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FALSAS LEMBRANÇAS NAS PSEUDOCIÊNCIAS E A INADEQUAÇÃO DA HIPNOSE NA RECONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA Carlos Reis & Ubirajara Rodrigues Universidade Fernando Pessoa. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias / Associação Mineira de Psicanálise Contemporânea DOI: 10.25768/21.04.01.020 RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar que a presença das falsas lembranças é muito mais comum do que se supõe, influenciando comportamento, vida social e profissional e a própria constituição psíquica do sujeito. Pessoas submetidas a técnicas como a hipnose em sua forma mais conhecida – a regressão de memória –, relatam tanto fatos aleatórios como enredos ricos, coerentes e complexos, cujo exame atento, porém, revela estarem à parte da realidade objetiva. Vale dizer, elas não experienciaram o que alegam ter vivido, sendo, na ver- dade, elaborações, histórias e fabulações que ouviram, leram e até tomaram conhecimento, mas não como protagonistas. São situações engendradas pela psique em razão de influências, sugestões, emoções, devaneios, fantasias, crenças, volições e ilusões de toda sorte, tampo- nando lacunas que a memória não tem condições de preencher. Fatos que não podem mais ser resgatados são substituídos pela própria dinâmica da mente, que não sobrevive no vazio. O recorte do estudo, multicêntrico e transdisciplinar, se atém à relação da hipnose com as falsas lembranças na pseudociência, o que lhe confere um caráter de pioneirismo pela ausência de uma literatura própria precedente. PALAVRAS- CHAVE: falsas lembranças; hipnose; pseudociência; crenças; desamparo. FALSE MEMORIES IN PSEUDOSCIENCES AND THE INADEQUACY OF HYPNOSIS IN THE RECONSTITUTION OF MEMORY ABSTRACT: The objective of this paper is demonstrating that the presence of false memories is much more common than supposed, influencing behavior, social and professional life and the subject’s own psychic constitution. Persons submitted to techniques such as hypnosis in its best-known form – memory regression – report both random facts and rich, coherent and complex plots, whose careful examination, however, reveals them to be apart from objective reality. It’s worth saying that they have not experienced what they claim to have lived, being, in fact, elaborations, stories and fables that they heard, read and even became aware of, but not c 2021, Carlos Reis & Ubirajara Rodrigues. c 2021, Universidade da Beira Interior. O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transformação da totalidade ou de parte desta obra ca- rece de expressa autorização do editor e do(s) seu(s) au- tor(es). O artigo, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva responsabilidade do(s) au- tor(es).

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FALSAS LEMBRANÇAS NAS PSEUDOCIÊNCIAS E A INADEQUAÇÃODA HIPNOSE NA RECONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA

Carlos Reis & Ubirajara Rodrigues

Universidade Fernando Pessoa. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias /Associação Mineira de Psicanálise Contemporânea

DOI: 10.25768/21.04.01.020

RESUMO: O objetivo deste trabalho é demonstrar que a presença das falsas lembranças émuito mais comum do que se supõe, influenciando comportamento, vida social e profissionale a própria constituição psíquica do sujeito. Pessoas submetidas a técnicas como a hipnoseem sua forma mais conhecida – a regressão de memória –, relatam tanto fatos aleatórios comoenredos ricos, coerentes e complexos, cujo exame atento, porém, revela estarem à parte darealidade objetiva. Vale dizer, elas não experienciaram o que alegam ter vivido, sendo, na ver-dade, elaborações, histórias e fabulações que ouviram, leram e até tomaram conhecimento,mas não como protagonistas. São situações engendradas pela psique em razão de influências,sugestões, emoções, devaneios, fantasias, crenças, volições e ilusões de toda sorte, tampo-nando lacunas que a memória não tem condições de preencher. Fatos que não podem mais serresgatados são substituídos pela própria dinâmica da mente, que não sobrevive no vazio. Orecorte do estudo, multicêntrico e transdisciplinar, se atém à relação da hipnose com as falsaslembranças na pseudociência, o que lhe confere um caráter de pioneirismo pela ausência deuma literatura própria precedente.PALAVRAS-CHAVE: falsas lembranças; hipnose; pseudociência; crenças; desamparo.

FALSE MEMORIES IN PSEUDOSCIENCES AND THE INADEQUACY OFHYPNOSIS IN THE RECONSTITUTION OF MEMORY

ABSTRACT: The objective of this paper is demonstrating that the presence of false memoriesis much more common than supposed, influencing behavior, social and professional life andthe subject’s own psychic constitution. Persons submitted to techniques such as hypnosis inits best-known form – memory regression – report both random facts and rich, coherent andcomplex plots, whose careful examination, however, reveals them to be apart from objectivereality. It’s worth saying that they have not experienced what they claim to have lived, being,in fact, elaborations, stories and fables that they heard, read and even became aware of, but not

c© 2021, Carlos Reis & Ubirajara Rodrigues.c© 2021, Universidade da Beira Interior.

O conteúdo deste artigo está protegido por Lei. Qualquerforma de reprodução, distribuição, comunicação públicaou transformação da totalidade ou de parte desta obra ca-

rece de expressa autorização do editor e do(s) seu(s) au-tor(es). O artigo, bem como a autorização de publicaçãodas imagens, são da exclusiva responsabilidade do(s) au-tor(es).

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as protagonists. These are situations engendered by the psyche due to influences, suggestions,emotions, daydreams, fantasies, beliefs, volitions and illusions of all kinds, filling gaps thatmemory is unable to fill. Facts that can no longer be retrieved are replaced by the mind’s owndynamics, which cannot survive in the void. The outline of the study, multicentric and trans-disciplinary, stick to the relationship between hypnosis and false memories in pseudoscience,which gives it a pioneering character due to the absence of a previous literature of its own.KEYWORDS: false memories; hypnosis; pseudoscience; beliefs; helplessness.

Índice

1 Um “corpo estranho” na memória . 22 Hipnose, uma técnica superestimada 33 Lembranças no sentido literal . . . . 74 Mitos perenes da hipnose . . . . . . 95 Relatos em transe e sonhos: seme-

lhanças . . . . . . . . . . . . . . . . 106 Abusos e outros traumas . . . . . . 147 A intervenção do pesquisador . . . . 168 A psique, um santuário . . . . . . . 18Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . 21

A memória é uma vigarista,uma emérita falsificadorade fatos e de figuras.Nelson Rodrigues

1 Um “corpo estranho” na memória

MEMÓRIA é, simplesmente, o repositóriode experiências vividas de uma pessoa

– um “álbum de recordações” –, e, sem ela,não temos história, não podemos contá-la aosfilhos, aos netos, nem a nós mesmos. Nossamemória é seletiva, e precisa ser, porque so-mos diariamente bombardeados com todo tipode informação desde o berço, e não há comoarmazenar todas as experiências vividas. Sóo que é realmente relevante ou marcante emalgum momento fica à disposição para resgateimediato. O que é desagradável, o que nos ma-chuca, o que não queremos lembrar, vai paraalgum lugar incerto e não sabido. Por isso

mesmo, ela é subjetiva e não dá nenhuma ga-rantia de saber distinguir o real do irreal. Éa “vigarice” sugerida na epígrafe, trapaceandoconosco o tempo todo.

Que processos mentais se articulam paraativar ou desativar lembranças? Por que re-cordamos coisas que não queremos, e nãolembramos de algo quando precisamos? Emais, como é possível lembrar de situaçõesque nunca aconteceram? Pois essas e ou-tras questões, marcadamente o falseamento delembranças, tem impulsionado pesquisadoresem todo o mundo há mais de um século, e acurva dos estudos e testes laboratoriais crescesignificativamente. Só para constar, pois quenão entraremos em detalhes, três modelos teó-ricos explicativos se apresentam para o debatedas falsas lembranças: o Construtivista, o Mo-vimento da Fonte e o Traço Difuso. Mas sãoteorias; a explicação, se é que há uma, perma-nece inacessível bem lá no fundo.

“Falsas lembranças”2 é uma deformaçãomnemônica, eventos que jamais ocorreramsão elaborados pela mente para reconstituiruma lembrança “perdida”. São muitos os es-tudos que sugerem que a valência e o alertadas emoções auxiliam a memória por meiode diferentes processos cognitivos, mostrandoque experiências autobiográficas de forte tô-nus emocional são recuperadas com mais pre-cisão do que aquelas sem conteúdo afetivo.Tal fato, contudo, não afasta a possibilidade deque recordações autobiográficas possam estarsujeitas a distorções e intromissões externas,

2 Embora consagradas pelo senso comum, no rigor da letra“memória” e “lembrança” não são sinônimos. Memóriaé o continente, lembrança é o conteúdo. Adotamos, por-

tanto, essa distinção – “falsas lembranças”, mantendo ooriginal das citações e obras (N. AA.).

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um “corpo estranho”. Se, por um lado, é ver-dade que nossa memória permite quase sem-pre acessar, de forma funcional, fatos do pas-sado, por outro lado é verdade também quetais lembranças não sejam fieis à realidade queacreditamos ter vivenciado.

Um efeito do impacto da emoção na me-mória é o flashbulb memory (memórias delampejo), conforme descrito por Brown e Ku-lick (1977), que consiste em lembranças ricasem minúcias acompanhadas por elevados ní-veis de confiança subjetiva. A falsa lembrançacria situações embaraçosas, com reflexos so-ciais, porque envolve questões de ordem jurí-dica como, por exemplo, no reconhecimentoda autoria de um crime, que, na verdade, nãofoi cometido pelo acusado.

Casos de roubos ou furtos de pequenamonta, crimes de pouca gravidade (ou chama-dos de pouco poder ofensivo), estupros, abu-sos e violência sexual, entre outros, tambémtrazem complicações do ponto de vista legal.Entretanto, como não será a seara por ondevamos caminhar, qualquer menção a respeitoserá apenas para ilustrar e dar alguma baseao raciocínio do momento. A memória nãoé um retrato da realidade, mas uma interpreta-ção construída pela mente. Nosso cérebro re-escreve o mundo a partir da subjetividade doser, dando temperos particulares às experiên-cias vividas, “ajustando” as informações an-tes de imprimi-las na consciência. Um dadoimportante é que uma equipe de cientistas daHarvard University descobriu que os mecanis-mos de acesso à memória são os mesmos daimaginação, vale dizer, uma pessoa pode fazerleituras equivocadas das lembranças gravadascorretamente na sua memória.

Segundo Damásio (1996), durante muitotempo a relação emoção-cognição não eraconsiderada tema de estudos das neurociên-cias, por julgarem que estavam em posiçõesopostas na experiência humana. Hoje, o en-tendimento mudou consideravelmente, sendoconsensual que a emoção e a cognição sejamdomínios complementares e não mais exclu-dentes. A fortuna crítica sobre as falsas lem-

branças cresceu a olhos vistos, muito prova-velmente pelo atual cenário global. A questãoque se coloca é: o quão as múltiplas vias deinformação e conhecimento podem interferirnos processos da memória? Quais são os fa-tores endógenos e exógenos que contribuempara a “deformação” das lembranças?

O que procuraremos mostrar – e responder– é um aspecto geralmente desprezado pelosestudiosos de áreas consideradas pseudocien-tíficas, sendo as mais conhecidas os jogos di-vinatórios, como astrologia, cartomancia, nu-merologia; criacionismo, grafologia, homeo-patia, crenças místico-religiosas (reencarna-ção, vida após a morte), ufologia e parapsi-cologia (mediunidade, telecinesia, terapia devidas passadas). Grosso modo, pseudociên-cia é tudo aquilo que não possui método cien-tífico na base de suas propostas, mas utiliza-se pretensamente de conceitos da ciência paravalidá-las, atuando mais na base da crença. Ométodo que adotamos é basicamente o bibli-ográfico, para oferecer subsídios aos pesqui-sadores que não têm conhecimento suficientesobre essas temáticas, por não serem reconhe-cidas como ciência lato sensu. Pseudociênciaé onde realidade e fantasia se chocam por nãopoderem ocupar o mesmo lugar no espaço.

Esse conjunto de crenças caminha em pa-ralelo com os sistemas consolidados do co-nhecimento para que possa obter deles ex-plicações “cientificamente comprovadas” dosfenômenos os quais se propõem estudar. Asfalsas lembranças serão abordadas aqui comoalternativa plausível de resposta aos compor-tamentos daqueles que passaram por experiên-cias anômalas ou “paranormais” no campo daspseudociências, mais exatamente no campo danossa experiência, com a hipnose no estudodas chamadas abduções.

2 Hipnose, uma técnicasuperestimada

O estado hipnótico é, basicamente, uma re-gressão topográfica que interage com a emo-ção, a cognição e a experiência do Eu. Quemé afeito aos temas pseudocientíficos considera

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a hipnose um método “infalível” na busca derespostas objetivas, conclusivas e satisfatórias.O fascínio que os apaixona (“passion”) nes-ses temas é o mesmo que a hipnose lhes dácomo “prova” das suas crenças, em termosmetodológicos, o que de fato não é o caso.A hipnose, desde a sua passagem pela fasemística representada por praticantes como Pe.Johann Gassner (1727-1797), na Alemanha,Franz A. Mesmer (1734-1815), na Áustria, eArmand-Marie-Jacques de Chastnet, marquêsde Puységur (1751-1825), na França, tem sidovista por certas correntes como uma espéciede “força” ou “energia” que emanaria do hip-notista3, influenciando o paciente. Energiatornou-se um termo genérico por várias ver-tentes místico-religiosas sem qualquer funda-mento, já que a hipnose é apenas uma técnicaque utiliza de meios sugestivos a quem a elase submete; a verdade, no entanto, é a imagi-nação que colabora para os resultados.

Quando, porém, a partir do século 19, al-guns estudiosos deram ensejo à fase cientí-fica da hipnose, como José Custódio Faria, oAbade Faria, professor de Filosofia em Mar-seille, França; James Braid, médico escocêsem Manchester, no Reino Unido, criador dotermo hipnose (do grego hypnos, sono); o mé-dico austríaco Josef Breuer e Freud, em Vi-ena, determinados mitos foram sendo desfei-tos com o tempo, porque certas crenças aindapermaneciam caracterizando alguns estudos.Ou seja, crenças como a da energia emanadado hipnotizador e as teorias do “magnetismoanimal” do mesmerismo; mas o mais impor-tante é que ainda se sustentava a convicçãode que eventos extraordinários e sobrenaturaiseram recalcados, e a hipnose teria o poder detrazê-los à lembrança, ao consciente. Isso foinaturalmente inspirado nos conhecimentos daPsicologia e da Psicanálise (que fala em recal-que de episódios traumáticos, por exemplo),tal como ocorre no plano da pseudociência.

Dito de outro modo, o uso de teorias econceitos científicos na tentativa de referen-dar o que é exclusivo do terreno da crença, dafantasia e até da superstição. A hipnose foium dos primeiros métodos terapêuticos utili-zados por Freud após assistir a uma demons-tração de Charcot4, em Paris. Porém, duranteuma década colhendo êxitos e fracassos, em-bora não a reprovasse, Freud considerava-auma técnica “analgésica”, limitada e insatisfa-tória para os seus propósitos; como não com-preendia exatamente como funcionava e porreconhecer que não era um bom hipnotizador,afastou-se dela para dedicar-se ao estudo daPsicanálise:

(...) Depois minha resistência to-mou a direção de uma revolta con-tra o fato de a sugestão, que tudoexplicava, se furtar ela mesma à ex-plicação. Eu repetia, com referên-cia a ela, a velha adivinhação: Cris-tóvão carregou Cristo, Cristo carre-gou o mundo inteiro; diga, então,onde Cristóvão apoiou o pé? (Freud,2011:31).

Claro que a época era outra e a hipnose,incipiente, dava seus primeiros passos, e have-ria um longo caminho a percorrer. Mais tarde,hipnose e psicanálise se separam e a pesquisada hipnose distancia-se do ambiente clínico edo ethos do sujeito. Apesar do divórcio, oolhar psicanalítico acompanha de perto os mo-vimentos da hipnose em sua relação com ascrenças pseudocientíficas, para as quais a re-ligião é o ponto de amarração. Ou um refú-gio, um esconderijo, para alguns estudiosos (omesmo vale para as falsas ciências). Como epor que isso acontece?

Essa face do poliedro religioso é cru-cial e precisa ser cuidadosamente abordada,com sensibilidade, jamais negligenciada pelos

3 Adotamos a expressão hipnotista – hypnos, istes – adepto,praticante, e não hipnólogo – hypnos, logos, aquele queestuda sem exercer o ofício profissionalmente.

4 Jean-Martin Charcot (1825-1893), neurologista e psiqui-atra francês, considerado um dos fundadores da modernaneurologia. Suas pesquisas com a hipnose visavam o tra-tamento da histeria.

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hipnotistas, profissionais e pesquisadores nopreâmbulo de uma hipnose regressiva. A pre-ocupação procede com base nos trabalhos detrês das grandes referências nesse campo. Aolongo do seu trabalho sobre a constituição psí-quica do ser, o sociólogo e psicanalista alemãoErich Fromm (1956) entende que, se o homemabstrai da ilusão de um “ente protetor” em suasolidão no contraponto da exuberância do uni-verso, ele se sentirá como uma criança desam-parada longe do abrigo paterno. Nos mesmosventos, Freud (2009) assevera que, para nãocapitular frente à dura realidade do mundo, ohomem regride à infância para exercer o di-reito ao choro rogando uma nova chance – aimortalidade. Cerrando fileiras com ambos, oescritor e antropólogo americano Ernest Bec-ker (2008) afirma que a necessidade de sig-nificância é um fator estrutural antropológicodiretamente ligado ao medo da morte. O temada orfandade não se esgota aqui. Ao fim e aocabo, o que se tem é uma criança perdida emcorpo de adulto vendo seu castelo de areia des-manchar nas águas do tempo. Acrescente-sea esse quadro uma gama de sintomas cumu-lativos, como ansiedade, abandono, negação,depressão, paranoia, desorientação, angústia emedo. É por essa razão que aditamos este co-mentário inicial absolutamente essencial parao amplo entendimento da questão presente aolongo do artigo.

Pierre Janet (1859-1947), neurologista epsicólogo, colaborador de Charcot, foi um im-portante pesquisador dos fenômenos hipnóti-cos, criando o conceito do abaissement du ni-veau mental (diminuição do nível mental), uti-lizado por Jung para descrever um estado limí-trofe em que a consciência de certos conteú-dos inconscientes era iminente, que reconhe-cia ser um importante estado de condição pré-via para a ocorrência de fenômenos psíquicos

espontâneos. Nesse sentido, Samuels chamaa atenção para o fato de que “...muito emboraseja normalmente um estado que ocorre invo-luntariamente (. . . ) também pode ser consci-entemente propiciado como fator preparatóriopara a imaginação ativa (Samuels, 1988:17)(grifo original).

Na esfera da nossa competência, o pri-meiro objeto de análise diz respeito às supos-tas “abduções” por seres extraordinários, os“alienígenas”, nas quais os atores dizem tersido vítimas (invariavelmente durante o sono),submetidos a exames físicos e outros atos in-vasivos.5 Se o relato for coerente e minuci-oso, a “regressão de memória” ou hipnose re-gressiva confirmará que a técnica é segura senarrador e hipnotizador adotam a crença deque extraterrestres são reais, quando então ahipnose será altamente valorizada como mé-todo absolutamente garantidor da verdade. Noentanto, sem o conhecimento básico neces-sário desta área (ufologia), dos padrões dis-tintivos do comportamento humano em situa-ções atípicas de forte tônus emocional comotais, e não tendo participação direta na inves-tigação do caso, psicanalistas, médicos, psi-cólogos e psiquiatras tenderão a se convencerda veracidade dos fatos, endossando ingenu-amente a ilusória realidade vivida pelo decla-rante. Quais seriam esses padrões distintivos?Pesquisas feitas no Reino Unido6 revelam queo perfil psicológico dos que alegam contatose abduções apresenta sensíveis diferenças emcomparação com os demais participantes docontrole: níveis mais elevados de dissociação,encantamento, crença e experiência paranor-mal, tendência à alucinação e fantasia, maiorsuscetibilidade a falsas lembranças e paralisiado sono e “dons” paranormais autorreferidos.São dados significativos a serem computados.

Muitos desses profissionais, e os leigos

5 Não entraremos no mérito da questão, se alienígenas exis-tem ou não, para manter a neutralidade da análise. O focoserá sempre o valor da hipnose como técnica de investiga-ção (N.AA.).

6 French, C.C. et al. “Psychological aspects of the alien

contact experience”. Journal Devoted to the Study of theNervous System and Behavior. 44:10.1387-1395. 2008.

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sem qualquer experiência em Psicologia, masadeptos de uma concepção supersticiosa e ar-caica da hipnose, operam de forma precipitadaconforme suas opiniões – a doxa7 –, embebi-das de pensamento mágico, em detrimento dalisura e respeito à pessoa. Não apenas estãoinabilitados para lidar com o problema como,principalmente, colocam em risco a saúde fí-sica e psíquica do indivíduo, quando menos,causam constrangimento. Tais riscos estão do-cumentados nos estudos de Breuer e Freud so-bre a hipnose e técnicas similares nos casosde sintomas graves e complexos, buscando otratamento de traumas e demais transtornos,inclusive psicóticos. É condenável que pro-fissionais sem o amplo domínio das discipli-nas envolvidas e sensibilidade para percebera gravidade do momento assumam a práticaterapêutica ausente dos princípios éticos ele-mentares.

Uma breve e importante digressão. En-tenda-se por “pensamento mágico” um amploespectro de convicções movediças de moldemetafísico, um complexo sinérgico de crençasbiopsicossocioculturais, raiz da autoajuda. Opensamento mágico visa a fugir do enfrenta-mento da verdade da própria experiência in-terna e externa, criando, para isso, um estadomental no qual o sujeito acredita viver umarealidade. Nessa condição, dirá Freud, a re-alidade psíquica prevalece, obliterando a re-alidade externa, é a “onipotência do pensa-mento”. Para ele, a origem do pensamentomágico estaria em algum momento míticoda longa jornada evolutiva da humanidade,que cada ser tem que cumprir em sua his-tória pessoal, enquanto que, para Frazer, é“uma imensa e desastrosa falácia, uma con-cepção errônea de associação de ideias” (Fra-zer, 1982, p. 72).

Em razão de vários fatores de naturezapsíquica, a hipnose regressiva não passa deum modo pelo qual o narrador constrói en-

redos e associa fatos aleatórios, que exerceminfluência psicológica e emocional ao criar si-tuações existentes apenas em sua capacidademental, manifestando mecanismos como Con-densação, Dramatização e outros que, de tãocomplexos, não iremos abordar, por isso su-gerimos a bibliografia complementar ao final.Contudo, é interessante notar que, na Con-densação, a psique assume, em um único ro-teiro, o encadeamento de diversos outros fa-tos, apresentando um sonho de “conteúdo ma-nifesto”. Tais fatos são frequente e erronea-mente interpretados como abduções.

Por outro lado, alguns estudiosos pode-riam alegar que esses mecanismos, por esta-rem relacionados ao sonho, não deveriam serusados para explicar supostos casos de abdu-ção. O transe hipnótico não é sono propri-amente dito, mas propicia o “mergulho” nasmesmas veredas da psique, e quando as “ab-duções” são narradas até mesmo sem o auxílioda hipnose, a correlação com o que se sabe empsicanálise e outras áreas é patente.

Os sonhos continuam sendo um dos maismisteriosos fenômenos da mente humana, eseguirão assim indefinidamente. Com toda asua experiência, Jung, após décadas de inten-sos estudos, admitiu que jamais os compre-enderia por completo. Estudos recentes dasneurociências reforçam as fortes conexões en-tre sonhos, realidade e imaginário, que abremnovas perspectivas nos campos da Psicolo-gia Comportamental, de total interesse para onosso trabalho. Sumariamente, podemos elen-car algumas dessas descobertas. Desde 2001o neurocientista Patrick McNamara vem ob-servando que as relações sociais afetam os so-nhos. Suas pesquisas com 300 jovens estu-dantes indicaram que os solitários e insegurossonhavam mais e com riqueza de detalhes emorbidez. Seus estudos associam também ossonhos com a experiência religiosa em função

7 Conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um mo-mento histórico específico, acreditando tratar-se de umaverdade óbvia ou evidência natural, mas que, para a Filo-

sofia, não passa de uma crença ingênua que só pode sersuperada através do verdadeiro conhecimento.

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da geografia cultural e condição social. Essaassociação permeia este nosso trabalho.

Outro aspecto levantado por Gackenbach(2012), da Grant MacEwan University, do Ca-nadá, é que as novas tecnologias (em espe-cial o videogame, pela exigência de reaçõesrápidas) parecem provocar mais sonhos lúci-dos, e mais bizarros também. Um dado rele-vante é que os cientistas acreditam que umadas funções do sonho seja a de “solidificar”as lembranças de fatos vividos. Por fim, tal-vez a descoberta mais desconcertante (ratifi-cada por Bion ao final) é que os sonhos sãomuito semelhantes aos estados de delírio dosesquizofrênicos. A partir de um ponto de vistadiferente, isso significa que em cada sonho es-tamos imersos em um estado esquizofrênico,algo como “loucura particular noturna”. Emsíntese, e aqui cumprimos com este tópico, umsonho, lúcido ou não, incorpora dados da rea-lidade e do imaginário, configurando um mo-saico complexo em que a hipnose pode nãoser capaz de distinguir a verdade da fantasiasubjacente de cada relato.

3 Lembranças no sentido literal

Quando sob hipnose, ou em oração ou concen-tração profundas, uma pessoa pode expressarum saber supostamente não adquirido, falaridiomas que jamais aprendeu e emitir mensa-gens que contrastam com seu nível intelectual.Nessas ocasiões, declaram contatar entidadesimateriais – espíritos, mestres, seres de outrasdimensões –, pregam sermões e discursos so-bre temas fora do seu capital cultural e ver-balizam frases em línguas que lhes são estra-nhas ou desconhecidas. Em outras palavras,entram em transe mediúnico ou em contato

com outros planos, apresentando fenômenoscomo prosopopese8, xenoglossia9 e glossola-lia10, e ainda revivendo outras identidades desuas vidas pregressas.

Essas ocorrências seriam realmente lem-branças? O problema está em onde elas resi-dem, se na mente (leia-se cérebro) ou no espí-rito (leia-se consciência sobrevivente e inde-pendente do corpo físico). Sabe-se hoje que amemória consciente fica primeiro guardada nocórtex pré-frontal, para depois ser convertidaem memória de longo prazo no hipocampoe, ao final, depositada nas mesmas áreas docórtex que processaram a informação. Lem-brança é formada por informações, experiên-cias, ideias e imagens – o patrimônio da me-mória –, que já chegaram à consciência. Ohomem é um “museu dinâmico de imagens”passadas, produzidas e a produzir, preconizaDurand (2002), fruto do percurso antropoló-gico num arco que vai do nível neurobiológicoao cultural, e esse capital “pensado” e sonhadopossibilita entendermos a linha do tempo pre-térito, presente e futuro. Assim, o real é trans-figurado e remodelado de maneira a se encai-xar na experiência pessoal de vida, conduzidopor uma lógica interna própria para criar, tra-duzir, interpretar, reinventar ou representar omundo mais afetivamente.

Nenhuma lembrança pode ser resgatadapela memória sem que tenha passado pelossentidos físicos, pela percepção. Em outraspalavras, os fatos vividos conscientementesão gravados no pré-consciente, e suas sensa-ções permanecem no inconsciente, conformea “Teoria Topográfica”11 de Freud. Portanto,de modo pragmático, as manifestações sãolembranças invariavelmente contidas no cére-bro, na memória do corpo e, de acordo com

8 Prosopopese é uma espécie de mudança da “personali-dade psicológica” espontânea ou provocada, no caso depessoas que manifestam “dupla personalidade”.

9 Xenoglossia trata de supostas línguas estranhas, em quea pessoa exprime vocabulário, frases por vezes completase raramente pensamentos inteiros. Caso de idiomas real-mente existentes.

10 Glossolalia é a aparente língua estranha, que não passade sons esparsos, misturados, fenômeno de caráter “histé-rico” que não constitui qualquer idioma, nem mesmo pa-lavras ou frases.

11 A Teoria Topográfica denominava três situações que são:Consciente, Sub ou Pré-consciente e o Inconsciente. Re-comendamos o estudo sobre essa teoria e da Teoria Estru-tural: Id, ego e superego.

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pesquisas em curso, em diversos outros com-plexos celulares; como não se cogita corpoque não seja físico, os eventos anômalos men-cionados são ações próprias da psique. Éo que até agora se pode afirmar; entretanto,não se pode omitir que estudos não certifi-cados por institutos de renome, não publica-dos e, portanto, ainda sem aval acadêmico,tenham mostrado que algumas pessoas reve-lam conhecimentos profundos para além doseu acervo cognitivo e informações organiza-das sem domínio científico.

Na realidade, tais lembranças são consti-tuídas por passagens rápidas a certos lugares,escuta de pessoas que se comunicam em idi-omas incomuns ao meio e atenção despertadapor cenas e situações específicas. Tudo per-manece no subconsciente e, sob circunstân-cias especiais, se manifesta com maior ou me-nor evidência. Até a sensação chamada déjà-vu pode assim ser entendida, vez que é umaaparente lembrança que provoca na pessoa asensação de já ter visto ou vivenciado algumacena desconhecida. A Parapsicologia adotouo termo “paramnésia”, uma disfunção da me-mória para coisas, pessoas ou fatos que nuncaexistiram. O déjà-vu comporta também razõesde ordem puramente orgânica e/ou neurofisio-lógica.

É claro que existem recordações autênti-cas, mas elas também podem parecer anoma-lias de cunho psíquico, incomuns e surpreen-dentes, como já citado, no caso de alguéminculto que manifeste glossolalia, ou que ex-presse temas fora do seu alcance. Conquantose constituam como lembranças propriamenteditas, por memória adquirida durante a vida,não servem como comprovação de vidas pas-sadas ou interferência de “consciências exter-nas”. No entanto, a mente, como se sabe, écapaz de criar eventos não vividos realmente,o que é fartamente demonstrado por diversastécnicas, como a hipnose.

A hipnose serve, quando muito, para de-

monstrar a sinceridade da exposição que, paraa pessoa, subjetivamente, foi real, desde quedevidamente hipnotizada, que vai de um sim-ples relaxamento a um estado semelhante aosono profundo do tipo REM12. Compete aohipnotizador aplicar os devidos testes para secertificar de que o processo cumpre todas asetapas. Ainda que o hipnotizado simule estarsob hipnose para confirmar o relato feito emestado vígil, um hipnotista experiente e res-ponsável não se deixará enganar. É precisoconsiderar as sutilezas do caráter humano emtoda a sua extensão, em particular no que con-cerne à honestidade, à vaidade e à angústia dopróprio existir, como “abduzido” ou “interme-diário” do mundo “espiritual”, porque as ra-zões para o fingimento, a fabulação e a ence-nação são inúmeras.

É importante destacar também que um re-lato sincero, ainda que sem qualquer indíciode realidade concreta não é, necessariamente,uma mentira, não tem finalidade de fraude,porque sua realidade é uma verdade que nãose consegue sustentar por ser uma “verdadementirosa”, como diria Lacan. A hipnose vemsendo desenvolvida nas últimas décadas comoferramenta de aprimoramento da sensibilidadee, ao mesmo tempo, melhoria da concentraçãodo sujeito em suas recordações. No campo ju-rídico, em alguns países, ela é usada para iden-tificar a autoria de crimes e localização do si-nistro. Apesar dos cuidados inerentes ao uso,há um viés temerário que tem sido objeto deatenção dos especialistas da área médica e deSaúde Mental, precisamente o fulcro deste tra-balho.

A mente humana não apenas elabora e in-venta situações as mais diversas, como as as-socia a pessoas que podem não ter qualquerrelação. Para Vidolin (2003), a hipnose é uti-lizada na Medicina Legal com sucesso, prin-cipalmente porque permite que o sujeito, du-rante seu depoimento sob transe, narre o fatodissociado do seu conteúdo emocional, rele-

12 Rapid eye movement – movimento rápido dos olhos, fasedo sono na qual os sonhos são mais vívidos.

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vante para o processo. O depoente não reviveo sofrimento desnecessariamente, o que per-mite maior precisão do relato. O autor afirmaque, durante o transe, é possível recuperar de-talhes, coerente com a capacidade do proce-dimento de permitir apurar melhor o supostofato. Isso, entretanto, não elimina a possibi-lidade de um hipnotizado montar seu relatoenriquecendo-o com sutilezas fora da reali-dade.

Por outro lado, as implicações legais douso da hipnose são numerosas e impeditivas àsua prática. Sem entrarmos nos meandros daquestão, pode-se relacionar alguns pontos quesão, inclusive, contrários à Constituição Fede-ral: ausência de total liberdade das declara-ções, uma vez que o sujeito está psicológica efisicamente sob efeito da técnica; o testemu-nho é prestado fora das condições normais,já que a hipnose implica estado alterado deconsciência; possibilidade de o sujeito inven-tar, criar, expor – quase similar ao sonho – fa-tos, cenas e pessoas; o sujeito ser interrogadosempre através do hipnotizador, mesmo queem presença ou audiência de terceiros comojuízes, promotores, advogados ou outras auto-ridades qualificadas.

4 Mitos perenes da hipnose

A hipnose também carrega seus mitos, que,como tais, são perenes. Ela acompanha a evo-lução científica produzida pelos profissionaise institutos competentes, mas, apesar disso, osmitos, as “lendas”, o folclore e os erros so-bre ela permanecem, fazendo com que muitossigam acreditando que o que não seja perce-bido pelos sentidos possa ser decalcado nosrecônditos da mente. É um crasso engano.Disso resulta a hiper valorização da hipnose,imaginando que ela seja capaz de fazer aflorarpormenores que, em estado desperto de cons-ciência, não seriam recuperados de suas me-mórias. E, mesmo fatos que tenham sido ob-servados, ou afetado os sentidos, podem nãoter sido apreendidos. “Perceber” é notar, re-gistrar, ainda que por um átimo ter a atenção

despertada por qualquer um dos sentidos, emespecial visão, audição e tato.

Um experimento realizado por pesquisa-dores para verificar o rigor da percepção foi acontagem dos postes de luz existentes em umdado itinerário cumprido pelo hipnotizado,por exemplo, entre sua residência e o traba-lho, por ser um trajeto habitual. Não há um re-gistro seguro discutido pela Academia que de-monstre resultados positivos porque, quandoo teste é aplicado a um indivíduo desinteres-sado, a memória não retém a informação. Essaé uma situação bastante comum, pois certosobjetos, cenas e pessoas habitualmente vistosnão têm o condão de chamar nossa atenção.Vidolin acrescenta:

Argumenta-se que a habilidade dopaciente fantasiar em hipnose estáampliada, e que é possível, comsugestões vagas e incompletas, le-var estes mesmos pacientes a expe-rimentar vidas cheias de sentimen-tos e detalhes, nas condições, lugarese épocas em que o hipnotizador su-gerir. Estes colegas interpretam es-ses relatos como sonhos cujo con-teúdo deve ser analisado e utilizadona terapia, mas não como prova daexistência de reencarnação. A pró-pria elaboração dessas estórias pode-ria trazer benefício, como em reorga-nizar e entender sentimentos, trazer àtona material inconsciente ou apon-tar soluções (Vidolin, 2003:67).

Se admitirmos que a hipnose possa ser útilcomo técnica terapêutica – o que não é incor-porado pela ortodoxia da psicanálise freudiana–, isso não quer dizer que sirva à comprova-ção de uma realidade objetiva. Ao contrário,pode servir de construção de histórias fictícias,fantasiosas, talvez delirantes, o que se eviden-cia através de testes de transes até leves, comoa provocação de alucinações através de indu-ção hipnótica ou pós-hipnótica, experiênciasem que o indivíduo é levado a ver coisas que

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não são reais e, ao revés, deixar de ver o quede fato existe.

5 Relatos em transe e sonhos:semelhanças

A semelhança entre o relato sob hipnose e osonho está em que o sujeito experimenta e ex-põe verbalmente possuir características de so-nho, e se este é de grande valia na análisepsicanalítica, o é também para avaliar a ex-periências de abdução. O mito de que a hip-nose traz invariavelmente à superfície uma ex-periência real objetiva é obliterado pela plenaprobabilidade de se tratar de mera elabora-ção do sujeito, ainda que detalhada e com-plexa. Souza (2021) ressalta que o sonho nãopassa de conteúdos inconscientes trazidos aoconsciente, daí a surpresa dos pesquisadoresquando o sujeito alega “não se lembrar cons-cientemente” da sua experiência de abdução,mas que vem à lembrança através da hipnose.Nessas circunstâncias, consideram (erronea-mente) como “prova” que o fato tenha sidoreal. Os sonhos são um fenômeno regressivopor excelência, afirma Souza, citando Silva eSanches13. Todo sonho – e, portanto, aqui seinsere uma experiência psíquica de abdução –precisa ser interpretado para que lhe seja con-ferido um sentido, referindo a Ferza, e o textoé muito significativo:

Segundo Martins (2003)14, a lingua-gem dos sonhos possui suas particu-laridades que, ao longo dos séculos,mostra-se como um grupo de even-tos comuns de uma época radicadosna vivência dos povos. Possibili-tou, ainda, um aprofundamento dosníveis mais ocultos da mente, tor-nando possível a abordagem de vari-

ados sintomas, produtos de um am-biente capaz de oprimir e colocar emrisco valores naturais de cada ser.Sonhar é mais do que um simplesproduto do dia a dia, é revelar-se di-ante do enigma invisível, mas possí-vel de compreensão (Freza, 2021:1).

O basilar pensamento de Freud sofreu no-tável ampliação e atualmente tem-se que ossonhos são manifestações do inconsciente emsuas especificidades, o que se reflete duranteo sono (e também no transe hipnótico pro-fundo), como o que se conhece por “Elabora-ção Onírica”. Sendo ou não um sonho vívidoem razão de uma construção onírica, ele temum enredo intrincado que disfarça desejos, no-tadamente pelos conceitos freudianos clássi-cos. Isso pode ocasionar os “sonhos de ter-ror”, em razão da censura íntima da psique emsituações criadas pelos mecanismos internos –Condensação e Dramatização. Nesse sentido,é lícito supor que a psique, tomada de crençase fraquezas do sujeito e pelo cenário de altatecnologia, elabore com facilidade histórias deviagens espaciais, naves, alienígenas, abdu-ções e todo um pacote ficcional. Vale destacarque tais construções estão impressas na me-mória da civilização, portanto, o narrador des-sas experiências não precisa necessariamenteadotar tais crenças, elas afloram por contágio.É importante compreender que há, nessas ex-periências de caráter psíquico, como nos so-nhos, o Conteúdo Manifesto e o Conteúdo La-tente15, conceitos básicos que podem ser bus-cados nos compêndios de psicanálise. Temos,assim, um outro mito da hipnose esclarecidode forma resumida: o que possa parecer estra-nho, por vezes coincidente com o espírito daépoca, mesmo para alguém de pouca informa-ção e cultura, é o que a psique do sujeito hip-

13 Silva, E. A., Sanches; J. A. R. “Os Sonhos como manifes-tação de desejos inconscientes, 2011. Disponível em: https://psicologado.com.br/abordagens/psicanalise/os-sonhos-como-manifestacao-de-desejos-inconscientes.

14 Martins, G. A. “A interpretação dos sonhos na compreen-

são do universo mítico do homem, 2003. Disponível em:www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.ph.

15 Em linhas gerais, Conteúdo Manifesto é o que o paci-ente narra, enquanto Conteúdo Latente é o que verdadei-ramente alimenta o sonho, de natureza psicológica, que oanalista busca descobrir.

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notizado apresenta, sempre de sua realidadesubjetiva.

Cumpre salientar que, quanto ao sono, nãohá dissenso entre os estudiosos no sentido deque é essencial para a saúde, tanto quantoo descanso. Já quanto aos sonhos, muitosnão seguem a linha freudiana de que os so-nhos estejam necessariamente ligados aos as-pectos afetivos, a eventos traumáticos e a tan-tos outros de fonte emocional e neurológica.Para os não freudianos, o sonho é uma formade reorganização do cérebro, que se repro-grama e descarta lembranças inservíveis, oque certamente difere dos efeitos nefastos deum trauma ou situações emocionais impactan-tes. Gardner cita o médico francês MichelJouvet16 como um dos adeptos desse enten-dimento quanto à função do sonho, ao referir“sono paradoxal” – não sabemos porque so-nhamos, e mesmo aqueles privados do sonhoREM não sofrem efeitos adversos.

Com relação ao “sonho de terror” menci-onado acima, tratado usualmente por “terrornoturno”, também há divergência entre os pes-quisadores quanto ao nível do sono em que elepode ocorrer. A hipnose, sem dúvida – e nosperdoe pela insistência, o transe hipnótico nãoé igual ao sono – parece transitar entre os vá-rios níveis de sono, podendo, assim, provo-car a manifestação de um drama similar oumesmo com as características de uma abdu-ção. Sabe-se que o sonhador, durante o “terrornoturno”, agita-se, grita, apresenta várias rea-ções e alterações físicas de temperatura, pres-são, ritmo cardíaco, sudorese, espasmos e tre-mores, tudo como se realmente estivesse vi-vendo o fato que o assusta.

Não obstante o transe hipnótico seja idên-tico ao sono no que diz respeito aos sonhos,tudo o que o hipnotizado expõe está presentenos sonhos, com a diferença que, durante ahipnose, ele se comporta como que transi-tando aleatoriamente pelos níveis de sono, deforma randômica. Isso é evidente quando ele

fala sem “acordar”, gesticula, tem reações or-gânicas como as acima mencionadas, ou, aocontrário, fica paralisado, membros enrijeci-dos, ritmo respiratório em queda considerá-vel, a temperatura chega ao nível de isque-mia17, declínio ou aumento severos do ritmocardíaco. Debates à parte, se Freud tinha razãoquanto à quase totalidade de seu pensamentosobre os sonhos, também durante a hipnose osimpulsos do inconsciente do hipnotizado po-dem ser observados.

É possível que o “terror noturno” sejaefeito da ação do inconsciente agindo comos pensamentos reprimidos. A repressão é,grosso modo, tudo o que o indivíduo man-tém longe de seu reviver, de suas lembrançasclaras, para evitar a perturbação ou o trans-torno que elas podem provocar. Assim, a na-tureza original do sonho é deturpada, desmon-tada pelas repressões, conforme afirma Silva.É de se indagar se também durante a hip-nose tal processo interferiria na realidade dosuposto abduzido, e a resposta é sim. En-tretanto, a imersão no universo dos sonhosé tarefa extremamente complexa, ainda maisquando envolve relatos de abdução. É sensatoque aqui sejam apenas sugeridos dois pontospara futura pesquisa dos interessados, mesmoque não sejam citados autores específicos emPsicanálise, Psicologia e Neurociências. Du-rante os sonhos de terror noturno, a pessoagrita a quem dorme ao lado, enquanto o ab-duzido costuma afirmar que, apesar da visitainopinada e estranha, tenta pedir ajuda a quemdorme ao lado, em vão. Gardner se refere aoescritor americano Tom Wolfe que, em seu li-vro “In Our Time”, chama a atenção para mo-dernos estudos dos sonhos que, desde 1970,diferem totalmente das teorias freudianas.

A nova fronteira da moda era o es-tudo clínico do sistema nervoso cen-tral, uma tentativa de mapear preci-samente como são as ligações neu-ronais para medo, desejo sexual,

16 The Paradox of Sleep: The story of dreaming. MIT Press.2001.

17 Obstrução do fluxo sanguíneo.

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fome, aborrecimento ou qualqueroutro evento neurológico ou mental”(Wolfe, apud Gardner, 2002:139).

Conhecendo tais processos desenvolvidosno cérebro, é razoável supor que um neurolo-gista entenda as razões puramente orgânicaspara a elaboração psíquica de uma abdução,o que afasta ainda mais a “hipótese extrater-restre” de tais casos, mesmo que não se possadetectar quais fatores estritamente emocionaisou outros possam influenciar no enredo de umdrama de abdução. Essa pode ser uma res-posta aos que questionam como é possível aum sujeito que não tenha o menor interesse noassunto, de repente, narrar uma rica história deabdução.

Cabe esclarecer, sobre Dramatização, quetrata da relação direta da psique com as re-presentações teatrais. Segundo Andrade, “Nosonho, transformamos ideias em imagens, econstruímos com elas uma situação. A criati-vidade dramática no trabalho do sonho, comono brincar da criança, é produtiva e abre novasperspectivas” (2012:1). Por inferência, a “re-gressão de idade” consiste em prospectar osfatores endopsíquicos que constroem os fatosnarrados, em especial a influência de eventu-ais traumas. A regressão pode trazer circuns-tâncias disfarçadas pelos mecanismos citados,revestidas da influência da época, gerando, porexemplo, no caso da nossa análise, a presençade aliens na trama. O problema desse métodoé um inconveniente interpretativo, que ocorreem certas linhas de conduta, quando o investi-gador busca descobrir detalhes de uma abdu-ção que julga legítima. É o viés de confirma-ção, produzido por ele próprio em seu afã decomprovar o caso e suas crenças, projetando-o no hipnotizado. Desse modo, no fundo, é opesquisador quem constrói a história, uma in-teração que não passa de um rapport18 entrehipnotizador e hipnotizado, relação bem co-

nhecida em psicanálise, em que podem ocor-rer as situações de transferência19 ou de resis-tência. No caso do relato de abdução influen-ciado pela crença do pesquisador, essa relaçãonão apenas transforma como deforma comple-tamente uma realidade interior buscada no su-jeito, finalidade última da Psicanálise. Pode-se dizer, pois, que seja um momento em queuma pseudociência se utiliza de uma técnica(ainda que não propriamente incorporada aossistemas científicos da saúde psíquica) comocertificadora de seus objetivos. Da mesmaforma, a hipnose regressiva serve aos postu-lados religiosos de certas correntes, conformesublinha Mendonça Jr.: “Regressão de memó-ria é o processo provocado ou espontâneo, pormeio do qual o espírito encarnado ou desen-carnado fica em condições de relembrar o pas-sado, da vida atual ou em existências anterio-res, sejam elas recentes ou remotas” (2008).

Deduz-se também que, para psicanalistasque aplicam a hipnose, o passado psíquico doindivíduo gera a situação psíquica atual. Paraos que adotam a crença na reencarnação, essepassado ocorreu em vidas anteriores. Nesseúltimo caso, pode-se concluir também que seadmite memória ou lembrança sem um cére-bro – ou, teoricamente, sem células – que aretenha, tratando as lembranças como regis-tros que sobrevivem às múltiplas estadas doespírito no mundo que habita em um outro“plano”. Memória e lembrança sem corpo,portanto, são algumas das razões pelas quaistal assunto se inclui no presente artigo.

Não há como evitar a mistura de instân-cias de raciocínio e exemplificação sem que,nesse ponto, se pense também na chamadaEQM – Experiência-de-quase-morte –, prin-cipalmente em razão das sensações narradas,que têm notável similaridade com os relatosde abdução e os sonhos, onde se encaixamà perfeição os chamados “sonhos lúcidos”.

18 Rapport (fr. rapporter, criar relação), em linhas gerais,são técnicas de interação e empatia entre analista e anali-sante.

19 Sobre Transferência e Resistência, v. referência Roudi-nesco & Plon, pp. 766 e 659.

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A EQM encontra explicações nos fundamen-tos dos sonhos lúcidos, que são consideradosaqueles em que a pessoa não se engana quantoà realidade vivida, pois está tendo ciência deque se trata de um sonho e por vezes até o con-trola, chamados também de “sonhos-fora-do-corpo”. Podemos imaginar o quanto dessessonhos permanecem na memória, sendo po-tencial gerador de falsas lembranças.

Diletantes de pseudociência, ou cientistasalinhados com a realidade externa de uma ab-dução ou da dualidade corpo-espírito, costu-mam usar as “coincidências” das declaraçõessob hipnose como evidências do que acredi-tam. Se as pessoas relatam sensações, situa-ções e cenas idênticas, então é certa a proba-bilidade de estarem contando sobre algo real.No entanto, esse argumento não é defensável,ao contrário, pois os sinais e sintomas mos-trados pelo indivíduo, principalmente pelo seumundo psíquico, são praticamente padroniza-dos, no sentido de ocorrerem com característi-cas bem claras, entre elas, o famoso “túnel deluz” observado por aqueles que estiveram nolimiar da morte, ou em momentos de quedaacentuada de atividade cerebral. E as ações serepetem: eles observam-se a si mesmos – forado corpo –, do alto, deitados nas macas hos-pitalares ou em seus leitos, deslocando-se em“espírito”.

Outras sensações, como levitação, acom-panham esses momentos, e os pacientes come-çam a ver pessoas que não se encontram no re-cinto. É interessante acrescentar que em mui-tas dessas visões de pessoas ausentes incluem-se mortos, o que é sintomático. As neurociên-cias estão se ocupando desses episódios, o quedemonstra maior interesse dos meios científi-cos para com fenômenos hoje classificados deanômalos, ainda que nada do que possam con-cluir corrobore as crenças místico-religiosasde algumas correntes, em oposição ao que elaspróprias afirmam. Aqueles que são assumida-mente adeptos acreditam que o fato de cien-

tistas e institutos idôneos ocuparem-se dessesestudos “prova” a realidade do objeto de suasconvicções.

São vários os exemplos e podemos apenasmencionar, no campo da ufologia, para maiorclareza deste artigo, Carl Sagan, da CornellUniversity, divulgador da Ciência e ícone daastronomia contemporânea. Sagan produziu,na década de 1980, a série televisiva de grandesucesso “Cosmos”, na qual foram apresenta-das ilações e proposições teóricas sobre a vi-abilidade de vida extraterrestre – Astrobiolo-gia – de que Sagan foi a maior autoridade.Por essa razão, ufólogos do mundo inteiroincensaram-no como um “bravo defensor” desuas teses, sem se dar conta de que, na ver-dade, ele foi um arauto do ceticismo e fer-renho opositor dos postulados da ufologia eda parapsicologia, representante de uma linhacontrária à pseudociência, termo que ele pró-prio forjou para categorizar estas práticas.

Na EQM ocorre uma certa confusão comos estados alterados de consciência. Essesquadros fazem com que o estado REM supereo estado de vigília, ou não-REM, e cause asvisões e sensações descritas. É que esses “es-tados” do sono são, em linguagem clara, o deplena consciência ou vigília, quando estamosacordados e em atividade; o de semiconsciên-cia, que é o sono leve; e os estados interme-diários, de duração mínima – hipnagógico ehipnopômpico20. Quando o cérebro produz,por razões diversas, alterações e invasões des-ses níveis, efeitos psíquicos acontecem, comovisões de cenas, pessoas e “luzes”. Toda-via, para que isso ocorra, precisa haver ga-tilhos orgânicos, como parada cardíaca, ou ofluxo sanguíneo cerebral decai sensivelmente,ou desmaios, com alterações da pressão arte-rial e do metabolismo como um todo. Genes-treti, citando o neurologista Kevin Nelson21,especializado nesses estudos, tem uma expli-cação para as visões de luzes e a sensação delevitar nos casos de EQM:

20 Estados de entorpecimento que antecedem o sono e o des-pertar, respectivamente.

21 Kevin Nelson, The Spiritual Doorway in the Brain. Pen-guin, 2011.

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Se o fluxo sanguíneo está dimi-nuindo na região da cabeça, diminuitambém nos olhos, deixando a visãoborrada nas bordas e criando a im-pressão de que há um túnel com lu-zes. Já quanto às experiências ex-tracorpóreas, sabe-se que ao ‘desli-gar’ a região temporoparietal do cé-rebro, ligada à percepção espacial,podemos tirar a pessoa do seu corpo.Essa é a mesma área do cérebro queé ‘desligada’ durante o REM (Nel-son, in Genestreti, 2011).

Nelson fala também sobre as alucinações,esclarecendo que, quando entramos no estágioREM, o cérebro ativa os mesmos mecanismosdos sonhos lúcidos, porém, o processo é dife-rente nas alucinações de quase-morte, porqueacontecem quando estamos conscientes.

6 Abusos e outros traumas

Estudos e pesquisas ao redor do mundo de-monstram que, inequivocamente, traumas detoda sorte provocam alterações psíquicas emvários níveis e recalques de lembranças dolo-rosas, mas não é regra geral, pois outros fa-tores participam do processo. Ou seja, nemsempre os eventos geradores de sintomas oude lembranças realmente aconteceram. Eliza-beth Loftus, da UCL – University College Lon-don, reconhecida como a mais influente psi-cóloga do século 20, de acordo com a Reviewof General Psychology –, considera possíveluma pessoa implantar falsa memória em ou-tra, principalmente entre familiares: “De fato,apenas afirmar ter visto uma pessoa fazendoalgo errado já é suficiente para conduzi-la auma falsa confissão” (2014:6). Sempre que al-guém é levado a crer ter cometido um ilícito,até por pressão psicológica e emocional emum ambiente por si intimidador como o po-licial, a confissão do ato se consuma mesmoque a acusação seja inverídica. Prossegue aautora: “Estas descobertas mostram que umafalsa evidência incriminante pode levar as pes-soas a assumirem a culpa por um crime que

não cometeram, e até mesmo a desenvolverrecordações para apoiar os seus sentimentosde culpa” (2014:7). Julia Shaw, da UCL Psy-chology & Language Sciences, que coordenaum estudo de amplo espectro sobre memóriae psicologia criminal, acrescenta:

Todos pensam que não podem serenganados e acreditar que fizeramalgo que nunca fizeram, e que se al-guém lhes contasse sobre uma me-mória falsa, eles seriam capazes deidentificá-lo. Mas, descobrimos que,na verdade, as pessoas tendem aser bastante suscetíveis a ter memó-rias falsas, e elas soam como reais(2020:2).

O dado relevante da dinâmica de formaçãode falsas recordações é a combinação de lem-branças reais com irreais. Estas têm origemem sugestões vindas de terceiros, o que atestauma das premissas que nos conduziu neste tra-balho – a falta de evidências de uma realidadeobjetiva nos casos de abdução. Loftus escla-rece (grifo nosso): “Durante o processo, osindivíduos podem esquecer a fonte da infor-mação. Este é um exemplo clássico de confu-são sobre a sua origem, na qual o conteúdoe a proveniência estão dissociados” (Loftus,2014:7).

Uma de nossas investigações sobre umcaso de suposta abdução forneceu notáveis de-talhes obtidos através da hipnose. Descobriu-se que havia um relato anterior de outra pes-soa do círculo do entrevistado que se dizia“abduzida”, descrevendo as mesmas particu-laridades e circunstâncias. Nossa percepçãoé a de que não houve intenção de troça oumá-fé, apenas uma confusão de natureza psí-quica. Nesse sentido, uma equipe de cientis-tas descobriu que as falsas recordações se for-mam por vias diversas, sendo uma de tercei-ros, em ambientes sem qualquer relação com orelato foco do estudo. Essa constatação se deuem experimentos que tinham um objetivo ini-

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cial diferente22, mas que acabou despertando aatenção dos pesquisadores pelo caráter surpre-endente: “Nós ficamos estupefatos”, declaraGerald Echterhoff, da Jacobs University Bre-men, da Alemanha, citado por Chiodo. Ech-terhoff declarou que “É bom ter uma dúvidaou um ceticismo bem informado sobre o de-sempenho da sua memória, de forma que vocênão acredite facilmente em tudo o que vemà sua mente como se fosse algo verdadeiro ecerto” (Id.). Como sabiamente escreveu Edu-ardo Galeano, “A memória sabe mais de mimdo que eu mesmo”.23

Loftus ressalta enfaticamente que o fato dese poder implantar falsas recordações não im-plica dizer que todas elas, surgidas após umprocesso voluntário (ou não), possam ser ne-cessariamente falsas, e não desmente recorda-ções advindas de traumas recorrentes: “Semcorroboração, há muito pouco que possa serfeito para ajudar até mesmo o mais expe-riente observador a diferenciar as verdadei-ras recordações daquelas que foram sugestiva-mente implantadas” (2014:1). Podemos infe-rir que fatores complicadores estão presentes,portanto, a existência de falsas lembranças in-valida uma desejada evidência de abdução oude fenômenos ditos paranormais. Podemosainda relacionar a esses supostos casos os dotipo “abusos satânicos”, que o DepartamentoBritânico de Saúde, em relatório de 1994, deupor não provados, explicando-os da seguintemaneira, conforme esclarece Sagan:

A campanha cristã evangélica contraos novos movimentos religiosos temsido uma influência poderosa que es-timula a identificação do abuso sa-tânico. Importância igual, se nãomaior, para a divulgação da ideia deabuso satânico na Grã Bretanha, têmos “especialistas” norte-americanose britânicos. Podem ter pouca ou ne-

nhuma qualificação como profissio-nais, mas atribuem suas habilidadesà “experiência de casos” (1997:145).

Sagan entende que parece haver uma cre-dulidade marcante disseminada nos meios po-licial e judicial a respeito dessas práticas ritu-alísticas, crença essa que influencia as inves-tigações e até as conclusões que não corres-pondem à realidade. A diversidade de cren-ças místico-religiosas entre agentes públicospode gerar desconfiança e aceitação de cultosdemoníacos de diversas vertentes. Ele alertaainda que falsas lembranças podem ser gera-das por interrogatórios repetitivos e interfe-rência do experimentador. Rituais, atividadesmediúnicas, como canalizações, magia, cren-dices, boatos populares, astrologia, entre ou-tras, estão inscritas nessas outras vertentes.

No paroxismo dos devaneios populares,há o pensamento que aponta as abduçõescomo sintomas remanescentes de abusos se-xuais na infância, que são realocados e adap-tados como lembranças do presente. Tais lem-branças, reelaboradas e atualizadas, são cha-madas de “reelaboração retrospectiva”. Dequalquer modo, as abduções parecem serconstruídas em razão de “...altos níveis desugestionabilidade, capacidade imaginativa,sensibilidade a dicas e expectativas, e o ele-mento de contágio”, segundo relata Fred Fran-kel, professor de Psiquiatria da Harvard Me-dical School, entrevistado por Sagan (Sagan,1977:145).

Nesse mesmo diapasão, Gardner (2002:205) comenta que professores e pais sofreramcondenações e perderam cargos e carreirascom base em falsas lembranças perpetradaspor terapeutas irresponsáveis. Também Daw-kins (2007:403) valoriza o trabalho de Loftus,alertando para o fato de que as vítimas su-gestionadas por clínicos, investigadores e ou-tros profissionais apresentam falsas lembran-

22 Kerri Chiodo, “Ver alguém fazendo algo é suficiente paracriar falsas memórias”. Disponível em www.diariodasaude.com.br/news.php?article=falsas-memorias&id=5761 a-cessado em 26/06/2021.

23 Dias e Noites de Amor e de Guerra. Trad. Eric Nepomu-ceno. Porto Alegre. L&PM. 2001.

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ças que, para elas, são tão reais quanto as ver-dadeiras, o que também acontece com as pró-prias testemunhas. Dawkins destaca: “Trata-se de uma coisa tão contra-intuitiva que osjuris são facilmente influenciados pelo depoi-mento sincero, mas falsos, das testemunhas”(Dawkins, 2007:324).

7 A intervenção do pesquisador

Loftus defende a tese e se apoia em expe-rimentos de uma “reestruturação mnemônicadirigida”, e isto serve à implantação de lem-branças falsas tanto durante a regressão deidade quanto para outros processos. Para en-corajar a recriação de experiências de infânciaem pacientes, a maioria dos participantes erapermeável a esses tipos de implantação de me-mória, quando passaram a relatar recordaçõesdo seu tempo de criança. Portanto, até em nãohipnotizados essas lembranças podem ser im-plantadas, independentemente de seu grau desenso crítico. Por exemplo, são recorrentesperguntas como “foi isto o que você viu?”, ou“o objeto se parecia com um vagão de trem?”,exibindo desenhos e fotografias no intuito deajudar o sujeito com dificuldade de lembrar.Contudo, na verdade, induzem e conduzem odepoimento na direção desejada: é o uso depalavras associadas – sistema DRM (Deese-Roediger-McDermott)24, contrariando o quese espera de uma investigação isenta. Para de-monstrar a influência – e poderíamos dizer in-terferência – de palavras na reconstrução delembranças, Kirkpatrick, um dos pioneiros ereferência nos estudos sobre a memória, fezos primeiros trabalhos experimentais com pa-lavras associadas a itens previamente apresen-tados:

Houve alguns casos incidentais deevocações falsas. Cerca de uma se-

mana antes (...) eu tinha pronun-ciado aos alunos dez palavras co-muns (...) Mais uma vez, parece quequando palavras como “rolo, “dedal”e “faca” foram pronunciadas, mui-tos alunos pensaram em “fio”, “agu-lha” e “garfo”, que são tão frequen-temente associadas com elas. Estaé uma excelente ilustração de comocoisas sugeridas a uma pessoa du-rante uma experiência podem ser re-portadas honestamente por essa pes-soa como parte dessa experiência(Kirkpatrick, 1894:608).

No exemplo dado, “vagão” e “trem” po-dem levar à descrição de formas assemelhadase fazer brotar lembranças pessoais que reme-tam a quadros emocionais que influenciarão orelato, onde pode ocorrer uma das duas (ouambas) situações: Omissão (esquecimento) eComissão (lembrança distorcida ou fato nuncahavido). Se o hipnotista for persuasivo paraincutir fatos irreais com boas doses de rea-lismo, a falsa lembrança irrompe sem qual-quer alteração no estado de consciência do in-divíduo. Nossa memória, “vigarista” que é,prega peças, inventa histórias que não vive-mos realmente, podendo ser herança de outrosou uma espécie de “reconfiguração” da mente,valendo-se de plágio, autoplágio e criptomné-sia25, um “plágio” inconsciente. Criptomné-sia, esclareça-se, se dá quando esquecermosonde lemos, vimos ou ouvimos algo, espe-rando que a memória construa a lembrança, oque é contumaz principalmente em trabalhosintelectuais, mas de que ninguém está livreseja qual for a atividade. Esclarece o neuro-cientista Oliver Sacks:

Existe uma sobreposição considerá-vel entre essa definição [plágio] e a

24 Procedimento usado em Psicologia Cognitiva para estu-dar a falsa memória; sigla formada pelos sobrenomes deJames Deese, Henry Roediger e Kathleen McDermott, de-senvolvedores do método.

25 Do grego kryptós + mnesis – memória oculta ou ancestral,

uma divisão da pantomnésia – a memória total do sujeito.São lembranças subliminares, arquivadas no inconsciente,que irrompem durante fenômenos paranormais, como vi-sões mediúnicas, ou provocadas por hipnose. Dorsch, F.et al. mu. Petrópolis. Vozes. 2001.

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de “criptomnésia”. A diferença es-sencial é que o plágio, conforme écomumente entendido e reprovado,é consciente e intencional, enquantoa criptomnésia não é nem uma coisanem outra. Talvez o termo “criptom-nésia” precise ser mais bem conhe-cido, pois, embora possamos falarem “plágio inconsciente”, a própriapalavra “plágio” é tão moralmentecarregada, tão sugestiva de delito elogro que conserva seu tom repre-ensível, mesmo que seja “inconsci-ente” (...) Esse tipo de esquecimentotalvez seja necessário para uma crip-tomnésia criativa ou saudável, quepermita que pensamentos velhos se-jam reunidos, retranscritos, recate-gorizados e imbuídos de novos sig-nificados.26

Vocabulário, prosódia, habilidade para de-tectar propensões, convicções, carências, de-sejos e imaginário são elementos decisivospara o relato, teoricamente passível de ser ma-nipulado. Testemunhamos ser um recurso fre-quente, muito mais um método sugestivo, ummodo de intervir e compelir alguém a um atoou a uma declaração à sua revelia. Reitera-mos, ainda, que não se trata, em absoluto, de“energia” ou “fluido” que sai do hipnotizador,e sim a sua capacidade retórica de convencer,sugestionar e conduzir o depoimento na di-reção desejada. A hipnose requer, acima detudo, condução ética no uso da técnica, conhe-cimento sólido dos procedimentos em todasas etapas, saberes essenciais em Psicologia,Saúde Mental, Neurociências, percepção claradas circunstâncias que envolvem o caso e se-gurança de que seja realmente necessária paraêxito dos resultados. Lembramos que ética éo item primeiro na hierarquia de valores quedeve reger o cidadão e a sociedade, ética da

responsabilidade prevalecendo sempre sobre aética da convicção.

A regressão de memória leva naturalmenteo paciente a épocas anteriores da sua vida,onde recordações marcantes e eventualmentetraumáticas podem emergir em certas passa-gens que, se o exame não for levado em bomtermo, pode causar danos psicológicos e/ouemocionais irreparáveis. O contrário tambémé verdadeiro, quando a psique bloqueia o re-viver de fatos indesejados que jazem adorme-cidos e que, se vierem a lume, podem reabrirferidas que não mais fecharão. Em sua clí-nica, Jung, que era simpático ao uso da hip-nose, teve momentos incômodos que lhe trou-xeram o temor de que a técnica, em certas situ-ações, poderia fazer surgir alguma psicose la-tente. Tal como Freud, ele distanciou-se delatemporariamente porque, como pesquisador,não poderia valer-se das vantagens indiretasda hipnose para não prejudicar seu entendi-mento sobre os fenômenos do inconsciente, jáque desejava “lutar aberta e diretamente comas forças básicas da psique” (Jung, 1989:256).Em outra obra, declarou: “Quando comecei atrabalhar em minha clínica particular, utilizeia hipnose, mas logo a abandonei por sentir quecom ela se tateia na obscuridade. É impossí-vel saber quanto tempo dura um progresso ouuma cura, e eu sentia sempre resistência emagir sem certeza (Jung, 1963:112).

Dito de outro modo, para Jung, a hipnosenos faz caminhar no escuro, onde um erropode invalidar todo um procedimento investi-gativo ou terapêutico. Jung e Freud não viamcom simpatia a hipnose como terapia “de su-gestão”. A mente humana é um labirinto enig-mático e fascinante que não admite incertezase lacunas em seu funcionamento, e ao se verinstada a ocupar esses vazios (sob hipnose ounão) com material não original, isto é, even-tos não autenticamente vividos, ela o fará comelementos alheios à sua realidade objetiva, in-

26 “Quando as lembranças nos pregam peças”, https://m.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/05/1284622-quando-as-l

embrancas-nos-pregam-pecas.shtml acessado em 15/07/2021.

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ventando ou “importando-os” de outras orbespara preencher as páginas em branco. O hip-notista não pode assumir essa “escrita” comimpurezas semânticas a fim de capitalizar suascrenças porque, se a fé cria o seu próprio ob-jeto de devoção, ele se torna impedido de atuarno caso.

Entrando no terceiro e último terreno danossa análise, parapsicólogos especializadosna chamada TVP – Terapia de Vidas Passa-das – se concentram em encontrar, nas vidasanteriores de seus pacientes, razões que jus-tifiquem ou elucidem as angústias, traumas efobias da vida presente. É importante frisarque, se terapeuta e paciente creem em reen-carnação, o caminho está facilitado para o mé-todo se sacramentar como seguro; deve-se ob-servar que a cultura religiosa brasileira estábanhada em misticismo e carrega pesada in-fluência de quase dois séculos da doutrina es-pírita, de alcance popular em larga escala, oque explica sua sobrevivência, enquanto queno velho mundo ela definhou, em especial naFrança, berço do espiritismo. Bernstein, ci-tado por Silva, utilizou a técnica DRM, evi-dentemente inadequada, quando reproduz asequência de sugestões até hoje aplicada pelosque defendem a eficácia da TVP para resgatarconflitos anteriores: “(...) daqui a pouco voudirigir-lhe a palavra. Entrementes, sua mentevoltará a tempos passados, até ver uma cena,por mais estranho que pareça, até que você seveja em algum outro lugar, em outra época”(Bernstein, apud Silva, 1968:100).

8 A psique, um santuário

Como deixamos claro no início, a falta de re-ferenciais teóricos precedentes sobre o uso dahipnose nas pseudociências e das falsas lem-branças nesse campo dá ao trabalho um en-foque compreensivelmente superficial. A ar-gumentação tem como lastro nossas experi-ências pessoais e uma literatura adjuvante damais alta envergadura, como se pode observar.O propósito é enfatizar que as intervençõesnesse particular devem se pautar rigorosa e es-tritamente pelos princípios da ciência, e não

pelas inclinações e motivações personalistas.Quando menos, é uma contribuição para alar-gar o diálogo sobre a licitude da hipnose comométodo investigativo e como filtro para a veri-ficação de fatos postos sob escrutínio. A falsalembrança dificulta atestar a confiabilidade dahipnose na busca de informações críveis e re-sultados sólidos. É necessária extrema cautelaem caso de potencial trauma, como alerta Iri-gonhê, por exemplo, diante de uma perquiri-ção policial ou processo judicial:

O segundo princípio essencial deLoftus e Steblay consiste na constru-ção da memória (memory construc-tion). Trata-se da noção de que umevento experienciado é adquirido ecodificado pela memória de formaincompleta e, posteriormente, recor-dado através de um processo cons-trutivo que preenche as lacunas dei-xadas pela memória verdadeira cominformações estranhas ao evento ori-ginal (2014:62).

A aplicação da hipnose, a qualquer tempo,em qualquer circunstância e sob qualquer pre-texto, não envolve apenas técnicas, procedi-mentos e saberes próprios, ela precisa ir alémdo seu território e percorrer caminhos poucousuais ao seu ofício. Nunca é demais referirque se está lidando com a mente humana, ver-sátil e mutante, com muito a ser desvendado,e sua complexidade, vulnerabilidade e capa-cidade de simbolização não admitem, em ab-soluto, simplificações e reducionismos no seumapeamento, invasivo ou não, e menos aindaque se recorra a atalhos, artifícios e burlas emproveito próprio. À medida que os achados daciência trazem novos dados e revisões acercadas sutilezas quase insondáveis da mente e cé-rebro, os outros campos do conhecimento sebeneficiam no aprimoramento dos conceitosem seus respectivos domínios, e a hipnose, en-quanto método terapêutico e investigativo, nãoé exceção.

Uma das formas para se evitar falhas e dis-torções, pode ser resolvida com a eliminação

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da confiança excessiva na técnica da hipnoseregressiva, com a finalidade de se provar umfato ou retirar da memória detalhes tendentesao esquecimento. Sobre isso, Bertrand Rus-sell emite um pensamento em tom de conse-lho, ou, talvez, de advertência:

Existe, acaso, qualquer conheci-mento tão certo, que nenhum homemrazoável possa dele duvidar? Pro-blema que, podendo à primeira vistaparecer pouco árduo, se apresenta naverdade dos mais difíceis. Quandotenhamos formado ideia nítida dosobstáculos que se opõem aqui a umaresposta clara e assegurada, achar-nos-emos bem lançados no estudo dafilosofia – pois a filosofia é, afinalde contas, a tentativa de responder-mos aos problemas últimos deste gê-nero, não descuidada e dogmatica-mente, como usa fazer-se na vida or-dinária e até ainda nas próprias ci-ências, senão que de maneira verda-deiramente crítica, depois de explo-rado tudo o que torna enleadoras taisquestões, e de havermos consciênciaclara do que há de vago e de confusonas nossas ideias ordinárias (Russell,1959:29).27

Quanto aos tópicos tratados aqui, a abdu-ção, a experiência-de-quase-morte e a terapiade vidas passadas, por estarem fortemente en-trelaçados, abarcam dimensões da condiçãohumana umbilicalmente atreladas à naturezado ser, dimensões que enredam cultura, histó-ria, crenças místicas, religiosas e espirituais,metafísica e imaginário, dimensões que pe-dem imersão em linguística, semiótica, socio-logia, antropologia, simbolismo, neurofisiolo-gia e psicologia. No bojo dessas dimensões se

manifestam os sintomas inequívocos vincula-dos à solidão cósmica, à insignificância exis-tencial e, principalmente, à finitude. Esse é oponto nuclear que precisa ser ressaltado, aindaque sucintamente, dada a relevância e perti-nência, porque remonta às bases educacional,cultural, social, religiosa e afetiva do sujeito,esta última no contexto do “sentimentalismotóxico” (Dalrymple, 2015) no qual prevaleceum estado de fraqueza e insegurança emocio-nal em detrimento de uma postura e um pensarmaduros. Vamos ao ponto, para o qual pedi-mos especial atenção.

A “abdução” proporciona ao indivíduoduas sensações distintas não excludentes, aocontrário: a convicção reconfortante de com-panhia cósmica e de ser “escolhido” para con-sumar tal certeza. A expectativa de “vidaspretéritas” – no plural, ou seja, sucessivas vi-das após a morte –, está implícita à noçãode reencarnação, ao samsara28, quer dizer, sehouve vidas antes desta, haverá outras futu-ras, portanto, imortalidade, o que nos leva àsexperiências-de-quase-morte, quando se de-para com o citado “túnel de luz”. As simbo-logias para túnel e luz são bastante óbvias nalinguagem religiosa (linguagem e religião sãopartes de um universo simbólico), menção di-reta ao “caminho do alto”, à purificação, bem-aventurança, redenção, ao Paraíso. É por essarazão que se socorre à hipnose como meio de“comprovação científica” dessa crença, ingê-nua (como a criança), esperando ser o remédioque extirpe o “câncer” que é a finitude. É umailusão e um autoengano pensar que a hipnoseseja uma ciência, o que nunca foi. WilliamJames, psicólogo e filósofo americano, ao cri-ticar o “materialismo médico” que imputa àsmanifestações religiosas uma origem patoló-gica, não negava, entretanto, que possam advirde sintomas neuróticos ou psicóticos.

27 Bertrand Russell, O Problema da Filosofia. Trad. Antó-nio Sérgio. Armênio Amado Ed. Coimbra. 1959.

28 Doutrina védica da transmigração da alma que se baseiaum ciclo repetido de nascimentos e mortes do ser, numapluralidade de estágios transmigratórios que se interrelaci-

onam através de um princípio de causa e efeito fundado emações produzidas em existências anteriores do indivíduo,que também podem produzir consequências para existên-cias futuras.

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A pulsão religiosa é uma das forças psí-quicas mais fundamentais do ser humano, e,inegavelmente, é a matriz que concebe es-sas três chaves psicológicas como panakéia– a cura de todos os males do mundo – paraos tormentos ontológicos mais insuportáveis,utopias estruturais lacerantes de base mítica:abandono (solidão cósmica), desidentidade(irrelevância existencial), temporalidade (fini-tude). Para Freud, apesar do vasto desenvolvi-mento da humanidade do ponto de vista cien-tífico, malgrado o evidente fracasso civilizató-rio, o homem continua com uma mentalidadeprimitiva apegada a deuses e a toda sorte desublimação. Para ele, ancorar-se nesse entres-sonho de seres imaginários, espiritualidade etranscendência artificiais é negar a realidade,esperando por uma “redramatização” dianteda hostilidade do mundo, uma forma primi-tiva e imatura da visão de si. O que lhe faltaem razão e lógica transborda de ilusão e medo.Sagan tinha razão, os daemones do homemcontinuam assombrando e ele não tem comoexorcizá-los, ou os escorpiões29 de Freud, quepovoam os porões mais escuros da alma. Aspalavras do psicanalista austríaco em O Fu-turo de uma Ilusão (1927), outra referênciaimprescindível dos nossos trabalhos, estão re-vigoradas quando explicitam a pobreza do es-pírito humano:

O homem comum entende comosendo a sua religião um sistema dedoutrinas e promessas que, por umlado lhe explica os enigmas destemundo com uma perfeição invejá-vel, e que por outro lhe garante queuma Providência atenta cuidará dasua existência e o compensará, numafutura existência, por qualquer fa-lha nesta vida (...) Tudo isto é tão

manifestamente infantil, tão incon-gruente com a realidade, que paraaquele que manifeste uma atitudeamistosa para com a humanidade épenoso pensar que a grande maioriados mortais nunca será capaz de es-tar acima desta visão de vida (Freud,2009:4412).

A mente é um precioso relicário memorialde afetos, sentimentos, vivências, dores, fan-tasias, medos, misérias, ausências, inquietu-des e desejos, um tesouro a ser ciosamente res-guardado da imperícia de leigos e impruden-tes. O inconsciente é o lugar sagrado onde ha-bitam pulsões biológicas instintivas, pulsõesessas que ditam as ações e direcionam para es-colhas que atendam nossas necessidades bási-cas de autopreservação.

Estamos falando da psykhé, arcabouço deemoções demasiado sensível e amoldável àscontingências do mundo, agindo na fronteiraentre a virtude e a vilania, a genialidade ea loucura, o homo sapiens-demens (Morin,1973), uma “caixa-preta” (Flusser, 2002; Mo-rin, 2007) receptora de excitações que sãotransformadas em representações, imagens esignos, flertando com a psicose e a neurose,sobretudo a noogênica30. “Imaginação é a ca-pacidade de decodificar fenômenos de quatrodimensões em símbolos planos e de decodifi-car as mensagens assim codificadas. Imagi-nação é a capacidade de fazer e decifrar ima-gens” (Flusser, 2002:7).

Bion (1991), herdeiro do aporte teóricopsicanalítico de Freud e de Melanie Klein, de-tectou que a mente articula estados psíquicosdistintos, funcionando ora como opositora econtraditória, ora em compasso dinâmico en-tre as partes da personalidade. A diferençade seu trabalho está no fato de ter reconhe-

29 Na verdade, os escorpiões eram do Dr. Theodor Meynert,chefe de Freud no hospital, que usou como metáfora parareferir-se àquilo que deveria permanecer oculto no incons-ciente e não ser trazido à razão, criticando o trabalho deFreud. Mais tarde, admitindo sua própria neurose, reco-nheceu o erro e incentivou-o a prosseguir nas pesquisas.

30 A neurose noogênica trata dos conflitos de consciência,do embate de valores e da frustração existencial, que pode,ocasionalmente, se manifestar sob a forma de uma sinto-matologia neurótica. (Cf. Viktor Frankl, v. referência).

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cido o interjogo entre os estados neurótico epsicótico, entre aspectos adultos e infantis eentre elementos sadios e os patológicos; essebalanço configura um fluxo contínuo em umamesma personalidade, e caracteriza a mentecomo um universo multidimensional, ou seja,para esse psicanalista, a forma de lidar com asrealidades interna e externa depende do tipopredominante de funcionamento mental, queenfatiza, na sua compreensão, o conceito no-dal da qualidade do pensamento; em outraspalavras, na dinâmica psíquica, há uma ativi-dade do pensar trabalhando psicoticamente eoutra trabalhando neuroticamente.

Diante do exposto, considerando que asfalsas lembranças induzem a distorções na re-constituição da memória sem nenhuma mar-gem de confiança, e que as pseudociênciasestão fundadas na metafísica, na profusãode crenças pueris do pensamento mágico, noimaginário, na subjetividade e na dor existen-cial do desamparo, concluímos que a hipnosede regressão, não sendo um método científico,é totalmente ineficaz para o que se propõe,além do potencial risco à integridade psíquicade indivíduo. A psique é um santuário, e nãopode ser invadido e profanado com veleidadese sortilégios.

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