso que distinguir problemas de soluções torna-se muito importante.

Poderia nos contar a estória de sua carta ao Papa João Paulo II?Ah, acredito que minha carta tenha sido bem sucedida, em última instância, já que os arquivos da inquisição foram abertos. Obviamente eu não sou o único responsável por essa conquista. Chega a ser engraçado porque eu havia até esquecido a tal carta. Vinte anos depois, como se sabe, houve todo aquele rumor sobre o Papa finalmente liberar os documentos do Santo Ofício. E não é que eles organizaram uma enorme conferência na Accademia dei Lincei? Eu fui convidado, recebi uma chamada pelo correio, mas respondi dizendo que infelizmente não poderia ir, pois tinha compromissos em Cambridge nos mesmíssimos dias — aliás, essas palestras que dei em solo britânico sobre a relação entre a literatura insular e a continental na Europa seriam publicadas no Brasil com o título de Nenhuma ilha é uma ilha. Depois de alguns dias, recebi um telefonema. Uma voz dizia ligar do Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede. Era o arquivista perguntando se eu havia recebido um convite. Disse que o envelope do Vaticano havia, sim, chegado às minhas mãos, mas que infelizmente não poderia ir. “Peccato!”, exclamou a voz do outro lado da linha.

Fiquei surpreso por aquele tom pessoal. “Senhor Ginzburg, entenda que sua carta foi muito importante para a decisão de abertura dos arquivos”, replicou meu interlocutor telefônico. “Minha carta?”, perguntei, respondendo a seguir que aquilo tinha sido há tanto tempo que tinha até esquecido. A voz, confusa, deve ter pensado que eu tecia ironias, pois, afinal, para a Igreja Católica 20 anos não são nada. “Sim, sim, aquela

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carta...” — e finalmente suspirei. Essa história é bizarra porque eu havia decidido mandar uma epístola informal, pensando que de outra maneira nunca receberia uma resposta. Nela eu escrevi “sou um judeu, um ateísta, um historiador”. O elemento crucial, hoje percebo, foi sem dúvida “sou um judeu”, pois de fato os arquivos da inquisição iriam reabrir porque um historiador judeu estava pedindo para abri-los, cumprindo, nesse sentido, certo papel político.

Qual a importância da decisão?A abertura dos arquivos foi um gesto muito importante. Eu estava pesquisando um processo — um processo do século 17 contra um judeu convertido, morto em Bologna naquela época. Eu precisava de uma cópia, e o rapaz que fazia as transcrições, lá no arquivo Estatal de Veneza, alegava precisar de um pagamento extra, porque, afinal, o documento era muito extenso. Mas por que tão longo? — pensei. Achei uma nota em Veneza dizendo que havia sido mandada uma cópia desse processo para Roma. Os arquivos romanos, eu bem sabia, foram sucateados ao longo dos séculos, sofreram muitas perdas nos seus acervos. Mesmo assim, decidi tentar. Mandei uma carta, uma carta pessoal para o Papa, porém uma carta que levantava questões gerais. Aleguei que os historiadores mereciam conhecer o passado, e que a Igreja Católica deveria submeter-se ao jugo da história. Karol Wojtyła era menos provinciano do que a maioria dos papas que já tivemos, com uma bagagem filosófica interessante. Quem sabe ele pudesse ouvir meu apelo, quisera possuísse uma mente mais aberta — tal não foi o que realmente acabou por acontecer.

Alguns meses atrás, o professor Carlos Fico, após ter negado seus pedidos de acesso a documentos referentes ao período da ditadura militar brasileira (1964-1985), pediu demissão do projeto Memórias Reveladas. Pela sua experiência com os arquivos eclesiásticos, qual deveria ser o papel do historiador a respeito das fontes do “passado proibido” brasileiro?Alguém poderia dizer que o exemplo dado pela Igreja Católica é reconfortante e, ao mesmo tempo, frustrante, pois eles abriram os arquivos, mas apenas depois de séculos... Essa mesma pessoa poderia dizer que seria desastroso caso tivessem liberado esses documentos alguns séculos atrás. Por outro lado, existe essa memória que a tudo assimila, usada como uma espécie de enorme guarda-sol, cobrindo e fazendo sombra a todos os tipos de relação com o passado. Eu fico realmente perplexo com isso. Acredito que a distância entre história e memória deveria ser protegida. Trata-se de duas coisas distintas. A memória é, digamos, alimentada, incentivada pela história, e vice-versa. História é algo específico, que implica técnicas específicas — memória pode ser extremamente emocional, mas também baseada em fatos errados, eventos distorcidos. Acredito que essa

distinção entre verdade e falsidade cumpre papéis diferentes na memória. Porque, se formos pensar, mesmo uma memória falsa pode ser extremamente dolorosa para suas vítimas.

Certa vez o senhor declarou que o fato de toda comunicação ser imperfeita, mas mesmo assim possível, é o que realmente o interessa e está na base do prazer que sente ao viajar. Em setembro de 2002, quando o senhor proferiu uma conferência em Porto Alegre, percebi que muitos de meus colegas e professores sentiram-se frustrados pelo tema escolhido. Qual a sua impressão sobre a conferência de 2002?Eu não lembro do assunto. Era algo muito difícil?

O senhor apresentou uma discussão um tanto erudita a respeito de um vaso renascentista grafado com imagens míticas de cinocéfalos, onocentauros, sátiros e outros motivos pitorescos...Ah, sim! Então o público ficou desapontado porque o tema da palestra não era o que eles esperavam? Talvez tenha sido uma má escolha. O objeto em si é magnífico, posso garantir, mas quem sabe minha análise fora inadequada. Devo dizer que, mesmo sabendo que não foi bem recebido, ainda gosto daquele artigo. Comunicar é algo complexo. A comunicação oral, especificamente, enfrenta duas possibilidades: ou você manda uma mensagem muito clara, facilmente assimilável, mas que então é diluída naquele ato comunicativo, ou você decide compor uma mensagem que é muito mais complicada, mas que pode apenas ser compreendida de maneira imperfeita. Geralmente prefiro trilhar o segundo caminho. Em outras palavras, acredito que seja melhor tentar transmitir a complexidade da pesquisa e, quando for o caso, na hora de publicar um artigo, talvez os espectadores poderão ler e reler o que eu disse. No meu ponto de vista, é importante comunicar a sensação do que uma pesquisa pode ser, mesmo que em alguma medida certo desapontamento possa aflorar. Espero que nesta minha visita a Porto Alegre não haja esse tipo de frustração, mas essa possibilidade existe e é um risco que preciso correr. Em síntese, odeio repetir a mim mesmo. O que significa que eu tenho de correr riscos. Obviamente, esses riscos devem ser igualmente corridos pelos meus espectadores e leitores. Então, quem sabe, eles se sentirão desapontados. Isso é parte do jogo.

O tema de sua palestra no Fronteiras do Pensamento — a história na era do Google — lembra os trabalhos mais recentes do Robert Darnton...Sim, estou familiarizado com eles, mas minha entrada é diferente. Darnton trabalha com as implicações legais e políticas do Projeto Google. Penso que minha abordagem é outra. Meu diálogo é maior com Roger Chartier, embora discorde dele, que é alguém cujo trabalho admiro muito. § — Rodrigo Bonaldo

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Algo a dizerEduardo Giannetti fala sobre as dificuldades para escrever sua primeira obra

ficcional, de sua paixão pelo conhecimento e do seu futuro como romancista

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FABIO SILVESTRE CARDOSO E ROGéRIO PEREIRA

ILUSTRAÇõES DE RAMON MUNIZ

Eduardo Giannetti tem um propósito: sacudir o leitor, tirá-lo de um estado de inércia e colocá-lo em movimento. Enfim, inquietar, travar um diálogo que mantenha a ressonância por um bom tempo após a leitura. Para tanto, embrenha-se pelo mundo das ideias em A ilusão da alma — projetado, segundo o autor, para ser uma transficção. Ou seja, algo inclassificável entre a ficção e a não ficção. Nesta empreitada (ou encrenca, como define), Giannetti passou vários apertos, pensou em desistir, deprimiu-se, mas retomou a escrita para finalizar o livro que, para defini-lo de alguma maneira, encaixa-se no gênero “romance de ideias”. Nesta entrevista por e-mail, Giannetti fala das dificuldades na execução do livro, de sua paixão pelo conhecimento, de seus autores preferidos, de como a literatura tornou-se protagonista em sua vida e de seu futuro como ficcionista, entre outros assuntos.

A ilusão da alma é seu primeiro romance. Por que, depois de se consolidar como autor de ensaios, o senhor decidiu investir em um texto literário? Houve alguma motivação especial?As divisões me incomodam. Sempre sonhei em escrever um livro que não pudesse ser classificado como ficção ou não-ficção. Que fosse uma espécie de transficção. Busco isso porque a vida é assim — atravessa tudo; não tem o menor respeito pelas demarcações acadêmicas ou convenções do mercado livreiro. O eu-soberano, como chega a especular o meu personagem, talvez não passe de uma peça de ficção à qual estamos habituados desde que nos pregaram um nome e passamos a nos tomar por gente. A realidade está permeada de sonho e, o sonho, de realidade. Em Felicidade, criei um diálogo ficcional entre quatro ex-colegas de faculdade que voltam a se

reunir de novo, depois de longos anos, para estudar e debater questões de filosofia moral. Vários leitores acreditaram que aquelas pessoas existiam de fato, que eram amigos meus com os nomes trocados, e que o livro era a transcrição de diálogos efetivamente travados. Fiquei feliz ao saber que isso tinha ocorrido. Para mim foi uma prova de que a trama, embora fictícia, parecia real, passava no teste da verossimilhança. Aliás, é por isso que esse livro, assim como optei por fazer em A ilusão da alma, não tem prefácio. Ficção ou não-ficção? O que realmente me importa, ao escrever um livro, não é ensinar ou entreter. É travar uma espécie de contato pessoal com o leitor. É plantar a semente de um diálogo ou inquietação que continue pulsando e frutificando em sua mente muito tempo após o término da leitura. Se isso acontecer, o livro vingou. O gênero será o que tiver de ser. O autor semeia, a leitura insemina.

Além de Machado de Assis, autor que perpassa a narrativa (seja na voz do narrador, seja nas citações de suas obras ao longo do texto), existe outro escritor de ficção a quem o senhor quis render homenagem neste livro?Não sei se “render homenagem” é a expressão adequada. A opção por Machado teve dupla motivação. A primeira é que o narrador, meu alter ego, professor de letras e estudioso da sua obra, autor de As rabugens de pessimismo em Machado, aprendeu a escrever com ele (ou pelo menos se esforça para tanto). Sua narrativa está apinhada de construções, fraseados, volteios e ressonâncias do estilo e da sintaxe machadianos. Numa primeira versão do livro, exagerei feio nos maneirismos e fui corretamente alertado por meus editores. Podei boa parte deles, embora menos talvez do que deveria. O fato é que, quando leio Machado, tenho a nítida impressão de

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teoria da alma”, exposta pelo ex-alferes Jacobina no conto “O espelho”, assim como eu já fizera em Auto-engano servindo-me de Dom Casmurro. A ideia foi tentar mobilizar a bagagem filosófica de Machado — suas agudas análises de psicologia moral e da propensão ao auto-engano; “personagens dotados de bom senso na sandice”, como dizia Mario Matos; a fauna e a flora das “tergiversações especiosas da mente humana” — para dar tempero à narrativa e, ao mesmo tempo, mostrar a universalidade do seu pensamento, um pouco na linha do que fazem Alfredo Bosi em O enigma do olhar ou, ainda, em outro contexto mas com o mesmo intuito, o filósofo da mente inglês Colin McGinn, em Shakespeare’s philosophy.

Qual a importância da pesquisa sobre a relação mente-cérebro para a composição do livro? É certo que o senhor possui formação acadêmica e intelectual para dissertar sobre filosofia, mas, no livro, o protagonista atravessa um caso clínico de alta especificidade.Sem a pesquisa não existiria o livro. Há mais de 30 anos estou com o meu radar de pesquisador ligado nesse assunto. Em minha tese de doutorado, escrita em Cambridge em meados dos anos 80, dediquei dois capítulos à tese do “homem-máquina” e ao trabalho do médico e filósofo iluminista francês La Mettrie, o que quase me custou a reprovação pela banca, pois acharam tudo aquilo um tanto excêntrico num trabalho acadêmico de economia! Só consegui passar porque fui capaz de me defender razoavelmente no exame oral. Perceberam que eu não era tão pateta ou maluco como poderia parecer à primeira vista. De lá para cá, muita coisa aconteceu: as novas técnicas de visualização do cérebro em tempo real; os achados e espantos da neurociência; a psicologia evolucionária; a inteligência artificial; a neuroeconomia. Um dia me ocorreu que valeria a pena investir numa espécie de balanço crítico retrospectivo dos debates travados há 2,5 mil anos por filósofos, teólogos e psicólogos: reavaliar o embate entre mentalistas e fisicalistas, Sócrates x Demócrito, à luz do que sabemos hoje, ou seja, à luz das descobertas empíricas e dos resultados experimentais alcançados nos últimos 20 ou 30 anos. Desde a tese eu tinha comigo a certeza de que um dia voltaria ao assunto, mas foi só a partir daí que nasceu o primeiro vislumbre do livro. O caso clínico do meu personagem — diagnóstico, alucinações, cirurgia — de fato cobrou um esforço e um cuidado adicionais. Além de estudar alguns autores e textos específicos sobre o assunto, como o Oxford companion to the mind e trabalhos de Oliver Sacks, contei com a ajuda de dois amigos, um médico oncologista e uma neurocientista brasileira radicada nos Estados Unidos. Graças a eles, escapei de alguns equívocos embaraçosos e pude ser mais específico e verossímil na narrativa, inclusive nas falas de consultório, quando médico e paciente dialogam.

estar diante de um texto que não foi propriamente escrito, mas esculpido. Tudo é exato, compacto, apertado; como algo talhado em pedra. Claro e belo. Dá vontade de anotar cada solução de linguagem para uso futuro. E o meu personagem, não menos que eu, é vítima do mesmo fascínio. A outra razão é de ordem substantiva. Creio que há mais riqueza, sagacidade e sutileza filosófica na produção madura de Machado, romances, contos e crônicas, do que muitas vezes nos levam a crer alguns dos intérpretes sociológicos de sua obra. O meu personagem tenta evidenciar isso em diversas passagens do livro, como, por exemplo, ao evocar o “esboço de uma nova

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A pergunta “O que nos faz ser quem somos?” desafia o narrador e o leitor o tempo todo durante a leitura de A ilusão da alma. O senhor arriscaria um palpite ou teria alguma certeza sobre a resposta?Se o fisicalismo é verdadeiro, como sustenta o meu alter ego, o La Mettrie das Alterosas, então a noção que nos é tão cara de um eu-unificado e soberano não passa de uma peça de ficção (título que cheguei a propor para o livro, mas que foi prontamente vetado pelos meus editores). O que faz cada um ser quem é o seu cérebro, fruto de um mix de fatores genéticos/nature e formativos/nurture. Eu sou a experiência que o meu cérebro tem de si mesmo. Acontece, porém, que o cérebro de cada indivíduo é um agregado de peças e órgãos funcionando de modo assincrônico, e não há nenhum eu-soberano em seu trono, no palácio da mente, supervisionando e ditando decretos, alvarás e ordens régias para cá e para lá. A noção de um eu-unificado fica, assim, seriamente abalada pelo fisicalismo. A própria expressão “meu cérebro”, por exemplo, não se sustenta: “meu” de quem? Que “eu” é esse a quem o cérebro pertence? Eu sou a experiência que um cérebro particular exala e fabula de si mesmo. Podemos, em suma, estar tão equivocados sobre nós mesmos — imersos na mais espessa névoa de enganos, ilusões e fábulas sobre o que nos faz quem somos e o que nos leva a agir como agimos — como, digamos, o ianomâmi amazônico ou o aborígine australiano nos parecem equivocados acerca das

causas do relâmpago, do arco-íris e do trovão. Os antropólogos dos séculos vindouros terão com o que se divertir com os nossos jornais e livros de história, assim como se divertem, desde o século 19, com as fábulas, lendas e mitos das culturas arcaicas pré-científicas sobre o mundo natural.

A ilusão da alma se inscreve dentro do que os críticos classificariam como “romance de ideias”, exatamente por articular ficção e ensaio. Até que ponto essa foi a “única saída” para o livro? Em outras palavras, o senhor imaginou conceber um romance que não tivesse essa levada filosófica?A opção pela narrativa em primeira pessoa não foi gratuita. O que me interessava, desde o início, não era discutir ou argumentar se o fisicalismo é verdadeiro ou falso. Isso é algo que está além da minha competência, nunca alimentei tal pretensão. A ideia foi mostrar o que acontece com alguém que se converte a esse credo e passa a acreditar seriamente nessa possibilidade. Daí a opção pela primeira pessoa. Eu precisava mostrar como alguém vai paulatinamente se convertendo ao fisicalismo à medida que estuda a relação mente-cérebro, como isso foi se dando à revelia do que ele preferiria acreditar, e como uma pessoa vai perdendo o chão e o pé de si mesma quando começa a trazer tudo isso para a sua experiência pessoal de vida — sua compreensão íntima de si mesma, dos outros e do mundo em que acredita viver. Fiz do meu personagem uma espécie de laboratório de metafísica aplicada, como o médico australiano que ingeriu bactérias para testar uma hipótese sobre a úlcera estomacal (o Nobel de Medicina Barry Marshall). E o que ele acaba descobrindo é que, por mais que tente, não há como metabolizar a enormidade do fisicalismo em nossa experiência comum da vida, assim como não há como assimilar a insignificância cósmica da Terra na ordem das coisas — para todos os efeitos ela permanece, em nossa psicologia e crença espontâneas, como o centro inabalável do universo. O credo fisicalista agride de tal modo tudo aquilo que sentimos e estamos habituados a crer espontânea e intuitivamente sobre nós mesmos que não há como internalizá-lo e enraizá-lo em nossa autocompreensão. Seria como pedir a um neandertal que acredite na chegada do homem a Lua ou na tabela periódica. Quando a atenção relaxa após o esforço reflexivo, voltamos a nos sentir, a falar e a nos relacionarmos uns com os outros como bons e calejados mentalistas.

Que autor contemporâneo, da literatura brasileira ou estrangeira, o senhor observa realizar esse tipo de narrativa e que, de alguma maneira, lhe serviu de estímulo/desafio?Não faço muita distinção entre contemporâneos, modernos ou antigos. Gosto de ler como se o autor estivesse se dirigindo a mim naquele exato momento, independentemente do tempo que nos separa. Alguns livros têm me acompanhado há décadas, quase

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como amigos a quem posso retornar de tempos em tempos. Nunca me canso de revisitá-los. Enquanto me preparava e compunha A ilusão da alma, alguns livros me fizeram especial companhia: Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, um romance narrado em primeira pessoa pela persona dinamarquesa, em oposição à solar-mediterrânea, do poeta; Memórias do subsolo, de Dostoiévski (li os três primeiros volumes da biografia de Joseph Frank para tentar entender como ele chegou a conceber essa obra-prima); O livro do desassossego de Bernardo Soares, alter ego de Fernando Pessoa; O sonho de d’Alembert, romance filosófico de Diderot, com personagens tirados do círculo de amigos do escritor; e A vida dos animais, do romancista sul-africano J. M. Coetzee, no qual a protagonista, uma professora de ética, faz uma série de palestras, reproduzidas in toto no desenrolar da narrativa, sobre a questão dos direitos dos animais.

Em sua primeira experiência como romancista, houve algum objetivo que o senhor gostaria de ter alcançado, mas, por algum motivo, não conseguiu? A despeito da recepção da crítica e dos leitores, o livro te satisfaz como autor?Ninguém é bom juiz em causa própria, como dizia Aristóteles. Sei que preciso trabalhar muito para apurar a forma e a capacidade expressiva: dizer mais com menos; deixar o dito pelo não dito; tensionar a arte de dizer o que é mais difícil de se deixar falar. Acho que consegui dar um passo, ousar e arriscar-me um pouco mais dessa vez, mas desejo conquistar ainda uma liberdade interna que não possuo na hora de criar. Se pudesse corrigir uma falha do livro, tentaria rebalancear a desproporção entre narrativa e ensaio na segunda parte — e o tom também. Como disse um amigo, “dá para ouvir o ensaísta Giannetti ali”.

À página 49, lê-se: “Escritores e cientistas compartem uma ambição: devassar a arquitetura da alma”. Quem se sai melhor nesta tarefa? Por quê?Cada um tem sua contribuição a dar. O que não se pode aceitar é a redução da arte à condição de inócuo entretenimento; negar a sua vocação cognitiva. No século 18 havia ainda uma forte afinidade e um diálogo profícuo entre arte e ciência. Foi a partir da ascensão do romantismo, no início do século 19, que o afastamento começou a se firmar e foi aos poucos se radicalizando, em prejuízo de ambas. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, depois de se desembaraçar das amarras do positivismo lógico, faz uma observação certeira: “As pessoas atualmente pensam que os cientistas existem para instruí-las, e os poetas, músicos etc. para lhes dar prazer. A ideia de que estes últimos têm alguma coisa para ensinar-lhes — isto não lhes ocorre”. Penso que há mais conhecimento verdadeiro acerca da psicologia profunda do animal humano num romance de Dostoiévski ou de Machado do que em dezenas

de tratados sisudos de psicologia acadêmica. E, ao dizer isso, não estou só. Veja o que escreve, por exemplo, o eminente psicólogo e linguista americano Steven Pinker em Tábula rasa: “Os cientistas e os intelectuais não são as únicas pessoas que se dedicaram a examinar como a mente funciona. Todos nós somos psicólogos e algumas pessoas, sem o benefício de credenciais, são grandes psicólogos. A este grupo pertencem poetas e romancistas cujo ofício é criar representações justas de natureza geral. Paradoxalmente, no clima intelectual de hoje os romancistas podem ter um mandato mais claro do que os cientistas para dizer a verdade sobre a natureza humana. (...) Poetas e romancistas têm feito muitos dos pontos deste livro com mais sagacidade e penetração do que qualquer escrevinhador acadêmico poderia esperar fazer”. Se os cientistas se interessassem mais pela arte e, os escritores e artistas, pela ciência, todos sairiam ganhando.

É correto afirmar que existe certa afinidade entre suas obras mais recentes — O valor do amanhã, O livro das citações e A ilusão da alma? Ou seja, para além do fato de os livros terem sido assinados pelo mesmo autor, existe um tecido literário que os aproxima ou, como a própria classificação pressupõe, são textos diferentes e que não dialogam de forma alguma entre si?A afinidade, para mim, é clara — e não só com os livros citados na pergunta. Às vezes chego a me surpreender quando constato como certas preocupações e possibilidades estavam já despontando em livros mais antigos, mas só vieram à tona tempos depois. O embrião de Auto-engano, por exemplo, está no prefácio de Vícios privados, benefícios públicos?, embora na época eu não estivesse ciente do que faria anos depois. No caso de A ilusão da alma, a inquietação em torno da relação mente-cérebro e do fantasma do fisicalismo percorre um fio contínuo que veio se tecendo desde pelo menos O mercado das crenças, um livro pesadamente acadêmico publicado na Inglaterra em 1991, mas que só saiu traduzido no Brasil em 2003. Em Felicidade, há um diálogo inteiro sobre a conjectura de uma “pílula da felicidade instantânea”. E por aí vai. Imagino que todo autor carrega suas obsessões. Eu também tenho as minhas. Como romancista, o senhor enfrentou dilemas diferentes daqueles de quando escreveu ensaios? A tela em branco, por exemplo, assustava mais agora do que das outras vezes?Creio que subestimei o tamanho do desafio (para não dizer encrenca!) que estava comprando quando embarquei no projeto deste livro. A principal dificuldade foi encontrar o tom certo e dar o acabamento literário necessário à veia narrativa da trama. Não cabe a mim, é claro, dizer se consegui — sei que sempre poderia ter ficado melhor (ou menos ruim) do que ficou e que poderia continuar trabalhando no texto pelo resto

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páginas do rascunho • entrevista: eduardo giannetti

dos meus dias; mas certamente aprendi como em nenhum outro livro à medida que ouvia e recebia as críticas de quem ia lendo e comentando o que eu fazia. A certa altura do trabalho o massacre foi de tal ordem que tive um momento de dúvida radical, deprimi e cheguei a pensar em abandonar o projeto original e transformá-lo num simples ensaio, como nos livros anteriores. Seria a saída mais fácil. Depois recuperei as forças e reemergi. Resolvi enfrentar a parada e voltar à carga. Fiz uma revisão completa e minuciosa do texto, joguei muita coisa no lixo, e decidi separar completamente o fio narrativo, em primeira pessoa, das anotações que o personagem fazia em seus cadernos de estudo à medida que avançava nas investigações e procurava refletir sobre o que vinha descobrindo. Mostrei aos meus editores e para alguns outros leitores que haviam criticado as primeiras versões e eles acharam que estava melhor agora (ou que eu já tinha apanhado o suficiente). Nunca apanhei — e aprendi — tanto como autor. Como é o seu método de composição/criação? O senhor possui algum tipo de estratégia para a feitura de seus textos em geral? E para este livro, seu primeiro romance, em particular?Falo com desenvoltura, aulas, palestras, entrevistas, mas escrevo com enorme dificuldade — um parto. Se as pessoas soubessem a quantidade de vezes que reescrevo uma frase (esta por exemplo), antes de considerá-la apta a ficar como está, talvez me julgassem insano ou tivessem dó de mim. Daí a minha relutância em aceitar compromissos de produção de textos escritos. Falar em público é razoavelmente fácil e tranquilo para mim, adquiri razoável fluência com a prática; mas parir um texto, por mais banal, é sofrimento na certa, principalmente o começo. Sempre é assim. O computador sem dúvida alterou o meu processo criativo. Seria impensável reler e corrigir e tornar a reler e emendar tantas vezes o mesmo texto se ainda precisasse escrever à mão ou numa máquina de escrever. Não sei por que é assim comigo, mas posso garantir que é um processo extremamente laborioso, como polir lentes ou praticar escalas musicais. Imagino que tenha a ver com alguma fantasia obscura de permanência da palavra impressa. Como se uma frase obscura ou mal-ajambrada pudesse me cobrir de vergonha ou condenar-me às chamas do inferno por toda a eternidade. Qual é a sua rotina como escritor? O senhor possui algum tipo de ideia fixa?Cada autor tem suas idiossincrasias. A condição essencial, para mim, é a absoluta concentração na tarefa: “pureza de coração é desejar uma única coisa”. Depois de muitas tentativas frustradas de conciliar a minha atividade autoral com o meu dia-a-dia de professor universitário e economista em São Paulo, percebi que não tinha jeito. Não consigo dar uma entrevista sobre, sei lá, a

crise cambial e o déficit da previdência de manhã, e escrever sobre o neolítico moral e a maiêutica socrática à tarde. A saída foi separar de uma vez por todas, no tempo e no espaço, essas atividades. Quando estou em São Paulo, não alimento qualquer pretensão de escrever algo mais elaborado e reflexivo. Convivo com a dispersão da atenção e estou aberto e disponível para as demandas que a minha atividade profissional regular suscita. Vivo disso. É o que paga as contas no fim do mês e me permite escapar, por alguns meses, de tempos em tempos. Mas quando é para mergulhar em um novo projeto de livro, faço as malas e parto para um período sabático de completo isolamento. Pode ser no interior de Minas ou em Oxford. O crucial é que a vida prática seja a mais simples possível e nada me desvie da concentração na tarefa. Paro de ler jornais e revistas, não assisto tevê, não ouço rádio, não uso telefone nem acesso a internet. Levo alguns poucos livros, escolhidos a dedo, e leio relativamente pouco. Como fico absolutamente só, mesmo quando não estou trabalhando, ao fazer uma refeição ou caminhar a pé, por exemplo, eu sei que, na verdade, estou trabalhando. Passo a dormir muito cedo e a acordar com o nascer do dia, a cabeça a mil. Uma regra de ouro nesses períodos é jamais sucumbir à tentação da pressa. Posso passar dias e dias sem escrever uma única linha, como aliás sempre acontece no início do trabalho. Aí eu me lembro do que dizia o poeta inglês Alexander Pope: “Por aquilo que publico, eu peço apenas a compreensão dos leitores; mas, por aquilo que descarto e atiro à cesta de lixo, mereço o aplauso imortal”. Uma hora, contudo, o trenzinho apita e sai da estação. Quando volto de uma temporada dessas, tenho a sensação de ter mobilizado forças a que normalmente não tenho acesso. Não é que lá eu faço em meses o que teria me consumido vários anos de trabalho em São Paulo — a comparação relevante não é essa. É que lá, de algum modo, consigo fazer o que eu jamais teria feito no meu cotidiano paulista, mesmo que tivesse todo o tempo do mundo.

De que maneira o senhor tornou-se um leitor? Como a literatura fez-se protagonista em sua vida?O meu ponto de inflexão é claro em retrospecto. Apaixonei-me pela leitura e pelo mundo do pensamento aos 16 anos de idade. Cursava o segundo ano do ensino médio no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, e tivemos um curso chamado “Metafísica”, dirigido pelo padre católico canadense Charbonneau. Entre as leituras do curso, sobre as quais tínhamos de redigir ensaios interpretativos, estavam: Kafka, Carta ao pai e O processo; Sartre, As palavras e A náusea; Camus, A peste; Dostoiévski, Os irmãos Karamazov; e, por fim, como ponto culminante e antídoto contra o niilismo moderno, um livro do teólogo Teilhard de Chardin (não me recordo o título...). Para o bem ou para o mal, acho que continuo fazendo esse curso até hoje e nunca me recuperei do impacto que tais leituras tiveram no meu cérebro adolescente. Lembro como fui violentamente

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tragado por aquele mundo de ideias, como conversava horas a fio com amigos de escola sobre tudo aquilo, as tentativas de colocar as minhas ideias e inquietações nas redações, e o patético anticlímax do desfecho católico-teológico, quase uma piada insípida perto do que tínhamos lido antes. De um modo obscuro a princípio, mas bastante claro em retrospecto, percebo como foi precisamente a partir dali que se fixou em mim o desejo de passar o resto da vida habitando e respirando de algum modo a atmosfera daquelas leituras. O senhor concorda com filósofos como Luc Ferry que defendem que as pessoas seriam mais felizes se se aproximassem mais da filosofia e menos de Deus?A ideia me faz lembrar um epigrama de Goethe: “Aquele que tem ciência e arte, tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!” Tudo vai depender, é claro, do que se entende aqui por “filosofia” e por “Deus”. Não acredito nem desacredito em “Deus” — considero-me um agnóstico, ou seja, não sei. Na verdade, nem sei direito o que uma pessoa tem em mente quando declara que “acredita (ou não) em Deus”. A fivela do cinturão dos soldados da Wehrmacht nazista trazia a inscrição: Gott mit uns (“Deus está conosco”). Os americanos, mais pragmáticos, elegeram as suas moedas e notas de dólares para louvar o ser divino: In God we trust (“Em Deus confiamos”). O líder e general puritano, Oliver Cromwell, dizia: “O soldado que reza melhor combate melhor”. Será que as pessoas estão falando da mesma coisa quando declaram ou se matam umas às outras porque acreditam ou não em Deus? Tanto “Deus” como “a filosofia” podem ser fontes da mais completa felicidade ou infelicidade. Mas será que devemos

acreditar ou deixar de acreditar em algo porque isso nos faz mais ou menos felizes? Quanto aos autoproclamados “ateus militantes”, que se propõem a tratar “a existência de Deus como uma hipótese científica como qualquer outra”, Richard Dawkins à frente, não sei o que mais me espanta: se é a falta de tino e a superficialidade que revelam diante das necessidades espirituais do homem ou a fé ingênua da maioria dos crentes e devotos aos quais se opõem. Ao equívoco de buscar respostas científicas na religião corresponde o equívoco simétrico de buscar respostas religiosas na ciência.

O narrador encerra A ilusão da alma com um desafio — “Refute-me se for capaz!”. O senhor gostaria que outro autor aceitasse o desafio e voltasse a atenção (de maneira ficcional) ao tema abordado no seu romance?A frase que encerra o livro é a frase que encerra o livro do herói do meu personagem, o L’homme machine de La Mettrie. Tenho recebido mensagens de leitores que aceitam o desafio proposto e tentam me convencer de que refutaram o fisicalismo. Acontece que eu não sou o meu personagem. É curioso. Desde que comecei a mostrar as primeiras versões do livro a alguns amigos cientistas e escritores, notei que a minha relação com o narrador era curiosamente ambígua: quando alguém o defende, como tendem a fazer os cientistas (uma jovem neurocientista chegou a declarar — “Então você é um dos nossos!”), o meu impulso é atacá-lo; mas, quando alguém o ataca, como fizeram alguns amigos mais ligados à área de humanas e literatura, houve quem se sentisse quase pessoalmente ofendido pelas ideias apresentadas no livro, o meu impulso é defendê-lo. De uma coisa, porém, estou certo: se alguém conseguir refutar conclusivamente o fisicalismo, com alguma teoria ou descoberta empírica passível de aferição pública, receberá com certeza um prêmio Nobel pelo extraordinário feito. Torço para que isso aconteça!

O senhor pretende seguir produzindo ficção? Há outro livro a caminho?Sim, pretendo dedicar-me cada vez mais à literatura. Mas, como disse no início, não aceito as divisões convencionais entre gêneros, disciplinas ou escolas. Por que se resignar a essas amarras — ficção ou não-ficção, popular ou erudito, prosa ou poesia? O importante é ter algo a dizer — algo que se torna imperioso compartilhar —, e não poupar esforços para dizê-lo tão bem e tão belo quanto se é capaz. É pensar por conta própria e ter a coragem de correr riscos. Quero conquistar uma liberdade que me escapa — na vida e na obra. É isso que me faz sentir vivo. §

Fabio Silvestre Cardoso é jornalista.

Rogério Pereira é editor do jornal literário Rascunho.

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No final da primeira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), Olga, afilhada do protagonista do romance, o visita em um hospício. O narrador, terceira pessoa, se amalgama aos pensamentos e percepções dela. Acomodado nesse ponto de vista, o leitor perambula pelo hospício enquanto acompanha reflexões sobre a loucura, falas de Quaresma, descrições da enseada de Botafogo em um dia “particularmente lindo”. Retenhamos essa imagem: um dia lindo, uma enseada, um hospício.

As duas vozes, a do narrador e a de Olga, se entrelaçam sutilmente e ponderam, sob o sol que faísca pelas calçadas, a respeito da loucura e da razão, da força das ideias e do modo como elas se tornam ações ou não se tornam nada. Descrições iluminadas e frouxas do céu, do mar e da atmosfera fazem par com descrições do ambiente do hospício como um lugar ordenado, austero. Certo tédio envergonhado governa o tom, que acaba convidando à releitura. O leitor é avisado, e fica feliz por saber, de que Quaresma parecia melhorar, tanto que em sua voz havia “mansuetude”. Cada frase mimetiza um conteúdo (algo como amizade e calma em contraposição a violência e irracionalidade) e uma consciência (trata-se de um “inferno social” que amplia ao invés de redimir o inferno pessoal) pulsantes, vivos. Não sabemos bem por qual razão, mas parece haver muito mais do que a narração disposta por técnicas simples apresenta.

Depois de ler Diário do hospício e Cemitério dos vivos — escritos que Lima Barreto produziu concomitantemente e, em entrevistas da época (1920), sugeriu serem o mesmo manuscrito —, a emoção que o trecho acima evoca fica mais impactante

livros • resenhas

Diário do hospício e Cemitério dos vivosLima Barreto

ATILIO BERGAMINI

CosacNaify352 páginasR$ 55

porque ganha concretude. De alguma maneira, os pensamentos ficcionais de Olga sobre a loucura reaparecem cinco anos depois nos pensamentos autobiográficos (e ficcionais?) de Lima Barreto sobre uma de suas passagens pelo hospício. Não se trata, portanto, de uma vivência que foi aproveitada na forma de ficção, trata-se de um nó ambivalente, complexo: o escritor vinha refletindo sobre a questão em crônicas, ao mesmo tempo o fez no romance, anos depois, nos diários e no Cemitério. A ficção antecedeu a autobiografia porque estava constituída por vivências ficcionalizadas que, em seguida, se plantaram no eito ficcional, mas não mais como mera ficção.

Veja-se a parte VII de Diário do hospício — de resto, uma das mais deliberadamente ficcionais —, na qual Barreto escreve sobre um dia triste, nublado, durante o qual tenta se analisar sem conseguir. Essa impossibilidade o faz lembrar de quanto sonhou e quão pouco, na opinião dele, tinha realizado.

Para lá da comparação com Triste fim, o trecho merece reflexão, releitura, respeito pelo que é. Trata-se de uma descrição do ambiente que compõe com a interioridade autobiográfica um todo moral e cósmico de insinuante força estética, força que se coloca como crítica ao racionalismo estéril de muitos cientistas do período. Os médicos do tempo, sugere Lima Barreto, estavam equivocados. Explicavam o complexo e duvidoso evento da loucura com certezas acadêmicas mal formuladas, catadas na prestigiada Europa. Nunca prestavam atenção na variedade da existência de cada sujeito, que dirá no chão social do problema. Partiam do abstrato e permaneciam cegos ao singular e concreto.

Os termos dessa crítica não são gratuitos. O modo como Triste fim e estes trechos publicados pela CosacNaif são organizados, sempre partindo de sonhos e desejos que formam homens que, por sua vez, não podem ou não conseguem concretizá-los, deixa ver a importância dada por Barreto para a dialética do, digamos assim, lógico e sociológico. Há algo, em vários escritos de Barreto, que sugere imensa luta contra aquilo que parecia obviamente dado, evidente. Muitas vezes, o autor parece fazer literatura como quem não aceita o reino dos possíveis. A imaginação e o contraditório em relação a universais abstratos — imaginação e contraditório buscados na concretude da vida objetiva ou subjetiva do próprio Lima Barreto — apontam para a qualidade rebelde de seus escritos.

Ao aceitar o alcoolismo como fonte principal de seus delírios, ou seja, ao aceitar o diagnóstico médico para sua loucura, Barreto não deixa de perguntar se o amor, a riqueza, as posições, títulos, “coisa[s] que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida”, não são também causa de loucura? Seu eixo crítico parte sempre

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de uma análise das relações sociais concretas, atitude que para nós, leitores do século 21, ensina certa paciência insubmissa de apreender a realidade como um todo, mas não mais como um todo orgânico, antes sim, como a atitude que leva o escritor a se distanciar criticamente dele, na busca de um lugar social no qual é possível escrever e pensar. Como se, para Lima, a ficção fosse um jeito de manter vivo o discernimento no umbigo dos delírios do Brasil racista e excludente da República Velha. Pobre, mulato, alcoolista e escritor, Lima conseguiu formular uma tarefa a ser sempre recolocada para os assim chamados setores subalternos da sociedade, qual seja, a de transformar sua experiência de miséria, opressão e claustrofobia em uma linguagem crítica.

No final de Triste fim, Olga procura Quaresma na prisão, prestes a ser fuzilado. A imagem do dia particularmente lindo, que retivemos no início desta resenha, ganha, depois de ter passado pelo dia nublado do Diário, uma contraposição esteticamente arrepiante. É que um pouco antes da visita de Olga, o narrador escreve desde a consciência do próprio Quaresma: “Vinha a noite inteiramente, e o silêncio e a treva envolviam tudo”. Uma frase trabalhada durante todo o romance e durante uma vida de reflexão sobre a loucura e o destino do escritor numa organização social que o abandona sem recursos ou lugar. A noite, nesse caso, não é uma noite moral, procedimento comum na literatura, é, bem diferente disso, uma noite social. Imagem cheia de concretude que, como vimos, ecoou um sereno pavor na atmosfera dos escritos posteriores do grande Lima Barreto. E na sua vida. §

Hospício Nacional de Alienados, onde Lima Barreto esteve internado

Ficha de internação de Lima Barreto

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Essa mulher e outros contosRodolfo Walsh

Editora 34256 páginasR$ 39

FLÁVIO ILHA

Até bem pouco tempo, Rodolfo Walsh era conhecido no Brasil apenas como o autor da carta histórica que denunciou as atrocidades da ditadura argentina quando o golpe de Estado contra Isabel Perón completava um ano, em 1977.

A carta, que revelou ao mundo quem eram de fato os generais que estavam no poder, foi colocada no correio com cópias para poucos destinatários, não mais que meia dúzia espalhados ao redor do mundo. Foi, talvez, a primeira comunicação em rede da idade contemporânea, antes da internet, do telefone móvel e do Twitter. Um dia depois, uma patrulha da famigerada Escuela de Mecânica de La Armada metralhou o remetente.

Jornalista militante e combativo, integrante primeiro das Fuerzas Armadas Peronistas e, depois, do grupo Montoneros, com passagens também pela Alianza Libertadora Nacionalista (ALN), Walsh é conhecido como autor de três livros-reportagem de grande impacto — entre eles o extraordinário Operação Massacre (1957), publicado em setembro no Brasil pela Companhia das Letras e que é uma espécie de precursor do new journalism elegantemente atribuído a Truman Capote. Mas Walsh é muito mais do que isso, embora nada indicasse ao leitor brasileiro, nessa edição, que também pudesse estar diante de um dos mais brilhantes prosadores modernos da Argentina. E, de fato, está.

É, portanto, difícil omitir esse preâmbulo ao escrever sobre Walsh — um autor capaz, sim, de ombrear com Roberto Arlt (embora as diferenças de estilo) e Ernesto Sábato e provocar entusiasmo num estudioso de absoluto rigor como Ricardo Piglia e, ao mesmo tempo, morrer por uma causa que a muitos

causaria espanto e horror. Mas a militância, o assassinato trágico (seu corpo nunca foi devolvido pelos militares argentinos) e o contato quase obsceno de sua literatura com a realidade crua e violenta da natureza humana o afastaram dos editores nacionais, que não escondem sua preferência por autores menos problemáticos. Dissociar Walsh de sua explícita ação militante seria como imaginar, ingenuamente, que a literatura pode vicejar sem se ater à constante construção política a que todos estamos sujeitos, queiramos ou não.

Não pode, como o próprio autor afirma numa entrevista publicada como um anexo de Essa mulher e outros contos — título da primeira coletânea de Rodolfo Walsh publicada no Brasil. Falando a Piglia sobre escritores de modo geral, inclusive ele próprio, Walsh critica textualmente a produção literária burguesa, “que reflete os conflitos da pequena classe média, e nem sequer os conflitos reais de fundo econômico, sua luta pelo poder, mas os genericamente chamados conflitos espirituais, íntimos, eróticos, amorosos, alguma parcela disso”. Eis o ponto: ler Walsh é suficiente para perceber que não há como fugir da política. Quando não vamos ao seu encontro, ela nos atropela.

Caso, por exemplo, da narrativa que dá nome ao volume recém lançado pela Editora 34. Clássica no universo literário argentino e latino-americano, em Essa mulher Walsh aborda a história real do sequestro do corpo de Evita Perón em 1955 a partir de uma entrevista que realizou com o coronel Carlos Eugenio de Moori Koenig, responsável pela operação. A reportagem, que nunca chegou aos jornais, foi transformada num conto conciso e certeiro em 1965, quatro anos depois de ser recusada. Como dissociar o jornalista militante do escritor?

Parece mesmo uma tarefa difícil, além de inútil. O volume editado agora reúne os três livros de “ficção séria” publicados pelo escritor: Los oficios terrestres (1965), Un kilo de oro (1967) e Un oscuro día de justicia (1973). Os contos da “fase policial”, escritos entre 1953 e 1956, não aparecem. Em todos, porém, transparece uma prosa marcada pelo rigor do estilo, pela experimentação (que não deve ser confundida com experimentalismo) e pela temática — nem sempre, mas frequentemente — relacionada à própria biografia do autor e de suas circunstâncias humanas e, também, da sua Argentina pastoril e urbana, crivada de golpes de Estado, repleta de tipos atraentes e sempre com uma frase espirituosa para proferir.

A série de três “contos irlandeses” presente nos três livros de Walsh, por exemplo, são explicitamente baseadas em sua história pessoal, passada dos dez aos 14 anos em um orfanato no sul da Argentina — Walsh, é bom lembrar, nasceu na Patagônia.

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Walsh é um dos mais brilhantes prosadores modernos da Argentina

Sem nunca ceder à tentação confessional e, portanto, livres de melodramas, os contos refletem toda a violência latente em experiências humanas coletivas, temperada por sentimentos como inveja, solidão, medo, perversidade, preconceito. O primeiro deles, Irlandeses atrás de um gato, é um primor de tensão e clima: recém chegado ao orfanato, um garoto tenta escapar com astúcia do batismo reservado aos calouros e, na fuga, propicia alguns momentos — por assim dizer — cinematográficos na trama. A perseguição final e o desfecho são dignos de um grande thriller, embora Walsh nunca, em momento algum, abdique da condição literária de suas histórias. O estilo, por isso mesmo, é sempre mantido como a condição imprescindível para a concretização do seu objeto narrativo. Não por acaso, Piglia remete os contos da série a Faulkner e, mais apropriadamente, ao Joyce dos Dublinenses.

Joyceanos são também Fotos e Cartas, a meu ver o ponto mais alto das narrativas de Walsh. Pequenas novelas estruturadas de modo fragmentado, com idas e vindas recorrentes, os contos também têm o dom de expor o dramático processo de transformação da sociedade argentina nas primeiras décadas do século 20. Os dois contos, que se passam numa cidadezinha no sul da Argentina, são centrados na figura de Jacinto Tolosa — no primeiro sua infância e juventude, no segundo sua concentração de riqueza e poder. Dito assim, pode parecer que o leitor encontrará diante de si um épico de aventuras, um painel sociológico da moderna Argentina ou, na pior das

hipóteses, uma novela histórica — muito comum aqui entre nós — entupida de personagens discursando mecanicamente.

O talento de Walsh, felizmente, é bem mais sutil que isso. Em Fotos, a narrativa dividida em mini capítulos numerados de 1 a 41 é direta, quase jornalística — o que não quer dizer simplória. As cenas e as vozes são independentes. O sentido se constrói aos poucos, ao sabor de um acaso, embora paradoxal, meticulosamente planejado, pacientemente construído. Percebe-se de cara o rigor de Walsh nessa construção: o personagem de Jacinto Tolosa evolui aos saltos, mas tendo sempre o cuidado de não deixar lacunas para o leitor. A partir de fatos aparentemente banais, Walsh elabora um cenário extremamente complexo.

Em Cartas, o olhar narrativo se centra na figura de Estela. Filha de Tolosa, a menina observa com ternura, humor e uma certa nostalgia aquele mundo campesino que se fragmenta rapidamente. Num trecho em que recorda uma viagem de trem, o fino trabalho de Walsh fica explícito: “Torneira, bronze, tremor, seu corpo estremecia de susto na passagem do vagão-dormitório ao restaurante sobre o ar rápido cortado de capim. Mamãe verde, Jacinto puro beicinho, o mundo brilhava no bule e na toalha, nos trilhos ao lado que o trem de repente engolia e vomitava, e longe irrompiam da neblina pontes, sinaleiras, chaminés, o estrondo compacto da estação, e milhões de pessoas”. O humor é sutil e irônico, como no relacionamento do jornalista da localidade com os algozes que empastelam seu jornal em mais um golpe de Estado ou no relacionamento de Don Alberto com a Morta, que lhe aparecia em sonhos.

Como em Fotos, embora organizada de forma diversa, não há em Cartas uma linha narrativa central. Mas, diferentemente do primeiro conto, a experiência de Walsh é mais radical porque a polifonia não está explicitada em capítulos, indicações de leitura ou mesmo em artifícios narrativos que facilitem a vida do leitor. O turbilhão vem de parágrafo em parágrafo, às vezes de frase em frase, de linha em linha. O resultado, que em mãos menos habilidosas poderia resultar numa tragédia, na escrita de Rodolfo Walsh se revela simplesmente fascinante. §

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AÇÃO

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Operação massacreRodolfo Walsh

Companhia das Letras 288 páginasR$ 46

REGES SCHWAAB

Há diversas imagens possíveis para a leitura de Operação Massacre, do argentino Rodolfo Walsh (1927-1977), vertido agora para o português. Elas podem receber alguns feixes de um holofote mais policialesco; podem ter tons de uma literatura política. Fortes luzes, entretanto, vêm do espectro jornalístico da obra: o singular.

As denúncias de um assombroso fuzilamento de civis, perpretado na madrugada de 10 de junho de 1956, começaram a ser levadas a público por Rodolfo Walsh em jornais de pequena circulação. Na época, a Argentina estava sob o comando do general Pedro Eugenio Aramburu, que tomara o posto de Juan Domingos Perón no ano anterior. No seio de uma mobilização da Polícia e do Exército contra apoiadores do deposto Perón, um lixão em San Martín serviria de palco para o massacre de que trata o livro.

Um grupo de homens, todos detidos em uma casa. Lá, reunidos, eram pessoas que acompanhavam pelo rádio uma luta de boxe. Presos, foram todos convertidos em organizadores de um levante contra o general Aramburu. Naquela madrugada negativa de junho, uma noite qualquer e que poderia acabar bem, vidas acabaram estraçalhadas quando policiais levaram a mão ao ferrolho dos fuzis Mauser. Davam curso ao fato síntese da união entre violência e paranoia.

Seriam 12 os mortos na dita ação. Meses depois, já com sua investigação em curso, bastou a simples leitura da lista dos “cinco” executados em San Martin para Walsh compreender uma primeira questão: o governo não tinha “a menor ideia de quem eram as vítimas”. A frase, na obra, já aparece no contexto formado pelo conjunto dos seus primeiros levantamentos,

detonados pelo que se costuma chamar de acaso. Foi no fim de 1956, em pleno calor de dezembro, um bar, um copo de cerveja em cena. E um homem a dizer ao jornalista que um fuzilado no evento de junho estava vivo. Logo descobriu não ser apenas um.

Rodolfo Walsh tinha 30 anos quando escreveu sobre o caso e seus sobreviventes. Vinha de uma trajetória na literatura, especialmente como contista, e estava na imprensa há uma década. Operação Massacre virou livro ainda em 1957, após quatro meses de investigação. Mesmo antes de ler os apêndices, nos quais Walsh conta detalhes do trabalho, a intensa busca que realizou se desenha na mente do leitor. Dezenas de entrevistas, parece evidente, mas era essencial cruzar todas as afirmações recebidas, reeditar os depoimentos diversas vezes.

A teia que traz claro o massacre, sem acusação formal ou julgamento, dependia de informações mediadas, inevitável. E a linguagem era a arma e o elemento contra. Um caso como o de San Martín não era puramente o que se viu, era muito do que não se sabia ao certo, temperado por algumas verdades que oficialmente seriam consideradas absurdas. E havia os fantasmas vivos dos mortos que não pereceram. Walsh sentava-se com eles, ouvia os relatos, estava diante das diferentes marcas impostas pelo brutal ato, todas visíveis, as não superficiais inclusive.

Entre as diversas imagens possíveis para a leitura de Operação Massacre, está a de um jornalista de qualidades essenciais. O que se apresenta, desde o primeiro capítulo, é a possibilidade de passear por um cenário meticulosamente levantado. Walsh coloca-se ao nosso lado no desenrolar daquela noite. No eco dos tiros, lanternas são apontadas em nossa direção. Acabamos prendendo a respiração também, esperança partilhada de evitar ser percebido ainda vivo. Depois, ao virar o rosto, o sol já ilumina os primeiros fantasmas que se levantam em busca de uma sobrevida; trem, ônibus, ruas, mais prisões, juízes, generais. Mais assombro. Mais decepções pelos rumos do caso. Toda vez que as palavras do autor tocam cada cena, ela ganha movimento diante de nós.

Sim, é o texto de alguém cujo coração traz uma gaveta para a paixão pelo gênero policial. Em Walsh, foi um amor que teve papel motivador para uma prática jornalística intensa; de outra forma talvez não fosse possível dar cabo da laboriosa operação de remontagem. A sua paixão, portanto, deve ser lembrada diante da reprodução eficaz de toda a geografia daquelas mortes, do relevo dos seus desdobramentos, mesmo os mais particulares.

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Depois de 1957, nas três edições subsequentes, todas organizadas ainda em vida por Walsh, ele sempre fez questão de acrescentar notas e atualizações sobre o trabalho. Os adendos estão reproduzidas na edição brasileira. Na versão em português da Companhia das Letras para a Coleção Jornalismo Literário, passados 53 anos da publicação original (e cerca de 40 reedições depois), o texto de Walsh tem posfácio de Natalia Brizuela, bem como uma nota biográfica, assinada por Ruy Castro. Nela aparecem a referida paixão de Walsh, também dando o devido valor ao feito de ter descoberto não apenas dois sobreviventes do fuzilamento. Nomeou todos, revisitou cada ponto e documento, relatou os pormenores de um caso que poderia (deveria) ter sido comido pela terra.

Com fios de pequenas e importantes sombras nas falas e atitudes dos próprios mandantes amarrou a extensa investigação que empreendeu. Os mortos, mortos; os assassinos (que identificou) permaneceram livres. Walsh foi atrás da essência de um acontecimento ilegal e desumano que a verdade oficial, copiada por alguns pares de jornalistas fiéis, pensava poder dissipar.

Em texto para a segunda edição do livro, disse que ganhou por ter esclarecido um complicado enredo. Já aí está um grande mérito porque, de fato, é fascinante encontrar o peso certo de cada elemento da apurada narrativa. Confessou, entretanto, a frustrada pretensão de que o governo pudesse admitir a atrocidade cometida. Diante disso, a leitura de Operação Massacre adquire inclusive mais apelo. Há sempre uma tocante e boa utopia na busca pelo esclarecimento e pela justiça. Ela é vital, ininterrupta, necessária. Aos poucos isso ficou ainda mais forte para ele. O traço final da trajetória veio 20 anos depois da primeira edição do livro, em março de 1977. Em “Carta aberta de um escritor à Junta Militar”, Walsh denunciava as verdades impronunciáveis para o governo da época. A Carta foi enviada para a imprensa do país e do Exterior. Ele “desapareceu” no dia seguinte, virou um dos mais de 30 mil casos desse tipo na Argentina.

Operação Massacre traz um traço jornalístico primordial, desenvolvido de modo paradigmático. Ele está no ponto fundamental para o caso desvendado por Rodolfo Walsh: o descompasso temporal entre a prisão e a “autorização”, com a posterior lei marcial, para o fuzilamento dos detidos. Com sua narrativa, Walsh nos faz ver, nítido, o singular que torna peculiares, e simultaneamente universais, os detalhes gigantescos que movem nossa história. Em especial os detalhes mais cruéis. Uma reportagem plena, um livro de muitos adjetivos, tecido por um legítimo amante das palavras, como classificou certa vez Alan Pauls. §

Os beatsHarvey Parker, Ed Piskor e Paul Buhle

Benvirá208 páginasR$ 39,90

AUGUSTO PAIM

Instruções de uso da resenha: ligue o som, deixe a criança chorando com jazz ao fundo. Use drogas, o corpo jovem foi feito para isso. Agora comece a leitura, em qualquer lugar, e termine onde quiser. Ou não termine. O importante é não seguir um padrão. O importante é não dizer “interessante” ou “legal” ao fim da leitura. Melhor rasgar o texto. Socar a parede. Se você não for adepto do budismo, pode até matar um inseto com a revista. Queimar a revista. Fumar a revista. E então sair para a rua, erguer o braço e pegar carona. Para onde? Qualquer lugar. Lugar nenhum. A vida é uma aventura e você só está preso em você mesmo.

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Como faz uma geração de classe média que se recusava a viver a vida de rótulos — “formado em Columbia ou em Harvard”, “filho do advogado Fulano de Tal”, “sócio da empresa XYZ” — reservada a eles? Como ser contracultural numa geração com papeis sociais tão estanques?

Para se livrar dos rótulos, a geração beatnik — que em fins da década de 1940 e nos anos 1950 foi precursora dos hippies e da contracultura estadunidense — acrescentou outros rótulos ao seu currículo. Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs eram intelectuais, escritores, agitadores culturais e, ao mesmo tempo, bêbados, viciados, pervertidos, vagabundos, criminosos. Burroughs, o pior de todos, foi também um duplo homicida. Neal Cassady, inspirador do personagem Dean Moriarty de On the road, seria hoje enquadrado como sociopata.

Em todas as histórias, há sempre um outro lado, quando não vários. A geração beatnik, louvada pelo seu papel contracultural e pela herança que deixou nas artes e na sociedade, tem seu lado B. Isso, você pode imaginar, em uma geração que já encarava

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o lado B como lado A. Os beats — graphic novel traz várias histórias dessa época: tanto as boas, quanto as miseráveis. E todas valem a pena ser contadas.

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Dia 7 inesquecível noite Jack Kerouac grita vai vai vai outubro Allen Ginsberg O Uivo galeria Six San Francisco 1955 Kerouac e sua prosa espontânea Ginsberg e sua autopoesia Jackson Pollock e sua pintura automática o jazz! ah, o jazz! sempre o ritmo do jazz o poeta é iluminado o beatnik morre a cultura beat fica até hoje quem não é beat? você eles eu somos todos um pouco beats

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Apesar de a edição brasileira ostentar o subtítulo graphic novel (romance gráfico, em inglês), Os beats é uma antologia de quadrinhos de não ficção. São 25 histórias sobre os beats, feitas por 17 artistas. A maioria dos roteiros foi escrito por Harvey Pekar, aqui no Brasil conhecido por ter sua vida retratada no filme O anti-herói americano, e a maior parte dos desenhos é de Ed Piskor.

Nos últimos anos, houve uma nítida expansão e consolidação do mercado de quadrinhos, particularmente na área da não ficção. A própria Hill and Wang, editora que publicou Os beats nos Estados Unidos, criou um selo com obras baseadas na realidade — vale lembrar que o título original do livro é The beats — a graphic history (história gráfica). Mas como pode o desenho servir para contar objetivamente um fato real? Por trás da biografia de qualquer pessoa, há sempre cenas e contextos que a informação objetiva não abarca; há sempre climas, ambientes e emoções que não aparecem nas fotos. E é aí que os quadrinhos, ao lidarem com memórias e reconstituições, podem se tornar incrivelmente mais objetivos do que qualquer documento.

Algumas passagens de Os beats são bem-sucedidas na árdua tarefa — um desafio do quadrinho não ficcional — de usar o desenho de maneira informativa. Esse equilíbrio entre texto e imagem, entre mostrar e dizer, em se tratando de não ficção, é difícil de alcançar. Trata-se, em verdade, de uma obra que não arrisca muito, como já está dito no prefácio: “o livro à sua frente é uma produção em quadrinhos sem a pretensão de profundidade e interpretação literária [...]”. E quando posto em comparação com a diversidade de estilos possíveis nessa linguagem, pode-se dizer que Os beats é bastante convencional. São poucos os recursos ousados — e nesse sentido a história de Pekar e Peter Kuper sobre o beat Gary Snyder diferencia-se por usar galhos de árvores como divisores dos quadros.

Em antologias de quadrinhos, a variedade de estilos pode ser prejudicial, se a obra carecer de uma unidade. Por mérito do editor Paul Buhle, isso pouco acontece em Os beats. Em linhas gerais, o livro compõe um mosaico diversificado e coerente sobre a cultura beat. A primeira metade do livro são histórias mais longas sobre Kerouac, Ginsberg e Burroughs. Do meio para o fim, seguem-se outras menores — muitas de apenas duas páginas — sobre artistas não tão conhecidos. Esse é um acerto do livro: mostrar as histórias dos pouco notáveis, de figuras importantes para a cultura beatnik, que chegaram mesmo a torná-la possível, mas que ficaram escondidos na sombra da fama de Kerouac & Cia. A cena poética de San Francisco, anterior e independente à chegada dos beatniks, e os centros culturais da época, como a livraria e editora City Lights, em San Francisco, e o College of Complexes, bar de Chicago, aparecem merecidamente no livro. Mas a melhor história, com certeza, é Garotas beatniks.

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o filho de Burroughs usa um pote como latrina Burroughs acerta um tiro na cabeça da mulher Allen fingindo ser hétero faz Elise Cowan desiludida se matar Kerouac transa com a mulher do amigo Neal Kerouac transa também com o próprio Neal e Neal transa com todo mundo

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Tuli Kupferberg, roteirista da última história de Os Beats e autor do livro 1001 maneiras de fugir do alistamento, deveria também ter escrito 1001 maneiras de sobreviver a um beat. Ou ele, ou Diane Di Prima, ou Hettie Jones, ou Joan Kerouac, ou Joyce Johnson, ou Carolyn Cassady. Todas mulheres que viveram na órbita dos beats, consertando os estragos. Afinal, alguém tinha que tomar conta das crianças.

Escrito por Joyce Brabner, viúva de Pekar, Garotas Beatniks mostra esse lado das mulheres que sobreviveram aos beats e que foram precursoras do feminismo. Isso lidando com homens que as viam como objetos. Como escreveu Hettie Jones: “havíamos sido mais do que meias-calças pretas em pernas abertas... dançáramos, pintáramos, atuáramos e, sim, haviam escritoras entre nós”. Kerouac & Cia., nesse aspecto, não eram melhores do que os homens do seu tempo.

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1001 maneiras de usar a palavra beatnik como marca publicitária:67 — na embalagem de uma carteira de cigarro.68 — na embalagem de uma carteira de cigarro, mais exatamente na propaganda contra o câncer, do Ministério da Saúde.69 — como marca de roupa íntima: “cuecas Cassady: você não vai querer tirar”.

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Que se dê o devido reconhecimento a Kerouac & Cia.: eles realmente mudaram comportamentos. Muito da contracultura beatnik está aí até hoje, na liberdade de cada um, em poder se expressar o que se pensa. Mas o beatnik está também nas roupas, nas conversas levianas, na moda. Os beats são, de fato, uma marca que ficou, com suas contradições e — hoje — clichês. Aconteceu com eles o que acontece com todas as contraculturas: seu poder de revolta diminui ao ser incorporada ao establishment.

Hoje, os beats são um jingle que não sai da cabeça. Mas eles também foram corajosos ao viverem vidas desapegadas de qualquer valor. E criaram, assim, novos valores, que permaneceram após as suas mortes.

Demônios em quadrinhosAluísio Azevedo por Guazzelli

Peirópolis56 páginasR$ 35

DELFIN

Na manhã de domingo em que estas palavras são escritas, o Rio de Janeiro vive o momento tenso de uma operação de guerra: a invasão do centro nevrálgico da operação de tráfico de drogas e armas pelas forças constituídas. Antes, foi uma madrugada opressiva, de espera e de terror, em que criminosos e policiais viram os minutos passar cada vez mais lentos, como se o dia relutasse em raiar no céu carioca.

No entanto, o Rio já presenciou uma noite de trevas sem fim. Foi há pouco mais de um século e teve, por testemunha, um dos maiores escritores brasileiros do período, o naturalista Aluísio Azevedo, famoso por romances como O mulato e O cortiço. O autor nos apresentou aos mistérios da escuridão e dos terrores noturnos no ano de 1891, num conto hoje considerado um dos precursores do fantástico na literatura nacional: Demônios.

Em sua carreira, o escritor maranhense tem em sua prosa uma visão pessimista da sociedade, ainda que isso possa ser considerado uma característica da escola literária que representa. Isso se deve ao fato de Azevedo, um abolicionista, apresentar radicalmente os contrastes sociais e raciais, o que fez com que fosse um dos autores brasileiros mais lidos de sua época. Porém, em Demônios, não há cor, credo ou camada social que sobrepujem a penumbra e a distorção dos sentidos ali apresentadas.

No conto, o protagonista é um escritor romântico, apaixonado por Laura, sua noiva prometida, vivendo num quarto propositalmente simples na rua do Riachuelo, imerso em seu ofício solitário. Até que, numa noite fatídica, tudo parece estar errado: não há sons, não há luminosidade, não há movimento nas ruas, apenas uma sensação de torpor que se espalha à medida em que o amanhecer não chega.

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para a Agir. Em comum às duas obras, a maestria em compor ambientes visuais com um número limitado de cores, o poder de síntese narrativa e a simplicidade dos traços, sempre a favor da história. Não por acaso, Guazelli é considerado um dos mais completos quadrinistas em atividade no Brasil.

É por isso mesmo que Demônios, adaptação mais recente do autor, é recomendado não apenas para os fãs de quadrinhos, mas também para os apreciadores de arte em geral, que saberão reconhecer o valor estético do conjunto de páginas apresentado no álbum, e também, claro, para aqueles que se interessam por nossa literatura e por sua história.

Talvez este seja, inclusive, um dos méritos reais das adaptações atuais de obras literárias para os quadrinhos: introduzir um novo leitor a universos imaginados há muito tempo, numa linguagem contemporânea e acessível, rompendo a barreira do tempo e revelando obras que, de outro modo, poderiam estar fadadas ao pó das velhas estantes.

O curioso é que o mais importante em Demônios talvez esteja além da obra, em verdade na percepção do leitor após a leitura. Pois, no fim, ao se olhar para a janela, durante o próximo dia, e se perceber que há um dia brilhante pela frente, tem-se a noção de que, por vezes, é preciso colidir com as trevas para se sair fortalecido. Pois enfrentar o terror e sair dele para contar a história só pode ser um sinal de que há esperança nos dias que virão. §

Dividido em uma introdução e 12 capítulos, o conto é uma imersão única na carreira de Aluísio Azevedo no campo do fantástico, sendo considerado por muitos um dos precursores da ficção científica no Brasil, ao lado de seu contemporâneo Machado de Assis. É mais correto afirmar, no entanto, que Demônios aproxima o leitor da literatura de horror psicológico, que viria a ser celebrizada anos mais tarde pelo norte-americano H. P. Lovecraft.

Esse horror se torna ainda mais perceptível quando temos contato com a versão da obra em quadrinhos, adaptada por Eloar Guazzelli para a editora Peirópolis. Nesta edição, basta avançar pelas primeiras páginas para que vejamos o anoitecer se impor na narrativa sequencial. A partir daí, é preciso acostumar os olhos, como quando todas as luzes estão apagadas, e seguir o protagonista em sua busca pela verdade, pela amada Laura e pela saída para tal pesadelo.

Guazzelli deixa-se levar pelo clima do conto, criando uma palheta de cores que navega com harmonia e minimalismo entre o roxo e o negro, exibindo a cada sequência os monstros que não podem ser vistos sob as luzes. O leitor, assim como os personagens da história, vai se acostumando com essa nova percepção, a ponto de o verdadeiro terror se mostrar, muitas vezes, justamente no que se faz iluminado.

Como se imagina, a versão para quadrinhos está condensada em relação ao conto original. Isso, porém, fez muito bem para a narrativa, pois tirou excessos estéticos e concentrou a trama nos seus pontos-chave. Afirmar isso pode ser um acinte para puristas e acadêmicos, mas é uma verdade: a história de Aluísio Azevedo, como publicada e concebida, é irregular e, em determinados pontos, maçante. Ao editar e filtrar o texto original, pela própria necessidade da adaptação para outra linguagem, Eloar Guazzelli torna a história não apenas mais fluida, mas também aumenta o impacto dos fatos narrativos e contribui para que se atinja de modo mais efetivo o efeito proposto.

Também contribui para a construção do clima do álbum o traço de Guazzelli. Cheio de detalhes e, ao mesmo tempo, simples em sua concepção, ajuda o leitor a imergir junto com o protagonista em um novo universo, no qual o inesperado acaba se tornando a única coisa que se pode esperar. Tal simplicidade faz com que cada um possa imaginar, no fundo, o seu Rio de Janeiro, a sua Riachuelo, os seus caminhos tortuosos até uma saída que parece, à medida em que se segue ao final, cada vez mais improvável.

Vale lembrar que esta não é a primeira incursão de Guazzelli ao mundo da literatura em quadrinhos. Antes, ele adaptou, também com sucesso, O pagador de promessas, de Dias Gomes,

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Narrar, ser mãe, ser paiCelso Gutfreind

Difel256 páginasR$ 39

ROBERTO BARBERENA GRAÑA

Arbitrariamente, começarei a resenha de Narrar, ser mãe, ser pai, do psicanalista Celso Gutfreind, pelo penúltimo capítulo. Isso porque nos dez outros que o antecedem, acrescidos de um prefácio, algo nos move incessantemente a chercher l’écrivain; ele se anuncia, entremostra-se, agita-se e, enfim, no capitulo 11 nós o encontramos. É neste capitulo que a arte do Gutfreind narrador nos é mostrada — no sentido wittgensteiniano — enquanto que nos antecedentes o autor pretendera de diferentes maneiras dizê-la, teorizá-la, exemplificá-la. Diversas descrições e redescrições da arte de narrar se encadeiam, capítulo após capítulo, evidenciando a incansável dedicação do autor para tornar-nos cientes da matéria de que se ocupará no seu livro, e nesse sentido ele é pródigo na oferta de poemas e de trechos de prosa de narradores diversos — o próprio autor é um deles. No 11º capítulo, porém, Celso Gutfreind permite-nos conhecer o narrador habilidoso que ele é, e para tanto exercerá com fineza a arte do conto. Narra-nos, então, uma historia, breve e pungente: É fogo.

Este conto tem como protagonista um menino duramente submetido à violência parental, especificamente aos efeitos subjetivamente devastadores do tipo de provisão ambiental patógena a que Winnicott se refere como tantalizing environment. Essa designação é alusiva ao suplício de Tântalo, impedido por Zeus de saciar sua sede e fome, e indica o efeito cumulativo da repetição de desapontamentos decorrentes de falhas empáticas grosseiras no exercício das funções parentais, a extrema imprevisibilidade do comportamento do outro primordial, o exato oposto, portanto, do que se costuma denominar ambiente médio esperado, o qual corresponde mais ou menos sintônica, pontual e coerentemente à expectativa

da criança de uma resposta empática para suas necessidades e desejos. Constrangido a cada tanto pela conduta violenta e caótica do pai, que se encontra invariavelmente sob efeito do álcool, e da mãe deprimida, que faz pouco mais do que chorar, ele utiliza-se de um recurso defensivo, que conhecemos como o devanear compulsivo (o fantasying de Winnicott), para anular a realidade externa, substituindo-a por uma outra, pontualmente produzida pela fantasia, na qual seus desejos se realizam imediata e plenamente. O pequeno personagem de Gutfreind refere-se a este artifício (maníaco) como “clique”. Ele explica ao leitor do que se trata:

Não é difícil ficar com o meu pai. Sabe por quê? Porque eu tenho clique. Eu vou explicar o que é. Agora sim vocês vão entender; se é de clique, eu sei de tudo e explico melhor ainda. Por exemplo, se tá chovendo. Chovendo muito, aquele dia todo cinza, que faz barro na cancha. Eu faço clique e pronto. Boto calor no dia, fica um diazão cheio de sol, amarelo, azul, a cancha seca. Na minha cabeça, é claro, mas aí é só ficar olhando a minha cabeça.

Com meu pai tem que fazer clique toda hora. Não é difícil pra mim. Tem outras coisas que eu faço toda hora e não me canso: vejo desenho, como pipoca, coração de galinha. O meu pai faz coração de galinha superbem. Domingo, no churrasco. Eu vou comendo, ele vai bebendo, os dois sem parar. Aí chega uma hora que ele para. Quer dizer, para de ficar de pé, não de beber. Bebe sentado, cai da cadeira, e é ruim, porque acabou o coração de galinha.

Ruim em termos. É hora do clique. Eu clico o meu pai e faço ele ficar de pé. Ele volta a fazer coração de galinha. Na minha cabeça, é claro. Coração de galinha na cabeça é bom também.

Por certo não sintetizarei o conto, nem também revelarei o seu desfecho; isso é parte do propósito de despertar a curiosidade do leitor que uma resenha deve ter como princípio (e isso independentemente de recomendar ou não o livro de que se ocupa). É fogo pode ser uma porta de entrada para o livro de Celso Gutfreind, ao menos para os menos submetidos à cronologia. O romance contemporâneo tem recorrido com frequência a esta estratégia, o cinema também: comece por onde quiser, leia o livro aleatoriamente, numa ordem que, instituída por você, melhor o promove à pretendida condição de co-autor. Não há melhor maneira de usar o livro, no sentido winnicottiano, ou de se apropriar dele, no sentido barthesiano (cf. os livros escrevíveis, em A/Z).

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Desde o primeiro capítulo Celso nos adverte que o seu livro não é de auto-ajuda. E sabemos nós que os livros que efetivamente ajudam nunca se propõem de antemão a isso. A potencialidade terapêutica, entretanto, da aventura literária, seja na condição de autor ou de leitor, é conhecida dos amantes da boa literatura nos seus diferentes gêneros e estilos. Quando convivemos com aqueles que fazem dela profissão (escritores, professores, críticos etc.) escutamos com frequência depoimentos do tipo: a leitura de Dostoievski me possibilitou penetrar fundo em mim mesmo, ou em Fernando Pessoa aventurei-me a experimentar os meus diferentes eus, ou com Proust pude chorar alguns dos meus mortos e por fim deixá-los ir, ou os contos de Machado de Assis ensinaram-me muito sobre o humano e a vida etc. Refiro-me a frases efetivamente escutadas que, somadas à experiência pessoal de leitor e autor que deve parte da sua cura da doença do viver aos romancistas e aos poetas, permitem-me corroborar os depoimentos de Celso sobre o efeito subjetivante/terapêutico da narração/narratividade nas diferentes épocas do existir. “Vida é transmissão e conflito; saúde é poder narrá-los”, afirma Gutfreind no quarto capítulo do seu livro. Se, como propõe o autor em consonância com Winnicott, a formação das metáforas favorece a constituição do sujeito e a apropriação criativa do mundo em que vive, a literatura oralizada, o contar histórias e o ouvir histórias possibilitam a inserção do sujeito na cultura e a familiarização crescente com os mitos e símbolos nos quais esta se sustenta, ao mesmo tempo em que lhe possibilita tornar-se consistente (existir sobre si mesmo), efetivar-se, já que, como propunha Lacan, o sujeito se constrói numa linha de ficção, a ficção de si, e isto lhe é tudo.

Gutfreind utiliza proveitosamente a sua experiência de observação e trabalho clínico com mães e bebês, no Brasil e no Exterior, para, alinhavando-a com as contribuições de autores diversos e ajustando-a a nossa realidade terceiromundista, enfeixar sugestões de trabalho profilático em creches, escolas e centros comunitários. Sua receita para o desenvolvimento pleno e sadio das potencialidades das crianças é simples: a poetização da vida, mais além da comida e do calor imprescindíveis. “Para sobreviver efetivamente (entendo que Celso alude ao viver, na mais nobre e plena acepção da palavra), é preciso harmonia, poesia na ação entre dois. É preciso arte, ritmo, tanto quanto o ritmo define criação poética e humana. Já observamos o suficiente para sentir que os bebês também vivem da prosódia. Nascem nela e a ela vão recorrer pelo resto de suas vidas”, afirma o autor no capitulo nove, insistindo no ritornelo: “A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”. É a esse plus de gozo da experiência estética oportunizada desde cedo pela provisão ambiental, e que difere do prazer auto-erótico decorrente da ativação precoce das zonas erógenas por efeito de étayage, que Gutfreind se refere. Algo que mais se aproxima da ideia de ego orgasm de Winnicott e que não é produto do exercício instintivo, mas da fruição de uma modalidade de prazer que poderá ser oportunizado apenas pela transmissão viva da cultura e pela experiência dos objetos que ela põe em circulação. Algo da ordem do ser, mais que do sexo. A narrativa oral, e logo escrita, é a via régia, freudianamente falando, para o acesso a esta forma de prazer refinado que permite a integração ao socius e coloca a agressividade a serviço da vida e do convívio humano, como bem atestam as experiências de musicalização com crianças e adolescentes moradores de favelas, especialmente no Rio de Janeiro e em Salvador. As pesquisas de C. Trevarthen sobre o efeito integrador da música no desenvolvimento inicial dos bebês e sobre a importância da prosódia da mãe na facilitação e harmonização dos primeiros contatos com o bebê, logo após o nascimento, constituem também uma base empírica que dá suporte sólido às ideias defendidas por Gutfreind, que entoa, usando Quintana: Fora do ritmo só há danação.

Narrar, ser mãe, ser pai espetaculiza uma bela síntese, precária e fugaz como o produto humano está condenado a ser, do exercício da subjetividade do autor em diferentes posições, a de escritor, leitor, psicanalista, filho e pai, enfatizando e enaltecendo poeticamente a interdependência de todas estas funções, a arte de operar diferentes metáforas em campos narrativos diversos, o que atesta — narrativamente e mostrativamente — que a vida vive de complexidade e diferença e que o ser do homem se expressa em refração, na multiplicidade das efetuações simbólicas de seu movimento. §

livros • resenhas

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cinema • artigo

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Ao contrário do que poderia parecer, é possível se pensar em uma aproximação entre os filmes À prova de morte, de Tarantino, e Sempre bela, de Manoel de Oliveira

LEONARDO BOMFIM

Talvez seja um atrevimento colocar Quentin Tarantino e Manoel de Oliveira no mesmo espaço. Não por suas obras, mas pelo que cada um passou a representar no cenário cinematográfico. Enquanto o português tornou-se figura carimbada das cinco estrelas da crítica, o norte-americano conseguiu reunir sorrisos — algo raro — tanto de especialistas quanto de cinéfilos de fim de semana. As etiquetas, então, foram coladas: o cinema de Oliveira é hermético, intelectual, para poucos, e o de Tarantino é acessível, divertido, para todos.

Em 2010, por uma dessas coincidências do destino, filmes atrasados dos dois cineastas acabaram entrando juntos nas salas de Porto Alegre. O espectador de Tarantino, mesmo já

tendo assistido à obra de outras formas, prestigiou as sessões. À prova de morte (2007) circulou, rendeu debates e os urros tradicionais. Sempre bela (2006), de Oliveira, entrou e saiu correndo. Quase ninguém viu.

Tratam-se de filmes que, vistos na mesma semana, acabam revelando uma proximidade maior do que as etiquetas pressupõem. Em primeiro lugar, dedicam um olhar ao próprio cinema. Ocupam, assim, um importante espaço na produção contemporânea. O termo se tornou fuga fácil, mas é importante pensá-lo além do “qualquer coisa produzida nos dias de hoje”. Giorgio Agamben oferece caminhos, ao dizer que “a contemporaneidade é uma singular relação com o

À prova de morte (2007)

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Cenas de Sempre bela, de Manoel de Oliveira

próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”. Para o italiano, o artista contemporâneo respira nesta relação: não pode ignorar o que já foi feito, mas não repete um gesto anterior.

Essa ideia está presente num Abbas Kiarostami, que através do abraço em Yasujiro Ozu alcança o abstrato em Cinco (2003). Também em Hou Hsiao-hsien e seu voo livre de A viagem do balão vermelho (2007), que retoma o clássico media-metragem de Albert Lamorisse dos anos 1950 em que um garoto interage com um balão. Retomar sem pastiche, revisitar sem remake. E ao contrário do período moderno, as rupturas atuais estão mais pela construção de algo diferente — a partir de referências fortes — do que pela destruição de uma linguagem antecedente. É exatamente onde se situam À prova de morte e Sempre bela.

O cineasta norte-americano, como de praxe, se debruça sobre a filmografia exploitation dos anos 1970. Há aqueles que o rechaçam alegando que se trata de uma cópia barata de tudo que já foi feito. Um exagero. Por mais que ele faça questão de homenagear seus heróis (roubando, sim, sequências inteiras de outros filmes), o resultado das obras revela algo completamente diferente. Tarantino sempre parte de um universo firme para aterrissar em um novo lugar. Não dá pra dizer, por exemplo, que Jackie Brown (1997), apesar da presença de Pam Grier, da trilha sonora soul e da melancolia típica dos anos 1970, é um exemplar do blaxploitation.

À prova de morte radicaliza essa relação com a fonte. A suposta homenagem ao exploitation está apenas nos detalhes, a obra passa longe de qualquer produção do estilo. Aqueles eram filmes extremamente acessíveis, que em muitos casos precisavam ser encarados como mera diversão. Procuravam acariciar os desejos, na maioria das vezes proibidos, do espectador. Em À prova de morte, pelo contrário, o espectador é desafiado. A ingenuidade característica dos exploitation (com uma ou outra exceção e um viva a Russ Meyer) não existe em Tarantino.

O ponto crucial do filme é a audácia narrativa. Se nos dois volumes de Kill Bill (2003/2004) há a saturação do característico vai-e-vem temporal de Tarantino, À prova de morte apresenta uma linearidade esquisita. É dividido em duas partes: a primeira, com uma longa cena no bar e um acidente fatal. A segunda, com quatro meninas viciadas em cinema e um racha na estrada. Ao fim do primeiro momento, o crescendo da trama é interrompido, começa outra história com novos protagonistas, novos cenários. Um filme torto, feito para incomodar. Porque nas obras precedentes de Tarantino sempre há um momento em que tudo se harmoniza. Aqui não, mesmo com um encontro entre os personagens no desfecho, o filme não retoma o chão, parece incompleto.

Tarantino age como aquele garçom nas festas cuja bandeja tem os melhores drinques e quitutes. Ele parece que se aproxima, mas desvia, atendendo um chamado, e some. Depois retorna, dá um gostinho e desaparece mais uma vez. Você fica ansioso, não tem a mínima ideia de quando as delícias voltarão. Em À prova de morte isso é intenso. Há carros, garotas atraentes, mortes, músicas bem sacadas: tudo que um cinema pode oferecer de diversão numa estrutura narrativa que tripudia o tempo todo das expectativas do espectador.

Nesse sentido, a sequência em que as quatro meninas tagarelam sobre filmes antigos, interrompendo toda a empolgante primeira parte, se torna emblemática. A impressão é que ela esgota uma fase de Tarantino. Tanto que em Bastardos inglórios (2009), seu rebento seguinte, o cinema já não mais está como mote para diálogos bem bolados, mas como o real protagonista. O filme gira em torno dele. Não por acaso, é sua grande obra-prima — mais que um filme de cinéfilo, um filme de crítico, de quem está pensando o cinema.

Aqui surge outro encontro interessante entre os dois: são cineastas que dominam a palavra filmada, cada um a sua maneira, de certa forma opostas. Tarantino cria suas intermináveis

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cinema • artigo

cenas de diálogo através da montagem. É um herdeiro de Eric Rohmer, figura chave da Nouvelle Vague, que realizava filmes inteiros baseados em conversas e considerava a decupagem o elemento principal da mise-en-scène. Invariavelmente, Tarantino apresenta uma quantidade incrível de planos, de um enorme repertório (por vezes até excessivo). Oliveira prefere o plano-sequência e a câmera fixa, justifica que “nos filmes falados, quando o diálogo é rico, a atenção é necessária e não se deve distrair o espectador do que diz o ator, porque o movimento o distrai”. Até mesmo quando opta pela decupagem, em conversas no carro de Viagem ao princípio do mundo (1997), por exemplo, há repetições de poucos planos, busca-se uma imobilidade. Aproxima-se de Rohmer, mas num outro sentido, principalmente quando diz que o cineasta deve ser invisível.

Em Sempre bela, filme que também abraça as palavras, há a retomada de uma história já clássica: A bela da tarde (1967), de Luis Buñuel. Nas palavras do próprio Oliveira, é um tributo ao cineasta espanhol e ao seu roteirista Jean-Claude Carrière. Se na obra original o personagem de Michel Piccoli era coadjuvante — o amigo que acaba inflamando os desejos de Séverine —, aqui ele é o protagonista. Um senhor solitário que reencontra, por acaso, a belle de jour. Catherine Deneuve não quis interpretar novamente a personagem, tarefa que caiu nas mãos da preciosa Bulle Ogier. Detalhe que, embora incomode alguns, não deixa de provocar um estranhamento interessante.

Um filme inexplicável, deliciosamente linear, com apenas 68 minutos e pouquíssimas variações de cena. Qual o mistério de Sempre bela? A impressão é que só Oliveira, com quase 100 anos na época das filmagens, poderia fazer algo tão simples a partir de uma trama tão incensada. Pois há uma diferença importante das homenagens de Tarantino, que costumeiramente recorre ao cinema considerado B, de segundo escalão. Aqui temos o diálogo com um cânone, algo difícil de fazer. Há quem diga

que com clássicos não se mexe, mas Oliveira é esperto, mostra que a única forma de retomar uma obra-prima é puxando-a pra dançar.

Buscando a referência da narrativa de Buñuel e Carrière, Oliveira realiza uma obra essencialmente autoral. Não é uma continuação de A bela da tarde, passa longe da claridade desconcertante em que as fantasias de Séverine eram mostradas no filme de 1967. O português coloca sua obra na penumbra. Ao mesmo tempo, introduz seu humor peculiar, principalmente nas cenas em que o protagonista relembra, entre generosas doses de uísque, o passado picante para um barman estrangeiro.

O centenário cineasta acaba assumindo, no fim, o papel de supra-sumo da contemporaneidade apontada por Agamben. Oliveira está aqui, lá e em todo o lugar. Em épocas de euforias digitais, consegue com seu mais novo filme, O estranho caso de Angélica (2010), retornar a Méliès para abordar a força da imagem. E por que sua obra não é degustada pela maioria dos fãs de Tarantino? Talvez sua simplicidade espantosa seja um tabu para olhares viciados. A única conclusão plausível é que a rejeição ocorre porque a obra de Oliveira abre poucas brechas para cair no universo restrito que se convencionou chamar de cultura pop.

A armadilha do cinema de Tarantino é que ele se deixa ser encarado de forma rasteira. O verniz é delicioso: muito fácil ficar na superfície, nos diálogos de efeito, nos personagens bacanas — ou seja, na cultura pop. São limites que enfraquecem sua obra. Ao assistir À prova de morte e Sempre bela num curto espaço de tempo, percebe-se que as etiquetas perdem a força. Podem ser tranquilamente apreciados pelos mesmos olhos. §

Leonardo Bomfim é jornalista e pesquisador de cinema.

Na segunda parte de À prova de morte, Tarantino apresenta meninas viciadas em cinema e um racha na estradaD

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mas não espere afagos nem apertos de mão, estamos can-sados. Graças ao nosso engenho, gerência diferenciada e, por que não dizer, magnanimidade, gente como você pôde finalmente experimentar os prazeres do mundo dos ricos: voar. Sanduíche? Tem graça. A barra de cereal que agora lhe oferecemos é o que permite o corte significativo no pre-ço de nossas passagens. Sabemos muito bem quem você é. Conhecemos o seu tipo, esse ar arrogante de consumidor do passado. Ainda no check-in, não vai deixar um instante de evocar (com que finalidade além do tumulto?) o tempo dos seus pais, talheres de prata e poltronas amplas, comis-sárias simpáticas e lencinhos perfumados. Lugar marcado? Vamos, deixe de preguiça, uma pequena fila nunca matou ninguém. E não se esqueça das medidas da mala de mão, isso é muito importante. Não gostamos de mandriões em nossa companhia, que quase explodem suas bagagens para não pagar o excesso de peso. Isso mesmo, comece a escolher o que vai deixar no saguão do aeroporto. Mania de pobre de viajar com a casa inteira, presentes até para os primos do interior. Já vemos que você confunde as coisas. Não foi por-que propusemos um melhor aproveitamento de nossos cor-redores com a venda de lugares em pé que está permitida a mais desbragada das farofagens. Transporte? Túnel para a cabine? Ninguém reclama de caminhar ou correr na aca-demia. Não vai me dizer que vai derreter por causa dessa chuvinha... Apresse o passo, meu toupeira. Ah, não há lugar para sentar junto com sua acompanhante? Ora, vocês terão a vida toda para desfrutar do amor. Um par de horas sepa-rados pode até reacender o fogo da relação. Está com calor? Saiba que nossa empresa se preocupa com a emissão dos ga-ses que provocam o aquecimento global. Baixo custo é, an-tes de mais nada, a postura ecologicamente correta. Perdeu a sensibilidade nos pés? Devagar, nada de se esticar de ma-neira acintosa, obstruindo o trânsito de nossos comissários. Tome, aqui está nossa cartilha de alongamentos e exercícios aos passageiros da classe econômica para evitar trombose,

torcicolos ou cãibras. Dez quilos a menos e você veria que o problema não são as nossas poltronas. E já que estamos num clima de sinceridade, essa barbicha aí o denuncia. Você deve ser um desses arcaicos militantes de esquerda, da mesma laia daqueles pelintras do PROCON, já o vemos vibrando com eles quando nos proibiram de cobrar uma taxa pelo uso do banheiro durante as viagens. Sabe o que a cambada — a sua cambada — alegou? Que não haveria alternativa de alívio aos usuários em pleno ar. Com todo respeito, mas de que, diabos, vocês estão falando? Uma criatura humana que não consegue conter seus instintos em nada se diferencia de um animal, que, como você bem sabe, não pode viajar em nossa cabine sem o pagamento da taxa-pet (bem mais cara do que uma ou duas idas ao banheiro). Sabe, isso é o que mais nos dói: a ingratidão, a insídia, a ignorância. Todos queriam um mundo onde viajar fosse mais barato, e nós o fizemos. Todos queriam um mundo com menos formalidades, em que via-jar de bermuda e camiseta regata fosse aceito, e lá estávamos nós. Quando pediram por eficiência e tratamento igualitário, a quem, desesperados, recorreram? E agora querem ouvir música e ver filmes de graça, reclamam do contato caloro-so dos ombros de seus semelhantes, praticam, sem pejos, os mais estapafúrdios exercícios de redistribuição das poltronas (sim, não esquecemos do seu gesticular solerte (menos uma fileira aqui, menos um assento ali e teríamos espaço decen-te). Sua audácia é tão desenfreada que o vimos reclamar até da miséria do sachê com sete amendoins que oferecemos, benevolentes, para amenizar as agruras das turbulências. Basta, ouviu? Basta! Comece a sorrir. Moldaremos os céus à nossa imagem e semelhança. Sua voz será esquecida. Cale-se e sorria, durma, meu filho, durma como os outros, olhe ao seu redor, tantos usuários satisfeitos, durma, pois mesmo em sonhos você estará, alma de cinquenta centavos, nos braços do mundo low-cost.

Pedro Gonzaga é poeta e só viaja de classe executiva.

Sorria, você está no mundo low-cost,

humor • por pedro gonzaga

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tanto quantoR$ 60,00

(assinatura anual)

(41) [email protected]

o jornal de literatura do Brasil

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páginas filosóficas

Multiculturalismo, relativismo e coerência (Parte 2)EDUARDO WOLFFELIPE PIMENTEL

O leitor que nos fez a gentileza de ler a coluna na NORTE anterior viu que além de uma diatribe provocadora contra o multiculturalismo, fazíamos uma promessa: explicar, ao menos em linhas gerais, qual é a origem dessa postura e dessa ideologia tão arraigada em nossa experiência cultural contemporânea. É o que pretendemos fazer neste artigo. Para isso, em primeiro lugar, vamos tentar mostrar o que aproxima e o que diferencia as expressões que vão no título, “relativismo” e “multiculturalismo”, estabelecendo, assim, um pouco das diferenças entre as variedades de relativismo; com isso será possível vislumbrar, talvez, o que há de mais filosófico no problema que acreditamos ter levantado na última edição. A seguir, nos concentraremos no problema do multiculturalismo como fenômeno ideológico propriamente. Assim, deixamos um pouco o terreno da polêmica e da perplexidade e passamos à filosofia e à história, nessa ordem, por trás das teorias antes mencionadas.

Em um dos mais importantes diálogos de Platão, o Teeteto, há uma análise da famosa tese do filósofo pré-socrático Protágoras segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas” (uma espécie de primeira grande doutrina relativista: se cada homem é a medida da verdade de todas as coisas, então tudo é relativo, tudo é subjetivo). Como se vê, não há nada de novo nas afirmações relativistas dos pós-modernos de que a verdade é uma ficção dos sujeitos, de que cada indivíduo “constrói” a realidade, ou, para ficarmos no credo multiculturalista, de que “toda verdade é relativa à cultura ou à sociedade em questão”.

Não é preciso ser muito treinado em filosofia ou em lógica para perceber as falhas evidentes de uma doutrina que defenda tais posições. Certamente você, caro leitor, já passou por isso: ou bem você disse, ou bem já disseram para você algo do tipo “Toda generalização é um erro”. Repare o amigo que a frase tem a mesma estrutura não apenas gramatical como lógica da anterior: a palavrinha “todo” tem o mágico poder de abranger... tudo! É o que os lógicos chamam de um quantificador universal — em outras palavras, generaliza. Daí que, bem, se “toda generalização é falsa”, então essa sentença é, ela mesma, falsa (pois é, ela

própria, uma generalização). E assim armamos um paradoxo. Aliás, o mesmo que ocorre com qualquer proposição relativista: “tudo é relativo”, por exemplo. Ocorre que quem enuncia teses como essas — “toda generalização é um erro”, “tudo é relativo” — pretende que ao menos uma generalização não seja um erro, que ao menos algo não seja relativo: a sua própria crença. Afinal, se não for assim, então suas crenças podem não passar disso — suas crenças, não sendo nem mais, nem menos verdadeiras do que outras, abrindo a possibilidade para que, talvez, a crença de que “nem toda generalização é um erro” ou de que “nem tudo é relativo” sejam, elas sim, verdadeiras.

É claro que uma contradição como essa, que salta aos olhos, não escapou ao Sócrates-personagem dos diálogos de Platão, em particular ao comentar a referida tese de Protágoras. De fato, quem se aventurar no Teeteto verá que Sócrates a utiliza: se toda verdade e, portanto, toda sabedoria é relativa ao sujeito, então quem o próprio Protágoras pensa que é para ser julgado como sábio e fazer valer sua doutrina? Quer dizer, a nossa resposta intuitiva do parágrafo acima, obviamente, já tinha sido pensada por Sócrates/Platão.

É possível que ao ler isso você pense: “Nossa, Sócrates (ou Platão, no caso) já tinha pensado o mesmo que eu!”. Bem, é melhor ler o diálogo inteiro, porque uma das coisas que Sócrates dirá, supondo uma resposta de Protágoras a esse tipo de objeção que acabamos de mostrar, é mais ou menos o seguinte: achar que isso é suficiente para dar o caso por encerrado, nem pensar! (Na verdade, há uma expressão interessante: segundo o Protágoras imaginado por Sócrates, ele diria algo como: “vocês estão aceitando argumentos retóricos! se aceitarem argumentos assim em geometria, então não valem a pena...”). Quer dizer, a boa atitude filosófica não é esgotar o problema em algo aparentemente tão simples, mas sim, tal como faz Sócrates no diálogo de Platão, seguir investigando. Quer dizer, o relativismo de Protágoras deve ser — e de fato o foi — examinado com profundidade, deve ser levado a sério.

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(Aliás, há um episódio curioso em que o maestro Leonard Bernstein, ao anunciar o pianista Glenn Gould em um concerto, afirma que não concordava em absoluto com a interpretação que este dera ao concerto de Brahms que iriam executar dali a minutos. Contudo, como Gould era um músico notável e verdadeiramente dedicado, levando sua arte a sério, Bernstein sentia-se obrigado a fazer o mesmo e respeitar sua interpretação, ainda que discordando dela. Essa, parece-nos, é uma excelente atitude filosófica para com doutrinas das quais divergimos ou a respeito das quais acreditamos serem falsas, mas que merecem, por um motivo ou outro, serem levadas a sério).

De fato, ao longo da história da filosofia não foram poucas as vezes que filósofos e pensadores os mais variados combateram a nossa tarefa maior, talvez: a busca pela verdade. De Heráclito e Protágoras a Hume e Nietzsche, vários foram os filósofos que, seja por um ângulo relativista ou “perspectivista”, seja por uma abordagem cética, lançaram desafios à objetividade da verdade — ou à sua existência — e, consequentemente, à noção de critérios objetivos para julgarmos as coisas. Ainda assim (e por isso mesmo), constituem grandes momentos da nossa história intelectual.

Será esse o caso do multiculturalismo? Não nos parece. Ao contrário do que ocorre com os filósofos que citamos acima — entre muitos outros, é claro —, o multiculturalismo não merece esse mesmo tratamento intelectualmente respeitoso, e o motivo é simples: todos esses pensadores estavam comprometidos com uma investigação séria acerca da realidade, da natureza humana ou, ao menos, das nossas capacidades para realizar tal investigação. Independente da força ou da verdade das teorias por eles elaboradas, elas merecem — e mais, requerem — a séria consideração e a reflexão até mesmo do mais empedernido dogmático. Não é isso o que ocorre com a doutrina multiculturalista. Pelo contrário, nesse caso, estamos diante de uma ideologia, de uma doutrina política no pior sentido que essa expressão pode ter.

Mas para entender um pouco disso talvez seja melhor um pequeno passeio não mais pelos aspectos filosóficos do problema, mas sim históricos: o que é e como surgiu essa variedade pós-moderna de relativismo que, em última análise, cabe bem no rótulo “multiculturalismo”? Isso é assunto para a próxima coluna. §

Eduardo Wolf é bacharel em filosofia pela UFRGS, mestrando na área pela mesma universidade e editor do site www.ocidentalismo.org.

Felipe Pimentel é licenciado em história pela UFRGS

e mestrando em filosofia pela mesma universidade.

Relação completa dos pontos de distribuição em

www.revistanorte.com.br

Veja onde pegar o seu exemplar:

PORTO ALEGRE (RS):

Aragäna StoreRua Félix da Cunha, 1143

Barbarella BakeryRua Dinarte Ribeiro, 56

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Livraria CulturaAv. Túlio de Rose, 80 – Bourbon Shopping Country

Livraria NobelAv. Cristóvão Colombo, 545 – Shopping Total

Livraria Sapere AudeRua Lopo Gonçalves, 33 – F: (51) 3221-0203

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PalavrariaRua Vasco da Gama, 165 – F: (51) 3268-4260

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Do Arco da Velha Livraria e CaféRua Os 18 do Forte, 1690

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