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crónica

E m criança, quando em família aconversa versava a poupança, e naqueles tempos o aforro era um tema recorrente, a minha avó saía-se sempre com a máxima:

“poupem os tostões 1 que os escudos poupar-se-ãoa eles próprios!”.

Durante muito tempo, não percebi o alcance,nem económico, nem filosófico, desta sentença.Mas a máxima, como de resto tudo o que nãoentendo plenamente, sempre me deixou intrigado.Coisas de miúdo! A verdade é que há realidadesque só a experiência que vem com a idade nospermite compreender em pleno.

Os tempos melhoraram e o aforismo caiu noesquecimento. Durante anos não me recordei dele.Mais recentemente, o meu interesse pelo Patrimóniopaleontológico e geológico e, sobretudo, o meuempenho na sua conservação, valorização edivulgação (SILVA et al. 1998; SILVA 1999; CACHÃO etal. 1999; CACHÃO et al. 2003; SANTOS et al. 2001),levou-me, surpreendentemente, a recordar e a vercom outros olhos o velho adágio da minha avó.

D esde 1998 que oriento percursos deobservação e de interpretação de aspectos

paleontológicos e geológicos na cidade de Lisboa.Inicialmente com o apoio da Sociedade Portuguesade Ciências Naturais e, posteriormente, no âmbitodas actividades da “Geologia no Verão”, sob aégide da Agência Ciência Viva. A divisa dessespasseios em Lisboa é, que me perdoem os maisfundamentalistas: “Se Maomé não vai à montanha,então que a montanha vá até Maomé”. Ou seja, se os lisboetas não podem, ou não querem,deslocar-se ao campo para fruir o que aPaleontologia e a Geologia lá têm para lhesoferecer, então que apreciem os fósseis e as rochas que, por toda a parte, dão forma e cor à cidade (SILVA e CACHÃO 1998).

A ideia de realizar estes passeios nasceu deuma circunstância muito “terra à terra”, como nãopodia deixar de ser. Surgiu do facto de, nas minhasdeambulações quotidianas por Lisboa, comopaleontólogo que se preza, andar frequentementecom o nariz colado às fachadas e aos pavimentosdos edifícios e das ruas da capital, sempre quequalquer fóssil ou rocha mais curiosos mechamavam a atenção.

Sim, sim, aos pavimentos também, para assombrodos transeuntes! De fóssil em fóssil, de curiosidadeem curiosidade, brotou a ideia de construir umpercurso unindo-os todos, contando a história dashistórias que eles nos contam. E assim, de umconjunto de pequenos nadas, aparentementeinsignificantes e desconexos, surgiu a acção“Paleontologia Urbana” que, posteriormente,evoluiu para a actual “Fósseis ao Virar da Esquina” 2.Uma actividade coerente de observação einterpretação de fósseis e de aspectos geológicosem contexto urbano que há vários anos, todos osanos, ao longo do percurso Cais do Sodré - Rato,conta com a participação entusiástica de váriasdezenas de pessoas repartidas por diversas sessões.

No decorrer destes anos assisti a muitasmudanças ao longo do percurso clássico da Sétima Colina. Vários aspectos que antes mostrava desapareceram, a maior parte delesdesnecessariamente. É espantosa a quantidade depormenores, de pequenos nadas, que antes láestavam e que agora já não estão. Pormenores quesumiram sob os graffitis ou como resultado derecuperações desastradas de fachadas. Detalhes que desapareceram na sequência de obrasde melhoramento arrevesadas ou de opçõesestéticas discutíveis. Muitos deles destruídos porignorância ou por pura negligência.

Tomados isoladamente, esses pormenorespoderiam afigurar-se insignificantes,negligenciáveis, prescindíveis… Um fóssil aqui,um tipo particular de rocha ornamental ali, uns azulejos mimetizando aspectos geológicosacolá… Mas, no conjunto do percurso, esses pequenos nadas fazem falta. Cada detalhe que se perde é menos uma história que se conta,menos um episódio que é abordado, menosinformação que resta. O percurso, a actividade, a cidade, ficam mais pobres.

Apenas alguns exemplos. Na Rua da EscolaPolitécnica, frente ao Museu Nacional de HistóriaNatural da Universidade de Lisboa, o modestoedifício com o número de polícia 27, apresentavaaté há poucos anos azulejos cobrindo toda afachada do rés-do-chão. Tratava-se de um painel de finais do século XIX, feito à medida, imitando orevestimento em liós dos edifícios alfacinhas maisnobres da época. Há quem lhes chamesimplesmente, por vezes de modo pejorativo,

8 al-madan ISSN 0871-066X | IIª Série (13) | Julho 2005

C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A

CRÓNICAS DE...paleontologia

A Grande Importância das Pequenas Coisas

Carlos

Marques da

Silva

Paleontólogo.

Professor Auxiliar do Departamento de Geologia daUniversidade de Lisboa.

Investigador do Centrode Geologia daUniversidade de Lisboa.

Colaborador do MuseuNacional de HistóriaNatural daUniversidade de Lisboa.

Membro do Centro de Arqueologia de Almada.

[email protected]

http://correio.cc.fc.ul.pt//~cmsilva

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esbranquiçada paradepois, pasme-se,aplicarem por cima unsesponjados marmoreadosimitando a rochaornamental que anteshaviam escondido.

Outro exemplo. Na esquina da Rua daMisericórdia com o Largoda Trindade, na fachadade um conhecidorestaurante lisboeta (isto jáparece pecha deste tipo deestabelecimentos…), atérecentemente podiam observar-se magníficosexemplares de rudistas caprinídeos 4, num liósapresentando a patina escura própria da rochaexposta há várias décadas. Já não estão visíveis,foram cobertos por lajes de mármore degranularidade média a grosseira, brancas, com acabamento rugoso, totalmente exótico,completamente estranho à tradição lisboeta doBairro Alto. Na vã tentativa de melhorar o aspectoda fachada, cobriram o revestimento original de lióscom material menos harmonioso. Com a agravantede, por apresentar a superfície bujardada, rugosa,ser mais susceptível à alteração e de mais difícillimpeza, nomeadamente, no que toca aos graffitis.

O que ressalta destes exemplos é a negligênciacom que são tratadas as pequenas coisas, os detalhes, os pormenores. Frequentemente,justifica-se a eliminação destes elementos com acircunstância de serem apenas coisas pequenas,sem grande significado, apenas uma entre muitas.Contudo um conjunto coerente, articulado, de pequenas coisas é muito mais que a simplessoma dos seus modestos elementos.

Tomemos o exemplo da Geologia. Os registos geológico e paleontológico

são constituídos pelo somatório de todos osafloramentos, grandes e pequenos, de todas asocorrências fossilíferas, etc., espalhados pelomundo, por mais “modestos” que sejam, não apenas daqueles, excepcionais por esta ou

1 Antiga moeda de 100 reis. Aquandoda vigência do escudo, durante a maiorparte do século XX, equivalia a dezcentavos de escudo.2 Ver “Fósseis ao Virar da Esquina” emhttp://correio.fc.ul.pt/~cmsilva/Paleourb.htm.3 Rudistas, bivalves extintos de idadejurássica superior a cretácica, cujosfósseis podem ser encontrados nocalcário cretácico, rosado a cinzento--azulado, bioclástico e calciclástico,vulgo liós, ou lioz, típico da região de Lisboa. Ver “Rudistas” emhttp://correio.fc.ul.pt/~cmsilva/Rudist01.pdf.4 Ver “Rudistas Caprinídeos” emhttp://correio.fc.ul.pt/~cmsilva/Rudist02.pdf.

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azulejos marmoreados ou esponjados. Prefiro chamar-lhes “azulejos de rudistas”, por representarem, de modo claramentereconhecível, por vezes muito realista, o padrão doliós e dos fósseis mais frequentes neste tipo decalcários, os rudistas 3. Um caso ímpar de fusão dasartes decorativas com a Paleontologia típico dacidade de Lisboa, já que o liós é a rocha ornamentalemblemática da região. Um exemplo característico,só para citar um dos mais bem conservados efacilmente reconhecíveis, é o da fachada do n.º 39do Poço do Borratém, perto da Praça da Figueira.Felizmente, há mais exemplos.

Pois bem, esses azulejos centenários, já nãoexistem. Caíram vítimas da recuperação

míope da fachada do imóvel para instalação de umrestaurante modernaço. Denunciei oportunamente aocorrência à polícia municipal, mas a obra estavalegal. Com todos os ss e rr, como se costuma dizer.Segundo me informaram, com parecer positivo doIPPAR para a remoção dos azulejos e tudo. “Nãose preocupe, eram azulejos incaracterísticos”,asseverou-me o proprietário do imóvel,incomodado pela minha indignação, supostamenteentendido em azulejos e, segundo me informou,para dar crédito à sua avaliação, professor deHistória de Arte. E continuou, numa vã tentativa deme contentar: “Estamos agora a recuperar unspainéis com cenas de caça do século XVIII, essessim, magníficos, dignos de serem preservados!”

Enfim, quem não sabe é como quem não vê epara quem não conhece rudistas e não reconhece o padrão do liós representado nos azulejos, aquele painel era, de facto, um marmoreadoincaracterístico… Mas, nesta história, o que maisme choca é, mais que a ignorância, a ligeireza, o desprezo, com que se deita para o entulho algoque, apesar de não ser obviamente uma obra-primada azulejaria nacional, tem, não obstante, mais decem anos, é um interessante elemento original doedifício e é característico de Lisboa.

Ainda na Rua da Escola Politécnica, no alinhamento do edifício da antiga Real Fábricade Sedas, já à beira do Rato, noutro restaurante damoda, cobriram a fachada de liós branco com tinta

“Se os lisboetas não podem, ou não querem,deslocar-se ao campo para fruir o que aPaleontologia e a Geologia lá têm para lhesoferecer, então que apreciem os fósseis e as rochas que, por toda a parte, dão forma e cor à cidade”.

Figuras 1 e 2

Em cima, pormenor dos azulejosde rudistas do n.º 39 do Poço doBorratém.

Em baixo, pormenor dorevestimento de liós dum edifíciolisboeta, ostentando evidentesfósseis de rudistas radiolitídeos emcorte transversal.

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aquela razão, que foram classificados e protegidos.É na diversidade das manifestações geológicas epaleontológicas que reside a riqueza da informaçãodisponível. Assim, é a diversidade dos elementosgeológicos, a geodiversidade, que, em últimaanálise, importa preservar, independentemente dosseus constituintes estarem ou não classificados.

O património é uno e indivisível tal como o é o mundo em que vivemos. A litosfera é o suportefísico da biosfera, que por sua vez actua sobre oambiente geológico, modificando-o. O próprioPatrimónio cultural, em todas as suas vertentes,arquitectónica, etnográfica, arqueológica, histórica,etc., é fortemente condicionado pelo contextogeológico, geográfico e biológico e, por seu turno,as comunidades humanas modelam o ambientenatural em que se inserem. Não é sensato protegerapenas os elementos excepcionais, sejam eles denatureza arquitectónica, geológica, arqueológica,biológica ou outra, e negligenciar os demais. É óbvio que, pelas mais variadas razões, há que preservar e valorizar certas e determinadasocorrências patrimoniais excepcionais. Mas essa éapenas a ponta do iceberg. É na protecção daspequenas coisas que se revela o verdadeiroempenho na conservação, a real compreensão doque significa e para que serve preservar! Desprezaros detalhes, descurar os contextos, é como tentarpreservar a floresta, mas deixar abater as árvores.

Voltando à Geologia. A geodiversidademanifesta-se sob variadíssimas formas e a diversosníveis. Nem todos os elementos que a compõemserão classificáveis como Património Mundial ouelegíveis para estratótipos, certo, mas isso nãosignifica que sejam negligenciáveis, dispensáveis.São tão necessários para a compreensão e acontextualização do nosso Planeta como os demais.Apenas não cumprem os requisitos para seremclassificados deste ou daquele modo, a este ouàquele nível. Devemos ter presente que os critériosde classificação são definidos de acordo com onível de consciência social do momentorelativamente às questões da conservação doPatrimónio. Ora, como bem sabemos, as consciências, e por conseguinte os critérios,evoluem. Além disso, a classificação encerra uma

perversidade terrível, a de, para demasiada gente,desclassificar implicitamente tudo o que nãoabrange. E não é possível classificar tudo!

Perder diversidade é como arrancar páginasde um livro. Quantas páginas poderemos

arrancar até deixar de compreender o enredo? Se lermos apenas trechos de uma obra, será que apercepção com que ficaremos da narrativa será amesma da leitura da obra completa? Será que, dos livros, apenas vale a pena preservar asmagníficas páginas com gravuras, como o fazem os alfarrabistas que têm mais amor ao dinheiro que aos livros? Por último, continuando a metáforabibliográfica, estaríamos dispostos a comprar umromance ao qual faltassem páginas, por muitopoucas que fossem?

“Poupem os tostões que os escudos poupar-se-ão a eles próprios!” Se protegermos evalorizarmos as pequenas coisas, as grandes estarãoprotegidas por arrastamento, como resultado lógico,necessário, do respeito e do carinho peladiversidade das manifestações naturais e culturais do mundo que nos rodeia.

Pelo contrário, se descurarmos a diversidade, se não acarinharmos também as pequenas coisas, os detalhes, e nos cingirmos à protecção apenas doque é passível de classificação, do que, face aoscritérios actuais, é “importante”, acabaremos porviver num mundo totalmente descaracterizado,estéril, pejado de subúrbios desordenados onde serápenoso viver, de dunas onde só haverá chorões, de arribas litorais cobertas de betão, de restaurantesonde só servirão fast food (no mau sentido dotermo), de programas televisivos que sótransmitirão cultura pimba. Nesse mundo cinzentosubsistirão aqui e ali, esparsamente, jóiaspatrimoniais protegidas, magníficas, deslumbrantes,mas completamente isoladas e descontextualizadas,logo, incompreensíveis. Demasiado poucas edemasiado alienadas para nos salvarem douniformismo bacoco em que nessa alturairremediavelmente nos afundaremos.

Carlos Marques da Silva, Junho de 2005

10 al-madan ISSN 0871-066X | IIª Série (13) | Julho 2005

C E N T R O D E A R Q U E O L O G I A D E A L M A D A

CRÓNICAS DE...paleontologia

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Referências bibliográficas