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3& AS NOVAS RELAÇÕES ESPAÇO-TEMPO••••••••.•.•..•...... •••••••••.327 A dialética do estranhamento/reconhecimento................................328 Baudelaire: "O cisne" e a metáfora do estranhamento.....................330 O espaço amnésico e o tempo efêmero ...........................................348 O sentido da cidade como lugar do possfvel.................................... 355 BmLIOGRAFIA............................................................................ 365 C-ARL-OS I A'J\cFcn )/(.rLs.5. 2",d( ES PACt.) - r.:J NA ,A\ P ':>(;;"" 'li 10 INTRODUÇÃO u ... seria, na verdade, surpreendente que o som não pudesse sugerir a cor, que as cores não pu- dessem dar a idéia de uma melodia, e que o som e a cor fossem impróprios para traduzir idéias... Vasta como a noite e como a claridade Os perfumes, as cores e os sons se correspondem." 8audelaire "Há poucos eventos que não deixam ao menos um traço escrito", disse Georges Pereci. Os diversos elementos que compõem a existência comum dos homens inscrevem-se em um espaço; deixam suas marcas. Lugar onde se mani- festa a vida:-o espaço é condição, meio e produto da realização da sociedade humana emtoda a sua Reproduzido ao longo de um proces- so histórico ininterrupto de constituição da humanidade do homem, este é também o plano da reprodução. Ao produzir sua existência, a sociedade " reproduz, continuamente, o espaço.1§e de um lado o espaço é um conceito i -' abstrato, de outro tem uma dimensão real e concreta como lugar de realiza- ção da vida humana, que ocorre diferencialmente no tempo e no lugar e que ganha materialidade por meio do território.1 Duvignaud 2 chama a atenção para o fato de que o espaço nos remete aos conjuntos vivos, nascidos da prática e compostos pelo dinamismo de cada nova geração; seja na dimen- são de sua imensidade nômade, ou na da cidade, ou ainda na das toponírnias, o espaço se compõe de experiência, além de permitir a vida, lugar onde gerações sucessivas deixaram marcas, projetaram suas utopias, seu imagi- nário. A sociedade constrói um mundo objetivo; na prática socioespacial, esse mundo se revela em suas contradições, em um movimento que aponta um processo em curso, com base no processo de das relações 11

Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

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Page 1: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

3amp AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilO-TEMPObullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbullbull327 A dialeacutetica do estranhamentoreconhecimento 328 Baudelaire O cisne e a metaacutefora do estranhamento 330 O espaccedilo amneacutesico e o tempo efecircmero 348 O sentido da cidade como lugar do possfvel 355

BmLIOGRAFIA365

C-ARL-OS I AJcFcn ~ )(rLs5 2d(

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INTRODUCcedilAtildeO

u seria na verdade surpreendente que o som natildeo pudesse sugerir a cor que as cores natildeo pushydessem dar a ideacuteia de uma melodia e que o som e a cor fossem improacuteprios para traduzir ideacuteias Vasta como a noite e como a claridade Os perfumes as cores e os sons se correspondem

8audelaire

Haacute poucos eventos que natildeo deixam ao menos um traccedilo escrito disse Georges Pereci

Os diversos elementos que compotildeem a existecircncia comum dos homens inscrevem-se em um espaccedilo deixam aiacute suas marcas Lugar onde se manishyfesta a vida-o espaccedilo eacute condiccedilatildeo meio e produto da realizaccedilatildeo da sociedade humana emtoda a sua multiplicidad~ Reproduzido ao longo de um processhyso histoacuterico ininterrupto de constituiccedilatildeo da humanidade do homem este eacute tambeacutem o plano da reproduccedilatildeo Ao produzir sua existecircncia a sociedade reproduz continuamente o espaccedilo1secte de um lado o espaccedilo eacute um conceitoi -

abstrato de outro tem uma dimensatildeo real e concreta como lugar de realizashyccedilatildeo da vida humana que ocorre diferencialmente no tempo e no lugar e que ganha materialidade por meio do territoacuterio1 Duvignaud2 chama a atenccedilatildeo

~

para o fato de que o espaccedilo nos remete aos conjuntos vivos nascidos da praacutetica e compostos pelo dinamismo de cada nova geraccedilatildeo seja na dimenshysatildeo de sua imensidade nocircmade ou na da cidade ou ainda na das toponiacuternias o espaccedilo se compotildee de experiecircncia aleacutem de permitir a vida lugar onde geraccedilotildees sucessivas deixaram marcas projetaram suas utopias seu imagishynaacuterio A sociedade constroacutei um mundo objetivo na praacutetica socioespacial esse mundo se revela em suas contradiccedilotildees em um movimento que aponta um processo em curso com base no processo de ~produCcedilatildeo das relaccedilotildees

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sociais (que se realiza como relaccedilatildeo espaccedilo-temporal) Eacute por isso que podeshymos afirmar que no espaccedilo se pode ler as possibilidades concretas de realishyzaccedilatildeo da sociedade A anaacutelise geograacutefica do mundo eacute aquela que caminha no desvendamento dos processos constitutivos do espaccedilo social

No caso analisaJu iiC3ta pesquisa esse processo se realiza reproduzinshydo continuamente a cidade que assume neste momento histoacuterico a forma da metroacutepole A nosso ver o termo metroacutepole revela um momento histoacuterishyco do processo de reproduccedilatildeo da cidade portanto natildeo estamos diante de um novo processo mas de transformaccedilotildees histoacutericas no processo de constituishyccedilatildeo do espaccedilo urban- Assim a noccedilatildeo de cidade ganha nova amplitude reveshylando-se em sua historicidade agraveparecendo como categoria central da anaacutelise ao revelar a materializaccedilatildeo do processo histoacuterico de produccedilatildeo do espaccedilo geograacutefico Assim do mesmo modo que em cada momento da histoacuteria se produz um espaccedilo este revela em cada momento histoacuterico uma cidade e suas possibilidades

A anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano requer a justaposhysiccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis da realidade momentos diferenciados da reproduccedilatildeo geral da sociedade como o da dominaccedilatildeo poliacutetica o da acumulaccedilatildeo do capishytal da realizaccedilatildeo da vida humana Esse movimento eacute o ponto de partida e de chegada deste trabalho Assim se o espaccedilo corresponde a uma realidade global revelando-se no plano do abstrato e diz respeito ao plano do conheshycimento sua produccedilatildeo social a praacutetica socioespacial liga-se ao plano do concreto A materializaccedilatildeo do processo eacute dada pela concretizaccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais produtoras dos lugaresEsta eacute a dimensatildeo da produccedilatildeoreproshyduccedilatildeo do espaccedilo o passiacutevel de ser ista percebida sentida vivi~~ O hoshymem se apropria do mundo como apropriaccedilatildeo do espaccedilo - com todos os seus sentidos isto eacute com todo o seu corpo Nesse sentido o espaccedilo contemshypla dupla dimensatildeo de um lado eacute localizaccedilatildeo de outro encerra em sua natureza um conteuacutedo social dado pelas relaccedilotildees sociais que se realizam em um espaccedilo-tempo determinado aquele de sua reproduccedilatildeo na sociedade Eacute dessa forma que se desloca o enfoque da localizaccedilatildeo das atividades no espaccedilo para a anaacutelise do conteuacutedo da praacutetica socioespacial movimento de produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo

A anaacutelise envolve de modo articulado trecircs niacuteveis escalares no plano do espaccedilo mundial aponta a virtualidade de seu processo de reproduccedilatildeo contiacutenuo no plano do lugar expotildee a realizaccedilatildeo da vida humana nos atos do cotidiano como modo de apropri~ccedilatildeo que se realiza pelo uso por meio do corpo no plano da metr6pole ilumina a perspectiva do entendimento da cidade como obra humana materialidade produzida ao longo da histoacuteria revelando-se como mediaccedilatildeo entre os outros dois niacuteveis A articulaccedilatildeo-jusshy

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taposiccedilatildeo desses trecircs niacuteveis ganha configuraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pela noccedilatildeo de reproduccedilatildeo da sociedade

Como aponta Lefebvre3 as relaccedilotildees sociais possuem existecircncia real como existecircncia espacial concreta na medida em que produzem efetiva-

mente um espaccedilo aiacute se inscrevendo e se realizando As relaccedilotildees sociais ocorrem em um lugar determinado sem a qual natildeo se concretizariam em um tempo fixado ou determinado que marcaria a duraccedilatildeo da accedilatildeo Eacute assim que espaccedilo e tempo aparecem por meio da accedilatildeo humana em sua indissociabilidade uma accedilatildeo que se realiza como modo de apropriaccedilatildeo A accedilatildeo que se volta para o fim de concretizar ou melhor viabilizar a existecircnshycia humana realizar-se-ia como processo de reproduccedilatildeo da vida pela meshydiaccedilatildeo do processo de apropriaccedilatildeo do mundo Isto eacute as relaccedilotildees sociais que constroem o mundo concretamente se realizam como modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida em todas as suas dimensotildees e estas fogem - apesar de englobaacute-lo - o mundo do trabalho envolvendo e ultrashypassando a produccedilatildeo de objetos produtos e mercadorias isto porque a proshyduccedilatildeo da vida natildeo envolve apenas a reproduccedilatildeo de bens para a satisfaccedilatildeo das necessidades materiais eacute tambeacutem a produccedilatildeo da humanidade do homem Assim o plano da produccedilatildeo articula a produccedilatildeo voltada para o desenvolvishymento das relaccedilotildees de produccedilatildeo de mercadorias e da produccedilatildeo da vida e de suas possibilidades em sentido mais amplo e profundo Refere-se a modos de apropriaccedilatildeo que constroem o ser humano e criam a identidade que se realiza pela mediaccedilatildeo do outro (sujeito da relaccedilatildeo)

Trata-se de um processo que ocorre revelando persistecircnciaspreservashyccedilatildeo rupturastransformaccedilotildees Eacute nesse sentido que o espaccedilo aparece como condiccedilatildeo meio e produto da reproduccedilatildeo social revelando uma praacutetica que eacute socioespacial Desse modo a anaacutelise do momento atual nos colocaraacute diante dos termos da reproduccedilatildeo e natildeo da produccedilatildeo

A noccedilatildeo de produccedilatildeo se vincula a produccedilatildeo do homem agraves condiccedilotildees de vida da sociedade em sua multiplicidade de aspectos e como eacute por ela determinado Aponta por sua vez para a reproduccedilatildeo e evidencia a persshypectiva de compreensatildeo de uma totalidade que natildeo se restringe apenas ao plano do econocircmico abrindo-se para o entendimento da sociedade em seu movimento mais amplo o que pressupotildee uma totalidade Portanto a noccedilatildeo de produccedilatildeo estaacute articulada inexoravelmente agravequela de reproduccedilatildeo das reshylaccedilotildees sociais lato sensu - em determinado tempo e lugar Termo amplo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais abrangentes o que significa neste 1contexto o que se passa fora da esfera especiacutefica da produccedilatildeo de mercadoshy

~ rias e do mundo do trabalho (sem todavia deixar de incorporaacute-lo) para estender-se ao plano do habitar ao l~r agrave vida privada guardando o sentishy

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do do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reproduccedilatildeo da sociedade Nessa direccedilatildeo a noccedilatildeo de reproduccedilatildeo desvenda como persshypectiva analiacutetica a realidade urbana em constituiccedilatildeo analisa a vida cotidiacuteana como lugar da reproduccedilatildeo em sentido amplo Eacute nesse plano que pode ser detectada uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano como elemento constitutivo da reproduccedilatildeo no mundo moderno da metroacutepole Essa tendecircnshycia vai-se estabelecendo por meio do conflito entre a imposiccedilatildeo de novos modelos culturais e de comportamento agora invadidos pelo mundo corno mercadoria estabelecida no plano do mundial e pelas especificidades da vida no lugar com a persistecircncia de antigas relaccedilotildees As novas condiccedilotildees de existecircncia se realizam desigualmente em Satildeo Paulo pela criaccedilatildeo de uma rotina organizada (no espaccedilo e no tempo) da vida cotidiana que transforma radicalmente a sociabilidade empobrecendo-a agrave medida que as relaccedilotildees entre as pessoas passam a ser substituiacutedas por relaccedilotildees profissionais ou institucionais Por sua vez o tempo se acelera em funccedilatildeo do desenvolvishymento da teacutecnica - que requer a construccedilatildeo de novos espaccedilos bull que vai redefinindo as relaccedilotildees dos habitantes com o lugar e no lugar redefinindo a praacutetica socioespacial

Assim a gestaccedilatildeo da sociedade urbana determina novos padrotildees que se impotildeem de fora para dentro pelo poder da constituiccedilatildeo da sociedade de consumo (assentada em modelos de comportamento e valores que se pretenshydem universais pelo desenvolvimento da miacutedia que ajuda a impor os pashydrotildees e paracircmetros para a vida pela rede de comunicaccedilatildeo que aproxima os homens e lugares) em um espaccedilo-tempo diferenciado e desigual O choque entre o que existe e o que se impotildee como novo estaacute na base das transformashyccedilotildees da metroacutepole onde os lugares vatildeo-se integrando de modo sucessivo e simultacircneo com uma nova loacutegica aprofundando as contradiccedilotildees entre o centro e a periferia

No plano da reproduccedilatildeo de mercadorias o processo envolve o reprodutiacutevel e o repetitivo referindo-se diretamente agrave atividade produtiva (bens materiais e imateriais) que realiza coisas no espaccedilo (criando as condishyccedilotildees para a replizaccedilatildeo das atividades) ao mesmo tempo em que produz o espaccedilo como mercadoria Nesse niacutevel a cidade eacute condiccedilatildeo geral da produshyccedilatildeo o que impotildee determinada configuraccedilatildeo espacial que aparece corno jusshytaposiccedilatildeo de unidades produtivas formando urna cadeia (em funccedilatildeo da artishyculaccedilatildeo e das necessidades do processo produtivo por meio da correlaccedilatildeo entre os capitais individuais e a circulaccedilatildeo geral) que integra os diversos processos produtivos os centros de intercacircmbio os serviccedilos e o mercado aleacutem da matildeo-de-obra Esse desenvolvimento tem potencializado a aglomeshyraccedilatildeo como exigecircncia teacutecnica decorrente ora do gigantismo das unidades

produtivas ora da constituiccedilatildeo de unidades complexas pela formaccedilatildeo do capital financeiro que comanda as operaccedilotildees e pelo processo crescente de internacionalizaccedilatildeo do capital e mundializaccedilatildeo das trocas Parece natildeo haver duacutevida de quecidade se reproduz continuamente como condiccedilatildeo geral do

- processo de valorizaccedilatildeo gerado no capitalismo no sentido de viabilizar os processos de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo circulaccedilatildeo troca e consumo e com isso permitir que o ciclo do capital se desenvolva e possibilite a continuidashyde da produccedilatildeo logo sua reproduccedilatilde9i Haacute dois aspectos interdependentes do crescimento capitalista que estatildeo na base da anaacutelise da aglomeraccedilatildeo espashycial a necessidade de reproduccedilatildeo ampliada do capital e a crescente especiashylizaccedilatildeo decorrente do aprofundamento da divisatildeo social teacutecnica e espacial do trabalho que exige novas condiccedilotildees espaciais para sua realizaccedilatildeo Por

outro lado as mudanccedilas no processo produtivo redimensionam o tamanho e a localizaccedilatildeo das faacutebricas separam espacialmente o processo produtivo do escritoacuterio central e transformam a divisatildeo do trabalho na faacutebrica gerando nova divisatildeo do trabalho pelo processo de desintegraccedilatildeo horizontal

Neste plano haacute uma loacutegica que tende a se impor como ordem estabelecida que define o modo como a cidade vai-se reproduzindo a partir da reproduccedilatildeo realizada pela accedilatildeo dos promotores imobiliaacuterios das estrateacuteshygias do sistema financeiro e da gestatildeo poliacutetica agraves vezes de modo conflitante em outros momentos de forma convergente (como eacute o caso analisado neste trabalho) mas em todos os casos orientando e reorganizando o processo de reproduccedilatildeo espacial por meio da realizaccedilatildeo da divisatildeo socioespacial do trashybalho da hierarquizaccedilatildeo dos lugares e da fragmentaccedilatildeo dos espaccedilos vendishydos e comprados no mercado A accedilatildeo do Estado - por intermeacutedio do poder local- ao intervir no processo de produccedilatildeo da cidade reforccedila a hierarquia de lugares criando novas centralidades e expulsando para a periferia os antigos habitantes criando um espaccedilo de dominaccedilatildeo Com isso impotildee sua presenccedila em todos os lugares agora sob controle e vigilacircncia (seja direta ou indireta) Nesse niacutevel de realidadeo espaccedilo produzido assume a caracteriacutestica de

LfragrnentadiMem decorrecircncia da accedilatildeo dos empreendedores imobiliaacuterios e da generalizaccedilatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo)~omogecircned(pela dominaccedilatildeo imposta pelo Estado ao espaccedilo) elhierarquizad~(pela divisatildeo espacial do trabalho)4

4gt A contradiccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo social do espaccedilo e sua apropriaccedilatildeo privada estaacute na base do entendimento do processo de reprodushyccedilatildeo espacial Isto porque em uma sociedade fundada sobre a troca a aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo ele proacuteprio produzido como mercadoria liga-se cada vez

mais agrave forma de mercadoria servindo agraves necessidades da acumulaccedilatildeo por meio das mudanccedilaslreadaptaccedilatildees de usos e funccedilotildees dos lugares que tamshy

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beacutem se reproduzem sob a lei do reprodutiacutevel a partir de estrateacutegias da reproshyduccedilatildeo em determinado momento da histoacuteria do capitalismo Este se estende cada vez mais ao espaccedilo global criando novos setores de atividade extenshysatildeo das atividades produtivas Cada vez mais o espaccedilo produzido como mercadoria entra no circuito da troca atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reproduccedilatildeo As possibishylidades de ocupar o espaccedilo satildeo sempre crescentes o que explica a emergecircnshycia de uma loacutegica associada a uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo fragmentando e tornanshydo os espaccedilos trocaacuteveis a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido como mercadoria reprodutiacuteveL

Esta pesquisa articula dois planos de anaacutelise que constituem a nosso ver um movimento capaz de explicitar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole hoje De um lado o modo como o desenvolvimento do capitashylismo gera contradiccedilotildees em seu proacuteprio processo de realizaccedilatildeo Nesse caso especiacutefico as transformaccedilotildees no processo da metroacutepole como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo do ciclo do capital revelam a necessidade de uma alianccedila entre o Estado e os setores modernos da economia a fim de contornar a barreira que o processo de urbanizaccedilatildeo elevou ao plano do desenv4gtlvimento de uma aacuterea de expansatildeo do centro empresarial-comercial de Satildeo Paulo voltado agrave consshytruccedilatildeo de edifiacutecios de escritoacuterios e de infra estrutura compatiacutevel

A realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) na metroacutepole Satildeo Paulo acabou por representar a conquista de importante parcela do espaccedilo antes ocupado por residecircncias que ao se libertar das amarras imposta pela propriedade privada pode ser lanccedilado novamente no mercado imobiliaacuterio impelido pelas mudanccedilas da funccedilatildeo da aacuterea decorrentes das desapropriashyccedilotildees da construccedilatildeo do sistema viaacuterio das mudanccedilas no uso do solo e da lei de zoneamento que permitiram a verticalizaccedilatildeo Nesse contexto os promoshy

1C tores imobiliaacuterios se servem do espaccedilo como meio para a realizaccedilatildeo da reshyproduccedilatildeo A mobilizaccedilatildeo do espaccedilo tomou freneacutetico o fluxo de capital produzindo a destruiccedilatildeo dos antigos lugares em funccedilatildeo da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente programado e lucrativo trashyzendo como consequumlecircncia a mudanccedila nos usos e funccedilotildees de aacutereas que passhysam a fazer parte novamente do fluxo do valor de troca Desse modo a organizaccedilatildeo do processo de reproduccedilatildeo do capital em escala cada vez mais ampliada impotildee seus efeitos sobre a estrutura urbana que se apresenta como expressatildeo do estaacutegio de desenvolvimento das forccedilas produtivas em que a concentraccedilatildeo espacial dos recursos corresponde a uma necessidade ditada peia exigecircncia da acumuiaccedilao A criaccedilatildeo desse espaccedilo como prolongamento

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do eixo empresarial e de lazer a partir de novas estrateacutegias interfere na proshyduccedilatildeo de novas centralidades tendo em vista que produzem poacutelos de atrashyccedilatildeo que redimensionam o fluxo das pessoas no espaccedilo por meio de mudanshyccedilas no uso

De outro lado o processo de transformaccedilatildeo espacifll pmmovido pela realizaccedilatildeo da OUFL traz profundas metamorfoses ao plano de realizaccedilatildeo da vida cotidiana dos habitantes das aacutereas atingidas Bairros inteiros foram descaracterizados ou mesmo destruiacutedos pela necessidade de expansatildeo deshysenfreada proveniente da acumulaccedilatildeo de capital que Jeproduz o espaccedilo metropolitano em seu processo de explosatildeoimplosatildeo O processo de aproshypriaccedilatildeo tende a se reduzir a uma praacutetica socioespacial esvaziada que aprisiona o corpo Aqui a cidade aparece como o lugar da reproduccedilatildeo da vida (tendo por base a forma desigual de apropriaccedilatildeo do espaccedilo urbano assentado na propriedade privada) como expressatildeo do movimento cadenciado da reproshyduccedilatildeo do capital trabalho social concreto materializaccedilatildeo de relaccedilotildees socishyais econocircmicas poliacuteticas e juriacutedicas que produzem o espaccedilo como forma de apropriaccedilatildeo modo de pensar e de sentir constituindo-se como praacutetica socioespacial Logo eacute expressatildeo tambeacutem de um modo de vida modo como as necessidades da reproduccedilatildeo invade conflituosamente a esfera da reproshyduccedilatildeo da vida redefinindo-a

As transformaccedilotildees provocadas no espaccedilo paulistano pela operaccedilatildeo urshybana que aparece como extensatildeo da entatildeo avenida Brigadeiro Faria Lima atingindo trecircs bairros da capital natildeo se limitam agrave ampliaccedilatildeo do sistema viaacuterio surgindo no plano da praacutetica socioespacial como alteraccedilatildeo da morfologia urbana pela transformaccedilatildeo dos usos e funccedilotildees das aacutereas afetashydas que provocou o fenocircmeno da implosatildeo dos bairros

O espaccedilo reproduzido na perspectiva do eminentemente reprodutiacutevel eacute o campo em que triunfa o homogecircneo consequumlecircncia da repeticcedilatildeo indefinida de um modelo que vai limitando os usos e reduzindo o modo de vida a atos e gestos sempre repetitivos comportamentos orientados e vigiados Nessa direccedilatildeo o fio condutor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole de Satildeo Paulo aqui analisado baseia-se de um lado nas possibilidades da articulaccedilatildeo enfre apropriaccedilatildeo e uso dos lugares da metroacutepole (ligado aos modos pelos quais o habitante se apropria do espaccedilo da vida) e de outro

lf como o Estado - por meio do poder local- age estrategicamente no espaccedilo objetivando a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais capazes de permitir a contishynuidade do processo de acumulaccedilatildeo no momento atual Assim ganha conshytorno a contradiccedilatildeo enfre as estrateacutegias do Estado (visando a reproduccedilatildeo do

eapital e a produccedilatildeo de um espaccedilo dominado) e os usos do espaccedilo (objetivando a reproduccedilatildeo da vida) que compotildeem o quadro capaz de revelar as contradishy

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ccedilotildees no mundo moderno presentes no processo de reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole a partir da anaacutelise de um de seus fragmentos Natildeo se trata porshytanto de reduzir a reproduccedilatildeo espacial agravequela da intervenccedilatildeo do Estado no sentido de superar a contradiccedilatildeo gerada pelo fenocircmeno da raridade do espashyccedilo e os entraves que a existecircncia da propriedade privada cria para a reprodushyccedilatildeo do capital Se de um lado se aproximam as estrateacutegias do mercado imoshybiliaacuterio da induacutestria da construccedilatildeo civil e do setor financeiro de outro a explicaccedilatildeo ganha sentido articulada com o fato de que o processo dereproshyduccedilatildeo do espaccedilo envolve tambeacutem e de modo articulado outro plano de anaacutelise o do indiviacuteduo do habitante (aqui o habitante aparece como categoshyria de anaacutelise)

No mundo moderno a praacutetica socioespacial revela a contradiccedilatildeo entre a produccedilatildeo de um espaccedilo em funccedilatildeo das necessidades econocircmicas e poliacuteticas y e ao mesmo tempo a reproduccedilatildeo do espaccedilo da vida social No primeiro caso a reproduccedilatildeo do espaccedilo se daacute pela imposiccedilatildeo de uma racionalidade teacutecnica assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulaccedilatildeo que produz o espaccedilo como condiccedilatildeoproduto da produccedilatildeo revelando as conshytradiccedilotildees que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impotildee limites e barreiras a sua reproduccedilatildeo No segundo caso a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole se realiza na relaccedilatildeo contraditoacuteria entre necessidade e desejo uso e troca identidade e natildeo-identidade estranhamento e reconhecimento que permeiam a praacutetica socioespacial Nesse momento o aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho se baseia em uma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da teacutecnica aplicada agrave produccedilatildeo agrave gestatildeo e agrave supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle e da vigilacircncia O entendimento da metroacutepole se revela no desvendamento do modo como se realiza concretamente o processo de reshyproduccedilatildeo da sociedade urbana em sua totalidade como tendecircncia inexoraacutevel E se realiza hoje como processo de reproduccedilatildeo da sociedade a partir da reshyproduccedilatildeo do espaccedilo em que ganha sentido uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

A acumulaccedilatildeo tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que natildeo se realiza apenas produzindo objetosmercashydorias mas adivisatildeo e organizaccedilatildeo do trabalho modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana Desse modo esta se apresenta tendencialmente invadida por um sistema regulador em todos os niacuteveis que formaliza e fixa as relaccedilotildees soshyciais reduzindo-a a formas abstratas Tal fato tende a dissipar a consciecircncia urbana no momento em que o habitar hoje a metroacutepole apresenta um senshytido diverso em funccedilatildeo do processo de implosatildeo que impotildee mudanccedilas nos haacutebitos e comportamentos dissolve antigos modos de vida transformando

as relaccedilotildees entre as pessoas bem como reduzindo e redefinindo as formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Os aparelhos de televisatildeo por exemplo substitushyiacuteram as cadeiras nas calccediladas de antigos bairros de Satildeo Paulo assim como os videogames substituem o outro nas brincadeiras infantis colocando cada crianccedila sentada diante de uma tela em ambos os casos o corpo tomashydo inerte reduz-se aos olhos e matildeos As mercadorias substituem as relaccedilotildees diretas entre as pessoas por meio de novos objetos ateacute as relaccedilotildees de troca modificam-se formalmente distanciando os agentes da relaccedilatildeo As antigas vendas e mercearias por exemplo foram substituiacutedas pelos supermercados onde as cadernetas que marcavam uma relaccedilatildeo proacutexima e de confianccedila enshytre vendedor e comprador foram substituiacutedas pelo ticket da maacutequina regisshytradora as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviccedilo no plano do bairro aleacutem de permitirem uma relaccedilatildeo proacutexima e personalizashyda entre comprador e vendedor serviam como locais de possiacuteveis enconshytros Como consequumlecircncia desse processo da normatizaccedilatildeo das relaccedilotildees soshyciais da rarefaccedilatildeo dos lugares de encontros decorrentes das mudanccedilas na morfologia da metroacutepole estabelece-se o estranhamento do indiviacuteduo na metroacutepole Nesse sentido a vida urbana impotildee conflitos e confrontos e aponta para a instauraccedilatildeo do cotidianoS em que a atomizaccedilatildeo ao mesmo tempo em que a superorganizaccedilatildeo da vida impotildee-se sem resistecircncia Campo da autoshyregulaccedilatildeo voluntaacuteria e planificada o cotidiano aparece como construccedilatildeo da sociedade que se organiza segundo uma ordem fortemente burocratizada preenchida por repressotildees e coaccedilotildees imperceptiacuteveis no lugar revelando artimiddot culaccedilotildees espaciais mais amplas (o plano do local se acha cada vez mais invadido pelo plano global)

)( Esses dois planos revelam como em cada dimensatildeo da realidade o espaccedilo adquire configuraccedilatildeo sentido e finalidade diferenciadas O sentido que a metamorfose do espaccedilo da metroacutepole assume baseado na mercanshytiacutelizaccedilatildeo do solo urbano provoca o fenocircmeno de implosatildeoexplosatildeo Nesse processo se delineia a tendecircncia agrave submissatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo ao mundo da mercadoria consequumlentemente o esvaziamento das relaccedilotildees sociais pela reduccedilatildeo do conteuacutedo da praacutetica socioespacial Nesse plano da realidade o lugar da vida transformado adquire a caracteriacutestica de ~m espaccedilo amneacutesico em sua relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmerru- essa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo redefine as relaccedilotildees sociais na metroacutepole caracteshyrizando a nosso ver o momento atual

Entretanto a produccedilatildeo do espaccedilo deve ser entendida sob dupla perspectishyva ao mesmo tempo em que se realiza um movimento que constitui o processhyso de mundializaccedilatildeo da sociedade urbana acentua-se a fragmentaccedilatildeo tanto do espaccedilo quanto do indiviacuteduo Essa produccedilatildeo espacial realiza-se no plano da

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

332 333

fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 2: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

sociais (que se realiza como relaccedilatildeo espaccedilo-temporal) Eacute por isso que podeshymos afirmar que no espaccedilo se pode ler as possibilidades concretas de realishyzaccedilatildeo da sociedade A anaacutelise geograacutefica do mundo eacute aquela que caminha no desvendamento dos processos constitutivos do espaccedilo social

No caso analisaJu iiC3ta pesquisa esse processo se realiza reproduzinshydo continuamente a cidade que assume neste momento histoacuterico a forma da metroacutepole A nosso ver o termo metroacutepole revela um momento histoacuterishyco do processo de reproduccedilatildeo da cidade portanto natildeo estamos diante de um novo processo mas de transformaccedilotildees histoacutericas no processo de constituishyccedilatildeo do espaccedilo urban- Assim a noccedilatildeo de cidade ganha nova amplitude reveshylando-se em sua historicidade agraveparecendo como categoria central da anaacutelise ao revelar a materializaccedilatildeo do processo histoacuterico de produccedilatildeo do espaccedilo geograacutefico Assim do mesmo modo que em cada momento da histoacuteria se produz um espaccedilo este revela em cada momento histoacuterico uma cidade e suas possibilidades

A anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano requer a justaposhysiccedilatildeo de vaacuterios niacuteveis da realidade momentos diferenciados da reproduccedilatildeo geral da sociedade como o da dominaccedilatildeo poliacutetica o da acumulaccedilatildeo do capishytal da realizaccedilatildeo da vida humana Esse movimento eacute o ponto de partida e de chegada deste trabalho Assim se o espaccedilo corresponde a uma realidade global revelando-se no plano do abstrato e diz respeito ao plano do conheshycimento sua produccedilatildeo social a praacutetica socioespacial liga-se ao plano do concreto A materializaccedilatildeo do processo eacute dada pela concretizaccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais produtoras dos lugaresEsta eacute a dimensatildeo da produccedilatildeoreproshyduccedilatildeo do espaccedilo o passiacutevel de ser ista percebida sentida vivi~~ O hoshymem se apropria do mundo como apropriaccedilatildeo do espaccedilo - com todos os seus sentidos isto eacute com todo o seu corpo Nesse sentido o espaccedilo contemshypla dupla dimensatildeo de um lado eacute localizaccedilatildeo de outro encerra em sua natureza um conteuacutedo social dado pelas relaccedilotildees sociais que se realizam em um espaccedilo-tempo determinado aquele de sua reproduccedilatildeo na sociedade Eacute dessa forma que se desloca o enfoque da localizaccedilatildeo das atividades no espaccedilo para a anaacutelise do conteuacutedo da praacutetica socioespacial movimento de produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo

A anaacutelise envolve de modo articulado trecircs niacuteveis escalares no plano do espaccedilo mundial aponta a virtualidade de seu processo de reproduccedilatildeo contiacutenuo no plano do lugar expotildee a realizaccedilatildeo da vida humana nos atos do cotidiano como modo de apropri~ccedilatildeo que se realiza pelo uso por meio do corpo no plano da metr6pole ilumina a perspectiva do entendimento da cidade como obra humana materialidade produzida ao longo da histoacuteria revelando-se como mediaccedilatildeo entre os outros dois niacuteveis A articulaccedilatildeo-jusshy

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taposiccedilatildeo desses trecircs niacuteveis ganha configuraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pela noccedilatildeo de reproduccedilatildeo da sociedade

Como aponta Lefebvre3 as relaccedilotildees sociais possuem existecircncia real como existecircncia espacial concreta na medida em que produzem efetiva-

mente um espaccedilo aiacute se inscrevendo e se realizando As relaccedilotildees sociais ocorrem em um lugar determinado sem a qual natildeo se concretizariam em um tempo fixado ou determinado que marcaria a duraccedilatildeo da accedilatildeo Eacute assim que espaccedilo e tempo aparecem por meio da accedilatildeo humana em sua indissociabilidade uma accedilatildeo que se realiza como modo de apropriaccedilatildeo A accedilatildeo que se volta para o fim de concretizar ou melhor viabilizar a existecircnshycia humana realizar-se-ia como processo de reproduccedilatildeo da vida pela meshydiaccedilatildeo do processo de apropriaccedilatildeo do mundo Isto eacute as relaccedilotildees sociais que constroem o mundo concretamente se realizam como modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida em todas as suas dimensotildees e estas fogem - apesar de englobaacute-lo - o mundo do trabalho envolvendo e ultrashypassando a produccedilatildeo de objetos produtos e mercadorias isto porque a proshyduccedilatildeo da vida natildeo envolve apenas a reproduccedilatildeo de bens para a satisfaccedilatildeo das necessidades materiais eacute tambeacutem a produccedilatildeo da humanidade do homem Assim o plano da produccedilatildeo articula a produccedilatildeo voltada para o desenvolvishymento das relaccedilotildees de produccedilatildeo de mercadorias e da produccedilatildeo da vida e de suas possibilidades em sentido mais amplo e profundo Refere-se a modos de apropriaccedilatildeo que constroem o ser humano e criam a identidade que se realiza pela mediaccedilatildeo do outro (sujeito da relaccedilatildeo)

Trata-se de um processo que ocorre revelando persistecircnciaspreservashyccedilatildeo rupturastransformaccedilotildees Eacute nesse sentido que o espaccedilo aparece como condiccedilatildeo meio e produto da reproduccedilatildeo social revelando uma praacutetica que eacute socioespacial Desse modo a anaacutelise do momento atual nos colocaraacute diante dos termos da reproduccedilatildeo e natildeo da produccedilatildeo

A noccedilatildeo de produccedilatildeo se vincula a produccedilatildeo do homem agraves condiccedilotildees de vida da sociedade em sua multiplicidade de aspectos e como eacute por ela determinado Aponta por sua vez para a reproduccedilatildeo e evidencia a persshypectiva de compreensatildeo de uma totalidade que natildeo se restringe apenas ao plano do econocircmico abrindo-se para o entendimento da sociedade em seu movimento mais amplo o que pressupotildee uma totalidade Portanto a noccedilatildeo de produccedilatildeo estaacute articulada inexoravelmente agravequela de reproduccedilatildeo das reshylaccedilotildees sociais lato sensu - em determinado tempo e lugar Termo amplo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais abrangentes o que significa neste 1contexto o que se passa fora da esfera especiacutefica da produccedilatildeo de mercadoshy

~ rias e do mundo do trabalho (sem todavia deixar de incorporaacute-lo) para estender-se ao plano do habitar ao l~r agrave vida privada guardando o sentishy

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do do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reproduccedilatildeo da sociedade Nessa direccedilatildeo a noccedilatildeo de reproduccedilatildeo desvenda como persshypectiva analiacutetica a realidade urbana em constituiccedilatildeo analisa a vida cotidiacuteana como lugar da reproduccedilatildeo em sentido amplo Eacute nesse plano que pode ser detectada uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano como elemento constitutivo da reproduccedilatildeo no mundo moderno da metroacutepole Essa tendecircnshycia vai-se estabelecendo por meio do conflito entre a imposiccedilatildeo de novos modelos culturais e de comportamento agora invadidos pelo mundo corno mercadoria estabelecida no plano do mundial e pelas especificidades da vida no lugar com a persistecircncia de antigas relaccedilotildees As novas condiccedilotildees de existecircncia se realizam desigualmente em Satildeo Paulo pela criaccedilatildeo de uma rotina organizada (no espaccedilo e no tempo) da vida cotidiana que transforma radicalmente a sociabilidade empobrecendo-a agrave medida que as relaccedilotildees entre as pessoas passam a ser substituiacutedas por relaccedilotildees profissionais ou institucionais Por sua vez o tempo se acelera em funccedilatildeo do desenvolvishymento da teacutecnica - que requer a construccedilatildeo de novos espaccedilos bull que vai redefinindo as relaccedilotildees dos habitantes com o lugar e no lugar redefinindo a praacutetica socioespacial

Assim a gestaccedilatildeo da sociedade urbana determina novos padrotildees que se impotildeem de fora para dentro pelo poder da constituiccedilatildeo da sociedade de consumo (assentada em modelos de comportamento e valores que se pretenshydem universais pelo desenvolvimento da miacutedia que ajuda a impor os pashydrotildees e paracircmetros para a vida pela rede de comunicaccedilatildeo que aproxima os homens e lugares) em um espaccedilo-tempo diferenciado e desigual O choque entre o que existe e o que se impotildee como novo estaacute na base das transformashyccedilotildees da metroacutepole onde os lugares vatildeo-se integrando de modo sucessivo e simultacircneo com uma nova loacutegica aprofundando as contradiccedilotildees entre o centro e a periferia

No plano da reproduccedilatildeo de mercadorias o processo envolve o reprodutiacutevel e o repetitivo referindo-se diretamente agrave atividade produtiva (bens materiais e imateriais) que realiza coisas no espaccedilo (criando as condishyccedilotildees para a replizaccedilatildeo das atividades) ao mesmo tempo em que produz o espaccedilo como mercadoria Nesse niacutevel a cidade eacute condiccedilatildeo geral da produshyccedilatildeo o que impotildee determinada configuraccedilatildeo espacial que aparece corno jusshytaposiccedilatildeo de unidades produtivas formando urna cadeia (em funccedilatildeo da artishyculaccedilatildeo e das necessidades do processo produtivo por meio da correlaccedilatildeo entre os capitais individuais e a circulaccedilatildeo geral) que integra os diversos processos produtivos os centros de intercacircmbio os serviccedilos e o mercado aleacutem da matildeo-de-obra Esse desenvolvimento tem potencializado a aglomeshyraccedilatildeo como exigecircncia teacutecnica decorrente ora do gigantismo das unidades

produtivas ora da constituiccedilatildeo de unidades complexas pela formaccedilatildeo do capital financeiro que comanda as operaccedilotildees e pelo processo crescente de internacionalizaccedilatildeo do capital e mundializaccedilatildeo das trocas Parece natildeo haver duacutevida de quecidade se reproduz continuamente como condiccedilatildeo geral do

- processo de valorizaccedilatildeo gerado no capitalismo no sentido de viabilizar os processos de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo circulaccedilatildeo troca e consumo e com isso permitir que o ciclo do capital se desenvolva e possibilite a continuidashyde da produccedilatildeo logo sua reproduccedilatilde9i Haacute dois aspectos interdependentes do crescimento capitalista que estatildeo na base da anaacutelise da aglomeraccedilatildeo espashycial a necessidade de reproduccedilatildeo ampliada do capital e a crescente especiashylizaccedilatildeo decorrente do aprofundamento da divisatildeo social teacutecnica e espacial do trabalho que exige novas condiccedilotildees espaciais para sua realizaccedilatildeo Por

outro lado as mudanccedilas no processo produtivo redimensionam o tamanho e a localizaccedilatildeo das faacutebricas separam espacialmente o processo produtivo do escritoacuterio central e transformam a divisatildeo do trabalho na faacutebrica gerando nova divisatildeo do trabalho pelo processo de desintegraccedilatildeo horizontal

Neste plano haacute uma loacutegica que tende a se impor como ordem estabelecida que define o modo como a cidade vai-se reproduzindo a partir da reproduccedilatildeo realizada pela accedilatildeo dos promotores imobiliaacuterios das estrateacuteshygias do sistema financeiro e da gestatildeo poliacutetica agraves vezes de modo conflitante em outros momentos de forma convergente (como eacute o caso analisado neste trabalho) mas em todos os casos orientando e reorganizando o processo de reproduccedilatildeo espacial por meio da realizaccedilatildeo da divisatildeo socioespacial do trashybalho da hierarquizaccedilatildeo dos lugares e da fragmentaccedilatildeo dos espaccedilos vendishydos e comprados no mercado A accedilatildeo do Estado - por intermeacutedio do poder local- ao intervir no processo de produccedilatildeo da cidade reforccedila a hierarquia de lugares criando novas centralidades e expulsando para a periferia os antigos habitantes criando um espaccedilo de dominaccedilatildeo Com isso impotildee sua presenccedila em todos os lugares agora sob controle e vigilacircncia (seja direta ou indireta) Nesse niacutevel de realidadeo espaccedilo produzido assume a caracteriacutestica de

LfragrnentadiMem decorrecircncia da accedilatildeo dos empreendedores imobiliaacuterios e da generalizaccedilatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo)~omogecircned(pela dominaccedilatildeo imposta pelo Estado ao espaccedilo) elhierarquizad~(pela divisatildeo espacial do trabalho)4

4gt A contradiccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo social do espaccedilo e sua apropriaccedilatildeo privada estaacute na base do entendimento do processo de reprodushyccedilatildeo espacial Isto porque em uma sociedade fundada sobre a troca a aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo ele proacuteprio produzido como mercadoria liga-se cada vez

mais agrave forma de mercadoria servindo agraves necessidades da acumulaccedilatildeo por meio das mudanccedilaslreadaptaccedilatildees de usos e funccedilotildees dos lugares que tamshy

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beacutem se reproduzem sob a lei do reprodutiacutevel a partir de estrateacutegias da reproshyduccedilatildeo em determinado momento da histoacuteria do capitalismo Este se estende cada vez mais ao espaccedilo global criando novos setores de atividade extenshysatildeo das atividades produtivas Cada vez mais o espaccedilo produzido como mercadoria entra no circuito da troca atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reproduccedilatildeo As possibishylidades de ocupar o espaccedilo satildeo sempre crescentes o que explica a emergecircnshycia de uma loacutegica associada a uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo fragmentando e tornanshydo os espaccedilos trocaacuteveis a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido como mercadoria reprodutiacuteveL

Esta pesquisa articula dois planos de anaacutelise que constituem a nosso ver um movimento capaz de explicitar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole hoje De um lado o modo como o desenvolvimento do capitashylismo gera contradiccedilotildees em seu proacuteprio processo de realizaccedilatildeo Nesse caso especiacutefico as transformaccedilotildees no processo da metroacutepole como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo do ciclo do capital revelam a necessidade de uma alianccedila entre o Estado e os setores modernos da economia a fim de contornar a barreira que o processo de urbanizaccedilatildeo elevou ao plano do desenv4gtlvimento de uma aacuterea de expansatildeo do centro empresarial-comercial de Satildeo Paulo voltado agrave consshytruccedilatildeo de edifiacutecios de escritoacuterios e de infra estrutura compatiacutevel

A realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) na metroacutepole Satildeo Paulo acabou por representar a conquista de importante parcela do espaccedilo antes ocupado por residecircncias que ao se libertar das amarras imposta pela propriedade privada pode ser lanccedilado novamente no mercado imobiliaacuterio impelido pelas mudanccedilas da funccedilatildeo da aacuterea decorrentes das desapropriashyccedilotildees da construccedilatildeo do sistema viaacuterio das mudanccedilas no uso do solo e da lei de zoneamento que permitiram a verticalizaccedilatildeo Nesse contexto os promoshy

1C tores imobiliaacuterios se servem do espaccedilo como meio para a realizaccedilatildeo da reshyproduccedilatildeo A mobilizaccedilatildeo do espaccedilo tomou freneacutetico o fluxo de capital produzindo a destruiccedilatildeo dos antigos lugares em funccedilatildeo da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente programado e lucrativo trashyzendo como consequumlecircncia a mudanccedila nos usos e funccedilotildees de aacutereas que passhysam a fazer parte novamente do fluxo do valor de troca Desse modo a organizaccedilatildeo do processo de reproduccedilatildeo do capital em escala cada vez mais ampliada impotildee seus efeitos sobre a estrutura urbana que se apresenta como expressatildeo do estaacutegio de desenvolvimento das forccedilas produtivas em que a concentraccedilatildeo espacial dos recursos corresponde a uma necessidade ditada peia exigecircncia da acumuiaccedilao A criaccedilatildeo desse espaccedilo como prolongamento

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do eixo empresarial e de lazer a partir de novas estrateacutegias interfere na proshyduccedilatildeo de novas centralidades tendo em vista que produzem poacutelos de atrashyccedilatildeo que redimensionam o fluxo das pessoas no espaccedilo por meio de mudanshyccedilas no uso

De outro lado o processo de transformaccedilatildeo espacifll pmmovido pela realizaccedilatildeo da OUFL traz profundas metamorfoses ao plano de realizaccedilatildeo da vida cotidiana dos habitantes das aacutereas atingidas Bairros inteiros foram descaracterizados ou mesmo destruiacutedos pela necessidade de expansatildeo deshysenfreada proveniente da acumulaccedilatildeo de capital que Jeproduz o espaccedilo metropolitano em seu processo de explosatildeoimplosatildeo O processo de aproshypriaccedilatildeo tende a se reduzir a uma praacutetica socioespacial esvaziada que aprisiona o corpo Aqui a cidade aparece como o lugar da reproduccedilatildeo da vida (tendo por base a forma desigual de apropriaccedilatildeo do espaccedilo urbano assentado na propriedade privada) como expressatildeo do movimento cadenciado da reproshyduccedilatildeo do capital trabalho social concreto materializaccedilatildeo de relaccedilotildees socishyais econocircmicas poliacuteticas e juriacutedicas que produzem o espaccedilo como forma de apropriaccedilatildeo modo de pensar e de sentir constituindo-se como praacutetica socioespacial Logo eacute expressatildeo tambeacutem de um modo de vida modo como as necessidades da reproduccedilatildeo invade conflituosamente a esfera da reproshyduccedilatildeo da vida redefinindo-a

As transformaccedilotildees provocadas no espaccedilo paulistano pela operaccedilatildeo urshybana que aparece como extensatildeo da entatildeo avenida Brigadeiro Faria Lima atingindo trecircs bairros da capital natildeo se limitam agrave ampliaccedilatildeo do sistema viaacuterio surgindo no plano da praacutetica socioespacial como alteraccedilatildeo da morfologia urbana pela transformaccedilatildeo dos usos e funccedilotildees das aacutereas afetashydas que provocou o fenocircmeno da implosatildeo dos bairros

O espaccedilo reproduzido na perspectiva do eminentemente reprodutiacutevel eacute o campo em que triunfa o homogecircneo consequumlecircncia da repeticcedilatildeo indefinida de um modelo que vai limitando os usos e reduzindo o modo de vida a atos e gestos sempre repetitivos comportamentos orientados e vigiados Nessa direccedilatildeo o fio condutor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole de Satildeo Paulo aqui analisado baseia-se de um lado nas possibilidades da articulaccedilatildeo enfre apropriaccedilatildeo e uso dos lugares da metroacutepole (ligado aos modos pelos quais o habitante se apropria do espaccedilo da vida) e de outro

lf como o Estado - por meio do poder local- age estrategicamente no espaccedilo objetivando a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais capazes de permitir a contishynuidade do processo de acumulaccedilatildeo no momento atual Assim ganha conshytorno a contradiccedilatildeo enfre as estrateacutegias do Estado (visando a reproduccedilatildeo do

eapital e a produccedilatildeo de um espaccedilo dominado) e os usos do espaccedilo (objetivando a reproduccedilatildeo da vida) que compotildeem o quadro capaz de revelar as contradishy

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ccedilotildees no mundo moderno presentes no processo de reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole a partir da anaacutelise de um de seus fragmentos Natildeo se trata porshytanto de reduzir a reproduccedilatildeo espacial agravequela da intervenccedilatildeo do Estado no sentido de superar a contradiccedilatildeo gerada pelo fenocircmeno da raridade do espashyccedilo e os entraves que a existecircncia da propriedade privada cria para a reprodushyccedilatildeo do capital Se de um lado se aproximam as estrateacutegias do mercado imoshybiliaacuterio da induacutestria da construccedilatildeo civil e do setor financeiro de outro a explicaccedilatildeo ganha sentido articulada com o fato de que o processo dereproshyduccedilatildeo do espaccedilo envolve tambeacutem e de modo articulado outro plano de anaacutelise o do indiviacuteduo do habitante (aqui o habitante aparece como categoshyria de anaacutelise)

No mundo moderno a praacutetica socioespacial revela a contradiccedilatildeo entre a produccedilatildeo de um espaccedilo em funccedilatildeo das necessidades econocircmicas e poliacuteticas y e ao mesmo tempo a reproduccedilatildeo do espaccedilo da vida social No primeiro caso a reproduccedilatildeo do espaccedilo se daacute pela imposiccedilatildeo de uma racionalidade teacutecnica assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulaccedilatildeo que produz o espaccedilo como condiccedilatildeoproduto da produccedilatildeo revelando as conshytradiccedilotildees que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impotildee limites e barreiras a sua reproduccedilatildeo No segundo caso a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole se realiza na relaccedilatildeo contraditoacuteria entre necessidade e desejo uso e troca identidade e natildeo-identidade estranhamento e reconhecimento que permeiam a praacutetica socioespacial Nesse momento o aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho se baseia em uma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da teacutecnica aplicada agrave produccedilatildeo agrave gestatildeo e agrave supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle e da vigilacircncia O entendimento da metroacutepole se revela no desvendamento do modo como se realiza concretamente o processo de reshyproduccedilatildeo da sociedade urbana em sua totalidade como tendecircncia inexoraacutevel E se realiza hoje como processo de reproduccedilatildeo da sociedade a partir da reshyproduccedilatildeo do espaccedilo em que ganha sentido uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

A acumulaccedilatildeo tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que natildeo se realiza apenas produzindo objetosmercashydorias mas adivisatildeo e organizaccedilatildeo do trabalho modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana Desse modo esta se apresenta tendencialmente invadida por um sistema regulador em todos os niacuteveis que formaliza e fixa as relaccedilotildees soshyciais reduzindo-a a formas abstratas Tal fato tende a dissipar a consciecircncia urbana no momento em que o habitar hoje a metroacutepole apresenta um senshytido diverso em funccedilatildeo do processo de implosatildeo que impotildee mudanccedilas nos haacutebitos e comportamentos dissolve antigos modos de vida transformando

as relaccedilotildees entre as pessoas bem como reduzindo e redefinindo as formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Os aparelhos de televisatildeo por exemplo substitushyiacuteram as cadeiras nas calccediladas de antigos bairros de Satildeo Paulo assim como os videogames substituem o outro nas brincadeiras infantis colocando cada crianccedila sentada diante de uma tela em ambos os casos o corpo tomashydo inerte reduz-se aos olhos e matildeos As mercadorias substituem as relaccedilotildees diretas entre as pessoas por meio de novos objetos ateacute as relaccedilotildees de troca modificam-se formalmente distanciando os agentes da relaccedilatildeo As antigas vendas e mercearias por exemplo foram substituiacutedas pelos supermercados onde as cadernetas que marcavam uma relaccedilatildeo proacutexima e de confianccedila enshytre vendedor e comprador foram substituiacutedas pelo ticket da maacutequina regisshytradora as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviccedilo no plano do bairro aleacutem de permitirem uma relaccedilatildeo proacutexima e personalizashyda entre comprador e vendedor serviam como locais de possiacuteveis enconshytros Como consequumlecircncia desse processo da normatizaccedilatildeo das relaccedilotildees soshyciais da rarefaccedilatildeo dos lugares de encontros decorrentes das mudanccedilas na morfologia da metroacutepole estabelece-se o estranhamento do indiviacuteduo na metroacutepole Nesse sentido a vida urbana impotildee conflitos e confrontos e aponta para a instauraccedilatildeo do cotidianoS em que a atomizaccedilatildeo ao mesmo tempo em que a superorganizaccedilatildeo da vida impotildee-se sem resistecircncia Campo da autoshyregulaccedilatildeo voluntaacuteria e planificada o cotidiano aparece como construccedilatildeo da sociedade que se organiza segundo uma ordem fortemente burocratizada preenchida por repressotildees e coaccedilotildees imperceptiacuteveis no lugar revelando artimiddot culaccedilotildees espaciais mais amplas (o plano do local se acha cada vez mais invadido pelo plano global)

)( Esses dois planos revelam como em cada dimensatildeo da realidade o espaccedilo adquire configuraccedilatildeo sentido e finalidade diferenciadas O sentido que a metamorfose do espaccedilo da metroacutepole assume baseado na mercanshytiacutelizaccedilatildeo do solo urbano provoca o fenocircmeno de implosatildeoexplosatildeo Nesse processo se delineia a tendecircncia agrave submissatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo ao mundo da mercadoria consequumlentemente o esvaziamento das relaccedilotildees sociais pela reduccedilatildeo do conteuacutedo da praacutetica socioespacial Nesse plano da realidade o lugar da vida transformado adquire a caracteriacutestica de ~m espaccedilo amneacutesico em sua relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmerru- essa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo redefine as relaccedilotildees sociais na metroacutepole caracteshyrizando a nosso ver o momento atual

Entretanto a produccedilatildeo do espaccedilo deve ser entendida sob dupla perspectishyva ao mesmo tempo em que se realiza um movimento que constitui o processhyso de mundializaccedilatildeo da sociedade urbana acentua-se a fragmentaccedilatildeo tanto do espaccedilo quanto do indiviacuteduo Essa produccedilatildeo espacial realiza-se no plano da

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Biblioteca

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vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 3: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

do do dinamismo das necessidades e dos desejos que marcam a reproduccedilatildeo da sociedade Nessa direccedilatildeo a noccedilatildeo de reproduccedilatildeo desvenda como persshypectiva analiacutetica a realidade urbana em constituiccedilatildeo analisa a vida cotidiacuteana como lugar da reproduccedilatildeo em sentido amplo Eacute nesse plano que pode ser detectada uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano como elemento constitutivo da reproduccedilatildeo no mundo moderno da metroacutepole Essa tendecircnshycia vai-se estabelecendo por meio do conflito entre a imposiccedilatildeo de novos modelos culturais e de comportamento agora invadidos pelo mundo corno mercadoria estabelecida no plano do mundial e pelas especificidades da vida no lugar com a persistecircncia de antigas relaccedilotildees As novas condiccedilotildees de existecircncia se realizam desigualmente em Satildeo Paulo pela criaccedilatildeo de uma rotina organizada (no espaccedilo e no tempo) da vida cotidiana que transforma radicalmente a sociabilidade empobrecendo-a agrave medida que as relaccedilotildees entre as pessoas passam a ser substituiacutedas por relaccedilotildees profissionais ou institucionais Por sua vez o tempo se acelera em funccedilatildeo do desenvolvishymento da teacutecnica - que requer a construccedilatildeo de novos espaccedilos bull que vai redefinindo as relaccedilotildees dos habitantes com o lugar e no lugar redefinindo a praacutetica socioespacial

Assim a gestaccedilatildeo da sociedade urbana determina novos padrotildees que se impotildeem de fora para dentro pelo poder da constituiccedilatildeo da sociedade de consumo (assentada em modelos de comportamento e valores que se pretenshydem universais pelo desenvolvimento da miacutedia que ajuda a impor os pashydrotildees e paracircmetros para a vida pela rede de comunicaccedilatildeo que aproxima os homens e lugares) em um espaccedilo-tempo diferenciado e desigual O choque entre o que existe e o que se impotildee como novo estaacute na base das transformashyccedilotildees da metroacutepole onde os lugares vatildeo-se integrando de modo sucessivo e simultacircneo com uma nova loacutegica aprofundando as contradiccedilotildees entre o centro e a periferia

No plano da reproduccedilatildeo de mercadorias o processo envolve o reprodutiacutevel e o repetitivo referindo-se diretamente agrave atividade produtiva (bens materiais e imateriais) que realiza coisas no espaccedilo (criando as condishyccedilotildees para a replizaccedilatildeo das atividades) ao mesmo tempo em que produz o espaccedilo como mercadoria Nesse niacutevel a cidade eacute condiccedilatildeo geral da produshyccedilatildeo o que impotildee determinada configuraccedilatildeo espacial que aparece corno jusshytaposiccedilatildeo de unidades produtivas formando urna cadeia (em funccedilatildeo da artishyculaccedilatildeo e das necessidades do processo produtivo por meio da correlaccedilatildeo entre os capitais individuais e a circulaccedilatildeo geral) que integra os diversos processos produtivos os centros de intercacircmbio os serviccedilos e o mercado aleacutem da matildeo-de-obra Esse desenvolvimento tem potencializado a aglomeshyraccedilatildeo como exigecircncia teacutecnica decorrente ora do gigantismo das unidades

produtivas ora da constituiccedilatildeo de unidades complexas pela formaccedilatildeo do capital financeiro que comanda as operaccedilotildees e pelo processo crescente de internacionalizaccedilatildeo do capital e mundializaccedilatildeo das trocas Parece natildeo haver duacutevida de quecidade se reproduz continuamente como condiccedilatildeo geral do

- processo de valorizaccedilatildeo gerado no capitalismo no sentido de viabilizar os processos de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo circulaccedilatildeo troca e consumo e com isso permitir que o ciclo do capital se desenvolva e possibilite a continuidashyde da produccedilatildeo logo sua reproduccedilatilde9i Haacute dois aspectos interdependentes do crescimento capitalista que estatildeo na base da anaacutelise da aglomeraccedilatildeo espashycial a necessidade de reproduccedilatildeo ampliada do capital e a crescente especiashylizaccedilatildeo decorrente do aprofundamento da divisatildeo social teacutecnica e espacial do trabalho que exige novas condiccedilotildees espaciais para sua realizaccedilatildeo Por

outro lado as mudanccedilas no processo produtivo redimensionam o tamanho e a localizaccedilatildeo das faacutebricas separam espacialmente o processo produtivo do escritoacuterio central e transformam a divisatildeo do trabalho na faacutebrica gerando nova divisatildeo do trabalho pelo processo de desintegraccedilatildeo horizontal

Neste plano haacute uma loacutegica que tende a se impor como ordem estabelecida que define o modo como a cidade vai-se reproduzindo a partir da reproduccedilatildeo realizada pela accedilatildeo dos promotores imobiliaacuterios das estrateacuteshygias do sistema financeiro e da gestatildeo poliacutetica agraves vezes de modo conflitante em outros momentos de forma convergente (como eacute o caso analisado neste trabalho) mas em todos os casos orientando e reorganizando o processo de reproduccedilatildeo espacial por meio da realizaccedilatildeo da divisatildeo socioespacial do trashybalho da hierarquizaccedilatildeo dos lugares e da fragmentaccedilatildeo dos espaccedilos vendishydos e comprados no mercado A accedilatildeo do Estado - por intermeacutedio do poder local- ao intervir no processo de produccedilatildeo da cidade reforccedila a hierarquia de lugares criando novas centralidades e expulsando para a periferia os antigos habitantes criando um espaccedilo de dominaccedilatildeo Com isso impotildee sua presenccedila em todos os lugares agora sob controle e vigilacircncia (seja direta ou indireta) Nesse niacutevel de realidadeo espaccedilo produzido assume a caracteriacutestica de

LfragrnentadiMem decorrecircncia da accedilatildeo dos empreendedores imobiliaacuterios e da generalizaccedilatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo)~omogecircned(pela dominaccedilatildeo imposta pelo Estado ao espaccedilo) elhierarquizad~(pela divisatildeo espacial do trabalho)4

4gt A contradiccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo social do espaccedilo e sua apropriaccedilatildeo privada estaacute na base do entendimento do processo de reprodushyccedilatildeo espacial Isto porque em uma sociedade fundada sobre a troca a aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo ele proacuteprio produzido como mercadoria liga-se cada vez

mais agrave forma de mercadoria servindo agraves necessidades da acumulaccedilatildeo por meio das mudanccedilaslreadaptaccedilatildees de usos e funccedilotildees dos lugares que tamshy

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beacutem se reproduzem sob a lei do reprodutiacutevel a partir de estrateacutegias da reproshyduccedilatildeo em determinado momento da histoacuteria do capitalismo Este se estende cada vez mais ao espaccedilo global criando novos setores de atividade extenshysatildeo das atividades produtivas Cada vez mais o espaccedilo produzido como mercadoria entra no circuito da troca atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reproduccedilatildeo As possibishylidades de ocupar o espaccedilo satildeo sempre crescentes o que explica a emergecircnshycia de uma loacutegica associada a uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo fragmentando e tornanshydo os espaccedilos trocaacuteveis a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido como mercadoria reprodutiacuteveL

Esta pesquisa articula dois planos de anaacutelise que constituem a nosso ver um movimento capaz de explicitar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole hoje De um lado o modo como o desenvolvimento do capitashylismo gera contradiccedilotildees em seu proacuteprio processo de realizaccedilatildeo Nesse caso especiacutefico as transformaccedilotildees no processo da metroacutepole como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo do ciclo do capital revelam a necessidade de uma alianccedila entre o Estado e os setores modernos da economia a fim de contornar a barreira que o processo de urbanizaccedilatildeo elevou ao plano do desenv4gtlvimento de uma aacuterea de expansatildeo do centro empresarial-comercial de Satildeo Paulo voltado agrave consshytruccedilatildeo de edifiacutecios de escritoacuterios e de infra estrutura compatiacutevel

A realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) na metroacutepole Satildeo Paulo acabou por representar a conquista de importante parcela do espaccedilo antes ocupado por residecircncias que ao se libertar das amarras imposta pela propriedade privada pode ser lanccedilado novamente no mercado imobiliaacuterio impelido pelas mudanccedilas da funccedilatildeo da aacuterea decorrentes das desapropriashyccedilotildees da construccedilatildeo do sistema viaacuterio das mudanccedilas no uso do solo e da lei de zoneamento que permitiram a verticalizaccedilatildeo Nesse contexto os promoshy

1C tores imobiliaacuterios se servem do espaccedilo como meio para a realizaccedilatildeo da reshyproduccedilatildeo A mobilizaccedilatildeo do espaccedilo tomou freneacutetico o fluxo de capital produzindo a destruiccedilatildeo dos antigos lugares em funccedilatildeo da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente programado e lucrativo trashyzendo como consequumlecircncia a mudanccedila nos usos e funccedilotildees de aacutereas que passhysam a fazer parte novamente do fluxo do valor de troca Desse modo a organizaccedilatildeo do processo de reproduccedilatildeo do capital em escala cada vez mais ampliada impotildee seus efeitos sobre a estrutura urbana que se apresenta como expressatildeo do estaacutegio de desenvolvimento das forccedilas produtivas em que a concentraccedilatildeo espacial dos recursos corresponde a uma necessidade ditada peia exigecircncia da acumuiaccedilao A criaccedilatildeo desse espaccedilo como prolongamento

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do eixo empresarial e de lazer a partir de novas estrateacutegias interfere na proshyduccedilatildeo de novas centralidades tendo em vista que produzem poacutelos de atrashyccedilatildeo que redimensionam o fluxo das pessoas no espaccedilo por meio de mudanshyccedilas no uso

De outro lado o processo de transformaccedilatildeo espacifll pmmovido pela realizaccedilatildeo da OUFL traz profundas metamorfoses ao plano de realizaccedilatildeo da vida cotidiana dos habitantes das aacutereas atingidas Bairros inteiros foram descaracterizados ou mesmo destruiacutedos pela necessidade de expansatildeo deshysenfreada proveniente da acumulaccedilatildeo de capital que Jeproduz o espaccedilo metropolitano em seu processo de explosatildeoimplosatildeo O processo de aproshypriaccedilatildeo tende a se reduzir a uma praacutetica socioespacial esvaziada que aprisiona o corpo Aqui a cidade aparece como o lugar da reproduccedilatildeo da vida (tendo por base a forma desigual de apropriaccedilatildeo do espaccedilo urbano assentado na propriedade privada) como expressatildeo do movimento cadenciado da reproshyduccedilatildeo do capital trabalho social concreto materializaccedilatildeo de relaccedilotildees socishyais econocircmicas poliacuteticas e juriacutedicas que produzem o espaccedilo como forma de apropriaccedilatildeo modo de pensar e de sentir constituindo-se como praacutetica socioespacial Logo eacute expressatildeo tambeacutem de um modo de vida modo como as necessidades da reproduccedilatildeo invade conflituosamente a esfera da reproshyduccedilatildeo da vida redefinindo-a

As transformaccedilotildees provocadas no espaccedilo paulistano pela operaccedilatildeo urshybana que aparece como extensatildeo da entatildeo avenida Brigadeiro Faria Lima atingindo trecircs bairros da capital natildeo se limitam agrave ampliaccedilatildeo do sistema viaacuterio surgindo no plano da praacutetica socioespacial como alteraccedilatildeo da morfologia urbana pela transformaccedilatildeo dos usos e funccedilotildees das aacutereas afetashydas que provocou o fenocircmeno da implosatildeo dos bairros

O espaccedilo reproduzido na perspectiva do eminentemente reprodutiacutevel eacute o campo em que triunfa o homogecircneo consequumlecircncia da repeticcedilatildeo indefinida de um modelo que vai limitando os usos e reduzindo o modo de vida a atos e gestos sempre repetitivos comportamentos orientados e vigiados Nessa direccedilatildeo o fio condutor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole de Satildeo Paulo aqui analisado baseia-se de um lado nas possibilidades da articulaccedilatildeo enfre apropriaccedilatildeo e uso dos lugares da metroacutepole (ligado aos modos pelos quais o habitante se apropria do espaccedilo da vida) e de outro

lf como o Estado - por meio do poder local- age estrategicamente no espaccedilo objetivando a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais capazes de permitir a contishynuidade do processo de acumulaccedilatildeo no momento atual Assim ganha conshytorno a contradiccedilatildeo enfre as estrateacutegias do Estado (visando a reproduccedilatildeo do

eapital e a produccedilatildeo de um espaccedilo dominado) e os usos do espaccedilo (objetivando a reproduccedilatildeo da vida) que compotildeem o quadro capaz de revelar as contradishy

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ccedilotildees no mundo moderno presentes no processo de reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole a partir da anaacutelise de um de seus fragmentos Natildeo se trata porshytanto de reduzir a reproduccedilatildeo espacial agravequela da intervenccedilatildeo do Estado no sentido de superar a contradiccedilatildeo gerada pelo fenocircmeno da raridade do espashyccedilo e os entraves que a existecircncia da propriedade privada cria para a reprodushyccedilatildeo do capital Se de um lado se aproximam as estrateacutegias do mercado imoshybiliaacuterio da induacutestria da construccedilatildeo civil e do setor financeiro de outro a explicaccedilatildeo ganha sentido articulada com o fato de que o processo dereproshyduccedilatildeo do espaccedilo envolve tambeacutem e de modo articulado outro plano de anaacutelise o do indiviacuteduo do habitante (aqui o habitante aparece como categoshyria de anaacutelise)

No mundo moderno a praacutetica socioespacial revela a contradiccedilatildeo entre a produccedilatildeo de um espaccedilo em funccedilatildeo das necessidades econocircmicas e poliacuteticas y e ao mesmo tempo a reproduccedilatildeo do espaccedilo da vida social No primeiro caso a reproduccedilatildeo do espaccedilo se daacute pela imposiccedilatildeo de uma racionalidade teacutecnica assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulaccedilatildeo que produz o espaccedilo como condiccedilatildeoproduto da produccedilatildeo revelando as conshytradiccedilotildees que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impotildee limites e barreiras a sua reproduccedilatildeo No segundo caso a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole se realiza na relaccedilatildeo contraditoacuteria entre necessidade e desejo uso e troca identidade e natildeo-identidade estranhamento e reconhecimento que permeiam a praacutetica socioespacial Nesse momento o aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho se baseia em uma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da teacutecnica aplicada agrave produccedilatildeo agrave gestatildeo e agrave supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle e da vigilacircncia O entendimento da metroacutepole se revela no desvendamento do modo como se realiza concretamente o processo de reshyproduccedilatildeo da sociedade urbana em sua totalidade como tendecircncia inexoraacutevel E se realiza hoje como processo de reproduccedilatildeo da sociedade a partir da reshyproduccedilatildeo do espaccedilo em que ganha sentido uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

A acumulaccedilatildeo tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que natildeo se realiza apenas produzindo objetosmercashydorias mas adivisatildeo e organizaccedilatildeo do trabalho modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana Desse modo esta se apresenta tendencialmente invadida por um sistema regulador em todos os niacuteveis que formaliza e fixa as relaccedilotildees soshyciais reduzindo-a a formas abstratas Tal fato tende a dissipar a consciecircncia urbana no momento em que o habitar hoje a metroacutepole apresenta um senshytido diverso em funccedilatildeo do processo de implosatildeo que impotildee mudanccedilas nos haacutebitos e comportamentos dissolve antigos modos de vida transformando

as relaccedilotildees entre as pessoas bem como reduzindo e redefinindo as formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Os aparelhos de televisatildeo por exemplo substitushyiacuteram as cadeiras nas calccediladas de antigos bairros de Satildeo Paulo assim como os videogames substituem o outro nas brincadeiras infantis colocando cada crianccedila sentada diante de uma tela em ambos os casos o corpo tomashydo inerte reduz-se aos olhos e matildeos As mercadorias substituem as relaccedilotildees diretas entre as pessoas por meio de novos objetos ateacute as relaccedilotildees de troca modificam-se formalmente distanciando os agentes da relaccedilatildeo As antigas vendas e mercearias por exemplo foram substituiacutedas pelos supermercados onde as cadernetas que marcavam uma relaccedilatildeo proacutexima e de confianccedila enshytre vendedor e comprador foram substituiacutedas pelo ticket da maacutequina regisshytradora as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviccedilo no plano do bairro aleacutem de permitirem uma relaccedilatildeo proacutexima e personalizashyda entre comprador e vendedor serviam como locais de possiacuteveis enconshytros Como consequumlecircncia desse processo da normatizaccedilatildeo das relaccedilotildees soshyciais da rarefaccedilatildeo dos lugares de encontros decorrentes das mudanccedilas na morfologia da metroacutepole estabelece-se o estranhamento do indiviacuteduo na metroacutepole Nesse sentido a vida urbana impotildee conflitos e confrontos e aponta para a instauraccedilatildeo do cotidianoS em que a atomizaccedilatildeo ao mesmo tempo em que a superorganizaccedilatildeo da vida impotildee-se sem resistecircncia Campo da autoshyregulaccedilatildeo voluntaacuteria e planificada o cotidiano aparece como construccedilatildeo da sociedade que se organiza segundo uma ordem fortemente burocratizada preenchida por repressotildees e coaccedilotildees imperceptiacuteveis no lugar revelando artimiddot culaccedilotildees espaciais mais amplas (o plano do local se acha cada vez mais invadido pelo plano global)

)( Esses dois planos revelam como em cada dimensatildeo da realidade o espaccedilo adquire configuraccedilatildeo sentido e finalidade diferenciadas O sentido que a metamorfose do espaccedilo da metroacutepole assume baseado na mercanshytiacutelizaccedilatildeo do solo urbano provoca o fenocircmeno de implosatildeoexplosatildeo Nesse processo se delineia a tendecircncia agrave submissatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo ao mundo da mercadoria consequumlentemente o esvaziamento das relaccedilotildees sociais pela reduccedilatildeo do conteuacutedo da praacutetica socioespacial Nesse plano da realidade o lugar da vida transformado adquire a caracteriacutestica de ~m espaccedilo amneacutesico em sua relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmerru- essa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo redefine as relaccedilotildees sociais na metroacutepole caracteshyrizando a nosso ver o momento atual

Entretanto a produccedilatildeo do espaccedilo deve ser entendida sob dupla perspectishyva ao mesmo tempo em que se realiza um movimento que constitui o processhyso de mundializaccedilatildeo da sociedade urbana acentua-se a fragmentaccedilatildeo tanto do espaccedilo quanto do indiviacuteduo Essa produccedilatildeo espacial realiza-se no plano da

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

32 33I

ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 4: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

beacutem se reproduzem sob a lei do reprodutiacutevel a partir de estrateacutegias da reproshyduccedilatildeo em determinado momento da histoacuteria do capitalismo Este se estende cada vez mais ao espaccedilo global criando novos setores de atividade extenshysatildeo das atividades produtivas Cada vez mais o espaccedilo produzido como mercadoria entra no circuito da troca atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reproduccedilatildeo As possibishylidades de ocupar o espaccedilo satildeo sempre crescentes o que explica a emergecircnshycia de uma loacutegica associada a uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo fragmentando e tornanshydo os espaccedilos trocaacuteveis a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido como mercadoria reprodutiacuteveL

Esta pesquisa articula dois planos de anaacutelise que constituem a nosso ver um movimento capaz de explicitar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole hoje De um lado o modo como o desenvolvimento do capitashylismo gera contradiccedilotildees em seu proacuteprio processo de realizaccedilatildeo Nesse caso especiacutefico as transformaccedilotildees no processo da metroacutepole como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo do ciclo do capital revelam a necessidade de uma alianccedila entre o Estado e os setores modernos da economia a fim de contornar a barreira que o processo de urbanizaccedilatildeo elevou ao plano do desenv4gtlvimento de uma aacuterea de expansatildeo do centro empresarial-comercial de Satildeo Paulo voltado agrave consshytruccedilatildeo de edifiacutecios de escritoacuterios e de infra estrutura compatiacutevel

A realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) na metroacutepole Satildeo Paulo acabou por representar a conquista de importante parcela do espaccedilo antes ocupado por residecircncias que ao se libertar das amarras imposta pela propriedade privada pode ser lanccedilado novamente no mercado imobiliaacuterio impelido pelas mudanccedilas da funccedilatildeo da aacuterea decorrentes das desapropriashyccedilotildees da construccedilatildeo do sistema viaacuterio das mudanccedilas no uso do solo e da lei de zoneamento que permitiram a verticalizaccedilatildeo Nesse contexto os promoshy

1C tores imobiliaacuterios se servem do espaccedilo como meio para a realizaccedilatildeo da reshyproduccedilatildeo A mobilizaccedilatildeo do espaccedilo tomou freneacutetico o fluxo de capital produzindo a destruiccedilatildeo dos antigos lugares em funccedilatildeo da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente programado e lucrativo trashyzendo como consequumlecircncia a mudanccedila nos usos e funccedilotildees de aacutereas que passhysam a fazer parte novamente do fluxo do valor de troca Desse modo a organizaccedilatildeo do processo de reproduccedilatildeo do capital em escala cada vez mais ampliada impotildee seus efeitos sobre a estrutura urbana que se apresenta como expressatildeo do estaacutegio de desenvolvimento das forccedilas produtivas em que a concentraccedilatildeo espacial dos recursos corresponde a uma necessidade ditada peia exigecircncia da acumuiaccedilao A criaccedilatildeo desse espaccedilo como prolongamento

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do eixo empresarial e de lazer a partir de novas estrateacutegias interfere na proshyduccedilatildeo de novas centralidades tendo em vista que produzem poacutelos de atrashyccedilatildeo que redimensionam o fluxo das pessoas no espaccedilo por meio de mudanshyccedilas no uso

De outro lado o processo de transformaccedilatildeo espacifll pmmovido pela realizaccedilatildeo da OUFL traz profundas metamorfoses ao plano de realizaccedilatildeo da vida cotidiana dos habitantes das aacutereas atingidas Bairros inteiros foram descaracterizados ou mesmo destruiacutedos pela necessidade de expansatildeo deshysenfreada proveniente da acumulaccedilatildeo de capital que Jeproduz o espaccedilo metropolitano em seu processo de explosatildeoimplosatildeo O processo de aproshypriaccedilatildeo tende a se reduzir a uma praacutetica socioespacial esvaziada que aprisiona o corpo Aqui a cidade aparece como o lugar da reproduccedilatildeo da vida (tendo por base a forma desigual de apropriaccedilatildeo do espaccedilo urbano assentado na propriedade privada) como expressatildeo do movimento cadenciado da reproshyduccedilatildeo do capital trabalho social concreto materializaccedilatildeo de relaccedilotildees socishyais econocircmicas poliacuteticas e juriacutedicas que produzem o espaccedilo como forma de apropriaccedilatildeo modo de pensar e de sentir constituindo-se como praacutetica socioespacial Logo eacute expressatildeo tambeacutem de um modo de vida modo como as necessidades da reproduccedilatildeo invade conflituosamente a esfera da reproshyduccedilatildeo da vida redefinindo-a

As transformaccedilotildees provocadas no espaccedilo paulistano pela operaccedilatildeo urshybana que aparece como extensatildeo da entatildeo avenida Brigadeiro Faria Lima atingindo trecircs bairros da capital natildeo se limitam agrave ampliaccedilatildeo do sistema viaacuterio surgindo no plano da praacutetica socioespacial como alteraccedilatildeo da morfologia urbana pela transformaccedilatildeo dos usos e funccedilotildees das aacutereas afetashydas que provocou o fenocircmeno da implosatildeo dos bairros

O espaccedilo reproduzido na perspectiva do eminentemente reprodutiacutevel eacute o campo em que triunfa o homogecircneo consequumlecircncia da repeticcedilatildeo indefinida de um modelo que vai limitando os usos e reduzindo o modo de vida a atos e gestos sempre repetitivos comportamentos orientados e vigiados Nessa direccedilatildeo o fio condutor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole de Satildeo Paulo aqui analisado baseia-se de um lado nas possibilidades da articulaccedilatildeo enfre apropriaccedilatildeo e uso dos lugares da metroacutepole (ligado aos modos pelos quais o habitante se apropria do espaccedilo da vida) e de outro

lf como o Estado - por meio do poder local- age estrategicamente no espaccedilo objetivando a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais capazes de permitir a contishynuidade do processo de acumulaccedilatildeo no momento atual Assim ganha conshytorno a contradiccedilatildeo enfre as estrateacutegias do Estado (visando a reproduccedilatildeo do

eapital e a produccedilatildeo de um espaccedilo dominado) e os usos do espaccedilo (objetivando a reproduccedilatildeo da vida) que compotildeem o quadro capaz de revelar as contradishy

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ccedilotildees no mundo moderno presentes no processo de reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole a partir da anaacutelise de um de seus fragmentos Natildeo se trata porshytanto de reduzir a reproduccedilatildeo espacial agravequela da intervenccedilatildeo do Estado no sentido de superar a contradiccedilatildeo gerada pelo fenocircmeno da raridade do espashyccedilo e os entraves que a existecircncia da propriedade privada cria para a reprodushyccedilatildeo do capital Se de um lado se aproximam as estrateacutegias do mercado imoshybiliaacuterio da induacutestria da construccedilatildeo civil e do setor financeiro de outro a explicaccedilatildeo ganha sentido articulada com o fato de que o processo dereproshyduccedilatildeo do espaccedilo envolve tambeacutem e de modo articulado outro plano de anaacutelise o do indiviacuteduo do habitante (aqui o habitante aparece como categoshyria de anaacutelise)

No mundo moderno a praacutetica socioespacial revela a contradiccedilatildeo entre a produccedilatildeo de um espaccedilo em funccedilatildeo das necessidades econocircmicas e poliacuteticas y e ao mesmo tempo a reproduccedilatildeo do espaccedilo da vida social No primeiro caso a reproduccedilatildeo do espaccedilo se daacute pela imposiccedilatildeo de uma racionalidade teacutecnica assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulaccedilatildeo que produz o espaccedilo como condiccedilatildeoproduto da produccedilatildeo revelando as conshytradiccedilotildees que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impotildee limites e barreiras a sua reproduccedilatildeo No segundo caso a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole se realiza na relaccedilatildeo contraditoacuteria entre necessidade e desejo uso e troca identidade e natildeo-identidade estranhamento e reconhecimento que permeiam a praacutetica socioespacial Nesse momento o aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho se baseia em uma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da teacutecnica aplicada agrave produccedilatildeo agrave gestatildeo e agrave supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle e da vigilacircncia O entendimento da metroacutepole se revela no desvendamento do modo como se realiza concretamente o processo de reshyproduccedilatildeo da sociedade urbana em sua totalidade como tendecircncia inexoraacutevel E se realiza hoje como processo de reproduccedilatildeo da sociedade a partir da reshyproduccedilatildeo do espaccedilo em que ganha sentido uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

A acumulaccedilatildeo tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que natildeo se realiza apenas produzindo objetosmercashydorias mas adivisatildeo e organizaccedilatildeo do trabalho modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana Desse modo esta se apresenta tendencialmente invadida por um sistema regulador em todos os niacuteveis que formaliza e fixa as relaccedilotildees soshyciais reduzindo-a a formas abstratas Tal fato tende a dissipar a consciecircncia urbana no momento em que o habitar hoje a metroacutepole apresenta um senshytido diverso em funccedilatildeo do processo de implosatildeo que impotildee mudanccedilas nos haacutebitos e comportamentos dissolve antigos modos de vida transformando

as relaccedilotildees entre as pessoas bem como reduzindo e redefinindo as formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Os aparelhos de televisatildeo por exemplo substitushyiacuteram as cadeiras nas calccediladas de antigos bairros de Satildeo Paulo assim como os videogames substituem o outro nas brincadeiras infantis colocando cada crianccedila sentada diante de uma tela em ambos os casos o corpo tomashydo inerte reduz-se aos olhos e matildeos As mercadorias substituem as relaccedilotildees diretas entre as pessoas por meio de novos objetos ateacute as relaccedilotildees de troca modificam-se formalmente distanciando os agentes da relaccedilatildeo As antigas vendas e mercearias por exemplo foram substituiacutedas pelos supermercados onde as cadernetas que marcavam uma relaccedilatildeo proacutexima e de confianccedila enshytre vendedor e comprador foram substituiacutedas pelo ticket da maacutequina regisshytradora as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviccedilo no plano do bairro aleacutem de permitirem uma relaccedilatildeo proacutexima e personalizashyda entre comprador e vendedor serviam como locais de possiacuteveis enconshytros Como consequumlecircncia desse processo da normatizaccedilatildeo das relaccedilotildees soshyciais da rarefaccedilatildeo dos lugares de encontros decorrentes das mudanccedilas na morfologia da metroacutepole estabelece-se o estranhamento do indiviacuteduo na metroacutepole Nesse sentido a vida urbana impotildee conflitos e confrontos e aponta para a instauraccedilatildeo do cotidianoS em que a atomizaccedilatildeo ao mesmo tempo em que a superorganizaccedilatildeo da vida impotildee-se sem resistecircncia Campo da autoshyregulaccedilatildeo voluntaacuteria e planificada o cotidiano aparece como construccedilatildeo da sociedade que se organiza segundo uma ordem fortemente burocratizada preenchida por repressotildees e coaccedilotildees imperceptiacuteveis no lugar revelando artimiddot culaccedilotildees espaciais mais amplas (o plano do local se acha cada vez mais invadido pelo plano global)

)( Esses dois planos revelam como em cada dimensatildeo da realidade o espaccedilo adquire configuraccedilatildeo sentido e finalidade diferenciadas O sentido que a metamorfose do espaccedilo da metroacutepole assume baseado na mercanshytiacutelizaccedilatildeo do solo urbano provoca o fenocircmeno de implosatildeoexplosatildeo Nesse processo se delineia a tendecircncia agrave submissatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo ao mundo da mercadoria consequumlentemente o esvaziamento das relaccedilotildees sociais pela reduccedilatildeo do conteuacutedo da praacutetica socioespacial Nesse plano da realidade o lugar da vida transformado adquire a caracteriacutestica de ~m espaccedilo amneacutesico em sua relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmerru- essa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo redefine as relaccedilotildees sociais na metroacutepole caracteshyrizando a nosso ver o momento atual

Entretanto a produccedilatildeo do espaccedilo deve ser entendida sob dupla perspectishyva ao mesmo tempo em que se realiza um movimento que constitui o processhyso de mundializaccedilatildeo da sociedade urbana acentua-se a fragmentaccedilatildeo tanto do espaccedilo quanto do indiviacuteduo Essa produccedilatildeo espacial realiza-se no plano da

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

332 333

fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 5: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

ccedilotildees no mundo moderno presentes no processo de reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole a partir da anaacutelise de um de seus fragmentos Natildeo se trata porshytanto de reduzir a reproduccedilatildeo espacial agravequela da intervenccedilatildeo do Estado no sentido de superar a contradiccedilatildeo gerada pelo fenocircmeno da raridade do espashyccedilo e os entraves que a existecircncia da propriedade privada cria para a reprodushyccedilatildeo do capital Se de um lado se aproximam as estrateacutegias do mercado imoshybiliaacuterio da induacutestria da construccedilatildeo civil e do setor financeiro de outro a explicaccedilatildeo ganha sentido articulada com o fato de que o processo dereproshyduccedilatildeo do espaccedilo envolve tambeacutem e de modo articulado outro plano de anaacutelise o do indiviacuteduo do habitante (aqui o habitante aparece como categoshyria de anaacutelise)

No mundo moderno a praacutetica socioespacial revela a contradiccedilatildeo entre a produccedilatildeo de um espaccedilo em funccedilatildeo das necessidades econocircmicas e poliacuteticas y e ao mesmo tempo a reproduccedilatildeo do espaccedilo da vida social No primeiro caso a reproduccedilatildeo do espaccedilo se daacute pela imposiccedilatildeo de uma racionalidade teacutecnica assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulaccedilatildeo que produz o espaccedilo como condiccedilatildeoproduto da produccedilatildeo revelando as conshytradiccedilotildees que o capitalismo suscita em seu desenvolvimento o que impotildee limites e barreiras a sua reproduccedilatildeo No segundo caso a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole se realiza na relaccedilatildeo contraditoacuteria entre necessidade e desejo uso e troca identidade e natildeo-identidade estranhamento e reconhecimento que permeiam a praacutetica socioespacial Nesse momento o aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho se baseia em uma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da teacutecnica aplicada agrave produccedilatildeo agrave gestatildeo e agrave supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle e da vigilacircncia O entendimento da metroacutepole se revela no desvendamento do modo como se realiza concretamente o processo de reshyproduccedilatildeo da sociedade urbana em sua totalidade como tendecircncia inexoraacutevel E se realiza hoje como processo de reproduccedilatildeo da sociedade a partir da reshyproduccedilatildeo do espaccedilo em que ganha sentido uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

A acumulaccedilatildeo tende a produzir uma racionalidade homogeneizante inerente ao processo que natildeo se realiza apenas produzindo objetosmercashydorias mas adivisatildeo e organizaccedilatildeo do trabalho modelos de comportamento e valores que induzem ao consumo revelando-se como norteadores da vida cotidiana Desse modo esta se apresenta tendencialmente invadida por um sistema regulador em todos os niacuteveis que formaliza e fixa as relaccedilotildees soshyciais reduzindo-a a formas abstratas Tal fato tende a dissipar a consciecircncia urbana no momento em que o habitar hoje a metroacutepole apresenta um senshytido diverso em funccedilatildeo do processo de implosatildeo que impotildee mudanccedilas nos haacutebitos e comportamentos dissolve antigos modos de vida transformando

as relaccedilotildees entre as pessoas bem como reduzindo e redefinindo as formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Os aparelhos de televisatildeo por exemplo substitushyiacuteram as cadeiras nas calccediladas de antigos bairros de Satildeo Paulo assim como os videogames substituem o outro nas brincadeiras infantis colocando cada crianccedila sentada diante de uma tela em ambos os casos o corpo tomashydo inerte reduz-se aos olhos e matildeos As mercadorias substituem as relaccedilotildees diretas entre as pessoas por meio de novos objetos ateacute as relaccedilotildees de troca modificam-se formalmente distanciando os agentes da relaccedilatildeo As antigas vendas e mercearias por exemplo foram substituiacutedas pelos supermercados onde as cadernetas que marcavam uma relaccedilatildeo proacutexima e de confianccedila enshytre vendedor e comprador foram substituiacutedas pelo ticket da maacutequina regisshytradora as lojas de armarinho desapareceram junto com o pequeno serviccedilo no plano do bairro aleacutem de permitirem uma relaccedilatildeo proacutexima e personalizashyda entre comprador e vendedor serviam como locais de possiacuteveis enconshytros Como consequumlecircncia desse processo da normatizaccedilatildeo das relaccedilotildees soshyciais da rarefaccedilatildeo dos lugares de encontros decorrentes das mudanccedilas na morfologia da metroacutepole estabelece-se o estranhamento do indiviacuteduo na metroacutepole Nesse sentido a vida urbana impotildee conflitos e confrontos e aponta para a instauraccedilatildeo do cotidianoS em que a atomizaccedilatildeo ao mesmo tempo em que a superorganizaccedilatildeo da vida impotildee-se sem resistecircncia Campo da autoshyregulaccedilatildeo voluntaacuteria e planificada o cotidiano aparece como construccedilatildeo da sociedade que se organiza segundo uma ordem fortemente burocratizada preenchida por repressotildees e coaccedilotildees imperceptiacuteveis no lugar revelando artimiddot culaccedilotildees espaciais mais amplas (o plano do local se acha cada vez mais invadido pelo plano global)

)( Esses dois planos revelam como em cada dimensatildeo da realidade o espaccedilo adquire configuraccedilatildeo sentido e finalidade diferenciadas O sentido que a metamorfose do espaccedilo da metroacutepole assume baseado na mercanshytiacutelizaccedilatildeo do solo urbano provoca o fenocircmeno de implosatildeoexplosatildeo Nesse processo se delineia a tendecircncia agrave submissatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo ao mundo da mercadoria consequumlentemente o esvaziamento das relaccedilotildees sociais pela reduccedilatildeo do conteuacutedo da praacutetica socioespacial Nesse plano da realidade o lugar da vida transformado adquire a caracteriacutestica de ~m espaccedilo amneacutesico em sua relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmerru- essa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo redefine as relaccedilotildees sociais na metroacutepole caracteshyrizando a nosso ver o momento atual

Entretanto a produccedilatildeo do espaccedilo deve ser entendida sob dupla perspectishyva ao mesmo tempo em que se realiza um movimento que constitui o processhyso de mundializaccedilatildeo da sociedade urbana acentua-se a fragmentaccedilatildeo tanto do espaccedilo quanto do indiviacuteduo Essa produccedilatildeo espacial realiza-se no plano da

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Biblioteca

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vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 6: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

vida cotidiana e aparece como fonna de ocupaccedilatildeo e uso de determinado lugar em um momento especiacutefico Como apontou Milton Santos a globalizaccedilatildeo eacute uma metaacutefora que ganha existecircncia no plano do lugar Eacute o lugar que oferece ao movimento do mundo a possibilidade de sua realizaccedilatildeo mais eficaz Para se tomar espaccedilo o Mundo depende de virtualidades do lllg2Z~

Mas a sociedade urbana tende a generalizar-se pelo processo de mundializaccedilatildeo o que significa que esta daacute novo sentido agrave produccedilatildeo ato sensu significando tambeacutem que um novo espaccedilo tende a se criar na escala mundial O aprofundamento da divisatildeo social e espacial do trabalho busca uma nova racionalidade uma loacutegica subjacente pelo emprego do saber e da teacutecnica da supremacia de um poder poliacutetico que tende a homogeneizar o espaccedilo por meio do controle da vigilacircncia derrubando fronteiras adminisshytrativas colocando em cheque os limites definidos entre espaccedilos subjuganshydo formas culturais transformando valores e comportamentos na medida em que todas as pessoas entram ou tecircm possibilidade de entrar em contato com o mundo todo jaacute que todos os pontos do planeta estatildeo virtualmente ligados Esse processo traz profundas mudanccedilas criando uma identidade que escapa ao local (e mesmo ao nacional) apontando para o mundial como horizonte e tendecircncia pois o processo natildeo diz mais respeito a um lugar ou a uma naccedilatildeo somente- estas tendem a explodir em realidades supranacionais apoiadas nos grandes desenvolvimentos cientiacuteficos basicamente o desenshyvolvimento e a transmissatildeo da informaccedilatildeo e no esmagador crescimento da miacutedia com seu papel na imposiccedilatildeo da constituiccedilatildeo da sociedade de consushymo Assim o estaacutegio atual da urbanizaccedilatildeo coloca problemas novos produshyzidos em funccedilatildeo das exigecircncias em mateacuteria de comunicaccedilatildeo de deslocashymentos os mais variados e complexos criando ou acentuando uma hierarshyquia desigual de lugares A uniatildeo desses pontos daacute-se por meio de noacutes de articulaccedilatildeo que redefinem as funccedilotildees da metroacutepole sede da gestatildeo e da organizaccedilatildeo das estrateacutegias que articulam espaccedilos em uma realidade comshyplexa e contraditoacuteria

Os problemas postos pela urbanizaccedilatildeo ocorrem no acircmbito do processo de reproduccedilatildeo geral da sociedade Por isso mesmo a mundializaccedilatildeo tambeacutem produz modelos eacuteticos esteacuteticos gostos valores moda constituindo-secomo elemento orientador fundamental agrave reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Se de um lado esse processo ocorre em lugares determinados do espaccedilo manifesshyta-se concretamente no plano da vida cotidiana A reproduccedilatildeo tem o sentishydo da constante produccedilatildeo das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir de praacuteshyticas espaciais como acumulaccedilatildeo preservaccedilatildeo renovaccedilatildeo A reproduccedilatildeo do

bull espaccedilo urbano eacute um fenocircmeno contiacutenuo em movimento o que significa que a cidade vai-se transformando agrave medida que a sociedade se metamorfoseia

I As mudanccedilas dependem da articulaccedilatildeo daquilo que Lefebvre chama de orshydem proacutexima e ordem distante De um lado transformaccedilotildees que se estabeleshycem no plano do vivido o lugar como momento da reproduccedilatildeo da vida e de outro a mundialidade que se constitui determinando padrotildees concretizanshydo-se na ordem proacutexima Eacute no plano do processo de reproduccedilatildeo que a anaacuteshylise da realidade urbana envolve o cotidiano que aparece como produto hisshytoacuterico Assim a noccedilatildeo de cotidiano liga-se agrave de reproduccedilatildeo (a um momento histoacuterico desse processo) que compreende uma multiplicidade de aspectos sentidos valores Daiacute analisarmos as relaccedilotildees entre a reproduccedilatildeo do espaccedilo e a reproduccedilatildeo da vida na metroacutepole com base na vida cotidiana -lugar onde se constata a tendecircncia desigual e contaditoacuteria da instauraccedilatildeo do cotidiano

L Nesse contexto o desenvolvimento do processo de reproduccedilatildeo da socieshydade produz um novo espaccedilo e novas formas de relaccedilatildeo na sociedade e entre as pessoas a partir das trocas em todos os sentidos e da modificaccedilatildeo dos modos de apropriaccedilatildeo e de uso do espaccedilo que normatizado redelimita accedilotildees e atos redefinindo as relaccedilotildees das pessoas entre si e com o lugar A anaacutelise do urbano engloba portanto um universo complexo de relaccedilotildees em constishytuiccedilatildeo das quais natildeo se exclui a ideacuteia de projeto Para Lefebvre 7 esse projeshyto deve ser capaz de pensar a cidade como lugar onde grupos podem reenshycontrar-se onde haja conflitos mas tambeacutem alianccedilas onde eles concorram a uma obra coletiva onde o direito agrave cidade se coloque como participaccedilatildeo de todos no controle e na gestatildeo da cidade e na plena participaccedilatildeo social onde a diferenccedila se realize na obra como atividade criadora

Para efeito de anaacutelise separamos os dois planos acima apontados8bull

o ESPACcedilO COMO CONDICcedilAtildeOIPRODUTO DA ACUMULACcedilAtildeO

A reproduccedilatildeo do ciclo do capital exige em cada momento histoacuterico determinadas condiccedilotildees especiais A dinacircmica da economia metropolitana antes baseada no setor produtivo industrial vem-se apoiando agora no amplo crescimento do setor terciaacuterio moderno - serviccedilos comeacutercio setor financeishyro - como condiccedilatildeo de desenvolvimento em uma economia globalizada Tal transformaccedilatildeo requer a produccedilatildeo de outro espaccedilo condiccedilatildeo da acumulashyccedilatildeo que se realiza a partir da expansatildeo da aacuterea central da metroacutepole (ateacute entatildeo lugar preciacutepuo agrave realizaccedilatildeo dessa atividade) em direccedilatildeo agrave regiatildeo Sudoesshyte da metroacutepole As aacutereas tradicionais se encontram densamente ocupadas o sistema viaacuterio congestionado aleacutem disso os novos padrotildees de competishytividade da economia apoiada em um profundo desenvolvimento teacutecnico impotildee outros paracircmetros para Q desenvolvimento dessa atividade A superashyccedilatildeo dessa situaccedilatildeo requer amiddot construccedilatildeo de um novo espaccedilo como aacuterea de

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expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

28

prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 7: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

expansatildeo porque a centraliacutedade eacute fundamental nesse tipo de atividade natildeo podendo instalar-se em qualquer lugar do espaccedilo metropolitano Todavia na metr6pole capitalista densamente edificada a expansatildeo dessa aacuterea natildeo se faraacute sem problemas

Em primeiro lugar porque a ocupaccedilatildeo do espaccedilo se realizou sob a eacutegide da propriedade privada do solo urbano onde o espaccedilo fragmentado eacute vendishydo em pedaccedilos tomando-se intercambiaacutevel a partir de operaccedilotildees que se realizam no mercado Tendencialmente produzido como mercadoria o esshypaccedilo entra no circuito da troca generalizando-se em sua dimensatildeo de mershycadoria Por outro lado o espaccedilo se reproduz como condiccedilatildeo da produccedilatildeo atraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo

y a viabilizar a reproduccedilatildeo Nesse contexto o espaccedilo eacute banalizado explorado e as possibilidades de ocupaacute-lo se redefine constantemente em funccedilatildeo da contradiccedilatildeo crescente entre a abundacircncia e a escassez o que explica a emershygecircncia de uma nova loacutegica associada e uma nova forma de dominaccedilatildeo do espaccedilo que se reproduz ordenando e direcionando a ocupaccedilatildeo com base na interferecircncia do Estado Desse modo o espaccedilo eacute produzido e reproduzido de um lado como espaccedilo de dominaccedilatildeo e de outro como mercadoria reprodutiacutevel

No momento atual do processo histoacuterico a reproduccedilatildeo espacial com a generalizaccedilatildeo da urbanizaccedilatildeo produz uma nova contradiccedilatildeo aquela que se refere agrave diferenccedila entre a antiga possibilidade de ocupar aacutereas como lugares de expansatildeo da mancha urbana (com o parcelamento de antigas chaacutecaras ou fazendas caso de muitos bairros na metroacutepole) e sua presente impossibilishydade diante da escassez Nesse processo o espaccedilo na condiccedilatildeo de valor entra no circuito da troca geral da sociedade (produccedilatildeoreparticcedilatildeodistribuishyccedilatildeo) fazendo parte da reproduccedilatildeo da riqueza e constituindo raridade Viveshymos hoje um momento do processo de reproduccedilatildeo em que a propriedade privada do solo urbano - condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da cidade sob a eacutegide do capitalismo - passa a ser um limite agrave expansatildeo econocircmica capitalista Isto eacute diante das necessidades impostas pela reproduccedilatildeo do capital o espaccedilo produshyzido socialmente - e tomadomercadoria no processo hist6rico - eacute apropriado privativamente criando limites a sua proacutepria reproduccedilatildeo (em funccedilatildeo da proshyduccedilatildeo de sua proacutepria escassez) Nesse momento o espaccedilo produto da reproshyduccedilatildeo da sociedade entra em contradiccedilatildeo com as necessidades do desenvolvi-shymento do proacuteprio capital Isso significa que a raridade eacute produto do proacuteprio processo de produccedilatildeo do espaccedilo ao mesmo tempo que sua limitaccedilatildeo

Na pesquisa em tela - o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em Satildeo Paulo - a existecircncia da propriedade privada do solo urbano eacute um dQS

el~mentos geradores da raridade do espaccedilo em lugares especiacuteficos da metroacuteshy

pole paulista que entram em choque com as necessidades da reproduccedilatildeo do espaccedilo para a realizaccedilatildeo do capital - mas natildeo eacute uma condiccedilatildeo suficiente a raridade natildeo ocorre em qualquer lugar da metroacutepole mas em determinados

~ pontos associada agrave centralidade no contexto determinado do processo de urbanizaccedilatildeo Tal situaccedilatildeo coloca eoPf horizonte as necessidades de superar as contradiccedilotildees emergentes no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Em prishymeiro lugar a escassez do espaccedilo nas proximidades do centro requer a libeshyraccedilatildeo de amplas parcelas do espaccedilo ocupadas com vistas agrave criaccedilatildeo de uma aacuterea livre para novos usos necessaacuteria agrave expansatildeo da atividade econocircmica bem como a supressatildeo dos direitos conferidos aos proprietaacuterios urbanos pela existecircncia do estatuto da propriedade privada Nesse contexto o desenshyvolvimento do ciclo do capital necessita de uma alianccedila com o poder poliacutetishyco na medida em que s6 este pode atuar em grandes parcelas do espaccedilo produzir infra-estrutura e colocar em suspensatildeo o estatuto da propriedade privada do solo urbano liberando as aacutereas ocupadas para novas atividades o que significa a criaccedilatildeo de novas estrateacutegias na alianccedila entre asvaacuterias formas de capital e o Estado

Essa necessidade - que aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da reproshyduccedilatildeo - eacute produto do fato de que determinada atividade econocircmica s6 pode realizar-se em determinados lugares do espaccedilo da metroacutepole enquanto o uso para moradia eacute mais flexiacutevel Eacute exatamente nesses lugares que o espaccedilo se toma raro entrando em contradiccedilatildeo com as necessidades de reproduccedilatildeo Eacute assim que as particularidades dos lugares se reafirmam constantemente potencializadas pela produccedilatildeo porque o uso s6 se pode realizar em determishynado lugar referindo-se portanto agrave escala local (apesar de articulados cada vez mais com o global)

Nesse processo a necessidade de expansatildeo das aacutereas construiacutedas voltashydas ao setor de serviccedilos na metroacutepole em direccedilatildeo ao sudoeste tropeccedila na existecircncia de dois bairros residenciais consolidados que se elevam como barreira (Itaim e Vila Olfmpia) que nesse trecho apresentavam ocupaccedilatildeo residencial horizontal com casas construiacutedas em terrenos pequenos muitas delas em vilas (fragmentadas a partir de uma chaacutecara nos anos 20 do seacuteculo XX) ocupadas por antigos moradores Havia uma certa estabilidade no mercado imobiliaacuterio o que significa que a propriedade mudava pouco de matildeos pois a dinacircmica do mercado estava na dependecircncia dos pequenos proprietaacuterios

A consolidaccedilatildeo da mancha urbana por meio da generalizaccedilatildeo da mercantilizaccedilatildeo do solo urbano associada agrave necessidade de reestruturaccedilatildeo da malha viaacuteria da regiatildeo impotildee como uacutenica soluccedilatildeo a interferecircncia do Estado para redefinir os limites da propriedade do solo urbano - natildeo o anushy

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lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

24 25

do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 8: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

lando mas fazendo a propriedade trocar de matildeos e possibilitando com inshycentivos o remembramento dos pequenos terrenos permitindo com isso as mudanccedilas de usos e de funccedilatildeo necessaacuterias agrave continuidade da reproduccedilatildeo do capital

O processo aparece sob a forma de uma operaccedilatildeo urbana que aparece como estrateacutegia de intervenccedilatildeo espacial sinalizando as novas relaccedilotildees do processo de reproduccedilatildeo espacial em que uma parcela significativa de solo urbano ocupado eacute liberada para outro uso com a destruiccedilatildeo de im6veis e o deslocamento (eou expulsatildeo) dos habitantes O processo de reproduccedilatildeo esshypacial envolve segmentos diferenciados da sociedade com interesses e deshysejos conflituosos Todavia o processo de reproduccedilatildeo espacial revela que os interesses divergentes podem entrecruzar-se sob a unidade do Estado que tem inquestionaacutevel poder de comando Eacute assim que empreendedores imoshybiliaacuterios e Estado na origem segmentos de interesses e accedilotildees espaciais dishyvergentes unem-se na realizaccedilatildeo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima (OUFL) No caso em questatildeo o Estado se utiliza de seu poder de planejador para em nome do interesse puacuteblico desapropriar aacutereas imensas da metroacutepole (fashyzendo a terra mudar de matildeos) instalando na sequumlecircncia a infra-estrutura necessaacuteria ao desenvolvimento da nova atividade e com isso mudando o uso a funccedilatildeo e o sentido dos lugares Esse processo natildeo s6 permite o estabeshylecimento de uma nova atividade no lugar - o que gera a transformaccedilatildeo do uso residencial (substituiacuteda pela de serviccedilos) - mas sobretudo desencadeia um processo de valorizaccedilatildeo do solo urbano por meio dos investimentos em infra-estrutura e do aumento do potencial construtivo da aacuterea (ateacute entatildeo inshyterditada pela lei de zoneamento vigente na cidade) A essa situaccedilatildeo ainda se deve acrescentar o fato de que as mudanccedilas na aacuterea obrigam antigos proprishyetaacuterios a vender suas pequenas propriedades criando um aquecimento no mercado imobiliaacuterio Com isso novas aacutereas readquirem o valor de troca redefmidos por sua trocabilidade Nesse contexto as parcelas do espaccedilo sob a fonna de mercadoria encadeiam-se ao longo dos circuitos da troca a partir de Uma estrateacutegia e de uma loacutegica que transcendem o livre jogo do mercado A possibilidade de remembramento de lotes antes ocupados por pequenas casas sinaliza os processos atuais que transformam a metroacutepole em meio de realizaccedilatildeo da acumulaccedilatildeo por meio das transformaccedilotildees na propriedade prishyvada do solo urbano Assim com estrateacutegias bem definidas o solo urbano muda de proprietaacuterios o que garante a reproduccedilatildeo espacial segundo as neshycessidades da reproduccedilatildeo do capital

Com esse processo se constitui em Satildeo Paulo um novo eixo empresashyrial que contorna a contradiccedilatildeo provocada pelo fenocircmeno da raridade do espaccedilo peja interferecircncia do Estado no livre jogo do mercado imobiliaacuterio

por meio de mecanismos de gestatildeo capazes de criar novos espaccedilos A extensatildeo do processo de mercantilizaccedilatildeo do espaccedilo produz uma mobilizaccedilatildeo freneacutetica do capital no espaccedilo desencadeada pelos promotores imobiliaacuterios

que leva agrave deterioraccedilatildeo ou mesmo agrave destruiccedilatildeo de antigos lugares (que passhysam a fazer parte do fluxo de realizaccedilatildeo do valor de troca) como decorrecircnshycia da realizaccedilatildeo de interesses imediatos em nome de um presente prograshymado e lucrativo Produz-se com isso a especializaccedilatildeo dos lugares determishynando e redirecionando fluxos produzindo centralidades novas Desse modo o espaccedilo dominado controlado impotildee novos modos de apropriaccedilatildeo pelo estabelecimento de novos usos que excluemincluem os habitantes Partishymos assim da tese de que a operaccedilatildeo urbana foi o mecanismo encontrado para contornar o problema da raridade do espaccedilo e superar os limites imposshytos pela propriedade privada em determinado momento do processo de reshyproduccedilatildeo espacial da metr6pole e que ao fazecirc-lo redefine os modos de apropriaccedilatildeo passiacuteveis de serem lidos na vida cotidiana Esta com a intershyvenccedilatildeo do Estado ganha novas matizes uma vez que as possibilidades de uso do espaccedilo - que repousa na propriedade privada do solo - se alimentam em uma metroacutepole superedificada de transformaccedilotildees do plano diretor sob a tutela do Estado Por sua vez esse processo aprofunda outra contradiccedilatildeo do

y espaccedilo qual seja a passagem do espaccedilo produzido como valor de uso para um espaccedilo que se reproduz visando a realizaccedilatildeo do valor de troca

Em Satildeo Paulo o Executivo vem recorrendo agraves operaccedilotildees urbanas eou operaccedilotildees interligadas (atualmente suspensas) para permitir transformaccedilotildees no uso do solo da metroacutepole em lugares proibidos pelo plano diretor (que disciplina o uso do solo urbano) o que causa mudanccedilas pontuais mas proshyfundas no uso do espaccedilo metropolitano Nesse contexto torna-se necessaacuteshyrio contornar natildeo apenas a existecircncia da propriedade privada mas tambeacutem as limitaccedilotildees existentes no plano diretor da cidade

Nessa perspectiva a operaccedilatildeo urbana que aparece como instrumento de gestatildeo revela uma estrateacutegia pela qual o Estado se estende agrave sociedade pelo niacutevel da reproduccedilatildeo do espaccedilo revelando o fato de que a compra e venda do solo urbano natildeo eacute deixada somente ao livre jogo do mercado imoshybiliaacuterio o que significa dizer que a reproduccedilatildeo espacial na metroacutepole refleshyte um pensamento institucionalizado jaacute que o espaccedilo aparece como instrushymento poliacutetico intencionalmente manipulado como estrateacutegico nas matildeos do poder Nesse sentido a intervenccedilatildeo do Estado eacute imperativa agrave reproduccedilatildeo ampliada do capital eacute onde a operaccedilatildeo urbana revela uma alianccedila de comshypromissos entre promotores imobiliaacuterios (aliados agrave induacutestriada construccedilatildeo) o setor financeiro (que tem no imoacutevel um elemeTlto de investimento) e o poder de dominaccedilatildeo do Estado que ao reorientar o processo de produccedilatildeo

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do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

26 27

cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 9: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

do espaccedilo permite a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em outro patamar Desse modo a OUFL aparece como estrateacutegia espacial imposta pelos imperashytivos da reproduccedilatildeo

Com a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima se instala em Satildeo Paulo um eixo viaacuterio que surge como pos~ibUidade de um amplo campo de investimento produzido como condiccedilatildeo da realizaccedilatildeo da atividade econocircshymica que se expande Novo modo pelo qual a propriedade privada vai-se realizar como investimento em uma economia globalizada Aqui o espaccedilo aparece como espaccedilo objetivo e neutro dos planejadores encobrindo-se em uma neacutevoa de racionalidade exigecircncia de uma economia que ruma para o seacuteculo XXI Com isso se encobre a contradiccedilatildeo que existe a partir dos interesshyses diferenciados de classes conflitantes - ideacuteias e interesses - alojados em niacuteveis diferenciados da reproduccedilatildeo dissimulando as contradiccedilotildees no interishyor do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano

Lefebvre adverte que

as contradiccedilotildees do espaccedilo natildeo vecircm de sua fonna racional tal qual se depreende nos matemaacuteticos elas vecircm do conteuacutedo praacutetico e social especificamente do conteuacutedo capitalista Com efeito esse espaccedilo da sociedade capitalista se quer racional enquanto na praacutetica ele eacute comercializado fragmentado vendido em parcelas Eacute assim que ele eacute ao mesmo tempo global e pulverizado Ele parece loacutegico e ele eacute absurdamente recortado Essas contradiccedilotildees explodem no plano institucional Nesse plano se descobre que a burguesia tem um duplo poder sobre o espaccedilo inicialmente a propriedade privada do solo que se generaliza no espaccedilo inteiro agrave exceccedilatildeo dos direitos das coletividades e do Estado - e secundariamente pela globalidade a saber o conhecimento a estrateacutegia a accedilatildeo do Estado Haacute conflitos inevitaacuteveis entre esses dois aspectos e notadamente entre o espaccedilo abstrato (concebido ou conceitual global ou esshytrateacutegico) e o espaccedilo imediato percebido vivido fragmentado e vendido No plano institucional essas contradiccedilotildees aparecem entre os planos gerais do plashynejamento e os projetos parciais dos mercadores do espaccedilo

Essas contradiccedilotildees explodem na vida cotidiana no plano da apropriaccedilatildeo do espaccedilo em quecirc os usos se deparam com a questatildeo da raridade dos lugares no espaccedilo para a reproduccedilatildeo do capital com isso o choque eacute eminente

A localizaccedilatildeo dos modernos escritoacuterios na cidade de Satildeo Paulo revela uma atividade que requer a concentraccedilatildeoo que gera uma centralidade efeshytiva As exigecircncias de um novo eixo empresarial na metroacutepole em virtude das transfonnaccedilotildees do processo de produccedilatildeo criam a necessidade de um espaccedilo detenninado com caracteriacutestiCampique permitam natildeo soacute o adensamento da regiatildeo com a conSlnlccedilatildeo em altura mas com moderna tecnologia apoiashy

da em densa rede viaacuteria ligando pontos-chave da metroacutepole como a proxishymidade com o aeroporto e serviccedilos novos O eixo empresarial que se vinha esboccedilando ainda de forma interrompida no espaccedilo ganha com a Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima o que lhe faltava contiguumlidade espacial e com isso a articulaccedilatildeo entre pontos de concentraccedilatildeo dos serviccedilos Assim realiza-se uma nova central idade tendo por base a concentraccedilatildeo do setor financeiro servishyccedilos sedes de induacutestrias em escritoacuterios construiacutedos para esse fim especiacutefico com uma tecnologia definida para esse tipo de atividade em um mercado globalizado em decorrecircncia de novas demandas do setor produtivo

Esse espaccedilo inicialmente se constitui como centro que entra em disputa com os centros tradicionais - caso do centro histoacuterico da cidade e da regiatildeo da avenida Paulista - mas se trata efetivamente de um movimento de expanshysatildeo e deslocamento e natildeo de criaccedilatildeo de outra coisa Na realidade a extenshysatildeo da avenida liga dois subcentros de escritoacuterios em Satildeo Paulo criando uma aacuterea de expansatildeo que se constitui no eixo empresarial o que significa dizer que o fenocircmeno da raridade se associa ao da centralidade e das necesshy

sidades de sua aacuterea de expansatildeo~~ centralidade da atividade econocircmica faz com que importantes transformaccedilotildees espaciais ocorram iluminando o jogo estrateacutegico de classes diferenciadas da sociedade urban~

Algumas hipoacuteteses norteiam a anaacutelise do projeto que embasou a OUFL e sua efetiva realizaccedilatildeo na regiatildeo Sudoeste de metroacutepole Satildeo Paulo

1 Podemos inicialmente afirmar que as mudanccedilas decorrentes da Opeshyraccedilatildeo Faria Lima se articulam com as necessidades de consolidaccedilatildeo do novo eixo empresarial-comercial de alto padratildeo na metroacutepole marcando uma dishyreccedilatildeo na localizaccedilatildeo do desenvolvimento de uma nova funccedilatildeo econocircmica

2 O Estado com seus instrumentos legais produz grandes transforshymaccedilotildees nos usos e funccedilotildees dos lugares da cidade reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaccedilo metropolitano Mas ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura aprofundam-se as desigualdades na metroacutepole interferindo de modo profundo nas formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo agrave medida que produzem com sua intervenccedilatildeo um processo de valoshyrizaccedilatildeo diferencial do solo urbano

3 A OUFL ao pennitir a extensatildeo da avenida Brigadeiro Faria Lima proporciona um processo concreto de valorizaccedilatildeo de aacutereas inteiras na esteira da abertura da avenida tanto em seu periacutemetro imediato quanto no indireto Com isso nova frente de investimentos imobiliaacuterios vem a reboque do proshyjeto em funccedilatildeo das facilidades proporcionadas pela construccedilatildeo de infra-esshytrutura que valorize o solo fixando um novo uso Cria-se assim um nuacutecleo na metr~pole com forte poder de atraccedilatildeo com pesados investimentos puacuteblishy

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cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

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prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 10: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

cos e privados gerando o deslocamento de atividades que passam a compeshytir com antigos poacutelos econOcircmicos como aquele formado pela regiatildeo da aveshynida Paulista e do centro histoacuterico da metroacutepole

4 O processo de valorizaccedilatildeo aliado agraves estrateacutegias dos empreendedores imobiliaacuterios reproduz um espaccedilo cada vez mais voltado aos interesses parshyticulares do grande capital que ao intervirem no urbano interferem na praacuteshytica socioespacial e com isso nos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

5 Com essas transformaccedilotildees especializam-se espacialmente as funshyccedilotildees aprofundando a divisatildeo espacial do trabalho na metroacutepole implodindo a antiga centralidade que havia no bairro no contexto da produccedilatildeo espacial de novas centralidades que copstituem a metroacutepole polinucleada O novo poacutelo que se vai produzindo reproduz um duplo fenocircmeno de um lado a extensatildeo do eixo empresarial da metroacutepole de outro a constituiccedilatildeo de um poacutelo de lazer que definiraacute aquilo que chamamos de centralidade moacutevel Esse fenocircmeno se refere na metroacutepole ao centro institucional de lazer deshylimitadodefinido pela monofuncionalidade no caso especiacutefico pela localishyzaccedilatildeo de equipamentos de lazer como bares e restaurantes ligados a um consumo organizado programado produzido e povoado de signos

6 Mudanccedilas especiais na metroacutepole sempre ocorrem de forma violenshyta em ritmo acelerado como a tendecircncia agrave mudanccedila constante das direccedilotildees de fluxos do traccedilado ou do alargamento de ruas e avenidas necessidade imposta pelo escoamento do tracircnsito das tendecircncias do mercado imobiliaacuteshyrio das mudanccedilas da lei de zoneamento notadamente em decorrecircncia das mudanccedilas dos usos e funccedilotildees dos lugares Com isso redefinem-se constanshytemente os lugares dentro da metroacutepole As transformaccedilotildees produtos de renovaccedilotildees urbanas natildeo modificam uniformemente toda a cidade mas parshyte dela A chamada Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima pode esclarecer como esshysas transformaccedilotildees ocorrem no seio da metroacutepole e o que acontece com os usos e o sentido do espaccedilo para a reproduccedilatildeo da vida jaacuteque com a mudanccedila da morfologia haacute tambeacutem a mudanccedila das formas de apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida

As hipoacuteteses aqui apontadas embasam a necessidade de analisar um contexto mais amplo a partir do qual se pode apreender o sentido a dimenshysatildeo e abrangecircncia da OUFL no espaccedilo da metroacutepole Se de um lado o processhyso de reproduccedilatildeo espacial na grande metroacutepole eacute influenciMo hoje pelo desenvolvimento de uma nova atividade produtiva (novas atividades econOcircshymicas entre elas o lazerIO) de outro lado o processo de raridade impotildee a

~ necessidade de transformaccedilatildeo de usos e Iunccedilotildees de aacutereas consolidadas da metroacutepole impondo sua renovaccedilatildeo por meio de interv~nccedilotildees do poder

puacuteblico e seus mecanismos estrateacutegicos Assim a pesquisa se realiza sob a perspectiva do entendimento do espaccedilo geograacutefico como categoria de anaacutelishyse de desvendamento do processo de reproduccedilatildeo da sociedade Eacute convenishyente insistir que o espaccedilo geograacutefico articula duas dimensotildees a da localizashyccedilatildeo (de um pontn nOmapa) e a que daacute conteuacutedo a essa localizaccedilatildeo que qualifica e singulariza o lugar dando-lhe conteuacutedo Este eacute determinado peshylas relaccedilotildees sociais que aiacute se estabelecem - o que confere ao espaccedilo a caracteshyriacutestica de produto social e histoacutericQ Mas por ter uma materialidade indiscushytiacutevel o processo espacial possui uma dimensatildeo aparente visiacutevel que se materializa na morfologia marcada pela heterogeneidade proacutepria dos lugashyres mas que tambeacutem aponta o reprodutiacutevel Nesse caso o mundo de imashygens formas e aparecircncias aponta para a tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo de nossa sociedade que pode ser mais bem apreciada na paisagem urbana da grande metroacutepole

Na realidade conveacutem explicitar que natildeo estaacute em cheque a natureza do espaccedilo (ele proacuteprio produto histoacuterico e social) mas a dinacircmica que explica

y hoje sua reproduccedilatildeo por meio da anaacutelise das metamorfoses da metroacutepole shycomo momento da reproduccedilatildeo histoacuterica da cidade - esclarecendo o fato de que seu processo de produccedilatildeoreproduccedilatildeo envolve sempre novas estrateacutegias criando novas contradiccedilotildees O espaccedilo revela em seu processo de reproduccedilatildeo interesses divergentes que encontram uma unidade no Estado que tem a seu cargo a orientaccedilatildeo e a definiccedilatildeo de metas que planificam o espaccedilo (tanto no plano geral da sociedade quanto no plano micro do bairro dentro da cidade) Com isso interfere e delimita os umbrais da vida cotidiana pois eacute por meio de estrateacutegias de atuaccedilatildeo que exerce seu poder no espaccedilo Eacute no espaccedilo que o poder ganha visibilidade pelas intervenccedilotildees concretas eacute por isso que as conshytradiccedilotildees no processo eclodem no plano institucional No contexto do espaccedilo planejado manipulado que aparece como objetivo e neutro esconde-se seu sentido poliacutetico como meio de dominaccedilatildeo Nesse sentido por meio do Estashydo o espaccedilo eacute um elemento de dominaccedilatildeo em contradiccedilatildeo com o espaccedilo da apropriaccedilatildeo revelado claramente nas lutas que aiacute se realizam

Conveacutem sublinhar que as estrateacutegias que percorrem o processo de reshyproduccedilatildeo espacial satildeo estrateacutegias de classe referem-se a grupos sociais dishyferenciados com objetivos desejos e necessidades diferenciados o que torshyna as estrateacutegias conflitantes O Estado por sua vez desenvolve estrateacutegias que orientam e asseguram a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees no espaccedilo inteiro (eleshymento que se encontra na base da construccedilatildeo de sua racionalidade) Assim o espaccedilo se revela como instrumento poliacutetico intencionalmente organizado e manipulado peloEstado eacute portanto meio e poder nas matildeos de uma classe dominante que diz representar a sociedade sem abdicar de objetivos pro-

UjIlt(jS 29 (nS(IacutelulO d~ Gtuumlciecircncias

Biblioteca

28

prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

30 31

go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 11: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

prios de dominaccedilatildeo Nessa perspectivafo Estado por meio da OUFL reorgashyniza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatilde~AsocializaccedilatildeO da sociedade que tem por essecircncia a urbanizaccedilatildeo revela-se na planificaccedilatildeo racional do espaccedilo orgashynizando o territoacuterio da produccedilatildeo Desse modo as contradiccedilotildees da apropriaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da vida humana entram em conflito com as dos grupos socishyais que exploram o espaccedilo como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do capital

A OUFL se inscreve assim em um conjunto de estrateacutegias poliacuteticas imobiliaacuterias e financeiras com orientaccedilatildeo significativa no processo de reshyproduccedilatildeo espacial que converge para a segregaccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo no espaccedilo a partir da destruiccedilatildeo da morfologia de uma aacuterea da metroacutepole que ameaccedilatransforma a vida urbana reorientando usos estruturas e funccedilotildees dos lugares da cidade Isto porque cada projeto de renovaccedilatildeo urbana natildeo realccedila somente a questatildeo das estruturas existentes na sociedade as relaccedilotildees imediatas (individuais) e cotidianas mas tambeacutem aquela que se pretende impor pela via da coaccedilatildeo e institucional ao resto da realidade urbanalI Natildeo eacute por acaso que a consolidaccedilatildeo do eixo empresarial se realiza por meio do poder poliacutetico como estrateacutegia de gestatildeo que assegura a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais de produccedilatildeo Na realidade tanto o Estado quanto os empreshysaacuterios - apesar de suas diferenccedilas - com estrateacutegias espaciais diferenciadas convergem nesse caso especiacutefico no sentido de superar as contradiccedilotildees que eclodem no processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole

Desse modo a operaccedilatildeo urbana estabelece uma estrateacutegia espacial de dominaccedilatildeo em alianccedila com setores econocircmicos o que de um lado revela a imposiccedilatildeo do setor imobiliaacuterio como elemento dinacircmico da economia torshynando patente a mobilizaccedilatildeo da riqueza fundiaacuteria e imobiliaacuteria compreenshydida como extensatildeo do capitalismo financeiro de outro as transformaccedilotildees recentes da economia capitalista a entrada do setor da construccedilatildeo civil no circuito industrial moderno associada ao desenvolvimento maciccedilo da tecnologia em funccedilatildeo da imposiccedilatildeo dos novos padrotildees de realizaccedilatildeo da atishyvidade econocircmica nas cidades mundiais

I

o ESPACcedilO DA REPRODUCcedilAtildeO DA VIDA

A metroacutepole em sua grandiosidade esmagadora exuberante e ensurshydecedora aparece como o lugar das profundas transformaccedilotildees um processo inebriante de mudanccedilas ainda em curso As profundas e raacutepidas transformashyccedilotildees em suas formas ocorre concomitantemente com uma profunda transshyformaccedilatildeo da vida cotidiana que agora constitui paisagem em metamorfose Nesse contexto Se pode dlGeacutef ljue a metroacutepole aparece hoje como maniacutefesshy

taccedilatildeo espacial concreta do processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisatildeo espacial do trabalho na ampliaccedilatildeo do mercado mundial na eliminaccedilatildeo das fronteiras entre os Estados na exshypansatildeo do mundo da mercadoria e da instauraccedilatildeo l2 do cotidiano Tal fato eacute potencializado pela generalizaccedilatildeo no espaccedilo dos fluxos de informaccedilatildeo e mercadorias pois o processo capitalista se em um primeiro momento reashyliza-se contornando fronteiras nacionais para se reproduzir hoje tem a tenshydecircncia eacute a unir os mercados constituindo em espaccedilo mundial e hierarquizado comandado por centros muacuteltiplos Desse modo o processo de metropolizaccedilatildeo diz respeito agrave hierarquizaccedilatildeo do espaccedilo a partir da dominashyccedilatildeo de centros que exercem sua funccedilatildeo administrativa juriacutedica fiscal finanshyceira policial e de gestatildeolA metroacutepole guarda uma centralidade em relaccedilatildeo ao restante do territoacuterio dominando e articulando aacutereas imensas Assim ela

se constitui como espaccedilo mundial O que toma um lugar mundial segundo Milton Santos satildeo os composhy

nentes que fazem de uma determinada parcela do territoacuterio o locos da proshyduccedilatildeo e troca de alto niacutevel consequumlecircncia da hierarquizaccedilatildeo que regulariza a accedilatildeo em outros lugaresl3 A metroacutepole reproduz-se de forma incessante e ininterruptamente Ela natildeo se refere mais ao lugar uacutenico primeiro porque conteacutem o mundial a constituiccedilatildeo de valores de uma esteacutetica de comportashymentos e haacutebitos que satildeo comuns a uma sociedade urbana em constituiccedilatildeo segundo porque aiacute temos a articulaccedilatildeo de todos os lugares na medida em ~ que os aproxima terceiro a metroacutepole caracteriza-se como forma da sishymultaneidade Na realidade a co-presenccedila e a simultaneidade marcam subsshytancialmente o urbano e iluminam as relaccedilotildees espaccedilo-tempo Nesse contexshyto a metroacutepole aparece como o lugar de uma superposiccedilatildeo de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes aleacutem de uma simultaneishydade de eventos no mesmo espaccedilo Tal fato se associa agrave ideacuteia de que a meshytroacutepole estaria em todo lugar ou ainda segundo Cannevacci de que a metroacutepole estaacute em noacutes Talvez natildeo se possa sair nunca de Satildeo Paulo pois ela estaacute em toda parte escreve aquele autorl4

Por sua vez podemos dizer que cada momento da vida na metroacutepole traz consigo um acuacutemulo de fatos novos dos quais cada um cria uma seacuterie de consequumlecircncias o que permite pensar a sociedade urbana em sua compleshyxidade com base na vida cotidiana na metroacutepole Esses processos aludem a uma nova ordem espaccedilo-temporal que se vislumbra a partir do processo de constituiccedilatildeo e mundializaccedilatildeo da sociedade urbana passiacutevel de ser analishysado a partir da metroacutepole pois eacute aqui que em todos os lugares se misturam os sinais de uma jilodcrnizaccedilatildeo imposta na morfologia urbanatilde (por meio de novas formas arquitetocircnicas novas e largas avenidas destinadas a um traacutefeshy

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go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 12: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

go cada vez mais denso que se apresentam como imensas cicatrizes no tecishy duzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido do natildeo identificado aqui as marcas da do urbano) Se de um ladoo espaccedilo urbano se afinna como fonna de outro vida de relaccedilotildees e dos referencias da vida se esfumaccedilarn ou se perdem para lado revela na especificidaacuteaacute~de sua produccedilatildeo espacial um conteuacutedo social sempre O estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo e por o espaccedilo como fio condutor para oentendimento do mundo moderno apareshy uma nova organizaccedilatildeo do tempo na vida cotidiana coloca o indiviacuteduo diante ce por meio _da~aacutelise da metroacutepole como fonna material das relaccedilotildees de de situaccedilotildees mutantes inesperadas A constante renovaccedilatildeotransfonnaccedilatildeo do reproduccedilatildeo em seu sentido amplo elemento de mediaccedilatildeo entre o lugar e o espaccedilo urbano por meio das mudanccedilas morfoloacutegicas da metroacutepole produz mundial

Durante muito tempo a problemaacutetica urbana se vinculou ora agrave relaccedilatildeo entre o processo de produccedilatildeo de mercadorias e o espaccedilo ora agrave reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho circunscrita ao espaccedilo da faacutebrica ora ainda agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo da forccedila de trabalho enfocada a partir da moradia Na realidade o que colocamos como perspectiva analiacutetica eacute a construccedilatildeo da problemaacutetica

a partir do entendimento da reproduccedilatildeo da SOCiedade como reproduccedilatildeo espacial No momento atual a realidade urbana se generaliza em um processhyso conflituoso e contraditoacuterio que engloba as esferas da reproduccedilatildeo social isto porque o fenocircmeno urbano tem o sentido da produccedilatildeo humana como processo em realizaccedilatildeo tecendo-se como produto da reproduccedilatildeo da socieshydade como reproduccedilatildeo da vida isto eacute as relaccedilotildees sociais se realizam e ganham concretude materializando-se no espaccedilo A primeira obselVaccedilatildeo que podemos fazer eacute o fato de que se realizam por meio dos modos de aproshypriaccedilatildeo especiacuteficos nesse contexto a reproduccedilatildeo social alude a condiccedilotildees espaccedilo-temporais objetivas O sentido doacute urbano transcende a cidade sem todavia deixar de englobaacute-la A sociedade urbana se anuncia e se projeta na vida recriando-a compondo natildeo soacute uma totalidade mais ampla mas como aponta Henri Lefebvre transfonnando-se tambeacutem em objeto virtual

O processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana produz transfonnashyccedilotildees radicais nas relaccedilotildees espaccedilo-tempo que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana enquanto a paisagem urbana aponta para a existecircncia de foacutennas sempre cambiantes A sensaccedilatildeo do tempo se acelera as transfoI1l1accedilotildees nos referenciais urbanos (de como as pessoas se identificam com o lugar onde moram) se alteram em decorrecircnshycia das mudanccedilas nas possibilidades de uso do lugar nos modos de vida nesse lugar Em tal plano tomamos como ponto de partida para a pesquisa a contrashydiccedilatildeo entre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (em um

wfmiddot tempo e em um espaccedilo que mede e detennina as relaccedilotildees sociais) _ e o tempo das tnmsfonnaccedilotildees na morfologia urbana que produz no mundo modershyno particularmente na metroacutepole fonnas sempre fluidas e cambiantes

Essa contradiccedilatildeo produz o que chamo de estranhamento Diante de uma metroacutepole onde as fonnas mudam e se transfonnam de modo cada vez mais raacutepido os referenciais dos habitantes da metroacutepole se modificam proshy

transfonnaccedilotildees nos tempos urbanos da vida nos modos e tempos de aproshypriaccedilatildeouso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo aquele da rua A cidade apashyrece como exterioridade ela estaacute fora do indiviacuteduo apontando para uma condiccedilatildeo de alienaccedilatildeo

Como o processo da produccedilatildeo da vida se daacute pelos modos de apropriashyccedilatildeo do espaccedilo para o uso o ponto de partida para o desenvolvimento desta pesquisa assenta-se no fato de que no caso especiacutefico da metroacutepole Satildeo Paulo haacute uma profunda e raacutepida transfonnaccedilatildeo no espaccedilo urbano passiacutevel de ser apreendido no plano da morfologia que aponta mudanccedilas radicais nas fonnas de vida porque nonnatizaimpede o uso do lugar - baseada na redefiniccedilatildeo da propriedade privada do solo urbano

A construccedilatildeo da metroacutepole toma visiacuteveis os usos e as formas de aproshypriaccedilatildeo do espaccedilo que se associa diretamente agraves fonnas de propriedade prishyvada do solo urbano apontando para uma hierarquizaccedilatildeo socioespacial Em uma metroacutepole superedificada como Satildeo Paulo onde o ritmo do que se chashyma progresso destroacutei constante e ininterruptamente aacutereas urbanas pelo ato incessante de construccedilatildeo de novas fonnas esse movimento provoca o desashyparecimento das marcas e referenciais do passado histoacuterico presente nas construccedilotildees nas fachadas nas ruas e praccedilas destruindo bairros inteiros A construccedilatildeo das vias raacutepidas pontes viadutos linhas de metrocirc fragmenta o espaccedilo urbano mudando a relaccedilatildeo dos cidadatildeos com a cidade Aqui as transformaccedilotildees do espaccedilo vividas pela destruiccedilatildeo da memoacuteria social datildeo-se em virtude da liquidaccedilatildeo dos referenciais individuais e coletivos produzinshydo a fragmentaccedilatildeo da identidade a perda da memoacuteria social pois os eleshymentos conhecidos e reconhecidos impressos na paisagem da metroacutepole se esfumam Os guindastes motosserras as britadeiras os caminhotildees de conshycreto satildeo metaacuteforas da criaccedilatildeo de formas fluidas efecircmeras isso reflete nos pontos de referecircncia da vida cotidiana por meio dos usos No espetaacuteculo da multidatildeo o indiviacuteduo se perde e para ele a cidade se toma ora passagem ora vitrine escreve Olgaacuteria Matos l

Lugar de expressatildeo dos conflitos afrontamentos-confrontaccedilotildees lugar do desejo ou onde os desejos se manifestam na metroacutepole se circunscrevem as accedilotildees e atos do sujeito aiacute se encontram os vestiacutegios do que podemos chamar harmonia disson~te que permite recuperar a memoacuteria que marshy

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ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 13: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

ca a identidade da vida metropolitana por meio das marcas da histoacuteria de tempos distantes impressas no presente Eacute nessa harmonia dissonante de vestiacutegios de tempos histoacutericos diferenciais que o indiviacuteduo se acha ou se perde pois o espaccedilo eacute o ponto de convergecircncia entreacute o passado e o presente Eacute tambeacutem o lugar da manifestaccedilatildeo do individual e da experiecircncia socializante (empobrecida ou natildeo) produto de uma multiplicidade de trocas de todos os tipos que produz a sociabilidade na cidade Reproduz-se na contradiccedilatildeo enshytre a eliminaccedilatildeo substancial e a manutenccedilatildeo persistente dos lugares de enshycontros e reencontros da festa da apropriaccedilatildeo do puacuteblico para a vida

Partimos da premissa de que no lugar encontramos as mesmas detershyminaccedilotildees da totalidade sem l com isso eliminar as particularidades pois

i cada sociedade produz seu espaccedilo expressando sua funccedilatildeo social determishynando os ritmos da vida os modos de apropriaccedilatildeo seus projetos e desejos O lugar guarda uma dimensatildeo praacutetico-sensiacutevel real e concreta que a anaacutelishyse aos poucos vai revelando Assim agrave medida que a cidade de Satildeo Paulo se transforma o processo se faz modificando e transformando a configuraccedilatildeo e a morfologia espaciais e com isso o sentido dos lugares e os modos de uso revelando nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo A tese central se apoacuteia na ideacuteia de

)~ que o lugar tem uma dimensatildeo explicativa e permite entender como se reashyliza hoje o processo de reproduccedilatildeo da sociedade vista a partir da reprodushyccedilatildeo espacial de um fragmento da metroacutepole paulistana Isto porque o lugar aparece como condiccedilatildeo de realizaccedilatildeo da vida cotidiana o que envolve uma articulaccedilatildeo espaccedilo-tempo pelos usos do lugar A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade pela vida cotidiana se realiza como accedilatildeo relacionada agraves possibilidashydes e aos limites do uso do lugar em determinado momento histoacuterico

Nessa perspectiva as relaccedilotildees sociais se realizam e produzem em sua praacutetica o espaccedilo da vida Eacute assim que se coloca a nosso ver a questatildeo da praacutetica socioespacial e da produccedilatildeo social do espaccedilo - as relaccedilotildees sociais ganham existecircncia inscrevendo-se no espaccedilo produzindo-o constantemenshyte em seus limites e possibilidades

A anaacutelise se baseia no fato de que as relaccedilotildees sociais tecircm sua realizaccedilatildeo ligada agrave necessidade de um espaccedilo onde ganha concretude a casa como unishyverso do homem privado a rua como acessibilidade possiacutevel aos espaccedilos puacuteblicos lugar dos encontros dos percursos bem como as possibilidades de uma miriacuteade de trocas (onde o comeacuterCio lOcal ganha significado especishyal) os lugares de trabalho os pontos de lazer etc lugares onde se realiza a vida humana em determinado tempo

Brefles espaces se sont multiplieacutes morcel~s-et diversifieacutes ny en a aujourdhui de toutes tailles et de toutes sortes pour toutes usages et pour toutes fonctions

Vivre cest passer dun espace a un autre en essayant le plus possible de ne pas se cogner 16

Eacute nesse niacutevel que espaccedilo e tempo se articulam de modo indissociaacutevel comoprMica socioespacial Essa eacute a implicaccedilatildeo mais profunda da anaacutelise da produccedilatildeo em seu sentido lato (a realizaccedilatildeo da vida como produccedilatildeoapropriashyccedilatildeo dos lugares)

Assim as relaccedilotildees que os indiviacuteduos mantecircm com os espaccedilos habitashydos se exprimem todos os dias nos modos do uso nas condiccedilotildees mais banais e acidentais na vida cotidiana Revela-se como espaccedilo passiacutevel de ser sentishydo pensado apropriado e vivido pelo indiviacuteduo por meio do corpo pois eacute com todos os seus sentidos que o habitante usa o espaccedilo criapercebe os referenciais sente os odores dos lugares dando-lhes sentido Isso significa que o uso do espaccedilo envolve o indiviacuteduo e seus sentidos seu corpo eacute por ele que marca sua presenccedila eacute por ele que constroacutei e se apropria do espaccedilo e do mundo no plano do lugar no modo como usa o espaccedilo e emprega o tempo da vida cotidiana

A nossa existecircncia tem uma corporeidade pois agimos por meio do corpo - ele nos daacute acesso ao mundo eacute o noacute vital imediato visto pela socieshydade como fonte e suporte de toda a cultura17 bull Portanto um modo de aproxishymaccedilatildeo da realidade produto modificado pela experiecircncia do espaccedilo da reshylaccedilatildeo com o mundo relaccedilatildeo muacuteltipla de sensaccedilatildeo e de accedilatildeo mas tambeacutem de desejo e por consequumlecircncia de identificaccedilatildeo com a projeccedilatildeo sobre o outro Nessa direccedilatildeo a praacutetica socioespacial tomada globalmente supotildee o uso do corpo o emprego das matildeos dos membros dos oacutergatildeos sensoriais gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho porque o proacuteprio corpo aparece como elemento espacial

Oiacuteugareacute assim a porccedilatildeo do espaccedilo apropriaacutevel para a vida revelando o plano da microescala o bairro a praccedila a rua o pequeno e restrito comeacutershycio que pipoca na metroacutepole aproximando seus moradores que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias pois criam possibilidades de encontro e guardam urna significaccedilatildeo como elementos de sociabilidade A anaacutelise da vida cotidiana envolve o uso do espaccedilo pelo corpo o espaccedilo imeshydiato da vida das relaccedilotildees cotidianas mais finas as relaccedilotildees de vizinhanccedila o ato de ir as compras o caminhar o encontro os jogos as brincadeiras o percurso reconhecido de uma praacutetica vividareconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laccedilos profundos de idenshytidade habitante-habitante e habitante-lugar marcada pela presenccedila Satildeo portanto os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem resshypeito a sua vida cotidiana lugares como conagraveiccedilatildeo agravea viagravea que vatildeo ganhanshy

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do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 14: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

do o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites) Trata-se portanto de um espaccedilo palpaacutevel real e concreto - a extensatildeo exterior o que eacute exterior a noacutes e ao mesmo tempo interior Satildeo as relaccedilotildees que criam o sentido dos lugares da metroacutepole Isto porque o lugar soacute pode ser compreshyendido em suas referecircncias que natildeo satildeo especiacuteficas de uma funccedilatildeo ou de uma forma mas produzidos por um conjunto de sentidos impressos pelo uso Eacute assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domiciacutelio aos lugares de lazer de trabalho de comunicaccedilatildeo ordenados seshygundo as propriedades do tempo vivido

Nesse processo se desvenda a base da reproduccedilatildeo da vida passiacutevel de ser analisada pela relaccedilatildeo habitante-lugar (pela mediaccedilatildeo do uso) como produtora de identidade do indiviacuteduo A construccedilatildeo da cidade hoje revela a dupla tendecircncia entre a imposiccedilatildeo de um espaccedilo que se quer moderno logo homogecircneo e monumental definido ou melhor desenhado como espaccedilo que abriga construccedilotildees em altura associadas a uma rede de comunishycaccedilatildeo densa e raacutepida e de outro as condiccedilotildees de possibilidade que se referem agrave realizaccedilatildeo da vida (que se acham agrave espreita de modo contestatoacuterio) revelando uma luta intensa em tomo dos modos de apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo na metroacutepole um processo que ocorre de modo profundamente desigual revelando-se em seus fragmentos

Assim no uso do espaccedilo eacute possiacutevel apreender o imprevisto a improvishysaccedilatildeo o espontacircneo que criam os pontos de referecircncia da cidade onde a multidatildeo improvisa a festa a reuniatildeo superpondo-se agrave rotina no igual e no repetitivo Dessa feitalaacutes ruas praccedilas e avenidas com suas marcas particulares e identifieadoras marcam o conviacutevio e apresentam modos diferenciados de apropriaccedilatildeo) As ruas podem ser um elemento importante a partir do qual se pode pensaacutei o lugar da experiecircncia da rotina dos confrontos conflitos e dissonacircncias No panorama das ruas lecirc-se a vida cotidiana - seu ritmo suas contradiccedilotildees sentimentos de estranhamento como formas de alienaccedilatildeo forshymas como se trocam mercadorias modo como a solidatildeo desponta a arte da sobrevivecircncia suas delimitaccedilotildees Mas ao lado dos espaccedilos puacuteblicos haacute na metroacutepole os espaccedilos semipuacuteblicos que tendem a substituir o puacuteblico como os espaccedilos comerciais galerias shopping centers por exemplo onde os enshycontros organizados e normatizados satildeo locais de exclusatildeo Tecircm horaacuterio de funcionamento abrem e fecham satildeo vigiados natildeo satildeo acessiacuteveis a qualquer hora ou dia nem a qualquer um contecircm coacutedigos e normas de uso (muitos deles satildeo espaccedilos abertos a encontros organizado em torno de signos como aquele do ritual da mercadoria onde o habitante se transforma potencialmenshyte em ccnslTiacutedcr) Isso ocorre o tempo tende a se restringir ao universo do trabalho produtivo desaparecendo no espaccedilo inscrevendo-se apenas como

quantitativo o dos aparelhos de medida o uacutenico tempo que se impotildee eacute o do trabalho o que significa que o uso se restringiraacute marcado pelos ritmos da vida urbanalB

bull Nesse contexto esses espaccedilos se tornam o doiniacutenio por excelecircncia de relaccedilotildees sociais entre estranhos locos de sociabilidades polidas frias e distantes Portanto o uso refere-se tambeacutem agraves maneiras de frequumlentar determishynado lugar e permite desvendar a relaccedilatildeo espaccedilo-indiviacuteduo no mundo moderno onde os referenciais vindos de um passado distante tendem a desaparecer

Na metroacutepole a noite que costumava representar o desconhecido aqui se revela em uma multiplicidade de formas luminosas expondo um mundo de atividades que fervilham sem misteacuterios aparentes em uma rotina submersa composta de ritmos lineares impostos mas tambeacutem de solidatildeo incertezas e possibilidades A metroacutepole tambeacutem se transforma em um mundo de imashygens superpostas que se transfigura nem vertiginoso e contiacutenuo jogo de imshypressotildees breviacutessimas em um mundo sem espessura e sem memoacuteria A fluishydez do tempo elimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste criando um vazio preenchido por coaccedilotildees O poder controla o fluxo o uso e o tempo do uso dos lugares Assiste-se assim agrave constituiccedilatildeo da identidade ahstrata proshyduzida como consequumlecircncia da extensatildeo do mundo da mercadoria que invashyde e transfigura a vida cotidiana em que os signos proporcionam o modelo para manipular pessoas e consciecircncias organizando as relaccedilotildees sociais direcionadas pelo consumo do espetaacuteculo

Uma ideacuteia apresentada por Henri Lefebvre em muitos de seus trabashylhos19

segundo a qual uma das caracteriacutesticas da sociedade moderna eacute a vitoacuteria do valor de troca sobre o valor de uso acrescenta outro elemento agrave anaacutelise da reproduccedilatildeo do espaccedilo Pudemos constatar que as transformaccedilotildees ocorridas na metroacutepole paulista apontam uma tendecircncia manifesta na praacutetishyca socioespacial segundo a qual ps espaccedilos se reproduzem cada vez mais em funccedilatildeo das estrateacutegias imobiliaacuterias e com isso limitam as condiccedilotildees e as possibilidades de uso do espaccedilo pelos habitantes~ isto eacute cada vez mais os espaccedilos urbanos transformados em mercadoriCsatildeo destinados agrave troca o que significa que a apropriaccedilatildeo e os modos de uso tendem a se subordinar (cada vez mais) ao mercado Em uacuteltima instacircncia significa que existe uma tendecircncia agrave diminuiccedilatildeo dos espaccedilos natildeo se reduzindo o uso agrave esfera da mercadoria e o acesso natildeo se associa agrave compra e venda de um direito de uso temporaacuterio Esse fatb pode ser constatado por meio dos limites imposshytos ao lazer e ao flanar o corpo e os passos estatildeo cada vez mais restritos a lugares vigiados normatizados privatizados ou privados Esse fato eacute conseshyquumlecircncia da tendecircncia que se esboccedila no mundo moderno que transforma o espaccedilo em mercadoria pu aacuterea de circulaccedilatildeo o que tendencialmente limishytaria seu uso agraves formas de apropriaccedilatildeo privada

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Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 15: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

Uma advertecircncia se faz necessaacuteria COm essa ideacuteia Henri Lefebvre natildeo quer dizer que o valor de uso tende a desaparecer em nossa sociedde tampouco que a homogeneizaccedilatildeo de fragmentos dispersos e comercializados do espaccedilo impliquem a prioridade absoluta do valor de troca sobre o valor de uso20bull Trata-se de uma tendecircncia que natildeo destroacutei a relaccedilatildeo dialeacutetica entre valor de uso e valor de troca mas aponta para o modo como as contradiccedilotildees do processo de produccedilatildeo do espaccedilo entre uso e troca se realizam no mundo moderno O uso invadido e submetido ao mercado ao valor de troca se toma residual O comprador de um terreno ou de uma casa na cidade continua comshyprando um valor de uso apesar de a casa ser mercantilizada o valor de uso e

o valor de troca se encontraIacuten em uma relaccedilatildeo dialeacutetica em que nenhum dos -j poacutelos desaparece e ambos se situam no espaccedilo diferencialmente21bull

A predominacircncia do valor de troca como extensatildeo do mundo da mershycadoria se revela como produto de lutas que surgem a partir de relaccedilotildees sociais contraditoacuterias criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do proshycesso de reproduccedilatildeo lato sensu em que as batalhas se resolvem pelo jogo poliacutetico das forccedilas sociais Nesse sentido o espaccedilo aparece como obra histoacuteshyrica que se produz continuamente a partir das contradiccedilotildees inerentes agrave soshyciedade produzidas com base em relaccedilotildees sociais assentadas em relaccedilotildees de dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeouso-apropriaccedilatildeo que produzem conflitos inevitaacuteshyveis que tendem a questionar o entendimento da cidade exclusivamente como valor de trocall e consequumlentemente as formas de parcelamento e mercantilizaccedilatildeo do solo urbano Por outro lado a reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se processa agora pela loacutegica de accedilotildees poliacuteticas e pelo controle sobre a teacutecnica e o saber A presenccedila contraditoacuteria do Estado no espaccedilo

Cp fundada em uma estrateacutegia que se quer hegemocircnica organiza as relaccedilotildees sociais e de produccedilatildeo por meio da reproduccedilatildeo do espaccedilo como accedilatildeo planificadora em que o espaccedilo do habitar aparece como algo secundaacuterio

O uso do solo urbano seraacute disputado pelos vaacuterios segmentos da socieshydade de forma diferenciada gerando conflitos entre indiviacuteduos e usos pois o processo de reproduccedilatildeo espacial envolve uma sociedade hierarquizada dividida em classes produzindo de forma socializada desse modo a cidade como trabalho social materializado eacute apropriada de forma diferenciada pelo cidadatildeo Na sociedade capitalista o ac~so ao solo urbano orientado pelo mercado mediador fundamental das relaccedilotildees que se estabelecem nessa soshyciedade produz um conjunto limitado de escolhas e condiccedilotildees de vida Porshytanto a localizaccedilatildeo de uma atividade soacute poderaacute ser entendida no contexto urbano como um todo na articulaccedilatildeo da situaccedilatildeo relativa dos lugares naacute

t metroacutepole Nesse sentido deg uso nos remete agrave anaacutelise das relaccedilotildees sociais estabelecidas a partir da produccedilatildeo do espaccedilo onde os mecanismos domershy

cado determinaratildeo o acesso agrave propriedade privada pela possibilidade de pagamento do preccedilo do solo urbano Os fatores que determinaratildeo a formashyccedilatildeo do preccedilo vinculam-se principalmente agrave inserccedilatildeo de determinada aacuterea no espaccedilo urbano global tendo como ponto de partida a localizaccedilatildeo do tershyreao(no bairro e deste na metroacutepole) a acessibilidade em relaccedilatildeo aos lugashyres ditos privilegiados (escolas shopping centers centros de sauacutede de sershyviccedilos de lazer aacutereas verdes etc) acesso agrave infra-estrutura existente (aacutegua luz esgoto asfalto telefone vias de circulaccedilatildeo transporte) a privacidade e os fatores vinculados ao relevo que se refletem nas possibilidades e custos de construccedilatildeo23 A evoluccedilatildeo dos preccedilos todavia inter-relaciona-se com as condishyccedilotildees de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano no que se refere ao modo como se deshysenvolve a produccedilatildeo das condiccedilotildees gerais de reproduccedilatildeo dos custos gerados pela concentraccedilatildeo no solo urbano bem como pelas poliacuteticas de zoneamento ou de reservas territoriais aleacutem das modificaccedilotildees do poder aquisitivo dos hashybitantes Assim no embate entre o que eacute necessaacuterio ao processo de reproduccedilatildeo do capital e o que a sociedade exige deseja e sonha a metroacutepole se estrutura a paisagem ganha sua configuraccedilatildeo novos conflitos eclodem

Finalmente a anaacutelise da metroacutepole feita a partir de um fragmento indicou-nos a presenccedila de uma tendecircncia a instauraccedilatildeo do cotidiano na metroacutepole ainda de modo desigual e contraditoacuterio mas presente nos interstiacutecios da vida como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais hoje que se daacute ainda de forma difetenciada nos lugares e em determinados estrashytos da sociedade revela-se como processo contraditoacuterio indicando os limishytes e possibilidades da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais em nossa sociedade A noccedilatildeo de cotidiano se eleva no plano da explicaccedilatildeo da realidade (natildeo sem dificuldades) permeandodefinindo as relaccedilotildees sociais na metroacutepole em constituiccedilatildeo de modo contraditoacuterio fragmentaacuterio como decorrecircncia das possibilidades que o processo de reproduccedilatildeo assume no Brasil Eacute assim que se pode dizer com certeza que o cotidiano natildeo se instaura em todos os niacuteveis da sociedade brasileira como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo mas tambeacutem natildeo se pode afirmar que ele natildeo estaacute em germe se estabelecendo com suas particularidades especiacuteficas na sociedade brasileira Assim o cotidiano em constituiccedilatildeo vai revelando seu processo em um fragmento do espaccedilo metroshypolitano Natildeo se revela como totalidade mas aponta um momento do proshycesso desigual e contraditoacuterio iluminando uma tendecircncia irreversf vel como processo histoacuterico produto determinado de uma eacutepoca

Desse modo o movimento dos capiacutetulos II e li revelam a articulaccedilatildeo entre os planos econocircmico poliacutetico e social com a passagem do processo de reproduccedilatildeo espacial assentada no uso para aquela invadida pelo valor de troca no processo que constitui a metroacutepole poacutes-industrial

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Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

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natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

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r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 16: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

Haacute indiacutecios que revelam essa tendecircncia na metroacutepole realizando-se no movimento de passagem do habitante de usador24 em usuaacuterio e da tenshydecircncia agrave transformaccedilatildeo do espaccedilo produzido como valor de uso para aquele reproduzido como valor de troca que gera a implosatildeo dos bairros da metroacuteshypole Aqui se dehheiacutea uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo (que definimos como constituiacuteda de um tempo efecircmero e por um espaccedilo amneacutesico) que redefine a praacutetica socioespacial colocando a reproduccedilatildeo em outro patamar Eacute nesse duplo movimento do processo de reproduccedilatildeo no niacutevel do espaccedilo e do indiviacuteshyduo que estaria a gecircnese do processo de constituiccedilatildeo do cotidiano que apashyrece em determinado momento da histoacuteria como condiccedilatildeo e lugar da reshyproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais nos termos definidos por Henri Lefebvre1S

Esses elementos caracterizam um momento especiacutefico da reproduccedilatildeo Nessa direccedilatildeo a anaacutelise da metroacutepole aparece como grande desafio illtrapasshysar o limite estreito da produccedilatildeo do espaccedilo como mercadoria e do cidadatildeo como forccedila de trabalho toma necessaacuterio refletir o espaccedilo urbano em seu sentishydo mais amplo o espaccedilo geograacutefico como produccedilatildeo social que se materializa formal e concretamente em algo passiacutevel de ser apreendido entendido e apr0shy

priado pelo homem como condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida Significa pensar os limites e as possibilidades da noccedilatildeo de cidade que aparece para noacutes como a expressatildeo mais contundente do processo de produccedilatildeo da humanidade sob o desenvolvimento da reproduccedilatildeo da vida humana ao longo da histoacuteria

A cidade como obra nasce da histoacuteria e como tal criaccedilatildeo da civilizashyccedilatildeo assemelha-se a uma obra de arte tanto em seu processo de produccedilatildeo quanto na necessidade de seu aprendizado o que significa que eacute preciso apreendecirc-la em sua multiplicidade Sua anaacutelise constitui um universo imbrishycado de situaccedilotildees contempla necessidades aspiraccedilotildees e desejos que se reashylizam como possibilidades A relaccedilatildeo entre o habitante e a cidade eacute atravesshy-sada por modos de apropriaccedilatildeo e usos envolvendo uma multiplicidade A anaacutelise do fenocircmeno urbano sublinha o que se passa fora do acircmbito do trashybalho mas ligado a ele acentuando com isso a esfera da vida cotidiana de modo que a reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano articulado e determinado pelo processo de reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais se apresenta mais amplamente do que as relaccedilotildees de produccedilatildeo stricto sensu (a produccedilatildeo de mercadorias) envolvendo momentos dependentes e articulados A vida cotidiana se definishyria como totalidade e nesse sentido guaidaria relaccedilotildees profundas com todas as atividades do humano - em seus conflitos em suas diferenccedilas Eacute para Henri Lefebvre na vida cotidiana que ganha sentido forma e constituiccedilatildeo o conjunto de relaccedilotildees que faz do humano e de cada ser humano u~ todo

A cidade como materialidade produto social e histoacuterico produzido no decurso da constituiccedilatildeo do processo ccedilivilizatoacuterio - como produto do processhy

so de constituiccedilatildeo da humanidade do homem - contempla um mundo objeshytivo que soacute tem existecircncia e sentido a partir e pelo sujeito Como produto histoacuterico traz as marcas da construccedilatildeo passada revelando uma multiplicidade de tempos e com isso as possibilidades futuras do processo de reproduccedilatildeo

Assim a cidade em sua pluralidade e multiplicidade revela o destino do homem Nessa perspectiva eacute antes vida accedilatildeo construiacuteda sobre a dialeacutetica entre produccedilatildeoapropriaccedilatildeoreproduccedilatildeo Mais do que uma forma material uma morfologia a problemaacutetica sobre a cidade se revela como problemaacutetica urbana isto eacute transcende a cidade para enfocar o homem e a sociedade urbana A sociedade urbana se revelaria como possibilidade de compreenshysatildeo do mundo moderno Nessa direccedilatildeo o sentido da cidade eacute o conferido pelo uso isto eacute os modos de apropriaccedilatildeo do ser humano para a produccedilatildeo de sua vida (e o que isso implica) Eacute um lugar que se reproduz como referecircncia e nesse sentido lugar de constituiccedilatildeo da identidade e da memoacuteria nessa dimensatildeo revelaria a condiccedilatildeo do homem como construccedilatildeo e obra Essa perspectiva torna imperativa a anaacutelise do processo de reproduccedilatildeo cuja noshyccedilatildeo envolve a produccedilatildeo e suas relaccedilotildees mais amplas ligando-se agraves relaccedilotildees que ocorrem no lugar do morar nas horas de lazer na vida privada guardanshydo o sentido do dinamismo das relaccedilotildees entre necessidades e desejos engloshybando tambeacutem as accedilotildees que fogem ou se rebelam ao poder estabelecido Assim a

cidade suscita o sonho e a imaginerie (que explora o possiacutevel e o impossiacutevel os efeitos da riqueza e da potecircncia) as relaccedilotildees consideradas satildeo logo por sua vez formais e reais praacuteticas e simboacutelicas A cidade e o espaccedilo tecircm muacuteltiplas funccedilotildees mas essas funccedilotildees natildeo esgotam o real de sorte que a cidade e o espaccedilo satildeo ao mesmo tempo ser poeacutetico e pressatildeo duramente positiva Os comportashymentos se descrevem os desejos satildeo ditos se exprimem a cidade e o urbano suscitam ao mesmo tempo um saber e um lirismo O urbano a cidade e seus entomos o espaccedilo ele pr6prio forma uma totalidade parcial e aberta ela messhyma niacutevel de totalidades mais vastas (a naccedilatildeo o territoacuterio nacional o Estado) Com que direito mutilar essa totalidade2Ii

o caminho da construccedilatildeo do pensamento geograacutefico se encontra na

possibilidade de elaboraccedilatildeo de um pensamento critico que permita pensar seu papel nu desvendamento do mundo moderno a partir lIacuteo momento em que natildeo reduzida deliberadamente agrave dimensatildeo empiacuterica Ao contraacuterio deve vislumbrar lO possibilidade de pensar o homem por inteiro em Stl~ dimematildeo humana e social que se abre tambeacutem para o imprevisto criando cada vez

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mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

43 42

natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

44 45

r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

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A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 17: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

mais novas possibilidades de resistirintervir no mundo de hoje O ser hushymano guarda muacuteltiplas dimensotildees seu processo de constituiccedilatildeo eacute sempre aquele da criaccedilatildeo da recriaccedilatildeo da superaccedilatildeo de uma existecircncia alienada logo de possibilidades A anaacutelise direciona-se ao entendimento da realidade urbana que se generaliza no mundo moderno impondo a constituiccedilatildeo de uma nova problemaacutetica espacial - aquela que diz respeito ao processo de construccedilatildeo do humano nas condiccedilotildees atuais

O debate em torno do processo de globalizaccedilatildeo remete-nos a uma discusshysatildeo sobre o mercado mundial e traz em sua esteira como fundamento da anaacutelishyse as consideraccedilotildees sobre as novas relaccedilotildees espaccedilo-tempo Alguns autores vecircem nesse novo processo a desterritorializaccedilatildeo do homem e de suas atividades Nosshyso caminho eacute radicalmente oposto O espaccedilo que se constitui em articulaccedilatildeo entre o local e o mundial antes de anular o espaccedilo realiza-se reproduzindo o espaccedilo como elemento estrateacutegico agrave reproduccedilatildeo da sociedade Novas atividades criam-se no seio de profundas transfonnaccedilotildees do processo produtivo em que o tempo se transfonna comprimindo-se Otempo do percurso eacute outro compactoushyse de modo impressionante mas as distacircncias continuam necessariamente a ser percorridas - por mercadorias fluxos de capitais infonnaccedilotildees etc - natildeo importa se em uma hora ou em fraccedilotildees de minutos se nas estradas de ciICulaccedilatildeo terrestres convencionais - auto-estradas que cortam visivelmente o espaccedilo marshycando profundamente a paisagem ou nas super highways os cabos de fibra oacutetica sateacutelites etc O que presenciamos hoje eacute a tendecircncia agrave eliminaccedilatildeo do tempo Na realidade natildeo se trata de sua aboliccedilatildeo total mas de sua substancial diminuiccedilatildeo como consequumlecircncia do espantoso desenvolvimento da ciecircncia e da tecnologia aplicados ao processo produtivo

Nesse processo constatam-se hoje profundas e amplas transfonnaccedilotildees espaciais mas em vez da anulaccedilatildeo do espaccedilo o que se revela eacute sua

-J reafrrrnaccedilatildeo pois eacute cada vez mais importante dentro da estrateacutegia da reproshyduccedilatildeo Por outro lado

no espaccedilo se encontram a brecha objetiva (socioeconOcircmica) e a brecha subjeshytiva (poeacutetica) No espaccedilo se inscrevem e ainda mais se realizam as diferenshyccedilas da menor agrave extrema Desigualmente iluminado desigualmente acessiacutevel cheio de obstaacuteculos obstaacuteculo ele mesmo diante de iniciativas modelado por eles o espaccedilo toma-se o lugar e o meio das diferenccedilas ( ) Obra e produto da espeacutecie humana o espaccedilo sai da sombra como um planeta de um eclipselt

Esse eacute O desafio que o entendimento da metroacutepole paulista nos coloca hoje Entendecirc-la em sua complexidade e em seu movimento significa entenshyder os horizontes nos quais se realiza a reproduccedilatildeo Portanro o trabaiho aqui

apresentado revela um modo possiacutevel de construir um pensamento geograacutefishyco sobre a cidade e o urbano no mundo moderno a partir da anaacutelise da metroacutepole Satildeo Paulo

NOTAS

I Georges Perec Eacutespeces despace Paris Galileacutee 1974 p 20 Nas citaccedilotildees sempre traduccedilotildees livres da autora salvo indicaccedilatildeo contraacuteria 2 Jean Duvignaud Lieux et non lieux Paris Ed Gali1eacutee 1977 3 Henri Lefebvre La production de lespace 3 ed Paris Anthropos 1986 4 Caracterizaccedilatildeo desenvolvida por Henri Lefebvre na obra de De lEtat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1976-1978 4v 5 Nos termos desenvolvidos por Henri Lefebvre em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne Paris LArche Eacutediteur 1958 1961 e 1981 6 Milton Santos A natureza db espaccedilo Satildeo Paulo Hucitec 1996 p 271 7 Henri Lefebvre La productiacuteon de [espace 8 A pesquisa de campo envolve esses dois planos como aparece nos capiacutetulos fi e m 9 Henri Lefebvre Espace et politique Paris Anthropos 1974 p 237-8 10 Essa atividade que se articula com a tendecircncia da transformaccedilatildeo do espaccedilo em mercadoria traz profundas mudanccedilas pois eacute uma atividade que redefine singularidades espaciais e reorienta o uso com novos modos de acesso 11 Henri Lefebvrele droit agrave la vile Paris Anthropos 1974 p 116 12 Termo traduzido diretamente do francecircs tal qual utilizado por Henri Lefebvre em De l Etat Paris Union Geacuteneacuterale dEacuteditions 1978 v IV 13 Milton Santos HA aceleraccedilatildeo contemporacircnea tempo mundo espaccedilo mundo (Conferencia de abertura do Simpoacutesio O novo mapa do mundo) in Santos et alli (orgs) Fim de seacuteculo e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Hucitec p 12middot22 14 M Cannevacci A cidade poliftJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 129 15 Olgaacuteria Matos A cidade e o tempo algumas reflexotildees sobre a funccedilatildeo social das lembranshyccedilas Espaccedilo amp Debates Satildeo Paulo nO 8 16 Georges Perec Eacutespeces despace p 14 17 Idem ibid 18 Pard Henri Lefebvre (La production de lespace p 452) o tempo se reduz rapidamente ao emprego obrigatoacuterio de espaccedilo percursos e caminhos trajetos transportes Os deslocamentos cotidianos pelas ruas no bairro espaccedilo habitado caracterizam como emprego de tempo - um tempo produtivista que captura o uso normatizando-o e esvaziando-o de conteuacutedo Um tempo que se liga agrave esfera especiacutefica da necessidade 19 Por exemplo em le droiacutet agrave kl ville Paris Anthropos 1974 e em De lEacuterat 20 Advertecircncia que consta do livro Espace et politique Paris Anthropos 1972 p 241 21 O movimento dos capiacutetulos fi e m revela que essa tendecircncia pode ser lSsinalada no processhyso de reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutePole Satildeo Paulo natildeo de modo homogecircneo mas em seus fragmentos 22 Ideacuteia tambeacutem desenvolvida em nossa tese de doutorado [A (re)produccedilatildeo db espaccedilo urbano] e retolllllda em nosso livro A cidade Satildeo Paulo Contexro 1992 23 Jaacute expusemos em nossa tese de dqltorado apresentada em 1987 a ideacuteia de que natildeo existe renda da terra urbana Na cidade o solo urbalo produzido tem seu preccedilo assentado no valor e

43 42

natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

44 45

r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

327

A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 18: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

natildeo em uma renda Conveacutem esclarecer que enquanto no campo a natureza eacute meio de produshyccedilatildeo na cidade a natureza eacute condiccedilatildeo para a produccedilatildeo da cidade - o que lhe confere o valor definido no processo de produccedilatildeo da cidade (no proce sso de trabalho) Wde A (re)produccedilatildeo do

espoccedilo urbano capo 2 24 Esse termo foi inventado em um seminaacuterio de poacutes-graduaccedilatildeo coordenado pelo professor Joseacute de Souza MatilderttiiS como necessidade de entender uma ideacuteia de Henri Lefebvre e para a qual acreditaacutevamos natildeo existir urna palavra em portuguecircs capaz de traduzi-la em seu sentido mais amplo Lefebvre propotildee usager e usager Assumimos por usager o usador Veja-se a propoacutesito Que se considere agora o espaccedilo daqueles que se nomeiam com palavras desajustadas e hostis (les usager) os usadores Natildeo existe palavra bem definida e possuindo uma forte conotaccedilatildeo para as designar A praacutetica espacial os margiualiza ateacute na linguagem A palavra usager tem alguma coisa de vago de suspeito chega mal a expressar enquanto signos de sua situaccedilatildeo se multiplicam e por vezes saltam aos olhos - Henri Lefebvre La production de I espace op cit p 418 De modo que para o usuaacuterio estatildeo os modos de consumo como o que se forja a identidade do consumidor enquanto para o usador estatildeo as relaccedilotildees de qualidade que implicam fluxos de sentidos ligados agrave realizaccedilatildeo de energias vitais o espaccedilo do corpo os alimentos o sono (Odette Carvalho de Lima Seabra A insurreiccedilatildeo do uso in Martins Js (org) O retomo da dialeacutetica Satildeo Paulo Hucitec p 78 25 Basicamente em sua obra em trecircs volumes Critique de la vie quotidienne 26 Henri Lefebvre De lEtat t IV p 270-1 27 Henri Lefebvre Hegel Marx Nietrsche Paris Casterman 1975 p 223

A FORMA DA CIDADE

Le vieux Paris n est plus (laforme dune ville

Change plus vite que helas Que Ie coeur dun morteI)

Paris change mais rien dans ma meacutelancolie

Na bougeacute Palais neufs eacutechafaudages blocs

Vieuxfaubourgs tou pour moi devient alleacutegorie

Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs

Ba udelaiacutere

A construccedilatildeo de um pensamento sobre a cidade repousa na necessidashyde de elaborar a problemaacutetica urbana que se revela em uma articulaccedilatildeo que ilumina as relaccedilotildees entre a cidade e o urbano Diferentemente da praacutetica socioespacial a problemaacutetica urbana se constroacutei no plano teoacuterico

Nossa preocupaccedilatildeo neste primeiro capiacutetulo eacute desvendar o sentido da forma da cidade sob o aspecto da morfologia Esse eacute o ponto de partida bull desta anaacutelise pois o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano na metroacutepole Satildeo Paulo eacute percebido inicialmente como mudanccedila morfoloacutegica

Habitar a cidade eacute tecer por suas idas e vindas diaacuterias uma rede de fios entrelaccedilados de percursos geralmente articulados em tomo de alguns eixos diretores Se deixarmos de lado 0$ deslocamentos ligados ao ritmo do trabashy

44 45

r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

327

A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 19: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

r ~ ~

AS NOVAS RELACcedilOtildeES ESPACcedilOshyTEMPO

Satildeo Paulo eacute um palco de bailados russos Sarabandam a tiacutesica a ambiccedilatildeo as invejas os crimes E tambeacutem as apoteoses da ilusatildeo

Maacuterio de Andrade

i j

327

A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 20: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

A DIALEacuteTICA DO ESTRANHAMENTO-RECONHECIMENTO

Androcircmaca soacute penso em ti O fio daacutegua Soturno e pobre espelho onde resplandeceu outrora

De tua solidatildeo de viuacuteva e imensa maacutegoa Este mendaz Simionte em que teu pranto aflora

Fecundou-me de suacutebito afeacutertil memoacuteria Quando eu cruzava a passo novo o Carrossel

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a histoacuteria) Depressa muda mais que o coraccedilatildeo de um infiel)

Soacute na lembranccedila vejo esse campo de tendas Capiteacuteis e cornijas de esboccedilo indeciso

A relva os pedregulhos com musgo nas fendas E a muiccedilalha a brilhar nos ladrilhos do piso2

Ali havia outrora

Teria a grande cidade o destino da antiga Troacuteia O futuro que se abre aos cidadatildeos eacute o aquele do exflio e da escravidatildeo Estariaacute a cidade fadada a pershymanecer apenas na memoacuteria Seria o estranhamento o mais novo produto do processo de wbanizaccedilatildeo em curso estabelecido como consequumlecircncia direshyta do fenocircmeno de implosatildeo-explosatildeo da cidade Estaria a existecircncia humana ameaccedilada na metroacutepole diante da impossibilidade de o homem dominar o espaccedilo da vida e reconhecer-se como tal Quais as condiccedilotildees concretas em que se realiza a reproduccedilatildeo do espaccedilo social hoje na metroacutepole

O processo que produz a cidade como estranhamento revela uma realishydade a reproduccedilatildeo da cidade que eacute exterior ao homem mostrando em toda a sua plenitude o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como alienaccedilatildeotilde ~ essa eacute a conclusatildeo deste trabalho ideacuteia que pretendemos desenvolver nesteacutecapiacutetulo

O ponto de partida de nossa pesquisa eacute o deseucontro entre o tempo de transformaccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - visto a partir das mudanccedilas no plano da morfologia e o tempo da vida de um indiviacuteduo Isto eacute o que percebemos hoje eacute que haacute uma contradiccedilatildeo ~ntre o tempo da vida - que se expressa na vida cotidiana (tempo e espaccedilo que medem e determinam as relaccedilotildees sociais) e o tempo de transformaccedilatildeo da cidade que produz no mundo moderno particularmente na metroacutepole formas sempre fluidas e sempre cambiantes que podem ser entendidas em toda a sua extensatildeo no lugar nos atos da vida cotidiana revelando no horizonte nova articulaccedilatildeo

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entre espaccedilo e tempo tendo como limite uacuteltimo o esvaziamento dos espaccedilos apropriados A morfologia com elemento de anaacutelise revela o que persiste e o que muda a harmonia e as rupturas o movimento entre tempo e espaccedilo no momento atual Hoje a morfologiawbana se transforma em tempo mais veloz o da sociedade produtivista que aparece no plano aatilde viacircagrave cotidiana como drama na medida em que a imposiccedilatildeo dos novos modos de uso do espaccedilo limita suas possibilidades reduzindo-o

Essa contradiccedilatildeo produz do ponto de vista do habitante o que chamashymos de estranha mento que por sua vez eacute a consequumlecircncia direta hoje do processo de reproduccedilatildeo espacial que produziu a explosatildeo-implosatildeo Diante de uma metroacutepole em que a morfologia urbana muda e se transforma de modo muito raacutepido os referenciais dos habitantes produzidos como condishyccedilatildeo e produto da praacutetica espacial modificam-se em numa outra velocidade produzindo a sensaccedilatildeo do desconhecido e do natildeo identificado Aqui as marshycas da vida de relaccedilotildees (e dos referencias da vida) tendem a desaparecer ou a se perder para sempre A ideacuteia do estranhamento liga-se agrave ideacuteia de que a atividade produtiva tende a apagar no capitalismo seus traccedilos marcando o desencontro entre sujeito e obra

Trata-se na realidade do estranhamento provocado pelas mudanccedilas no uso do espaccedilo impostas pelas novas funccedilotildees que os lugares vatildeo assumindo na metroacutepole moderna colocando o indiviacuteduo diante de situaccedilotildees mutantes impeditivas de uso-momento em que a cidade se reproduz como exterioridade em relaccedilatildeo ao sujeito

A constante renovaccedilatildeo-transformaccedilatildeo do espaccedilo wbano por meio das mudanccedilas das formas da cidade - produz transformaccedilotildees nos tempos urnanos da vida cotidiana das relaccedilotildees de vizinhanccedila dos modos e tempos de apropriashyccedilatildeoluso dos espaccedilos puacuteblicos por exemplo da rua Essas transformaccedilotildees dizem respeito ao desenvolvimento teacutecnico que alterou radicalmente o processo proshydutivo e com isso as necessidades de circulaccedilatildeo de pessoas mercadorias e informaccedilotildees bem como aqueles do setor financeiro imobiliaacuterio e as poliacuteticas do setor puacuteblico Nesse processo a metroacutepole aparece como quadro funcional em decorrecircncia4oacute que eacute planejada Estabelece-se assim no processo de reproshyduccedilatildeo do espaccedilo o conflito entre os interesses da produccedilatildeo do espaccedilo como

~ reproduccedilatildeo do poder que produz o espaccedilo de dominaccedilatildeo (em consonacircncia ou em Contradiccedilatildeo com os setores dinacircmicos da economia) a reproduccedilatildeo para a vida aponta novas contradiccedilotildees que emergem no processo entre a dominaccedilatildeo e aapropriaccedilatildeo doespaccedilo abundacircncia eraridade fragmentaccedilatildeo ehomogeneizaccedilatildeo As transformaccedilotildees satildeo provocadas por contradiccedilotildees internas ao middotprocesso de repfodnccedilatildeo geral da sociedade em que as rupturas que apax-cem no plano da morfologia se revelam como crise no seio da produccedilatildeo da cidade

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r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 21: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

r s

o espaccedilo conteacutem uma vida presente que se realiza com bases nos refeshyrenciais que se produzem ao longo do tempo (pelo uso) e que incorporam o passado (trabalho acumulado no espaccedilo visto pelas formas do construiacutedo que se expotildeem nos modos de apropriaccedilatildeo) e o possiacutevel que se vislumbra como futuro que se realiza concretamente no lugar no plano da vida cotidishyana A rapidez das transformaccedilotildees em funccedilatildeo das mudanccedilas no setor produtishyvo apoiada no desenvolvimento da teacutecnica reproduz a cidade em outro patashymar cada vez mais articulada com o plano mundial Assim a metroacutepole eacute a expressatildeo de uma realidade especiacutefica singular mas tambeacutem universal a da sociedade urbana que se constroacutei revelando-se no plano do espaccedilo mundial

As referecircncias urbanas apontam e marcam a relaccedilatildeo entre a construccedilatildeo da identidade (sua constituiccedilatildeo a partir da vida concreta) e da memoacuteria portanto a destruiccedilatildeo destes coloca a identidade cidadatildeometroacutepole em oushytro plano agora definido nos limites do mundo da mercadoria O movimenshyto de generalizaccedilatildeo da mercadoria-espaccedilo impotildee mudanccedilas substanciais ao uso redefinindo seu sentido por meio da imposiccedilatildeo de mudanccedilas ao modo de apropriaccedilatildeo invadido por normas bem definidas Na metroacutepole as novas necessidades da reproduccedilatildeo econocircmica impotildeem-se como ruptura na morfologia nesse processo cria-se o natildeo-reconhecimento do habitante com os lugares da vida e com o outro A morfologia de Satildeo Paulo neste final de seacuteculo parece revelar as formas destinadas a expressar o espaccedilo sem espesshysura - a apa rente ausecircncia de traccedilos do passado assolado pelas formas da modernidade que agem sobre a constituiccedilatildeo da identidade cidadatildeocidade indicando que as novas formas indicam novos conteuacutedos novos usos e modos de uso redefinindo as relaccedilotildees sociais

BAUDELAlRE O CISNE E A METAacuteFORA DO ESTRANHAMENTO

O que Charles Baudelaire anuncia em sua poesia O cisne eacute que na grande cidade o futuro aparece como desencontro entre a velocidade e o tipo de transformaccedilatildeo do espaccedilo construiacutedo e o desenrolar da vida que aiacute se realishyza produzindqestranhamentos Aponta com isso que a condiccedilatildeo do homem urbano eacute permeada por alienaccedilotildees O sentido da apropriaccedilatildeo do espaccedilo como atividade se revela como apropriaccedilatildeo do corpo e dos sentidos como um munshydo de desejo que supera a necessidade imediata e que portanto adquire sentishydo universal como processo de produccedilatildeo do humano Em sua transformaccedilatildeo inexoraacutevel a cidade se reproduz alastrando-se como normas de uso que seshygrega exclui eexpulsa Aqui o cisne pode ser entendido como signo de exshypulsatildeo segregaccedilatildeo eestranhamento diante da velocid~dedo processo de rlInsshyformaccedilatildeo da cidade

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Por intermeacutedio da pena do poeta a grande cidade aparece em sua multiplicidade revelando-se a partir de suas formas cambiantes O que se foi aqui eacute a histoacuteria acumulada nas formas da cidade em grande velocidade Em consequumlecircncia a cidade fica na memoacuteria do poeta como na lembranccedila de Androcircmaca ficou sua vida em Troacuteia O que se tinha parece ter permane- cido em um passado remoto A forma da cidade (aquela da morfologia)shyrevela as estabilidades e rupturas descompassos e equiliacutebrios - as possibilishydades e limites do uso os sentimentos e a percepccedilatildeo que o cidadatildeo cria da cidade revelando um espaccedilo-tempo apropriad-

Os ritmos diferenciados na esfera da produccedilatildeo invadem a esfera da vida cotidiana o tempo das forccedilas produtivas produz desigualdades e o desenvolvishymento desigual nas esferas da realidade Por sua vez a generalizaccedilatildeo do proshycesso de mercantiliacutezaccedilatildeo do espaccedilo urbano produz uma morfologia dotada de poder pela fragmentaccedilatildeo e pela impregnaccedilatildeo da normatizaccedilatildeo que reduz o uso - justificado pelo pensamento operacional que ordena e dirige a gestatildeo do espaccedilo Na base a propriedade privada do solo urbano rompe a relaccedilatildeo sujeitoshyproduto por meio da generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria (produzindo sua fragmentaccedilatildeo) e da dominaccedilatildeo do espaccedilo pelo poder poliacutetico

Assim as condiccedilotildees que se estabelecem na cidade para a vida do homem se opotildeem a sua necessidade de criaccedilatildeo e liberdade de agir A cidade como produto humano confronta-se com o proacuteprio homem e o estranhamento se revela como percepccedilatildeo da crise no seio do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Desse modo o estranhamento marca um desencontro entre habitante e cidade Como produto social a cidade se opotildee ao sujeito que surge na relaccedilatildeo imediata como estranhamento o desencontro entre a vida como modo de apropriaccedilatildeo e a cidade como produto condiccedilatildeo e produto da reproduccedilatildeo do capital Esse desencontro nasce do proacuteprio movimento do processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como momento da reproduccedilatildeo geral da sociedade em um momento histoacuterico definido e percebido na vida imediata a partir do habitar Esse fato permeia a vida cotidiana na metroacutepole e apesar de natildeo resumir as renovaccedilotildees urbanas esse desencontro pode ser constatado e analisado a partir delas

No caso do poeta a relaccedilatildeo de estranhamento eacute percebida no ato de tlanar pela grande cidade refere-se agrave vida em sua totalidade de sentidos realizando-se em um espaccedilo mais amplo

Pela primeira vez com Baudelaire Paris se toma objeto de poesia liacuterica Esta poesia natildeo eacute nenhuma arte nacional e familiar pelo contraacuterio o olhar alegoacuterishyco a perpassar a cidade eacute o olhar do estranhamento Eacute o olhar do flacircneur cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida viuooura 00 homem da cidade grandeJ

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A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 22: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

A nosso ver o poema o cisne pode ser lido como poema que aponta o novo sentido do tempo na sociedade moderna um tempo agora determinado de forma cada vez mais marcante pela teacutecnica em funccedilatildeo das necessidades do processo produtivo A aceleraccedilatildeo contemporacircnea produz na cidade a acelerashyccedilatildeo das formas que em pouquiacutessimos anos parecem modificar-se inexoravelmente trazendo como consequumlecircncia uma situaccedilatildeo de conflito pershycebida como estranhamento produto do desencontro entre sujeito e objeto

Eacute diante dessa nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que se coloca a questatildeo do estranbamento pois o ritmo das mudanccedilas destroacutei as referecircncias urbanas que satildeo referecircncias da vida e com isso as bases de sustentaccedilatildeo da memoacuteria pela fragmentaccedilatildeo da identidade em que o espaccedilo e o tempo dominados pela troca tomam-se o espaccedilo e o tempo da mercadoria Esse novo quadro produz outras referecircncias que direcionam o uso do espaccedilo na cidade em um primeiro momento esvazia a rua pois ela se redefine em funccedilatildeo do uso do automoacutevel e da necessidade de circulaccedilatildeo de um volume sempre crescente de mercadorias de todos os tipos por outro lado assiste-se ao processo de generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria que muda o sentido do espaccedilo

As mas praccedilas o centro ou o mercado que satildeo referecircncias da cidade que ganham conteuacutedo por meio do uso que se engendra na praacutetica social produzindo certa ordem transformam-se radicalmente redefinindo com isso seu uso Nesse contexto eacute que natildeo haacute mais sentido o passo lento do jUlneur Se a ma permite sua existecircncia mudando seu passo na metroacutepole as vias de tracircnsito raacutepido cerceiam seus passos o fim da calccedilada tira o fliineur da rua joga-o nos slwpping centers que se assemelham agraves grandes construccedilotildees fascistas com suas falsas colunas gregas de imitaccedilatildeo de maacutermore e sua monumentalidade constrangedora

Havia o transeunte que se perde na multidatildeo mas tambeacutem havia ainda ojlacircneur que precisa de espaccedilo para agire que natildeo quer privar-se de sua privatizaccedilatildeo Ocioso caminhava como se fosse uma personalidade assim era o seu protesto contra a divisatildeo do trabalho que transforma as pessoas em especialistas Asshysim ele tambeacutem protestava contra a operosidade e eficiecircncia bull Se dependesse dele o progresso teria esse passo Mas natildeo foi ele quem teve a iacute1ltimagrave palavra foi Taylor que transformou em palavra de ordem abaixo ajlacircneries

Natildeo eacute agrave toa que a modernidade potildee fim agravejUlnerie pois as transformashyccedilotildees no processo de reproduccedilatildeo colocam-nos diaacutente de nova noccedilatildeo de temshypo em que o ritmo acelera explode As metroacutepoles se transformam em imashygens aguccedilando o sentido da visatildeo em detrimento-daquele do corpo

o que aqui fala eacute a mercadoria () um dos efeitos sociais mais notoacuterios das drogas consiste no encantamento que os viciados sob o efeito da droga descoshybrem no cotidiano O mesmo efeito a mercadoria extraiacute por sua vez da multishydatildeo que a embriaga e inebria6

o processo se inveacuterte a pressa expotildee uma transformaccedilatildeo no uso e em suas possibilidades agora ele se realiza pela mediaccedilatildeo da troca - esse eacute um ponto central no movimento da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano hoje e estaacute na base da nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo cuja mediaccedilatildeo eacute dada pelo uso revelanshydo as novas tensotildees na realizaccedilatildeo do humano na grande cidade como condishyccedilatildeo da reafirmaccedilatildeo do homem como sujeito Eacute assim que os ritmos das transshyformaccedilotildees aceleradas que ocorrem na cidade em seu processo de reprodushyccedilatildeo - pela transformaccedilatildeo dos sentidos e da relaccedilatildeo entre os indiviacuteduos shyaparece como a natildeo-realizaccedilatildeo da relaccedilatildeo social

O ritmo das transformaccedilotildees na cidade lidas por meio das novas formas da morfologiaacute marca nossa percepccedilatildeo do mundo e se liga da construccedilatildeo da humashynidade do homem (que se realiza como produccedilatildeo do mundo cuja dimensatildeo real e concreta eacute aquela que produz o espaccedilo como espaccedilo da vida como sua condishyccedilatildeo e seu produto) O que se questiona eacute a racionalidade imposta pela reprodushyccedilatildeo da cidade que se revela no triunfo do idecircntico apontando para o espaccedilo construiacutedo como necessidade da reproduccedilatildeo do capital A reproduccedilatildeo do espashyccedilo na metroacutepole revela a dimensatildeo do drama - o estranhamento invade a praacuteshytica do habitanter que por sua vez vecirc cada vez mais seu passo tolhido seu corpo limitado Eacute assim que se anuncia em Baudelaiacutere-como a ausecircncia da cidade reconhecida percebida por seus sentidos seus passos por todo o seu corpo Aqui a cidade tende a se reduzir ao olhar

Em Os olhos dos pobres Baudelaire retrata o luxo de um cafeacute em um dos bulevares parisienses visto pelos olhos de uma fannlia de pobres que maravilhados se deixam dominar pelos signos abstratos que comandam e limitam os acessos e comportamentos estabelecidos por uma ordem externa que paira sobre a sociedade sem contestaccedilatildeo

Tous en gueniles Ces trois visages eacutetaient extraordinairement serieux et ces six yeux contemplaient fixement lecirc cafeacute lWuveaux avec une admiration eacutegale mais nuanceacutee diversement par lacircge Lecircs yeux du pere disaient Quel cest beaux Que cest beaux on dirait que tout [or du pauvre monde est venu se porter dans ses mur Les yeux du petit garccedilon Que cest beaux que cest beaux mais c est une Maison ou peuvent seus entrer Ms gens qui ne sont paacutes comme IWUS - Quant aux yeux du plus petit ils eacutetaient trop facineacutes pour

-exprimer autre chouse quune joie stupide et profonde 7

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fi t

A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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J

capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

361

do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 23: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

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A reconstruccedilatildeo dos lugares limita o acesso enquanto a segregaccedilatildeo apashyrece como natural consentida aceita como fato em que a profunda desishygualdade se escancara diante de uma igualdade fOljada por comportamenshytos modos de vestir lugares de frequumlentaccedilatildeo em uacutema sociedade que se realiza em um mundo de objetos que passam a mediar a relaccedilatildeo entre indishyviacuteduos e de simulacros que tendem a esvaziar o conteuacutedo dos espaccedilos Em Satildeo Paulo uma orientanda presenciou um diaacutelogo em um ocircnibus quando este passava em frente ao Shopping Eldorado Duas pessoas conversavam sobre a beleza e a monumentalidade da obra e uma delas retrucou que era uma pena natildeo poderem entrar porque eram pobres e aquele natildeo era lugar para elas Revela-se uma situaccedilatildeo semelhante agravequela exposta por Baudelaire

f Com esse raciociacutenio queremos apontar para o fato de que o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo na metroacutepole aponta para o desaparecimento da cishydade como obra pela generalizaccedilatildeo do espaccedilo-mercadoria marcado por um movimento que submete o uso do espaccedilo agrave troca e as relaccedilotildees entre as pesshysoas a uma relaccedilatildeo entre objetos

Baudelaire ultrapassando uma preocupaccedilatildeo esteacutetica e formal com a cidade traz o sentido desta em seus trabalhos bem como um modo de vivecircshyla o que nos leva a refletir o sentido e a natureza da cidade em suas particushylaridades e naquelas dos processos histoacutericos definidos que a explicitam e que estatildeo na base da reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano O estranhamento revela assim a contradiccedilatildeo entre o sujeito e a obra Mas o que aparece como negatividade - o cidadatildeo exilado em meio a ruiacutenas - traz o sentido profundo de seu contraacuterio a positividade Eacute assim que a anguacutestia do poeta revela o drama vivido pelos habitantes da grande cidade e com isso revela a natureshyza socialda Cidade A contradiccedilatildeo (interna ao proacuteprio processo de construshyccedilatildeo do humano) eacute uma relaccedilatildeo que expotildee o drama

a luta eacute uma relaccedilatildeo traacutegica na qual as contradiccedilotildees se produzem e se consershyvam mutuamente ateacute o triunfo de um dos dois e sua superaccedilatildeo - ou ateacute a ruiacutena redproca A contradiccedilatildeo tomada em toda a sua objetividade eacute moacutevel a relashyccedilatildeo 16gica eacute uma expressatildeo abstrata A superaccedilatildeo eacute accedilatildeo vida vitoacuteria de uma das forccedilas que ultrapassa a outra transformando-a e se transformando ela messhyma elevando-se a um niacutevel mais altoS

A interpretaccedilatildeo que muitos autores fazem sobre a obra de Baudelaire reforccedila uma vertente pessimista e nostaacutelgica na anaacutelise da cidade que desconsidera o movimento acima exposto Eacute o caso de Cannevacci9 que escreve que no poema O cisne a cidade eacute cantada para ser denegrida como instrumento retoacuterico voltado agrave saudade onde o cidadatildeo moderno se

percebe como estranho isolado derrotado Ainda para o autor o canto urshybano se transforma em obsessatildeo sedutora e soacute pode ser expresso como anshyguacutestia apaixonada

Para Geacuterard Gasarian lO o poema se articula por uma dicotomia geral onde se unem duas forccedilas um sentimento passadista de luto ccedil o gesto por uma modernidade ligada ao presente Nessa perspectiva a cidade de Paris seria objeto de dupla postulaccedilatildeo contraditoacuteria vivida num eixo horizontal do tempo humano entre passado e presente I I Acreditamos no entanto que a anaacutelise feita pelo autor traz uma dificuldade Gasarian argumenta que

paraAndrocircmaca o cisne Oviacutedeo a negra (etc) o exIlio eacute uma condiccedilatildeo existenshycial que eles natildeo escolheram Para o poeta eacute o contraacuterio eacute uma condiccedilatildeo intelecshytual livremente assumida e vivida esta estrofel2 acentua uma melancolia pessoshyal que para o Autor estaria no coraccedilatildeo do poeta Tudo levaria a um sentimento de alienaccedilatildeo provocado em Baudelaire pela perda da velha Paris Nesta oacutetica que eacute aquela de todos os criacuteticos a abertura da segunda parte Paris change soaria como um golpe eu acuso como uma denuacutencia dos trabalhos de renovaccedilatildeo urbana empreendidos pelo Baratildeo de Haussmann nos anos 1850 acentuando a disparidade entre o coraccedilatildeo (que muda) da cidade e o coraccedilatildeo (fiel) do poeta a transformaccedilatildeo causaria um profundo distanciamento entre o poeta e o entorno o sujeito liacuterico acusaria a cidade transitoacuteria onde se sentiria cativo do caosI

Podemos detectar no que o autor escreve uma contradiccedilatildeo o poeta diante da cidade em transformaccedilatildeo estaacute tatildeo indefesoaprisionado quanto o cisne ou mesmo Androcircmaca e natildeo contraacuterio

Na realidade a nosso ver toda obra de arte estaacute aberta para outras posshysibilidades os poemas contidos em As flores do mal podem ser lidos sob outra perspectiva que natildeo aquela de uma criacutetica negativa da cidade Afinal como escreve Baudelaire na muacutesica como na pintura e ateacute mesmo na palavra escrita que eacute a mais positiva das artes haacute sempre uma lacuna comshypletada pela imaginaccedilatildeo do ouvinte14

Walter Benjaminls ao se referir ao cisne escreve que

a cidade em geral em constante movimento cai em torpor Toma-se fraacutegil como o vidro em relaccedilatildeo ao seu significado (Ua forma de uma cidadelMuda mas raacutepido - ai de mim - que o coraccedilatildeo de um mortal) A estrutura de Paris eacute fraacutegil ela eacute toda rodeada de sfrnbolos de fragilidade Siacutembolos da criaccedilatildeo - a negra e o cisne e siacutembolos histoacutericos - uAndrocircmaca viuacuteva de Heitor mulher de Heleno O denominador comum neles eacute a tristeza sobre o que foi e a falta de seacuteguranccedila quanto ao porvirEm uacuteltima anaacutelise aquilo em que amodernidade 1Iais se aproxima da antiguidade eacute nessa transitoriedade Sempre que aparece nas Fleurs du mal Paris ostenta essa marcal6bull

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Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

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RihliotfNI

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Page 24: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

Em sua anaacutelise Benjamin aponta para o conceito de caducidade (transhy

sitoriedade e mudanccedila) que vecirc na obra de Baudelaire e que estaria na origem de suas anaacutelises sobre a cidade de Paris naquilo que vai fundar sua ideacuteia de modemida~t~

o tiacutepico da poesia de Baudelaire eacute que as imagens da mulher e da morte se interpenetram numa terceira a de Paris A Paris de seus poemas eacute uma cidade submersa mais submarina do que subterracircnea Aiacute estatildeo bem marcados os eleshymentos primevos da cidade O decisivo em Baudelaire eacute no entanto um substrato social no idilio fuacutenebre da cidade o moderno O moderno eacute um acento primordial de sua poesia Mas eacute exatamente o moderno que sempre cita a histoacuteria primeva Isso ocorre atraveacutes da ambiguumlidade inerente agraves relashyccedilotildees e aos eventos sociais da eacutepoca Ambiguumlidade eacute a imagem visiacutevel e apashyrente da dialeacutetica a lei da dialeacutetica em estado de paralisaccedilatildeo Essa paralisia eacute utoacutepica e por isso a imagem dialeacutetica eacute uma quimera a imagem de um sonho Tal imagem eacute presentificada pela mercadoria enquanto fetiche puro e simples Tal imagem eacute presentificada pelas passagens e galerias que satildeo tanto a casa quanto a rua Tal imagem eacute presentificada pela prostituta que em hipostaacutetica uniatildeo eacute vendedora e mercadoria 17

Parece-nos que em Baudelaire nas Flores do mal em particular haacute uma consciecircncia da transformaccedilatildeo - como aponta Benjamin - e do que ela acarreta a perda e o estranhamento vividos na forma de dilaceramento mas tambeacutem de desencontro e natildeo como nostalgia simplesmente Mesmo porshyque a cidade muda mas essa mudanccedila eacute parcial pontual natildeo haacute inexoshyrabilidade nesse processo O tempo natildeo eacute linear como afirnta Gasarian na grande cidade os tempos se justapotildeem tanto quanto os espaccedilos Como afirshyma o criacutetico Baudelaire natildeo eacute contraacuterio agrave modernidade nesse sentido haacute outra possibilidade interpretativa para o cisne - o negativo do processo se transforma em seu positivo

O que Baudelaire aponta eacute o movimento contraditoacuterio que estaacute na base da instauraccedilatildeo da modernidade - o poeta revela com isso o drama o traacutegico que aparece como produto da contradiccedilatildeo impressa na transitoriedade vishyvida como condiccedilatildeo nova na grande cidade A cidade natildeo eacute imoacutevel Baudelaire vecirc o movimento presente no espaccedilo (paris) e em um tempo detenninado - a mudanccedila que se expotildee revelando um processo novo com Unta velocidade nova como determinante da condiccedilatildeo imposta ao cidadatildeo pela cidade em transformaccedilatildeo Daiacute a ideacuteia do estranhamento como conscishyecircncia ~o desencontro na imposiccedilatildeo do moderno - o sentido da reproduccedilatildeo indica que natildeo se destroacutei Paris (vieuxfoubougpalais ne~M os momentos

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da histoacuteria da cidade estatildeo presentes harmocircnica e conflituosamente isto eacute acumulados nas formas da cidade (e natildeo soacute na memoacuteria do poeta) Baudelaire apreende a mudanccedila em curso em suas novas determinaccedilotildees espaccedilo-temposhyrais construindo novas situaccedilotildees para o cidadatildeo dilacerado por alienaccedilotildees em que o poeta toma posiccedilatildeol8bull

Insisto no fato de que o poenta vislumbra um novo tipo de relaccedilatildeo entre espaccedilo e tempo cidade-cidadatildeo como consequumlecircncia do processo que proshyduz um novo modo de vida de ver e perceber a cidade Na metroacutepole todashyvia superpotildeem-se vaacuterios tempos em um mesmo espaccedilo - aquele que se transshyfOfnta e modifica em ritmo raacutepido e alucinante e aquele que persiste nesse processo o tempo da vida como diferenccedila As primeiras vatildeo evidentemente transformar o plano do vivido de modo radical Baudelaire no infcio do poema apela agrave lembranccedila de Androcircmaca e seu destino traacutegico em uma Troacuteia capturada e destruiacuteda Androcircmaca levada como escrava pelos venceshydores abandona Troacuteia mas continua viva e esse nos parece um dado imporshytante - apontando a positividade no processo

Para melhor compreender o mito de Androcircmaca recorremos agrave trageacutedia As troianas de Euriacutepedes (415 a C) Nessa obra o autor mostra o horror da guerra a captura de Troacuteia pelos gregos depois de uma luta enca rniccedilada de dez anos Androcircmaca perde na guerra o marido Heitor filho do rei de Troacuteia e o maior dos heroacuteis troianos e na captura da cidade vecirc seu filho uacutenico Astiacircnax ser jogado do alto das muralhas da cidade em ruiacutenas na condiccedilatildeo de derrotada vecirc-se transformada em escrava dos vencedores Eacute a laacutegrima dessa infeliz mulher que chora a morte do marido filho irmatildeos e o triste fim da cidade que rola de sua face atingindo o coraccedilatildeo do poeta Baudelaire fecundando uma triste lembranccedila O recurso agrave guerra de Troacuteia pode apontar para o fato de que a cidade muda com urgecircncia traacutegica em velocidade temporal imposta pela forccedila e pelo poder externos a ela Daiacute a sensaccedilatildeo de impotecircncia do cidadatildeo diante do processo transformador da cidade um destino que natildeo se relaciona com suas vontades e desejos que lhe eacute imposto e que tem o sentido de um destino traacutegico

Nesse contexto o mesmo poder traacutegico que se abateu sobre Troacuteia pareshyce ter-se abatido sobre Paris recortada e destruiacuteda pelos projetos urbaniacutestishycos do Baratildeo de Haussmann

que deu a si mesmo o nome de artiste deacutemolisseur artista demolidor] Senshytia-se como que chamado para sua obra o que enfatiza em suas memoacuterias Assim ele faz com que Paris se tome uma cidade estranha para os proacuteprios parisienses Natildeo se sentem mais em casa nela Comeccedila-se a tomar consciecircncia cio (a~ter desumano da gra1de metroacutepole ( ) A veniadeira nnaHdade das

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r j

obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

UFRGS Instituto de Geociecircncias

Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

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RihliotfNI

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Page 25: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

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obras de Haussmann era tomar a cidade segura em caso de guerra civil Ele queria tornar impossiacutevel que no futuro se levantassem barricadas em Paris 19

o paralelo da guerra pode natildeo ser exagerado pois em ambas as situashyccedilotildees o poder poliacutetico impotildee seu domiacutenio e sua loacutegica no espaccedilo dominado redefinindo as relaccedilotildees sociais pela reconstruccedilatildeodestruiccedilatildeo do espaccedilo Como decorrecircncia temos o estabelecimento de outra vida sob novos paracircmetros em um novo espaccedilo onde os referenciais se perderam e a cidade ficou na lembranccedila Nesse sentido o urbano parece impor-se em outra dimensatildeo A guerra aponta a ruiacutena e a devastaccedilatildeo mas tambeacutem a ruptura Androcircmaca conduzida como escrava para outra cidade exilada dilacerada pela trageacutedia da guerra continua viva e eacute na vida que estatildeo as possibilidades No diaacutelogo entre Androcircmaca e Heacutecuba (na mesma peccedila) em que ambas choram e lashymentam os males causados pela guerra Androcircmaca deseja a proacutepria morte

Androcircmaca A tua filha Polixena pereceu decapitada sobre o tuacutemulo de Aquiles sacrificada aos manes de insensiacutevel sombra Heacutecuba Ai Infeliz de mim Ah minha filha Impiedosa morte a tua Ah como pereceste lastimavelmente Androcircmaca Embora morta assim foi mais feliz na morte tua pobre filha do que eu serei na vida Heacutecuba Natildeo minha filha natildeo compares morte e vida Aquela natildeo eacute nada e esta eacute tudo eacute esperanccedila20

o conflito tem uma riqueza sua proacutepria superaccedilatildeo a construccedilatildeo da consciecircncia que emana da accedilatildeo Assim a evocaccedilatildeo a Androcircmaca pode ser revelador o sentido da trageacutedia grega eacute aquele que mostra os dilemas expotildee as contradiccedilotildees estranhamentos e reconhecimentos vida e morte derrotas e vitoacuterias como momentos indissociaacuteveis da construccedilatildeo do humano a supeshyraccedilatildeo do negativo pelo positivo

O mito de Androcircmaca usado por Baudelaire pode apontar para o fato de que a cidade muda com uma urgecircncia destrutiva tudo se perde de forma traacutegica uma vez que conflito aparece como drama Por outro laacutedo como escreve Bolleck21 o desespero eacute liberador ele conduz ao alargamento remarcaacutevel dos recursos expressives

O mesmo sentimento de exiacutelio em um mundo utilitaacuterio e do prestiacutegio do dinheiro dado por meio da posse de objetos hierarquiza os homens definindo suas relaccedilotildees sociais O momento da alienaccedilatildeo do homem no mundo preso ao universo do mundo da mercadoria onde o proacuteprio espaccedilo adquire essa condiccedilatildeo reforccedila-se na dimensatildeo espacial no esvaziamento

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do sentido possiacutevel da apropriaccedilatildeo do espaccedilo A normatizaccedilatildeo do espaccedilo indica uma tendecircncia no horizonte - o homem deixa de se afirmar na ativishydade de apropriaccedilatildeo O estranhamento se coloca como relaccedilatildeo com o outro da relaccedilatildeo na cidade O espaccedilo passa a ter preccedilo e o uso se submete ao valor

- middotmiddotmiddot-de troca - o que esvazia seu sentido - a intervenccedilatildeo no espaccedilo subtrai dos habitantes os espaccedilos onde se desenrola a vida e esta revela nos desejos mais profundos dos homens Nesse contexto a cidade vira fantasmagoria _ elevashyse independente e autocircnoma de sua produccedilatildeo social e humana

O poeta se sente diante do dilema de captar os momentos Para Baudelaire

haacute na via ordinaacuteria na metamorfose incessante das coisas exteriores um moshyvimento raacutepido que exige do artista idecircntica velocidade de execuccedilatildeo Para o perfeitoflacircneur o observador apaixonado eacute um imenso juacutebilo fixar residecircncia no numeroso no ondulante no movimento no fugidio e no infinito Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre ver o mundo estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo eis alguns dos pe_ quenos prazeres desses espiacuteritos independentes apaixonados imparciais que a linguagem natildeo pode definir senatildeo toscamente 22

Mais adiante escreve

Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidatildeo como se isso lhe parecesse como um reservat6rio de eletricidade Pode-se igualmente comparaacuteshylo a um espelho tatildeo imenso quanto essa multidatildeo a um caleidoscoacutepio dotado de consciecircncia que a cada um de seus movimentos representa a vida muacuteltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida Eacute um eu insaciaacutevel do natildeo-eu que a cada instante o revela e o experimenta em imagens mais vivas do que a pr6pria vida sempre instaacutevel e fugidia23

Afinal a arte pura segundo a concepccedilatildeo moderna eacute criar uma magia sugestiva contendo ao mesmo tempo o objeto o sujeito o mundo exterior e

I o proacuteprio artista24

Eacute possiacutevel interpretar o recurso que Baudelaire faz agrave trageacutedia (especifishy

I camente no que se refere agrave guerra de Troacuteia) para pensar de forma menos inflexiacutevel sobre as possibilidades que o poema coloca para interpretaccedilotildees muacuteltiplas em funccedilatildeo do Contexto em que Androcircmaca aparece nas trageacutedias de EuriacutepedeslS

por exemplo Portanto o poeta constroacutei uma analogia que aponta para o dilaceramento do habitante em face das mudanccedilas profundas e repentinas do espaccedilo da grande cidade em ritmo a1ucinante (em um tempo de transformaccedilatildeo semelhante ao de uma guerra - raacutepido e devastador) e a

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Biblioteca

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 26: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

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capacidade de assimilar a transformaccedilatildeo que surge como perda inexoraacutevel no plano da representaccedilatildeo Nesse sentido Baudelaire antecipa o final do seacuteculo XX pois ao analisar a modernidade descobre seu caraacuteter efecircmero e a velocidordfd~~o ritmo que faz tudo que eacute soacutelido desmanchar no ar - vislumbrando a nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo

Assim interpretada a cidade eacute muito mais do que formas que se modishyficam rapidamente Eacute por isso que analisamos o poema como metaacutefora do estranhamento do habitante da grande cidade decorrente da imposiccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo natildeo como leitura pessimista da cidade A constituiccedilatildeo da sociedade urlana leva as uacuteltimas consequumlecircncias a separaccedilatildeo entre o homem e a natureza transforma os coacutedigos os siacutembolos da sociedashyde industrial por meio da restituiccedilatildeo de seus elementos inserindo-se de novO

modo no urbano

Tambeacutem diante do Louvre uma imagem me oprime penso em meu grande cisne quando em fuacuteria o vi Qual exilado tatildeo ridiacuteculo e sublime Roiacutedo de um desejo infindo e logo em ti

Androcircmaca agraves cariacutecias do esposo arrancada De Pirro a escrava gado vil trapo terreno Ao peacute do ermo sepulcro em ecircxtase curvada Triste viuacuteva de Heitor e apoacutes mulher de Heleno

Em algueacutem que perdeu o que o tempo natildeo traz Nunca mais nunca mais Nos que mamam da Dor E das laacutegrimas bebem qual loba voraz Noacutes 6rfatildeos que defmham mais do que uma flor

Assim a alma exilada agrave sombra de uma faia Uma lembranccedila antiga me ressoa infinda Penso nos marujos esquecidos numa praia Nos p~as nas galeacutes em outros ainda 2oacute

Assim o cisne aponta para o estranhamento do cidadatildeo diante de uma nova ordem imposta diante de wna cidade construiacuteda onde a natureza cede terreno sem cessar ateacute d~r em meio ao construiacutedo A poesia desnuda o sentido da mudanccedila dos ritmos da tranSformaccedilatildeo o que permite pensar a cidade onde pulsa o vivido contido nas formas que se transformam exigindo nova cohduta novo modo de vida nova forma de sentir a cidade Agrave medida que o tempo ciacuteclico se submete invadido pelo tempo linear da sociedade produtivista impressa na configuraccedilatildeo espacial um novo ritmo se instaura

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Assim a sociedade urbana em constituiccedilatildeo coloca-nos diante do transhysitoacuterio da tendecircncia agrave diSSOluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais que ligam os homens entre si e as relaccedilotildees entre os homens e seus objetos implishycando uma metamorfose dos valores de uso que servem de suporte agrave socieshydade Com isso se transforma constantemente o lugar e se produz a perda das referecircncias espaciais que tendem a dissipar a consciecircncia urbana na metroacutepole mudando haacutebitos e comportamentos bem como formas de aproshypriaccedilatildeo A anaacutelise morfoloacutegica revela assim o que haacute de mais interno ela eacute um referencial da vida por isso snstenta a memoacuteria porque os ritmos da vida cotidiana se articulam com aquele da duraccedilatildeo das formas de sua contishynuidadedescontinuidade permanecircnciaruptura

O filme Avalon de Berry Levinson ilustra bem o que estamos tentanshydo dizer Nele haacute o processo de esfacelamento do indiviacuteduo e de fragmentashyccedilatildeo da fanulia decorrente da rapidez da transformaccedilatildeo da cidade que apareshyce de forma inequfvoca na cena final quando de sua cadeira em um asilo o personagem central revela ao neto jaacute adulto

Haacute alguns anos fui ver a casa em Avalon Natildeo estava mais laacute Natildeo eacute s6 a casa mas toda a vizinhanccedila Fui ver o salatildeo onde eu e meus irmatildeos costumaacutevamos tocar tambeacutem natildeo existia mais Natildeo s6 ele mas o mercado onde faziacuteagravemos nossas compras tambeacutem Thdo desapareceu Fui ver o lugar onde Eva morava Natildeo existe mais Nem a rua existe mais nem mesmo a rua Entatildeo fuiacute ver o clube noturno do qual fui dono e graccedilas a Deus estava laacute Por um minuto achei que eu nunca tivesse existido27

Esse trecho aponta a existecircncia praacutetica da abstraccedilatildeo que ocorre em um momento histoacuterico real e concreto a separaccedilatildeo e o desencontro entre o homem e a cidade no contexto de sua reproduccedilatildeo que se concretiza na sepashyraccedilatildeo entre uso e valor de uso valor de uso e valor de troca Nesse processo assiste-se agrave prevalecircncia da troca sobre o uso e com isso o uso distancia-se do valor de uso e da troca conflito que atinge seu aacutepice quando o espaccedilo se toma objeto que se compra e vende e reproduz-se como tal Trata-se do mesmo tema abordado por Baudelaire o estranhamento do homem diante de um lugar que se transforma em uma escala de tempo menor do que aqueshyla da vida humana de uma cidade reproduzida como exterioridade

O sentido do tempo impotildee novos padrotildees e formas de adaptaccedilatildeo e um novo sentido para o homem na metroacutepole impondo a ideacuteia do efecircmero como caracteriacutestica fundamental da modernidade A metroacutepole que se transfonna em vertiginoso e contiacutenuo jogo de impressotildees breviacutessimas aponta a consshy

truccedilatildeo d~ um mundo sem espessura sem mc-n6riacirc pois a fluiuet- dimina a sensaccedilatildeo do que dura e persiste destruindo a identidade habitante-lugar A

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tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 27: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

tendecircncia agrave queda dos referenciais o desaparecimento das marcas do passashydo histoacuterico na e da cidade (que ocorre com a destruiccedilatildeo dos bairros com a construccedilatildeo das vias de transito raacutepido) transformam a vida atomizando-a e acentuando os sentimentos de anguacutestia e solidatildeo presentes na grande cidashyde pelo distanciamento entre o homem e o outro pela dissoluccedilatildeo das relashyccedilotildees sociais pelo esfacelamento das relaccedilotildees familiares pela mudanccedila das relaccedilotildees dos homens com os objetos pela perda do conteuacutedo do trabalho e pela reduccedilatildeo dos modos de uso do espaccedilo Com isso ocorre o rompimento do modo de vida tradicional encerrando-se a unidade profunda que estava na base das antigas relaccedilotildees

O processo de fragmentaccedilatildeo no processo de produccedilatildea espacial revelashyse com toda a sua forccedila no niacutevel da vida cotidiana em que a vitoacuteria do valor de troca sobre o uso aparece em todo o seu conteuacutedo dramaacutetico Essa vitoacuteshyria expressa-se tambeacutem por meio das formas de dominaccedilatildeo que se estabeleshycem em todos os niacuteveis da vida do habitanteenglobando o conjunto das relaccedilotildees sociais que se processam na vida cotidiana pelas reduccedilotildees corresshypondentes do ser humano agrave passividade como a vida social e poliacutetica presa ao espetaacuteculo da mercadoria Nessa direccedilatildeo a cidade transforma-se no esshypetaacuteculo do consumo as ruas redimensionam-se e ganham outro conteuacutedo que elimina o luacutedico transformando-se em lugar de passagem O ritmo da rua passa a ser determinado pelo ritmo dos meios de transporte submetidos agrave esfera da produccedilatildeo A significaccedilatildeo de uma nova ordem de troca cria um novo modelo de vida A sociedade empobrecida tende a reduzir-se a signos o corpo ao olhar e consequumlentemente o habitante a espectador

Oacute maravilha dos sentidos Planava sobre a novidade (tudo ao olhar nada aos ouvidos) Um silecircncio de eternidade28

As transfonnaccedilotildees espaciais reveladas nas formas transitoacuterias da cidashyde se estabelecem hoje como rupturas na morfologia (noccedilatildeo que introduz a ideacuteia de ruptura) percebidas no plano da vida cotidiana em que estranhamento eacute produto do processo de implosatildeo do bairro As rupturas colocam o habitante diante da subtraccedilatildeo do conhecido em um quadro comshyposto por ausecircncias e vazios por rostos e objetos desconhecidos Aquilo que eacute estranho passa a dominar o universo da vida colocando o habitante na posiccedilatildeo de defensiva vigilacircncia

Hcrrlveis as ~idadcsf

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Vaidades e mais vaidades Nada de asas Nada de poesia Nada de alegria Oh Os tumultuaacuteFios das ausecircncias Pauliceacuteia a grande boca de mil dentes E os jorros dentre a liacutengua trissulca de pus e de mais pus de distinccedilatildeo Giram homens fracos baixos magros Serpentinas de entes frementes a se desenrolar

Estes homens de Satildeo Paulo todos iguais e desiguais parecem-me uns macacos uns macacos

Aqui Baudelaire se encontra com Maacuterio de Andrade Paris e Satildeo Paulo se parecem Joseacute Paulo Paes atenta para o fato de que

o tema da metroacutepole moderna aparece em Pauliceacuteia desvairada com o mesmo sentido que tem na poesia de Baudelaire onde segundo Guiney eacute siacutembolo da mateacuteria fria estaacutetica e indiferente criada pelo homem na sua tentativa de criar uma ponte entre si e o mundo exterior do insucesso da humanidade ante o problema da incompatibilidade entre espiacuterito e mateacuteria30

Eacute assim que o desvario da linguagem inovadora do poeta paraleliza o desvario da vida trepidante da metroacutepole por ele celebrada3 Haacute uma relashyccedilatildeo entre a tumultuosa interioridade do poeta e a natildeo menos tumultuosa exterioridade da sua pauliceacuteia que para Paes32 se anuncia no verso de abertura do primeiro poema do livro Pauliceacuteia desvairada

Satildeo Paulo Comoccedilatildeo da minha vida Trata-se ainda segundo Paes de uma simetria dialeacutetica inscrita mais da orshydem da polaridade de contraacuterios do que de alinhamento de semelhanccedilas31

Os autores buscam um sentido na vida a partir do sentido da cidade produzida como dilaceramento separaccedilotildees desencontros

O processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano vai-se constituindo por meio da eliminaccedilatildeo de pontos de encontro o lugar da festa tragando os rituais e seus misteacuterios eliminando referecircncias destruindo a memoacuteria socishyal e fragmentando o espaccedilo e as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos por meio da descaracterizaccedilatildeo de bairros inteiros

Na mesma direccedilatildeo em Curitiba revisitada Dalton Trevisan demonsshytra claramente esse estranhamento diante de uma cidade que se transforma

t~ inequivocamente Diz o poeta

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I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 28: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

I f

I que fim 6 cara vocecirc deu a minha cidade I natildeo tueconheccedilo Curitiba a IlUacutem jaacute natildeo conheccedilo

o poeta natildeo reconhece a cidade e natildeo se reconhece pois natildeo identifica mais nem formas antigas que lhe falagravenuacuteieacute vida nem os elementos que lhe caracterizavam e que lhe eram familiares

cada um para seu lado adeus nunca mais aos teus bares bordeacuteus inferninhos dancing

randevus cafetinas piranhas pistoleiros nenhum catildeo ou gato pelas ruas todos atropelados ( ) nada com a tua Curitiba oficial enjoadinha ufanista toda de acn1ico azul para turista ver da outra eu que sei

o autor estaacute tomado pelo sentimento de que a mudanccedila traz a morte

e os mortos quantos mortos uma rua 15 inteirinha de mortos a multidatildeo das seis da tarde na praccedila Tiradentes soacute [e mortos] ais e risos de mortos queridos mas vozes do uacutenico sobrevivente duma cidade fantasma Curitiba eacute apenas um assobio com dois dedos na liacutengua Curitiba foi natildeo eacute mais14

Trevisan assinala aleacutem da anguacutestia de ver um espaccedilo conhecidorecoshynhecido do cotidiano desfigurado o fato de que esses elementos satildeo cada vez mais definidos pelo mundial que anuncia a constituiccedilatildeo da sociedade urbana que produz um espaccedilo homogecircneo

Se os poetas espelham seus sentimentos sob a forma de versos os habishytantes o expressam em accedilotildees -lutando contra a oUFL por exemplo Eacute assim que se expressam em suas entrevistas A gente conhecia todo mundo e de repente isso aqui ficou tatildeo movimentado que estaacute difiacutecil achar rostos coshynhecidos diz Guilherme3s

bull Cada vizinho que sai eacute um ponto comercial que surge afirma Camargo Meu pai foi um dosfundadores do bairro era

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alfaiate e costurava com a luz do lampiatildeo Agora vem uma lei e me tira tudo assevera Joatildeo Eacute uma bomba que querem jogar no bairro diz Leopoldo Como que a corroborar o efeito bomba diz Wladimir vatildeo riscar nosso bairro do mapa um lugar cheio de vilas ares verdes e ruas pequenas E noacutes vamos para onde 36 A casa eacute uma graccedila cheia de enfeites como diz a dona a fachada eacute adornada e pintada de verde-piscina haacute quatro colunas e o piso de cacos de ceracircmica colorida em forma de mosaico Coisas dos anos 50 que o trator pode transformar em cacos escreve Carla Caffeacute37

bullA pesquisa mostra uma mudanccedila na relaccedilatildeo entre o habitante e o lugar como produto das novas condiccedilotildees impostas pela reproduccedilatildeo Eacute evidente que o adensamento urbano em todos os sentidos - produziu o fenocircmeno da valoshyrizaccedilatildeo na metroacutepole cada pedaccedilo eacute potencialmente dinheiro cada parcela da cidade se valoriza em uma espiral ascendente em funccedilatildeo do desenvolvishymento teacutecnico que permite aumentar o adensamento de infra-estrutura crishyando um cenaacuterio especulativo decorrente da valorizaccedilatildeo do espaccedilo

A reproduccedilatildeo de um espaccedilo definido pelas estrateacutegias imobiliaacuterias do capital industrial e do setor financeiro no contexto da economia globalizada implica outro dinamismo econocircmico que funda a construccedilatildeo de outra cidashyde O espaccedilo da metroacutepole capturado pelo novo dinamismo do mercado que se impotildee ao processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo como discurso teacutecnico e racional produz a metroacutepole mundial em funccedilatildeo do desenvolvimento das necessidades de acumulaccedilatildeo E esclarece-se o processo de alienaccedilatildeo presenshyte nos interstiacutecios do processo de reproduccedilatildeo da cidade o cidadatildeo preso ao universo do consumo submetido agraves relaccedilotildees que se estabelecem a partir daiacute pela extensatildeo do mundo da mercadoria vive a condiccedilatildeo das separaccedilotildees

Onde estaacute o estranhamento Na queda dos referenciais nas interdiccedilotildees ao uso nos limites impostos ao corpo na construccedilatildeo de urna morfologia urbana sempre cambiante A OUFL aponta para esses elementos ela surge para os habitantes como ruiacutenas da antiga morfologia Ela expotildee a realizashyccedilatildeo da vida subjugada a uma nova organizaccedilatildeo do tempo linear (que a partir do processo de produccedilatildeo invade toda a sua vida) e um espaccedilo subtraiacutedo agrave praacutetica pela reduccedilatildeo dos modos possiacuteveis dos usos onde a propriedade seshypara habitante e cidade Esse processo vai criando conflitos que tendem a estourar no plano do imediato como drama a condiccedilatildeo atual dos seres hushymanos dilacerada por muacuteltiplas alienaccedilotildees Eacute nesse niacutevel que explode como luta e reivindicaccedilotildees

O habitar eacute uma das dimensotildees da vida humana lugar de invenccedilatildeo e de reuniatildeo de pessoas de troca de informaccedilotildees Em nossa pesquisa eacutea partir dessa condiccedilatildeo que o habitante torna consciecircncia de uma vida coletiva surgida das experiecircncias cotidianas (da relaccedilatildeo com o vizinho da casa e do bairro)

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shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 29: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

shyJ

Essa atividade guarda em si uma relaccedilatildeo afetiva e simb6lica e nesse plano OS habitantes se identificam como membros de um grupo Nessa relaccedilatildeo tomam consciecircncia de sua situaccedilatildeo diante de espaccedilos mais amplos aqueles da metroacutepole porque o ser humano se realiza em outras dimensotildees que aquela do habitar Nesse contexto o bairro (e o ato de habitar) ganha nova dimensatildeo como novo modo de vida O modo de habitar se refere como vimos a uma apropriaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo Aqui o bairro serve de escudo diante do espaccedilo aberto violento e desconhecido de uma meshytr6pole com quase dez milhotildees de habitantes

A realidade aparece tambeacutem idealizada diante das possibilidades com a qual os habitantes se deparam O que se vecirc eacute que a ideacuteia de comunidade que permeia o discurso dos movimentos reivindicatoacuterios contra a renovaccedilatildeo urbana se aprofunda a partir da participaccedilatildeo dos habitantes no movimento no processo de participaccedilatildeo abandonam seu universo privado para expor-se em uma relaccedilatildeo com o outro Aqui se reconhecem como habitante do bairro a identidade passa inicialmente tambeacutem pela condiccedilatildeo de proprietaacuterios pela reafirmaccedilatildeo do poliacutetico Portanto os estranhamentos e reconhecimenshytos pontuam a praacutetica socioespacial revelando-se no ato de apropriaccedilatildeo

Este ato envolve espaccedilos diferenciados apropriados diferencialmente (lazer vida privada trabalho circulaccedilatildeo reuniatildeo) ~ nessa dimensatildeo que se revela o estranhamento na medida em que o espaccedilo reproduzido no moshymento atual faz-se com a constante e raacutepida destruiccedilatildeo das formas da cidashyde que contecircm acumulados os referenciais que sustentam a vida e que criam as condiccedilotildees concretas para as apropriaccedilotildees Revelada nas condiccedilotildees de existecircncia do sujeito nos lugares ocupados usados na organizaccedilatildeo do tempo a vida se realiza em atos de apropriaccedilatildeo (aqui se encontram as possishybilidades que se revelam nas condiccedilotildees do humano e de sua realizaccedilatildeo)38 O sentido da apropriaccedilatildeo 39 traz em sua profundidade a relaccedilatildeo entre necessishydade e desejo espaccedilo e tempo produccedilatildeo-apropriaccedilatildeo-reproduccedilatildeo em seu movimento em uma praacutetica socioespacial condiccedilatildeo da existecircncia humana (ligando o real e o possiacutevel)

Nessa direccedilatildeo se introduz a apropriaccedilatildeo como o terceiro termo da relashyccedilatildeo estranhamento-reconhecimento A cidade analisada na perspectiva do movimento obraproduto (um movimento que vai do uso para o valor de troca) coloca-nos pela apropriaccedilatildeo diante do problema da construccedilatildeo do humano Isto eacute o homem se apropria de sua essecircncia universal de uma maneira universal quer dizer enquanto homem totalw A apropriaccedilatildeo ilushymina cisotildees e desencontros fazendo com que a separaccedilatildeo apareccedila como drama na atividade praacutetica do indiviacuteduo na vida cotidiana Eacute por sua vez

um aspecto do devir humano o homem se percebe em sua condiccedilatildeo tomanshydo consciecircncia de sua situaccedilatildeo no mundo e a partir daiacute desperta como posshysibilidade

Aqui ganha sentido a observaccedilatildeo inicial sobre a noccedilatildeo de produccedilatildeo

A anaacutelise da produccedilatildeo do homem por ele mesmo mostra que todas as definishyccedilotildees filosoacuteficas de sua essecircncia humana correspondem a momentos desta proshyduccedilatildeo O tenno produccedilatildeo eacute essencial porque ele envolve os outros e os exshyplica porque ele envolve e supotildee o homem e a natureza a accedilatildeo e o conhecishymento Esta palavra eacute agraves vezes trivialmente compreendida porque tomada na sua escala miacutenima - significa toda a grandeza humana Sua verdade natildeo eacute ainda uma evidecircncia porque hoje ainda a vida humana natildeo se produz de forshyma consciente e natildeo compreende sua produccedilatildeo Ela se move no fetichismo modo de existecircncia e de consciecircncia O objeto produzido pelo trabalho se opotildee ao homem como ser estranho como uma potecircncia independente41

Assim a anaacutelise do processo de produccedilatildeo do espaccedilo urbano nos coloca diante de transformaccedilotildees profundas passiacuteveis de serem apreendidas no plashyno do vivido Esse eacute o plano do estranbamento

No plano da reproduccedilatildeo do espaccedilo o movimento estranhamentolrecoshynhecimento se revela como momento da reproduccedilatildeo que gera a implosatildeo da cidade como aprofundamento da segregaccedilatildeo da imposiccedilatildeo do homogecircneo sobre o que difere percebido no plano do local e do vivido como a tendecircncia de imposiccedilatildeo do valor de troca sobre o uso no plano da sociedade aparece como momento da instauraccedilatildeo do cotidiano Em meio a um processo proshyfundo de mudanccedilas redefinem-se as dimensotildees da cidade a esteacutetica das formas urbanas os usos do espaccedilo puacuteblico as relaccedilotildees entre os indiviacuteduos e entre estes e a metroacutepole a reproduccedilatildeo da metroacutepole pontuada por vias de tracircnsito raacutepido (que marcam a construccedilatildeo da cidade do automoacutevel) eclipsa a rua esvazia o centro produz o shopping center etc

O movimento do estranhamento-reconhecimento se realiza a nosso ver como modo de perceber no espaccedilo da realizaccedilatildeo da vida o desencontro cidadatildeo-metroacutepole momento do processo atual de reproduccedilatildeo do espaccedilo nos interstiacutecios da produccedilatildeo de uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo Invadida por novo ritmo as transformaccedilotildees morfoloacutegicas da grande cidade impotildeem a reconstruccedilatildeo de novo DIodo de relaccedilatildeo entre o habitante e o espaccedilo Portanshyto esse movimento refere-se ao processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbashyna de um lado e do espaccedilo mundial de outro realizando-se de modo contrashyditoacuterio Em decorrecircncia desse processo por exemplo funda-se nova idenshytidade em que o hJrbitante do lugar - invadido pelo mundial - vecirc sua

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particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 30: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

particularidade em questatildeo Nesse momento a ruptura produz outro plano em que o indiviacuteduo se reconhece e se identifica em um espaccedilo mais amplo pela mediaccedilatildeo da metroacutepole entrando em contato com o mundo Por meio dessa mediaccedilatildeo o local se articula de modo inexoraacutevel com o plano do munshydial - o da constituiccedilatildeo da sociedade urbana - com a tendecircncia agrave instaurashyccedilatildeo do cotidiano agrave extensatildeo do mundo da mercadoria ao aprofundamento das relaccedilatildeo de mercado revelando a constituiccedilatildeo de nova urbanidade que afronta e explica esse processo de constituiccedilatildeo de uma identidade absshytrata fundada no fato de que o habitante pertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada

De um lado haacute destruiccedilatildeo ruiacutena e estranhamento de outro haacute reenconshytros e reconhecimentos O personagem do filme Avalon reconhece o clushybe noturno que continuava no mesmo lugar como prova de sua proacutepria existecircncia como testemunho da cidade sustentando a memoacuteria servindo de elemento de persistecircncia apoiando a identidade lembrando-o Haacute a nosshyso ver uma densidade na relaccedilatildeo estranhamento-reconhecimento que apela para a resistecircncia a partir da consciecircnCia que cria a possibilidade

Os marujos esquecidos numa praia apontam a possibilidade posta diante de seus olhos ao vislumbrarem o oceano em sua imensidatildeo Mas os sonhos natildeo estatildeo apenas fora da cidade no horizonte traccedilado entre o ceacuteu e o mar Os sonhos se encontram entre os muros da cidade

Cidade a fervilhar cheia de sonhos onde O espectro em pleno dia agarra-se ao passante Flui o llUacutesteacuterio em cada esquina cada fronde Cada estreito canal do colosso possante42

ESPACcedilO AMNEacuteSICO E TEMPO EriMERO

A cidade obra humana revela as possibilidades do processo civilizatoacuterio Como momentopr(selllccedil a cit4de soacute existe pela acumulaccedilatildeo de tempos do passado mas a perda dos referenciais urbanos produto da rapidez com que a morfologia se transforma redefine a praacutetica socioespacial e nos faz mergulhar hoje na vertigem do vaacutecuo A cidade obra humana feita para durar produto do tempo acumulado entra em contradiccedilatildeo com a cidade que se refaz para e pela troca ceorientando a praacutetica socioespacial Aqui o espaccedilo em constante mutaccedilatildeo e o tempd acelerado produzem nova dinacircmica O desvendamento do sentido da metroacutepole impotildee ao pensamenshyto nesse momento da histoacuteria nova relaccedilatildeo espaccedilo-ltmpu que impregna

delimita e orienta a praacutetica espacial metropolitana e que se constitui como elemento de anaacutelise articulada com aquela de reproduccedilatildeo (lato sensu)

Como vimos ateacute aqui o ato de apropriaccedilatildeo se realiza em um espaccediloshytempo definido o tempo natildeo eacuteuma ilusatildeo ele se revela no modo de apropriaccedilatildeo do espaccedilo isto eacute no uso do espaccedilo Este por sua vez eacute a materializaccedilatildeo concreshyta de relaccedilotildees sociais que se realizam - em determinado momento - como emshy

prego de tempo43 Tal raciociacutenio aponta para a indissociabilidade do espaccedilo e do tempo Essa indissociabilidade espaccedilo-tempomiddotse realiza pela mediaccedilatildeo do uso comoacute modo de apropriaccedilatildeo O periacuteodo atual eacute marcado a nosso ver por uma nova relaccedilatildeo espaccedilo-tempo que invadida pela quantificaccedilatildeo toma-os abstrashytos A condiccedilatildeo de instantaneidade transforma o sentido dos termos levandoshynos a adjetivar o tempo como efecircmero e o espaccedilo como amneacutesico

O tempo como uso isto eacute como duraccedilatildeo da accedilatildeo no espaccedilo revelado nos modos de apropriaccedilatildeo eacute hoje um tempo acelerado comprimido imshyposto pelo quantitativo A quantificaccedilatildeo do tempo e do espaccedilo atravessa as relaccedilotildees presentes na sociedade penetra o universo da vida cotidiana do cidadatildeo natildeo s6 pela constituiccedilatildeo de uma rotina organizada mas pelos atos gestos modos de uso dos lugares da vida perfeitamente homogecircneos Como a quantificaccedilatildeo do tempo44 o capitalismo invade a sociedade a necessidade de um novo tempo de produccedilatildeo atinge as relaccedilotildees cotidianas e transforma os usos porque o proacuteprio espaccedilo condiccedilatildeo e produto da produccedilatildeo tambeacutem se transfol1lllf Espaccedilo e tempo abstratos redefinem constantemente os usos com isso os processos que criam a identidade acabam destruindo as condishyccedilotildees nas quais se gesta a memoacuteria coletiva Vivemos hoje na mutabilidade constante lei que se impotildee agrave reproduccedilatildeo espacial tomando atuais as palashyvtas de Goelhe para quem tudo se movimenta como se o mundo o mundo formado quisesse se desmanchar retomando ao caos e agrave noite e formar-se de novo E se o homem estivesse condenado segundo palavras de Richard Wagner a mover-se no tempo presente45

De um lado o tempo perde substacircncia com isso a praacutetica se toma fluida sem aderecircncia o espaccedilo por sua vez em constante mutaccedilatildeo marcashydo pela destruiccedilatildeo constante dos referenciais da vida urbana transforma-se em distacircncia Assim espaccedilo e tempo redefinidos aparecem como condiccedilatildeo de um processo de reproduccedilatildeo que tem no desenvolvimento teacutecnico sua peshydra de toque o tempo irradiado pela teacutecnica vira velocidade e o espaccedilo distacircncia a ser suprimida Espaccedilo e tempo tomados abstratos se esvaziam de sentido contribuindo para a produccedilatildeo de nova identidade a identidade absshytrata decorrecircncia da perda dos referenciais do empobrecimento das relashyccedilotildees sociais e como imposiccedilatildeo do desenvolvimento do mundo da mercadoshyria definida pelos paracircmetros da reproduccedilatildeo do capital no momento atual

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No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 31: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

No plano da vida cotidiana a imposiccedilatildeo de uma exigecircncia cada vez mais racional e teacutecnica ao processo de produccedilatildeo do espaccedilo daacute nova velocishydade agraves mudanccedilas que penetram de forma cada vez mais profunda criando um conjunto de escolhas cada vez mais limitado em uma morfologia que se esfacela transformando a praacutetica socioespacial A sucessatildeo de acontecimentos desconexos parece envolver a vida cotidiana em um turbilhatildeo de sensaccedilotildees sem sentido A velocidade impotildee uma revoluccedilatildeo agrave continuidade enquanto a destruiccedilatildeo dos referenciais urbanos impotildee a estranheza agraves relaccedilotildees entre o habitante e a cidade - como se a vida estivesse sendo determinada ou manishypulada por um elemento maacutegico que seguimos cegamente sem nos dar conta do feiticcedilo

Nesse contexto a espacialidade das relaccedilotildees sociais se inscreve em um espaccedilo que se reproduz tendencialmente sem referecircncias - esse eacute o processhyso que estaacute na gecircnese do que chamamos de espaccedilo amneacutesico Um processo que enfoca a ruptura uma mudanccedila que natildeo se apresenta como gradual era e natildeo eacute mais Nesse quadro a aceleraccedilatildeo do tempo toma a cidade obsoshyleta sem que tenha mesmo envelhecido A cidade que se vislumbra por suas formas como construccedilatildeo humana diz respeito agrave histoacuteria da humanidade associada agrave longa duraccedilatildeo ao analisarmos a metroacutepole paulistana perceshybemos que a velocidade degrada o eterno e o contiacutenuo impondo o tempo raacutepido Se de um lado ao sincrocircnico se impotildee o diacrocircnico os tempos se acumulam contraditoriamente impondo-se como simultaneidade de momenshytos diferentes de outro haacute uma aceleraccedilatildeo dos processos que orientam e determinam as transformaccedilotildees espaciais O tempo como presente aparece sem espessura e o passado como histoacuteria impressa nas formas da cidade vai aos poucos se diluindo submergindo diante da construccedilatildeo de uma nova morfologia que passa a ser marcada pela privaccedilatildeo da presenccedila Com o fenocircshymeno de curta duraccedilatildeo estamos vivenciando neste iniacutecio de seacuteculo a imshyposiccedilatildeo do tempo do efecircmero e transitoacuterio que se revela no modo do uso dos lugares da metroacutepole obrigando as pessoas a se readaptar constanshytemente agraves mudanccedilas impostas pela produccedilatildeo espacial

Daiacute a anguacutestia de Maacuterio de Andrade expondo o sentimento de solidatildeo em meio agrave multidatildeo uma ausecircncia que aparece na vida cotidiana

O bonde abre a viagem No banco ningueacutem Estou s6 estou sem46

Ou ainda

Ruas do meu Satildeo Paulo Onde estaacute o amor vivo Onde estaacute

Caminhos da cidade Corro em busca de um amigo Onde estaacute 41

Hoje na metroacutepole o tempo e espaccedilo homogecircneos tendem a se instituir como condiccedilatildeo necessaacuteria agrave reproduccedilatildeo A questatildeo que se coloca eacute como o homogecircneo se impotildee e consequumlentemente como se constituem as forccedilas que sobrevivem e resistem A reproduccedilatildeo do espaccedilo vai-se es~belecendo nesse contexto apontando para tendecircncia da impossibilidade do uso e com isso o rompimento do cidadatildeo em relaccedilatildeo ao lugar e com o outro O plano que a morfologia da metroacutepole revela eacute aquele de uma nova ordem imponshydo novos valores e comportamentos o que vai compondo nova identidade Nessa direccedilatildeo o uso que se revela no espaccedilo como modo da reproduccedilatildeo da vida - por meio dos modos apropriaccedilatildeo - duraccedilatildeo associa-se agraves regras de um espaccedilo normatizado e homogecircneo Os bairros apresentam caracteriacutestishycas cada vez mais transformadas derrubam-se casas para a verticalizaccedilatildeo destroem-se praccedilas que datildeo lugar a estacionamentos cortam-se aacutervores que nascem nas bordas dos traccedilados das vias de tracircnsito que se quer ampliar Por outro lado as estrateacutegias do setor imobiliaacuterio se impotildeem Desse modo pershycorre-se a metroacutepole sem que se percebam as nuances que historicamente marcaram as singularidades dos lugares da cidade produzidos como lugares da vida Thdo se parece inexoravelmente A ditadura do moderno se impotildee

O constante reconstruir do espaccedilo da metroacutepole modifica o uso que cada vez mais qormatizado revela a produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico em relaccedilatildeo direta com o tempo efecircmero Nessa direccedilatildeo o espaccedilo se reproduz na direccedilatildeo do homogecircneo com a profusatildeo de formas simeacutetricas que se imshypotildeem como uacutenico modelo possiacutevel ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estrateacutegias imobiliaacuterias locais ao mesmo tempo que mundial Eacute nesse contexto que se constitui a sociedade urbana impondo novOs padrotildees de comportamento a partir de predominacircncia do objeto (nas relaccedilotildees sociais) e da emergecircncia de um individualismo de massa bem como a criaccedilatildeo de uma ideologia que contempla a mercadoria transformada em signo que vai permear e redefinir as relaccedilotildees sociais e portanto a instauraccedilatildeo do cotidiano

A construccedilatildeo e a reproduccedilatildeo do cotidiano passa pela ideacuteia de que os homens se relacionam oom um conjunto de objetos que cada vez mais reshygem as relaccedilotildees entre os homens e satildeo convertiagraveos em eiementos ocircisnnshy

350 UFRGS 351 InstilulO de Geociecircncias

RihliCt

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 32: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

guidores na construccedilatildeo da sociabilidade ou de sua negaccedilatildeo pois as relaccedilotildees com os objetos substituem cada vez mais as relaccedilotildees diretas entre as pessoshyas Por sua vez a miacutedia se instala na vida cotidiana como programaccedilatildeo proshyfunda de todos os comportamentos Nesse contexto ao apropriar-se do obshyjeto o indiviacuteduo se realiza e se impotildee socialmente ao outro Na realidade esconde-se o fato de que o que ocorre eacute que o sujeito se despersonaliza

O que se produz eacute o mundo do espetaacuteculo permanente da celebraccedilatildeo do objeto que envolve o homem em um ambiente saturado de objetos que acaba provocando a ineacutercia e sua subjugaccedilatildeo O triunfo do objeto faz desashyparecer o homem isto eacute na resplandescecircncia do objeto o homem torna-se ausente e aiacute I) objeto aparece como sujeito Assim o processo de produccedilatildeo que cria uma massa de mercadorias se sobrepotildee ao trabalho humano e em seu desenvolvimento produz uma separaccedilatildeo abissal entre o sentido da mershycadoria o uso e seu valor Nesse contexto a mercadoria absoluta criou o maravilhoso espetaacuteculo do valor de troca No universo da mercadoria proshyduzem-se relaccedilotildees sociais que lhe transcendem mas que a colocam no censhytro do processo de realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo das relaccedilotildees sociais Ao longo do tempo a produccedilatildeo de um conjunto de relaccedilotildees sociais que ultrapassa efetivamente a produccedilatildeo englobando todas as relaccedilotildees sociais fora da faacutebrishyca criou a sociedade de consumo e para tanto revolucionou o modo de vida

Assistimos agrave emergecircncia do que Horkheimer chama de novo ser no mundo que se revela em um novo individualismo apontando novas forshymas de relacionamento entre as pessoas isto eacute a constituiccedilatildeo de novos comportamentos ligados ao estabelecimento do reino do objeto como efeito da fragmentaccedilatildeo do indiviacuteduo O homem alienado de si mesmo manipulashydo preso a um consumo programado que separa o homem do outro encershyra-o em seu universo pessoal porque o homem em sua existecircncia imediata real eacute o consumidor independente vinculado a um mundo de interesses privados em que os objetos se defrontam em um mundo de indiviacuteduos atomizados que no limite chegam a se hostilizar Nesse quadro o homem consumidor por excelecircncia eacute parte integrante da massa realidade opaca que aparece isenta de contradiccedilotildees - nem sujeito nem objeto mas sujeito e objeto de manipulaccedilatildeo48

No plano da reproduccedilatildeo do capital a metroacutepole transforma-se na cidade dos negoacutecios o centro da rede de lugares que se estrutura no niacutevel do mundishyal com mudanccedilas constantes nas formas A silhueta dos galpotildees industriais daacute lugar a novos usos ora substituiacutedos por altos edifiacutecios de vidro centros de negoacutecios slwpping centers ou mesmo igrejas evangeacutelicas como produto da migraccedilatildeo do capital para outras atividades econocircmicalt reforccedilando a centralishy

zaccedilatildeo econocircmica financeira e poliacutetica da metroacutepole A dinacircmica espacial da atividade econocircmica em curso que desconcentra a induacutestria da mC(troacutepole traz em seu lugar as atividades voltadas ao setor de turismo lazer cultura informaacutetica etc O pleno desenvolvimento do setor financeiro e dos serviccedilos

Nesse processo a metroacutepole eacute invadida por novas atividades como o desenvolvimento do setor hoteleiro a criaccedilatildeo de novos centros de lazer com suas novas estruturas arquitetocircnicas etc Nesse contexto assistimos agrave consshytituiccedilatildeo de novas centralidades e ao esvaziamento de outras em funccedilatildeo dos novos usos como consequumlecircncia das mudanccedilas nos setores econocircmicos que estabelecem uma hierarquia espacial Esse processo que se realiza de forma concentrada no espaccedilo como expansatildeo do centro produz o fenocircmeno da raridade do espaccedilo em determinadas parcelas da cidade em torno do censhytro o que cria nova alianccedila entre o Estado e os setores privados da econoshymia planejando o espaccedilo

Por sua vez o modelo da cidade do automoacutevel produz os espaccedilos vazishyos da circulaccedilatildeo onde o primado do transporte individual se impotildee com forccedila revelando as possibilidades da construccedilatildeo da cidade como circulaccedilatildeo O esvaziamento do sentido e das possibilidades de apropriaccedilatildeo dos espaccedilos puacuteshyblicos assinalou a construccedilatildeo dos espaccedilos semipuacuteblicos em substituiccedilatildeo agrave rua (eacute assim que os slwpping centers proliferam e tomam-se centros de lazer) O espaccedilo puacuteblico se esvazia de seu sentido tradicional lugar onde se desenvolve a vida de relaccedilotildees agora o umbral da porta define o limite entre o puacuteblico e o privado redefinindo modos de habitar na metroacutepole

A anaacutelise da metroacutepole exige hoje no plano teoacuterico a consideraccedilatildeo de elementos importantes O processo de mundializaccedilatildeo que ilumina a constishytuiccedilatildeo da sociedade urbana e do espaccedilo mundial nos coloca diante de novos paracircmetros teoacutericos para o entendimento da anaacutelise da metroacutepole detectanshydo o conjunto das novas contradiccedilotildees49 que decorrem do novo estaacutegio da reproduccedilatildeo A preocupaccedilatildeo com o tempo isto eacute a reduccedilatildeo das caracteriacutestishycas do mundo moderno a uma nova condiccedilatildeo temporal tem colocado o esshypaccedilo em um segundo plano de anaacutelise o que reduz a metroacutepole a uma polifonia na expressatildeo de Canevacciso uma referecircncia temporal atentando para a possibilidade de articulaccedilatildeo e justaposiccedilatildeo de vaacuterios tempos Acresshycentamos agrave justaposiccedilatildeo de tempos independentes a justaposiccedilatildeo dos espashyccedilos e assim na analogia da cidade agrave Polifonia introduzimos tambeacutem uma analogia a polioramia atentando com isso para a profunda relaccedilatildeo espaccediloshytempo Assim simultaneamente tempos e espaccedilos justapostos produzem um sentido mais profundo para a cidade

Desse modo como penAAmento que vaga passando de UlTa imagem a outra a cidade ela proacutepria vai-se transformando rapidamente como se passhy

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sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 33: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

sasse de uma forma a outra fluidamente em um processo autofaacutegico base do espaccedilo amneacutesico Mas seria ingecircnuo acreditar que haacute uma inexorabilidade nesse processo e que a sociedade estaacute fadada a submeter-se a essa ordem imposta pelo processo de reproduccedilatildeo espaccedilo-temporal Assim se de um lado a relaccedilatildeo espaccedilo-tempo eacute cada vez maismiddot marcada pela imposiccedilatildeo de um tempo efecircmero e da produccedilatildeo de um espaccedilo amneacutesico por outro se abre a perspectishyva de outro tempo se concretizar em outro uso capaz de produzir a identidade nos interstiacutecios espaciais que sobrevivem resistindo agrave fuacuteria do trator

O que marca e determina as relaccedilotildees entre as pessoas e entre elas e a cidade eacute o uso e eacute por isso que no espaccedilo se lecirc a continuidade da histoacuteria em que a duraccedilatildeo e as mudanccedilas exprimem-se em distintas funccedilotildees (que duram ou se modificam) A morfologia que serve para a realizaccedilatildeo da funshyccedilatildeo na praacutetica social revela uma histoacuteria em que o tempo que se concretiza no uso produz a identidade Na realidade haacute resiacuteduos possibilidades contishydas na vida cotidiana que ainda resistem nos bairros semi-arrasados pelo planejamento funcionalista E nesse sentido a amneacutesia pode ser entendida como ausecircncia de memoacuteria natildeo como sua perda total isto eacute aparece como produto do poder da abstraccedilatildeo uma vez que o cidadatildeo estaacute preso ao univershyso da necessidade em um cotidiano repetitivo submetido agrave banalizaccedilatildeo do sentido do humano pela normatizaccedilatildeo exacerbadamiddot do uso Mas haacute latente no lugar os germes da vida que foge ao normatizado e que se impotildee como consequumlecircncia do processo de reproduccedilatildeo espacial que tende a eliminardesshytruir o que existe Desse modo pode-se ler no amneacutesico o estado que produz dentro do homem um deserto mas onde tambeacutem coexistem os oaacutesis

Para aleacutem do comezinho das tarefas diaacuterias repetitivas e rotineiras haacute outra dimensatildeo aquela da vida vista sem indiferenccedila em suas anguacutestias e paixotildees encontros desencontros morte e alegria que satildeo os elementos que compotildeem o quadro que diz respeito agrave vida cotidiana Eacute por isso que o espashyccedilo da vida contempla aquele do bairro (materializada em uma ordem proacutexishyma) de espaccedilos menores onde se efetiva a apropriaccedilatildeo como espaccedilo da vida Dizem respeito a uma ordem proacutexima sem todavia deixar de ser determinados pela ordem distante Nos usos possiacuteveis estaacute contido o futuro A forma do futuro define as alvoradas51

A vida cotidiana nos coloca diante de um modo de existir em que o encontro se realiza dando novo sentido aproximando identificando as pesshysoas o que significa que pontuam a metroacutepole a consternaccedilatildeo a festa a reivindicaccedilatildeo que irrompem na vida cotidiana dando-lhe ao menos temshyporariamente um sentido diverso No processo histoacuterico o homem vai enrishyquecendo em todos os sentidos nesse processo ele tambeacutem se vecirc em desencontro com sua obra que se impotildee por meio de uma praacutetica

socioespacial reduzida Assim se o uso estaacute preenchido por coaccedilotildees envolshyto em representaccedilotildees ele tem o sentido da atividade humana da accedilatildeo do conhecimentoda alienaccedilatildeoda possibilidade e traz a marca impressa do corpo que eacute a presenccedila Nesse sentido a praacutetica espacial da sociedade atual na vida cotidiana mostra a condiccedilatildeo da vida material e eacute o lugar preciacutepuo da superaccedilatildeo das necessidades da emergecircncia do desejo que se torna accedilatildeo Diante das restriccedilotildees diante de normaacutes e leis impeditivas ao uso o cidadatildeo que vive na metroacutepole inventa modos de uso que fogem agraves limitaccedilotildees e coaccedilotildees impostas pelo processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo Por isso o espaccedilo eacute tambeacutem aquele da invenccedilatildeo Essas invenccedilotildees ocorrem nos interstiacutecios da vida cotidiana permitem a construccedilatildeo da identidade natildeo soacute do indiviacuteduo com o outro mas do cidadatildeo com os lugares da cidade Por outro lado o plano da invenccedilatildeo eacute aquele da possibilidade de se insurgir contra os poderes estabelecidos

Esse raciociacutenio aponta o movimento de constituiccedilatildeo das relaccedilotildees socishyais da metroacutepole no sentido do devir Um devir que foge agrave instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo pela consciecircncia e pela accedilatildeo Portanto qualquer transposiccedilatildeo mecacircnica entre morfologia social e morfologia espacial mediada pela proshypriedade privada da terra sem levar em consideraccedilatildeo as possibilidades conshytidas na vida cotidiana seria falaciosa Nesse sentido a anaacutelise oferece um caminho para se abordar ou para se entender o processo de constituiccedilatildeo da sociedade urbana por meio da mediaccedilatildeo que se realiza no espaccedilo entre o lugar e o global por intermeacutedio da metroacutepole Se o estudo da Operaccedilatildeo Urbana Faria Lima aparece inicialmente como pontual um fragmento da vida cotidiana da metroacutepole ele aponta para o conflito as contradiccedilotildees o modo como o novo invade o lugar reproduzindo a vida cotidiana em um outro patamar

Nombreuses les figures que prend le destin Nombreux les coups inespeacutereacutes des dieux On a vu 008 attentes ne pas aboutir Et um dieu trouver te chemin de linattendu Tel est la fin de cette affaire ~2

o SENTIDO DA CIDADE COMO LUGAR DO POSSIacuteVEL

O movimento dos habitantes dos bairros envolvidos com a OUFL em sua accedilatildeo contesta a gestatildeo poliacutetica do espaccedilo como gestatildeo empresarial da tidade que se orientaria no sentido de rcpjoduzir a cidade de iacuteicgoacutecios~I

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Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

356 357

da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

358 359

globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 34: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

Nessa direccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade se move em direccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma morfologia que exclui segrega impondo uma esteacutetica que degenera a rua onde qualquer preocupaccedilatildeo luacutedica se esvai em um universo em que o lazer cada vez mais submetido ao universo da mercadoria exacerba a segreshygaccedilatildeo e com isso reduz o sentido do habitar esvaziando-o do luacutedico e de toda a criaccedilatildeo Nesse processo questionam o sentido da cidade

A reforma urbana que aparece sob a forma fragmentaacuteria de renovashyccedilatildeo de parcelas da metroacutepole com a abertura de novas vias de tracircnsito a construccedilatildeo de pontes viadutos grandes edifiacutecios e condomiacutenios fechados contribui para a constituiccedilatildeo das periferias explodidas como produto indisshycutiacutevel do processo de urbanizaccedilatildeo imposto por uma chantagem de utilidashyde53 que permite forjar o consentimento da populaccedilatildeo para projetos espetaculosos como uacutenico caminho possiacutevel para a metroacutepole

Eacute bem verdade que movimento dos habitantes contraacuterio agrave OUFL eacute ambiacuteguo sua luta pela manutenccedilatildeo da casa eacute a observacircncia de sua condiccedilatildeo de proprietaacuterios mas em meio a essa preocupaccedilatildeo se eleva a consciecircncia das mudanccedilas no bairro Na participaccedilatildeo surge a ideacuteia da construccedilatildeo de um ideal em comum que se restringe e ao mesmo tempo foge ao imediatismo do projeto de opemccedilatildeo urbana Eacute imediato na medida em que muitos na condishyccedilatildeo de proprietaacuterios querem apenas manter aquilo que lhes pertence Para muitos outros a manutenccedilatildeo da casa significa a manutenccedilatildeo do bairro e da qualidade de vida que acreditam ter Aqui a discussatildeo em tomo da manushytenccedilatildeo da casa eacute ponto de partida para a constituiccedilatildeo de uma consciecircncia social Como a morfologia eacute vivida percebida sentida pelos habitantes eacute inicialmente nesse niacutevel que percebem a situaccedilatildeo dmmaacutetica vivida incubashydom do projeto que orienta a accedilatildeo

No processo muitos saem do isolamento de uma vida individual presa ao universo do privado da casa para relacionar-se com um grupo mais amplo trocar experiecircncias informaccedilotildees ideacuteias projetos nesse processo a consciecircnshycia produz a identificaccedilatildeo com uma coletividade mais ampla A partir dessa participaccedilatildeo como processo de conhecimento identificaccedilatildeo vai-se produzinshydo uma consciecircncia do papel poliacutetico do habitante do bairro como cidadatildeo da metroacutepole Na e pela participaccedilatildeo o indiviacuteduo se percebe em um espaccedilo mais amplo (aquele da metroacutepole e dele produz uma representaccedilatildeo) e pertencendo a um grupo maior Nessa dimensatildeo questionam o direito agrave cidade shy

O movimento reivindicatoacuterio (contestatoacuterio como gostam de definir) realiza ou concretiza a possibilidade contida na reuniatildeo revela a preocupaccedilatildeo com um debate mais amplo que questiona o sentido do processo de transforshymaccedilatildeo da metroacutepole por meio do questionamento das renovaccedilotildees urbanaacuteS ~esse processo desmistificam o discurso teacutecnico que em nome do progresso

e da modernizaccedilatildeo encobre as estrateacutegias imobiliaacuterias revelando a articulashyccedilatildeo entre o poder puacuteblico e os setores dinacircmicos da economia e escancamndo a luta entre o uso e a troca revelando-a em toda a sua dmmaticidade

O Movimento VIVA aparece a nosso ver como expressatildeo das contradishyccedilotildees nos processos atuais de reprodwiiacuteo do espaccedilo urbano tanto no que tem de particular a manutenccedilatildeo do bairro quanto no que tem de universal o sentido da cidade e da vida cotidiana na cidadecomo direito agrave cidade A desalienaccedilatildeo passa pelo estranhamento como forma de consciecircncia O indiviacuteduo particishypante do movimento se sente cidadatildeo lutando por uma opccedilatildeo de vida no processo cria uma consciecircncia coletiva A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida no bairro e um projeto de renovaccedilatildeo revelando-se como contradishyccedilatildeo do espaccedilo que se ilumina como contradiccedilatildeo na construccedilatildeo do ser humashyno exigecircncia de liberdade que se revela no uso e que se antagoniza com a necessidade de reproduccedilatildeo do capital que instrumentaliza o espaccedilo e a vida

A consciecircncia surge na confrontaccedilatildeo entre a vida privada no bairro e a instaumccedilatildeo de uma nova dinacircmica econocircmica cuja necessidade de reprodushyccedilatildeo invade todos os niacuteveis da realidade urbana Na realizaccedilatildeo da vida se revela a contradiccedilatildeo do espaccedilo que aponta uma contradiccedilatildeo no humano a instrumentalizaccedilatildeo do espaccedilo e da vida cotidiana e a exigecircncia de liberdade de construccedilatildeomanutenccedilatildeo de um espaccedilo que pennita a realizaccedilatildeo da vida sem as amarras da normatizaccedilatildeo

O bairro adquire pare os habitantes um valor simboacutelico simboliza a luta pelo que chamam de qualidade de vida na realidade a luta pela existecircnshycia e pelo direito agrave cidade Eacute assim que a anaacutelise partindo do lugar do plano dos modos de apropriaccedilatildeo por meio do corpo articula o lugar e a metroacutepole Assim a OUFL ilumina um conflito que aparece no lugar como questatildeo coloshycada pela praacutetica socioespacial a partir da relaccedilatildeo direta entre as pessoas como histoacuteria particular de um grupo em um lugar especiacutefico na metroacutepole mas que esclarece um problema mais amplo a reproduccedilatildeo espacial como nova praacutetica socioespacial Aqui os conflitos representados no plano micro (do lugar) expotildeem os conflitos que existem na cidade em tomo do ambiente construiacutedo na sociedade pela interferecircncia do Estado A OUFL como transforshymaccedilatildeo da morfologia relativiza o contiacutenuo coloca os habitantes diante das ruptums proacuteprias ao processo de reproduccedilatildeo do urbano Hoje a metroacutepole aparece na vida cotidiana impregnada pela ideacuteia de produto o que significa dizer que o espaccedilo como vimos surge como soluccedilatildeo teacutecnica que encobre o fato de que a crise da cidade eacute inerente a seu processo de reproduccedilatildeo

O conflito aqui representado no niacutevel micro revela os conflitos que existem no plano da sociedade isto eacute os bairro estudados contemplam parshyticularidades e tambeacutem algo que escapa ao particular e se coloca no plano

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da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

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globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

362 363

r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

RihliotfNI

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Page 35: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

da reproduccedilatildeo do espaccedilo da metroacutepole - pelo menos como tendecircncia Natildeo supera mas escancara a contradiccedilatildeo na metroacutepole entre o uso e o valor de troca revelando o conflito em sua dramaticidade Assim haacute momentos em que a luta transcende a do bairro para se situar como luta por uma outra cidade Nessa direccedilatildeo questiona-se o poder puacuteblico como oacutergatildeo gestor do espaccedilo da cidade e questiona-se o papel da Cacircmara dos Vereadores (as artishyculaccedilotildees poliacuteticas) nos destinos da metroacutepole

O sentido uacuteltimo do Movimento VIVA eacute questionar a gestatildeo do espaccedilo propor uma nova via construiacuteda pela consciecircncia das transformaccedilotildees que a imposiccedilatildeo de uma operaccedilatildeo urbana traraacute agrave vida das pessoas no bairro pela coaccedilatildeo Aqui a luta aparece como relaccedilatildeo dramaacutetica social e praacutetica Por meio de suas experiecircncias se revela uma relaccedilatildeo intriacutenseca entre o espaccedilo e a vida cotidiana No mundo moderno a imposiccedilatildeo da troca coloca em evishydecircncia o choque entre o uso e o valor de troca do espaccedilo54

A contradiccedilatildeo usotroca aparece no Movimento VIVA como consciecircncia da especulaccedilatildeo imobiliaacuteria como accedilatildeo que transforma o espaccedilo em mercadoshyria o bairro transformado em negoacutecio Nessa luta a consciecircncia que aparece no horizonte eacute a de que a praacutetica espacial eacute alienante pois satildeo reduzidas as possibilidades de uso do espaccedilo do bairro como impossibilidade da plena apropriaccedilatildeo do espaccedilo da vida por um grupo social

As transfonnaccedilotildees na morfologia dos bairros vatildeo revelando a constishytuiccedilatildeo de um novo tempo por meio de uma nova forma de uso do espaccedilo em meio agrave constituiccedilatildeo de um modo de vida que estaacute presente na metroacutepole e que aos poucos vai invadindo todos os lugares submetendo-os agrave loacutegica e agrave racionalidade das necessidades da reproduccedilatildeo do capital A mudanccedila na morfologia aponta para as mudanccedilas nos modos de uso em direccedilatildeo ao estashybelecimento de nova relaccedilatildeo espaccedilo-temporal indicativa de nova praacutetica socioespacial

Nos bairros a monumentalidade das torres de vidro como visualizaccedilatildeo do moderno mostra uma presenccedila-ausecircncia como poder que constrange eacute a espetacularizaccedilatildeo do espaccedilo que se impotildee como nova realidade aquela que produz o usuaacuterio A metroacutepole tanto quanto a sociedade se reproduzem como espetaacuteculo que compensa a impossibilidade da participaccedilatildeo Tomada espetaacuteshyculo a metroacutepole encobre a normatizaccedilatildeo e as coaccedilotildees dos usos do espaccedilo do capitalismo moderno que organiza a reduCcedilatildeo de toda a vida social ao espetaacuteshyculo sendo incapaz de dar outro espetaacuteculo que aquele da alienaccedilatildeoss

A metroacutepole produzida como espetaacuteculo compotildee o quadro soacutelido para a realizaccedilatildeo da reproduccedilatildeo em suas exigecircncias atuais a partir da imposiccedilatildeo de um espaccedilo geomeacutetrico e racional em realidade vazio de conteuacutedo que reduz o uso pois submete o tempo reduzindo seu emprego Espaccedilo e temshy

po esvaziados produzem um cotidiano fragmentado em que o desejo reshyduzido agrave necessidade suprime a vida Como o espaccedilo eacute tambeacutem condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo da vida haacute recriaccedilatildeo constante das condiccedilotildees nas quais se realiza o humano A reproduccedilatildeo do espaccedilo ilumina as separaccedilotildees e desencontros entre o sujeito e sua obra - a segregaccedilatildeo como produto da extensatildeo do espaccedilo-mercadoria com a generalizaccedilatildeo da propriedade privashyda do solo urbano em um primeiro momento e em um segundo a contradishyccedilatildeo que a propriedade em seu desenvolvimento produz entrando em relashyccedilatildeo agraves condiccedilotildees necessaacuterias ao crescimento econocircmico

Parafraseando o ceacutelebre iniacutecio de O capital de Karl Marx escreve Guy Debord no iniacutecio de seu livro56 A sociedade do espetaacuteculo

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condiccedilotildees modernas de produshyccedilatildeo se anuncia como uma imensa acumulaccedilatildeo de espetaacuteculos Tudo que foi diretamente vivido se distanciou numa representaccedilatildeo Mas o espetaacuteculo natildeo eacute outra coisa que o sentido da praacutetica total de uma formaccedilatildeo econocircmica social seu emprego de tempo Eacute o momento histoacuterico que nos conteacutem 57

E mais adiante o espetaacuteculo submete os homens vivos na medida em que a economia submeteu-os totalmente eacute o reflexo fiel da produccedilatildeo de coisas e objetivaccedilatildeo infiel dos produtores58

A extensatildeo do mundo da mercadoria o aprofundamento das relaccedilotildees espaciais com o desenvolvimento das teacutecnicas de transporte e comunicashyccedilatildeo revelam o aprofundamento da desigualdade com que esse processo se realiza No processo de reproduccedilatildeo espacial a contradiccedilatildeo entre produccedilatildeo socializada e apropriaccedilatildeo privada se aprofunda com o processo de renovashyccedilatildeo urbana que valoriza os lugares da metroacutepole onde incide59

bull

O que marca o processo satildeo as separaccedilotildees do cidadatildeo com a metroacutepole revelando que a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida Nesse plano realiza-se nashyquilo que nega a proacutepria vida cotidiana daiacute a situaccedilatildeo dramaacutetica A vida moderna aparece em sua ambiguumlidade - a casa do indiviacuteduo pode mantecirc-lo ligado ao munshydo todo pela rede de computadores e pela televisatildeo e novos objetos permitem cada vez mais a amplitude espacial isto eacute o tempo parece ter sido domado e a velocidade dos contatos eacute awnentada pela eficiecircncia das comunicaccedilotildees Mas o habitante se move em um espaccedilo concreto e praacutetico cada vez mais reduzido o uso se esvazia e se limita os novos objetos entram na vida cotidiana fealizando a alienaccedilatildeo O espaccedilo fragmentado partido valorizado pela accedilatildeo do poder poliacutetico penetra na vida cotidiana desestabilizanda redefinindo o papel decada habitanshyte nos lugares da metr6pole pela limitaccedilatildeo ao uso 00 espaccedilo

Nesse processo o espaccedilo se toma estrateacutegico para a reproouccedilatildeo impeshyrativopara sua continuidade agora em um outro patamar o da economia

358 359

globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

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vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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r

49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

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Page 36: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

globalizada A possibilidade criativa estaacute redIacutelzid~ confinada a cidade se opotildee ao indiviacuteduo como objeto estranho como potecircncia independente a alienaccedilatildeo se estende por toda a vida do habitante Por outro lado o aprendishyzado que vem da praacutetica mudou a situaccedilatildeo de muitos participantes do movishymento despertando-os para a cvnsiecircncia poliacutetica em um outro niacutevel

O questionamento desse processo coloca a necessidade de pensar a reforma urbana em um outro patamar aquele em que as relaccedilotildees de produshyccedilatildeo e de propriedade devem ser substituiacutedas por outras inserindo-se como elo decisivo na sucessatildeo das metamorfoses do cotidiano A cidade renovada seraacute a projeccedilatildeo para a praacutetica de uma nova sociedade 60 capaz de reconsishyderar e natildeo negar a histoacuteria Conveacutem lembrar que a cidade61

nunca foi projeccedilatildeo passiva do conjunto social preexistente Ela sempre acresshycentou a essa projeccedilatildeo um principio proacuteprio de aceleraccedilatildeo de dinamismo de desequiliacutebrio permanente de transgressatildeo A cidade foi e continuaraacute sendo uma totalidade algo mais que seus elementos estruturais e funcionais Sob esse aspecto eacute uma presenccedila que se oferece sem que o habitar o esgote Ela reuacutene todos os niacuteveis da realidade e da consciecircncia os grupos e suas estrateacutegishyas os subconjuntos ou sistemas sociais a vida cotidiana e a festa Comporta um grande nuacutemero de funccedilotildees as mais importantes das quais os funcionalistas esquecem a funccedilatildeo luacutedica o informativo Engloba coaccedilotildees imperiosas e aproshypriaccedilotildees rigorosas do tempo e do espaccedilo da vida fiacutesica e dos desejos a cidashyde eacute produto do possiacutevel a concepccedilatildeo desse possiacutevel se baseia natildeo na anaacutelise do atual mas na criacutetica do atual enquanto eacute ele rompido pela anaacutelise pela ideologia e pela estrateacutegia baseada no entendimento analiacutetico e natildeo na racionalidade dialeacutetica62bull

Na perspectiva apontada neste trabalho a noccedilatildeo de cidade e de seu processo contiacutenuo de reproduccedilatildeo revela uma densidade e potencialidade para o entendimento do mundo moderno em sua dimensatildeo teoacuterica e praacutetica A cidade passa por uma crise cujo sentido estaacute em seu processo de reproduccedilatildeo (e natildeo fora dele) Se natildeo atentarmos para o significado da noccedilatildeo de reprodushyccedilatildeo e onde estatildeo as condiccedilotildees de possibilidade de transformaccedilatildeo da vida na cidade natildeo caminharemos no sentido de refletir sobre a crise teoacuterica da cidade que estaacute a nosso ver na recusa do debate teoacuterico na pesquisa que se desdobra e se limita ao plano do empiacuterico no fato de que muitos ainda confundem a cidade objeto (produto e obra humana) com o sujeito

A construccedilatildeo do humano envolve apropriaccedilotildees encontros reuniotildees a festa a construccedilatildeo da dimensatildeo luacutedica da cidade que transcende o espaccedilo privado que se assenhoreia do espaccedilo puacuteblico Em siacutentese pensar a cidade eacute refletir sobre o sentido da vida e como ela se realiza significa pensar a plena dimensatildeo du homem o que revela a cidade como liberdade Se eacute na

I 360

1

vida cotidiana que se realiza a norma ganha forma a segregaccedilatildeo eacute onde estatildeo as possibilidades de apropriaccedilatildeo do espaccedilo Portanto a reflexatildeo sobre o sentido da praacutetica na cidade coloca como necessidade a consideraccedilatildeo das possibilidades que aparecem ou existem na cidade para a vida

O sentido da cidade como obra da civilizaccedilatildeo natildeo eacute o sentido da consshytruccedilatildeo fiacutesica da cidade mas da humanidade do homem por meio de sua obra Por isso a cidade permite a leitura da histoacuteria e de nossa condiccedilatildeo no mundo moderno Traz impliacutecita a ideacuteia de um projeto para a sociedade a cidade eacute o lugar das coaccedilotildees mas tambeacutem da liberdade portanto a reprodushyccedilatildeo da cidade envolve a ideacuteia de um projeto para a vida humana O conteuacutedo do mundo moderno passa a nosso ver pela anaacutelise da metroacutepole e no que ela se tomou passa pelo debate sobre a sociedade urbana passa pela disshycussatildeo de um projeto para ela A cidade renovada como produto de uma praacutetica socioespacial renovada possibilidade de construccedilatildeo de identidades revela o sentido da praacutetica que eacute aquele das apropriaccedilotildees reais e possiacuteveis shyaquele que rompe a racionalidade imposta bem como da luta em tomo deshylas Como os geoacutegrafos podem construir um conhecimento que decirc conta de um entendimento da cidade em sua totalidade eacute a questatildeo que se coloca

O desafio eacute aquele de coletivamente construir uma problemaacutetica urshybana que natildeo se reduza agrave cidade mas que diga respeito agrave vida do homem na sociedade urbana em constituiccedilatildeo Assim na perspectiva aqui desenvolvida a cidade aparece como o lugar do possiacutevel e a crise (inerente a sua produshyccedilatildeo) pode ser um elemento analisador importante Talvez o caminho para pensar a cidade seja a consideraccedilatildeo pela geografia da unidade e complexishydade da vida social A totalidade reencontrada ou recria~ a saber a unidade entre pensamento e ser do discurso e do ato da natureza e da reflexatildeo do mundo (ou do cosmos) e a realidade humana63 Assim o sentido e a finalidashyde da cidade como construccedilatildeo histoacuterica eacute o homem que vem sendo reduzido agrave condiccedilatildeo de usuaacuterio da cidade frequumlentemente relegado a coadjuvante

Agrave geografia estaacute posto o desafio de pensar a cidade em sua perspectiva espacial isto eacute a necessidade da produccedilatildeo de um conhecimento que decirc conshyta da construccedilatildeo de uma teoria da praacutetica socioespacial urbana como desafio para desvendar a realidade urbana em sua totalidade e das possibilidades que se desenham no horizonte para a vida cotidiana na cidade o que signifishyca pensar o processo de reproduccedilatildeo do espaccedilo urbano em suas vaacuterias dimenshysotildees Eacute nessa perspectiva que se coloca como fundamental pensar no sentido do conceito reproduccedilatildeo social do espaccedilo urbano capaz de iluminar a arshymadilha da reduccedilatildeo do sentido da cidade ao de condiccedilatildeo da reproduccedilatildeo do poder ou do capital esvaziada de seu sentido huma1o Eacute assim que a proble~ maacutetica urbana se refere ao homem agrave sociedade colocando a apropriaccedilatildeo

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

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do espaccedilo em primeiro plano

Os quarenta graus das riquezas O vento gela Abandonos ideais paacutelidos Perdidos os poetas os moccedilos os loucos Nada de asas nada de poesia Nada de alegria A bruma neva Arlequinal Mas viva o ideal God save lhe poetry64

NOTAS

I Rio de Troacuteia segundo nota do tradutor

1 Charles Baudelaire O cisne in Asflores do mal (traduccedilatildeo Ivan Junqueira) Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 p 326-27

3 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin P1aacutevio Kothe (org) Satildeo Paulo Aacutetica 1985 p 3839 4 Aqui se refere agravequele da tartaruga

s Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin p 81 6 Id Ibid p83

1 Este trabalho apresenta traduccedilotildees literais da autora a partir de livros originais Quanto aos escritos do poeta Charles Baudelaire (Le Spleen de Paris Paris P1ammarion 1987 p 130) natildeo se pode correr o risco de uma traduccedilatildeo literal assim referimos-nos agrave citaccedilatildeo original sem traduccedilatildeo

bull Henri Lefebvre Le materialisme diaiectique Paris PUF 1971 pl00-0 I 9 M Canevacci M A cidade polifiJnica Satildeo Paulo Studio Nobel 1993 p 98 10 Geacuterard Gasarian Diptyque parisien L ~nneacutee Baudelaire Paris Eacuteditons Klincksieck 1995 ndeg I p 57-70 Idem p57 12 Pari~ muda 13 Idem p 63-4

14 Charles Baudelaire Richord Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp 1990 p33 Benjamin W A modernidade in muter Benjamin sociologia opcit p1 06 16 Idem p 106 Na ediccedilatildeo Walter Benjamin a modernidade e os modernos (Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975) a traduccedilatildeo dessa passagem escrita por Benjamin eacute diferente _ a modernidadese aproxima da antiguidade neste espCrito caduco - talvez relacionando-a com o conceito de caducidade que aparece no paraacutegrafo seguinte (pI8) 11 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX in Walter Benjamin pp39-40 Paul Valeacutery em Situaccedilatildeo de Baudelaire lembra que a poesia de Baudelaire impotildee-se como a poesia da modernidade o poeta se contrapotildee ao romantismo Variedades Satildeo Paulo Iluminuras 1995 p 21-32 19 Walter Benjamin Paris capital do seacuteculo XIX opcit pp4I-42 20 Idem p 122-3 Mas o interessante do diaacutelogo eacute que Heacutecuba nesta peccedila faz a figura de uma morib-mcb que padece o tempo toJu bull

11 In Euripede Androma que traduCcedilatildeo Jean e MayotteBollock Editores de Minuit 1994 Paris p9 22 Charles Baudelaire O pintor da vida modema in Coelho Teixeira (org) A modernidade de Baudelaire Rio de Janeiro Paz e Terra 1998 p163 23 Idem p 170-1 14 Charles Baudclab~ Arte filosoacutefica in ampcritos sobre a arte Satildeo Paulo Edusp 1991 p71 2S Tanto nas trageacutedias As troianas (Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1965) quanto em AndriJmaca (Paris Eacuteditions de Minuit 1994) ambas de Eurfpedes 16 Baudelaire O cisne in Asflores do mal p329 11 Filme escrito e dirigido por Barry Levinson 1992 28 Escreve o poeta Charles Baudelaire em Sonho parisiense In As Flores do Mal p439 Conveacutem observar que todos os poemas aqui citados O cisne A uma passante Os sete velhos e Sonho parisiense fazem parte dos Quadros Parisienses Z9 Maacuterio de Andrade Os cortejos (Pauliceacuteia desvairado) in Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sd p4 lO Joseacute Paulo Paes A aventura literaacuteria Satildeo Paulo Cia das Letras 1990 p71 31 Idem p70 32 Idem ibid p70 33 Idem p71 34 D Trevisan Trechos do poema publicado no jornal Gazeta do Povo Caderno de Cultura G Curitiba 25 de abril de 1993 p 2 3S Morador da Vila Oliacuternpia em entrevista agrave Revista Veja 191031997 36 Entrevistas apresentadas no jornal Jornal da Tarde 16211993 Y7 Revista de domingo do jornal agrave Folha de Satildeo Paula marccedilo de 1993 38 Nesse sentido a noccedilatildeo de apropriaccedilatildeo tem um sentido mais amplo e profundo que o uso 39 O conceito de apropriaccedilatildeo eacute um dos mais importantes que nos chegou de seacuteculos de refleshyxatildeo filosoacutefica A accedilatildeo dos grupos humanos tem sobre o meio material duas modalidades dois atributos a dominaccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo A dominaccedilatildeo sobre a Natureza material resultado de operaccedilotildees teacutecnicas arrasa esta natureza permitindo as sociedades substituiacute-Ias por sens produshytos A apropriaccedilatildeo natildeo arrasa mas transforma a Natureza - o corpo e a vida bioloacutegica o tempo e o espaccedilo dadosmiddot em bens humanos A apropriaccedilatildeo eacute a meta o sentido e finalidade da vida social Henri Lefebvre De lo rural a lo urbano 4 ed Barcelona Peniacutensula 1978 p 164 00 Karl Marx apud Henri Lefebvre Critique de la vie quotidiennentroduction (voU) Paris L Arche 1962 p 75 41 Henri Lefebvre Le materlalisme diaiectique opcit p152 Baudelaire Os sete velhos (poema dedicado a Vitor Hugo) As flores do mal p3 31 43 Lefebvre Henri La production de Iespace Paris Anthropos 1978 p 46 Desde a industrializaccedilatildeo o tempo tomou-se uma norma central de julgamento e avaliaccedilatildeo da sociedade urbanizada notadamente pela temporalizaccedilatildeo de todas as dimensOes do mundo do trabalho (Frank Scherrer Les ryhmes urbains in La ville Le courrier du CNRS Paris 1994 n081 p67 s Pietro Citati Goethe Satildeo Paulo Cia das Letras 1996 p 42 e F Nietzsche C01nspondinshycia com Kbgner Lisboa Guimaratildees Editores 1990 p54 46 Maacuterio de Andrade Lira paulistana p 334 Idem p 329 Ana Fani Altl6sandri Carlos A construccedilatildeo de urna nova urbanidade in A cidade e o urbashyno Silva Joseacute B da et aIU Fortaleza Editora Ufe 1997 p 205 e 207

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49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

UFRGS 365 Institulo de Geociecircncias

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Page 38: Carlos, Ana Fani Alessandri. Espaço - Tempo Na Metrópole

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49 Ver Ana Fani Alessandri Carlos Satildeo Paulo a anti-cidade 1 in Maria Adeacutelia A Souza et alliacute (orgs) Metroacutepole e globalizaccedilatildeo Satildeo Paulo Ed Cedesp 1999 50 Uma analogia ao coro polifocircnico - a complexidade impliacutecita no coro de muitas vores e de vaacuterias melodias e instrumentos que vatildeo se desenvolvendo simultaneamente ao mesmo tempo que independentemente compondo nesta configuraccedilatildeo uma totalidade em movimento 51 Maacuterio de Andrade lira paulistana p 330 2 Epiacutelogo da trageacutedia Andromaque de Eurfpedes pronunciada pelo Coro p 72 53 Attila Kotanyi e Raoul Vaneigem Boletim n6 agosto de 1961 in Intemationale Situationiste Paris Fayard 1997 pp 215 (Irad Ameacutelia LuisaDamiani) $4 Um conflito agudo e violento que se realiza no espaccedilo entre esses dois valores entre o espaccedilo que se torna valor de troca e o espaccedilo que pennanece valor de uso O problema urbano se coloca nessas condiccedilotildees com extrema acuidade pois trata-se de espaccedilos estreitamente submetidos agrave dominaccedilatildeo da troca e da especulaccedilatildeo pelo investimento de capitais enquanto o espaccedilo urbano representa um uso quer dizer a um emprego de tempo Para o autor esse conshyflito eacute praacutetico a propriedade luta contra a apropriaccedilatildeo de modo lisiacutevel visiacutevel evidente sobre este espaccedilo A troca e o valor de troca lutam contra o valor de uso e contra o uso que se mostra atraveacutes dos valores Quer dizer contra o corpo vivo e o vividoldem p 277 55 Idem ibid

56 Guy Debord La societeacute du spetacle Paris Galimard 1992 sect I 51 Idem p 20 58 Idem p 22

59 A OUFL como ruptura revela a construccedilatildeo de um novo espaccedilo de uma nova vida e em gecircnese a gestaccedilatildeo de uma nova identidade que tem como sustentaccedilatildeo a construccedilatildeo da sociedade urbashyna mundial que tem a metroacutepole como mediadora do processo o que pode ser concebido pela constataccedilatildeo da instauraccedilatildeo do cotidiano de modo fragmentaacuterio na metroacutepole (() Henri Lefebvre Posiccedilatildeo contra os tecllocratas Satildeo Paulo Editora Documentos 1969 p164-65

61 Idem p165-66

62 Eacute uma estrateacutegia dialeacutetica - para conceber o real eacute preciso para Henri Lefebvre passar pelo utoacutepico e pelo impossiacutevel

63 Henri Lefebvre Le droit a la ville Paris Eacuteditions Anthropos 1972 p 38

64 Maacuterio de Andrade A caccedilada (Pauliceacuteia desvairada) in Poesias completas p 53

BIBLIOGRAFIA

Quanta coisa natildeo vou deixmldo para traacutes agrave direita e agrave esquerda apenas para cOlICretizar uma uacutenica idlia

que jaacute se fel quase velho demais em minha alma

Goethe

ALENCAR Joseacute de Luclola Satildeo Paulo Editora Aacutetica 1988 ANSAY P amp SCHOONIIRODT R Penser la ville (Choix de texts phllosophlques) Bruxelles AAM editions 1989 ANO~DE Maacuterio de Poesias Completas Satildeo Paulo Ciacuterculo do Livro sld ARANTES Otiacutelia Vendo a cidade Revista Veredagraves ano 3 ndeg 36 CCBS derembro de 1998 pp 21-23 ---o Urbanismo emfim de linha Edusp Satildeo Paulo 1998 ---- O lugar da arquitetura depois dos modernos Satildeo Paulo Edusp 1995 ASCHER Franccedilois Mitapolis ou lavenir des vileso Paris Eacuteditions Odile Jacob 1995 AOOOlARD Jean F Paacutes agrave paacutes (ampsai sur le cheminement quotidien en millieu uIbain) Paris EacuteditionsduSeuil1979 BAUOElAIRE Charles Asflores do mal Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 ---- Conseils auxjeunes liUerateurs Paris Eacuteditions MiIle et une Nuits 1995 --- Le Spleen de Pom Paris Aammarion 1987 ---- Richard Wagner e Tanhauser em Paris Satildeo Paulo Edusp i 990

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