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 E M  BUSCA DOS CONCEITOS: FEITIQARIA E BRpXARIA o  LUGAR DA FEITIQARIA Vma vez d elimit ada e e ntend ida a si gnific a<;:ao de ma gia, lata sensu,  tenteinos agora precis ar  0signi ficad o do termo  feiti- ~aria,  fr eque nt e e in genuamente (como ta mbem a b ruxa ri a: )  justaposto  a  ma gia , sem qualq uer distin<;:ao, sej a quanta ao ni- vel op eracional , sej a qua nta ao nivel hist 6rico de Sua s r esp ecti- vas implica<;:oes. Vimos aci ma que a ma gia e bas ica men te urn fen6 men o de a<;:ao - a<;:a o de vontad e -, e e de ntro desta a<;:a o, nei sua prati- ca, no mei o ond e se f az pres ent e e c omo se d ese nvo lve , que re-  pousa a distin<;:ao magia-feiti<;:aria-bruxaria (como teremos oca- siao de ver poste riormente) . Evans - P ritc har d, con sci ente da comple xidade do univ er- so das p rci tic as magica s,proc uro u faz er uma div isa o ent re ma- gia-fe iti<;:a ria e bruxa ria, em cada caso observado, demo nstra n- do que as pa lavra s e as ma nipul a<;:6e s guard am rela<; :6esmais de-

Carlos Roberto Nogueira_O lugar da feitiçaria e Bruxas e Feitiçeiras

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EM BUSCA DO S CO NCEITO S:

FEITIQARIA E BRpXARIA

o LUGAR DA FEITIQARIA

Vma vez delimitada e entendida a significa<;:ao de magia,

lata sensu, tenteinos agora precisar 0significado do termo feiti-

~aria, frequente e ingenuamente (como tambem a bruxaria:)

 justaposto a magia, sem qualquer distin<;:ao, seja quanta ao ni-

vel operacional, seja quanta ao nivel hist6rico de Suas respecti-

vas implica<;:oes.

Vimos acima que a magia e basicamente urn fen6meno

de a<;:ao- a<;:aode vontade -, e e dentro desta a<;:ao,nei sua prati-

ca, no meio onde se faz presente e como se desenvolve, que re-

pousa a distin<;:aomagia-feiti<;:aria-bruxaria (como teremos oca-

siao de ver posteriormente).

Evans- Pritchard, consciente da complexidade do univer-

so das prciticas magicas,procurou fazer uma divisao entre ma-

gia-feiti<;:aria e bruxaria, em cada caso observado, demonstran-

do que as palavras e as manipula<;:6es guardam rela<;:6esmais de-

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terminadas e fixas do que vulgarmente se acredita.1 A existencia

de cada uma delas depende de uma es1rutura mental particular,

em rela<;:aoa qual funciona a sociedade.

o termo feiti<;:ariatraz consigo ~ ideia de "algo feito",

para alguns autores estando relacionado ao latimfa turn = des-

tino.2

Suaorigem europeia parece estar ligadaa magia amat6ria

ou er6tica, desenvolvida na Grecia, ou, melhor dizendo, as ope-

ra<;:oesmagicas vinculadas aos d~sejos e paixoes amorosas, 0

que faz com que a feiticeira, ~lem de efetuar elocubra<;:oesma-

gicas,intervenha como intermediaria de casos amorosos, com 0

auxiIio da observa<;:aoe de tecnicas comuns e correntes as pra-

ticas amorosas. Uma terceira fun<;:ao-a parte de-sua interven-

<;:aocomo praticante da magia e mediadora amorosa-, exigida

pela propria dinamica do mundo passional, e sua interven<;:ao

comoenvenenadora e perfumista, "atividades estreitamente li-

gadas a esta personagem magica e que podem ser detectadas a

partir da Roma Imperial. Realidade que pode ser comprovada

atraves do termolatino (oriundo do hebraico) venefieiurn, que

designa os dois atos, 0 envenenamentoe 0 feiti<;:o,em seumais

amplo sentido.

Os mais antigos testemunhos, que ilustram 0 processo de

forma<;:aoarquetfpica da imagem (fafeiticeira popular europeia,

se encontram em Arist6fanes' e Plata04 e referem-se as mulheres

da Tessalia,como praticantes da feiti<;:aria,relacionando-as as di-vindades ctonicas e a Lua - a qual faziam descer dos ceus. A es-

Witchcraft, oracles and magic among the Azande. Oxford, 1937.p.21-23.

2 Cf.MAURY,A. La magie ... , p. 17.

3 AR1STOPHiANE. Les nuees. Paris, 1952. t. I, p. 195-196.

4 G6rgias, p. 513. Apud MAURY, A. La magie ... , p. 47.

tas per~onagens poder-se-iam sobrepor as figuras fortes e volun-

tariosas das filhas de Hecate: Circe e Medea, a primeira a sedu-

~ao,0 arquetipo da mulher que por s~u"encanto", por seu "feiti-

<;:0"- palavras de urn mundo magico, carregadas de conota<;:ao

sexual -, faz 0 que quer com os homens,5 ,Asegunda traz consi-

goa representa<;:aoda tragieidade ferninina, 0 erotismo forte e

frustrado, fra'cassoque culmina na pratiCa do mal, com 0 prop6-

sito de vingan<;:apassional. 6

As feiticeiras sao essenciais as substancias acreditadas

como depositarias de propriedades magicas e a sua prepara<;:ao

- quanta mais nao fosse paraa'confec<;:ao de venenos e perfu-

mes - para atingir 0fim desejado, ciai nascendo a i~agem co-

mum ao periodo medievale ao Renascimento, do laborat6rio de

 feiti~aria, presente em inumeros processos inquisitoriais e na li-teratura da epoca/ 

o mundo da feiti<;:ariae 0 mundo do desejo, do desejo

eminentemente passional, que a tudo se sobr7 Poe para conseguir

umaresposta para uma paixao nao correspohdida ou proibida.

Suas atividades tra~em consigo a utiliza<;:aode ervas e unguentos,

dos quais resuItamconhecimentos positivos, que se transmitem

da feiticeira greco-roinana a sua correspondente imediata no

mundo da representa<;:aomental: a feiticeira medieval.

Durante a Idade Media, atraves do novo alinhamento im-

presso po horizonte mental as praticas magicas, fica a feiti<;:aria

relegada ao dominio exclusivo do Mal. Jacques Le Goff lllOstrou

5 Cf. HOMERO. L'Odyssee. Paris, 1953. t. 2, p. 54-81.

6 Cf. EURIPEDE. Op. cit., p. 150-153.

7 Ver nossa tese de doutorado apresentada it USP: Universo magico e

reaiidade: aspectos de urn contexto cultural( Castela na Moderni-

~ade). Sao Paulo, 1980. cap. 4 e 5. Mirneografado.

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como a cultura eclesiastica "venceu" a cultura folcl6rica dos

camponeses, pot  tres vias: "a destrui<;:ao,a oblitera<;:ao- a sobre-

posi<;:aodos tern as, das prMicas e imagens cristas aos correspon-

dentes ante cessores pagaos - e a desnaturaliza<;:ao- 0mais im-

portante'dos processos:a conserva<;:aomais ou menos parcial

das formas, acompanhada de uma profunda e.radical mudan<;:a

de significados".8

Assim, as atividades da feiticeira foram trans-

portadas de sua antiga negatividade etica, contraria aos designios .

da coletividade, para integrar-se no Mal c6smico,em toda a sua

plenitude: "Acreditastes ou participastes nesta impiedade, que

uma mulher por maleficios e encantamentos pode transformar

.a mente dos homen.s, transformando odio em amor e amor em

6dio, e atraves de feiti<;:ospossa roubar au destruir os bens hu-

m'anos? Se acreditastes ou participastes urn ana de penitenCia

nas festas legitimas", diz Buchardo de Worms em suas instru<;:6es

a bispos e padres sobre as supersti<;:6es.populares e a forma de

castiga-las.9

Note-se aqui a postura da Igreja do seculo XI, que

ainda argumenta com as cren<;:aspopulares, procurando de-

monstrar a ilusao que elas contem, punindo exemplarmente a

cren<;:ae nao a a<;:aomagi ca.

Mas, apesar das condena<;:6es,os homens da Idade Media

necessitam da presen<;:ada Jeiticeira como terapeuta de seus

males fisicos e sociais. Atuando na aldeia,a feiticeira sobe ao

castelo do nobre, ao palacio do bispo e inclusive ao pr6priopa<;:oreal. A consciencia medieval resgata, da Antiguidade a

8 Para urn novo conceito de IdadeMedia: tempo, trabalho e cultura no

Ocidente. Lisboa, 1980. p. 211-214. .

9 BURCHARD DE WORMS. Corrector sive medicus (Decretorum

liber XIX). In: MIGNE, J. P.(Ed.). Patrologiae Cursus Cornpletus. Se-rie Latina. Turnhout, 1956 ss, CXL, 645.

ideia da a<;:aomagica benefica, que justifica a existencia daboa

 feiticeira que, na visao popular, e ate mesmo mierudita, empre-

gava seus conhecimentos resultantes de seculosde prMicas acu-

muladas de feiti<;:aria- para curar ou amenizar doen<;:as.Nestaperspectiva, nao surpreende que Alfonso X de Castela, cuja vida

repleta de projetos e desejos naocumpridos obrigou-o a buscar

awdlio nos encantamentos, promulgasse, em pleno seculo XIII,

lei que considerava:

Acusar po de cada urn do povo diante do julgador aos agourei-

ros e aos sorteiros e a outrps prestidigitadores de que falamos nas

leis deste titulo. E se for provado pelos testemunhbs e pelo conhe-

cimento dos mesmos, que fazem e obram contra 0nos so entendi-

mento alguns dos erros citados acima, devem morrer por isto. E os

que os ocultarem em suas casas, devem ser expulsos de nossa terra.para sempre. Mas os que fizerem encantamentos ou outras coisas

com boa inten~ao, assim como sacar dem6nios dos corpos dos ho-

mens ou para desligar aos que forem marido e mulher e que nao

possam juntar-se, ou para desatar nuvem' que traga granizo ou

neve, para que nao corrompam-se os frutos, ou para matar gafa-

nhotos ou pulgao que dana 0pao ou 0vinho, ou por alguma coisa

proveitosa semelhante a estas, nao deve haver pena, antes dizemos

que deve receber honrarias por isto.lO

E nesta mesma perspectiva, ou seja, a' ambivalencia do

papel da feiticeira no mundo medieval, que deve ser entendida aresposta do papa Alexandre IV,em 1258,a solicita<;:aodos inqui':

sidores de qdicionar a'feiti<;:ariae a divina<;:aoas ofensas a orto-

doxia que faziam parte de sua al<;:ada:

10 ALFONSO X DE CASTILLA. Lassiete partidas. Lyon, 1550. 2 v.,

partida VII, titulo XXIII, ley III.

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 Rubrica: Os Inquisidores, comissionados para investigar a he-

resia, nao devem ocupar-se em investiga<;:6es de divina<;:ao ou fei-

ti<;:ariasem conhecimento de existir envolvimento de heresia ma-

nifesta. E justo que aqueles encarregados com os assuntos da fe, 0

que e 0maior dos privilegios, nao devem, em conseqih~ncia disto,

intervir emoutros neg6cios. Os inquisidores da heresia daninha,

comissioriados pela Se apost6lica, nao devem intervir em casos de

divina~ao ou feiti<;:ariasalvo se houver sabor transparente de ma-nifesta heresia.ll

Feiticeiros e feiticeiras, com a permissao de Deus eo auxilio do

Diabo, causam varios tipos de doen<;:as,tanto pias como impias, en-

caFltando, imprecando, fascinando, com drogas encantadas por

arte magica, que exibem, aplicam, consomem, ocultam sob a solei-

ra .das portas, 0-\1 tem em seu poder para empregar de qualquer

modo. E isto e comprovado pela sabedoria das leis tanto divinas

quanta humanas e fato comprovado pelo testemunho e a experien-

cia de imimeros doutores vivos.13

19ualmente, a taxapara a absolvi<;:aopapal das penalida-

des impostas era barata, em s~tratando de "mulheres feiticeiras

assim como encantadoras, ap6s abjurarem de suas supersti<;:oes,

em qualquer dos casos acima mencionados sejam taxadas em 6

gros tournois, 2 ducados': 12

o papel ambivalente da.feiticeira pode ser comparado a

atitude da comuriidade crista para com0  judeu: este era estig-matizado como usunirio, porque apenas aos judeus era permiti-

do emprestar dinheiro dentro do sistema medieval, sendo-lhes

permitido exercer umas poucas outras profissoes. Do mesmo

modo, as' feiticeiras possufam urn monop6lio dos poderes de

c~ra - os duplos poderes de curar e ferir - em virtude da des-

confian<;:amedieval com respeito a medicina.

A feiti<;:ariamedieval, em sua evolu<;:aofrente a coletivida-

de, acaba por constituir-se em oficio altamente s~licitado _ se

bem que de modo escrtso-, tema exaustivamente discutido por

teologos, juristas, medicos e filosofos, cujas conclusoes sao apre-sentadaspor Godelmann em seu tratado de 1591:

Prciticas que outorgam a sua "profissao" a categoria que

Burckhardt genialmente denominaria de "urn agevte de prazer",

uma servidora de Eros14 acima de tudo, com 0seu "laborat6rio"

em que se misturam plantas com propriedadesreais (medicinais

ou venenosas) procuradas e utilizadas por uma coletividade que

se move em urn mundo de vontade de representa<;:oeser6ticas e

de paixoes desenfreadas:

Feiticeiros (de qualquer sexo) sao aqueles que, com encanta-

mentos sacrilegos, terriveis impreca<;:5es, exala<;:6es de vapores

imundos, com drogas preparadas pelo Diabo, assim como por ar:.-

tes ilicitas, utilizando de cadaveres, cordas de enforcados, corp os

misturados e preparados, introduzidos, sepultados, misturados

com forragem ou beberagens, prejudicam e perdem it saude e a

vida de homens e animais. Com efeito, as feiticeiras costumam fa-

zer muitas coisas m'agicas com as carnes e ossos dos enforcados,

utilizando-os em feiti<;:osmagicos."

A partir do exposto, acreditamos poder recuperar a exis-

tencia deuma pnitica magica, distinta da magia em termos

11 HANSEN, Joseph. Quellen und Untersuchungen zur Geschichte des

 Hexewahns und Hexenverfolgung irn Mittelalter. Bonn, 1901. p. 1.

12 A(ntoine) D(u) P(inet). Taxes des parties casuellesdes papes. In:LEA, H. C. Materials ... , p. 1071.

13. De magis, veneficis et lamiis recte cognosciendis et puniendis. In:

LEA,H. C. Materials ... , p. 767-768.

14 Op. cit., p. 417-420.

15 GODELMANN, J. G. Texto em: LEA,H. C.Materials . . . ,p. 766-767.

 

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operacionais e fundamentalmenteem seu posicionamento no

interior de uma coletividade mental, seja na Antiguidade classi-

ca, seja em uma Europa crista. Pode-se dizer que a feitis:aria e

urn fen6meno social arquetipico - oriundo de antigos sistemas

agricolas de tendencia matriarcal, onde a mulher, alem de res-ponsavel pelo cultivo da terra, serviu tambem de sacerdotisa de

cultos ctOnicos e lunares.1 6 De grande significas:aoe, por conse-

. guinte, a associas:ao destes antigos cultos neolfticos com aque-

les praticados pelas feiticeiras na Antiguidade greco-latina, que

retratam a supervivencia da personagem em uma novaestrutu-

ras:aomental. Dentro de urn esquema mental coletivo, a feitis:a-

ria europeia encontra-se intimamente lig~da a existencia de dois

sexos - urn dominante e outro dominado - e a tentativa deste

ultimo de superar esta situas:ao por intermedio de atividades

psicossiri1b6licas e materiais. Superas:ao esta que S e reflete ao

nivel da representas:ao no sexo dominador condicionante da

vida amorosa. Assim, a as:aoda mulher aparece em termos car-

regados de urn conteudo magico e misterioso, demonstrado nas

palavras fascinio, encantadora, sedutora, freqiientemente utiliza-

das para representar e exprimir a as:aoda personagem femininasobreo sexo oposto.

Prcitica rural de tempos remotos, a feitis:aria muda-se

para a cidade durante 0periodo classico da Antiguidade, para ai

estabelecer urn oficio, altamente p<?pularna Roma Imperial, para

sofrer uma redus:.aode suas atividade naAlta Idade Media, s6 re-

tomando a sua plenitude com a reurbanizas:ao da Europa, que

lhe penllite contar com uma grande clientela para exercer assuas atividades.

16 CHILDE, V. Gordon. What happened in history? Harmondsworth,1950. p. 64-66.

Figura 2 - Feiticeira preparando urn filtro (Escola flamenga do seculo XV).

(P. Hughes, Witchcraft, figura 7.)

 

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Em suma, a feiti~aTiaconstitui essencialmente umaprati-

ca individual, de carMer "urbano", local privilegiado onde os r

problemas humanos, os odios, as paixoes, avolumam-se e ga-

nham densidade, reclamando a presen~a de urn intermedi<irio

no qual depositam as suas esperan~as e desejos. Coin isto, nao

queremos dizer que negamos ou desconhecemos a  pratica rural

da feiti~aria durante 0petiodo medieval, mas e necessaria para

o desenvolvimento da feiti~aria areurbaniza~ao do Ocidente eu-

ropeu. E no meio.urbano que se encontra a possibilidade do en-

contro e da mescla de desig,ualdades materiais e.mentais, crian-

do novas necessidades e desejos nas consciencias dos individuos

e que justificam a necessidade da feiticeira.

BRUXAS E FEITICEIRAS

Enfin1,resta-nos falar de urn fe~6meno nitidamente dis-

tinto daqueles ja examinados: a bruxaria, prMica magica rural e

de carater coletivo, que assume junto ao imaginario de uma co-

letividade uma situa~ao passiva, pois a opiniao publica e mais

importante na comprova~ao de sua existencia que a ideia que faz

de si mesma a sua protagonista no mundo magico, a bruxa.

Evans-Pritchard, em uma distin~ao que se tornou classi-

ca para os antropologos, entende a bruxaria como uma ofensa

imaginaria, pois "uma bruxa nao cumpre ritual algum, nao

pronuncia encantamentos e nao utiliza po~oes. Urn ato de bru-

xaria e urn ato psiquico. [... ] Feiticeiras causam dano aos ho-

mens a:ra ves de rituais magicos e drogas malignas".17A9ui a dis-

tin~ao se coloca entrediferentes tipos de meios; os fins san se-

melhantes. Bruxas e feiticeiras podem molestar aos homens. A

bruxaria e uma qualidade inerente, enquanto a feiti~ariaag e em

urn certo sentido.

Esta conceitua~ao empregada' para a coletividade· dos

Azande nao pode ~er in'tegralmente utilizada para a. realidade

europeia, mas, guardadas as devidas distancias, pode auxiliar a

esclarecer 0problema da bruxaria ao nivel psicologico de uma

coletividade. E singular que esta mesma ideia exista num trata-

do do(seculo XVI:

Magos e feiticeiras aprendem a arte diab6liea de livros, ou atra-

yeS do Dem6nio ~u de outros magos, com seus eneantamentos, ri-

tos eerim6nias, earaeteres, et~., mas as bruxas nao conheeem qual-, .

quer arte, nao tern livros nem mestres, nem os neeessitam, mas e 0Dem6nio que se iilsinua naqueles que ele suspeita ou sabe serem

eredulos, ou imbeeilizados pela idade, ou por naturezamelane6li-

cos ou desesperados pela pobreza, e portanto instrumerit9s obe-

dientes de seus enganos e ilus6ese que ele pode assim eontrolar as

suas fantasias com varios fantasmas.18

Para os historiadares a controversia par. uma distin~ao

e~tre feiti~aria e bruxaria esta longe de ser resolvida. Como ob-

serva Keith Thomas; a distin~ao antropologica e de limitado usa

quandoaplicada a Inglaterra, mas concorda que0feiticeirouti-

liza objetos materiais, enquanto a bruxa nao. Tampouco concor-da com a defini~ao dos antropologos de que as feiticeiras exis-

tern, enquanto as bruxas sac imaginarias, pois algumas daquelas

IS GODELMANN, Johann G. De magis, veneficis et lamiis reete eog-

nosciendis et puniendis. Hie aeeessit ad magistrarum clarissimi et

eeleberrimi J . C. D. Johannis Althusii Admonitio. Francofurti, 1601,

e. 2,.n. 14-21. In: LEA, H. C. Mdterial,s . . . , p. 771.

 

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acusadas de serem bruxas realmente tentaram causar dano a ou-

trem atraves de desejos malevolos, desacompanhados de tecni-

cas magicas. Em inten~ao,ao men os, a bruxaria nao e urn crime

impossivel. Em sua execw;:ao nao era mais nem menos efetivaque a !paioria dos metodos da feiti<;:aria. E muito provavel que

uma grande propor<;:ao daqueles acusadosde "bruxaria mental"

fossem inocentes, do mesmo modo que os incriminados por se

utilizarem de tecnicas magicas observaveis.19 .

Observe-se que Keith Thomas trata de estabelecer urn re-

paro hist6rico (e dentro dos limites do imagiriario da Inglater-

ra) acerca das distin<;:6es quebrotaram de estudos antropol6gi-

c?s, e nao se prop6e a igualar no mesmo plano inagico a feiti<;:a-

na e a bruxaria. Concordamos que a tarefa de distingui-Ias e in-

grata, principalmente naepoca moderna onde· a reviravolta

mental motivada pela propaga<;:ao da "epidemia das bruxas"

submerge - com exce<;:aoda Espanha20- as outras praticas no

oceano da bnixaria, com todo horror e abomina<;:ao que isso

traz consigo, contaminando sem.remedio as atividades magicas,

ao menos na visao popular, gr6sseiramentealertadapara a pre-

s€n<;:ados "agentes de Sata".

E neste sentido que Alan Macfarlane aponta para uma

constante disputa na Inglaterra dos seculos XVI e XVII, entre

aqueles que diferenciam ou confundem as atividades magicas. Deurn lada estao os que pretendem punir igualmente todos os que

se utilizam do poder ."magico" independente de seus fins e sem.

considera<;:ao com 0grau de seu controle sobre tal poder. Para es-

tes toda "supersti<;:ao, especialmente aquela que emanava de

Roma, era bruxaria". Em radical oposi<;:ao,estavam aqueles que

distinguiam entre "boas" e "mas" feiticeiras pelo resultado de suas

a<;:6es,e bruxils e encantadores pelo grau de controle sobre seu po-

der: e 0caso de Sir Edward Coke (1644) para quem "urn encanta-

dor e quem pelo poderoso e sagrado nome de Deus invoca e cO\lc

 jura 0Diabo para consuM-lo ou para realizar algum ato. A bruxa

e uma pessoa que mantem conciliabulo com 0Diabo, para acon-

selhar-se ou para realizar alguma a<;:ao':21Assim, "magos e feiticei-

ros coman dam e a bruxa obedece".22A condusao de Macfarlane e

que'as palavras bruxaria e feiti~aria foramutilizadas em diferen-

tes sentidos na Inglaterra do seculo XVII, e prop6e, para evitar

confusao,que uma vez comparados meios e prop6sitos, utilize-se

o termo bruxaria fundamentalmente para designar a busca de fins

malevolos por meios implicitos internos. A feih<;:ariacorribinaria

fins malevolos com meios explicitos e a "bruxaria branca" a utili"

za<;:aode recursos explicitos com inten<;:6esbeneficas.23

Contudo, da perspectiva da ortodoxia religiosa, que cons-

titui o interlocutor passiveLde recupent<;:ao em se tratando do uni-

verso magico, a distin<;:ao entre os niveis de participa<;:ao magica e

bastante dara no periodo. medieval e em especial ao fim. da Idade

Media, onde e sistematizada uma demonologia e conseqtiente~

mente sao apontados os cumplices do Diabo e suas respectiv~s

atribui<;:6es. Em 1434, 0 papa Eugenio IV, cujo pontificado foi

atormentado pela oposi<;:aodo antipapa Felix V e pela heresia hus-

sita, envia uma carta ao incjuisidor Pontus Fougeyron, confirman-

19 Religion and the decline of magic. New York, 1971. p. 463-46~.

20 Ver nossa tese de doutorado anteriormente citada, cap. 5.

21 ApudMACFARLANE; Alan; Witchcraft in Tudor and Stuart En-

gland. In:MARWICK, Max (Ed.). Witchcraft and sorcery. Har-

mondsworth, 1982. p. 44-47, esp. p. 46.

22 Sir Walter Raleigh (1614). Tn:MACFARLANE, A. Op. cit., p. 46.

23 Op. cit., p. 45-46.

 

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do os poderes concedidos por seus antecessores Alexandre V e

Martinho V para a perseguiyao e puniyao de pniticas magicas:

Entre muitos hereticos que ai estao, sac encontrados tambem

muitos magos cristaos e judeus, adivinhos, invocadores dedemq- 

nios, enfeiti<;:adores [carminatores], encantadores, pessoas supersti-

ciosas, augures, aqueles que utilizam artes abominaveis e proibidas,

e atraves de seus esfor<;:osa gente crista, ou pelo menos uma nume-

rosa e ingenua por<;:aodesta,e maculada e pervertida.24

A Inquisiyao romana no perfodo moderno se preocupa

de inkio com a. feitiyaria, chamando para si"0  julgamento da

mesnia, heretica ou nao- heretic a, pois embora fosse no passado

mixti fori, agora a Inquisiyao tem excIusivajurisdiyao. Em todos

os casos, depende do inquisidor decidir sobre ,ajurisdiyao. [... ]

Mas isto nao priva os bispos, de sua jurisdiyao no assunto e dedecidirem casos sem a intervenyao da Inquisiyao".25Nesta pe rs-

pectiva, Lupo da Bergamo, ,em seus comentarios sobre0 Bdito

Geral para 0Santo Ofic io da Inquis ir;:ao de 1623, determina que

"a feitiyaria nao-heretica deve ser denunciada ao bispo, enquan-

to a feitiyaria heretica a I~quisiyao': perguntando adi~llltese"to-

dos os feiticeiros sao excomungados ipso jure?'; concIuindo que

"os doutores dizem nao, uma vez que nao ha decreto expresso

sobre a materia com exceyaoda bula Super i l l ius Specula de Joao

XXII,que ja caiu em desuso".26

24 Texto em HANSEN, J . Quellen ... , p. 17.

25 CARENA, Caesar. Tractatus de Officio Sanctissimae Inquisitionis et 

modo procedendi in Causis Fidei (1636). Lugduni, 1669. p. II, § 15,n.140-14L

26 LUPO DA BERGAMO, Ignatius. Nova Lux in Edictum S. Inquisi-

tionis ad Praxim Sacramenti Penitentiae. Bergami, 1648. p. III, LXV, art. 1, e 1. XX, art. 4.

Finalmente, as Instrur;:i5espara a formar;:iio de processos em

causas de bruxaria, provavelmente de 1625, e publicadas em

Lyon em 1669, alertam que

alguns juizes erroneamente acreditam que todas as possess6es

vem da feiti<;:ariae, a partir disto, injustamente perseguem ~que-

les para quem os demoni~cos sac inimigos, o.u sac denunCla,do.s,

o que e urn enorme absurdo, pois quem duvlda que 0Demomo

com a permissao divina po de afligir 0cQrpo de qualq~er pess~a?

Em conseqtiencia os juizes devem ser cautelosos, nao persegum-

do somente por esta causa e nao serem iludidos por numerosos

impostores [... ] Alem disso, devem ter em .me~te ~ue, enquant.o

as mulheres sac muitosupersticiosas e mUlto mclll}adas aos fel-

ti<;:osamat6rios,nao se pode dai inferir que se uma roulher faz

feiti<;:arias e encantamentos quer para remover maleficios ou

compelir a vontade dos homens ou ~ara, ou.t~os ~rop6sitos, elaseja em conseqtiencia uma bruxa, pOlSha fe~tl<;:an~sem aposta-

sia formal ao Demonio, embora caiba a suspelta, seJa leve ou vee-

mente, de acordo com os caracteres dos encantamentos. Portan-

to, quand~ urn juiz honrado processar uma mulher, quer tenha

confessado ou seja incriminada de tais feiti<;:arias, napdeve estar

pronto a acreditar que ela e uma ap6stata formal para com 0D.e-

monio, embora possa se-Io ... Os juizes devem prestar espeCIal

aten<;:aopara isto, pois muitos sac assim iludidos, pensan~o que

este genero' de feiti<;:aria necessaria mente envolve. a~ost.asla for-

mal para com 0Demonio donde resultam grave~ mJustl<;:aspa~a

as mulheres assim a{;usadas, por juizes inexpenentes ou neglt-

gentes, iludidos nesta pressuposi<;:ao pela leitur~ de livro~ sob~efeiti<;:ariae bruxas, nao restando outro recurso, atnd_aq~e m~evl-

do, do que arrancar confiss6es de mulheres que sac mduzldas,

por metodos perversos e ilegitimos, a confessar, 0que elesnun-

ca haviam pretendido.27

27 INQUISITIO SANCTA ROMANA. Instructio pro formandis Proces-

sibus incausis Strigum, §6, 7 e 8.

 

5/11/2018 Carlos Roberto Nogueira_O lugar da feitiçaria e Bruxas e Feitiçeiras - slidepdf.com

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Estasinstru~6es inquisitoriais que refletem uma preQcu-

pa~ao de apartar a bruxaria das outras praticas nao constituem

uma nova problematica. No seculo anterior, a questao ja se faz

evidente para a Alemanha, na obra do legista, ja citado, Johann. ,

 / Godelmann que diz em seu prefacio:

Mas como nestes muitos generos de maleficios dos inimigos

famiticos e pestilen:tos sejam feitos juizos precipitados ao mais

leve indicio de sua existencia, e digno de louvor aquele quediscri-

'minar entre os profanos assim como infames magos, feiticeiras e

lamias [bruxas] que estao confundidos e ate aqui sem qualquer

distins;ao. e perfeito conhecimento de seus atose pronunciamen-

tos (N6s Alemaes denominamos sem estabelecer diferens;a ma-

gos, adivinhos, encantadores, feiticeiras, esconjuradores, e, na

mesma casta os semidem6nios denominados sagas, lamias e bru-

xas, "Schwartzktinstler, Zauberer, Hexen, Unholden"); por isto,

para que nao se denominem confusamente neste tratado, e se

mantenham os errbs  que geram e impoem tormentos, devem ser

separados em primeiro lugar todos os magos e feiticeiras e em se-guida as qruxas.'8

Para0entendimento da bnixaria europeia, como vimos,

e necessario ter em mente que esta envolve,a priori, urn pacto

demonfaco; e uma continua legisla~ao por toda a Europa esfor-

~ou-se para diferencia-la de outras praticas magicas - pois a

bruxaria representava 0 grande mal, nao sendo apenas uma pra"

tica heretica, contra ria a religiao -, mas tambem a repudiou, tro-

cando a bOa 0~t6doxia pela adora~ao do Mal, incidindo na abo-

mina~ao das abomina~6es, 0nefando crime de apostasia}9

28, Op. cit., p. 764.

29 Cf. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum

(1486). Trad. de MontagueSummers. London, 1971. v.III, p. 424"428.

SOBRE AS ORIGENS DA BRUXARIA

As origens da brmi:aria ainda constituem urn assunto

controvertido, que retomaremos nos capitulos posteriores; por

ora nos contentamos com a questao de seu posicionamento

frente as outras praticasmagicas. 0termo~ruxaria aparece pela

prinieira vez no ana de 589, diz respeito as c~mpiJ.1~se e funda-

mentalmente no meio rural que permanecera locahzado, levan-

d Charles Lancelin, em sua obra La sorcellerie des campag-o a que " ., 1 .

nes, afirme: '~Porsua pr6pria essencia, a bruxaria so pode evo Ulr

em um meio-carente de instru~ao como a popula~ao campone-

N-0 e na cidade onde se encontra a verdadeira bruxa, massa. a . . _

. S"30Se u de se nvo lv ime nto e sua c onc eltu a~a oSlm nos campo . .

como pratica magica estao intimamente ligados ao triunfo do

,cristianismo, e os pr6prios inquisidores a colocavam como uma

"nova seita". Jean Vineti, que foi inquisidor em Carcassone, ~o

seu Tractatus contra daem~num invocatores de 1450argume.nta

que 0 Canon - que prodamava ~om autor~dade i~refutavel a I1~-

sao de cavalgadas noturnas em companhla de DIana -nada 11-

nha a ver com os modernos hereticos:

Pois com a~toridade suficientemente patente, 0queestii esta-

belecido no capitulo Episcopi nao trata dos hereticos modernos,

que nas horas noturnas invocam demonios, os adoram, ~estes es-

perando e,recebendo respostas, aos mesmos pagando tnbu:os. e,

com selvageria que ultrapassa a ferocidade, imo)am aos de~omos

algumas vezes os pr6prios filhos e freqtientemente os alhelOs, os

vomitando e tornahdo a come-los.31

30 Paris, 1911. p . 48-49.

31 Texto em HANSEN, Joseph. Quellen ... , p. 125.