Carlos Walter Porto Goncalves

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Da geografia s geo-grafias: um mundo em busca de novas territorialidadesCarlos Walter Porto Gonalves*

queles que j nos viam vivendo futuramente no puro universo virtual das redes, queles que diziam que o horror vivido nesse dia j tinha sido previsto pelos filmes de catstrofe, o dia 11 de setembro [de 2001] fez lembrar, em primeiro lugar, que ainda vivemos e trabalhamos em edifcios de ferro, pedra e vidro, cuja resistncia e cujo desgaste nada tm a ver com as telas ou os efeitos especiais, e que, quando desabam, desabam de fato.

Jacques Rancire

De epistemes e de territrios

L

imite entre saberes, limite entre disciplinas, limite entre pases. Por todo lado se fala que os limites j no so rgidos, que os entes j no so to claros, distintos e definidos como recomendara Ren Descartes. Cada vez mais se fala de empresas internacionais, ou transnacionais ou multinacionais, assim como se fala de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade ou multidisciplinaridade. Enfim, por todo lado so usados os prefixos inter, trans ou multi indicando que as fronteiras, sejam elas epistmicas, sociolgicas ou geogrfico-polticas, se que podemos separ-las, so mais porosas do que se acreditava. Com isso entra em crise toda uma tradio inventada pelos europeus desde a Renascena com Ren Descartes, Galileu Galilei, Francis Bacon, Isaac Newton e Jean Bodin entre outros nomes em torno dos quais se constituiu a base do conhecimento cientfico moderno. Conhecimento moderno esse, diga-se de passagem, que se quer um saber universal e no um saber histrica e geograficamente situado, isto , europeu. Diramos que esconder a provnciaGegrafo e Doutor em Cincias pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor do Programa de Ps-graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense; Autor de vrios artigos e livros entre os mais recentes Geo-grafas: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentabilidad y Amaznia, Amaznias.*

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geogrfica de sua origem a primeira condio para se apresentar como um saber que se quer universal, isto , aquele que parece no ser de lugar algum, atpico, que, assim, surge negando os mltiplos saberes locais e regionais construdos a partir de mltiplas histrias locais e regionais que se desenvolveram at 1492 quando se inicia, ento, aquilo que o filsofo poltico estadunidense Immanuel Wallerstein designar sistema-mundo. Assim, o pensamento moderno europeu coloca-se a si prprio como um saber superior no mesmo movimento que qualifica todos os outros saberes como locais, regionais ou provincianos. Sabemos como esse movimento de colonizao do conhecimento pelo pensamento moderno europeu se constri numa dupla configurao territorial: uma interna aos estados territoriais nascentes, na medida que o outro, interno, qualificado como provinciano, regional ou que sequer fala uma lngua tendo, no mximo, um dialeto; e outra externa na medida que a constituio da unidade territorial interna se d seja pela expulso do outros dos mouros no caso dos dois primeiros estados territoriais modernos (Portugal e Espanha) ou com o encontro com o outro externo que vai perder suas diferentes qualidades (astecas, maias, guaranis, bantos, ashantis ...) para serem chamados, pelos europeus, por um nome geral indgena ou aborgene que os unifica a todos. ali, todavia, que o europeu se descobre branco para se distinguir do ndio e, depois, se descobre europeu se distinguindo da Amrica inaugurando o chamado novo mundo e, assim, tambm se distinguindo do mundo muulmano. As regies geo-culturais do mundo comeam a se desenhar com suas assimetrias caractersticas civilizado e brbaro (no esqueamos que o brbaro de ontem a Europa no-romana, bem pode ser o civilizado de hoje). O pensamento moderno europeu pouco a pouco vai construir uma geografia imaginria onde as diferentes qualidades dos diferentes povos e culturas, que 1492 ps em assimtrica relao, sero dispostas num continuum linear que vai da natureza cultura, ou melhor, da Amrica e da frica, onde esto os povos primitivos mais prximos da natureza, Europa, onde est a cultura, a civilizao. E dominar a natureza, sabemos, o fundamento da civilizao moderna construda pelos europeus sua imagem e semelhana e, para isso, os povos a serem dominados foram assimilados natureza comeando por consider-los selvagens que significa, rigorosamente, os que so da selva, logo, aqueles que devem ser dominados pela cultura, pelo homem (europeu, burgus, branco e masculino). V-se, logo, que a inveno do europeu civilizado , ao mesmo tempo, a inveno do selvagem e, assim, a inveno da modernidade inseparvel da inveno da colonialidade. El xito de la ciencia dio al Estado moderno um modelo legitimador en la toma de decisiones racionales. El descubrimiento de los hechos verdadeiros llevaba a tomar las acciones correctas. En otras palabras, lo Verdadero conduca al Bien. La racionalidad se convirti en sinnimo de 218

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racionalidad cientfica y el conocimiento fue sinnimo de conocimiento cientfico. Otras formas de conocimiento e otras apelaciones a la racionalidad, como el conocimiento prctico agrcola, medicinal o artesanal, fueron considerados de segunda categora (Funtowicz e de Marchi, 2000: 58). A universalidade pretendida pelo pensamento moderno europeu se fez abdicando do espao geogrfico concreto de cada dia, lugar da co-existncia do diverso, onde co-habitam diferentes qualidades animais, plantas, terra, gua, homens e mulheres de carne e osso com as suas desigualdades sociais e suas diferenas culturais e individuais de humor e de paixes para se abstrair matemtica onde essas qualidades so postas em suspenso, assim como o pensamento se separa da matria. R. D. Laing quem nos lembra que ... essa situao provm de algo que ocorreu na conscincia europia na poca de Galileu e Giordano Bruno. Esses dois homens so eptonos de dois paradigmas Bruno, torturado e queimado na fogueira por afirmar que havia um nmero infinito de mundos; e Galileu, dizendo que o mtodo cientfico consistia em estudar este mundo como se nele no houvesse conscincia ou criaturas vivas. Galileu chegou a afirmar que somente os fenmenos quantificveis eram admitidos no domnio da cincia. Ele disse: Aquilo que no pode ser medido e quantificado no cientfico; e na cincia psgalilaica isso passou a significar: o que no pode ser quantificado no real. Esse foi o mais profundo corrompimento da concepo grega da natureza como physis, que algo vivo, sempre em transformao e no divorciado de ns. O programa de Galileu nos oferece um mundo morto, desvinculado da viso, da audio, do paladar, do tato e do olfato e junto com isso se relegou a sensibilidade tica e a esttica, os valores, a qualidade, a alma, a conscincia, o esprito. A experincia foi lanada para fora do mbito do discurso cientfico. certo que nada modificou tanto o nosso mundo nos ltimos quatrocentos anos quanto o audacioso programa de Galileu (R.D. Laing citado por Capra, 1988: 108-9). Esse pensamento moderno europeu, hoje em crise, na sua busca de uma verdade objetiva distinguiu objetos claros e definidos, retirou o sujeito1 da relao que, assim, de fora, pelo mtodo cientfico, isto , racional, desvendaria os mistrios da natureza para melhor domin-la. Assim, se ergue todo um conjunto de categorias dualistas caractersticas do pensamento moderno europeu natureza e cultura; sujeito e objeto; matria e esprito; corpo e mente; razo e emoo; indivduo e sociedade; ser e pensamento que, sobretudo depois de Heisenberg, com seu princpio de incerteza2, j no se sustenta e se v obrigado a reconhecer que na Physis alm de leis da natureza, ordem e causalidade/necessidade h, tambm, indeterminao, acaso e caos; que, alm do conhecimento cientfico, existem outras formas de conhecimento e, mesmo, que 219

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o conhecimento est, no mnimo, inscrito na vida (bios)3 e, mais ainda, que esse pensamento atomstico-individualista (Gonalves, 1989) que opera por dicotomias mais caracterstico desse pensamento moderno europeu do que do pensamento selvagem, aqui para ficarmos com a expresso de Lvy-Strauss (Lvy-Strauss, 1989). O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento no dualista, um conhecimento que se funda na superao das distines to familiares e bvias que at h pouco considervamos insubstituveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, matria/mente, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa. Este relativo colapso das distines dicotmicas repercute-se nas disciplinas cientficas que sobre elas se fundaram. (de Sousa Santos, 1996: 39-40). Explicitemos uma tese central que at aqui est subjacente: os paradigmas no caem do cu. Os paradigmas so institudos por sujeitos social, histrica e geograficamente situados e, deste modo, a crise desse paradigma , tambm, a crise da sociedade e dos sujeitos que o instituram (Gonalves, 2001b). No nos surpreendamos, portanto, quando vemos emergir novos paradigmas e junto com eles novos sujeitos que reivindicam um lugar no mundo. Ou, dito de outra forma, esses sujeitos que muitos chamam novos, embora no o sejam tanto4, pem em debate outras questes, outras relaes, ele(a)s que tiveram que se forjar em situaes assimtricas de poder mas que nem por isso se anularam e, mais do que resistir, R-Existiram, se reinventaram na sua diferena, assim como o europeu , tambm, uma inveno na diferena embora na condio de polo dominante no sistema-mundo. Afinal, desde que se deu esse extraordinrio encontro moderno-colonial (1492), Etienne la Botie (Botie, 1982) diria mal-encontro, emergiram culturas e povos diferentes (Baraka) mostrando-nos um mundo muito mais diverso do que faz crer o olhar colonial eurocntrico ou que v mais a lgica do capital do que as lgicas dos que a ele resistem. Hoje possvel defrontarmo-nos com a emergncia de matrizes de racionalidades outras tecidas a partir de outros modos de agir, pensar e sentir, seja na Amrica Latina, na frica, na sia, entre segmentos sociais no-ocidentais nos Estados Unidos, no Canad e at mesmo na Europa, com diversas populaes indgenas e de afrodescendentes, que clamam por se afirmar diante de um mundo que se acreditou superior porque baseado num conhecimento cientfico universal (imperial) que colonizou o pensamento cientfico em todo o mundo desqualificando outras formas de conhecimento. interessante observar que grande parte desse encontro (mal-encontro) venha a ser questionado a partir de uma categoria a natureza da qual as cincias humanas e sociais ficaram apartadas e as cincias naturais a dividiram e a dissecaram disponibilizando suas descobertas ao capital para que melhor 220

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exercesse sua dominao. interessante observar que a descoberta das leis da natureza constitua-se num fundamento objetivo que legitimava a sua dominao e, deste modo, a ordem social (moderna) que da emanava era uma ordem natural porque emanada das leis da natureza. Deixar fora a natureza tem enormes e graves conseqncias para as cincias sociais, para no dizer para a sociedade mesma. Afinal, significou deixar de fora todo um conjunto de lugares, de regies e de seus povos e culturas que se forjaram a partir de mltiplas matrizes de racionalidade contribuindo, assim, para a idia de que havia uma nica matriz de racionalidade a europia que resumiria no universo de significaes que co-mandam suas prticas todas as contradies do mundo moderno e contemporneo (liberalismo-socialismo, por exemplo). Assim, a relao capital-trabalho passou a comandar a dinmica societria subestimando o significado da natureza e a importncia dos povos que construram suas prticas e significaes numa relao com-a-natureza e nocontra-a-natureza (Serge Moscovici), como a sociedade europia. Na economia, esse debate, por exemplo, se deu desqualificando os pensadores fisiocratas porque defenderiam no s que a natureza fonte de riqueza mas, tambm, porque estariam Quesnay, Turgot e Petit defendendo as classes ligadas agricultura que, por seu turno, estariam condenadas ao desaparecimento em nome do progresso da indstria e da cincia-tcnica (e da burguesia industrial emergente, se diz menos). A natureza volta hoje a ser fonte de intenso debate que pe em xeque mais esse par de categoria dualista do moderno pensamento europeu, qual seja, a dicotomia natureza e cultura. A diviso do trabalho cientfico entre as cincias naturais e as cincias humanas fica suspensa quando a mudana climtica global deixa de ser um tema exclusivo de gegrafos, fsicos e meteorologistas e se torna objeto de debate poltico pondo em xeque a atual matriz energtica fossilista vis a vis o futuro da humanidade e do planeta. Acrescente-se, ainda, o enorme interesse que instituies de pesquisa de ponta, como a NASA, vm manifestando pelo elevadssimo ndice de acerto na previso do tempo meteorolgico que fazem peritos das populaes tradicionais do serto semi-rido do nordeste brasileiro, peritos esses que nunca entraram numa escola formal. A diversidade biolgica torna-se um tema no s biolgico, quase sempre destinado aos grandes grupos empresariais mas, tambm, tema de interesse daquelas populaes que detm conhecimentos preciosos sobre espcies animais e vegetais e que hoje disputam os direitos de propriedade intelectual. Como se v ficam indefinidos no s os limites entre as cincias mas, tambm, entre diferentes modos de conhecer, j no sendo possvel traar com tanta certeza o limite entre quem sabe e quem no sabe. E aqui, sabemos, aqueles que at admitem que j no so to rgidos os limites entre as disciplinas cientficas tal e qual foram sendo institudos no 221

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interior do paradigma hoje em crise; que at admitem que os limites dos estados territoriais j no so to absolutos como at aqui o moderno pensamento poltico europeu admitiu, com sua idia de soberania absoluta, correlata de espao absoluto, claro e distinto, conforme veremos adiante; no admitem com a mesma nfase que que no devem ser to rgidas as linhas demarcatrias, os limites, entre as diferentes matrizes de racionalidade, que precisam mais dialogar do que serem, como at aqui, hierarquizadas e tratadas como inferiores e incapazes de um pensamento superior (seja l o que isso signifique), como se fossem natureza a ser dominada. interessante observar que a emergncia desses outros sujeitos sociais vindos de tantos lugares e regies do mundo se d numa mesma poca em que o prprio pensamento europeu redescobre, como se fra um renascer, filsofos prsocrticos5 como Herclito, Demcrito, Epicuro, Anaximandro e tantos outros. A lembrana aqui fundamental no s pela proximidade que esses pensadores tm com essas outras matrizes de racionalidade hoje emergentes que co-habitam seus espaos com os deuses, que no distinguem esprito de matria, natureza de cultura, pensamento de ser (Mangabeira, 2001). Esses pensadores pr-socrticos no construram sistemas filosficos e doutrinrios, como ser caracterstico do bom filsofo a partir da crise da democracia grega. Ao contrrio, legaram-nos idias sob a forma de aforismos e, desse modo, seus pensamentos estavam abertos para que o interlocutor com eles interagisse. Uma dialgica era constituinte desses pensamentos/desses pensadores e da valorizarem tanto a arte da argumentao. H uma outra razo, ainda, para essa aproximao entre os chamados pensadores pr-socrticos e essas mltiplas matrizes de racionalidade que emergem cena poltica atual. Trata-se de considerar que eles comparecem tambm ao debate depois de toda a tentativa de expuls-los da plis, retirar-lhes o direito a um lugar no mundo. Explico-me: que foi na crise da democracia grega6 que uma determinada razo comeou a querer se afirmar no a partir da plis, mas sobre a plis distinguindo a razo verdadeira, o saber filosfico, do saber mtico ou religioso. Aqui o logos, a razo, deve ser conduzida com mtodo e se v como superior a arte da argumentao, retrica. A partir daqui como se a sabedoria (sofia) deixasse de ter amigos (filia) aqui na terra e s nos chegasse aps os esforos de algum sbio isolado, livre do trabalho manual e da vida mundana. Assim, a verdade, a razo7, no mais habitaria entre os homens e mulheres mortais, como na gora, lugar da democracia, mas, sim, seria trazida de fora como que se fra ungida por um sbio a partir dos cus (Theo-ria)8. Ali se tentava expulsar outras falas, outras razes, para que A Razo se impusesse soberana. Houve, at, um Rei-filsofo que quis impor a lei verdadeira, porque racionalmente constituda, como uma verdade exterior sociedade. At mesmo o nmero de habitantes da plis foi racionalmente calculado para que a cidade estivesse de acordo com a razo. com a tentativa dessa Razo Imperial de se 222

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impor que o ser sofista e ser retrico passam ser vistos de modo negativo, apesar de sofista derivar de sabedoria (sofia) e a retrica ser a arte da argumentao, arte do dilogo. So esses novos brbaros, como diria Nietzche, zapatistas, seringueiros, indgenas, descapacitados, mulheres, ecologistas, migrantes, semdocumentos, homossexuais, camponeses, negros, hip hopers, operrios e jovens que voltam cena poltica, que recolocam a gora, isto , o lugar da poltica novamente em debate. Mas para que isso se d, claro, pressupe-se que os interlocutores sejam a priori considerados qualificados como para o debate, que tenham o direito fala, gora e, para isso, preciso admitir-se que os outros podem ter razo, mesmo sendo outros, e que a razo habita esse mundo, que ela no vem de fora, mas, ao contrrio, que ela se instaura entre os seres mortais que povoam a physis. Cornelius Castoriadis (Castoriadis, 1982) insistia que um importante legado que os antigos gregos nos haviam deixado reside na idia de que so os prprios homens e mulheres que criam seu prprio mundo e nesse magma de significaes a razo adquire um lugar destacado. Registre-se que a razo aqui , sempre, passvel de crtica e, por isso e para isso, razo e gora, enquanto locus desse debate, se pressupem. Nenhuma razo fundamental est livre da crtica racional, at mesmo a razo do Rei-filsofo. Eis uma questo que ora se coloca at mesmo pelos fundamentalismos de vrias ordens que nos ameaam de todos os lados e a todos (de Mercado, Islmicos, Destinos Manifestos e quetais). Numa poca, como a nossa, em que todos os limites esto sendo postos em causa preciso recuperar a idia que limite emana de plis, de onde vem a poltica, como nos ensinam os antigos gregos. que plis significava originariamente no a cidade como nos ensinaram mas, sim, o limite, o muro que separa a cidade do campo. S num segundo momento plis passou a designar a cidade, ou seja, o que est contido nos muros, nos limites. Mas no olvidemos que poltica exatamente a arte de definir os limitesix e, assim, para os gregos, polis e poltica se pressupem, assim como cidade e cidadania.

Os Estados territoriais Desde 1648, com a Paz de Westflia, que uma ordem internacional vem sendo instituda consagrando o Estado Territorial como forma geogrfica de organizao das sociedades modernas e contemporneas. Diga-se, de passagem, que poca ainda no era possvel falar de Estado Nacional posto que o soberano era o Monarca que se afirmava sobre um espao delimitado por fronteiras forjadas por meio de alianas (casamentos) e guerras. Soberano era o Prncipe o Estado que reinava sobre um territrio. poca ainda se acreditava que os Reis eram Reis porque ungidos pelos Deuses (todos com maisculas) e, at mesmo, porque tinham sangue azul. O Estado Territorial Moderno, essa inveno 223

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genuinamente europia e constitutiva do mundo moderno-colonial, tem essa marca originria de um Estado que nasce como um poderoso instrumento de controle da multido (Negri e Hardt, 2001), conforme veremos com mais detalhes adiante. Destaquemos, por ora, que essa nova forma de organizao do espao instituda com o Estado Territorial Moderno no por acaso recupera o Direito Romano e a idia de que os prncipes e os reis eram por si legibus solutus, isto , isentos de restries legais (Anderson, 1984: 27) e, assim, a Razo de Estado se coloca acima dos homens e mulheres comuns, e um direito que se quer universal, o Romano, se coloca acima dos direitos consuetudinrios das gentes. Aqui temos a Poltica sem a gora, a Cidade sem Cidadania, A Razo de Estado contra os de baixo. Voltaremos a isso mais adiante. Destaque-se, ainda, que 1648 um Tratado entre brancos europeus que esto pactuando entre si, em Westflia, uma reordenao jurdica de uma ordem internacional que mudara radicalmente com a inundao de metais preciosos que fez explodir a ordem mercantil pelo mundo com a explorao da natureza ouro, prata, especiarias vrias, assim como o acar entre outras matrias por meio da servido indgena e da escravido dos negros vinda da Amrica, da frica e da sia. Este era o Novo Mundo. Os princpios de Westflia esto ainda hoje presentes consagrando uma moderno-colonialidade onde a Europa, de um lado, mantinha a Amrica e grande parte da frica ao sul do Saara sob seu domnio colonial e, de outro lado, o norte da frica e um Oriente, que a Europa no lograra dominar, que abrangia o resto do Mundo Antigo (Oriente Prximo, Oriente Mdio e Extremo Oriente), cujos limites, diga-se de passagem, passaram a constituir a Europa, sempre preocupada com a ameaa do Grande Turco. No difcil ver aqui a verdadeira obsesso do novo que vai caracterizar a Europa (notas 4 e 6). no interior desse novo containner de poder (Giddens, 1989) os Estados Territoriais Modernos que as lutas sociais por liberdade, igualdade e fraternidade tero que se haver nesse mundo moderno-colonial. Essa ordem geogrfica e poltica instituda pelos protagonistas que se fazem a si prprios por meio dos Estados Territoriais Nacionais ganha seus contornos mais avanados recentemente com a criao da Organizao das Naes Unidas aps a 2a Guerra Mundial. que o nacionalismo expansionista imperialista havia levado o mundo a duas guerras em cerca de 20 anos (1914-1918 e 1939-1945) envolvendo diretamente os territrios dos Estados Nacionais situados no polo dominante da ordem moderno-colonial e, somente por isso, se entende que tenham sido chamadas Guerras Mundiais. A partir daqui se esboa a configurao de uma nova territorialidade que Negri e Hardt chamaro de Imprio, que no reconhece nenhuma externalidade, e se quer, portanto, trans-nacional, global e planetria. A partir de ento passamos a uma ordem internacional instvel convivncia contraditria entre protagonistas que se fazem a si mesmos por meio de distintos regimes de produo territoriais de poder como os Estados Nacionais, o Imperialismo e o Imprio instaurando um verdadeiro caos sistmico 224

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Trata-se de uma situao de falta total, aparentemente irremedivel, de organizao. Trata-se de uma situao que surge por haver uma escalada do conflito para alm do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendncias contrrias, ou porque um novo conjunto de regras e normas de comportamento imposto ou brota um conjunto mais antigo de regras e normas, sem anul-lo, ou por uma combinao dessas duas circunstncias. medida que aumenta o caos sistmico, a demanda de ordem a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! tende a se generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer Estado ou grupo de Estados que esteja em condies de atender a essa demanda sistmica de ordem tem a oportunidade de se tornar mundialmente hegemnico (Arrighi, 1994: 30). Podemos ver agora que a configurao geopoltica da chamada Guerra Fria, conformando um determinado regime de produo de poder reduzido ao binmio Capitalismo e Socialismo ou Estado e Mercado (mais uma par daquelas categorias dualistas que to bem caracterizam o pensamento europeu ocidental), nem de longe conseguia dar conta das mltiplas manifestaes de desejo de liberdade, justia e igualdade que veremos explodir e que vm cena poltica enquanto desplazados, refugiados, migrantes, estes cada vez em maior nmero, ou enquanto movimentos sociais que clamam por demarcao de territrios (camponeses, indgenas, comunidades negras, entre outros); que apontam para outras formas de re-ligao (re-ligare) tnico e/ou religiosa; outros que apontam para as desigualdades sociais, de gnero ou, ainda, todo o quadro de dilapidao das condies naturais da existncia postas em risco por um poderoso sistema cientfico-tcnico-informacional moderno-colonial que j mereceu de alguns tericos, como U. Beck (Beck, 1992), a caracterizao de sociedade de risco10. Assim, diante do que Arrighi chamou de caos sistmico preciso ver mais do que um Estado ou grupo de estados que venha a exercer a hegemonia e, sim, ver que qualquer configurao territorial que venha a se estabelecer enquanto uma determinada ordem sistmica ser instituda por protagonistas histrica e geograficamente situados que so esses que esto buscando re-significar o mundo e, assim, toda a questo dos limites que est posta. E limites, j o vimos, a prpria natureza da poltica. Vimos como, para os gregos, Cidade e Cidadania ou Polis e Poltica no se excluem assim como Esprito e Matria, e que so muito menos ntidos do que se acreditara os limites que separam o logos, a razo, da emoo, da paixo. Deste modo, no s a diviso do trabalho cientfico as diversas disciplinas, por exemplo est posta em xeque mas, tambm, a relao do conhecimento cientfico com outras formas de conhecimento e, por conseqncia, com aqueles que so portadores desses outros conhecimentos, com todas as implicaes social e poltica que essa questo nos coloca. 225

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So novos territrios epistmicos que esto tendo que ser reinventados juntamente com os novos territrios de existncia material, enfim, so novas formas de significar nosso estar-no-mundo, de grafar a terra, de inventar novas territorialidades, enfim de geo-grafar.

Recuperando o espao geogrfico para uma teoria social crtica... a formao dos discursos e a genealogia do saber devem ser analisadas a partir no dos tipos de conscincia, das modalidades da percepo ou das formas de ideologia, mas das tticas e estratgias de poder. Tticas e estratgias que se desdobram atravs das implantaes, das distribuies, dos recortes, dos controles dos territrios, das organizaes de domnios que poderiam constituir uma espcie de geopoltica, por onde minhas preocupaes encontrariam os mtodos de vocs (gegrafos). H um tema que gostaria de estudar nos prximos anos: o exrcito como matriz de organizao e de saber a necessidade de estudar a fortaleza, a campanha, o movimento, a colnia, o territrio. A geografia deve estar bem no centro das coisas de que me ocupo Michel Foucault H na tradio hegemnica do pensamento europeu ocidental uma supremacia do tempo em relao ao espao, sobretudo na moderno-colonialidade. O progresso , quase sempre, algo que se d enquanto mudana qualitativa no tempo, da poder dizer-se que aquele povo ou aquela regio atrasado/a ou adiantado/a, como se houvesse um relgio ou, mais precisamente, um cronmetro cultural. No s a Europa ocupa o panteo da civilizao diante dos outros povos e das outras regies que vivem mais perto do estado de natureza, no continuum j aludido, como, tambm, o progresso est num plo ativo a Europa Norte Ocidental, os Estados Unidos, o Japo de onde se expandir, ao longo do tempo, para os outros lugares que, assim, so passivos. At mesmo a utopia um no-lugar, ou melhor, um lugar imaginrio que se situa num outro tempo melhor que o nosso tempo, longe do nosso espao do aqui-e-agora. O time is money, uma das mximas centrais de uma sociedade mercantil que se institui a partir da Renascena s mais uma das indicaes da sobrevalorizao, nesta sociedade, do tempo sobre o espao. Afinal, no se diz space is money, muito embora saibamos que no sendo a riqueza redutvel sua expresso simblica o dinheiro a constituio da sociedade mercantil europia implicou, desde o incio, a conexo com outros mundos de vida de onde provinha a matria tangvel (ouro e prata, por exemplo). A produtividade, outro desses categoremas que constitui o magma de significaes do mundo moderno-colonial , tambm, temporal, pois indica um 226

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quantum produzido numa determinada unidade de tempo, assim como a rentabilidade s pode ser apreciada num marco temporal. Considere-se, ainda, a velocidade, essa verdadeira obsesso do capitalismo moderno-colonial, e l veremos, tambm, a busca, a todo custo, da supresso do espao pelo tempo. Afinal, se tanto mais veloz quanto mais espao percorremos na mesma unidade de tempo quilmetro/hora, metro/segundo. nesse contexto de significaes que faz sentido chamar algum, desqualificando-o, de atrasado ou lento. At mesmo a coordenada geogrfica a latitude e a longitude que enquadra o espao o faz por meio do tempo, isto , em grau, minuto e segundo11. Consideremos, de passagem, que estabelecer o parmetro do tempo do mundo pelo meridiano de Greenwich um marco de afirmao de uma Europa Norte Ocidental que, assim, se distingue, sob o manto da Cincia, de uma outra Europa, a Mediterrnea Ibrico-genovesa, cuja hegemonia se afirmou, sob a bula de um Papa de Roma, dividindo o mundo pelo meridiano de Tordesilhas. Sempre um meridiano marcando o mundo, geografando. A partir de ento o relgio12, mquina do tempo e, segundo Lewis Mumford (Mumford, 1973), a primeira mquina verdadeiramente moderna, consagra a hegemonia do tempo como categoria hegemnica sob o ponto de vista do plo hegemnico da modernocolonialidade. Nem mesmo um pensador marxista da estatura de L. Althusser escapou a essa tradio que desqualifica o espao: O recurso s metforas espaciais, de que [...] o presente texto faz uso coloca um problema terico: o das suas condies de existncia em um discurso com pretenso cientfica. Este problema pode ser exposto da maneira seguinte: por que um certo tipo de discurso requer necessariamente o uso de metforas retiradas de discursos no cientficos? (Foucault, 1976). Assim, o espao como o aqui-e-agora e, platonicamente, locus das imperfeies mundanas, parece nos condicionar e, assim, nos impedir de ser livres. A idia da liberdade como um pssaro voando mais uma dessas imagens fortes que privilegia o tempo em detrimento do espao diz-se, o tempo voa, muito embora sejamos obrigados a lembrar, com Imanuel Kant, que o vo do pssaro, por mais que implique o afastamento do espao concreto do dia a dia com suas coaes, s possvel pelo atrito do pssaro com o ar. No h liberdade sem atrito. No se escapa da materialidade voando. Associe-se a essa imagem uma outra, igualmente forte na tradio europia ocidental, do intelectual que deveria se retirar da vida mundana o espao nosso de cada dia- para, pelo pensamento livre de qualquer coao, aceder verdade. So enormes os efeitos que da advm como a sobrevalorizao do trabalho intelectual, abstrato, em relao ao trabalho braal, concreto, assim como toda 227

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uma topologia inscrita no discurso poltico entre o superior e o inferior, entre os de baixo e os de cima, entre aqueles que vem longe porque vem do alto (panopticum) e os que tm viso curta porque no tm horizontes amplos. O filsofo Michel Foucault teve o mrito de recuperar o significado do espao e o fez no como uma categoria antagnica ao tempo. ele quem nos diz que Seria necessrio fazer uma crtica dessa desqualificao do espao que vem reinando h vrias geraes. [...]. O espao era o que estava morto, fixo, no dialtico, imvel. Em compensao o tempo era rico, fecundo, vivo, dialtico. A utilizao de termos espaciais tem um qu de anti-histria para todos que confundem a histria com as velhas formas de evoluo, da continuidade viva, do desenvolvimento orgnico, do progresso da conscincia ou do projeto da existncia. Se algum falasse de espao, porque era contra o tempo. porque negava a histria, como diziam os tolos, porque era tecnocrata. Eles no compreendem que, na demarcao das implantaes, das delimitaes, dos recortes de objetos, das classificaes, das organizaes de domnios, o que se fazia aflorar eram processos histricos certamente de poder. A descrio espacializante dos fatos discursivos desemboca na anlise dos efeitos de poder que lhe esto ligados (Foucault, 1979: 158-9). Eis o cerne da questo captado por Foucault a relao ntima entre espao e poder que j havamos adiantado. E aqui toda a questo do poder se revela na medida que as delimitaes, os recortes de objetos, as classificaes, as organizaes de domnios sendo procedimentos de poder afirmam o poder ainda mais quando a descrio espacializante dos fatos discursivos [que nos proporcionaria] anlise dos efeitos de poder que lhe esto ligados no considerada, como nos disse acima Foucault. A geografia foi um desses saberes prticos que renasceu na constituio do mundo moderno-colonial antes mesmo de a Geografia se constituir como um saber com pretenses cientficas no sculo XIX13.A palavra gegrafo aparece em 1537 para designar o funcionrio do Rei fazer mapa, ou seja, aquele especialista em re-presentar o espao, em delimitar as fronteiras para o Estado Territorial nascente. No olvidemos que ao mesmo tempo que o espao se torna fundamental para o controle por parte do Estado Absolutista nascente, exatamente por isso, se coloca muito mais como uma questo prtica, de procedimentos de controle, do que de interesse terico. O espao, como o poder absoluto, no est em discusso. A perspectiva, outro saber que se desenvolve a partir da Renascena como olhar matemtico, se quer, por isso, objetiva. Todavia, perspectiva , paradoxalmente, olhar a partir de um ponto de vista e, com isso, trs desde a 228

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origem um sujeito que observa que, assim, se esconde por trs da objetividade da abstrao matemtica. Mais tarde, com a ajuda da estatstica (staat + istik, do alemo) cincia de estado, os gegrafos se encarregaro de proporcionar as condies para a organizao do espao14 (amnagement du territoire, dizem os franceses) para que o Estado Territorial Moderno se afirmasse (Gonalves, 1996). O espao geogrfico e o territrio se colocam, assim, como conceitos chaves para a compreenso dos complexos processos que ora pem em crise o mundo moderno-colonial at porque so conceitos que historicamente esto ligados a esse mundo que os criou. Afinal, uma das questes centrais que se apresenta nos dias de hoje diz respeito, exatamente, s novas grafias na terra, aos novos limites territoriais e, como a definio de limites a prpria essncia da poltica, toda a questo dos protagonistas que est em jogo15. Assim, se impe, de imediato, a necessidade de des-substantivar o espao geogrfico posto que, quase sempre, visto como uma realidade objetiva exterior sociedade. A perspectiva tradicional de no considerar a geograficidade do mundo tem implicaes importantes para as cincias sociais, para no dizer para a sociedade mesma. O territrio, por exemplo, considerado como um suporte, como se fra uma base da sociedade e, como tal, algo sobre o que a sociedade se ergue que, todavia, no tem maiores implicaes sobre o devir. Seus limites fronteirios so vistos como um invlucro externo que delimita a soberania entre Estados como se esse limites externos no contivessem as marcas dos protagonistas internos que os instituram16. Ora, preciso considerar que cada sociedade , antes de tudo, um modo prprio de estar-junto (proxemia) o que implica, sempre, que toda sociedade ao se instituir enquanto tal o faz construindo o seu-espao no cabendo, pois, uma separao entre o social e o geogrfico, separao esta que, num segundo momento lgico, serve para estabelecer uma relao de causalidade seja da sociedade para o espao (sociologismo), seja do espao para a sociedade (espacismo, geografismo). O ser social indissocivel do estar. A sociedade no seu devir histrico no a-geogrfica. A expresso, por certo, causa um certo estranhamento, embora seja natural dizer-se que o espao que vivemos est impregnado de histria. como se fosse natural falar da historicidade do espao geogrfico e no de uma geograficidade da histria. Poderamos, guisa de provocao epistemolgica, afirmar que se a histria se faz geografia porque, de alguma forma, a geografia uma necessidade histrica e, assim, uma condio de sua existncia que, como tal, exerce uma coao que, aqui, deve ser tomada ao p da letra, ou seja, como algo que co-age, que age com, co-agente. O territrio no simplesmente uma substncia que contm recursos naturais e uma populao (demografia) e, assim, esto dados os elementos para constituir 229

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um Estado. O territrio uma categoria espessa que pressupe um espao geogrfico que apropriado e esse processo de apropriao territorializao enseja identidades territorialidades que esto inscritas em processos sendo, portanto, dinmicas e mutveis, materializando em cada momento uma determinada ordem, uma determinada configurao territorial, uma topologia social (Bourdieu, 1989). Estamos longe, pois, de um espao-substncia e, sim, diante de uma trade relacional territrio-territorialidade-territorializao. A sociedade se territorializa sendo o territrio sua condio de existncia material. preciso recuperar essa dimenso material sobretudo nesse momento como o que vivemos em que se d cada vez mais importncia dimenso simblica, quase sempre de modo unilateral, como se o simblico se opusesse ao material. preciso considerar aqui que a geograficidade vai alm das condies naturais, como aceito nas cincias sociais. Com certeza, a natureza faz parte da materialidade que constitui o espao geogrfico. E aqui no se admite uma distino, to cara ao pensamento dualista dicotomizante, entre o material e o simblico. Consideramos, ao contrrio, que os homens e mulheres s se apropriam daquilo que faz sentido; s se apropriam daquilo a que atribuem uma significao e, assim, toda apropriao material , ao mesmo tempo, simblica. No nos sintamos confortveis com essa observao, como se ela nos tivesse livrado de um empirismo ou de um materialismo vulgar, posto que ela nos coloca diante de enormes desafios tanto tericos como, sobretudo, polticos. Afinal, no estamos habituados a trabalhar com a complexidade da relao entre o material e o simblico e, por isso, ora optamos por um, ora por outro17. Consideremos a palavra gua que, enquanto palavra, o duplo (simblico) da (matria) gua. Embora a palavra seja fundamental para nos relacionarmos socialmente, a palavra gua enquanto tal no pode nos saciar a sede. H uma dimenso da matria que irredutvel ao simblico. Por mais que o capital financeiro, dito voltil, queira impor sua lgica simblica matemtica e abstrata ao mundo h uma materialidade que concerne produo da vida que irredutvel lgica financeira. O Oriente Mdio e, se v agora, a sia Central, so disso a maior expresso na medida que ali dormem as principais reservas mundiais de petrleo. Numa outra linguagem, talvez mais esclarecedora, h ali concentrao de energia e, portanto, concentrao de capacidade de trabalho18 como nos ensinam os fsicos. O conhecimento cientfico e a tecnologia para explorar o petrleo, como conhecimento cientfico e tecnolgico enquanto tais, no produzem o petrleo na sua materialidade. Na verdade o extrai e somente na medida que tenha o controle jurdico e poltico das jazidas e, assim, controle e mobilize o trabalho necessrio para isso e, por a, diante de toda uma territorialidade (no atual contexto, capitalista) que nos encontramos. O conhecimento acerca da molcula de carbono no produz o petrleo que, nas propores existentes nas regies indicadas, foi produzido num 230

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tempo geolgico que mineralizou matria viva fotossintetizada h milhes de anos atrs (da dizer-se recurso no-renovvel). Aqueles que detm o conhecimento e o poder econmico de explorao desta riqueza, por mais poder que detenham, e detm bem o sabemos, no tm o poder de produzir o petrleo enquanto tal, nem sua localizao, e essa tentativa de suprimir a geografia pela histria que toda a histria real e concreta na sua materialidade, na sua geograficidade. Toda essa materialidade, todavia, tem tido efeitos dramticos, como os que hoje abalam o mundo, pela centralidade que os combustveis fsseis tm no interior do atual complexo industrial e de poder. Deste modo, a geografia, ela mesma sociedade e natureza, teima em co-agir, com sua materialidade prpria. H limites, sempre vagos e imprecisos, claro, entre o material e o simblico e, por isso, sempre possvel de-signar os entes de modo diferente, dar nomes distintos, tornados igualmente (socialmente) prprios. E os nomes prprios, sabemos, so apropriaes do mundo, so invenes de mundo. Vejamos o que nos diz a respeito Ernst Cassirer: A classificao uma das caractersticas fundamentais da linguagem humana. O prprio ato de denominao depende de um processo de classificao. Dar nome a um objeto ou a uma ao eqivale a inclu-lo em certo conceito de classe. Se esta incluso fosse, de uma vez por todas, prescrita pela natureza das coisas, seria nica e uniforme. Entretanto, os nomes que ocorrem na linguagem humana no podem ser interpretados desta maneira invarivel. No se destinam a referir-se a coisas substanciais, a entidades independentes que existem por si mesmas. So antes determinados por interesses e propsitos humanos, que no so fixos nem invariveis. Nem so feitas ao acaso as classificaes que se encontram na linguagem humana; baseiam-se em certos elementos constantes, que se repetem, da nossa experincia sensorial. Sem tais repeties no haveria posio segura nem ponto de apoio para nossos conceitos lingsticos (Cassirer, 1977: 212-3). E assim vemos reaparecer a tenso constitutiva (criativa) entre o material e o simblico, entre a linguagem e certos elementos constantes, que se repetem, da nossa experincia sensorial19. O gegrafo brasileiro Milton Santos (Santos, 1996) insiste nessa indivisibilidade entre o material e o simblico dizendo que o espao geogrfico um misto, um hbrido, formado da unio indissocivel de sistemas de objetos e sistemas de aes. Os sistemas de objetos, o espao-materialidade, formam configuraes territoriais, onde a ao dos sujeitos, ao racional ou no, vem instalar-se para criar um espao ...O espao geogrfico deve ser considerado como algo que participa igualmente da condio social e do fsico, um misto, um hbrido. Nesse sentido no h significaes independentes dos objetos (Santos, 1996: 234 e 70). 231

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Estamos assim longe de uma outra caracterstica do pensamento hegemnico no mundo ocidental de se recolher na abstrao matemtica sobrevalorizando a quantidade em detrimento da qualidade. No espao da geometria a quantidade assinala a variao do mesmo, enquanto o espao geogrfico contm a materialidade como um atributo onde co-existem os diferentes, diversos entes. Aqui a geografia revela todo o seu desconforto diante do paradigma hegemnico dualista e dicotomizante na medida que a relao espacial, inapreensvel pelas estruturas clssicas de ao e de representao, inteligvel como um princpio de coexistncia da diversidade (Sodr, 1988: 18) e constitui uma garantia do exerccio de possibilidades mltiplas de comunicao (Santos, 1996: 255) o que levou Muniz Sodr a reconhecer que h uma dimenso territorial ou uma lgica geogrfica da cultura (Sodr, 1988: 15). Essa co-existncia do diverso, essa contigidade caracterstica do espao nosso de cada dia, que inspirou Milton Santos a ousar cham-lo espao banal, nos mostra que o espao geogrfico requer uma abordagem complexa que supere o pensamento reducionista atomstico-individualista. Vejamos: os economistas tambm se preocupam com essa questo da proximidade, a distncia sendo considerada como um fator relevante na estruturao do comrcio internacional (Berthelot, 1994: 15-16) . Mas a proximidade que interessa ao gegrafo no se limita a uma mera definio das distncias; ela tem que ver com a contigidade fsica entre pessoas numa mesma extenso, num mesmo conjunto de pontos contnuos, vivendo com a intensidade de suas relaes. assim que a proximidade, diz J.-L. Guigou (Guigou, 1995: 56) pode criar a solidariedade, laos culturais e desse modo identidade. O papel da vizinhana na produo da conscincia mostrado por J. Duvignaud (Duvignaud, 1977: 20), quando identifica na densidade social produzida pela fermentao dos homens em um mesmo espao fechado, uma acumulao que provoca uma mudana surpreendentemovida pela afetividade e pela paixo, e levando a uma percepo global, holista, do mundo e dos homens (Santos, 1996: 255) 20. Embora queiramos nesta parte salientar o significado dos conceitos de territrio e da geograficidade do socio-histrico, talvez valha a pena sublinhar que o espao geogrfico do perodo atual , sobretudo, um meio tcnicocientfico-informacional (Milton Santos). Nele os objetos so, principalmente, objetos tcnicos e, assim, tm dentro de si uma intencionalidade uma hipertelia, uma mxima intencionalidade, como nos sugere G. Simondon (Simondon, 1989). Um objeto tcnico concreto (G. Simondon) pretende ser a mais perfeita convergncia entre a tecnologia e a funo desejada, perfeio impossvel de ser alcanada na natureza (Santos, 1996: 233). 232

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Aqui se v que a perfeio do objeto tcnico tanto maior quanto mais reduzido intencionalidade. O que se procura com os objetos tcnicos que cada vez mais povoam nosso cotidiano um aumento da eficcia da ao que depende do grau de certeza com que exercida just in time, just in space e a informao contida nos objetos tcnicos procura diminuir a incerteza (Santos, 1996: 237-8). A tcnica tornada uma espcie de princpio para toda atividade, toda coisa , em si mesma, um princpio de racionalidade, diz Marc Humbert (Humbert, 1991: 54). Investida nos objetos, aparece como uma lgica inscrita, graas ao engenheiro, na natureza das coisas(Latour, 1989: 21; Gras, 1993: 218). H, desse modo, no objeto tcnico, a prvia determinao de uma racionalidade, uma forma predeterminada de ao sobre a natureza graas conexo imediata da tecnologia com as atividades prticas da vida (Santos, 1996: 238). E Langdon Winner (Winner, 1985) explicita a relao entre a tecnologia, espao e poder, quando nos diz que as inovaes tecnolgicas lembram os atos legislativos ou polticos que estabelecem um quadro para a ordem pblica capaz de resistir s geraes. Por isso a mesma ateno que se d s regras, papis e relaes pblicas deve ser dada tambm s coisas como construo de estradas, criao de redes televisivas e o recorte de traos aparentemente insignificantes em novas mquinas (Winner, 1985: 30-31). Devemos, aqui, retomar a idia j vrias vezes invocada que o espao geogrfico locus de co-existncia do diverso, natureza e cultura ao mesmo tempo, lugar dessa contigidade caracterstica que o espao nosso de cada dia. Isto porque No lugar, nosso Prximo, se superpem, dialeticamente, o eixo das sucesses, que transmite os tempos externos das escalas superiores e o eixo dos tempos internos, que o eixo das coexistncias, onde tudo se funde, enlaando, definitivamente, as noes e as realidades de espao e de tempo. No lugar um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituies cooperao e conflito so a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ao prpria, a vida social se individualiza; e porque a contigidade criadora de comunho, a poltica se territorializa, com o confronto entre organizao e espontaneidade. O lugar o quadro de uma referncia pragmtica ao mundo, do qual lhe vm o teatro insubstituvel das paixes humanas, responsveis, atravs da ao comunicativa, pelas mais diversas manifestaes da espontaneidade e da criatividade [...] O territrio compartido impe a interdependncia como prxis, e essa base de operaesda comunidadeno dizer de Parsons [...] constitui uma mediao inevitvel para o exerccio dos papis especficos de cada qual, conforme reala B. Werlen (Santos, 1996: 257-8). 233

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Assim, o espao geogrfico uma condio para a ao; uma estrutura de controle, um limite ao; um convite ao (Santos, 1996: 257). Deste modo, considerar a geograficidade fazer com que a histria se reconcilie com a vida na materialidade da relao sociedade-natureza na medida que o espao inclui essa conexo materialstica de um homem com o outro(Marx e Engels, 1947: 18-19). Explicitemos, portanto, que a geograficidade nas suas dimenses espacial e natural nos obriga a considerar a simultaneidade dos eventos e no somente a sucesso. Assim, nos possvel ver que aquilo que at aqui tem sido considerado mundo moderno, centrado na dinmica europia, estadunidense e japonesa indissocivel da colonialidade pois da Amrica Latina e Caribe, da frica e da sia que proveio grande parte da energia que move esse mundo seja na forma da matria petrleo, seja do ouro, da prata, das riquezas minerais ou agrcolas que, sabemos, nunca s matria mas, tambm, trabalho (e no h trabalho sem energia) servil, escravo ou sub-assalariado. E to importante quanto essa compreenso que inspirou vrios intelectuais ver como todo esse processo percebido por aqueles que, cada vez mais, sofrem os efeitos de decises tomadas distncia (televiso21, teledeteco, tele-ao), cujas aes, quase sempre, so tomadas em funo da dimenso econmica. unidimensionalidade dos que tomam as decises se contrape a multimensionalidade da vida inscrita na geografia de cada dia, locus de conformao da subjetividade. A percepo remota, o sensoremento remoto, ignora a percepo imediata do espao vivido. Essas tenses de territorialidades nos obrigam a considerar a passagem acusada por Foucault da sociedade disciplinar para uma sociedade de controle. Assim, os espaos de conformao da subjetividade a famlia, a escola, o asilo, a priso, a fbrica, o estado-nao, o mundo ...no [so] mais definido[s] da mesma maneira. A crise significa, em outras palavras, que hoje os cercados que costumavam definir o espao limitado das instituies foram derrubados, de modo que a lgica que funcionava principalmente dentro das paredes institucionais agora se espalha por todo o terreno social (Negri e Hardt, 2001: 216; grifos meus). Ou ainda quando nos falam que ...a paisagem urbana est mudando do foco moderno da praa comum e do encontro pblico para os espaos fechados dos shopping centers, das freeways e das comunidades fechadas. [...] O espao pblico tem sido a tal ponto privatizado que j no faz sentido entender a organizao social em termos de uma dialtica entre os espaos pblico e privado, entre o dentro e o fora. [...] A noo liberal do pblico, o lugar exterior onde agimos na presena de outros, foi universalizada (porque estamos sempre sob o olhar de 234

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outros, monitorados por cmaras de sistemas de segurana) e sublimada ou desefetivada nos espaos virtuais do espetculo (Negri e Hardt, 2001: 208). Destaco aqui, pela extrema lucidez dessa compreenso, como tudo isso captado a partir de outros lugares. Passemos a palavra a Victor de Gennaro, Secretrio geral da Central de Trabalhadores Argentinos. Em entrevista pesquisadora Ana Esther Cecea (Cecea, 2001) ele nos oferece uma lcida anlise da implantao do projeto neoliberal na Argentina onde destaca que ... la contrarrevolucin no era solamente la represin, era la desestructuracin social, y vimos que de la clase trabajadora 72% era precario. Eran los momentos de mayor auge del pensamiento nico, cuando se pregonaba el fin del trabajo y realmente estaba en cuestionamento hasta eso, si bamos a seguir existiendo como trabajadores. Nosotros apostamos a que no, a que no nos iban a hacer desaparecer, a que la riqueza la sigue generando el trabajo y a idear formas nuevas de organizacin pero desde la misma esencia, desde la recuperacin de la identidad. Reconstituir esto nos abri una nueva mentalidad y descubrimos que el nuevo lugar donde los trabajadores nos nucleamos, donde estamos todos los dias, es el barrio. Esto se sintetiz en la frase la nueva fbrica es el barrio. La fbrica o lugar de trabajo donde uno se formaba, donde aprendia la historia, donde se construa y recuperaba la identidad y la memoria como trabajador hoy no existe ms. Evidentemente hay que ir a organizarnos en el barrio y para esto se cre la afiliacin directa para todo trabajador que viva de su trabajo. Se trata de un compaero de clase que tiene que volver a reconstituirse. Fue un tiempo muy difcil y aunque la resistencia al modelo de privatizaciones y de exclusin iba teniendo algunas victorias defensivas, lo ms importante es que empezamos a ver que nos devolva a nuestros compaeros: ex metalrgicos, ex textiles, ex, ex, ex trabajadores, empezaban a acercarse y organizarse en calidad de trabajadores precarios. Tuvimos experiencias maravillosas como la Federacin de Tierra, Vivienda y Habitat que nos acercaba pobladores, trabajadores rurales, sectores que tienen que ver con la tierra, o los aborgenes, o las trabajadoras sexuales, organizaciones que jams hubieran estado como trabajadores en una central (Cecea, 2001: 63). Observemos, ainda, como um novo espao se coloca no horizonte dos protagonistas a partir das contradies do prprio processo de reorganizao societrio. A seguir, Victor de Gennaro nos brinda com uma clara apreenso de que a diviso setorial, assim como as distines entre trabalhadores, j no podem ser tratadas com os mesmos paradigmas no perodo atual que ele, tambm, distingue. 235

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La lucha sectorial es una lucha defensiva, ms fcil, que rapidamente logra unificarse en torno a un programa de reivindicaciones. Pero en estas nuevas condiciones es distinto. Por ejemplo, en un hospital, donde todos son trabajadores de la salud, la propensin, si los alienta, es la de marcar las diferencias: los mdicos son una cosa, las enfermeras son otra, los radilogos otra y los trabajadores de mantenimiento tambin. Pero en realidad esta etapa del capitalismo, de globalizacin, de concentracin, demuestra que no hay una poltica de salud. Es indispensable unificar a todos los trabajadores tras una gran bandera que es discutir la salud como poltica. Y discutir todo el sector salud, todo el proyecto de enfermedad que nos venden, no la privatizacin, sino un proyecto de salud, implicaba dos cosas: unificar a los sectores que iban a recibir salud. Si la comunidad no disputa un tipo de salud diferente y acepta esto que le venden, muy dificilmente podemos alcanzar reivindicaiones ms naturales. En sntesis, no habr carrera sanitaria para las enfermeras si no hay posibilidad de que un pueblo pelee por tener salud y ejerza su derecho a la salud (Cecea, 2001: 64). Ana Esther Cecea, que entrevista a Victor de Gennaro, ajuda-nos a compreender a significao do territrio quando nos diz que En octubre del ao 2000 La Matanza, un barrio obrero (ahora en gran medida de desempleados) del Gran Buenos Aires, organiz el bloqueo de la carretera ms importante del pas en trminos econmicos. Se trat de una lucha puebladacomo dicen los argentinos, porque involucr a todos los integrantes del barrio, con distintas estrategias de sobrevivencia y distintas modalidades y experiencias de lucha. El episodio de La Matanza constituy un aprendizaje en las potencialidades del sentido territorial de las nuevas formas de organizacin de la poblacin, al tiempo que evidencia el carcter antipopular del gobierno, a pocos meses de haber asumido. El gobierno tuvo que firmar un convenio con los insurrectos de La Matanza, aceptando todas sus exigencias (Cecea, 2001: 65). Quase um ano depois, em 24 de julho de 2001, os desempregados, cada vez mais conhecidos como piqueteiros, realizavam no Santurio do Sagrado Corao de Jesus, na mesma La Matanza, um congresso nacional com mais de 2000 delegados. Um ex-metalrgico, Claudio Landone, deixa claro de onde esse movimento retira sua fora quando declara eu no posso fazer greve, porque fui demitido de uma fbrica que faliu. Fao piquetes (Correio Brasiliense 22/07/01). Com esses cortes de ruta, os piquetes, torna-se, pelo conflito, evidente o significado cada dia maior do espao como um todo la nueva fbrica es el barrio pela importncia que adquirem a distribuio e a circulao num mundo em que h uma intensa fabricao capitalstica da subjetividade (Felix Guatarri) 236

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via mass media . Nesses piquetes a lgica do trabalho abstrato bloqueada por aqueles que no querem se tornar meros objetos e, assim, afirmam sua subjetividade concretamente bloqueando as rotas, bloqueando a velocidade. Afinal, quanto mais os meios de comunicao estimulam simbolicamente os desejos, menos podem prescindir que os objetos circulem concretamente pelas estradas, pelas vias pblicas. Aqui, pelos piquetes j que eu no posso fazer greve a geograficidade do social na sua subjetividade materializada se mostra como contradio. No caso argentino, e sabemos que no s nele, a subordinao aos ditames do mundo financeiro, lgica do dinheiro em estado puro que ignora a complexa materialidade inscrita no espao geogrfico de cada dia, implicou 30.000 compaeros desaparecidos, la mayoria trabajadores ou dirigentes sindicales, ms de 100.000 presos y detenidos, ms de 500.000 exilados, pero adems ms de medio milln de delegados activistas despedidos de las fbricas (Cecea, 2001: 63). Assim, mais do que um mundo que funciona em rede, que sobrevaloriza o mundo da virtualidade onde a fluxo do smbolo-maior o dinheiro se d sem atrito, h uma desmaterializao cruel e, at mesmo, macabra.

Um mundo em busca de novas territorialidadesCom a criao da ONU que, trs em seu seio o Estado Territorial j consagrado em 1648, o mundo ps 2 Guerra Mundial v instaurar-se, paradoxalmente, o que Giovanni Arrighi chamara de caos sistmico. Aqui preciso saber tomar partido do privilgio do tempo que torna possvel explicitar tendncias histricas 22 que poca apenas se esboavam. De fato, a ONU, com todas as contradies que marcam a sua existncia, indica a passagem de um sistema internacional para um sistema global, imperial, na medida que aponta [...] igualmente para uma nova fonte positiva de produo jurdica, eficaz em escala global um novo centro de produo normativa que pode desempenhar um papel jurdico soberano (Negri e Hardt, 2001: 22. grifos meus). Esse caos sistmico abriga regimes de produo de poder com configuraes territoriais contraditrias como o Estado Nacional, o Imperialismo, o Imprio que se quer uma ordem global supranacional e, ainda, mltiplos protagonistas (camponesa(e)s, indgenas, negro(a)s, mulheres, ambientalistas, trabalhadore(a)s assalariado(a)s que r-existem com/contra essas diferentes ordens e que so portadores de mltiplas territorialidades potenciais. Afinal, como falar do fim ou da diminuio do poder dos Estados Territoriais Nacionais quando, exatamente aps o fim da 2 Guerra Mundial, se multiplica o nmero de Estados Territoriais Nacionais ? No entanto, preciso observarmos que o surgimento de mais de uma centena de novos Estados Territoriais Nacionais 237

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aps a 2 Guerra se deu, sobretudo, na frica e na sia. Na Amrica Latina o neocolonialismo j havia se instaurado desde o sculo XIX consolidando o deslocamento da hegemonia de Tordesilhas para Greenwich, ou melhor, do mundo mediterrneo (Portugal, Espanha e Gnova) para o Mar do Norte (Inglaterra, Frana e, depois, Alemanha). Diga-se, ainda, que os nascentes Estados americanos mantiveram no poder os descendentes dos brancos europeus os crioulos, na Amrica espanhola negando-se aos indgenas e negros at mesmo a condio de assalariados (Quijano, 2000). O colonialismo interno mais do que dominao regional, como quase sempre considerado. H uma clara clivagem racial e de classe que atravessa as novas formaes nacionais trazendo para o seu interior a clivagem moderno-colonial j vrias vezes aqui invocada.

A ordem imperial antes de tudo, financeiraDesfaamos, logo de incio e ainda que rapidamente, um dos principais mitos que nos tem sido imposto na caracterizao dessa nova configurao de poder, que Negri e Hardt chamam de Imprio, que diz respeito ao do papel que nela joga a revoluo tecnolgica, sobretudo, a telemtica com tudo que ela implica. Tudo parece derivar do que se vem chamando revoluo tecnolgica em curso sem que se esclarea quem pe em movimento essa revoluo tecnolgica, como se fosse um processo espontneo, natural. Quando observamos os principais setores onde essas novas tecnologias vm se afirmando o militar, o financeiro e os dos meios de comunicao de massas j nos indicam possveis protagonistas desse processo. Os atentados de 11 de setembro de 2001 sinalizam essa trplice dimenso do poder imperial, no s por ter sido atingido o Pentgono, smbolo do poder militar, o Worl Trade Center, smbolo par excellence e do capital financeiro23 transmitido ao vdeo em tempo-real, mas tambm, por indicar que no reconhecendo o Imprio externalidade no h mais um fora e um dentro o eu refora as anlises de Negri e Hardt, ou mesmo de David Harvey (Harvey, 1989), de que nos encontramos diante de novas percepes espao-temporais, outro modo de dizer que nos encontramos diante de novas territorialidades em tenso. Essa ordem imperial se apresenta como uma tentativa de superar uma crise profunda da ideologia nacionalista que havia sido levada ao paroxismo com o imperialismo24 por meio de duas guerras em menos de 40 anos e, mais envolvendo, o territrio do plo hegemnico da ordem moderno-colonial. Ainda em plena 2 Guerra Mundial comea a se desenhar uma ordem financeira que se quer acima dos Estados Territoriais Nacionais e que, contraditoriamente, convive com o imperialismo dando ensejo, assim, a uma das tenses territoriais constitutivas dos dias que correm. Vejamos:

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De todos os lados do conflito, a ao das classes dominantes ultrapassou os limites nacionais. [...] os Aliados imprimiram um carter supranacional ao que inicialmente havia sido um mero acordo militar, a Declarao das Naes Unidas, assinada em janeiro de 1942 por 26 pases, explicitava tais objetivos. A partir de 1944 foram tomadas medidas para converter as Naes Unidas numa organizao de carter permanente. Noutro plano, a Conferncia de Bretton Woods, realizada em julho de 1944, estabeleceu o sistema monetrio e financeiro que viria reger o mundo aps o conflito, projetando o Banco Internacional para a Reconstruo e o Desenvolvimento e do Fundo Monetrio Internacional. Qualquer que tivesse sido o vencedor, a paz assentaria em instituies supranacionais. Mais ainda significativos do que a internacionalizao no interior de cada um dos blocos beligerantes foram os interesse comuns que os uniram a todos e os contatos que eles tiveram lugar. [...] Com base nestes interesses sociais comuns aos capitalistas de ambos os lados teceram-se, apesar do conflito, e para alm das clivagens militares, polticas e ideolgicas, contatos institucionais permanentes, no mbito do Banco de Pagamentos Internacionais. Este banco fora estabelecido em Basilia, na Sua, em 1930, para permitir a cooperao tcnica entre bancos centrais dos vrios pas, e o seu Conselho de Administrao ainda hoje composto em parte por governadores de bancos centrais (Bernardo, 2000: 52-53). Tal como aquele corpo de juristas que a partir do Renascimento recuperara o direito romano para ensejar a nova ordem geogrfica e jurdico-poltica com base na propriedade privada (absoluta) incondicional e na soberania (absoluta) mutuamente excludente que nos deu o Estado Territorial Moderno, vemos emergir um novo protagonista que so os gestores financeiros que se colocam enquanto gestores de uma territorialidade imperial que se pensa no imperialista. Em que pese o enorme significado poltico desses novos protagonistas das finanas mundiais FMI, BIRD, Banco de Pagamentos Internacionais sua lgica capitalista puramente fundada no dinheiro (DD) no pode prescindir da mediao das mercadorias (DMD) e, consequentemente, das implicaes materiais-simblicas e, portanto, territoriais. Aqui toda a contradio entre o dinheiro e a riqueza que est a se manifestar, enfim, a contradio entre a expresso simblica da riqueza o dinheiro e a riqueza mesma. A tenso de territorialidades desencadeada pela hegemonia poltica cada vez maior dos gestores financeiros se faz sentir com toda a fora quando se tem que reduzir as moedas a uma nica moeda, sobretudo quando essa moeda uma moeda nacional, o dlar estadunidense, como tem sido o caso. Assim, a tendncia para o imprio, caracterstica dos gestores das finanas mundiais, se v contraditoriamente apoiando o velho imperialismo e, com isso, reavivando a lgica territorialista nacionalista que, por sua lgica prpria, teria que superar. 239

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No sem sentido essa tenso de lgicas territoriais distintas se faz presente com todo o seu peso na questo energtica. Afinal, se o dinheiro se constitui, por um lado, na energia simblica necessria lgica capitalista, o combustvel fssil , por outro lado, a energia material que permite aumentar o potencial de produo de mais valia de todo o complexo industrial que produz as mercadorias. Para aqueles que tm posto o acento no na contradio entre o Imprio e o Imperialismo (e o Estado Nacional nele embutido) mas sim no fato de atribuir s grandes corporaes multinacionais e aos mercados financeiros um poder maior que o dos seus prprios estados de origem, que teria caracterizado a euforia americana dos anos 90, concordamos com Jos Luiz Fiori quando nos diz que passado o perodo das grandes compras e fuses transnacionais, todos os balanos feitos indicam que, no caso dos setores estratgicos do ponto de vista tecnolgico e militar, o fator nacional foi decisivo e houve intervenes estatais das grandes potncias sempre que alguma de suas grandes corporaes se viu ameaada por capitais estrangeiros. no campo de ao direta dos gestores das finanas mundiais com sua lgica imperial o mercado financeiro propriamente dito que reina mais do que em qualquer outro campo, at porque a matria que nele circula realmente25 simblica, o mundo da comunicao por suporte informtico (telemtico) onde se valoriza, sobretudo, a existncia de um mundo virtual. Considere-se, ainda, o significado que tem, nesse mundo e para esses protagonistas, a idia de que no h limite at mesmo para os dias e noites porque as bolsas funcionam 24 horas. Afinal, no h limite para os nmeros e aqui, j o vimos, estamos no mundo da expresso da riqueza e no da riqueza mesma. Trata-se do que, apropriadamente, tem sido chamado de capital voltil que aquele capital que se desprende da materialidade do espao concreto e que tenta submeter as diferentes qualidades que habitam esse espao sua lgica, lgica da quantidade. A mais completa figura em nosso mundo apresentada da perspectiva monetria. Daqui pode-se ver um horizonte de valores e uma mquina de distribuio, um mecanismo de economia e um meio de circulao, um poder e uma linguagem. [...] As grandes potncias industriais e financeiras produzem, desse modo, no apenas mercadorias mas tambm subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopoltico: produzem necessidades, relaes sociais, corpos e mentes ou seja, produzem produtores. [...] [Assim] um lugar onde deveramos localizar a produo biopoltica de ordem nos nexos imateriais da produo de linguagem, da comunicao e do simblico que so desenvolvidos pelos meios de comunicao. [...] A mediao absorvida dentro da mquina produtiva. A sntese poltica do espao social fixada no espao de comunicao. por isso que as 240

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indstrias de comunicao assumiram posio to central. Elas no apenas organizam a produo numa nova escala e impem uma nova estrutura adequada ao espao global, mas tambm tornam imanente sua justificao. O poder, enquanto produz, organiza; enquanto organiza fala e se expressa como autoridade. A linguagem, medida que comunica, produz mercadorias, mas, alm disso, cria subjetividades, pe umas em relao s outras, e ordena-as. As indstrias de comunicao integram o imaginrio e o simblico dentro do tecido biopoltico, no colocando-os a servio do poder mas integrando-os, de fato, em seu prprio funcionamento (Negri e Hardt, 2001: 51-52). Estamos, assim, diante de um deslocamento do locus de produo de necessidades que E. Thompson (Thompson, 1998) nos havia chamado a ateno. No mais exclusivamente nos seio da famlia ou mesmo da escola que se d a conformao da subjetividade que, assim, se desloca para essas mquinas de fabricao capitalstica de subjetividade, conforme gostava de chamar Flix Guattari (Guattari, 1982). Mais uma vez, do espao social como um todo que estamos falando e sobre a deciso de coisas to simples, e to fundamentais como o po nosso de cada dia, que estamos tendo que nos reapropriar. Esses mesmos meios de comunicao vm caracterizando como movimentos anti-globalizao todo o conjunto de manifestaes que vem se fazendo escala global e que traz em seu bojo movimentos que comportam mltiplas dimenses, inclusive as territoriais. No entanto, esses movimentos sinalizam para outros possveis regimes de poder escala global (Milton Santos) indicando, assim, que a escala global, mundial ou planetria se coloca como necessria para todo e qualquer protagonista e que j no mais monoplio dos de cima fazer relaes internacionais, como tem sido at aqui.

A natureza revisitadaH um outro campo, ainda, o campo ambiental onde a tendncia para a conformao de uma ordem global (imperial) vem ganhando uma enorme legitimidade, talvez s comparvel aos direitos humanos. E, aqui, no poderia ser maior o conjunto de contradies que faz emergir entre territorialidades distintas. Indiquemos, de incio, que todo um conjunto de idias e prticas que conformam esse campo aponta claramente para uma conscincia planetria e nos convida a nos sentirmos membros de uma comunidade de destino (Balandier) mundial, global, planetria (Gonalves, 2001a). Afinal, estamos diante de riscos globais, havendo at mesmo autores, como Giddens (Giddens, 1991) e Beck (Beck, 1992), que vo caracterizar a sociedade moderna como sociedade de risco.

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No interior desse campo os Estados Nacionais parecem no ter possibilidades de superar problemas que ultrapassam suas fronteiras posto que as dinmicas da natureza no as respeitam. Todavia, o mesmo poderia ser invocado com relao propriedade privada incondicional e absoluta que, como vimos, um dos fundamentos da constituio do Estado Territorial Moderno. Afinal, numa sociedade em que a produo regida por uma lgica da concorrncia que aciona uma busca de aumento da produtividade e, assim, um ritmo incessante que tende para o infinito porque o que busca a expresso quantitativa da riqueza na sua imaterialidade, os tempos naturais, culturais e psquicos acabam por ser atingidos ensejando efeitos e contradies vrias. Tudo indica que a propriedade privada incondicional e absoluta seja mais um dos limites (essncia da poltica, insisto) que precisamos por mais abertamente em debate. O proprietrio privado no pode reinar to soberanamente como reinou at aqui, conforme Karl Polanyi (Polanyi, 1978) j nos havia alertado. Alm disso, esse campo ambiental tambm expe outras e enormes contradies que reinam no atual caos sistmico que caracteriza a geografia do mundo contemporneo. Destaquemos o fato de 20% da populao mundial ser responsvel pelo consumo (produtivo e improdutivo) de cerca de 80% da energia e das matrias primas manipuladas anualmente em todo o planeta. Informao que pe em xeque o argumento malthusiano to invocado nesse mesmo campo, quando se sabe, com Elmar Altvater (Altvater, 1994), que um estadunidense mdio consome o equivalente a mais de 170 etopes ou a mais de 50 paquistaneses, o suficiente para indicar que um beb pe mais em risco o planeta quando nasce sob o regime de produo de subjetividades mercantilmente estimuladas. o que Altvater chamou de regime de produo de bens oligrquicos, ou seja, aquele regime que se funda na produo de bens que s podem existir se for para poucos, pois se todos tm esses bens os riscos de todos aumentam26. toda a ordem moderno-colonial que se acha, assim, em xeque princpio de igualdade, por exemplo na medida que seu modo de vida impossvel de se generalizar para todo o planeta. A idia de dominao da natureza, central para o pensamento moderno europeu, posta em questo no somente porque se aponta a degradao ambiental ou o esgotamento de recursos naturais27, mas porque junto com a natureza emergem mltiplos sujeitos que at aqui vinham se mantendo mantendo nos marcos das territorialidades ora em crise. H, ainda, no interior desse campo todo um debate acerca da diversidade biolgica que tem, de uma lado, todo o setor industrial ligado biotecnologia e, por outro lado, proporciona a possibilidade de mltiplos povos e culturas se apresentarem cena poltica como se pode ver por meio da mobilizao de populaes camponesas, indgenas ou comunidades negras em amplas regies da Amrica Latina (Mxico, Colmbia, Peru, Equador, Bolvia, Brasil, conforme Escobar, 1996; Leff, 2000; Gonalves, 2001b; Garcia Linera, 2001). At mesmo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil resignifica suas lutas 242

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incorporando-se de modo prprio ao campo ambiental reforando a perspectiva socioambiental que, no Brasil, foi inaugurada pelos seringueiros e teve sua liderana de maior expresso o ecosocialista Chico Mendes (1944-1988) (Gonalves, 2001a e Gonalves, 2001b). Destaque-se, ainda, que no interior deste campo ambiental que tem sido grande a tenso entre gestores territorialistas nacionais, militares sobretudo, e gestores territorialistas que operam escala global. As organizaes nogovernamentais esto, tambm aqui, fortemente implicadas nessas relaes contraditrias. Afinal, trata-se de determinar usos diferenciados aos recursos naturais e a natureza, sabemos, alm de portar recursos naturais , tambm, fonte de recursos simblicos, de ideologias romnticas territorializadas, como os nacionalismos e regionalismos (sangue e terra, por exemplo) que, de uma forma ou de outra, tm se nutrido, at aqui, do conceito moderno de soberania mutuamente excludente. E o ambientalismo, por seu lado, tem se inspirado na mesma natureza para construir uma ideologia planetarista, da Me Terra em franco contraste com a Ptria Me.

O comrcio e a cultura o direito das gentesA tenso de territorialidades pode ainda ser observada nas discusses da Organizao Mundial do Comrcio (ex-GATT) onde a lgica imperial dos gestores financeiros entra em conflito com as diferentes territorialidades que constituem os Estados Territoriais Nacionais, assim como outras que buscam um lugar no mundo28. Aqui tanto os bens materiais como os imateriais (culturais) so objeto de intensas e tensas lutas por/contra barreiras e protees29. Nesse mbito ganha particular relevncia o debate sobre a propriedade intelectual pelo carter social e coletivo de bens intangveis, como o conhecimento, como no conflito entre aquele(a)s que querem colocar barreiras, por patente, e aquele(a)s que querem garantir acesso livre para sementes e cultivares; quele(a)s que querem colocar barreiras, por patente, ou acesso livre aos remdios e frmacos; ao embate entre o(a)s que querem os softwares livres e aquele(a)s que os querem barrados por patente (Linux-Microsoft); assim como o debate sobre os direitos autorais coloca como interlocutores vlidos, pelo conhecimento que produzem, vrias populaes e suas culturas que foram at aqui desqualificadas30. interessante observar que nesse seio surge aquilo que parecia impossvel, qual seja, uma espcie de internacional camponesa, como a Via Campesina 31. Talvez aqui venha se tornando mais explcito do que em qualquer outro campo a tenso de territorialidades e todo o potencial de que nosso mundo est grvido por novas territorialidades. Aqui est em jogo os diferentes sabores com que nos 243

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alimentamos no dia a dia que, sabemos, implica saberes (savoir e saveur) e, assim, toda a cultura que est implicada. At mesmo as paisagens, para nosso conforto e lazer, posto que foram conformadas pelas mais diferentes prticas culturais (da dizer-se agri+cultura) que, assim, estamos vendo, nos oferecem mais do que alimentos e matrias primas. a multifuncionalidade da agricultura, muito prxima do que Enrique Leff vem chamando de racionalidade ambiental, enfatizando seu carter poltico e de justia social, junto com suas dimenses tcnica e cultural (Leff, 1994; 1998; 2000 e 2001).

Fim das fronteiras: para os migrantes, novos murosUm dos maiores desafios que se apresenta no desenho possvel de novas territorialidades diz respeito ao fenmeno dos enormes deslocamentos populacionais de nossa poca. Um espectro persegue o mundo, o espectro da migrao. Todos os poderes esto aliados numa impiedosa operao contra ela, mas o movimento irresistvel. Junto com a fuga do chamado Terceiro Mundo, existe um fluxo de refugiados polticos e a transferncia de fora de trabalho intelectual, alm dos movimentos em massa do proletariado agrcola, industrial e de servios. Os movimentos legais e com documentos so esmagados pelas migraes clandestinas: as fronteiras da soberania nacional so peneiras, e toda tentativa de regulamentao completa sofre violenta presso (Negri e Hardt, 2001: 233). H, aqui, mais do que produo e reproduo da fora de trabalho para o capital e que tem sido quase sempre analisado pelo prisma da regulamentao das condies tcnicas do trabalho pelo capital. H, tambm, um desejo irreprimvel de liberdade. No resta dvida que o que essa multido procura deixar para trs so as condies miserveis, quase sempre derivadas do modo como suas comunidades e regies so envolvidos (na verdade (des)-envolvidos, conforme Gonalves, 2001b) pela ordem moderno-colonial e, o que buscam ... a abundncia de desejos e a acumulao de capacidades de expresso e produo que os processos de globalizao determinaram na conscincia de todo indivduo e de todo grupo social e, portanto, uma certa dose de esperana. A desero e o xodo so uma forma poderosa de luta de classes, dentro da ps-modernidade imperial e contra ela. Essa mobilidade, entretanto, ainda constitui um nvel espontneo de luta e hoje leva com muita freqncia a novas condies desarraigadas de pobreza e misria (Negri e Hardt, 2001: 233). Nesse contexto dos grandes deslocamentos populacionais do mundo de hoje temos tanto as mfias que traficam gente, como cada vez mais se v nos noticirios, como naqueles caminhes frigorficos que transportavam europeus 244

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orientais e asiticos para a Inglaterra; ou navios que vagam sem que os diversos estados queiram receber as massas de refugiados que s aumentam, como, recentemente (outubro de 2001), os afegos que a Austrlia se recusou a receber desconsiderando a legislao internacional; e, ainda, e numa outra direo, o elevado nmero de uma migrao seletiva de trabalho altamente qualificado (informtica, por exemplo), como a de indianos e paquistaneses trabalhando nos Estados Unidos e na Inglaterra, assim como de africanos com formao superior trabalhando na Europa (nmeros no muito precisos indicam, nesse caso, mais de 100.000) e, assim, temos trabalho qualificado aumentando a produtividade dos lugares e regies onde a riqueza mais concentrada reproduzindo a desigualdade entre pases, regies e comunidades e, assim, reforando o duplo movimento de migrao de gente qualificada e de miserveis. Temos, ainda, e num outro sentido, os imigrantes equatorianos na Espanha que em manifestaes contra sua expulso do pas apresentaram a carta de Cristvo Colombo de descoberta da Amrica como o documento que deveria servir de base para garantir seu direito ao trabalho assim como sua permanncia no pas. Na Colmbia, os desplazados j somam 2.000.000 sobre uma populao total de 30.000.000, indicando um fenmeno novo na medida que, nesse caso, no se trata de migrantes que, de uma forma ou de outra, ainda que impelidos pela circunstncias, esperam, isto , tm esperana de, com o deslocamento, melhorar suas condies vida. No, os desplazados no esperam com o deslocamento melhorar as condies de vida. Ao contrrio, exatamente porque tm a esperana de poder voltar o mais breve possvel para suas comunidades se deslocam, inicialmente, para lugares prximos aos seus pueblos e comunidades. Aqui, se revela todo o limite do Estado nacional colombiano para garantir que sua prpria populao possa permanecer onde estava e a ONU j inicia gestes para atuar nesse campo. preciso destacar que a Colmbia o pas que, no mundo, apresenta o maior nmero de desplazados enquanto o Afeganisto apresenta o maior nmero de refugiados do mundo e, nesse momento (2001) seus territrios esto sob a ao direta de um poder imperial que se sobrepe s comunidades e pueblos32, seja atravs do Plano Estados Unidos/Colmbia (mais conhecido como Plano Colmbia) ou da guerra gontra o terrorismo, o que indica a complexa tenso de territorialidades, ainda mais se considerarmos o recente atentado contra o World Trade Center e o Pentgono que nos d, trgica e espetacularmente, a dimenso global dos conflitos. Saliento, todavia, o ponto que, acredito, deva ser o alvo de ateno o da busca de novos regimes de poder por meio de novas territorialidades. E, aqui, quero me aproveitar dessa dupla dimenso mobilidade-permanncia que est implicada no s nos mltiplos movimentos que clamam por demarcar suas terras, seus territrios como, tambm, por essa ampla mobilidade populacional. 245

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Talvez para isso devamos destacar o caso das comunidades negras da Colmbia e do Brasil com seus palenques e seus quilombos (ou quilombolas), respectivamente. Essas comunidades negras se deslocaram em busca da liberdade contra a escravido que lhes era imposta quando da constituio do mundo moderno na Amrica Latina. Ali constituram seus territrios revelia do Estado que, sabemos, no os incorporara enquanto portadores de direitos, at muito recentemente. Hoje, pelas possibilidades abertas escala mundial pelas contradies de regimes de poder se apresentam como protagonistas polticos reivindicando, exatamente, a consagrao das terras onde constituram seus territrios de liberdade. Portanto, a questo que se apresenta no simplesmente a do direito de ir e vir, to destacado pelo liberalismo mas, tambm o direito de permanecer. E, mais do que isso, o direito de soberanamente decidirem/pactuarem o permanecer ou o deslocar.

Deixando em aberto as novas territorialidadesAs fronteiras, comportam o front e trazem consigo, sempre, a memria das lutas que as engendraram. Portanto, mais do que o espao absoluto dos territrios soberanos dos Estados modernos destacamos seu carter aberto (poroso) e contraditrio, tanto no front interno como no front externo. H, sempre, por trs do institudo o processo instituinte e, no caso da fronteira, o limite explicita o seu carter essencialmente poltico. Mas se os limites das fronteiras se mostram to explcitos quando separa o front interno do externo, nem sempre o faz to claramente quando se trata de ver os processos instituintes, sobretudo, quanto aos seus protagonistas. Por isso destacamos que alm dos limites entre as cincias, cada uma com seus territrios rgidos de conhecimento, devemos estar atentos para outros conhecimentos at aqui considerados numa hierarquia inferiorizante (como o caso das cincias humanas diante das cincias naturais; da filosofia e da arte diante da cincia) e, indo um pouco alm, devemos atentar, tambm, para outros conhecimentos produzidos por outros protagonistas com outras matrizes de racionalidade. Enfim, todo o processo que oferecemos anlise deve ter em mente o haitiano Toussaint de LOuverture, os equatorianos que querem que se descubra a Amrica na Espanha de hoje, ou a memria dos negros constitucionalizados como 3/5 de um branco nos Estados Unidos e que esto vivas num mundo que tem um grupo como o G-7 e, ainda, tem o direito de veto sendo praticado no Conselho de Segurana da ONU como se, ainda, houvesse pases e povos que valem 3/5 de outros povos. A poca dos descobrimentos europeus e a comunicao cada vez mais intensa entre os espaos e povos da terra, que veio em seguida, sempre 246

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carregaram dentro de si um real elemento de utopia. Mas tanto sangue foi derramado, tantas vidas e culturas foram destrudas, que parece muito mais urgente denunciar a barbaridade e o horror da expanso da Europa Ocidental (e tambm dos EUA, dos soviticos e dos japoneses). Achamos importante, entretanto, no esquecer as tendncias utpicas que sempre acompanharam a marcha rumo globalizao, ainda que essas tendncias tenham sido continuamente derrotadas pelos poderes da soberania moderna. O gosto da diferena e a crena na liberdade universal e na igualdade dos seres humanos, prprios do pensamento revolucionrio do humanismo da Renascena, reaparecem aqui em escala global. Esse elemento utpico da globalizao o que nos impede de simplesmente cair de volta no particularismo e no isolacionismo, em reao s foras totalizantes do imperialismo e da dominao racista, induzindo-nos, em vez disso, a forjar um projeto de contra-globalizao, de contra-Imprio. Esse momento utpico, entretanto, nunca deixou de ser ambguo. uma tendncia que constantemente entra em conflito com a ordem soberana e a dominao (Negri e Hardt 2001: 132). H, assim, um novo campo que , ao mesmo tempo, local, regional, nacional33 e global, ou imperial como querem Negri e Hardt que, por sua vez, tem ensejado a oportunidade histrica para que novos protagonistas locais e regionais venham cena poltica. nesse imbricao de escalas que novas territorialidades devem ser buscadas. Mais do que a geografia estamos diante de geo-grafias, enfim, do desafio geo-grafar nossas vidas, nosso planeta, conformando novos territrios, novas territorialidades.

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