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1 Estado, p Estado, p Estado, p Estado, pluralismo jurídico e luralismo jurídico e luralismo jurídico e luralismo jurídico e recursos naturais recursos naturais recursos naturais recursos naturais Por Carlos Manuel Serra INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO I. I. I. I. Contextualização Contextualização Contextualização Contextualização O Legislador Fundamental moçambicano consagrou, no artigo 4 da Constituição de 2004, uma norma importante e que constitui, sem margem para dúvidas, um importante marco na história do Direito nacional: “o Estado reconhece os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”. Tratou-se, efectivamente, de um reconhecimento expresso e meritório do papel que as instâncias e os direitos costumeiros desempenham na prevenção e resolução da litigiosidade ao longo do país, contribuindo sobremaneira para a estabilidade e paz social, depois de um longo processo histórico repleto de tentativas de manipulação ou exclusão. Simultaneamente, a Constituição de 2004 veio reforçar substancialmente o regime jurídico de protecção do ambiente e dos demais recursos naturais, quer em termos subjectivos, atribuindo ao cidadão um papel crucial, traduzido na definição de um leque de direitos e deveres, quer objectivos, estabelecendo obrigações e responsabilidades a cargo do Estado. Nesse sentido, o legislador ordinário tem vindo a aprovar um acervo significativo de instrumentos legislativos no domínio do ambiente e recursos naturais, e que configuram, em nosso entender, um notável esforço no reconhecimento do papel do Direito Costumeiro na administração da justiça em Moçambique. A Lei de Terras (Lei n.º

Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

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Estado, pEstado, pEstado, pEstado, pluralismo jurídico e luralismo jurídico e luralismo jurídico e luralismo jurídico e recursos naturais recursos naturais recursos naturais recursos naturais

Por Carlos Manuel Serra

INTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃO

I.I.I.I. Contextualização Contextualização Contextualização Contextualização

O Legislador Fundamental moçambicano consagrou, no artigo 4 da Constituição

de 2004, uma norma importante e que constitui, sem margem para dúvidas, um

importante marco na história do Direito nacional: “o Estado reconhece os vários sistemas

normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na

medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.

Tratou-se, efectivamente, de um reconhecimento expresso e meritório do papel

que as instâncias e os direitos costumeiros desempenham na prevenção e resolução da

litigiosidade ao longo do país, contribuindo sobremaneira para a estabilidade e paz

social, depois de um longo processo histórico repleto de tentativas de manipulação ou

exclusão.

Simultaneamente, a Constituição de 2004 veio reforçar substancialmente o regime

jurídico de protecção do ambiente e dos demais recursos naturais, quer em termos

subjectivos, atribuindo ao cidadão um papel crucial, traduzido na definição de um leque

de direitos e deveres, quer objectivos, estabelecendo obrigações e responsabilidades a

cargo do Estado.

Nesse sentido, o legislador ordinário tem vindo a aprovar um acervo significativo

de instrumentos legislativos no domínio do ambiente e recursos naturais, e que

configuram, em nosso entender, um notável esforço no reconhecimento do papel do

Direito Costumeiro na administração da justiça em Moçambique. A Lei de Terras (Lei n.º

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19/97, de 1 de Outubro) é talvez a maior referência legislativa no que diz respeito à

relação dialéctica que se tem vindo a estabelecer entre o Direito Costumeiro e o Direito

Estatal.

No entanto, conforme aludiremos em sede própria, o reconhecimento estadual de

um espaço importante ao Direito Costumeiro não tem sido recheado apenas de aspectos

positivos, antes pelo contrário, conhece imensos problemas e dificuldades na sua

implementação, caracterizados pela própria denegação por parte das entidades públicas

competentes, em inúmeros exemplos extraídos da realidade, das normas costumeiras que

tratam dos recursos naturais, e, portanto, dos direitos que estas consubstanciam, gerando

situações de real e eminente conflito.

II.II.II.II. ObjectivoObjectivoObjectivoObjectivos s s s

Com o presente Trabalho pretende-se realizar um breve levantamento e análise

crítica do papel do legislador estadual na definição do lugar que o Direito costumeiro

possui na administração da justiça em Moçambique, particularmente no domínio da

legislação dos recursos naturais, do início do período da formação do Estado moderno,

que coincide com a instauração da administração colonial efectiva, a seguir à realização

da Conferência de Berlim (1884 - 1885), passando pelo Estado pós Independência, e

culminando na actualidade, procurando, de seguida, levantar algumas ilações

fundamentais sobre as mais recentes opções do poder legislativo em relação ao

reconhecimento constitucional do princípio do pluralismo jurídico e sua aplicação

prática.

Adicionalmente, procurar-se-á perceber até que ponto o processo de construção,

desenvolvimento e consolidação do Estado moderno contribuiu para influenciar os

princípios, modelos, padrões, mecanismos, normas e regras de acesso ao ambiente, à

terra e demais recursos naturais, ao longo dos diversos períodos históricos.

Para o efeito, e de modo a alcançar tais finalidades, constituem objectivos

específicos do presente Trabalho:

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i. Tratar o período do chamado “Encontro Colonial”, especialmente a partir

do início da ocupação colonial efectiva, procurando aludir à forma como a

administração colonial perspectivou o pluralismo jurídico, articulando com

as instituições e direitos costumeiros, e em que medida as principais

políticas promovidas pelo Estado colonial interferiram nos processos de

acesso, uso e aproveitamento da terra e recursos naturais;

ii. Estudar o Estadualismo instaurado no período pós Independência,

caracterizado pelo monopólio do Estado na elaboração do Direito e na

total indiferença em relação às instituições e direitos costumeiros, por um

lado, bem como no desenho de soluções assentes no primado da justiça

popular;

iii. Analisar o reconhecimento e a abertura para o papel do Direito

Costumeiro no domínio dos recursos naturais, cuja Constituição de 1990

constituiu o ponto de partida, tendo como ponto mais alto a consagração

do princípio do pluralismo jurídico através do artigo 4 da Constituição de

2004;

iv. Realizar um balanço sumário em torno dos constrangimentos e êxitos do

processo de implementação do novo quadro jurídico-legal que reconheceu

um importante espaço aos direitos costumeiros, enfocando a figura da

consulta comunitária.

Note-se que estamos perfeitamente conscientes de que foi uma certa ousadia da

nossa parte em tratar tema tão vasto e digno de um merecido e adequado tratamento

científico, podendo incorrer numa certa tendência de simplificar, reduzir ou absolutizar

aspectos, que por si, podem ser complexos, vastos ou relativos. No entanto, julgamos

importante iniciar o debate em torno da relação entre o Direito estadual e os direitos

costumeiros em Moçambique no que diz respeito ao acesso, uso e aproveitamento dos

recursos naturais.

Procuraremos, ainda, verificar até que ponto o processo de criação do Estado

moçambicano, nas suas sucessivas etapas, contribuiu para construir, refazer ou moldar as

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formas de acesso, uso e aproveitamento dos recursos naturais por parte das comunidades

locais, e até que medida os direitos costumeiros resistiram ao processo de criação e

implantação do Estado moderno e, consequentemente, à emergência de um Direito

novo, positivo, escrito e baseado na Lei emanada pelos órgãos do poder estatal.

III.III.III.III. Metodologia Metodologia Metodologia Metodologia

Para a realização do Trabalho será utilizada diversa metodologia, nomeadamente:

i. Revisão bibliográfica sobre assuntos com relevância para o desenvolvimento

do tema, ao nível nacional e internacional. Note-se que, no que diz respeito

aos trabalhos sobre as experiências coloniais, não estaremos tão preocupados

com as diferenças que caracterizaram cada sistema colonial, mas sim com os

pontos comuns ou transversais;

ii. Levantamento e análise do quadro jurídico-legal revogado e em vigor no País,

da Constituição, nas suas sucessivas versões, à legislação ordinária, bem como

das principais experiências no tocante à codificação dos direitos costumeiros;

iii. Confrontação sumária do disposto no quadro jurídico-legal com os dados

levantados no terreno alusivos às respectivas dificuldades de implementação.

IV.IV.IV.IV. Estrutura Estrutura Estrutura Estrutura

O presente Trabalho será estruturado em três capítulos, sendo que no primeiro

trataremos sumariamente o chamado “Encontro Colonial”, especialmente no período de

ocupação colonial efectiva (1874/75 - 1974); no segundo capítulo, trataremos o

Estadualismo no período pós Independência, caracterizado pelo monopólio do Estado

na elaboração do Direito (1975 - 1990), e na total indiferença em relação às instituições e

direitos costumeiros; no terceiro capítulo, aludiremos ao reconhecimento e a abertura

para o papel do Direito Costumeiro no domínio dos recursos naturais, cuja Constituição

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de 1990 constituiu o ponto de partida, alcançando o marco através da Constituição de

2004 com a consagração do princípio fundamental do pluralismo jurídico (1990 em

diante), e no qual culminaremos dos constrangimentos e êxitos referentes ao processo de

implementação do novo quadro jurídico-legal que reconheceu um importante espaço

aos direitos costumeiros.

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Capítulo I Capítulo I Capítulo I Capítulo I –––– O O O O ““““encontro colonialencontro colonialencontro colonialencontro colonial””””

1.1.1.1.1.1.1.1. O Estado colonial O Estado colonial O Estado colonial O Estado colonial

No período de implantação colonial efectiva no território de Moçambique, cujo

impulso histórico pode ser definido a partir da histórica Conferência de Berlim (que teve

lugar entre os dias 19 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885), em que uma

das principais decisões assentou na premissa de “dominar e administrar os territórios

efectivamente” 1 , assistiu-se ao fenómeno que, recorrendo às palavras de Cristina

Nogueira da Silva, se apelida de “encontro colonial” entre o estado colonizador com os

colonos e com os povos nativos e destes entre si, e que “produziu, na sua origem,

sistemas jurídicos híbridos, cujas fronteiras não foram fixadas de forma linear e cujas

hierarquias se mantiveram, por muito tempo, em aberto”2

O colonialismo constituiu num processo legal transnacional e que teve a suposta

missão de expandir a civilização superior europeia para as populações colonizadas,

consideradas primitivas, selvagens ou atrasadas, mas que encobria, de facto, objectivos

associados à obtenção de matéria-prima e mão-de-obra para as plantações, minas e

fábricas ao serviço das potenciais colonizadoras3. Por seu turno, o colonialismo quase

sempre envolveu a transferência de códigos e instituições de uma sociedade para outra,

bem como para elaborar e fazer aprovar legislação dirigida a distinguir e descriminar

racialmente as populações4.

1 Veja-se MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, Esboço Histórico, Volume I, Estudos Coloniais Portugueses, Lourenço Marques, 1974, p. 62. 2 SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, p. 1. Publicado Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n°s 33-34, t. II, 2004 – 2005, pp. 899 – 921. 3 MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology, Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 363. 4 4 MERRY, Sally Engle, Colonial and Postcolonial Law, p. 1.

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A suposta missão civilizacional está patente, a título de exemplo, no artigo 2 do

Acto Colonial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 22 465, de 11 de Abril de 1933, segundo o

qual “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de

possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles

se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo

Padroado do Oriente”.

Adelino Torres diz-nos que o conceito de civilização encontra-se, assim,

fortemente associado à ideia de que as colónias e respectivas populações nativas se

beneficiaram ampla e profundamente do “encontro” colonial, o qual contribuiu para

mudar o rumo da sua história”5. A civilização foi, portanto, perspectivada como uma

benesse ou mais-valia para povos que se encontravam em estádios culturalmente

atrasados em relação às nações europeias.

Em Moçambique, a montagem do sistema colonial tem um importante marco

histórico – a aprovação da Carta Orgânica da Província de Moçambique, através de um

Decreto de 23 de Maio de 1907, do então Ministro da Marinha e do Ultramar, Aires de

Ornelas, poucos anos antes da queda da Monarquia6 . Este instrumento legal trouxe

vincada a diferenciação do tratamento jurídico dos europeus e dos indígenas. Aliás,

decorre do mesmo a criação do Secretaria de Negócios Indígenas (SNE), entidade à qual

competia administrar a organização da justiça indígena, regulamentar os deveres dos

régulos e outras actividades gentílicas, providenciar a codificação dos usos e costumes

cafreais, determinar e fixar terrenos que deveriam ficar exclusivamente reservados para

os indígenas, organizar o fornecimento de trabalhadores indígenas para os serviços

públicos e particulares, entre outros7.

Há seis importantes características que gostaríamos de destacar em relação à

política colonial portuguesa, especialmente em relação a Moçambique, no que diz

respeito à relação como o modo de vida das populações locais – (1) o pluralismo jurídico

5 TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, Colecção Estudos sobre África, n.º 5, Escher, Lisboa, P. 33. 6 ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 65. 7 MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, Esboço Histórico, Volume I, Estudos Coloniais Portugueses, Lourenço Marques, 1974, pp. 65 – 66.

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na era colonial; (2) a rede de lideranças locais; (3) o estatuto jurídico das populações

locais; (4) o trabalho forçado; (5) a codificação dos direitos costumeiros; (6) e, por

último, a terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial.

As seis características a seguir analisadas contribuíram sobremaneira na questão do

acesso à terra e aos recursos naturais, norteando significativamente os padrões e normas

de uso e aproveitamento das riquezas naturais existentes no então Estado colonial de

Moçambique, lançando, inclusivamente, algumas das bases e linhas que caracterizaram as

etapas seguintes na evolução histórica, designadamente a seguir à Independência.

1.2.1.2.1.2.1.2. PPPPluralismo luralismo luralismo luralismo jurídico na era colonial jurídico na era colonial jurídico na era colonial jurídico na era colonial

Uma questão que se levanta naturalmente no domínio do presente tema é a de

saber até que ponto o sistema colonial conviveu com a enormidade e diversidade de

instâncias e direitos costumeiros das populações locais de Moçambique? A resposta a esta

pergunta conduz-nos à percepção do pluralismo que se desenhou ao longo do período

de ocupação colonial efectiva.

Nesse aspecto, segundo Cristina Nogueira da Silva, o pluralismo jurídico no

período colonial constitui “um projecto no qual o estado colonial se assumiu como pólo

ordenador da diversidade, com a correspondente "missão" de fixar não apenas as regras

reguladoras do funcionamento dos sistemas jurídicos plurais, como também os estatutos

jurídicos das populações neles envolvidas, face à ordem jurídica hegemónica”8.

As populações locais, note-se, foram, em termos jurídicos, consideradas, até à fase

última do colonialismo, como “nativas” ou “indígenas”, como que se pessoas de nível

inferior se tratassem, conforme veremos de seguida. O colonialismo assentou em um

postulado rácico, ainda que juridicamente não tenha ganho contornos expressos como

na vizinha África do Sul, na qual foi implantada uma política e legislação sobre a

separação racial.

Neste domínio, importa referir que, para alcançar um controlo efectivo do vasto

território da então colónia de Moçambique, mais tarde província ultramarina, bem como

8 SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 2.

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das suas populações, Portugal precisou efectivamente de contar com as instâncias e

direitos locais, pelo menos enquanto não reunisse as condições humanas, materiais e

financeiras necessárias à padronização política, económica, social, cultural e religiosa do

império colonial português. O exemplo mais paradigmático foi efectivamente a

aprovação do Código Civil Português (Código de Seabra), aprovado por Carta de Lei em

1 de Julho de 1887, que foi tornado extensivo ao espaço colonial, incluindo

Moçambique, em 1869, através de Decreto de 18 de Novembro de 1869, ressalvando-se

os usos e costumes das populações indígenas que não se opusessem à moral e à ordem

pública.

O preâmbulo do Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926, que

promulgou o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique,

disse o seguinte: “Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os

direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua

vida individual, doméstica e pública se assim é permitido dizer, às nossas leis políticas,

aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa Organização

Judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estatuto das suas

faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem

prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação cada vez

maior, do seu nível de existência”.

Silva Cunha, procurando justificar a dicotomia de sistemas jurídicos com base em

critérios de ordem cultural, refere, numa das suas obras, que “só quando as populações a

que se aplica este Direito evoluírem, superando a sua actual situação cultural, é que de

poderá acabar com a distinção entre os sistemas jurídicos por que se regem não indígenas

e indígenas (…). Tudo o que se faça antes deste momento, no sentido da unificação, é

prematuro, precipitado e perigoso e está condenado a falhar porque os factos

necessariamente se sobreporão ao que for legislado”9.

Anos antes, Mousinho do Albuquerque, herói das campanhas de ocupação

efectiva do território moçambicano e que veio a ocupar o cargo de Comissário Régio 9 CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), I, Edições Ática, Colecção Jurídica Portuguesa, Lisboa, p. 79.

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para Moçambique, escreveu, em ofício ao Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira,

procedendo a uma análise crítica da forma como, na “província”, era administrada a

justiça às populações indígenas, e que passava pela aplicação da legislação do Reino que

regia os cidadãos europeus, o seguinte: “era impossível conservar este absurdo, pois a

cada estado de civilização dum povo corresponde o conjunto de leis por que se deve

reger e não há pior ilusão do que supor que pela simples aplicação de leis e regulamentos

inadequados se passa do estado de selvajaria para o de civilização completa”10.

Aliás, nos termos do n.º 2 da Base 18 da Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei

Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas), as alterações dos usos e

costumes privativos que regem as relações civis dos povos indígenas, com o propósito de

os melhorar, “só serão introduzidas gradualmente, e de forma a serem cabalmente

compreendidas e assimiladas”. Nesse sentido, Silva Cunha propugnava que o

reconhecimento dos direitos costumeiros dos povos indígenas é meramente transitório,

visto que “constitui objectivo de toda a política colonial portuguesa obter o

desaparecimento e tal ordem jurídica, através da integração total dos indígenas no

agregado nacional”11.

Cristina Nogueira da Silva sublinha que o pluralismo jurídico vigente na

administração colonial, traduzido na situação criada através do Decreto de 18 de

Novembro de 1869, não assentou na diversidade cultural juridicamente protegida, isto é,

na coexistência de múltiplas ordens jurídicas, colocadas ao mesmo nível, desprovidas de

relações de desequilíbrio. Antes pelo contrário, tratou-se de um “pluralismo

desequilibrado”, o qual “colocava, de um lado, a ordem jurídica portuguesa e, do outro,

um conjunto de ordens jurídicas percebidas como inferiores. A preservação destas últimas

supunha a existência de uma fronteira civilizacional que separava as populações

civilizadas, sujeitas ao Código Civil, das populações não civilizadas, regidas, na sua vida

privada, por usos e costumes, cujo desaparecimento progressivo era visto como uma

consequência natural da colonização europeia”12.

10 MINERVA CENTRAL, Mouzinho de Albuquerque, Edição da Minerva Central, 2.ª Edição aumentada, Lourenço Marques, 1953, p. 52. 11 Idem, p. 222. 12 SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 14.

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José Capela considera, a este respeito, que “o colonialismo nunca teve qualquer

consideração, de qualquer consideração que fosse, pelos valores da sociedade clânica ou

tribal. O indigenato, se foi codificado, foi-o exclusivamente para liquidar à nascença

qualquer veleidade de reconhecimento de direitos a um negro. O que subsistiu das

culturas tradicionais ficou a dever-se não a qualquer consideração da administração por

elas, mas à sua incapacidade para as destruir de todo”13.

No entanto, conforme nos revela José Negrão, “contrariamente ao que era

esperado pelos legisladores portugueses, o desprezo das leis consuetudinárias pelo

Governo teve, por consequência, o seu reforço e a sua consolidação enquanto

instituições locais flexíveis e adaptáveis à mudança” 14 . Isto é, o tradicional resistiu a

quaisquer iniciativas de aniquilamento e/ou manipulação, não somente no período da

Administração colonial, mas também a seguir à instauração da Independência nacional,

projectando-se em termos fortalecidos.

1.3.1.3.1.3.1.3. A rede de chefA rede de chefA rede de chefA rede de chefias locais ias locais ias locais ias locais

As diversas experiências de colonização revelaram um importante aspecto em

comum: o uso dos chefes locais ou tradicionais para garantir uma administração colonial

efectiva, controlar as suas gentes, fornecer mão-de-obra e assegurar o pagamento dos

diversos tributos fixados. No entanto, tal expediente constituiu uma espécie de remédio

encontrado pelos estados colonizadores para suprir eventuais carências financeiras e

humanas no esforço de cobertura geográfica dos territórios ultramarinos. Dai que,

mesmo no modelo colonial britânico da indirect rule, no qual as autoridades tradicionais

gozaram de um espaço de intervenção relativamente maior em relação às suas

congéneres sob jugo das administrações coloniais francesa e portuguesa, a perspectiva foi

sempre a de reduzir progressivamente a dependência das lideranças locais, bem como de

13 CAPELA, José, O Imposto de Palhota e a Introdução do Modo de Produção Capitalista nas Colónias, Afrontamento, Porto, 1977, p. 248. 14 NEGRÃO, José, Cem Anos de Economia da Família Rural Africana – O Delta do Zambeze em análise retrospectiva, Texto Editores, Maputo, 2006.

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reduzir os seus poderes, à medida que a Administração colonial reforçava a sua

capacidade de controlo e gestão dos territórios e suas gentes15.

Focando o caso moçambicano, uma característica importante no sistema de

administração colonial português foi o estabelecimento de uma rede de chefias locais,

cruciais ao cumprimento dos desígnios de controlo efectivo de um território ultramarino

em dimensão descomunalmente superior ao do estado colonizador, e em que, na quase

totalidade dos casos, os funcionários coloniais tiverem que se confrontar com enormes

constrangimentos de ordem financeira, visto que os cofres metropolitanos se mostraram

reticentes em disponibilizarem os montantes necessários ao controlo efectivo da colónia

de Moçambique.

Este processo iniciou quando, em 1895, o então Comissário Régio de

Moçambique, António Enes, criou a circunscrição indígena, unidade administrativa

adequada às zonas rurais, na qual o administrador, no lugar das até então chefias

tradicionais, exercia, em termos cumulativos, as funções de juiz e administrador. Por seu

turno, as circunscrições foram divididas em regedorias 16 . Esta divisão administrativa

sobreviveu às reformas sucessivamente realizadas com o decurso do tempo, mesmo em

período republicano, no qual foi aprovada a Constituição Política de 1911, que trouxe o

princípio da descentralização administrativa. Segundo Carlos Serra, “gestor da força de

trabalho e juiz do bom comportamento dessa força de trabalho, o administrador

colonial tornou-se, também, antropólogo de carreira, o pesquisador da organização

social dos nativos. Quanto mais conhecido fosse essa organização social, mais eficiente

seria o controlo judiciário e, portanto, mais rigorosamente seriam processados os

fornecimentos laborais”17.

Na realidade, o sistema das chefias serviu fundamentalmente para materializar um

conjunto de desígnios: controlar a população indígena, facilitar o recrutamento de mão-

15 LAMBERT, John, Chiefship in Early Colonial Natal, 1843 – 1879, Journal of Southern African Studies, Vol. 21, N.° 2 (Jun., 1995), 271. 16 SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, Volume II, Livraria Universitária, Maputo, 2000, p. 207. 17 Idem, p. 208.

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de-obra para a África do Sul e para garantir o funcionamento da máquina produtora de

matéria-prima essencial ao desenvolvimento da Metrópole e para cobrar impostos.

As autoridades tradicionais foram, assim, sistematicamente manipuladas ao serviço

do sistema colonial, chegando, no caso moçambicano, a receber o estatuto de “auxiliares

da administração”, através da Portaria Provincial n.º 5639, de 29 de Julho de 194418.

Constituíram, efectivamente, uma espécie de presença indirecta do poder colonial junto

das populações locais, bem como da respectiva ordem jurídica, isto é, constituiu uma das

características do chamado modelo da indirect-rule, que vigorou em praticamente todos

os países colonizados, de acordo com as mais diversas especificidades, e que ganhou

contornos mais significativos no sistema de administração colonial britânico.

Naturalmente que a Administração colonial exercia, sempre que necessário, uma

interferência nas regras sucessórias para designar uma autoridade considerada

subserviente ou afastar outra que fosse considerada insubordinada ou, de certo modo,

contrária aos objectivos coloniais19. A nova organização administrativa implementada

pelas autoridades coloniais pressupôs, igualmente, um processo de redimensionamento

ou redefinição das fronteiras dos territórios pertencentes aos anteriores Estados pré-

coloniais, sempre para menor, dentro do espírito da política de dividir para melhor

reinar20, introduzindo modificações nas estruturas e relações societárias e de poder, à luz

dos desígnios da potência ocupante, com implicações que persistiram à evolução dos

tempos. Em certa medida, uma parte das autoridades tradicionais, representadas no

sistema de regedorias, acabou constituindo criação da administração colonial, escolhidos

entre soldados negors que tinham participado nas guerras de ocupação ou por criados

dos oficiais portugueses, desde que assegurassem a materialização dos desígnios do

Estado colonial21.

Dai que tenham surgido imensos conflitos de liderança que perduram até

actualidade, designadamente entre os “legítimos”, reconhecidos pela comunidade, e os

18 MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, “Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique”, organização de Boaventura Sousa Santos e João Carlos Trindade, Volume 2, Edições Afrontamento, Porto, 2003, p. 346. 19 Idem. 345. 20 Veja-se MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 34. 21 SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, ob. cit., p. 216.

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“criados”, resultantes de decisão das autoridades coloniais. Ambrósio Cuahela faz

referência a este assunto, vincando a diferença entre chefes “tradicionais” e “régulos”,

consoante a legitimidade tenha advindo da própria comunidade, no primeiro caso, ou

da Administração colonial, no segundo caso. Para este autor, “é o chefe tradicional que

possui a capacidade de estabelecer por simbologia a ligação entre os vivos e dos mortos.

O Régulo podia possuir tal capacidade quando fosse ao mesmo tempo Chefe

Tradicional, de contrário não. Isto porque o Chefe Tradicional é o provável portador da

legitimidade que lhe vem dos seus ancestrais linhageiros através dos vivos. O Régulo

quando detinha a legitimidade, era de forma condicional, pois o caso surgiu da

necessidade do regime colonial de encontrar um parceiro local, que servisse de

interlocutor entre as comunidades e a Administração”22. Eduardo Mondlane aludiu ao

facto de “o poder do chefe já não derivar de um conceito de legitimidade dentro da

sociedade tradicional, mas estar antes baseado no controverso conceito da legalidade

portuguesa. O chefe já não era mais o dirigente da sua comunidade, mas o representante

na comunidade da autoridade colonial, estabelecida de forma hierárquica”23.

Eli Mar escreve, nesse sentido, a sujeição das autoridades indígenas ao interesse

colonial fazia (…) com que a liberdade do Africano em Moçambique e a defesa dos seus

interesses fossem desaparecendo, uma espécie de afogamento lento, atingindo o nível

desumano e bárbaro (…). Ele passou em regra geral e forçadamente a ser um

colaborador e foi com a ajuda dele que se começou uma exploração maciça de mão-de-

obra africana”24.

Logicamente que o processo de instrumentalização não significou a adesão plena,

consciente e isenta de resistência por parte de todas as chefias tradicionais, havendo

inúmeros casos de contestação, bem como de apoio e adesão ao movimento

independentista25. Conforme veremos, estes casos não foram suficientes para obstar ao

22 CUAHELA, Ambrósio, Autoridade Tradicional, Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique, Brochura 1, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, p. 31. 23 MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995. P. 34. 24

MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, ob. cit., p. 75. 25 Veja-se nesse sentido CUHAELA, Ambrósio, Descentralização e Autoridade Tradicional: Memória do Projecto, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública,

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15

tratamento que as chefias receberam nos primeiros anos a seguir à proclamação da

Independência nacional, rotuladas como agentes de opressão ou meros serviçais do

Estado colonial.

1.4.1.4.1.4.1.4. Estatuto jurídico das populações locais Estatuto jurídico das populações locais Estatuto jurídico das populações locais Estatuto jurídico das populações locais

Para o sistema colonial, as populações locais foram tratadas, tal como nas demais

experiências colonizadores levadas a cabo pelos povos europeus, como bárbaras,

indígenas, primitivas, atrasadas ou aborígenes. Os povos colonizados eram, em todos os

aspectos (económicos, sociais, culturais, religiosos, políticos) considerados inferiores em

relação aos europeus, e, portanto, desprovidos das mais elementares bases civilizacionais,

regidos por usos e costumes considerados rudimentares, tornando-se necessário, para o

efeito, um aturado e profundo processo de elevação gradual da sua condição através de

modelos de assimilação ou integração na ordem considerada civilizada.

No início, os povos colonizados foram fundamentalmente considerados como

fontes de recrutamento de mão-de-obra escrava para as grandes plantações coloniais;

mais tarde, com a abolição da escravatura em meados do século XIX, a sua condição

pouco melhorou, pois passaram constituir mão-de-obra barata para o desenvolvimento

do projecto colonial, desprovidos dos direitos reconhecidos aos cidadãos europeus. Dai

que tenha havido, recorrendo a uma expressão de Marco Guadagni, uma “exigência

primária de sancionar no plano legal uma clara discriminação de estatuto jurídico entre

os colonos e as populações locais”26.

Nas colónias portuguesas foi estabelecido o regime do Indigenato como sistema

político que subordinou as populações colonizadas aos chefes e, nesse sentido, “as leis,

estatutos e políticas que passaram a opor o colonizador ao colonizado, o cidadão ao

indígena, reflectem, na essência, o sistema colonial, a necessidade de estruturar o sistema

de exploração e de discriminação racial” 27 . Assim, a população nas colónias estava

organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, pp. 90 – 91. 26 GUADAGNI, Marco, A Reforma do Direito Privado em África – O caso da Etiópia, In. Justiça Popular, n.º 6, Maio/Outubro, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1982, p. 8. 27 MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, ob. cit., pp. 343 – 344.

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16

organizada em duas classes distintas: os civilizados ou não indígenas, que se regiam pelas

leis vigentes na Metrópole, possuindo plenos direitos de cidadania, e os indígenas,

regidos pelos usos e costumes locais. Veja-se que mesmo depois da proclamação da

República em Portugal, no ano de 1910, guiada pelos ideais da Liberdade, Igualdade e

Fraternidade, em nada se alteraram os direitos políticos dos indígenas das colónias, para

os quais, aliás, apenas estavam previstos deveres, nomeadamente de trabalhar, ainda que

nas mais ultrajantes condições humanas28.

Em 1914, foi aprovada a Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias

Ultramarinas, Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914, proposta pelo então Ministro das

Colónias, Almeida Ribeiro29, e que consagrou o princípio segundo o qual aos indígenas

das colónias portuguesas não seriam atribuídos “direitos políticos relativos a instituições

de carácter civilizado”30. Esta lei, bem como as que a sucederam, não chegou a ser

cabalmente implementada tendo presente o período de instabilidade política que se

viveu em Portugal até à Revolução do dia 28 de Maio de 1926, que pôs termo à

Primeira República Portuguesa, instaurando a Ditadura Nacional, e assim abrindo uma

nova página na história deste país31.

Nesse ano, houve lugar à aprovação do primeiro código de indigenato, o Estatuto

Político Civil e Criminal dos Indígenas das Colónias de Angola e Moçambique, através do

Decreto n.º 12 533, de 23 de Outubro de 1926, e que, 3 anos mais tarde, deu origem a

um novo Estatuto, aprovado através do Decreto n.º 16 473, de 6 de Fevereiro de 1929,

que mantiveram, quase na íntegra, os princípios e regas fundamentais da política colonial

estatuídos na Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 191432.

Influenciado pelo modelo francês de colonização, a partir 1917, a Administração

colonial portuguesa criou uma categoria nova – o assimilado, categoria social não sujeita

ao trabalho forçado, com base no chamado modelo de assimilação, que caracterizou

28 SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, ob. cit., p. 219. 29

CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 106. 30 In. PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique. A codificação dos Usos e Costumes Indígenas no Direito Colonial Português, Cadernos de Estudos Africanos, N.° 1, Centro de Estudos Africanos, Julho/Dezembro, 2001, p. 137. 31

CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 115. 32 Idem, pp. 116 – 118.

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igualmente as relações entre a França e as suas colónias, em contraposição aos modelos

da autonomia e da sujeição, que caracterizou, tendencialmente, as políticas coloniais do

Reino Unido e do Reino dos Países Baixos, respectivamente33. Eli Mar refere-se assim à

instauração de um sistema baseado na agregação da população em três categorias ou

castas distintas: os “assimilados”, os “civilizados” e os “indígenas” 34 . Segundo este

autores, a assimilação teve dois objectivos fundamentais: primeiro, “mudar a estrutura

sócio-cultural da sociedade africana e do indivíduo transformando-a numa sociedade de

classes” segundo; “a criação de uma casta de africanos integrados no sistema, com um

número muito limitado de privilégios que são negados aos outros, e funcionando como

auxiliares deste sistema”35.

Os indivíduos assimilados passavam, assim, a beneficiar-se das instituições

estaduais existentes na administração colonial e a reger-se pelas normas do ordenamento

jurídico formal e escrito, renunciando, portanto, à observância dos usos e costumes

nativos ou gentílicos. Os assimilados constituíam, na realidade, uma categoria intermédia

entre os cidadãos portugueses, logo possuidores de um estatuto inferior em relação a

estes, consubstanciado num cartão de identidade específico, diferente da massa de

trabalhadores detentores de caderneta indígena36.

O artigo 22 do Acto Colonial de 1933 aprovado pelo Decreto-lei n.º 22 465, de

11 de Abril de 1933, estabeleceu que “nas colónias atender-se-á ao estatuto de evolução

dos povos nativos havendo estatutos especiais dos indígenas que estabeleçam para estes,

sob influência do direito público e privado português, regimes de contemporização com

os seus usos e costumes individuais, domésticos e sociais, que não sejam incompatíveis

com a moral e com os ditames da humanidade”.

Silva Cunha, ao analisar o quadro jurídico colonial saído da Constituição de 1933,

justificou a opção por um estatuto jurídico especial para os indígenas da seguinte

maneira: “os indígenas estão sujeitos a uma ordem jurídica especial porque o seu estado

33 Veja-se, nesse sentido, SILVA, Cristina Nogueira da, Modelos Coloniais no Século XIX (França, Portugal e Espanha), In. E-legal History Review, n.º 7, 2009. 34

MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, ob. cit., p. 135. 35 Idem, p. 136. 36 MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, ob. cit., p. 344.

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de civilização o impõe. É com fundamento em considerações tiradas da observação do

estado pessoal de facto dos indígenas que se criam para eles estatutos especiais, em nome

das necessidades práticas da política e administração colonial e com o objectivo de

proteger as suas pessoas e bens, evitando que os não indígenas, valendo-se da

superioridade de cultura e de prestígio que sempre cerca os pertencentes ao grupo

colonizador, comeram contra eles abusos e espoliações”37.

Este autor escreve ainda que “os meios de actuação sobre os indígenas para

conseguir a sua assimilação seriam principalmente a difusão da língua portuguesa, a

educação e o ensino, a cristianização”38 . Pelos menos em termos formais, dá-se um

regresso à tendência liberal da assimilação defendida pelos liberais que fizeram a

Revolução de 1820, mas já não em moldes uniformizadores.

O exemplo da política discriminatória baseada na raça prosseguida pelo Estado

colonial, foi legitimada de uma forma paradigmática num discurso de António Salazar,

de 1957, que afirmou “Acreditamos que existem raças decadentes ou, se preferem,

atrasadas, a quem sentimos ter o dever de conduzir para uma civilização – tarefa esta de

formação de seres humanos que deve ser levada a cabo de maneira humana”39.

Nos documentos da 8.ª Secção do Comité Central da Frelimo, realizado entre os

dias 11 a 27 de Fevereiro de 1977, escreveu-se, a respeito da opção do poder colonial em

relação à abertura da educação aos assimilados, “na última fase do colonialismo,

assistimos a uma modificação aparente da política colonial de educação através da

«abertura» para uma pequena minoria de moçambicanos, concretamente os filhos dos

funcionários e assimilados. O objectivo era claro: realizar efectivamente a própria política

de assimilação, que até então tinha ficado no papel. Isto é, tratava-se de acelerar a

formação de «pequenos burgueses de cor preta» para criar uma classe pequeno-burguesa

capaz de assumir e enraizar no seio da sociedade moçambicana os valores duma

sociedade constituída na e para a exploração”40.

37 CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 214. 38

Idem, p. 120 39

ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 343. 40 FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 100.

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19

A assimilação revelou-se, contudo, muito mais uma intenção desprovida de uma

real implementação, conforme se pode verificar do escasso número de indivíduos que

beneficiaram de tal estatuto ao longo dos primeiros anos de entrada em vigor da referida

política 41 . Na realidade, o Estado Colonial não era muito favorável à elevação da

condição jurídica das populações consideradas nativas, a quem interessava manter numa

espécie de estado inferior, de ignorância plena, para, naturalmente, melhor garantir a

continuidade do modelo de subjugação, evitando eventuais movimentos de natureza

nacionalista. Nesse sentido, a política educacional levada a cabo pela Administração

colonial vedou praticamente até meados da década de sessenta o prosseguimento dos

estudos para além do ensino secundário por parte das populações locais.

Rui Mateus Pereira escreveu, a este respeito, que “o modelo de assimilação

omnipresente na política indígena portuguesa, nos seus objectivos finais, nada mais era

do que uma falácia conducente à manutenção de um sistema subdesenvolvido de

exploração colonial: as normas de civilidade, sempre em evocação a uma pretensa moral

e dignidade humana, detinham-se naquele ponto que tinha a ver com a exploração mais

primitiva da força laboral das populações colonizadas. Para atingir esse objectivo haveria

que desfuncionalizar as culturas e sociedades colonizadas, fosse pelo desprestígio das

autoridades tradicionais, fosse pela denegação das marcas identitárias, fosse pela

monetarização forçada das economias de subsistência fosse pela repressão dos rituais e

cerimónias integradoras”42.

Em 1961, tendo presente a conjuntura internacional caracterizada pela emergência

do movimento independentista ou de descolonização, bem como da emergência de ecos

de nacionalismo no seio das colónias portuguesas, o Ministro do Ultramar, através do

Decreto-Lei n.º 43 893, de 6 de Setembro de 1961, procedeu à abolição do Estatuto do

Indigenato, tendo todos os habitantes nativos das colónias sido declarados cidadãos

portugueses de pleno direito, pelo menos no capítulo formal e jurídico, pois a prática

41 Rui Mateus Pereira, citando o Relatório da Aplicação do Estatuto dos Indígenas Portugueses referente aos anos de 1955, 1956, 1957 e 1958, refere que, em 1954, houve lugar à concessão do estatuto de assimilado a apenas 28 indígenas em toda a colónia, número este que foi subindo muito vagarosamente, ao ponto de, nos 4 anos em causa, o número totalizar apenas 442 indivíduos. In. PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique, ob. cit., p. 160. 42 Idem, p. 168.

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20

revelou que a descriminação não se extinguiu de um momento para o outro, tal como

ficou provado através da emissão de “bilhetes de identidade” para os anteriores

cidadãos, bem como de “cartões de identidade” para os ex. indígenas43. Novos tempos

se vislumbravam…

1.5.1.5.1.5.1.5. O O O O trabalho forçado trabalho forçado trabalho forçado trabalho forçado

Encontramos igualmente uma clara preocupação nos escritos coloniais com a

questão do trabalho indígena. Uma vez abolida a escravatura nas colónias, emergiu o

trabalho forçado, que muito pouco se distinguia daquele, e que permaneceu uma

realidade em termos práticos, ainda que encoberto em subterfúgios legais, até ao ano

1974, que marcou a queda da ditadura fascista e a instauração de um Estado democrático

em Portugal, bem como o início do processo de descolonização em Moçambique e nas

demais colónias portuguesas.

Um dos autores que melhor espelha a mentalidade vigente ao longo do período

colonial, é Rodrigues Júnior, em sua obra O Negro de Moçambique, começa dizendo:

“O negro é um homem. A cor da pele não interessa. O que interessa é que o

considermos homem. Um homem atrasado? Com certeza. O trabalho há-de levá-lo a

pensar que a satisfação de necessidades só a merece quem for capaz de um esforço. A

preguiça que lhe amolenta as energias vem justamente de não ter quase necessidades a

satisfazer. E mínimas são tão poucas que o não trazem ocupado suficientemente para

impedir que a ociosidade possa ser causa de uma paragem perigosa da sua vida – o sono

à beira do caminho por onde passam outros homens que sentem já desejos de se

adiantarem”. (…) Obrigá-lo a esse trabalho, que é aperfeiçoamento individual, será

destruir nele conceitos primitivos de vida, será indicar-lhe um caminho novo, que pisará

mais firmemente, as grilhetas partidas, a fronte virada para o sol, o peito aberto à luz, o

coração cheio de outras novidades, mais belas e altas”44.

43 Veja-se MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 46. 44 JUNIOR, Rodrigues, O Negro de Moçambique (Estudo), África Editora, Lourenço Marques, 1955, p. 5.

Page 21: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

21

Nota-se no autor uma clara e expressiva necessidade de fundamentar e legitimar a

política e legislação colonial em relação ao trabalho indígena, considerado essencial, à luz

do modelo económico de cariz mercantilista, à prossecução dos objectivos do Estado

português, num contexto de grande pressão da concorrência representada pelos

proprietários das minas e plantações sul-africanas.

Sobre o trabalho forçado, Rodrigues Júnior escreveu o seguinte: “Não há trabalho

compelido, propriamente dito. O que há, é obrigação de trabalho. O trabalho é uma

função nobre da vida – fonte de riqueza, acúmulo de valores de que depende a vida

social do grupo e o bem-estar da família”. Quando se obriga um negro ao trabalho, é

porque ele obriga de algum modo, porque não veio, voluntariamente, oferecer o seu

braço, que não pode ficar inactivo quando os outros braços de movimentam para que

não se morra à mingua de pão. Trabalho compelido supõe a existência de uma

imposição. Não há dúvida de que é assim. Quando o indivíduo se furta a dar a sua

quota-parte na criação da abastança que lhe deve caber, não há outro meio de o corrigir

senão obrigá-lo a trabalhar. O negro é preguiçoso. Talvez porque não tenha grandes

necessidades – e as que tem são poucas que o forçam a despertar dessa sonolência de

séculos, desse sono aflitivo, que o amarra à esteira, onde o corpo fica amolentado de

preguiça dias sem conta”45.

Já na fase final do período monárquico, foi aprovado o Regulamento do

Trabalho Indígena, em Decreto de 9 de Novembro de 1899, consagrando expressamente

o princípio da obrigatoriedade do trabalho. A comissão de autores foi presidida

precisamente António Enes, que foi Comissário Régio em Moçambique. Este instrumento

marcou uma ruptura com a tendência liberal e humanitarista saída da Revolução de

1820, fortemente impregnada pelos ideais da Revolução Francesa, assentes na Liberdade,

Igualdade e Fraternidade, defendendo uma política de assimilação uniformizadora. Dai

que, segundo Adelino Torres, “é, por conseguinte, a filosofia assumida do trabalho

forçado que se apresenta como imperativo legal” 46 . António Enes defendeu uma

orientação assente no objectivo de se criar um regime especial de trabalho para as 45 JUNIOR, Rodrigues, ob. cit., p. 11. 46

TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, Colecção Estudos sobre África, n.º 5, Escher, Lisboa, p. 169.

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22

populações nativas susceptível de colmatar os profundos défices de mão-de-obra com

que se deparavam os diversos projectos públicos e privados nas colónias portuguesas47,

bem como de aumentar a produtividade das colónias portuguesas em África,

fortalecendo a respectiva posição em relação às economias dos países vizinhos48.

O artigo 1 do Regulamento de 1899 determinou que “todos os indígenas das

províncias ultramarinas portuguesas estão sujeitos à obrigação, moral e legal, de procurar

adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltem, de subsistir e de melhorar a própria

condição social”. E mais, caso não a viessem a cumprir de modo algum, “a autoridade

pública pode impor-lhe o seu cumprimento”. Nesse sentido, mais do que instituir um

dever moral e material de trabalhar, atribuiu-se ao mesmo carácter jurídico,

acompanhado por medidas de coerção.

Este instrumento legal viria a influenciar significativamente todas as iniciativas

legislativas subsequentes, designadamente após a instauração da república em 1910. O

primeiro Regulamento de Trabalho Indígena da República, aprovado pelo Decreto de 27

de Maio de 1911, mais não fez do que prosseguir com as grandes linhas do Código de

189949. Assim, a legislação colonial do trabalho pouco mudou da transição da Monarquia

para a República (sai inclusivamente reforçada com a Constituição de 1933, que marca o

início da instauração do “Estado Novo”50), e desta nas suas diferentes etapas ao longo do

século XX, conforme demonstram os sucessivos regulamentos do trabalho indígena,

consubstanciando uma obrigação legal (e moral) ao trabalho.

47 CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), I, Edições Ática, Colecção Jurídica Portuguesa, Lisboa, p. 70. 48 ALMEIDA, Pedro Ramos ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XIX, Imprensa Universitária, n.º 4, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 312. 49 TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, ob. cit., p. 170. 50 Veja-se que, segundo o artigo 146 da Constituição de 1933, estabeleceu-se a cobertura legal do trabalho forçado colonial: “O Estado não pode forçar os indígenas a trabalhar senão nos serviços públicos de interesse geral para a colectividade, em ocupações em que os benefícios lhes digam respeito, na execução de decisões judiciais de carácter geral, ou para a execução de obrigações fiscais”. Em termos práticos, esta norma constitucional permitiu um amplo espaço para aplicação de excepções à regra, tornando o trabalho forçado prática amplamente utilizada. Por seu turno, no artigo 2 do Acto Colonial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 22 465, de 11 de Abril de 1933, determinou-se que “O Estado somente pode compelir os indígenas ao trabalho em obras públicas de interesse geral da colectividade, em ocupações cujos resultados lhes pertençam, em execução de decisões judiciárias de carácter penal, ou para cumprimento de obrigações fiscais”.

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23

Veja-se o Artigo 1 do Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas aprovado

pelo Decreto n.º 951, de 4 de Outubro de 1914, segundo o qual os indígenas têm

obrigação moral e legal de por meio do trabalho proverem ao seu sustento. Este

Regulamento foi revogado pelo Decreto n.º 16 199, de 1928, no qual se procurou

realizar uma aproximação em relação ao disposto na Convenção n.º 129 da Organização

Internacional do Trabalho. Depois de se estipular, no artigo 3, a proibição absoluta do

trabalho forçado, com fins de interesse particular, permitindo-se excepcionalmente em

casos de necessidade pública, definiu-se uma reserva - “contudo, sem prejuízo do

cumprimento do dever moral que lhes incumbe, os indígenas terão necessariamente de

procurar os meios de subsistência por meio do trabalho e contribuir assim para os

interesses gerais da humanidade”.

Em 1939, o então Ministro das Colónias, Vieira Machado, chegou a afirmar que as

populações negras africanas “não têm direito a viver sem trabalhar”, reflectindo uma

clara defesa do princípio do trabalho forçado como sucessor da escravatura vigente até

ao século anterior51.

Eduardo Mondlane resume de uma forma bastante clara e objectiva as principais

formas de trabalho forçado, categoria genérica, mas que efectivamente encobre diversas

espécies de exploração da mão-de-obra nativa: (1) Trabalho correccional, aplicado

através dos tribunais; (2) Trabalho obrigatório, que obrigava os nativos a trabalhar cerca

de 6 meses para o Estado ou para uma companhia; (3) Trabalho contratado, previsto no

Código de Trabalho Rural; (4) Trabalho voluntário, reconduzindo-se fundamentalmente

ao trabalho doméstico; (5) Cultivo forçado, englobando os casos em que o trabalhador é

pago pelo produto do seu trabalho e não pelo seu trabalho; (6) Mão-de-obra para

exportação, enviada para a África do Sul e, em menor número, para a Rodésia do Sul

(hoje Zimbabwe), mediante pagamento efectuados ao Estado colonial52.

O trabalho forçado exerceu naturalmente um profundo impacto no modo de

estar e viver das populações locais, alterou toda uma teia de relações sociais, retirou

tempo anteriormente utilizado em actividades associadas à terra e aos recursos naturais, 51

ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 253. 52 MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, pp. 78 – 79.

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24

mas também ao convívio, ao lazer, ao bem-estar. Foi realmente um dos lados mais

marcantes do colonialismo. Os moçambicanos viram-se transformados em instrumentos

de trabalho, força motriz de baixo custo.

1.6.1.6.1.6.1.6. Codificação doCodificação doCodificação doCodificação dossss direitodireitodireitodireitossss costumeirocostumeirocostumeirocostumeirossss

Moçambique constituiu, em relação às demais ex. colónias portuguesas, uma

espécie de palco priviligiado de experimentação do movimento de codificação dos

direitos costumeiros, ainda que não conseguido ir muito além da apresentação de

propostas desprovidas da necessária eficácia jurídica.

O caso mais emblemático foi o Código dos Milandos, de 1852, e que conheceu

sucessivas nos anos seguintes, dizendo respeito à codificação das normas costumeiras

vigentes no distrito de Inhambane, particularmente no que diz respeito ao grupo étnico

Bitonga, que residia fundamentalmente no redor na cidade de Inhambane.

A Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias do Ultramar (Lei n.º 277, de

15 de Agosto de 1914), estipulou, entre outros princípios, a “codificação e revalidação de

usos e costumes africanos feudais”, bem como “a não concessão, por regra, à população

africana, de «direitos políticos relativos a instituições de carácter europeu»”53.

No n.º 1 do artigo 4 do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola

e Moçambique, promulgado pelo Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926,

determinou-se que “nas relações jurídicas entre indígenas, os direitos de família, sucessões

e regime de propriedade são regulados segundo os usos e costumes das populações de

cada região”. Nos termos do respectivo parágrafo único, “enquanto não forem

reduzidos a escrito os usos e costumes dos indígenas de cada região, serão eles

estabelecidos para cada caso sujeito a julgamento, pelas declarações do chefe indígena da

região e de 2 indígenas dos mais conceituados no seu meio, designados pelo presidente

do tribunal”. Esta legalmente expressa, portanto, a vontade de reduzir à forma escrita o

conjunto de direitos costumeiros dos povos indígenas.

53

ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.º 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 104.

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25

Nesse sentido, volvidos apenas três anos, o artigo 24 do novo Estatuto Político,

Civil e Criminal dos Indígenas, aprovado pelo Decreto n.º 16 473, de 6 de Fevereiro de

1929, determinou que os governadores das colónias deveriam, no prazo de um ano a

contar da publicação deste instrumento legal no Boletim Oficial, pôr em vigor códigos de

indigenato, bem como os regulamentos que se revelassem necessários à sua

implementação. Contudo, conforme demonstra Rui Mateus Pereira, a administração

colonial foi extraordinariamente lenta na resposta à imposição proveniente da

Metrópole54.

Só em 1941, o Governador-geral de Moçambique determinou, através de

despacho de 31 de Julho, a criação da Missão Etognósica da Colónia de Moçambique,

que tinha como objectivo fundamental realizar em concreto e em relação a cada um dos

grupos étnicos do território da colónia, uma investigação do direito, da moral e da

mentalidade das populações indígenas, com o propósito último de se elaborar um

código penal e um código de direito privado55. Para a chefia da Missão foi nomeado o

conceituado jurista da colónia, José Gonçalves Cota, que começou a trabalhar no terreno

logo imediatamente, para, em 1944, publicar o seu estudo etnológico 56 . Os seus

projectos de Código Penal e de Estatuto de Direito Privado dos Indígenas foram

publicados em versões definitivas no ano de 1946, mas não chegaram a ser promulgados

pelo poder metropolitano.

Contudo, segundo Rui Pereira, não obstante tais projectos não terem entrado em

vigor por falta de promulgação, “acabaram por cumprir um objectivo de relevo,

apontado, de resto, na disposição legislativa que a instituiu: fornecer aos funcionários

coloniais em Moçambique uma base de orientação para a prática administrativa do

quotidiano das populações colonizadas, num processo dialéctico entre os ditames

configurados nos Projectos de Gonçalves Cota e os "crimes gentílicos" que, caso a caso, se

apresentavam à apreciação judicial das autoridades coloniais”57.

54 PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique. ob. cit.,p. 144. 55 Idem, pp. 144 – 145. 56 COTA, J. Gonçalves, Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique, Imprensa Nacional de Moçambique, Lourenço Marques, 1944. 57 PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique, ob. cit., p. 173.

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26

A codificação do Direito Consuetudinário não foi mais do que, segundo alguns

autores, uma construção colonial dirigida ao estabelecimento e manutenção de relações

de poder ou dominação, isto é, consubstanciava uma espécie de elaboração ou

reelaboração das normas que deveriam reger as relações entre as populações locais à

medida do pensamento do colonizador. Dai que, para Sally Merry, o direito costumeiro

era muito mais uma construção do período colonial que uma realidade pré-colonial58;

sendo que, à medida que o direito costumeiro ia sendo compilado, naturalmente que a

sua interpretação e implementação eram feitas à luz do direito estadual importado das

metrópoles59.

Cristina Nogueira da Silva refere que a codificação dos usos e costumes das

populações locais constituiu uma das modalidades que os poderes coloniais utilizaram

para “confinar” e “controlar” os sistemas jurídicos nativos e os respectivos agentes,

aproximando estes sistemas em relação ao sistema jurídico europeu60. E mais, esta autora

chama-nos a atenção para a contradição, ainda que aparente, entre a preservação dos

usos e costumes das populações locais não europeias, inerente ao processo de

codificação, confirmando relações de poder, de autoridade e de dependência que o

movimento codificador pretendia extinguir no continente europeu, por um lado, e a

missão de disseminação da civilização e modernidade junto das populações nativas dos

territórios colonizados, por outro lado61.

A missão civilizacional foi, aliás, uma dos pilares ideológicos do colonialismo,

encontrando-se patente no Decreto n.º 5778, de 10 de Maio de 1919, que criou 12

missões civilizadoras para o Ultramar. Veja-se que o objectivo consistiu “em levar a essas

sociedades embrionárias e primitivas os benefícios da nossa civilização, elevando-as e

derrubando-lhes os preconceitos, criar nelas uma família nova, ensinando-lhes a nossa

língua, revelando-lhes as nossas glórias e impondo-lhes os nossos costumes e tradições,

deve ser o objectivo das nossas missões”62.

58 MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, ob. cit., p. 364. 59 Idem, p. 365. 60 SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 3. 61 Ibidem, pp. 3 – 4. 62 Veja-se ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 136.

Page 27: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

27

Aliás, tal como referem Benett e Vermeulen, a codificação do direito costumeiro

implica, na maior parte das vezes, a redução a escrito das normas existentes não escritas,

visto que o direito costumeiro reduzido a escrito e depois aplicado em tribunal pressupõe

necessariamente uma mudança ou distanciamento das normas originais assumidas e

implementadas pelas populações locais, uma potencial distorção do direito costumeiro

ou, então, uma previsão de regras gerais assemelhando-se a pouco mais do que uma

compilação de truísmos 63 . Aliás, estes autores evidenciaram muito bem a enorme

dificuldade que os redactores de um projecto de codificação de direito costumeiro,

diante das características da flexibilidade e da generalidade inerentes às respectivas

normas, enfrentam em seleccionar as normas a serem reproduzidas no código e a

expressarem a sensibilidade necessária para reflectir devidamente a forma como elas

funcionam64.

A codificação do direito costumeiro configurou-se, assim, como um mecanismo

intencional de introdução gradual de transformações nos sistemas jurídicos das

populações nativas, de modo a prosseguir a consolidação das relações de poder e

dominação que caracterizam os estados coloniais e o controlo efectivo do território e das

suas gentes por parte dos agentes da administração colonial. Na realidade, “o programa

fundamental, sobretudo no momento em que se codificava a «tradição», não era o de

preservar mas, em vez disso, o de promover o seu desaparecimento, o de a substituir por

uma (muito futura) assimilação”65.

Uma importante consequência da codificação de usos e costumes constituiu no

sacrifício da capacidade inata do direito costumeiro em se adaptar espontaneamente a

novas realidades económicas, conforme refere Marco Guadagni. Segundo exemplo

apresentado por este autor, “a regra «codificada» da propriedade fundiária «colectiva»

atribuía aos régulos e chefes nomeados pelo poder colonial um poder muito maior do

que lhes era tradicionalmente reconhecido pela comunidade e impedia os camponeses de

63 BENNETT, T.W./ VERMEULEN, T., Codification of Costomarw Law, Jornal of African Law, Vol. 24, N.° 2, 1980, pp. 210 – 211, 217. 64 Idem, p. 217. 65 SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 17.

Page 28: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

28

aproveitar-se dos benefícios concedidos aos «proprietários» fundiários (como por

exemplo o crédito agrícola)”66.

Maryse Raynal escreveu, a propósito do caso moçambicano, “reconhecendo um

lugar ao costume e às autoridades tradicionais, o colonizador reconhecia então a

existência de um pluralismo jurídico. Mas esse reconhecimento de uma ordem jurídica

distinta significava o início da tutela deste, de maneira a assegurar a sua conformidade

com os pressupostos ideológicos do direito estatal. Se politicamente o pluralismo era

para o colonizador uma solução incontornável, ele sempre tentou em seguida desnaturá-

lo para o melhor controlá-lo”67.

Importa referir como Boaventura Sousa Santos refere o movimento de codificação

dos chamados direitos tradicionais ou costumeiros, que a antropologia e a história

jurídicas têm procurado captar, com base nos actuais recursos técnicos, com algum rigor.

Segundo o próprio, isto não resolve tudo, “pois o problema seguinte é o destino da

transformação ou adulteração desse direito uma vez recolhido e codificado.

Precisamente, o risco, de uma vez reduzido a escrito, perder a flexibilidade que só a

tradição lhe conferia, e definhar como corpo estranho no interior de códigos novos”68.

1.7.1.7.1.7.1.7. Terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial Terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial Terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial Terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial

Um outro aspecto da administração colonial, que se reflectiu profundamente na

vida das populações locais, foi a política do Estado sobre a terra e os recursos naturais.

Não obstante Portugal, pelo menos no patamar teórico, ter estabelecido e incentivado a

formação de regedorias, detentoras de poderes, ainda que relativos, sobre o território

comunitário administrado, as colónias eram importantes precisamente pelas suas

riquezas, especialmente a terra. Dai que o quadro jurídico-legal tenha sido utilizado

66 GUADAGNI, Marco, ob. cit., p. 8. 67 RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 18. 68 SANTOS, Boaventura Sousa, Direito e Cooperação, Excertos de uma palestra efectuada na Sessão Inaugural da Associação Universitária da Cooperação e Estudos sobre Direitos Africanos, em 24 de Junho de 1982, na Faculdade de Direito de Lisboa, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do 25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1980, p. 34.

Page 29: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

29

como instrumento para retira as melhores terras das mãos das populações locais,

remetendo-as progressivamente para áreas marginais e as colocar ao serviço da máquina

produtiva colonial, regida pelos mais básicos postulados mercantilistas.

No início, os défices que a Administração Colonial enfrentava no controlo

efectivo do território foram cobertos através da política de incentivos à instalação de

companhias majestáticas, às quais foram atribuídas vastas porções de terra, bem como

garantido o acesso aos demais recursos naturais. A partir de meados do século XX, a

política colonial orientou-se para a total administração do território, incentivando a

chegada massiva de colonos, a quem eram distribuídas boas terras, obviamente que

sempre à custa dos anteriores ocupantes.

Veja-se que, em 1901 foi implementada uma politica de terras que proclamou

constituir propriedade do Estado toda a terra que não fosse propriedade privada,

solução engenhosa para passar para o controlo colonial as melhores áreas ainda nas

mãos das populações locais, entre as quais não vigorava o conceito de propriedade

privada69. Aos nativos foi legalmente assegurada, nas terras por si ocupadas, um direito

de uso e desenvolvimento para culturas e pasto de gado. A procura de terras para as

grandes plantações de cana-de-açúcar, chá ou sisal fez emergir com máxima força o

instituto da expropriação, na maior parte das vezes sem compensação. A expropriação

tornou-se, para muitos camponeses e respectivas famílias, um verdadeiro calvário.

Repare-se que o pluralismo jurídico (ou, para alguns, dualismo jurídico) inculcado

pelo sistema colonial, e que remetia para o direito costumeiro o papel de reger as

relações entre indígenas, segundo os seus usos e costumes, foi condicionado sempre que

estava em causa um interesse preponderante para o colonizador, especialmente no

capítulo da administração da terra e dos demais recursos naturais. Marco Guadagni refere

que “o poder colonial (…) exercia o seu controlo também sobre o chamado direito

consuetudinário, proibindo a sua aplicação quando era julgado contrário ao «sentido de

justiça europeu» (por exemplo no campo fundiário)”70.

69 MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 35. 70 GUADAGNI, Marco, ob. cit., p. 8.

Page 30: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

30

Uma Lei de 1918, a Lei n. ° 3983, de 16 de Março, assegurou às populações nativas

algumas “reservas”, após terem sido concedidos grandes e boas porções de terras aos

colonos portugueses71. Os verdadeiros, genuínos e autênticos ocupantes da terra foram

sendo preteridos das áreas mais férteis, sendo confinados a terrenos marginais, segundo

uma prática comum a todos os modelos de colonização implantados no mundo.

A política de povoamento foi igualmente discriminatória. Em 1956, iniciou-se o

desenvolvimento do colonato do Limpopo, no qual chegaram a residir cerca de 300

portugueses e 3000 moçambicanos. No entanto, cada família portuguesa recebeu 4

hectares de terra para agricultura e 25 para pastagens, contra 2 e 12 hectares,

respectivamente, recebidos por cada família moçambicana. A desigualdade de

tratamento foi, portanto, notória72.

No capítulo dos recursos naturais, destaque para a primeira iniciativa de

conservação integrada de componentes naturais, com a aprovação do Decreto n.º 40

040, de 24 de Fevereiro de 1955, do Ministério do Ultramar, e que estabeleceu preceitos

destinados a proteger, nas províncias ultramarinas, o solo, a flora e a fauna bravia. No

que diz respeito à caça, consagrou-se o princípio da obrigatoriedade de licença, nos

termos do artigo 74 (“salvo as excepções expressamente consignadas na lei, a ninguém é

permitido o exercício da caça sem estar munido da licença competente”). Na sequência

deste princípio, reconheceu-se, no artigo 75, aos indígenas “o direito de caçar e capturar,

para sua subsistência, animais cuja caça não seja absolutamente proibida por lei, desde

que usem apenas armas gentílicas73 e os animais se encontrem em terrenos abertos”.

No capítulo da pesca, o artigo 130 do mesmo Decreto determinou que “a pesca

por indígenas pode ser exercida pelos processos tradicionais, mas deverá ser dirigida e

fiscalizada, de modo a não destruir a piscosidade das águas”.

71

Veja-se ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX, Imprensa Universitária, n.º 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 132. 72 Idem, p. 339. 73 Por “armas gentílicas” entendia-se todo o conjunto de armamento que não fosse de fogo tradicionalmente utilizado pelas populações nativas, incluindo os arcos e flechas e as azagais.

Page 31: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

31

Capítulo II Capítulo II Capítulo II Capítulo II ---- Estadualismo no período Estadualismo no período Estadualismo no período Estadualismo no período pós Independência pós Independência pós Independência pós Independência

2.1. A lei como fonte 2.1. A lei como fonte 2.1. A lei como fonte 2.1. A lei como fonte exclusiva exclusiva exclusiva exclusiva de Direito de Direito de Direito de Direito

Após a proclamação da República de Moçambique, no dia 25 de Junho de 1975,

iniciou-se um período histórico de um autêntico Estadualismo jurídico, com contornos de

positivismo, no sentido de que só se reconhecia ao Estado o papel de criador de direito,

bem como apenas competia às instâncias formais representadas pelos tribunais populares

e às novas estruturas político-administrativas criadas ao nível da base – os grupos

dinamizadores, a função de resolução de litígios.

Os primeiros quadros formados pela Faculdade de Direito da Universidade

Eduardo Mondlane foram colocados ao longo do país, nas diferentes profissões jurídicas,

com uma formação em direito fundamentalmente positivista, assente, portanto, no peso

da lei como fonte de Direito e expressão máxima da vontade do Povo, através dos

órgãos de soberania.

Veja-se que o processo legislativo manteve-se totalmente indiferente em relação

ao papel do Direito Costumeiro e do costume como fonte de direito, pelo menos até

1992, ano em que foram aprovadas duas importantes leis – a dos Tribunais Comunitários

(Lei n.º 4/92, de 6 de Maio) e da Lei da Organização Judiciária (Lei n.º 10/92, de 6 de

Maio). Segundo Maryse Raynal, “os juristas e os governos optaram por um direito

uniforme temendo que os direitos costumeiros não colmatassem as clivagens étnicas que

eles pretendiam ultrapassar em nome de uma unidade nacional a forjar. (…) Recusando-

se a encarar a realidade evidente, a justiça moderna eternizava os seus erros do passado,

negando a existência de um pluralismo jurídico e judiciário, de facto certos mas sempre

bem vivos”74.

O pluralismo jurídico não constituiu assunto a tomar em consideração no processo

de desconstrução do sistema jurídico e judiciário colonial e consequente erguer de um

novo sistema, no contexto do Estado Popular Democrático. Aliás, o conceito encontrava-

74 RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 19.

Page 32: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

32

se, segundo os pensadores que lideraram o processo de transição e reforma, demasiado

conotado com os desígnios do Estado colonial ao defenderem soluções plurais, ou,

melhor dizendo, duais, sendo que, de um lado o direito estadual, dirigido aos cidadãos,

e do outro lado, os direitos costumeiros, aplicáveis aos nativos ou indígenas.

Gita Honwana escreveu, a este respeito, que “ao nível das leis e da administração

da justiça, a prática discriminatória do colonialismo português, traduzia-se num dualismo

jurídico que não poderia de modo algum ter tido a intenção de conferir direitos aos

indígenas das colónias, mas tão-somente, de garantir aos colonos, os mesmos direitos que

os dos cidadãos da Metrópole, proteger e ampliar as fontes de mão-de-obra barata na

Colónia e assim defender os interesses económicos do colonialismo português. Aliás,

qualquer pluralismo, quanto a nós, veicula e perpetua uma forma de desigualdade dos

cidadãos, perante a lei, seja com base na origem étnica ou racial, nas crenças religiosas ou

no estatuto social dos destinatários”. Nesse aspecto, segundo a autora, o pluralismo

constitua uma afronta ao princípio constitucional da igualdade, plasmado no artigo 26

da Constituição de 1975, segundo o qual “todos os cidadãos da República Popular de

Moçambique gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres”75.

No domínio da legislação sobre recursos naturais, de cariz fundamentalmente

colonial, não se faz praticamente qualquer alusão aos direitos costumeiros, não obstante,

na prática, estes constituírem uma realidade, sendo respeitados e exercidos pelas

comunidades ao longo do país inteiro.

Na 1.ª Lei de Terras (lei n.º 6/79, de 3 de Junho), por exemplo, de forte cunho

ideológico, nada se diz em relação às formas tradicionais de aquisição, alienação, uso,

aproveitamento e sucessão da terra. A abolição do quadro jurídico-colonial da terra e a

sua substituição por outro ao serviço da construção do Estado socialista constituiu o

grande objectivo da reforma de 1979. Veja-se que, segundo o preâmbulo da Lei, “depois

da usurpação e espoliação das melhores terras, feitas ao longo de quinhentos anos pelo

colonialismo português, arrancar a terra à sujeição exploração estrangeiras, devolvendo-a

75 HONWANA, Gita, No Tempo Colonial – Justiça que Mata para Dilatar a Fé e o Império, In. Justiça Popular, n.º 10, Edição Especial de 25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1985, p. 15.

Page 33: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

33

ao Povo Moçambicano, era uma exigência do processo histórico, condição de uma

independência real e efectiva”.

Na esteira do artigo 8 da Constituição de 1975 76 , consagra o princípio da

propriedade estatal da terra, cabendo ao Estado a determinação das suas condições de

uso e aproveitamento 77 , devendo a terra constituir o Fundo Estatal de Terras. Este

princípio permaneceu intocável até à actualidade, significando, em termos jurídicos, que,

cada cidadão, possuindo o direito constitucional de acesso à terra, terá sobre a mesma

um direito de uso e aproveitamento da terra, vulgo D.U.A.T., e nunca o direito de

propriedade, enquanto exclusiva prerrogativa do Estado.

Nota peculiar merece o artigo 32, que versa sobre a transmissão do direito de uso

e aproveitamento da terra, o qual, segundo o legislador de 1979, “só pode transmitir-se

por morte do titular a favor do cônjuge e herdeiros, nos termos da lei”. Com esta

disposição, descurou-se totalmente a realidade caracterizada por usos e costumes dos

mais diversos povos e lugares em Moçambique, sonegando-se a tradição em benefício do

direito positivo estadual, por sinal herança colonial, visto que o Código Civil em vigor

no País continua a ser o de 1967.

No domínio dos recursos naturais, importa fazer menção ao facto de ter sido

aprovado o Decreto n.º 7/78, de 18 de Abril, que procedeu à regulamentação das

modalidades de caça a serem praticadas na República Popular de Moçambique. Importa

verificar até que ponto o legislador lidou com um dos campos mais férteis de actuação

de normas de direito costumeiro, sabendo que ancestralmente as comunidades

exerceram a actividade de caça, não só para fins alimentares, como também para fins

culturais e religiosos.

Da leitura do respectivo preâmbulo realça, de imediato, a referência ao 3. °

Congresso da Frelimo por ter reafirmado o princípio constitucional de que os recursos

naturais constituem “património de todo o Povo” ou “propriedade do Estado”,

76 Segundo o artigo 8 da Constituição da República Popular de Moçambique, de 1975, “a terra e os recursos minerais do solo e subsolo, nas águas territoriais e na plataforma continental de Moçambique, são propriedade do Estado. O Estado determina as condições do seu aproveitamento e uso”. 77 Nos termos do n.º 1 do artigo 1 da lei n.º 6/79, de 3 de Junho, “Nos termos da Constituição a terra na República Popular de Moçambique é propriedade do Estado que determina as condições do seu uso e aproveitamento”.

Page 34: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

34

competindo a este último determinar as condições do seu uso e aproveitamento. E mais,

teceu-se uma alusão crítica à “destruição indiscriminada” do rico património faunístico

protagonizada pelo colonialismo, fundamentalmente dirigida à obtenção de “lucros

fáceis”.

Na sequência da consagração do referido princípio estipulou-se, no artigo 6, a

obrigatoriedade de licença para todas as modalidades de caça, designadamente para

autoconsumo, em defesa de pessoas e bens e desportiva. Importa aludir, principalmente,

à caça para autoconsumo, que, à luz do artigo 2 do referido Decreto, é a “caça praticada

com finalidade de satisfazer necessidades alimentares”, numa perspectiva de subsistência,

isto é, “não sendo permitida a comercialização dos seus produtos com fins lucrativos”.

Este Decreto foi regulamentado pela Portaria n.º 117/78, de 16 de Maio, que prevê as

modalidades de licença, respectivos procedimentos para a obtenção, bem como as

infracções e modalidades. Basicamente, dando continuidade ao disposto na legislação

colonial, o referido regime vem trazer a obrigatoriedade de licenciamento de uma

actividade que, para as populações locais, foi sempre regida consoante as regras de

direito costumeiro, para as quais a licença constitui uma formalidade estranha e,

principalmente, difícil de obter, se pensarmos na distância geográfica que separa os

candidatos a caçadores das autoridades licenciadoras.

2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas estruturas de apoio 2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas estruturas de apoio 2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas estruturas de apoio 2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas estruturas de apoio

O advento da Independência significou, portanto, a ruptura formal do Estado

para com as autoridades tradicionais, consideradas agentes ao serviço poder colonial e

instrumentos de repressão. Foram, portanto, perspectivadas com enorme desconfiança

devido à sua “acoplagem administrativa ao sistema colonial” 78 . Segundo Ambrósio

Cuhaela, “o processo revolucionário impunha uma nova filosofia de poder, de rupturas e

continuidade, mas sobretudo de ruptura com o passado, não só colonial, mas todos os

78 FUMO, Joaquim, Da Política de Guarda-Chuva ao Reconhecimento Minimalista das Autoridades Comunitárias, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, P. 115.

Page 35: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

35

aspectos que a Frelimo considerava decadentes e contaminados pela tradição, que não se

compadeciam com a modernidade, tanto do Estado, como de uma nova maneira de

pensar”79. André Cristiano José refere que, para a Frelimo, a objectivo de construção de

um Estado socialista pressupunha “um processo de transformação radical da sociedade,

contra o tribalismo, divisionismo, racismo, obscurantismo e superstição, isto é, requeria a

destruição da sociedade «feudal-tradional», para a construção do «homem novo» e de

uma sociedade sem classes, livre da «exploração do homem pelo homem”80.

A Revolução pretendeu erguer uma “sociedade nova”, por um lado, e formar um

“Homem Novo”, por outro, totalmente livre do colonialismo, do imperialismo, do

tribalismo, do obscurantismo, do racismo e de toda a manifestação da “exploração do

homem pelo homem”. Efectivamente, tratava-se de desmantelar, abolir ou extinguir a

ordem colonial e, no seu lugar, erguer uma nova ordem. Nesse sentido, Samora Machel,

1. ° Presidente da República Popular de Moçambique disse, nos seus escritos, que “a

questão essencial da revolução é destruir o poder que os opressores exercem, para

instalar o nosso poder e tornar assim possível que as orientações resultantes dos nossos

interesses dirijam e transformem a vida quotidiana”. Procurando ilustrar melhor como tal

desígnio seria implementado, Samora Machel destacou o exemplo das “zonas libertadas”,

enquanto zonas “libertadas das estruturas da dominação capitalista-colonial e feudal-

tradional. Por outras palavras, ao nível administrativo o poder já não é exercido pelos

administradores coloniais, nem pelos régulos tradicionais, as formas, métodos e conteúdo

do poder, foram transformados. (…) Nas zonas libertadas o poder pertence às massas e é

exercido democraticamente a diversos escalões”81.

Samora Machel alude ainda às lutas internas que assolaram a Frelimo entre 1967 e

1970, aludindo à ala perdedora como composta por elementos que “se opunham

79 CUHAELA, Ambrósio, Descentralização e Autoridade Tradicional: Memória do Projecto, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, p. 95. 80 JOSÉ, André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, P. 73. 81 MACHEL, Samora Moisés, O Processo da Revolução Democrática Popular em Moçambique, Departamento de Informação e Propaganda, Maputo, 1980, p. 53.

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36

resolutamente à instauração do Poder Popular”, “apresentando-se como defensores

duma tradição espezinhada pelo colonizador, mas na realidade reflectindo os interesses

das camadas feudais, propunham a sobrevivência e revalorização do regulado, estrutura

anti-democrática de tipo feudal que degenerara com o colonialismo e se tornara

praticamente um instrumento deste”82. Quando aflora a reorganização da economia no

contexto do Estado Popular democrático, Samora Machel alude ao facto de os régulos

terem beneficiado do trabalho forçado, que, conforme vimos, constituiu uma das facetas

mais tristes da história do colonialismo83.

Veja-se que, em entrevista realizada em 1985, o então Ministro da Justiça de

Moçambique, Ussumane Aly Dauto, uma vez questionado sobre o que aconteceu ao

regulado, afirmou: O regulado, suporte da própria colonização, contrário aos interesses

do Povo, foi destruído. Não havia qualquer possibilidade de coexistência. Os régulos não

foram presos sem submetidos a um processo criminal mas sofreram uma forte censura

social, e o seu sistema foi proibido e banido por ser contrário à democracia e aos

princípios da Frelimo. O regulado era por nós visto como uma extensão do poder

colonial”84.

O afastamento dos regulados conduziu à criação de um certo vazio na

organização social ao nível do escalão mais baixo na administração, posição que veio a

ser ocupada pelos Grupos Dinamizadores. No entanto, não poderemos deixar de fazer

menção à enorme capacidade de resistência e adaptação das autoridades tradicionais em

face das inúmeras dificuldades e obstáculos enfrentados ao longo das sucessivas etapas

históricas, instrumentalizadas e diminuídas no Estado colonial, denegadas e perseguidas

no Estado monopartidário, “ressuscitadas” e novamente manipuladas no Estado

democrático, elas continuaram a existir e a disputar o seu espaço, taco a taco, com as

novas estruturas político-administrativas criadas. A tradição vai assim convivendo com a

modernidade, segundo uma relação de mútuo entrosamento e notável interdependência,

82 Idem, p. 55. 83 Ibidem, p. 56. 84 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Justiça Popular, Edição Especial, N.° 10, de 25 de Junho de 1985, Ministério da Justiça, Maputo, 1985, p. 5.

Page 37: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

37

através de um processo de reconstrução do pluralismo jurídico que vigorou nos anos de

ocupação colonial.

2.32.32.32.3. O advento da justiça popular . O advento da justiça popular . O advento da justiça popular . O advento da justiça popular

As experiências em torno do advento da justiça popular nos diversos cantos do

Globo, segundo o qual os governos e/ou as comunidades locais construíram fóruns

alternativos, revelaram principalmente três motivações principais: um esforço para resistir

à lei estatal, para rejuvenescer as comunidades locais ou para reforçar a eficiência do

sistema jurídico existente85.

Em Moçambique, a justiça popular emerge da desconstrução e desmantelamento

do sistema de administrativo da justiça em vigor no Estado colonial. O artigo 4 da

Constituição da República Popular de Moçambique, de 1975, definiu como um dos

grandes objectivos da Revolução: “a eliminação das estruturas de opressão e exploração

coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente”.

Nos Documentos Preparatórios da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo,

realizada entre os dias 11 e 27 de Fevereiro de 1976, encontra-se uma importante

Resolução sobre a Justiça, que constituiu uma das bases da reforma judiciária de 1978, e

que consagra como um dos objectivos da Revolução “a liquidação da injustiça inerente

ao sistema colonial” e consequente “estabelecimento de um sistema de justiça

verdadeiramente popular, capaz de reflectir as características da sociedade nova e as

aspirações do povo”86. Mais ainda se disse no sentido de que se impunha, nessa altura

(1976) “a destruição do direito colonial-capitalista e da sua estrutura judicial como parte

da destruição de todo o aparelho de Estado colonial-capitalista em Moçambique”, sendo

que o novo sistema judiciário deveria “exprimir o poder da aliança operária-camponesa

e reflectir a ditadura da maioria explorada”87.

85 MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology, Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 362. 86 FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 119. 87 Idem, p. 121.

Page 38: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

38

Foi realizado um diagnóstico ao direito e sistema de justiça colonial, chegando-se

à constatação de que aqueles “serviram os interesses e os objectivos do colonialismo”,

dai que “as leis aplicadas em Moçambique eram, todas elas, ou importadas do país

colonizador ou impostas pelos elementos que representavam os interesses e o poder

colonial”, estando “profundamente divorciadas das realidades e das aspirações do nosso

povo”. Mais, “a organização dos Tribunais confundia-se, em grande parte, com o sistema

administrativo colonial, por forma a manter e perpetuar a dominação colonial

capitalista”88.

Este propósito foi levado a cabo através da Reforma de 1978 e correspectiva

aprovação da Lei n.º 12/78, de 2 de Dezembro (Lei que regulamenta a estrutura e

composição dos Tribunais Populares). Veja-se que, nos termos do preâmbulo desta lei, a

luta de libertação nacional teve, entre outros objectivos, o de “abolir a injustiça inerente

ao sistema colonial e estabelecer a justiça que sirva os interesses e aspirações das largas

massas do Povo moçambicano”.

Ainda de acordo com o referido Preâmbulo, os régulos foram considerados, ao

lado dos administradores, “estruturas de opressão colonial” a serem eliminadas no

contexto da luta de libertação nacional, para, no seu lugar, nas zonas libertadas, se

desenvolver um “sistema de aplicação da justiça profundamente ligado ao modo de

vida, às aspirações das massas e às exigências da própria luta”.

Emerge assim a figura do Tribunal Popular, no qual “o Povo cria o direito novo

que cada vez mais rechaça o direito velho da sociedade colonial-capitalista e feudal”. O

sistema foi estruturado em quatro grandes categorias de tribunais, hierarquicamente

organizadas, tendo, no topo da pirâmide, o Tribunal Popular Supremo; ao nível da

província, os Tribunais Populares Provinciais; ao nível do distrito, os Tribunais Populares

Distritais; e, na base da pirâmide, os Tribunais Populares de Localidade.

Mas foram os Tribunais Populares de Localidade os grandes ícones da reforma da

administração da justiça de 1978, e, durante alguns anos, Moçambique constitui uma

referência no conceito de administração da justiça, feita pelo povo e para o povo. Nos

termos do Relatório referente à Justiça do Comité Central apresentado no IV Congresso

88 Ibidem, p. 120.

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39

do partido Frelimo: “o facto de estarem libertos da aplicação das leis coloniais e do

formalismo legalista, permite que nos Tribunais Populares de Localidade se afirmem os

valores culturais do nosso povo e os sentimentos populares da justiça. Assim, eles

tornaram-se já uma fonte de inspiração para a criação de novo Direito e para

funcionamento de todo o sistema judiciário”89.

O então Ministro da Justiça, Ussumane Aly Dauto, em entrevista concedida em

1985, ao ser questionado sobre qual seria o avanço mais significativo na área da justiça

dos primeiros dez anos de Independência, respondeu firmemente: “Sem dúvida, o

próprio estabelecimento da Justiça Popular. Partindo de uma situação complexa nós

negamos a concepção burguesa do Direito, iniciámos a destruição do sistema colonial

herdado e a construção de um sistema que é genuíno, original, moçambicano. A

participação dos operários, camponeses e trabalhadores, na administração da justiça, é

uma grande conquista da nossa Revolução. Os Tribunais são populares, na sua essência,

na sua génese, nos seus princípios. O maior avanço é a democratização e popularização

da Justiça no nosso país”90.

Contudo, uma reflexão crítica realizada em 1981 revelava uma enorme

preocupação em relação à dicotomia, porventura venenosa, direito velho/direito novo,

isto no contexto de que as profundas reformas introduzidas ao nível da organização

judiciária tenham ocorrido de uma forma “enxertada” à estrutura herdada do sistema

colonial e que até então não tinha sido eliminada não só no que diz respeito ao estilo e

aos métodos, mas, principalmente, em relação ao próprio direito processual e

substantivo aplicáveis. Segundo o artigo em causa, “esse tipo de estrutura não foi

certamente pensado como instrumento de administração de justiça popular, duma justiça

89 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Descolonização dos Juristas pelos próprios Polícias, In. Justiça Popular, Transcrição do Relatório do Comité Central ao IV Congresso relativo à Justiça, N.° 10, Janeiro/Fevereiro, Ministério da Justiça, Maputo, 1983, p. 5. 90 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Um Sistema Genúino Original Moçambicano, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do 25 de Junho de 1985, Ministério da Justiça, Maputo, 1980, p. 10. Entrevista concedida à revista Justiça Popular, n.º 10, Edição Especial, 25 de Junho de 1985, Maputo,

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40

não separada da vida e dos interesses do povo. Hoje, este velho que ainda sobrevive

ameaça sufocar o novo que tentamos construir”91.

Por outro lado, importa referir o importante espaço conquistado pelos Grupos

Dinamizadores, estruturas político-administrativas criadas ao nível do bairro, e que

conquistaram o seu espaço à custa das instâncias de poder de cariz colonial e/ou

tradicional. Chefiados por secretários, desempenharam uma diversidade de funções,

inclusivamente algumas que pertenciam às autoridades tradicionais: tratamento de

assuntos sociais, jurídicos, administrativos, de gestão, de segurança, de policiamento e de

mobilização das populações para implementar decisões dos órgãos centrais92. Ao nível

local, o conflito de jurisdições entre as autoridades tradicionais e os grupos

dinamizadores tornou-se, assim, inevitável e persiste até aos dias de hoje.

2.42.42.42.4. Sociedade nova, leis novas . Sociedade nova, leis novas . Sociedade nova, leis novas . Sociedade nova, leis novas e um ideal não materializado e um ideal não materializado e um ideal não materializado e um ideal não materializado

Um dos aspectos da Reforma no sector da justiça herdado da Administração

colonial e que nunca chegou a ser verdadeiramente consumado, prende-se com a

necessidade de fazer aprovar um quadro jurídico-legal consentâneo com os objectivos

preconizados pelo Estado moçambicano e a realidade vivida pelos moçambicanos,

precedido por um trabalho de pesquisa.

Veja-se que, de acordo com a Resolução sobre a Justiça acima referida, “há que

proceder com urgência à recolha de elementos que nos permitam um conhecimento

aprofundado dos costumes e regras praticados pelo povo moçambicano, para que as

novas leis exprimam e correspondam às realidades do País, quer para as consagrar, quer

para as corrigir, na medida em que não correspondam à orientação política da Frelimo”;

e, “só a partir de todo esse trabalho de conhecimento das realidades e experiências no

91 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Ofensiva da Legalidade nos Tribunais, N.° 4, Setembro/Dezembro, Ministério da Justiça, Maputo, 1981, p. 4. 92 MENESES, PAULA at all, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, In. Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, Organização de Boaventura Sousa Santos e João Carlos Trindade, 2. ° Volume, Edições Afrontamento, Biblioteca das Ciências do Homem/Plural/6, 2003, p. 351.

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41

nosso povo se poderá criar um Direito novo, e pôr a funcionar um sistema de aplicação

da justiça que seja verdadeiramente popular e moçambicano”93.

Na mesma linha refere Rui Baltazar, então Ministro da Justiça, quando, em 1977,

escreveu “Sem um conhecimento exacto ou grandemente aproximado das nossas

realidades sociais, dos sentimentos dominantes do nosso povo e da sua vida, não

podemos pensar em novos códigos”94. Rui Baltazar evidencia, portanto, a importância

da pesquisa da realidade moçambicana, mas também, note-se, a importância de

perspectivar com prudência e serenidade o processo de reforma de um sistema jurídico

pelo outro, sob risco de se viver um vazio legal. Aliás, a Directiva do III Congresso da

Frelimo sobre a Justiça, foi clara a respeito desta preocupação: “devemos combater a

tendência esquerdista de afirmar que as leis feitas no período colonial devem ser todas

abolidas num único momento. Uma tal decisão conduzir-nos-ia a situações de anarquia e

de crise de autoridade (…)”95.

O levantamento e análise da rica e imensa realidade jurídica criada, dinamizada e

desenvolvida ao nível das comunidades só começariam a ser realizados muitos anos mais

tarde, na segunda metade da década de noventa, quanto, em parceria, o Centro de

Estudos Africanos, da Universidade Eduardo Mondlane, e o Centro de Estudos Sociais, da

Universidade de Coimbra, se lançaram num programa de pesquisa que culminou na

publicação, em 2003, da obra “Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das

Justiças em Moçambique”, com organização de Boaventura Sousa Santos e João Carlos

Trindade. Este trabalho foi de uma grandeza e importância inegáveis, tendo contribuído

para dar a conhecer um pouco mais sobre a administração da justiça em Moçambique.

Pecou, no entanto, por não ser tido a desejável sequência, principalmente no que diz

respeito ao processo de reforma legislativa.

Mas a referida Resolução vai mais longe, ao realizar igualmente uma crítica à

complexidade das próprias leis. Senão vejamos: “impõe-se a simplificação das nossas leis,

93 FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 121. 94 BALTAZAR, Rui, Tribunais Populares – A Justiça nas Mãos do Povo, In. Revista “Tempo”, n.º 394, Maputo, 1978, p. 30. 95 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Edificação da Justiça Popular – A Directiva sobre a Justiça do III Congresso, In. Justiça Popular, N.° 1, Novembro/Dezembro, Ministério da Justiça, Maputo, 1980 p. 3.

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42

libertando-as dum tecnicismo que as torna incompreensíveis para o povo. Quando por

motivos técnicos ou outros não for possível evitar completamente o tecnicismo, a rádio,

a imprensa, os jornais do povo e as diversas reuniões populares devem ser utilizados para

explicar em detalhe os princípios e objectivos que inspiram as leis”96.

Esta posição foi consubstanciada na Directiva sobre a Justiça do III Congresso da

Frelimo, realizado entre os dias 3 e 7 de Fevereiro de 1977, nos seguintes termos: “Ao

direito novo deve corresponder também uma linguagem nova orientada principalmente

no sentido da simplicidade. Devemos encontrar a linguagem simples e popular que

facilite o entendimento e divulgação das leis pelas massas, sem prejudicar a necessária

eficácia técnica. Temos que encontrar novos métodos de levar as leis ao conhecimento

do povo, para que possam ser inteiramente assumidas”97.

Vinte anos depois, em 1997, Luís Mondlane, actualmente juiz-presidente do

Conselho Constitucional, escreveu, para a Revista Jurídica da Faculdade de Direito da

Universidade Eduardo Mondlane, “É do conhecimento geral que o Direito vigente em

Moçambique foi concebido em tempo bastante recuado para uma realidade social

distinta da prevalecente em Moçambique, quer no momento da sua adopção, quer nos

presentes dias. Nos últimos tempos têm sido adoptadas alterações que, longe de

reformular o Direito no sentido da sua conformação com a realidade social podem

traduzir-se em distorções graves ao próprio sistema. Há que reformular o direito para

que a justiça que, através dele é obtida, seja socialmente justa. Não basta o apurado

conhecimento da Ciência Jurídica, a correcta aplicação das regras da hermenêutica para

que se obtenha uma decisão justa. É necessário que o próprio seja, efectivamente, a

sublimação de valores e bens fundamentais prevalecentes na sociedade. Dai que o

processo de adaptação, de reforma, deve ser não só profundo como permanente. Por

outro lado, é necessário desmitificar o direito, democratizar o direito e a própria

az Idem, p. 121. 97 GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Edificação da Justiça Popular – A Directiva sobre a Justiça do III Congresso, In. Justiça Popular, N.° 1, Novembro/Dezembro, Ministério da Justiça, Maputo, 1980.

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administração da justiça. A lei e o direito têm que ser entendidos pelo homem comum e

estar ao seu serviço”98.

No entanto, conforme ficou demonstrado nos anos que se seguiram e tendo

presente a realidade actual, não houve lugar a nenhum reforma generalizada e profunda

do direito. As leis que se seguiram e substituíram as outras ao serviço do Estado colonial

continuaram a ser redigidas numa linguagem inacessível à larga maioria da população

moçambicana, de cariz altamente tecnicista, e desprovida dos necessários mecanismos de

implementação. Na realidade, uma vez volvidos praticamente 35 anos de Independência

nacional, ainda não foi possível desencadear um processo sério e profundo de reforma

legal. O exemplo maior exemplo que podemos referir prende-se com o facto de

continuarem em vigor, na República de Moçambique, o Código Penal de 1886, o Código

de Processo Penal de 1929 e o Código Civil de 1967, este último parcialmente revisto nos

assuntos de família e comércio.

Mesmo a reforma realizada nos demais códigos e o conjunto de leis aprovadas ao

longo do mesmo período, salvo algumas excepções, pouco mudança traduziram em

relação ao quadro jurídico tradicional de herança colonial, não só em termos de forma

como de conteúdo. Aliás, o ex. colonizador continua a ser a principal fonte de inspiração

do legislador moçambicano e, nalguns casos, pacotes legislativos completos foram

importados e adoptados no ordenamento jurídico nacional.

Boaventura Sousa Santos referia, em palestra realizada no distante ano de 1982,

que a erradicação do direito colonial (…) será lenta e que muito provavelmente nunca

será total. Porquê? Será lenta, porque o direito colonial sendo embora um direito de

dominação nacional e classista não deixa de ser o instituidor de uma ordem social. É

certo que a um nível mais profundo essa ordem é de facto uma desordem

institucionalizada. Mas precisamente porque é institucionalizada cria mecanismos de

repetição que a normalizam e suscita cumplicidades que lhe conferem, ao nível das

práticas quotidianas das populações, uma aura de autoridade e senão mesmo de

98 MONDLANE, Luis António, O Acesso à Justiça e Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, In. Revista Jurídica, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Volume II, Maputo, 1997, PP. 102 – 103.

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44

legitimidade que a tornam obedecível sem recurso permanente à coacção. Perante tal

situação, nenhum processo de libertação e de transformação social, por mais

revolucionário, pode aguentar por muito tempo o vazio criado pela paralisação global

da ordem velha, nem pode suportar rupturas administrativas que atravesse, de lés-a-lés o

tecido social”99.

Esta pode ter sido, muito provavelmente, uma das fortes razões que motivaram a

continuidade de uma parte significativa do quadro jurídico-legal colonial, especialmente

o conjunto de códigos de direito substantivo e de direito processual. A mudança do

“velho” para o “novo” deve, portanto, passar sempre por uma fase de transição. No

nosso caso, estaremos ainda no decurso da fase de transição, em busca de um modelo,

testando cenários, replicando experiências, buscando soluções, esperando provavelmente

o momento certo.

Boaventura Sousa Santos diz ainda que “a criação de nova legalidade em

substituição do direito colonial deve ser feita de modo a manter a referência e a

coerência com o que dele ainda permanece. Afinal tudo o que é novo nasce do velho e

não há revoluções sem tradições”100.

2.52.52.52.5. . . . A vivência de umA vivência de umA vivência de umA vivência de um pluralismo pluralismo pluralismo pluralismo não reconhecido não reconhecido não reconhecido não reconhecido

Com particular incidência no mundo rural, as autoridades tradicionais

continuaram a exercer os seus poderes, à luz dos usos e costumes de povo e cada lugar,

sobrevivendo às mais diversas adversidades, entre as quais o seu desmantelamento pós

Independência e a Guerra Civil que se instaurou e alastrou a todo o País. A terra e os

recursos naturais continuaram a ser regidos à luz dos princípios e normas ancestrais e na

mais profunda indiferença em relação aos desenvolvimentos registados no direito

estadual e positivo.

99 SANTOS, Boaventura Sousa, Direito e Cooperação, Excertos de uma palestra efectuada na Sessão Inaugural da Associação Universitária da Cooperação e Estudos sobre Direitos Africanos, em 24 de Junho de 1982, na Faculdade de Direito de Lisboa, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do 25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1980, p. 33. 100 Idem.

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45

A negação da diversidade jurídica que caracteriza e rege as relações entre os

membros das comunidades locais e entre estes para com o respectivo meio, na linha de

muitos países a seguir às independências, não se revelou como a melhor solução. Na

realidade, os direitos costumeiros continuaram a ser fielmente seguidos, nuns casos

gozando de exclusividade, noutros casos, rivalizando o seu espaço em relação ao Direito

estatal, especialmente, naquilo que importa para o tema, aqueles que dissessem respeito

à terra e aos demais recursos naturais.

Marco Guadagni escreveu a este respeito procurando demonstrar, no capítulo do

direito privado, que quase todos os países africanos que alcançaram as suas

independências herdaram um sistema dualístico, caracterizado pela existência de um

direito colonial e de um direito consuetudinário ou costumeiro. A etapa que se seguiu

foi, segundo o referido autor, motivada pela intenção estadual de reformar e unificar tal

sistema, logicamente através de caminhos diferenciados. No que nos interessa, nos países

que herdaram do período colonial um código civil europeu, “este foi declarado

formalmente aplicável a todos os cidadãos. Mas, de facto, pela sua origem e natureza,

ele serve só para regular os interesses da burguesia citadina, enquanto que a população

rural continua a regular as suas relações com base nos usos locais, considerados parte

integrante do direito actual e, entanto que tal, objecto de estudo por parte de etno-

juristas”101.

101 GUADAGNI, Marco, A Reforma do Direito Privado em África – O caso da Etiópia, In. Justiça Popular, n.º 6, Maio/Outubro, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1982, pp. 8 – 9.

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Capítulo IICapítulo IICapítulo IICapítulo IIIIII –––– O reconO reconO reconO reconhecimento e a abertura para o papel dohecimento e a abertura para o papel dohecimento e a abertura para o papel dohecimento e a abertura para o papel do Direito Costumeiro Direito Costumeiro Direito Costumeiro Direito Costumeiro no no no no

domínio dos recursos naturais domínio dos recursos naturais domínio dos recursos naturais domínio dos recursos naturais

3.1. Retorno ao tradicional 3.1. Retorno ao tradicional 3.1. Retorno ao tradicional 3.1. Retorno ao tradicional

A partir de 1986, ainda no auge da Guerra Civil, com a instauração do Programa

de Reabilitação Económica (P.R.E), no contexto da adesão às instituições de Bretton

Woods (o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial), o país inicia uma

progressiva viragem histórica, com a adesão ao sistema capitalista e à instauração de uma

democracia multipartidária.

A aprovação da Constituição de 1990 constitui um marco que possibilitará todo

um conjunto de profundas transformações que seriam implantadas ao longo da década

seguinte. Entre diversas e importantes novidades, o novo regime constitucional fixou as

bases para o retorno ao tradicional: em primeiro lugar, o artigo 6, referente aos

objectivos do Estado moçambicano, fez constar “a afirmação da personalidade

moçambicana, das suas tradições e demais valores socioculturais”; depois, através da

norma constante no n.º 1 do artigo 53, determinou que “o Estado promove o

desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das

tradições e valores da sociedade moçambicana”. Ao longo da década de noventa se

desenrolariam importantes mutações na política do Estado em relação às autoridades

tradicionais e que culminariam na aprovação do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho

(que aprovou as formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades

comunitárias), adiante analisado.

Um dos mais emblemáticos aspectos da mudança histórica começou a ser

preparado no final da década de oitenta, no que diz respeito ao reconhecimento do

papel das autoridades tradicionais, que, não obstante terem sido excluídas da nova

ordem político-administrativa instaurada a seguir à Independência nacional, na realidade,

continuaram efectivamente a existir em termos fácticos, não só onde a máquina

administrativa do Estado não conseguia chegar ou exercer o seu papel, como mesmo nos

lugares onde foram criadas as novas estruturas político-administrativas, encabeçadas

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pelos grupos dinamizadores. Aliás, a própria Renamo, aquando das hostilidades, soube

aproveitar-se da hostilização que as autoridades tradicionais receberam por parte das

autoridades governamentais, reconheceram a sua legitimidade como representantes das

comunidades e detentores de um conjunto de importantes funções nos mais diversos

domínios.

A seguir à assinatura dos Acordos Gerais de Paz, celebrados em Roma, a 4 de

Outubro de 1992, foi notória a preocupação do Governo moçambicano em revitalizar o

estatuto das autoridades tradicionais, numa espécie de retorno ao tradicional, fazendo

desaparecer dos discursos políticos toda e qualquer menção de cariz pejorativo ou

discriminatório. As autoridades tradicionais tornaram-se novamente fundamentais para a

prossecução dos desígnios do Estado moderno, tendo em consideração as dificuldades

que este enfrentava no controlo político e administrativo efectivo de todo o território

nacional e das suas populações.

Conforme sublinha Maryse Raynal, as autoridades tradicionais sobreviveram aos

múltiplos assaltos de que eram vítimas e, 20 anos depois da Independência, emergiram

muitas vezes como as únicas legítimas aos olhos dos homens, as únicas capazes de

assegurar o controlo social. É, portanto, natural que elas reclamem junto aos governos,

ao legislador e aos juízes um certo reconhecimento, uma legitimidade ofializadora»”102.

Veja-se, a este respeito, ao trabalho desenvolvido entre 1991 e 1996 pelo Núcleo

de Desenvolvimento Administrativo, no contexto do projecto “Descentralização e

Autoridade Tradicional”, do Ministério da Administração Estatal, que culminou com a

publicação de cinco brochuras alusivas ao papel das autoridades tradicionais. Este

trabalho tem subjacente uma clara intenção política ao procurar-se as bases para a

definição das políticas e dos instrumentos legais que definiram o relacionamento entre os

órgãos do Estado e as autoridades tradicionais. O objectivo oficial foi consubstanciado na

introdução comum às cinco brochuras – “destinadas, principalmente para informar aos

funcionários que trabalham nas diferentes regiões do País, e que por várias razões, ou

102 RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 19.

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não conhecem estas práticas tradicionais, ou só conhecem aquelas da sua povoação,

distrito, cidade ou província”103.

No fundo, tal como no período de administração colonial, o Estado

moçambicano lançou-se numa clara campanha de instrumentalização das autoridades

tradicionais, consideradas essenciais ao restabelecimento do poder em regiões que se

mantiveram distantes do controlo centralmente dirigido a partir de Maputo, mas

também para a prossecução dos objectivos eleitorais, quer para efeitos de recenseamento

eleitoral, quer para a conquista do voto necessário à continuidade da Frelimo no poder

nos inúmeros embates eleitorais que se seguiram – 1994, 1999, 2004 e 2009.

Joaquim Fumo refere que, “em termos sociológicos, o ressurgimento dos antigos

régulos significa antes a sua passagem da clandestinidade para a diurnidade. (…) O seu

banimento oficial não lhes retirou pertinácia sociológica. Rapidamente assumiram os

espaços sociais e simbólicos que lhes eram reservados pela sabedoria de origem

imemorial. À mesma velocidade, surgiram os conflitos de liderança e de legitimidade

com os grupos dinamizadores. As autoridades tradicionais (…) cedo reconquistaram os

seus espaços de liderança e foram disputadas por diversos partidos políticos nos

principais pleitos eleitorais, ao mesmo tempo que eram aliciadas pelo Governo para se

tornarem tentáculos da administração pública nas comunidades”104. André Cristiano José

chama a atenção para o facto de, “no âmbito da descentralização, as autoridades

tradicionais funcionarem como estruturas tentaculares do Estado, mas sem dignidade

suficiente para que sejam reconhecidas como tal”105.

Veja-se que na introdução comum às cinco brochuras acima referidas, escreveu-se

em destaque, “dentro das diferenças que existem de região para região, a Autoridade

103 FERNANDO, Domingos, A Organização Social na Sociedade Tradional, Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique, Brochura 2, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, p. 7. 104 FUMO, Joaquim, Da Política de Guarda-Chuva ao Reconhecimento Minimalista das Autoridades Comunitárias, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, pp. 116 – 177. 105 JOSÉ, André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, P. 76.

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Tradicional está presente e é importante em todo o território nacional. Ela tem muita

importância nas suas comunidades. Por isso, a sua importância é tão grande como

valorização da cultura de todos nós, para a consolidação da Unidade Nacional”106. E

mais, “a tradição moçambicana ainda não faz parte das leis do nosso Estado. E como o

Estado Moderno é produto de outra tradição, ele oferece pouco espaço para a tradição

africana ocupar um lugar de maior importância. Mas a tentativa de uma aliança, ou uma

ponte, entre a tradição e o Estado Moderno, é um trabalho que está a ser pensado e

realizado no presente”107.

Ambrósio Cuhalea traz-nos uma definição de autoridade tradicional como

“instituição sociopolítica tradicional africana” que faz parte “da nossa cultura e tradição”,

e que “possui uma legitimidade (direito e aceitação) que lhe é dada pela comunidade, e

somente pela comunidade”, possuindo um poder sagrado, visto a legitimidade ancora-se

“nas raízes profundas das comunidades, dada a sua ligação com os ancestrais”108.

Veja-se como Orlando Nhancale definiu as normas e regras costumeiras,

estruturalmente subdivididas entre o que se deve fazer e o que não se deve fazer:

“normas e regras constituem o conjunto dos princípios de uma cultura, que todos devem

aceitar, e que regulam o comportamento dos homens e mulheres dentro das

comunidades, para se manter a ordem social, evitando a confusão e prevenindo e

resolvendo os conflitos. Quem conhece estes princípios sabe o que é permitido e o que

não é, e sabe qual é o castigo que pode acontecer a ele, se não seguir esses princípios.

Por outras palavras, o conjunto das normas e regras oferece aos homens modelos sobre

como ver e sentir-se no mundo, e como se relacionar com os outros. Mostra também

com tratar a natureza, a terra, as plantas e as águas, rios e lagos, dentro do território”109.

106 FERNANDO, Domingos, A Organização Social na Sociedade Tradional, ob. cit., p. 7. 107 Idem, p. 8. 108 CUAHELA, Ambrósio, Autoridade Tradicional, Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique, Brochura 1, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, pp. 10 - 11. 109 NHANCALE, Orlando, Normas, Regras e Justiça Tradicional: Como evitar e resolver conflitos? Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique, Brochura 5, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, p. 10.

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Importa, a respeito deste trecho, fazer duas observações: primeiro, são

efectivamente notórias as semelhanças históricas entre o trabalho realizado pelo Núcleo

de Desenvolvimento Administrativo e os estudos levados a cabo no período colonial que

culminaram nas várias tentativas de codificação (e elaboração) dos direitos costumeiros,

designadamente no que toca ao propósito de preparar os funcionários administrativos

no conhecimento das normas que regem cada povo e local e na articulação para com as

autoridades tradicionais; segundo, não deixa de ser extraordinariamente interessante a

referência expressa às normas que definem o relacionamento das comunidades para com

o meio em que vivem, bem como em relação a cada um dos componentes naturais. Na

realidade, confirma-se que, não obstante quaisquer esforços legislativos por parte do

Estado moderno no sentido da definição de regras fixadoras do estatuto e regime de

cada recurso natural, há efectivamente um conjunto de ordens normativas não estaduais,

coexistentes, sobrepostas e, em muitos casos, prevalecentes em relação ao direito escrito

proferido pelo legislador estadual.

Contudo, um dado realça à vista – o papel inquestionavelmente determinante das

autoridades tradicionais no processo de construção do Estado moderno, demonstrando

uma enorme capacidade de sobrevivência e de resistência às mais graves e complexas

adversidades. Segundo André Cristiano José, diante do Estado enquanto “máquina

poderosa”, dotada de um “poder avassalador”, tal capacidade de sobrevivência “deve-se

não apenas ao facto de gozarem de uma forte legitimidade social, como também à sua

capacidade de contextualizar o exercício do poder. Isto é, detêm uma enorme

capacidade diplomática que lhes permite actuar de modo a conciliar as expectativas do

Estado e de outras instâncias políticas ou privadas com as quais se relacionam, com as

expectativas das comunidades e dos cidadãos que representam”110.

110 André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, ob. cit, p. 81.

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3.2. 3.2. 3.2. 3.2. Dos tribunais populares de localidade aos tribunais comunitários Dos tribunais populares de localidade aos tribunais comunitários Dos tribunais populares de localidade aos tribunais comunitários Dos tribunais populares de localidade aos tribunais comunitários ---- uuuum erro histórico m erro histórico m erro histórico m erro histórico

A nova Constituição de 1990 criou o espaço para a revisão da Lei da Organização

Judiciária de 1978, culminando na aprovação, dois anos mais tarde, da aprovação da Lei

n.º 10/92, de 6 de Maio. A nova Lei da Organização Judiciária visou, portanto, uma

reforma do sistema, de modo a adequar-se “com a nova filosofia de organização do

Estado e das demais instituições democráticas”111.

Este instrumento reforçou a autonomia do poder judiciário, no contexto do

princípio da separação de poderes. Contudo, o legislador cometeu, em nosso entender,

um erro histórico, traduzido no facto de não se ter tomado em consideração aquela que

foi, muito provavelmente, a maior conquista da justiça moçambicana no período

compreendido entre 1975 e 1992 – a criação dos tribunais populares, especialmente os

de localidade.

Em sintonia com a Constituição de 1990, a nova Lei da Organização Judiciária

excluiu do sistema os tribunais populares da localidade, anteriormente considerados a

base do sistema de administração formal de justiça, para, em seu lugar, a base passar a ser

formada pelos tribunais judiciais de distrito. No nível intermédio foram previstos os

tribunais judiciais de província e, no topo da pirâmide, o Tribunal Supremo como mais

alto órgão judicial. Em termos práticos, o sistema de administração formal de justiça

ficou demasiado distanciado dos cidadãos, principalmente dos mais carenciados.

Por seu turno, através da Lei n.º 4/92, de 6 de Maio, foram criados os tribunais

comunitários, que mais não são do que os anteriormente denominados de tribunais

populares de localidade. O preâmbulo desta Lei não deixa, contudo, de ser paradoxal,

ao se determinar que “as experiências recolhidas por uma justiça de tipo comunitário no

país, apontam para a necessidade da sua valorização e aprofundamento, tendo em conta

a diversidade étnica e cultural da sociedade moçambicana”. Apesar das boas intenções, a

prática demonstrou tudo menos valorização e aprofundamento. Fora do sistema formal

e sem os necessários apoios materiais, financeiros e humanos, os tribunais comunitários

enfrentaram e ainda enfrentam até à actualidade, uma crise profunda, não obstante o

111 Veja-se Preâmbulo da Lei n.º 10/92, de 6 de Maio.

Page 52: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

52

inegável e valioso papel que desempenham em prol da administração da justiça. Muitos

acabaram desaparecendo, outros sobreviveram graças ao apoio da população a quem

servem com abnegada dedicação.

Importa, no entanto, ter presente que, de acordo com o referido Preâmbulo, uma

das motivações subjacentes à criação dos Tribunais Comunitários residiu na necessidade

de promover o “enriquecimento das regras, usos e costumes” e conduzir “à síntese

criadora do direito moçambicano”. Este exemplo ilustra a entrada no período do

retorno ao tradicional, melhor aflorado no subcapítulo anterior.

No princípio de 2005, o Centro de Formação Jurídica e Judiciária remeteu à

Assembleia da República, através da Unidade Técnica de Reforma Legal (UTREL), um

pacote legislativo dirigido à reforma do sistema de administração da justiça, composto

pelos Anteprojectos da Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça, da Lei

Orgânica dos Tribunais Judiciais, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e da Lei do

Acesso à Justiça e ao Direito, antecedido de uma pesquisa com a duração de dois anos e

trabalho de campo em três províncias mais a cidade capital. Segundo João Carlos

Trindade, os Anteprojectos da Lei de Bases e da Lei Orgânica dos Tribunais Comunitários

promovem a articulação entre os tribunais comunitários e os tribunais judiciais,

“facilitando a aproximação cultural dos tribunais judiciais à população e a possibilidade

de recurso das decisões dos tribunais comunitários para os tribunais judiciais; estabelecem

um método democrático de eleição dos juízes, incluindo a garantia de representação das

mulheres; delimitam o tipo de casos que os juízes terão competência para resolver, o

conjunto de sanções que podem aplicar, as taxas que podem cobrar; estabelecem os

Conselhos Provinciais Coordenadores das Justiças Comunitárias, com a função primordial

de assegurar a interacção entre a justiça judicial e a comunitária; e prevêem a formação

dos juízes pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária”112.

Mais do que nunca importa recuperar uma das maiores conquistas saídas da

Independência Nacional, traduzida na criação dos tribunais populares, hoje comunitários,

nascidos nas próprias comunidades, formados por elementos das comunidades e dirigidos 112 TRINDADE. João Carlos. Constituição e Reforma da Justiça, In. Desafios para Moçambique – 2010 (Organização de Luís de Brito/Carlos Nuno Castel-Branco/Sérgio Chichava/António Francisco), IESE, Maputo, 2009, p. 248.

Page 53: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

53

para as comunidades, e que reduziram o enorme fosso que existia entre o sistema formal

de administração da justiça e os cidadãos mais necessitados, resolvendo eficazmente, com

menos carga formal, em tempo útil e, muitas vezes, com amplas margens de consenso, os

conflitos do dia-a-dia, contribuindo significativamente para a paz e harmonia na

sociedade. Para os tribunais comunitários o que mais importa não é tanto o processo e a

obtenção da decisão final, mas sim, principalmente, que a justiça seja alcançada, que o

conflito seja sanado e que a paz regresse à comunidade.

3333.3.3.3.3. . . . A aprovação da nova Lei de Terras A aprovação da nova Lei de Terras A aprovação da nova Lei de Terras A aprovação da nova Lei de Terras

3.33.33.33.3.1. A nova lei de Terras e a.1. A nova lei de Terras e a.1. A nova lei de Terras e a.1. A nova lei de Terras e a construção do conceito de comunidade local construção do conceito de comunidade local construção do conceito de comunidade local construção do conceito de comunidade local

Após um processo de participação pública que ficará para a história da elaboração

legislativa, foi aprovada uma nova Lei de Terras, a Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro, e em

cujo preâmbulo consta a constatação que o legislador faz da necessidade de rever a Lei

n.º 6/79, de 3 de Julho, “de forma a adequá-la à nova conjuntura política, económica e

social e garantir o acesso e a segurança de posse da terra, tanto dos camponeses

moçambicanos, como dos investidores nacionais e estrangeiros”.

A nova Lei de Terras implicou uma forte abordagem sociológica num terreno

normalmente monopólio dos juristas. Em resultado, foram elaboradas novas categorias e

conceitos, bem como se desenharam e consagrados instrumentos e institutos inovadores,

grande parte produto da análise social das dinâmicas verificáveis ao nível da realidade. É

igualmente uma lei extraordinariamente democrática e plural, através do desenho de

soluções inovadoras, dando um poder e protagonismo aos autênticos “donos” da terra,

a ainda larga maioria de moçambicano que vive da terra e para a terra, como principal

fonte de subsistência e, como tal, devendo auferir de mecanismos de segurança jurídica,

bem como de oportunidades de capitalização deste recurso vital no desenvolvimento

local.

Page 54: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

54

No capítulo conceptual, emerge a definição de comunidade local, previsto no n.º

1 do artigo 1 da Lei de Terras, enquanto “agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo

numa circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visa a salvaguarda

de interesses comuns através da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam

cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de

água e áreas de expansão”. Toda a legislação subsequente na área de recursos naturais

acolheu o conceito de comunidade local, com especial enfoque para a Lei n.º 19/2007,

de 18 de Julho, Lei do Ordenamento do Território.

Ora, traduz-se num conceito aberto e enraizado nos direitos costumeiros. Assim, a

comunidade local detém não somente as terras necessárias à construção das suas

habitações e à prática da agricultura, como também as terras que se encontrem em

pousio, as florestas de onde extrai os recursos naturais necessários para o seu sustento, os

lugares de importância histórica, cultural e religiosa, as áreas necessárias para a pastagem

do gado, e, fundamentalmente, as áreas imperiosas para a própria expansão da

comunidade113.

A consagração da noção de comunidade local foi efectivamente um verdadeiro

marco histórico no processo de construção do direito moçambicano, a partir de uma

realidade plural, heterogénea, diversificada e fortemente enraizada nas normas e práticas

costumeiras. Tratou-se de um verdadeiro esforço de democratização de um quadro legal

demasiado distante, pesado e desajustado à dinâmica das realidades locais, e que pode

ser visto, em termos muito resumidos, sob três perspectivas fundamentais: (1) a terra

comunitária não se confina à terra que a comunidade precisa para viver ou para praticar

agricultura, implica muito mais do que isto, integrando o domínio público comunitário,

o que varia de comunidade para comunidade, de local para local, de distrito para

distrito, de província para província, de região para região; (2) os direitos de uso e

aproveitamento da terra das comunidades locais existem através do reconhecimento da

ocupação, independentemente do reconhecimento oficial por parte do Estado, da

113

Veja-se TANNER, Christopher, A Relação entre a Posse de Terra e os Recursos Naturais, documento apresentado na 3.ª Conferência Nacional sobre o Maneio Comunitário dos Recursos Naturais, 21 de Julho de 2004, Maputo, 2004.

Page 55: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

55

existência de documentos comprovativos, incluindo títulos, ou do registo dos mesmos

nas Conservatórias; (3) no processo de autorização de pedidos de direitos de uso e

aproveitamento de terra é atribuído à comunidade local um papel decisório e

condicionador da titulação de novos direitos114.

3333....3333.2.2.2.2. O reconhecimento das formas costumeiras de aquisição do direito de uso e . O reconhecimento das formas costumeiras de aquisição do direito de uso e . O reconhecimento das formas costumeiras de aquisição do direito de uso e . O reconhecimento das formas costumeiras de aquisição do direito de uso e

aproveitamento da terra aproveitamento da terra aproveitamento da terra aproveitamento da terra

Uma das condições para o bem-estar é sem margem para dúvidas o

reconhecimento e respeito pelo direito de acesso à terra, enquanto meio universal de

geração de riqueza, e da qual depende a grande maioria dos cidadãos moçambicanos.

Para o efeito, o legislador constitucional, nos sucessivos textos de 1975, 1990 e 2004,

não abdicou do princípio fundamental de que a terra constitui propriedade do Estado,

conferindo, no entanto, às pessoas (singulares ou colectivas, nacionais ou estrangeiras)

um direito de usar e aproveitar a terra – o chamado DUAT.

A Constituição de 1990 deu um importante passo no reconhecimento das formas

costumeiras de aquisição do DUAT, quando, no seu artigo 48, determinou que, “na

titularização do direito de uso e aproveitamento da terra o Estado reconhece e protege

os direitos adquiridos por herança ou ocupação, salvo havendo reserva legal ou se a

terra tiver sido legalmente atribuída a outra pessoa ou entidade”.

Nesse sentido, sete anos mais tarde, a nova Lei de Terras reforçou o entendimento

constitucional, pois, ao nível das modalidades de aquisição do direito de uso e

aproveitamento da terra, o legislador ordinário consagrou, no artigo 12, para além da

modalidade formal assente na autorização de um pedido que dá entrada nas instituições

competentes, bem como da ocupação por pessoas singulares que, de boa fé, esteja a

utilizar a terra há pelo menos dez anos, notoriamente inspirada no instituto civilístico de

114 SERRA, Carlos Manuel, Domínio Público do Estado, Autárquico e Comunitário – Essência, Constrangimentos e Desafios (Documento apresentado na Conferência sobre os 10 Anos da Lei de Terras, 2007), Maputo, 2007.

Page 56: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

56

usucapião, uma terceira modalidade que representa o reconhecimento das formas

costumeiras de aquisição de direitos sobre a terra.

Subjacente a tal opção encontra-se a necessidade assumida pelo legislador de se

proteger a parte mais fraca ou desfavorecida da população em face da própria dinâmica

do processo de desenvolvimento, contra eventuais repercussões ou efeitos colaterais

negativos, nomeadamente de situações de açambarcamento que conduzam ao fenómeno

dos sem-terra, dai se ter chegado a uma solução extraordinariamente inovadora,

traduzida no reconhecimento do direito sobre a terra, com base na ocupação através das

normas e práticas costumeiras que não contrariem a lei115.

A legislação da terra deve ser lida em estreita articulação com a legislação do

ordenamento do território, representada pela Lei n.º 19/2007, de 18 de Julho, e

respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto n.º 23/2008, de 1 de Julho. Nesse

sentido emerge o princípio da segurança jurídica, segundo o qual, na elaboração,

alteração e execução dos instrumentos de ordenamento e gestão territorial devam ser

sempre respeitados os direitos fundamentais dos cidadãos e as relações jurídicas

validamente constituídas, promovendo-se a estabilidade e a observância dos regimes

legais instituídos116; bem como o objectivo específico de “garantir o direito à ocupação

actual do espaço físico nacional pelas pessoas e comunidades locais, que são sempre

consideradas como o elemento mais importante em qualquer intervenção de

ordenamento e planeamento do uso da terra, dos recursos naturais ou do património

construído”117.

O DUAT das comunidades locais tem algumas características essenciais a saber:

primeiro, existe independentemente da apresentação de um título emitido pelos Serviços

de Cadastro comprovativo da sua existência; depois, a ausência de registo não prejudica

a existência do DUAT adquirido por ocupação, desde que este possa ser comprovado

nos termos da Lei de Terras; finalmente, este direito pode ser comprovado não apenas

através da apresentação de um documento formal (o título), como através da prova

115 Cfr. Artigo 12 a) da nova Lei de Terras. 116 Cfr. Artigo 4 f) da Lei do Ordenamento do Território. 117 Cfr. Artigo 5/2 a) da Lei do Ordenamento do Território.

Page 57: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

57

testemunhal de membros da comunidade local, como também por intermédio de

qualquer outro meio de prova legalmente admissível118.

3.33.33.33.3.3. A consulta pública como ferramenta fundamental .3. A consulta pública como ferramenta fundamental .3. A consulta pública como ferramenta fundamental .3. A consulta pública como ferramenta fundamental

Como consequência dos artigos 12 e 24, da Lei de Terras, a atribuição de DUAT’s

ao abrigo de uma autorização, enquanto uma das formas legais de aquisição legalmente

reconhecidas, deverá obrigatoriamente implicar um momento de consulta às

comunidades locais com o objectivo de confirmar se a área pretendida se encontra livre

e não tem ocupantes, formalidade que está sob responsabilidade das autoridades

administrativas locais, ao abrigo do processo de titulação 119 . Mas que, em termos

práticos, abre caminho para uma etapa de negociação entre a comunidade local e o

investidor, que pode culminar na celebração de um contrato de parceria, prevendo

responsabilidades e benefícios mútuos120.

O processo de pedido de DUAT deverá ser instruído, conforme consta no artigo

24, do Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto n.º 66/98, de 8 de

Dezembro, pela junção de um conjunto de documentos, em triplicado, entre os quais se

destaca o parecer do Administrador do Distrito, precedido de consulta às comunidades

locais.

Para o efeito, os Serviços de Cadastro deverão previamente enviar ao

Administrador de Distrito uma cópia do pedido de DUAT, com o objectivo de se afixar

um edital na sede do distrito e no próprio local requerido por um prazo de 30 dias,

conforme a conjugação da alínea f) do n.º 1 do artigo 24 e n.º 1 do artigo 27, ambos do

Regulamento da Lei de Terras. Nos termos do n.º 2 do artigo 27, do RLT, segue-se

118

Cfr. Artigos 13 a 15 da Lei de Terras. 119

No domínio das florestas e fauna bravia, veja-se que “a atribuição da área de concessão florestal é sempre precedida de uma auscultação ou renegociação junto das comunidades locais abrangidas na respectiva área, através dos órgãos da administração local do Estado” (Cfr. Artigo 17/2, da Lei de Florestas e Fauna Bravia). 120

Veja-se BALEIRA, Sérgio/SAMO, Saturnino (Coordenação), Protecção Jurídica dos Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra das Comunidades Locais, Relatório final de pesquisa não publicado, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Matola, 2010, p. 49.

Page 58: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

58

entretanto uma fase caracterizada pela consulta às comunidades locais, a ser efectuada,

em conjunto, pelos serviços de cadastro, pelo Administrador de distrito ou seu

representante, e pelas comunidades locais. Como resultado, será lavrada uma acta, a qual

deverá ser assinada por 3 a 9 representantes da comunidade local, bem como pelos

titulares ou ocupantes dos terrenos limítrofes.

Caso a consulta venha a ser realizada em termos formais e materialmente

correctos, garantindo-se a real auscultação da comunidade visada (e não, por exemplo,

apenas dos seus supostos representantes), através do pronunciamento das sensibilidades e

contrariedades, da apresentação de sugestões e condições, da anunciação de normas e

práticas costumeiras e da definição dos horizontes geográficos e respectivos componentes

das terras comunitárias, há fortes probabilidades de uma maior segurança jurídica por

parte das comunidades, mas também, fundamentalmente, uma maior oportunidade para

a obtenção de eventuais benefícios no contexto do desenvolvimento local.

3333....3333....4444. O papel do. O papel do. O papel do. O papel dos ds ds ds direitoireitoireitoireitos cs cs cs costumeiroostumeiroostumeiroostumeirossss na resolução de conflitos no domínio dos na resolução de conflitos no domínio dos na resolução de conflitos no domínio dos na resolução de conflitos no domínio dos

recursos naturais recursos naturais recursos naturais recursos naturais

Outra das dimensões fundamentais do conceito de comunidade local prende-se

com o papel que esta desempenha em relação aos recursos naturais que integram a

respectiva área de implantação e influência. Assim, a comunidade tem o direito de

participar activamente na gestão dos recursos naturais, segundo as normas e práticas

costumeiras, e, consequentemente, de prosseguir a resolução de conflitos, segundo as

mesma normas e práticas, bem como de participar no processo de titulação e na

identificação de definição dos limites das terras pela mesma ocupadas, à luz do artigo 24

da Lei de Terras.

Importa sublinhar o papel da comunidade na resolução de conflitos. Nesse

sentido, o princípio do pluralismo jurídico emerge como pressuposto de reconhecimento

da existência, no nosso país, de diversas instâncias de resolução de conflitos, igualmente

legítimas, socialmente úteis, organizadas segundo uma relação de interdependência

funcional e material, dispostas numa plataforma de horizontalidade, em que não há uma

Page 59: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

59

instância superior às demais. Sendo assim, ao nível comunitário emergem diversas figuras

com um papel chave e determinante na prevenção, mediação e resolução da

litigiosidade, da família à autoridade tradicional, dos demais líderes comunitários aos

comités de gestão, de cariz associativo, e às quais cabe receber e canalizar para a

comunidade os benefícios decorrentes da percentagem de 20% aplicável às taxas de

licenciamento da exploração florestal e faunística, nos termos do artigo 102 do

Regulamento da Lei de Florestas e Fauna Bravia, aprovado pelo Decreto n.º 12/2002, de

6 de Junho, e do Diploma Ministerial n.º 93/2005, de 4 de Maio, emitido em conjunto

pelos Ministérios da Agricultura, do Turismo e das Finanças.

Veja-se que, segundo o artigo 133 do Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do

Estado, aprovado pelo Decreto n.º 11/2005, de 10 de Junho, os comités comunitários

(que é o mesmo que os comités de gestão à luz do Diploma Ministerial n.º 93/2005),

“são formas de organização das populações para permitir que as comunidades se

mobilizem na identificação e procura de soluções dos seus problemas, podendo

encaminhar outras preocupações às estruturas pertinentes do sector público” e “poderão

ser constituídos para, entre outras actividades, realizar a gestão da terra e outros recursos

naturais, das escolas, dos postos de saúde e outras instituições de natureza não lucrativa

de âmbito local”.

A Política de Conservação e a Estratégia para a sua Implementação, aprovada

através da Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro, previu que “às comunidades

locais é reconhecido um papel importante na resolução de conflitos sobre uso e acesso a

recursos naturais. Os conflitos poderão seguir a via extrajudicial e a via judicial. Pela via

extrajudicial, o diálogo e acordos com as comunidades locais é o primeiro passo que

deve ser incentivado, sempre que haja conflitos em que estas estejam envolvidas. O

plano de compensação e de reassentamento deveria incluir a previsão para a criação de

uma estrutura para a canalização de reclamações e para facilitar a sua resolução. Esta

poderá incluir influentes locais, autoridades comunitárias, autoridades locais e/ou estatais

que lidam com o assunto em causa que podem intervir como mediadores ou

conciliadores. Ao nível dos postos administrativos, localidades ou bairros existem os

Tribunais Comunitários que podem ser utilizados”.

Page 60: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

60

3333.4.4.4.4. . . . AAAA interacção entre ainteracção entre ainteracção entre ainteracção entre a llllei e osei e osei e osei e os direitos costumeirosdireitos costumeirosdireitos costumeirosdireitos costumeiros no domínio dos no domínio dos no domínio dos no domínio dos recursos naturaisrecursos naturaisrecursos naturaisrecursos naturais

Encontramos na legislação estadual a partir de 1990 um espaço importante de

confluência das normas costumeiras que regem o uso e aproveitamento de recursos

naturais, ainda que, na quase totalidade dos casos, confinado a situações de consumo

próprio ou de pequena escala e não, note-se, uma finalidade de natureza comercial e/ou

industrial.

Em vez de simplesmente ignorar a realidade sociológica, o legislador optou por

um modelo de concessão de espaço, ainda que porventura reduzido, para aplicação das

normas costumeiras que vigoram entre os diversos povos e lugares do País. Somos

levados a dizer que se tratou de um reconhecimento tácito da incapacidade do legislador

estadual em regular plena e eficazmente uma realidade extraordinariamente complexa,

multi-cultural, hiper-diversificada e resultante do cruzamento e interpenetração de

mundos e povos.

Um dos domínios onde mais se faz sentir o papel das ordens normativas locais é o

dos recursos naturais, dado que, ancestralmente, cada povo procurou pautar-se por um

conjunto de princípios e normas básicos de acesso, uso e aproveitamento da terra, das

reservas hídricas, dos recursos pesqueiros, das florestas e da fauna bravia.

3333.4.4.4.4.1. .1. .1. .1. Os usos tradicionaisOs usos tradicionaisOs usos tradicionaisOs usos tradicionais na lna lna lna legislação de águas egislação de águas egislação de águas egislação de águas

A Lei de Águas, Lei n.º 16/91, de 3 de Agosto, foi a primeira a tratar os usos

costumeiros, fazendo-o em diversas disposições.

Segundo o n.º 1 do artigo 21 desta Lei, as águas do domínio público classificam-se,

quanto ao seu uso e aproveitamento, em águas de uso comum e águas de uso privativo.

Os usos comuns visam, sem o emprego de meios mecanizados, a satisfação de

necessidades domésticas, pessoais e familiares do utente, entre as quais o abeberamento

de gado e a rega em pequena escala; destes distinguem-se os usos privativos, que, ao

contrário dos primeiros, resultam da lei, licença ou concessão, e que podem ser

directamente realizados pelos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra.

Page 61: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

61

Uma outra importante nota prende-se com a liberdade e gratuidade que está

associada aos usos comuns. Nos termos do n.º 1 do artigo 22 da Lei de Águas, os usos

comuns são livres, realizando-se sem necessidade de prévio licenciamento ou concessão,

e também gratuitos. Estes usos realizam-se de acordo com o regime tradicional de

aproveitamento de águas, com as limitações estabelecidas por lei que respeitam à

qualidade (dirigidas à proibição de usos comuns de contaminem a água) e quantidade de

água (não serão admitidos aqueles usos comuns que alterem significativamente o caudal

da água).

O artigo 70 consubstanciou o reconhecimento dos chamados usos tradicionais,

enquanto “usos comuns tradicionalmente estabelecidos e de facto existentes”, bem como

a sua necessidade de registo sempre que possam entrar em concorrência com usos

privativos resultantes de lei, concessão ou licença e desde que se traduzam numa

aplicação útil e benéfica da água. Aliás, no que diz respeito a esta última condição, o

legislador, através do n.º 2 do referido artigo, estabeleceu uma barreira ao

reconhecimento dos usos tradicionais sempre que estes implicarem a contaminação da

própria água. Quer o reconhecimento quer o registo estão a cargo das administrações

regionais de águas (ARA’s).

3333.4.4.4.4.2..2..2..2. Abertura ao Direito CoAbertura ao Direito CoAbertura ao Direito CoAbertura ao Direito Costumeirostumeirostumeirostumeiro na legislação de florestas e fauna bravia na legislação de florestas e fauna bravia na legislação de florestas e fauna bravia na legislação de florestas e fauna bravia

O quadro jurídico-legal de florestas e fauna bravia é composto essencialmente

pela Lei de Florestas e Fauna Bravia (Lei n.º 10/99, de 7 de Julho) e o respectivo

Regulamento, aprovado pelo Decreto n.º 12/2002, de 6 de Junho. Neste quadro,

importa aludir a dois aspectos fundamentais: o regime de uso e aproveitamento dos

recursos florestais e faunísticos, em primeiro lugar, e a conservação segundo normas

costumeiras, em segundo lugar.

Page 62: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

62

3.43.43.43.4.2.1. Exploraç.2.1. Exploraç.2.1. Exploraç.2.1. Exploração de recursos florestais e faunísticos ão de recursos florestais e faunísticos ão de recursos florestais e faunísticos ão de recursos florestais e faunísticos

Importa verificar em que medida o legislador concebeu o papel dos direitos

costumeiros alusivos ao uso de recursos florestas e faunísticos. Neste domínio, destaque

para a norma constante no artigo 9 (Titular do direito de uso e aproveitamento da

terra), segundo a qual “O titular do direito de uso e aproveitamento da terra, quer

adquirido por ocupação, quer por autorização de um pedido, carece de licença para

exploração dos recursos florestais e faunísticos naturais existentes na sua respectiva área,

salvo quando for para consumo próprio”.

Serra e Chicue, ao comentarem o referido artigo, escreveram que “a atribuição de

uma autorização para proceder ao uso e aproveitamento de determinado recurso natural

não determina automaticamente o livre uso e aproveitamento de outros recursos

naturais existentes na mesma área que não sejam para consumo próprio. Se, por

exemplo, os membros de determinada comunidade local, que têm, como se sabe, um

direito pré-existente e supra-constitucional de uso e aproveitamento da terra,

pretenderem explorar os recursos florestais existentes nas suas áreas para posterior venda

de lenha ou carvão, devem requerer previamente a necessária licença florestal, que é

válida por um ano. O mesmo sucede em relação a um investidor que vê o seu pedido de

aquisição do direito de uso e aproveitamento de terra ser autorizado. Para que este

possa explorar os recursos florestais, deve requerer uma licença ou concessão florestal,

consoante os casos e em função dos necessários requisitos legais. Exceptua-se do acima

exposto o caso em que os recursos florestais e faunísticos se destinem a consumo próprio,

no qual se dispensa a licença de exploração”121.

Importa ter presente a noção legal de consumo próprio enquanto “a exploração

florestal e faunística exercida pelas comunidades locais sem fins lucrativos para a

satisfação das suas necessidades de consumo e artesanato, com base nas respectivas

práticas costumeiras”122. Trata-se, portanto de um conceito na satisfação das necessidades

básicas de sustento, designadamente: alimentação, vestuário, habitação, saúde, rituais 121 SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005. 122 Artigo 1/9, da Lei de Florestas e Fauna Bravia.

Page 63: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

63

religiosos, entre outras. Serra e Chicue evidenciaram os dois requisitos fundamentais para

aferir uma situação de consumo próprio: “(1) que tal consumo não tenha finalidades

lucrativas, isto é, não é consumo próprio aquele que se traduz em posterior alienação

com vista à aquisição de uma margem de lucro; (2) que tal consumo seja conforme às

práticas costumeiras da comunidade local. Temos mais um exemplo do espaço que o

legislador nacional tem vindo gradualmente a reconhecer ao direito costumeiro. O

grande propósito é, por conseguinte, obstar que haja lugar a formas de pressão

insustentável ou desregrada sobre os recursos naturais”123.

Contudo, a noção de consumo próprio terá ainda diversos outros limites

estipulados por lei, designadamente no que diz respeito às necessidades de protecção e

conservação, não podendo estar associada a espécies de flora e fauna protegidas, com

recurso a meios e instrumentos proibidos, para além das quotas de abate, bem como

praticada nas áreas protegidas, especialmente parques e reservas nacionais124.

Veja-se que o artigo 15 do Regulamento da Lei de Florestas e Fauna Bravia

(RLFFB) estipula, no que diz respeito ao recursos florestais, que “as comunidades locais

poderão, em qualquer época do ano, extrair os recursos florestais necessários ao seu

consumo próprio, isentos de pagamento de taxa de exploração florestal”.

O RLFFB vai mais longe em termos proteccionistas em relação à Lei quanto aos

recursos faunísticos, pois exige, mesmo em relação às actividades de caça para consumo

próprio, sempre a obtenção de uma licença, que pode ser de modelo D, emitida pelo

Governador da província, através dos Serviços Provinciais de Florestas e Fauna Bravia

respectivos, a cidadãos nacionais para caçar nas florestas de utilização múltipla, ou de

modelo E, passada pelos conselhos locais de gestão de recursos, aos caçadores

comunitários, sendo que, em ambos os casos, somente em relação a espécies de caça

miúda 125 . Naturalmente que a referida opção do legislador regulamentar assume

contornos de uma autêntica ilegalidade, visto que o artigo 9 da LFFB é bastante claro ao

isentar os titulares de direito de uso e aproveitamento da terra da obrigação de obterem

uma licença, seja estadual ou comunitária, em relação aos recursos florestais e faunísticos 123 SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, ob. cit.. 124 Veja-se os artigos 11 e 12 da LFFB, bem como o artigo 8 do RLFFB. 125 Vejam-se os artigos 61, 62 a 64 do RLFFB.

Page 64: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

64

existentes nas respectivas áreas, quando a exploração se dirigir ao consumo próprio”.

Temos, portanto, um Regulamento aprovado pelo Conselho de Ministros que vai contra

o disposto numa Lei aprovada pela Assembleia da República, o que nos conduz,

inclusivamente, a despertar a inconstitucionalidade das normas regulamentares no

tocante à imposição de licença de caça, tendo presente o princípio constitucional da

hierarquia das leis.

3.43.43.43.4.2.2. A conservação segundo normas costumeiras .2.2. A conservação segundo normas costumeiras .2.2. A conservação segundo normas costumeiras .2.2. A conservação segundo normas costumeiras

Em termos históricos, a conservação comunitária advém da Política e Estratégia de

Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia, aprovada através da Resolução n.º 8/97,

de 1 de Abril, que traçou um objectivo de longo prazo: “proteger, conservar e

desenvolver e utilizar de uma forma racional e sustentável os recursos florestais e

faunísticos para o benefício económico, social e ecológico da actual e futura geração de

moçambicanos” 126 . Ora, para traçar o objectivo social para médio e longo prazo,

assumiu-se a “utilização e conservação do recurso pela comunidade, com ênfase sobre a

educação comunitária, uso e aproveitamento dos recursos pelas comunidades e o

reflorestamento comunitário”. Assim, como objectivo social foi definido o “aumento da

participação da população rural e comunidades como agentes directos no maneio

integrado, protecção contra as queimadas, uso e conservação dos recursos florestais e

faunísticos” 127 . Para a implementação desta objectivo, a Política traçou, entre várias

estratégias, a da “implementação da rede de áreas piloto com participação da

comunidade na conservação e uso dos recursos florestais e faunísticos” 128 . Este

instrumento de carácter político e estratégico acolheu as diversas experiências em curso

em diversas áreas do país no domínio do Maneio Comunitário de Recursos Naturais.

A Constituição da República de Moçambique de 2004, no seu artigo 98, prevê

um conceito de domínio multi-diversificado e abrangente de domínio público, dando um

126

Ponto 52. da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia, aprovada através da Resolução n.º 8/97, de 1 de Abril. 127

Ponto 53 (iii). da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia. 128 Ponto 56 (i). da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia.

Page 65: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

65

passo significativo em frente em relação à sua antecessora. Este conceito incorpora assim

não apenas o chamado domínio público do Estado, segundo o entendimento

constitucional consubstanciado no n.º 2 do artigo 98 da CRM, e para o qual existem os

parques e reservas nacionais, mas também o domínio público comunitário, com as zonas

de uso e valor histórico-cultural, por um lado, e os programas comunitários, por outro,

como respectivas expressões máximas, bem com o domínio público autárquico, no qual

invocamos as reservas municipais129.

Para além da opção constitucional constituir sequência lógica do reconhecimento

do princípio do pluralismo jurídico, resulta igualmente de um forte entendimento sobre

ao modelo de conservação a prosseguir em Moçambique. Serra e Cunha escreveram a

este respeito “não existir exclusividade de actuação do Estado ao nível central como

sujeito único e fundamental na criação, manutenção e desenvolvimento de áreas de

conservação, antes pelo contrário, na sequência da emergência de outras figuras

igualmente importantes, como as comunidades locais, as autarquias locais, o sector

privado (caso das coutadas e das fazendas do bravio) e as organizações não

governamentais (fundações e associações, internacionais ou nacionais)”130.

Entre o domínio público comunitário encontramos as chamadas zonas de uso e

valor histórico-cultural, previstas nos artigos 10 e 13 da LFFB, uma figura inédita na

história do direito da conservação em Moçambique e que assenta totalmente no direito

costumeiro – as chamadas zonas de uso e de valor histórico-cultural, definidas, nos

termos do n.º 1 do artigo 13, como “áreas destinadas à protecção de florestas de interesse

religioso e outros sítios de importância histórica e de uso cultural, de acordo com normas

e práticas costumeiras das respectivas comunidades”. Por seu turno, segundo o n.º 2 do

referido artigo, “os recursos florestais e faunísticos existentes nas zonas referidas no

número anterior podem ser utilizados de acordo com aquelas mesmas práticas

costumeiras”.

129 Nos termos do n.º 3 do artigo 98, da CRM, “a lei regula o regime jurídico dos bens do domínio público, bem como a sua gestão e conservação, diferenciando os que integram o domínio público do Estado, o domínio público das autarquias locais e o domínio público comunitário, com respeito pelos princípios da imprescritibilidade e impenhorabilidade”. 130 SERRA, Carlos/CUNHA, Fernando, Manual de Direito do Ambiente, 2.ª Edição, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2008.

Page 66: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

66

No artigo 7 do Regulamento da LFFB, o legislador procurou delimitar o âmbito

conceptual das zonas de uso e de valor histórico-cultural, referindo-se às florestas que

estejam situadas os cemitérios rurais, locais de culto, que sejam utilizadas para a extracção

de medicamentos tradicionais ou constituam habitat de espécies de fauna bravia

utilizadas em cultos.

Com a consagração de zonas de uso e de valor histórico-cultural, o legislador

atribuiu ao costume um papel relevante na criação do Direito. Ao contrário das demais

categorias de áreas de conservação, especialmente aquelas que constituem domínio

público do Estado, designadamente os parques e reservas nacionais, e que são criadas por

decreto do Conselho de Ministros, as zonas de uso e de valor histórico-cultural existem,

assim, independentemente de criação estadual, em virtude do significado histórico-

cultural que as mesmas representam para as comunidades locais, cabendo a estas

proceder à identificação, criação, gestão e desenvolvimento de áreas territoriais

merecedoras de um estatuto priviligiado de protecção.

O Estado intervém tão-somente para efeitos de reconhecimento, através de

despacho dos Governadores provinciais, consubstanciando a realização de uma mera

formalidade, traduzida no acto da declaração de tais áreas como zonas de protecção,

passando, como tal, a constituir objecto de um regime especial de tutela jurídica, no

contexto da rede nacional de áreas de conservação131. Ora, segundo o n.º 5 do artigo 7

do Regulamento da LFFB, caso tal declaração não venha a ser emitida, não haverá

prejuízo para o exercício de direitos previstos na legislação que digam respeito à

utilização da área e dos recursos florestais e faunísticos por parte das comunidades locais,

com fins económicos, sociais, culturais e históricos, nos termos das respectivas normas e

práticas costumeiras. Neste aspecto, o legislador foi realmente longe em termos de

abordagem pluralística do Direito. A eventual inércia dos Governadores Provinciais na

declaração de zonas de uso e valor histórico-cultural, não prejudica, assim, a existência

de tais zonas como áreas de conservação que integram o conceito de domínio público

131 Veja-se SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005.

Page 67: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

67

comunitário, bem como o exercício dos direitos de uso e aproveitamento dos recursos

das comunidades locais.

Segundo o artigo 7 do Regulamento da LFFB, há dois possíveis caminhos para

suscitar a declaração de zonas de uso e valor histórico-cultural: (1) por iniciativa do

Estado, representado pelo Governador Provincial, quando tais zonas sejam notoriamente

conhecidas como tais; (2) ou por iniciativa das comunidades locais, através de um pedido

reduzido a escrito, contendo as assinaturas de pelo menos 10 representantes das

respectivas comunidades, a fundamentação do pedido e a delimitação geográfica da

área.

Note-se que o reconhecimento das zonas de uso e valor histórico-cultural não

significa a inexistência de limites legais que obstem ao uso e aproveitamento insustentável

ou desregrado dos recursos naturais, ainda que à luz de normas e práticas costumeiras, de

modo a perigar a preservação dos ecossistemas, da biodiversidade e de espécies

endémicas, raras, em perigo ou ameaçadas de extinção. Assim, as normas e práticas

costumeiras não possuirão carácter absoluto ou limitado, incorrendo em limites ao

serviço do interesse público de protecção e conservação do ambiente,

constitucionalmente consagrado132. Assim, vejam-se as normas gerais que estabelecem,

por exemplo, a proibição de caçar um animal constante na lista de animais cuja caça é

proibida (o cabrito das pedras, a chita, o dugongo, o rinoceronte ou a tartaruga

marinha) ou a proibição de abater determinadas espécies vegetais. Tome-se ainda em

consideração o disposto no artigo 8 do Regulamento da LFFB, que prevê a faculdade de

se estabelecer restrições à utilização que as comunidades locais façam dos recursos

existentes nas zonas de uso e valor histórico-cultural, ainda que seja para consumo

próprio, tendo presente factores como: a exploração de espécies de flora e fauna cuja

exploração ou utilização é proibida por lei; a utilização de meios ou instrumentos

permitidos por lei; as quotas de abate de espécies de flora e fauna estabelecidas em

conformidade com o Regulamento da LFFB.

132 Este princípio encontra-se consagrado no artigo 117 da Constituição da República de Moçambique (“Ambiente e qualidade de vida”)

Page 68: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

68

Foi recentemente aprovada a Política de Conservação e a Estratégia para a sua

Implementação, através da Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro, apresenta uma

proposta para a recategorização das áreas de conservação, na qual desaparece a

categoria de zona de uso e valor histórico-cultural, para emergirem duas novas categorias

comunitárias: a reserva comunitária, enquanto “área do domínio privado sob gestão de

uma ou mais comunidades locais para conservação e turismo”, e o santuário

comunitário, como “área terrestre ou aquática de domínio público onde existem

restrições temporárias à entrada e/ou uso para permitir a recuperação das populações de

certas espécies para um prazo de 3 anos renováveis”.

3333....4444....3333.... Reconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades locaisReconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades locaisReconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades locaisReconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades locais na na na na

legislação do ambientelegislação do ambientelegislação do ambientelegislação do ambiente

Uma das importantes dimensões do reconhecimento do papel do direito

costumeiro no domínio dos recursos naturais decorre da consagração, no elenco de

princípios ambientais fundamentais previstos no artigo 4 da Lei do Ambiente, do

princípio do reconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades

locais que contribuem para a conservação e preservação dos recursos naturais e do

ambiente. Dois anos antes, este princípio tinha sido consagrado na Política Nacional do

Ambiente, aprovada através da Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto133, que aludiu ao

papel da comunidade na gestão ambiental, nos seguintes termos: “a sustentabilidade da

gestão dos recursos naturais e do ambiente só poderá ser eficaz através de uma directa e

activa participação das comunidades, valorizando e utilizando as suas tradições e

experiências. Assim sendo, o Governo criará um clima propício, através do conhecimento

dos padrões de uso dos recursos, formas de gestão tradicional e hábitos de vida das

comunidades. Paralelamente, procurará encorajar e reforçar a capacidade das

comunidades em conhecer e aplicar princípios e regras de gestão dos recursos naturais

133 Ponto 2.2. da Política Nacional do Ambiente, aprovada pela Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto.

Page 69: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

69

que orientem a sociedade em geral, delegando-lhes competências e instrumentos que

facilitem o estreitamento da cooperação com as estruturas formais e informais”134.

Interessante frisar que o legislador ordinário inspirou-se não somente na realidade

social e cultural moçambicana, como na Declaração de Princípios que resultou da

Conferência do Rio de Janeiro sobre Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar em

1992. Segundo esta Declaração, “as populações indígenas e suas comunidades e outras

comunidades locais, desempenham um papel vital na gestão e desenvolvimento do

ambiente devido aos conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados deverão apoiar e

reconhecer devidamente a sua identidade, cultura e interesses e tornar possível a sua

participação efectiva na concretização de um desenvolvimento sustentável” 135 . É

realmente curioso frisar a ponte que o direito internacional do ambiente tem vindo a

estabelecer para com os direitos costumeiros, influenciando o processo legislativo dos

Estados no sentido de uma maior e melhor abertura e reconhecimento do papel das

ordens normativas e instâncias de resolução de conflitos não estaduais, especialmente no

que diz respeito à gestão da terra e demais recursos naturais. Trata-se de uma devolução,

ainda que, porventura, tímida, de direitos históricos, ancestrais e intergeracionais às

comunidades locais, “espoliadas” no contexto da criação e desenvolvimento do Estado

moderno, e que conheceu o seu lado mais triste no advento do colonialismo.

Entre os regulamentos da Lei do Ambiente encontramos um que assume

importância vital para este ponto – o Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios

Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado, aprovado

pelo Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto. Não pretendendo nos alongar na análise do

referido instrumento legal, importa sobretudo destacar a forte interacção entre o

conhecimento tradicional sobre recursos genéticos/biodiversidade e a respectiva

protecção e conservação.

Recordamos que Moçambique ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre a

Diversidade Biológica, através da Resolução n.º 2/94, de 24 de Agosto, que estabeleceu

que o acesso e utilização de recursos genéticos, bem como dos conhecimentos

134 Ponto 2.3.10, da Política Nacional do Ambiente, aprovada pela Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto. 135 Veja-se o princípio XXII da Declaração do Rio de Janeiro.

Page 70: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

70

tradicionais associados, deverão ser efectuados de forma a salvaguardar uma partilha

justa dos benefícios derivados desde processo.

O Regulamento acima referido tem como objecto: o estabelecimento das regras

para o acesso a componente dos recursos genéticos, sua protecção, bem como ao

conhecimento tradicional a ele associado e relevante à conservação da diversidade

biológica, a utilização sustentável, incluindo a reparação justa e equitativa dos benefícios

derivados da sua utilização e exploração”136.

Importa, de seguida, destacar a norma constante no artigo 15 que versa sobre

direitos das comunidades locais no domínio do conhecimento tradicional associado aos

recursos genéticos, entendido como “a informação ou pratica individual ou colectiva de

comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao recurso genético”137. À luz

do n.º 1 deste artigo, o legislador prevê a abertura para a titularidade do referido

conhecimento tradicional por parte da própria comunidade, mesmo que apenas um dos

respectivos membros detenha tal conhecimento. Segundo o n. ° 2 do referido artigo, a

titularidade de conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos pressupõe: (1)

ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações,

utilização, explorações e divulgações; (2) impedir terceiros não autorizados de utilizar,

realizar testes, pesquisar ou exploração relacionada ao conhecimento tradicional

associado ou divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou

constituem conhecimentos tradicionais associados; (3) e receber benefícios pela

exploração económica por terceiros, directa ou indirectamente, de conhecimento

tradicional associado, cujos direitos são da sua titularidade.

136 Cfr. Artigo 2 do Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado, aprovado pelo Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto. 137 Cfr. Artigo 1 g) do Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado.

Page 71: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

71

3.53.53.53.5. A . A . A . A ““““captura jurídicacaptura jurídicacaptura jurídicacaptura jurídica”””” das autoridades tradicionais das autoridades tradicionais das autoridades tradicionais das autoridades tradicionais

O trabalho desenvolvido entre 1991 e 1996 pelo Núcleo de Desenvolvimento

Administrativo, no contexto do projecto “Descentralização e Autoridade Tradicional”,

do Ministério da Administração Estatal, culminou na aprovação de um pacote legislativo

encabeçado pelo Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, que aprovou as formas de

articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias.

Nos termos do artigo 1 do referido Decreto, constituem autoridades comunitárias

“os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados

como tais pelas respectivas comunidades locais”. Esta definição consubstancia, em termos

jurídico-legais, o reconhecimento do pluralismo jurídico existente ao nível local e

decorrente da coexistência e interpenetração das autoridades tradicionais, ignoradas e

combatidas no passado e renovadas no presente, das estruturas político-administrativas

criadas a seguir à instauração da Independência nacional e nunca extintas, no qual se

sobressaem os secretários de bairro ou aldeia, e das demais lideranças legitimadas pelas

comunidades e não conducentes à categoria de “régulos”, consoante o povo ou espaço

geográfico em causa.

Segundo o artigo 2 do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, é imposto aos

órgãos locais do Estado o dever de articulação com as autoridades comunitárias,

“auscultando opiniões sobre a melhor maneira de mobilizar e organizar a participação

das comunidades locais, na concepção e implementação de programas e planos

económicos, sociais e culturais, em prol do desenvolvimento local”. Por seu turno, à luz

do artigo 4, aqueles devem articular-se com as autoridades comunitárias nas questões

referentes à gestão ambiental do território sob influência destas, principalmente no que

toca aos domínios do direito de uso e aproveitamento da terra, segurança alimentar,

saúde pública e ambiente.

Veja-se ainda o Diploma Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, do

Ministério de Administração Estatal, que aprovou o Regulamento do Decreto n.º

15/2000, e que, entre outros aspectos, estabeleceu, no artigo 5, uma longa lista de

deveres das autoridades comunitárias, dos quais destacamos, para além dos tradicionais

Page 72: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

72

deveres no domínio da divulgação das leis, deliberações dos órgãos do Estado e outras

informações úteis, do trabalho, do reassentamento das populações e do pagamento dos

impostos, aqueles que dizem respeito, directa ou indirectamente, ao ambiente e recursos

naturais:

• Participar às autoridades administrativas a exploração, circulação ou

comercialização não licenciada de madeira, lenha, carvão, minérios e areias;

• Participar na educação das comunidades sobre formas de uso sustentável e

gestão dos recursos naturais, incluindo a prevenção de queimadas não

controladas, caça, corte de madeira, lenha e carvão para fins comerciais sem

autorização;

• Mobilizar e organizar as comunidades para participarem em campanhas de

saneamento do ambiente.

Segundo o artigo 5 do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, as autoridades

tradicionais gozam, no exercício das suas funções, de um conjunto de direitos e regalias,

designadamente, o de ser reconhecidas e respeitadas como representantes das respectivas

comunidades locais, de usar os símbolos da República, de participar nas cerimónias

oficiais, de usar fardamento e distintivo próprio e de receber um subsídio resultante da

sua participação no processo de cobrança de impostos. A semelhança em relação ao

tratamento que a Administração colonial teve para com os denominados “régulos” é,

sem margem para dúvida, enorme. Decorre actualmente um processo idêntico de

instrumentalização das autoridades tradicionais, integradas na categoria mais ampla de

autoridades comunitárias, com vista à realização de objectivos de natureza política e

administrativa. As autoridades tradicionais são hoje perspectivas como uma espécie de

prolongamento da Administração pública ao nível da base.

Bastante questionável e, nessa linha polémico, foi o entendimento de que, uma

vez legitimadas ao nível comunitário, as autoridades comunitárias deverão ser

reconhecidas pelo representante do Estado, nos termos do n.º 2 do artigo 1 do Decreto

Page 73: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

73

n.º 15/2000, de 20 de Junho, e que foi regulamentado no artigo 11 do Diploma

Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, nos seguintes termos: “o reconhecimento

formal das autoridades comunitárias será feito pelo competente representante do Estado

mediante identificação, registo e entrega de fardamento ou distintivo ao líder

comunitário já legitimado”138. Nos anos que se seguiram à aprovação destes diplomas

legais, tornaram-se frequentes as cerimónias de reconhecimento das autoridades

comunitárias legitimadas pelas comunidades, em claro exercício de controlo do poder

concentrado nas mãos das autoridades comunitárias, especialmente no que diz respeito

às tradicionais. Naturalmente, o legislador abriu caminho para eventuais situações em

que, determinado líder comunitário, plena e devidamente legitimado pela sua

comunidade, não venha a ser reconhecido pelo competente representante do Estado,

quando não haja convergência de posições, como, por exemplo, de ordem política.

E mais, a previsão da norma constante no artigo 13, abre igualmente uma porta

para que, em caso de conflito no processo de legitimação das autoridades comunitárias,

o representante do Estado, com competência legal de mediação, possa exercer a

influência necessária para a escolha considerada “politicamente correcta”. Isto é, em

termos resumidos, o Estado moderno e dito pluralista reconheceu um espaço

rigorosamente delimitado e controlado para intervenção das autoridades tradicionais ao

nível da base, em concorrência com as demais autoridades comunitárias, mediante o

respeito de normas jurídicas aprovadas pelo poder executivo e condicionado a uma

modalidade de sancionamento legalmente fixada. O modelo de relacionamento entre o

Estado e as autoridades tradicionais no presente momento possui semelhanças notórias

com o modelo de articulação adoptado no período colonial.

Um artigo recentemente publicado no jornal “País” com o título Régulos da Beira

“atacam administradora, revelou a existência de um conflito instalado entre a

representante mais alta do Governo ao nível desta cidade, a Administradora, e as

autoridades comunitárias. Este conflito assume contornos de natureza política, tendo

presente que o município é actualmente dirigido pelo único autarca do país que não se

138 Foi, entretanto, aprovado, através do Diploma Ministerial n.º 100/2008, de 24 de Outubro, o Regulamento e Distintivos das Autoridades Tradicionais.

Page 74: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

74

encontra filiado no partido Frelimo, a Administradora, tendo dignidade para constituir

objecto de um trabalho de investigação mais aprofundado. Segundo o artigo, a

Administradora terá dito em conferência de imprensa que estava a encontrar diversas

dificuldades no trabalho de reconhecimento dos régulos, por não estariam a colaborar e

sempre a ignoram quando abordados sobre o assunto. Em resposta, um dos régulos terá

afirmado o seguinte: “Não sei porque é que aqui na Beira este processo foi moroso, ou

mesmo nulo. Pelo menos até o presidente do Município (…) ter-nos tratado como

verdadeiros «donos» desta urbe, sempre fomos relegados para o terceiro plano. Portanto,

para nós, a tentativa de reconhecer os régulos do Chiveve (Beira) não passa de uma

pretensão política, mas, infelizmente, nós não existimos para acomodar desejos políticos,

daí que quando se trata de algo virado para as comunidades estamos e estaremos sempre

lado a lado com a administradora”139.

A Lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro, aprovou o quadro jurídico para a

implementação das Autarquias Locais. No enunciado do artigo 28, estabeleceu-se o

seguinte: “No desempenho das suas funções, os órgãos das autarquias locais poderão

auscultar as opiniões e sugestões das autoridades tradicionais reconhecidas pelas

comunidades como tais, de modo a coordenar com elas a realização de actividades que

visem a satisfação das necessidades específicas das referidas comunidades”. Posto isto, por

intermédio do Diploma Ministerial n.º 80/2004, de 14 de Maio, foi aprovado o

Regulamento de Articulação dos Órgãos das Autarquias Locais com as Autoridades

Comunitárias. Este último Diploma limitou-se a transcrever quase na íntegra o disposto

no Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho e respectivo Regulamento, com as necessárias

adaptações ao domínio territorial autárquico. Importa, no entanto, fazer menção da

opção pela apresentação de algumas definições, ainda que de teor questionável, como é

o caso da de chefes tradicionais (“as pessoas que assumem e exerçam a chefia de acordo

com as regras tradicionais da respectiva comunidade”), de secretários de bairro ou aldeia

(“as pessoas que assumem a chefia por escolha feita da população do bairro ou aldeia a

que pertençam”) e a de outros líderes legitimados (“as pessoas que exercem algum papel

económico, social, religioso ou cultural aceite pelo grupo social a que pertençam”).

139

Artigo publicado na edição do jornal País de segunda-feira, dia 22 de Fevereiro de 2010.

Page 75: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

75

Por seu turno, através da Lei n.º 8/2003, de 19 de Maio (Lei dos Órgãos Locais do

Estado – LOLE), foram estabelecidos os princípios e normas de organização dos órgãos

locais do Estado nos escalões de província, distrito, posto administrativo e de localidade.

Segundo o artigo 11 desta lei, “No desempenho das suas funções administrativas, os

órgãos locais do Estado articulam com as autoridades comunitárias, observando

estritamente a Constituição da República, as demais leis e os regulamentos sobre a

matéria.

O Regulamento da LOLE foi aprovado através do Decreto n.º 11/2005, de 10 de

Junho. No capítulo II (Comunidades) do Título VIII (Cidadania e participação), o

legislador procedeu à reprodução do conteúdo do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho,

e respectivo Regulamento. Os artigos 106 e 108 tratam, respectivamente, dos deveres e

dos deveres em geral das autoridades comunitárias; por seu turno, os artigos 107 e 109

versam sobre os deveres e direitos em especial dos chefes tradicionais e secretários de

bairro ou aldeia, respectivamente. A maior novidade do Regulamento da LOLE traduz-se

na decisão governamental de proceder à definição, ainda que não taxativa, das formas

de organização das comunidades, indiciando não apenas um propósito de simplificar

e/ou ordenar aquilo que, porventura, e à primeira vista, possa parecer, complexo e/ou

caótico, mas também de garantir um maior controlo da dinâmica comunitária por parte

das estruturas do Estado. Procurou-se, assim, dar um cunho de formalidade e

modernidade às formas de expressão e organização das comunidades, reduzindo-as a

categorias abstractas legalmente previstas, concebidas e definidas, entre as quais se

encontram o Conselho Local140, o Fórum Local141, os Comités Comunitários142 e os Fundos

140 Segundo o artigo 111 do Regulamento da LOLE, o “conselho local é um órgão de consulta das autoridades da administração local, na busca de soluções para questões fundamentais que afectam a vida das populações, o seu bem-estar e desenvolvimento sustentável, integrado e harmonioso das condições de vida da comunidade local, no qual participam também as autoridades comunitárias”. 141 De acordo o artigo 112 do Regulamento da LOLE, o “fórum local é uma instituição da sociedade civil que tem como objectivo organizar os representantes das comunidades e dos grupos de interesse locais para permitir que eles definam as suas prioridades”. 142 À luz do artigo 113 do Regulamento da LOLE, “os comités comunitários são formas de organização das populações para permitir que as comunidades se mobilizem na identificação e procura de soluções dos seus problemas, podendo encaminhar outras preocupações às estruturas pertinentes do sector público”.

Page 76: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

76

Comunitários143. Depois de os elencar, o legislador teve a preocupação de enunciar que

“poderão existir outras formas de organização definidas pelas respectivas comunidades”.

Urge mencionar que foi, entretanto, aprovado o Guião sobre a organização e

funcionamento dos Conselhos Locais, através do Diploma Ministerial n.º 67/2009, de 17

de Abril.

Finalmente, o legislador inseriu no artigo 118 da Constituição da República de

Moçambique de 2004, uma norma exclusivamente alusiva ao papel das autoridades

tradicionais. Nos termos do respectivo artigo 1, “O Estado reconhece e valoriza a

autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito consuetudinário”.

Veja-se que nada é dito em relação ao sancionamento ou reconhecimento que as

entidades governamentais competentes deverão fazer das autoridades tradicionais

legitimadas pelas comunidades, o que nos leva a indagar em torno da eventual

inconstitucionalidade da norma constante no n.º 1 do artigo 1 do Decreto n.º 15/2000,

de 20 de Junho.

Por seu turno, segundo o n.º 2 do referido artigo 118, “O Estado define o

relacionamento da autoridade tradicional com as demais instituições e enquadra a sua

participação na vida económica, social e cultural do país, nos termos da lei”. Este

relacionamento foi tratado, conforme vimos, no Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho e

respectiva regulamentação.

Importa igualmente aludir ao facto de, segundo o artigo 11 da Constituição, se ter

estabelecido, como um dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano, “a

afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-

culturais”. Assim, confirma-se ao mais alto patamar legislativo o retorno do Estado ao

tradicional.

143 Nos termos do artigo 114 do Regulamento da LOLE, “por iniciativa própria, comunicada ao Chefe do Posto Administrativo, as comunidades podem criar fundos de desenvolvimento comunitário vocacionados para interesses próprios das respectivas comunidades”.

Page 77: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

77

3333.6.6.6.6. O marco constitucional da consagração do pluralismo jurídico . O marco constitucional da consagração do pluralismo jurídico . O marco constitucional da consagração do pluralismo jurídico . O marco constitucional da consagração do pluralismo jurídico

Realizando uma análise crítica da Constituição de 1990, e sem menosprezar o

acima aludido artigo 6, que previa, como objectivo do Estado moçambicano, a

“afirmação da personalidade moçambicana, das suas tradições e demais valores

socioculturais, Luís Mondlane refere que “todavia em nenhum outro momento a Lei

Fundamental (de 1990) faz reconhecimento expresso do Direito Costumeiro nem tão

pouco das línguas nacionais. Torna-se, pois, necessário não só o reconhecimento do

direito costumeiro como também a fixação de mecanismos conducentes a uma efectiva

interacção dos sistemas de Direito formal e não formal e, bem assim, uma adequada

estruturação dos organismos aplicadores do direito costumeiro”144.

Contudo, a Constituição da República de Moçambique de 2004 possui uma

norma extraordinariamente importante para o debate em torno dos novos rumos e

desafios do Direito, e que foi integrada no Título I, Capítulo I, no artigo 4, alusivo aos

princípios fundamentais, que consubstancia a consagração do pluralismo jurídico na

República de Moçambique: “O Estado reconhece os vários sistemas normativos e de

resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não

contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.

Poucos meses antes da aprovação do novo texto constitucional, o Centro de

Formação Jurídica e Judiciária, instituição subordinada ao Ministério da Justiça, foi

convidado pela Comissão de Redacção a contribuir para o projecto de revisão da

Constituição com a elaboração de uma norma que consagrasse o princípio do pluralismo

jurídico. Para o efeito, teve-se em consideração o trabalho de pesquisa sobre a

administração da justiça em Moçambique que esta instituição tem vindo a realizar,

chamando a atenção para a necessidade de reconhecer o papel que as diversas instâncias

formais e informais assumem na prevenção e resolução de conflitos no país.

Para entender o pluralismo jurídico em Moçambique no momento actual, não se

poderá deixar de tomar em consideração Sally Merry, que nos demonstra como, ao

144 MONDLANE, Luis António, O Acesso à Justiça e Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, In. Revista Jurídica, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Volume II, Maputo, 1997, 103.

Page 78: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

78

contrário do entendimento anterior, segundo o qual os investigadores debruçavam-se

fundamentalmente no contexto local para analisar uma determinada situação local, hoje,

os contextos nacional e internacional tornaram-se extraordinariamente importantes no

desenvolvimento de uma compreensão teórica das situações locais, na medida em que

não apenas a lei estadual como o direito internacional foram penetrando e moldando as

arenas sociais locais145.

O colonialismo, a descolonização, a emergência de um direito internacional, a

globalização e uma série de outros fenómenos contribuíram, sobremaneira, para a

geração, na quase totalidade dos ordenamentos jurídicos nacionais, de um mosaico

jurídico multi-diversificado, a um ponto em que já não se pode, hoje, falar de um

pluralismo jurídico na linha do que caracterizou o período colonial, fundamentalmente

assente no desequilíbrio e na separação de ordens normativas, em que o direito escrito

das metrópoles se encontrava no patamar superior, abaixo do qual se encontram os

direitos costumeiros. Emerge, portanto, um interesse renovado no conceito de pluralismo

jurídico, segundo o qual a pluralidade de sistemas jurídicos parece ser hoje a característica

fundamental de todas as sociedades, defendendo-se a natureza mutuamente constitutiva

dos sistemas jurídicos locais, nacionais e transnacionais146. E mais, o pluralismo jurídico é

hoje perspectivado como o caminho para a análise e discussão acerca da multiplicidade

de sistemas jurídicos coexistentes e as suas interconexões147.

Nota importante para as palavras de António Hespanha, quando nos diz:

“enquanto as concepções pluralistas não cultivarem um ecumenismo que lhes permitia

reconhecer, sem discriminação, todas as formas de manifestação autónoma de direito e

de dar a todas elas a mesma capacidade de se exprimirem na comunidade jurídica, a

garantia de um pluralismo jurídico verdadeiramente pluralista não está realizada. E, por

isso, não estão garantidas nem a legitimidade nem a justeza das soluções jurídicas que

145 MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology, Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 357. 146 Idem, p. 358. 147 Ibidem, p. 360.

Page 79: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

79

decorrem de um diálogo que deveria ser igualitário, entre os vários ordenamentos

jurídicos”148.

O reconhecimento real, efectivo, prático, e já não apenas legal, do princípio do

pluralismo jurídico constitui um desafio de importância crucial para os próximos anos na

história do País, especialmente num contexto em que se pretende construir um Estado de

Justiça Social. Por outro lado, seria de todo importante que, nos trabalhos de reforma

legal, incluindo do próprio sistema de administração da justiça, se atendesse, sem

preconceitos ou prejuízos, à vasta, diversificada e riquíssima amálgama de exemplos de

pluralismo jurídico, de modo a construir e fazer vingar as soluções mais adequadas e

consentâneas com a realidade nacional e, principalmente, a conceber uma justiça cada

vez mais próxima do cidadão.

Os sistemas de justiça comunitária revelam uma enorme capacidade, celeridade,

simplicidade, êxito e eficácia na prevenção e resolução de conflitos, e, como tal,

mereceriam constituir uma das fontes privilegiadas e determinantes da arquitectura e

conteúdo do direito moçambicano. A urgência na busca de soluções legais para velhas e

novas questões desemboca na importação de modelos pensados e criados para

realidades políticas, jurídicas, económicas, sociais e culturais diferentes, e que, graças à

globalização e ao advento das modernas tecnologias de informação, se encontram

facilmente acessíveis, quando, afinal de contas, a resposta pode encontrar-se próximo de

nós, basta um olhar atento, uma investigação cuidadosa e a apresentação de propostas

inovadoras, consentâneas, justas e eficazes.

3333.7.7.7.7. . . . Constrangimentos e êxitos no processo de implementação Constrangimentos e êxitos no processo de implementação Constrangimentos e êxitos no processo de implementação Constrangimentos e êxitos no processo de implementação do novo quadro jurídicodo novo quadro jurídicodo novo quadro jurídicodo novo quadro jurídico----

legal legal legal legal ---- o caso paradigmático dao caso paradigmático dao caso paradigmático dao caso paradigmático dassss consultaconsultaconsultaconsultassss comunitáriacomunitáriacomunitáriacomunitáriassss

Um dos maiores marcos da nova legislação de terras e recursos naturais foi a

consagração da consulta pública, e que se tornou uma espécie de mecanismo de

salvaguarda, de respeito e de materialização dos direitos comunitários e,

148 HESPANHA, António Manuel, O Caleidoscópio do Direito, O Direito e a Justiça nos Dias e No Mundo de Hoje, 2.ª Edição, Almedina, Combra, 2009, p. 75.

Page 80: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

80

consequentemente, de atribuição de uma maior espaço para a realização de uma justiça

mais plural, num factor de realização do princípio de pluralismo jurídico

constitucionalmente consagrado.

A consulta pública, no contexto da legislação dos recursos naturais, permite aferir

não só a existência de formas de pensar e de viver fora dos horizontes temporais e

geográficos do Estado moderno, e de inúmeros direitos adquiridos e transmitidos pela

via costumeira e, indiscutivelmente, merecedores de consideração para efeitos de tomada

de decisão sobre determinada actividade, como ainda atribui às comunidades uma

importante base negocial para efeitos de desenvolvimento local e de prevenção de

eventual litigiosidade.

Um estudo levado a cabo em 2002 com o propósito de verificar se os direitos das

comunidades, derivados da nova legislação de recursos naturais, constituíam realidade

efectiva ou mera retórica, nomeadamente no contexto do maneio comunitário dos

recursos naturais, culminou em diversas conclusões importantes: (1) a ausência de

instrumentos de operacionalização da legislação, (2) fraco conhecimento desta, (3)

fraqueza das instituições locais, (4) e fraca capacidade de fiscalização das actividades dos

diferentes autores 149 . Conforme veremos adiante, volvidos sensivelmente 8 anos, a

situação pouco mudou.

Um dos maiores problemas que se tem vindo a revelar, prende-se com a

tendência de perspectivar a consulta comunitária como mero requisito formal, despido,

portanto, de qualquer relevância material, fazendo com que não haja grande esforço na

realização de um processo de participação efectivamente abrangente, dirigido à efectiva

colecta da opinião das comunidades residentes nas áreas de exploração dos recursos

naturais, com vista a contribuir para o combate à pobreza, bem como a prosseguir e

alcançar o desejável desenvolvimento local.

Jonstone e outros destacam que fraqueza do processo de consulta e a sua

substituição pela adopção de um documento entregue e assinados pelas lideranças

comunitárias resulta da combinação de diversas causas, nomeadamente: a falta de

149 NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades: Realidade ou Retórica, DNFFB, DFID e IIED, Maputo, 2003, p. 43.

Page 81: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

81

incentivos por parte do operador, a falta de capacidade técnica do lado do Governo

local e a falta de conhecimento/capacidade de negociação ao nível das comunidades

locais150.

No caso mais frequente, a consulta é realizada somente ao nível das lideranças

comunitárias, na sequência do falso pressuposto de que assim se cumpre o requisito

legalmente imposto151. Na maior parte dos casos, as comunidades não chegam realmente

a participar no processo, sendo somente avisadas, pelos seus líderes, de que foi tomada

determinada decisão, ainda que esta os venha a afectar significativamente. Noutras

situações, quando as lideranças estão desprovidas de escrúpulos, são facilmente

manipuláveis e entregam terras comunitárias mediante o pagamento de quantias

monetárias ou da atribuição de outro tipo de benefícios.

As pseudo-consultas, como assim lhes chamaríamos, decorrem, portanto, de uma

interpretação literal e errónea do disposto na legislação, que confunde consultas

comunitárias com consultas junto de lideranças comunitárias, ou então como meras e

pontuais audiências públicas, significando, na prática, a realização de um único encontro,

muitas vezes mal conduzido 152 . Aliás, torna-se fundamental enfatizar o conceito de

participação como um processo contínuo e duradouro, em detrimento da opção por

uma mera consulta, que pode se esgotar num único momento e num único local, não

garantindo a real auscultação e negociação das comunidades.

Sendo as consultas equacionadas por alguns operadores como pressupostos

essencialmente burocráticos, a acrescer a uma lista de requisitos já por si considerada

longa, estes não pretendem perder com as mesmas mais do que o tempo estritamente

necessário. Aliás, para determinados sectores, as consultas comunitárias são entendidas

150 JOHNSTON, Rouja/CAU, Boaventura/NORFOLK, SIMON, Legislação Florestal em Moçambique: Cumprimento e Impacto em Comunidades Residentes na Floresta, In. Comunidades e Maneio dos Recursos Naturais. Memórias da III Conferência Nacional sobre o Maneio Comunitário dos Recursos Naturais, Maputo, 21 – 23 de Julho de 2004, Volume I, Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia - Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural/IUCN, Maputo, 2005, p. 100. 151 Segundo Nhantumbo e Macqueem, quando é feita (a consulta), é superficial e resume-se no contacto com as estruturas administrativas e algumas autoridades comunitárias que legitima o pedido através das suas assinaturas”. NHANTUMBO, Izilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades, Ob. Cit., p. 39. 152 Extraído de TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal de acesso aos recursos naturais em Moçambique: o impacto das novas legislação e das consultas comunitárias sobre as condições de vida locais, série Sociedade e Justiça, Volume 1, Fevereiro de 2009, pp. 6 – 7.

Page 82: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

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como obstáculos ao processo de desenvolvimento, até porque, segundo estes, a terra é

propriedade do Estado, não fazendo sentido condicionar o capital à observância de uma

formalidade de discutível necessidade. Claro que, no caso de ocorrência de uma pseudo-

consulta, o processo de investimento é verticalmente imposto à comunidade, e sem que

haja, grande parte das vezes, lugar à entrega de contrapartidas ou benefícios justos da

exploração de recursos naturais localizados nas áreas comunitárias, o que ocasiona um

enorme risco de ocorrência de conflitos, despoletando a necessidade de aceder à justiça

para obter a reposição dos direitos violados.

Conforme afirmamos em outra sede, “para que se cumpra o requisito formal, a

consulta pode esgotar-se num único tempo (mesmo que não suficiente para se fazer uma

verdadeira auscultação das sensibilidades), em um único espaço físico (mesmo que assim

não se consiga a necessária cobertura da comunidade local) e junto de supostos

representantes da comunidade (não se conseguindo fazer chegar a informação ao nível

da base). Como resultado, não há lugar à legitimação necessária do processo de consulta,

gerando-se um clima de desconfiança forte, o qual muitas vezes degenera em situações

mais ou menos complexas e turbulentas de conflitualidade, com inúmeras consequências

negativas para todas as partes envolvidas”153.

Por fim, importa definir mecanismos de efectiva participação das comunidades

locais no processo de licenciamento no domínio dos recursos naturas, garantindo-se que

o processo de tomada de decisões seja realizado em termos verdadeiramente

democráticos, em prol do desenvolvimento sustentável. Há, nesse sentido, de trabalhar

na harmonização do quadro jurídico-legal, trazendo para a legislação de florestas e fauna

bravia os desenvolvimentos significativos que foram materializados na legislação sobre a

avaliação do impacto ambiental, no âmbito da qual o conceito de participação ganhou

relevo em detrimento do de consulta154. Por outro lado, torna-se importante desenvolver

mecanismos para uma autêntica auscultação e pronunciamento das comunidades locais

153 In. Prefácio à 2.ª Edição do Manual de Delimitação de Terras das Comunidades, da Comissão Interministerial para a Revisão da Lei de Terras, com o apoio técnico da FAO e Financeiro do Reino dos Países Baixos. 154 Veja-se o Regulamento do Processo de Avaliação do Impacto Ambiental, aprovado pelo Decreto n.º 45/2004, de 29 de Setembro, e a Directiva Geral para participação Pública, aprovada pelo Diploma Ministerial n.º 130/2006, de 19 de Julho.

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83

nos processos de autorização de direitos de uso e aproveitamento da terra e demais

recursos naturais, como condição para as eventuais negociações consequentes e a geração

de benefícios justos para todas as partes.

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84

CONCLUSÕES CONCLUSÕES CONCLUSÕES CONCLUSÕES

No período do Estado colonial, que tem o seu início pouco tempo depois da

Conferência de Berlim (1894 - 95), o sistema de administração portuguesa iniciou o

processo de construção do Estado moderno, pautando-se por uma linha de intervenção

baseada nos pilares do reconhecimento de um pluralismo jurídico na perspectiva de

melhor controlar e administrar o território e suas gentes; pela diferenciação de estatuto

jurídico dos cidadãos europeus e das populações locais, consideradas nativas ou

indígenas; pelo estabelecimento de uma rede de chefaturas locais reconstruídas sobre as

cinzas dos antigos reinos tradicionais, e colocadas ao serviço dos objectivos coloniais;

pela exploração forçada da mão-de-obra local; e pelo reconhecimento de um regime

jurídico-legal dirigido a facilitar o acesso às melhores terras e demais recursos naturais por

parte do sistema colonial e das empresas privadas a este associadas.

Os direitos costumeiros foram, de certo modo, considerados objecto de estudo

por parte da Administração colonial, que chegou a concretizar algumas propostas para a

sua codificação, não com o espírito de reconhecer um pluralismo jurídico perspectivado

em moldes horizontais, mas sim com o propósito fundamental de melhor conhecer os

padrões de pensamento e comportamento das populações locais, com vista ao seu e

manipulação na construção do Estado colonial. Nesse sentido, os chamados usos e

costumes das populações nativas eram tão-somente tolerados, numa primeira fase,

naquilo que não pusesse em causa a ordem imperial e colonial bem como os bons

costumes das nações “civilizadas”.

Não obstante toda esta conjuntura que se durou sensivelmente 80 anos,

determinados elementos dos direitos costumeiros resistiram às ameaças, bem como as

eventuais tentativas de desmantelamento. No mundo rural, as comunidades locais

continuaram a guiar-se pelas normas e práticas ancestrais que regem as relações fundiárias

e o acesso aos recursos naturais, bem como as próprias estruturas de poder. Para esta, o

direito e as instituições coloniais permaneceram estranhas.

Page 85: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

85

A seguir à Independência e com a criação da República Popular de Moçambique,

assistiu-se à desconstrução do Estado colonial e à sua substituição por um Estado de

feição socialista, assente nos princípios da democracia popular. Ao nível legislativo,

houve efectivamente lugar ao início de um período de Estadualismo, no qual a lei

constituiu a única e exclusiva fonte de direito, resultado da livre expressão da vontade

popular. Não houve, portanto, lugar ao reconhecimento do papel dos direitos

costumeiros, os quais, aliás, estavam demasiado conotados com a “tradição” e o

obscurantismo”. Ao nível judicial, procedeu-se a uma reforma do sistema de

administração da justiça no qual o ponto mais importante foi a criação dos tribunais

populares. Por seu turno, ao nível administrativo, foram erguidos os alicerces de uma

nova máquina e estrutura administrativa, tendo, na base, emergido os grupos

dinamizadores que se apropriaram do lugar anteriormente ocupado pelos régulos, dando

continuidade a algumas das funções por anteriormente exercidas por estruturas que

foram profundamente conotadas como tendo estado inseridas na máquina repressiva do

Estado colonial. As autoridades tradicionais foram assim colocadas à margem dos desafios

do jovem Estado independente, não deixando contudo, conforme vimos, de existir e

gozar do seu poder de influência junto das populações.

Ao nível legislativo, consagrou-se, firme e resolutamente, o princípio da

propriedade estatal da terra e demais recursos naturais, rompendo com o modelo

colonial no qual as riquezas eram objecto de exploração para benefício da Metrópole e

de uma minoria de privilegiados, em detrimento dos verdadeiros e legítimos donos da

terra. Para o efeito, a terra e os recursos naturais passaram a constituir um dos motores

do desenvolvimento da jovem República Popular e para benefício de todos os

moçambicanos, numa sociedade que se pretendia desprovida de classes sociais. Na

legislação aprovada não se fez qualquer referência aos usos e costumes locais, que,

sociologicamente, continuaram a reger as relações fundiárias das comunidades locais. De

qualquer modo, viveu-se um período de desqualificação do pluralismo jurídico,

considerado produto da estratégia colonial para melhor dominar.

Na sequência das transformações económicas e políticas verificadas na segunda

metade da década de oitenta, foi aprovada, no ano de 1990, uma nova Constituição da

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86

República, que abre caminho para a instauração de um sistema democrático multi-

multipartidário, para a instituição de um leque de direitos fundamentais e para a

consagração formal do princípio de separação de poderes. Após a aprovação da nova Lei

Fundamental, foi aprovada uma nova Lei de Organização Judiciária, que excluiu da

justiça formal os então tribunais populares de comunidade, que formavam a base do

sistema de administração da justiça, e que foram categorizados como tribunais

comunitários, regidos por Lei própria. Perdeu-se um dos pontos mais fortes e

emblemáticos das conquistas alcançadas a seguir à Independência – a existência de

tribunais para o povo, junto do povo e dirigidos pelo povo.

Paralelamente, tendo à frente o Ministério de Administração Estatal, foi

desencadeado um processo de retorno ao tradicional, com a missão fundamental de

recuperar o papel anteriormente desempenhado pelas autoridades tradicionais, incluindo

os régulos, que não deixaram de exercer o seu papel juntos das populações, ainda que,

nalguns casos, em contexto de enorme instabilidade política ou bélica. O propósito real

não deixa de ocultar intenções políticas em contexto de disputa pelo acesso ao poder

através de eleições presidenciais e legislativas, pois, afinal, as autoridades tradicionais são

essenciais no controlo das populações e na eventual orientação da tendência de voto. A

aprovação do Decreto n. ° 15/2000, de 20 de Junho e respectivos regulamentos, bem

como o quadro jurídico-legal sobre órgãos locais do Estado, demonstraram uma

tendência de clara instrumentalização das autoridades tradicionais, e que culminaram

num processo de reconhecimento recheado de carga simbólica, perante as autoridades

estatais competentes, culminando na atribuição de insígnias e fardamento. A semelhança

com o passado colonial foi, em muitos aspectos, enorme. Este quadro permite, por

exemplo, não reconhecer autoridades tradicionais consideradas não gratas por razões

políticas, ainda que auferindo de legitimidade junto das suas populações. No terreno, a

entrada em vigor de tal pacote legislativo foi tudo menos pacífica.

A Constituição de 1990 marca também o início de um ciclo legislativo no domínio

da terra e dos recursos naturais extraordinariamente rico em termos de inovações

introduzidas no ordenamento jurídico moçambicano. O direito costumeiro ganha

reconhecimento ao nível da legislação da terra, de florestas e fauna bravia, do ambiente

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87

e do ordenamento territorial. Um ponto forte foi a atribuição de um papel de notória

relevância às comunidades locais, a quem foi legalmente conferida a legitimidade de

fazerem uso das suas normas e práticas costumeiras, e a quem foram conferidos especiais

direitos de acesso à terra e aos demais recursos naturais. A consulta pública, por exemplo,

ferramenta amplamente consagrada na legislação da terra, florestas e fauna bravia e

ambiente, tornou-se, assim, uma salvaguarda, respeito e materialização dos direitos

comunitários e, consequentemente, de atribuição de uma maior espaço para a realização

de uma justiça mais plural.

O princípio do pluralismo jurídico foi conquistando gradualmente espaço até à

sua expressa consagração constitucional no ano de 2004. A sua concepção é, ao

contrário daquele que vigorou em tempo colonial, horizontal, reconhecendo-se espaço

para todas as ordens normativas e instâncias de resolução de conflitos, desde que com

respeito pela própria Constituição.

Contudo, no actual contexto, entre o legislado e a prática coloca-se actualmente

um fosso traduzido no levantamento de imensos e complexos obstáculos à

implementação do disposto no quadro jurídico-legal, designadamente no que diz

respeito ao respeito pelos direitos das comunidades locais, em grande parte de base

costumeira. O processo de participação pública, por exemplo, que deveria servir para

garantir uma legitimação ampla e consensual, bem como para levantar a existência de

direitos adquiridos, consuetudinariamente reconhecidos e, depois da aprovação da Lei de

Terras e legislação subsequente, legalmente reconhecidos, para a sua consideração e

capitalização no processo de tomada de decisões por parte dos órgãos competentes da

Administração Pública, é, não poucas vezes, recheado de incorrecções e/ou

manipulações, desvirtuando-se de modo a acomodar interesses menos bem-

intencionados. Para o efeito, vimos surgir consultas forjadas com propósito de forjar uma

suposta vontade comunitária e assim alcançar uma falsa legitimidade para levar a cabo

determinada actividade.

Page 88: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

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Volume III, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo,

1997.

• SANTOS, Boaventura Sousa, Direito e Cooperação, Excertos de uma palestra

efectuada na Sessão Inaugural da Associação Universitária da Cooperação e

Estudos sobre Direitos Africanos, em 24 de Junho de 1982, na Faculdade de

Page 92: Carlos Serra Trabalho Pluralismo Juridico 1

92

Direito de Lisboa, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do 25

de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1980.

• SANTOS, Boaventura Sousa/SILVA, Teresa Cruz, Moçambique e a Reinvenção

Social, Direito em Sociedade, n.º 1, Centro de Formação Jurídica e Judiciária,

Maputo, 2004.

• SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930,

Volume II, Livraria Universitária, Maputo, 2000.

• SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada,

Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005.

• SERRA, Carlos/CUNHA, Fernando, Manual de Direito do Ambiente, 2.ª Edição,

Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2008.

• SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina

Colonial, Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n°s

33-34, t. II, 2004 – 2005, pp. 899 – 921.

• SILVA, Cristina Nogueira da, Modelos Coloniais no Século XIX (França, Portugal e

Espanha), In. E-legal History Review, n.º 7, 2009.

• TANNER, Chiristopher, Comments on the Implications of the Decentralisation

Conference, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da

Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da

Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária,

Maputo, 2007.

• TANNER, Christopher, A Relação entre a Posse de Terra e os Recursos Naturais,

documento apresentado na 3.ª Conferência Nacional sobre o Maneio

Comunitário dos Recursos Naturais, 21 de Julho de 2004, Maputo, 2004.

• TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal de acesso aos recursos

naturais em Moçambique: o impacto das novas legislação e das consultas

comunitárias sobre as condições de vida locais, série Sociedade e Justiça, Volume

1, Fevereiro de 2009.

• TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, Colecção

Estudos sobre África, n.º 5, Escher, Lisboa.

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93

• TRINDADE. João Carlos. Constituição e Reforma da Justiça, In. Desafios para

Moçambique – 2010 (Organização de Luís de Brito/Carlos Nuno Castel-

Branco/Sérgio Chichava/António Francisco), IESE, Maputo, 2009.

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LISTA DE LEGISLAÇÃO CONSULTADA LISTA DE LEGISLAÇÃO CONSULTADA LISTA DE LEGISLAÇÃO CONSULTADA LISTA DE LEGISLAÇÃO CONSULTADA (Por ordem alfabética)(Por ordem alfabética)(Por ordem alfabética)(Por ordem alfabética)

• Constituição da República de Moçambique (1990);

• Constituição da República de Moçambique (2004);

• Constituição da República Popular de Moçambique (1975);

• Decreto n.º 11/2005, de 10 de Junho (Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do Estado);

• Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926 (que promulgou o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique);

• Decreto n.º 12/2002, de 6 de Junho (Aprova o Regulamento da Lei de Florestas e Fauna Bravia);

• Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho (Aprova as formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias);

• Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto (Aprova o Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado);

• Decreto n.º 23/2008, de 1 de Julho (Aprova o Regulamento da Lei do Ordenamento do Território);

• Decreto n.º 40 040, de 24 de Fevereiro de 1955 (Estabelece preceitos destinados a

proteger nas províncias ultramarinas o solo, a flora e a fauna);

• Decreto n.º 7/78, de 18 de Abril (Regulamenta as modalidades de caça a serem

praticadas na República Popular de Moçambique);

• Diploma Ministerial n.º 100/2008, de 24 de Outubro (Aprova o Regulamento e

Distintivos das Autoridades Tradicionais);

• Diploma Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, do Ministério de Administração Estatal (Aprova o Regulamento do Decreto n.º 15/2000);

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• Diploma Ministerial n.º 67/2009, de 17 de Abril (Aprova o Guião sobre a

organização e funcionamento dos Conselhos Locais);

• Diploma Ministerial n.º 80/2004, de 14 de Maio (Aprova o Regulamento de Articulação dos Órgãos das Autarquias Locais com as Autoridades Comunitárias);

• Diploma Ministerial n.º 93/2005, de 4 de Maio, emitido em conjunto pelos Ministérios da Agricultura, do Turismo e das Finanças (Aprova os mecanismos de canalização e utilização dos vinte por cento das taxas florestais e faunísticas);

• Lei n.º 10/92, de 6 de Maio. (Lei da Organização Judiciária de 1992);

• Lei n.º 10/99, de 7 de Julho (Lei de Florestas e Fauna Bravia);

• Lei n.º 12/78, de 2 de Dezembro (Lei da Organização Judiciária de 1978);

• Lei n.º 16/91, de 3 de Agosto (Lei de Águas);

• Lei n.º 19/2007, de 18 de Julho (Lei do Ordenamento do Território);

• Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro (Nova Lei de Terras);

• Lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro (aprova o quadro jurídico para a implementação das Autarquias Locais);

• Lei n.º 20/97, de 1 de Outubro (Lei do Ambiente);

• Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas);

• Lei n.º 4/92, de 6 de Maio (Cria os Tribunais Comunitários);

• Lei n.º 6/79, de 3 de Julho (Lei de Terras de 1979);

• Lei n.º 8/2003, de 19 de Maio (Lei dos Órgãos Locais do Estado);

• Portaria n.º 117/78, de 16 de Maio (Determina que sejam as constantes as

modalidades de caça a serem praticadas na República Popular de Moçambique);

• Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto (Política Nacional do Ambiente);

• Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro (Política de Conservação e a Estratégia para a sua Implementação);

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• Resolução n.º 8/97, de 1 de Abril (Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia).