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ORGÃO INFORMATIVO DA COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE – CMFL – 03-2018– Julho- Setembro- 2018 CARRANCA Editorial COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE: 70 ANOS Ao comemorarmos os 70 anos da Comissão Mineira de Folclore, não podemos deixar de focalizar seu objeto fundamental, de grande importância, que é o Folclore. Seu significado, aqui entendido como expressão das tradições e cultura do povo, e ainda, como já disse anteriormente o Prof. José Moreira de Souza, “estudo do saber viver das comunidades”. Tal afirmação encontra abrigo nos corações de todos os que se interessam pela história do povo mineiro, seu patrimônio material e imaterial. Aqui do meu cantinho, em São Gonçalo do Rio Abaixo, fico pensando no muito que aprendi com esse pessoal da CMFL, e no quanto ainda há por percorrer. Com todo o respeito, à bênção Prof.Saul Martins e Prof.José Moreira, mestres de todos os dias e de sempre! Uno-me às suas vozes e cantamos o “Parabéns a Você”, na certeza de que um coral o faz neste momento, enlaçando todos os rincões desta Minas Gerais. Parabéns CMFL! Acredito que o nosso trabalho, entre muitos outros aspectos, está em configurarmo-nos como uma força de preservação do passado, de defesa das nossas tradições, e ao mesmo tempo de observação e análise contínuas ao redor de nós, buscando perceber sempre mais a imensa riqueza que vive no fazer do povo, nos seus afetos, suas crenças, suas verdades. O povo é o nosso grande mestre. Muito tempo ainda há de vir. A CMFL chegará aos cem, e muitos anos mais. Forte. Idealista. Em constante espírito de combate. Isso porque muitas são as mãos que se apertam e impelem à caminhada. Momentos de tristeza, mas também de muita alegria nos esperam, e esperam aos que vierem depois de nós. Setenta anos. Uma história. Uma descoberta e ao mesmo tempo uma construção de sonhos possíveis. Míriam Stella Blonski Presidente

Carranca 03 2018 - Folclore Minas · por parte dos artistas de teatro do interior nordestino. Quan-do há alguma fórmula, aquilo é desenvolvido no modo au-todidata. Sem orientação

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ORGÃO INFORMATIVO DA COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE – CMFL – 03-2018– Julho-

Setembro- 2018

CARRANCA

Editorial

COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE:70 ANOS

Ao comemorarmos os 70 anos da Comissão Mineira de Folclore, não podemosdeixar de focalizar seu objeto fundamental, de grande importância, que é oFolclore. Seu significado, aqui entendido como expressão das tradições e culturado povo, e ainda, como já disse anteriormente o Prof. José Moreira de Souza,“estudo do saber viver das comunidades”. Tal afirmação encontra abrigo noscorações de todos os que se interessam pela história do povo mineiro, seupatrimônio material e imaterial.Aqui do meu cantinho, em São Gonçalo do Rio Abaixo, fico pensando nomuito que aprendi com esse pessoal da CMFL, e no quanto ainda há porpercorrer. Com todo o respeito, à bênção Prof.Saul Martins e Prof.José Moreira,mestres de todos os dias e de sempre! Uno-me às suas vozes e cantamos o“Parabéns a Você”, na certeza de que um coral o faz neste momento, enlaçandotodos os rincões desta Minas Gerais. Parabéns CMFL! Acredito que o nosso trabalho, entre muitos outros aspectos, está emconfigurarmo-nos como uma força de preservação do passado, de defesa dasnossas tradições, e ao mesmo tempo de observação e análise contínuas aoredor de nós, buscando perceber sempre mais a imensa riqueza que vive nofazer do povo, nos seus afetos, suas crenças, suas verdades.O povo é o nosso grande mestre.Muito tempo ainda há de vir. A CMFL chegará aos cem, e muitos anos mais.Forte. Idealista. Em constante espírito de combate. Isso porque muitas são asmãos que se apertam e impelem à caminhada. Momentos de tristeza, mastambém de muita alegria nos esperam, e esperam aos que vierem depois denós.Setenta anos. Uma história. Uma descoberta e ao mesmo tempo uma construçãode sonhos possíveis.

Míriam Stella BlonskiPresidente

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ArtigosA Voz no Teatro Popular do Nordeste

Rafael Sol

Pode-se dizer que a voz é uma das principais forças do teatrode rua. Um ator de praça deve comunicar claramente, e porvezes faltam microfones e equipamentos de som. Isto no pas-sado nem existia, sendo o encenador obrigado a soltar a vozpara segurar a audiência ali presente. No caso do teatro debonecos temos um agravante a mais: a torda, ou tenda, criauma parede para as ondas sonoras, o que obriga omamulengueiro à cantar para fora da boca de cena a fim decomunicar com a assistência. Isto obriga o mesmo a contarforte, de forma aguda, pois cantar grave não reverbera, ecantar um canto bem empostado, para que sua fala chegue àtodos e não haja dispersão dos ouvintes. O recursomicrofonado é um advento das últimas décadas. Nosprimórdios tudo era no gogó, assim como os palhaços dospastoris e capitães de Cavalo Marinho, que prestam de refe-rência para o Mamulengo, não só no jeito de cantar, como norepertório e arquétipos.

É comum notarmos a apropriação de tipos do Cavalo Mari-nho por bonequeiros populares, como é o caso do que acon-tece na Zona da Mata norte- pernambucana. Tipos popula-res como Catirina passam por ambos os folguedos, sem con-seguirmos dizer quem veio primeiro, até porque não a rele-vância na origem, mas na peculiaridade do tipo e seu poderde encantar e perpassar diversas manifestações populares.Os dois palhaços do Cavalo Marinho, Mateus e Bastião comsuas bexigas de porco, também encontram lastro noMamulengo. Mateus é o músico mais importante da orques-tra popular composta de bombo (zabumba), triângulo, sanfo-na de oito baixos, ou rabeca ou pife, e por vezes entra temtambém o mineiro, ou ganzá. Sua importância se dá por con-versar e interagir fortemente com os bonecos, dos quais écumpadre. Mateus, por sinal vai ser encontrado lá no Boi deMamão do litoral catarinense. Lá ele é Pai Mateus, com va-queiros, a Bernúncia e um cordão de bichos. Além do CavaloMarinho, no Mamulengo há fusão de outros folguedos comoo Maracatu, que traz uma calunga, nome para boneco no RioGrande do Norte, como guardiã do batalhão. Zé de Vina, deLagoa do Itaenga, em uma de suas cenas, entra com um gru-po de caboclos de lança do Maracatu, cantando a música doCaboclo Iarubá, que no Cavalo Marinho Estrela de Ouro, daregião de Condado, é tema cantado numa hora importanteda brincadeira, quando o capitão deita sobre uma cama decacos de vidro. Ou seja, as associações de temas com tiposé livre e não traz qualquer parâmetro estabelecido. Esta mis-tura do Mamulengo com outros folguedos, é tema de diver-sos estudos onde fica evidenciada esta mescla de persona-gens em diversas brincadeiras (ALCURE, 2010). O que per-cebemos é um certo padrão no jeito de recitar as loas, de

forma aguda e estridente para chegar no fundo da plateia,e assim comunicar com dignidade. Isso é notável nos di-versos brincadores nas mais variadas expressões popu-lares como o folgazão do mamulengo, ou o repentista (re-pente de viola ou côco de embolada).

Além das loas ou glosas de aguardente, os tipos choramsuas lástimas de forma longa e exagerada, salvo algumasexceções como o Inspetor Peinha que tem um jeito maisafobado e contraído, trazendo um discurso mais contido,preso. Abrigar personagens de outras freguesias,consequentemente traz o modo de agir do brincador, oque influi na forma de cantar e interagir com a população.Além de lidarem com a tecnologia da escassez tão co-mum, onde se tem pouco pano para tanta figura, e ondese tem pouca valorização, por vezes faltando o de comerno prato, muitos grupos não tem equipamento de som, oque obriga a ter uma voz voltada para o improviso de nãose ter o som amplificado na hora de botar o brinquedo.Para os antigos, que começaram a brincar com idade en-tre 10 a 14 anos, cantar forte e agudo, não é problemapois a vida sempre foi assim, carente. Muitos que usamequipamento de som, usam o microfone tradicional depedestal, tendo que fazer um espiral de arame grosso parafixar o mesmo no pescoço.

Quando usam microfone auricular ou de lapela é porqueo evento tá bancando, salvo raras exceções, como é ocaso do mamulengueiros do sul, com mais recursos parabrincar. Hoje usam uma mala somente, por causa do avião.Mas botar o Mamulengo completo significa usar dois baúsde personagens, o que denota tamanha versatilidade dosmesmos em mudar as vozes e criar uma vasta gama depossibilidade, para dar vida àquela quantidade enormede figuras onde se encontram velhos, coronéis, raparigas,senhoras, heróis e até animais.

No mamulengo não tem título da peça, o nome é o nomedo brinquedo: Invenção Brasileira, Presepe de Fala, Risodo Povo, Nova Geração, Fulô do XicXic, Alegria doPovo, e por ai vai. Quando se vê um mestremamulengueiro dando título para sua brincadeira, costu-ma ser um nome genérico para atender a determinadoFestival, pois nos sítios do interior, nada disso é solicita-do, nem levado em consideração. Não se tem noencenador popular as chancelas que se vê no teatro aca-dêmico tais como: diretor, dramaturgo, coreógrafo,arranjador, diretor vocal, diretor de cena, produtor musi-cal, nada disso se faz presente no Mamulengo. O MestreMamulengueiro traz intrinsecamente as funções de apre-sentador, criador, pesquisador, cantador, improvisador,encenador, manipulador, compositor, produtor cultural eadministrador. Não há folgazão que não saiba cantar, ou

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que não saiba improvisar à partir de uma frase solta poralguém da platéia. O Mestre pega aquela frase, guarda,depura, e daqui 2 minutos devolve a mesma, dentro do as-sunto, arrancando risadas da platéia. Como disse um dosgrandes Mestres deste ofício: para brincar Mamulengo temque ser poeta! Mamulengo é isto, uma coisa leve flutuandono vento. Ninguém sabe onde vai parar.

Sem dramaturgia linear, é composto por blocos que repre-sentam os personagens-tipo com seus dramas, loas e músi-cas, podendo se montado com a mesma aleatoriedade deum jogo de empilhar cubos. Se um bêbado tenta atrapalhara brincadeira, logo surge um boneco cara de pau, que vaiarranhar a dignidade daquele inoportuno, convidando estea ter compostura, ou se retirar. São estas as armas doMamulengueiro: a voz, o improviso e o boneco. Com umaQuitéria rodando na boca de cena, e um xote bem gostosode cantar e de escutar, aquela boneca de samba pode ficarmais de 3 minutos girando que ninguém arreda o pé da frenteda barraca. É uma poesia em movimento. Um recorte oníricoque encanta e fascina. A voz modula de tipo para tipo, se éum palhaço ou um covarde, a voz é anasalada. Se é umgalã, a voz é adocicada. Se for um velho, a voz é gutural.Se for uma mulher da vida, solta-se a franga e faz uma vozbem afeminada. E quanto mais exagero e esculhambação,mais a platéia se diverte, fazendo a alegria dos ali presen-tes.

Não existe receita para mamulengueiro saber cantar. Nãose tem conhecimento de técnicas de preparação vocal,aquecimento de voz, nada disso é usado por aqueles quenão tiveram uma formação acadêmica. No máximo umadose de aguardente para esquentar o peito, é o que se vêpor parte dos artistas de teatro do interior nordestino. Quan-do há alguma fórmula, aquilo é desenvolvido no modo au-todidata. Sem orientação de professor, como quase tudoque tange a cultura popular. Isto pode se estender para di-versos outros segmentos. O tocador de viola, muitas vezestoca de ouvido, e não sabe conversar sobre acordes e cam-po harmônico. A dançarina aprende copiando, sem técni-cas e exercícios preparatórios muito elaborados.

No fundo, existe algo de paradoxal nisto tudo. Onde háuma falta de educação, de formação ou instrução, há maiorcontato com a literatura oral e os saberes do povo. NoMaranhão, por exemplo, um estado dos mais pobre e me-nos assistidos do Brasil, é onde a cultura do Boi ainda ébem forte, podendo ser visto isto claramente nos festejosde São João, em junho. Parece que onde a educação nãochega, cria-se um vácuo, um vazio, que é preenchido peloselementos do povo, como os batuques, e danças como frevo

ou carimbó. Onde falta o letramento, ficam as coisas doavô e da avó. O cantar, a louvação, os gestos e os festejos.Com o advento da mídia televisiva e internet, hoje pode-mos dizer que este vazio é mais preenchido pela aculturaçãoamericana e modismos do sul, Rio e São Paulo. Ainda fa-lando sobre a lacuna educacional, onde o patrimônio imaterialocupa o lugar da falta de ensino das escolas. Podemos cons-tatar isto no Sudeste. Com seu alto índice de acesso ao quehá em Paris ou Nova Yorque, muitas expressões como oCateretê no norte de São Paulo, sumiram completamente.Num contexto onde a sociedade aprende a valorizar o queeurocentrismo chique que vira tendência e muitos deixamde olhar para o regional, atentos à cultura internacional quechega chamando atenção. Em Minas, muitas Folias de Reissucumbiram pelo fato dos herdeiros não terem mais identi-dade com a cultura mantida pelo pai e os ancestrais. Queremédio há se os velhos morrem, e não há mais quem pos-sa levar o pano para fora?

O que quero trazer como reflexão é que tudo que tange astradições mais puras do povo, estão isentos de uma doutri-nação de estética eurocêntrica. Nunca haveria o frevo, senão tivesse sido uma expressão do povo, nunca haveria osaboios dos vaqueiros, se estes tivessem tido aula de cantoerudito. O mesmo podemos dizer da voz no teatro de bo-necos. Os mamulengueiros vão aprendendo por imitação,observando seus antecessores, criando falsetes na base dotreino, construindo repertório com músicas que aprende agostar e a valorizar. Incluem algumas modas cantadas pelaavó ou pela mãe. Criam uma amálgama que inclui históriade vida e convivência com os mestres, nascendo assim, umestilo único, por mais que possa haver semelhanças comoutros homens do mesmo ofício.

Alguns tipos chamam a atenção pelo estilo vocal impressona sua figura. Um deles é o Janeiro, um boneco negro, re-presentando a parte operária do drama. Sim, há uma com-paração com a Casa Grande, onde residem os herdeirosdo poder e da terra, e os negros pobres que vivem ao re-dor e prestam serviços ao amo e seu esposa, representan-do pelo Coronel ou Capitão e sua mulher Quitéria. Masvoltando ao Janeiro, ele tem um pescoço gigante que ficaguardado, e em determinado momento o mestre espichaaquele pescoção, arrancando boas risadas da assistência.Ele tem uma voz rouca, e um jeito desconfiado. Fala pou-co, o que obriga Mateus a puxar assunto. Até que por fim,desata a falar, pergunta se já viram a namorada nova dele,canta loas, e tem duas músicas, numa delas ele diz: Janeirovai, Janeiro vem, feliz daquele a quem Deus quer bem!(CASCUDO, 2006). Curiosamente fui encontrar referên-cia desta música em Câmara Cascudo, o que prova que

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uma colcha de retalhos nasce ao buscar edificar um traba-lho deste calibre. Neste caso existe uma conexão com asJaneiras, cortejo musicado onde, em fila, passavam pelascasas dos amigos. Esta manifestação popular resistiu até asprimeiras décadas do séc. XIX, e possivelmente povoavao imaginário popular do inventor do Janeiro. Arquétipo esteque se consolidou no brinquedo, sendo usando até hojepelos antigos, e sendo adotado pelos novos mestres vin-douros.

Outro tipo que é marcado pela voz é o Coronel ManéPacarú. Sua figura é a de um homem branco bem vestido,com pinta de homem endinheirado. Pode ter uma fivelagrande na cintura para realçar sua boa energia monetária.Um bigode grosso ajuda a dar pinta de senhor de engenho.Seu jeito de falar é impaciente. Tem o temperamento quen-te, se irrita facilmente e traz um tom ameaçador no seu dis-curso. Ameaça daqui e dali, evidenciando seu caráter beli-coso. Sua voz é de garganta, como homem de voz arra-nhado pelo excesso de charuto. Toma cachaça logo demanhã e gosta de frisar isso. Para que todos saibam que éhomem com H maiúsculo. Tem muitos empregados e nãopode mostrar fraqueza, senão perde a autoridade do ban-do.

A voz também serve para antecipar certas situações. Se ocoronel fala com o Mateus, de uma forma dengosa ou do-ída, o músico já sabe logo que tem alguma coisa no ar. Ouperdeu dinheiro no jogo de azar, ou levou chifre da Quitéria...Alguma coisa machucou o cabra, ou na testa, ou no bolso.Isso já muda todo jogo, e faz o Mateus ter outro compor-tamento com o coronel, mais consolador, e menos subser-viente. É o boneco chorando um ombro amigo.

Da mesma forma, se Catirina, entra nervosa, falando comvoz autoritária, como o jeitão do Coronel, porém numaversão fêmea, pode saber que Caroca, seu marido, apron-tou poucas e boas. Normalmente neste caso, Caroca en-trou antes, e combinou com Mateus que se mulher pergun-tasse, era para falar que não viu o marido. Nestes casos,Caroca saiu para comprar leite pro menino e foi beber ca-chaça, ou algo que o valha. Por mais que o arquétipo tenhaum estado tradicional, este subtexto pode se alterar, deacordo com o estado de espírito do mesmo naquela oca-sião.

Podemos entender o nível de complexidade que envolveas vozes no Teatro de Mamulengo, além de serem inúme-ros tipos, os mesmos são mutáveis. Um tipo no aspectonormal, é bem diferente do mesmo tipo com dor de dente.E isto orienta o Mateus, que faz escada do lado de fora daempanada, e é a segunda figura mais importante, só per-

dendo para o Mestre Mamulengueiro. O Mateus deve en-tender com profundidade, todos os tipos, tratá-los com in-timidade, como cumpadre. Conhecer o passado, e os se-gredos mais secretos de cada um dos personagem. Ao mes-mo tempo, agir dentro da lógica do objeto. Se um bonecochega bravo e pede para parar a música, ele prontamenteobedece. Pela lógica, um homem é superior à um bonecode luva. No entanto, nesta realidade às avessas, Mateus éum boneco vestido de gente. Se ofende, se assombra, enão vai querer desafiar, ou desobedecer um boneco quechega espalhando brasa em cena.

A voz exerce outro aspecto importante através da cantoriaentre as cenas. Entre uma passagem e outra, onde o folgazãonecessita de alguns minutos para fazer a troca de persona-gens, buscando recursos para não dar barriga, ou lacunaentre as cenas, fazendo com que a plateia se disperse, orecurso vocal é usado para puxar baianos para mamulengo,um estilo típico desta brincadeira. Trata-se de uma espéciede baião, porém mais virado, com dizem em Glória do Goitá,quer dizer mais acelerado. São músicas boas de ouvir ecantar, presentes no repertório do cancioneiro popular. Temfunção de prender a atenção da população enquanto umnovo drama é preparado para ser encenado. Uma dessascanções traz uma quadra popular da poesia do cearenseJuvenal Galeno “Cajueiro pequenino carregadinho de flor.Eu também sou pequenino carregado de amor.” (GALENO2010). Obra ainda do séc. XIX que vem sendo carregadana mala junto com bonecos de pau, cortando o século pas-sado e chegando aos dias de hoje, levando graça e conten-tamento aos espectadores deste teatro de revista, que hojevolta a ser novidade para muitos, embora já tenha sido coi-sa comum nos tempos de outrora.

Já que entramos na poesia, um aspecto poético bem forteda brincadeira são as loas. Basicamente são versos rima-dos, recitados num galope único, fazendo alusão aos poe-tas populares do São José do Egito, ou ao autores de Cor-del, que liam seus cordéis em praça pública, para atrair aatenção dos passantes e fazer boas vendas de seus livretos.Mais uma vez o Mamulengo se apropria de um recorte dacultura nordestina, agora na poética declamada que é o maispura loa, dentro do contexto do boneco. “Mateus, mandauma loa da sua terra para satisfazer a população aqui pre-sente no terreiro”. Diz Caroca cobrando verso recitado documpadre tocador.

Por vezes, o próprio nome agigantado do boneco já é umaloa por si só. Quando Simão chega e diz, num galope só,que “está sem a chave de casa, a mulher o largou, perdeu oemprego, anda liso, leso, louco, e está tomando sopa de

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pedra enquanto a pedra cozinha”, também podemos dizerque trata-se de um texto escarrado com a mesma essênciada loa. Num galope só, glosa de aguardente, se bebe numatalagada única.

O padre é um tipo que tem umas características bem focadasno catolicismo. Quando entra, canta frases que lembram ocanto gregoriano, e aquelas melodias da missa, nas quais ocoroinha Tobias responde de forma debochada, arrancan-do gargalhadas. Trabalhar com um tipo, representar reco-nhecer tudo que lhe envolve, seus códigos, suas qualidade edefeitos, suas fraquezas e virtudes.

O soldado obedece ao inspetor que o trata de forma enér-gica e brusca. Grita: “Sentido!”, onde o soldado respondeimediatamente batendo continência. E quando o inspetorvai embora, o soldado está tão automatizado em ser trata-do daquela forma, que Benedito, negro muito astuto, o tratada mesma maneira que o tratamento dado pelo superior aosoldado. Como o soldado está numa situação quase robótica,obedece aos comandos do Benedito, como se estive com oInspetor. Situações como esta fazem a população rir larga-mente, por dois aspectos. Primeiro, pela condição humanade agir sem discernimento, de tanto repetir determinadaação, acaba obedecendo quem não tem patente militar. Eposteriormente, por fazer piada com a polícia, que está lon-ge de ser um modelo de integridade, por vezes agindo deforma racista ou interesseira.

Este é um dos grandes brilhos do Mamulengo: a inversão. Éuma realidade inventada, onde podemos inverter os padrõessociais. O pobre vence, o rico se dá mal, e a plateia gostamuito de ver tudo isto acontecendo. Uma catarse de emo-ções se dá quando o poderoso leva paulada no pé do ouvi-do, uma vez que em nossa sociedade não há espaço paraos fracos, os pobres e negros. Na torda de praça um micromundo se arma para realizar os sonhos do oprimidos, dan-do voz aos menosprezados e poder aos famigerados comoBenedito, Simão, Bastião e Baltazar.

Fica evidenciado neste ponto o caráter sócio-político dobrinquedo, que além de divertir, assola o coronelismo, oslatifundiários, os senhores de engenho, os patrões, padres,doutores e coronéis… Enfim, todas as classes de poderficam submetidas ao poderio bélico de um elenco de atorese contam pelo humor e acidez com que desenham os dra-mas da vida humana. O boneco entra como um zap na mangade quem o usa, pois se um ator dar um recado contundente,pode sofrer retaliação. No caso do títere, surge uma coura-ça, uma blindagem que põe o boneco como dono do dis-

curso, isentando o folgazão das responsabilidades ineren-tes ao recado que está sendo dado.

O Mamulengo que já foi a televisão do interior nordestino,com dezenas de seguidores. Hoje agoniza, tendo poucosrepresentantes. O grande xilogravurista J. Borges parafra-seou uma frase de Nelson Sargento que diz “o Samba ago-niza, mas não morre”, dando a entender que o Cordel estáno mesmo cenário, o que pode se estender ao nosso que-rido Mamulengo, que ganha um fôlego novo com a titulaçãode Patrimônio Imaterial em 2015, pelo IPHAN. Espera-mos que estimule a salvaguarda desta riqueza para as gera-ções vindouras, que ganha força e renovação nos seus re-dutos de origem, na capital federal e em alguns estados doSudeste.

Referências:

ALCURE, Adriana Schneider. O universo compartilhadode brincadeiras da Zona da Mata pernambucana. In:BELTRAME, Valmor Níni & MORETTI, Gilmar A. (edi-tores). Móin Móin: Revista de Estudos sobre Teatro deFormas Animadas. Jaraguá do Sul: SACAR/UDESC, ano2, v. 3, 2007b. (61-81).

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2ed. São Paulo: Global, 2006. (p. 43).

GALENO, Juvenal. Lendas e Canções Populares. 5 ed.Fortaleza: Secult, 2010

Mamulengo na Lapinha da Serra, minutos antesda apresentação - Minas Gerais –dez 2017 – Foto : Rafael Sol

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Dona Patu: Dançadeira de corpoe alma

Mariângela DinizConversando com Dona Patrocínia Lima dos Santos,mais conhecida como “Dona Patu”, entendemos por

que ela fez da sua vida umafonte de cantorias.

“Eu nasci em Pirapora, no dia17 de Março de 1928. Aindamuito jovem, minha famíliamudou pra roça, lá na Barrado Córrego Tapera, encontrocom o Rio São Francisco,

umas 6 léguas pra lá de Pedra de Santana. Eu moravacom meu pai (Cesário Lima), minha mãe (Anacleta Bar-bosa Lima), meus irmãos (Petronílio, Brás, José, Júlia, Joãoe mais um “irmão de criação” - João Domingos dos San-tos. Mais tarde João Domingos acabou se tornando meumarido.Lá, por aquelas redondezas, abaixo do Tapera, moravamo Sr. Saul Batista, sua mulher Lerinda Soares Pereira e asfilhas (Rita, Helena e Rosinha). Do outro lado do São Fran-cisco viviam o Sr. Cecilo e Sr. Leocardio. Barra do Taperaera um lugar bom de viver! Por lá, a gente plantava abó-bora, mandioca, cana, milho, feijão e verduras para o nos-so sustento. No engenho, a gente fazia melado, açúcar erapadura. Na rebaixa, preparava farinha de mandioca epuba pra bolo e beiju. Vivíamos também da pesca.O peixe era levado de canoa pra ser vendido em Pirapora.À noitinha meu pai ascendia uma fogueira na porta da casa.A fogueira acesa era motivo pra reunir a família e encon-trar os companheiros de lida. Minha mãe servia cafezinho,beiju e bolo de puba. A prosa, ao pé da fogueira, duravatempo pouco, porque o trabalho começava cedinho, quan-do rompia a barra do dia. E minha mãe, nos entretinhacom umas cantorias bonitas: “O cravo também se muda,do campo para o deserto/ De longe também se ama/ Quan-do não pode amar de perto”. Me sentia acalentada pelavoz macia de minha mãe.Nessa época, eu e o Sr. Cecilo criamos as músicas e asdanças da ‘Margarida’, do ‘Jacaré’, do ‘Engenho’, do‘Gamba’ e formamos o grupo de batuques no Tapera. Lápelos anos de 1942, conhecemos o Sr. Marcilino, o me-lhor tocador de caixa de folia. Na boca da noite a gentecomeçava a brincadeira. De longe dava pra ouvir a cantoriada moçada. Era impossível alguém ficar sentado quando oSr. Marcilino batia na caixa os nossos batuques e o batu-que do Carneiro, do Lundu e da dança do Quatro:Assim se cantava e tocava a Margarida:

“Margarida tá chorando por causa de um palitó/ Cala a boaMargarida que eu te dou outro melhó/ Menina seu pai nãoqué/ Que eu me case com você/ Depois de nós já casados/Ele vai nos compreendê. Margarida não é daqui/ Margaridaé lá de fora/ Margarida foi registrada/Na cidade dePirapora”...

O Jacaré assimera entoado:“Jacaré foi pra la-goa com intençãode se casá/ Asmeninas tão di-zendo jacaré nãosabe amá/ Roda,

roda moreninha, não se esqueça de rodá/ Outra vez moreni-nha não se esqueça de casá/ Jacaré foi pra lagoa, com inten-ção de se nadá/ Destá jacaré, que a lagoa há de secá/ Roda,roda moreninha, cada qual em seu lugá/ Roda, roda moreni-nha, cada qual em seu lugá/ Morena dos olhos d’água me dêágua pra bebê/ Não é sede, não é nada, vim aqui só pra tevê/ Roda, roda moreninha, cada qual em seu lugá/ Roda,roda moreninha, cada qual em seu lugá/ Eu disse que vouembora, é mentira eu não vou não/ Se eu tivesse que ir em-bora, eu não tava aqui mais não/ Roda, roda moreninha cadaqual em seu lugá/ Roda, roda moreninha, cada qual em seulugá”...

No ritmo do Engenho:“Eu vi o sol, vi a lua clareá, eu vi meubem dentro do canaviá/ Ô engenhonovo estaladô, bota cana nelemoedô/Eu conheço cana madura, notempo de moê/Bota cana no enge-nho, deixa a garapa corrê”...

E o Gamba era assim cantarolado:“Esse Gamba não acaba/esse

Gamba não tem fim/se esse Gamba se acabá/meu Deus queserá de mim. Esse Gamba não é daqui/esse Gamba é lá defora/esse gamba é registrado/na cidade de Pirapora”...

No embalo de vários versos do Carneiro:“Piaba ê, piaba ê, eu não sou piaba não/ Piaba ê, piaba ê,piabinha do sertão”...“A ema piou na vereda, achei meu lenço de seda/Piou, piouna vereda, achei meu lenço de seda”...“Tirei paia, tirei paia, tirei coco de dendê/ Namorei muié ca-sada sem o marido sabê”... “Olha meus carneiro, mé/Como evém berrando, mé/ Olhaele, ó ele, mé/ Como evém berrando, mé”...

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CARRANCA PÁGINA 7

“Larga seu marido, muié/Vem morá mais eu/ Seu marido éruim muié/ Quem é bom sou eu”...

Na cantoria do Lundu:“Muié veia não namora, ai, ai, ai/ porque não acha comquem, ai, ai, ai/ela salta capoeira chamando toco meu bem/pi, pá, oi, não foi nada/essa não valeu de nada/eu vou fazêpra você vê”...(entra o sapateado)

Nos volteios da dança do Quatro:“Eu vou Rosalina, eu vou, Rosalina pra São Paulo, eu vou/Que São Paulo é terra boa, terra de pobre morá/Compraboi, compra cavalo/Pra podê negociá/ Eu vou Rosalina, euvou, Rosalina pra São Paulo, eu vou”... (troca de pares e

sapateado)“Passarim tempo de roça nãome ajuda trabalhá/quando étempo da colheita, oi, ai/passarim vem me ajudá/xôpassarim, ai, ai meusabiá”....(troca de pares esapateado)O tempo foi passando e o meuamor por João Domingos dosSantos já não era só amor de“irmão de criação”. Era amorde querer bem pra vida toda.Assim, em 5 de maio de 1967casamos em Pirapora. Só tive-mos 2 filhos de coração, Ma-ria de Nazaré Chagas Lima e

Osmar Ferreira Lima. Certo dia, eu e João pegamos osmeninos e junto com meu pai, minha mãe, meus irmãos, osvizinhos (Sr. Saul Batista, Dona Lerinda, Helena, Rita eRosinha), arrumamos as trouxas e arribamos de volta praPirapora. Era chegada a hora dos meninos irem pra esco-lar estudar.Era ainda bem cedinho quando saímos nas canoas, de co-ração apertado. Meu pai e João vinham batendo remo, àsvezes revezavam com o Sr. Saul, Dona Lerinda e minhamãe. A correnteza do córrego ajudava na descida facilitan-do a força dos braços. Um bando de garças brancas fazi-am voos rasantes por cima das canoas, parecendo se des-pedir da gente. Ninguém dizia nada, era um silêncio tãogrande, que até dava pra ouvir o barulho dos remos baten-do nas águas.Naquela hora senti que a alma e o coração estavam fican-do pra trás, lá no Tapera. Pouca coisa a gente levava. Umoratório com santos de devoção da minha mãe, roupasamarradas em trouxas, algumas lamparinas, vasilhas, umpapagaio e o cão Tomé - o companheiro de campear gado,

do meu irmão Brás. De resto, o que a gente tinha ficou tudopor lá! Descemos correnteza abaixo do Tapera, pra de-sembocar no Rio São Francisco, aportando bem ali, emfrente às Três Ilhas.Em Pirapora continuamos o nosso trabalho com a pesca euma rocinha, na Ilha do Coqueiro, plantando mandioca,milho, feijão, abóbora e cana. Tempos depois, junto comoutros moradores, formamos a “Associação da Ilha doCoqueiro”. Ainda hoje, fazemos farinha e rapadura pra ven-der na cidade. Na época de fazer rapadura, a gente acordade madrugadinha pra moer cana no engenho. São dias edias fazendo rapadura. Quando é tempo de preparar a fari-nha, todos vão pra ajudar aquele que tá fazendo. Assim,todo nosso trabalho é feito em mutirão.Com a nossa vinda pra cidade, vieram também as cantoriase as danças. Nos anos de 1970, formamos o Grupo SantaCruz, incentivado por Dona Hélia Diniz, junto com Lerinda,Helena, Lídio, Nazinha, Alcina, Joana, Júlio, Cesário (meupai), João Domingos (meu marido), meus irmãos João eBrás, Jostino, Carlos Roberto e Anjão. E o Grupo SantaCruz tá aí, mostrando pra essa moçada que vale a penacontinuar com os nossos batuques e tradições”, disse DonaBatú, relembrando com riqueza de detalhes toda a sua saga.No final, da conversa, perguntei:- Você gosta mesmo é de dançar, né Patu?E Patu respondeu:- “Virgem Nosso Deus, adoro dançar, ainda mais no GrupoSanta Cruz! Eu sempre falo pra esses mais novos que elesprecisam ter coragem, não desanimar! Vocês vão seguindodireitinho, pra quando eu saí vocês ficarem no meu lugar.Vocês tem que ter coragem, fé e animação pra o gruporomper pra frente”Se muitos foram os desejos de Patu, se tantos foram seuscaminhos entre córregos, ofícios e cantorias, o tempo ca-minhou na delicadeza do seu fazer cotidiano. No dia 7 deJunho de 2016, Dona Patu embarcou na correnteza eternade um riachinho, deixando (como grande legado cultural)as cantorias e seu jeito bonito de dançar. Patu partiu carre-gando uma mala de bem-querer, barulhos de correnteza,som de caixas, violas e cantares.Ela partiu, para sempre, embalada naquela velha canção:

“O cravo tambémse muda, do campopara o deserto, delonge também seama, quando nãopode amar de per-to”...

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Requiém da Saudade: sobre oparadoxo de

um desmesurado Sertão que cabedentro da gente

Ramiro Esdras Carneiro Batista1 & Douglas NélioLima Oliveira2

1

Ramiro EsdrasC a r n e i r oBatista,Pedagogo eantropólogoem formação,é professor

de legislaçãoe políticas públicas daUniversidadeFederaldo Amapá/UNIFAP.

2

DouglasNélio Limade Oliveira,editor daEditoraFolheando,

arquiteto e urbanista, escritor, vencedor do Prêmio da FundaçãoCultural do Pará com o romance “Histórias de Chuva”, em 2017, e colaborador na revistaLiteratura e Fechadura.

“Moço: toda saudade é uma espéciede velhice (...) Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda

encontra.”

(João Guimarães Rosa)

A etimologia da palavra “sertão” advém dedeserto, daí a pecha desertão e seu consequentediminutivo, o Sertão. Não nos lembrando mais de emqual lusófono bebemos da definição, deixamos aquinossa reverência e citação ao autor desconhecido. OSertão trata, portanto, daquele arranjo sócio ambiental

ressequido do interior do Brasil, cuja beleza constata-se na desmesura das paisagens e horizontes; além deum alegado minimalismo e “falta de gentes”, aliada àprodigiosa multiplicação de gado vacum. Lugares queos portugueses consideravam como “despovoados” porestarem distantes da costa atlântica, em especial naszonas mais secas onde o bioma Caatinga encontra-secom o Cerrado, e que se mostraram no decurso doperíodo colonial propícios aos “fazeres vaqueanos” eciclos do gado, além da contemporânea prevalência deum Brasil avesso aos discursos da modernidade. Étambém desses lugares e dessa saudade sem mesura quefoi universalizada na obra de João Guimarães Rosa, quetrata o labor literário de um intelectual que Franz Kafkachamaria de “escritor menor”, mas que nós preferimoscognominar como um “mestre da periferia”.

O januarense Manoel Ambrósio Alves deOliveira foi um sábio de grata memória a seusconterrâneos; professor, jornalista, folclorista, poeta eromancista que viveu e produziu vasta e eclética obrahistórica e literária no sertão do alto-médio SãoFrancisco, entre o fim do século XIX e a primeirametade do período novecentista. Conforme pontuouFrancisco de Vasconcellos em publicação de 1974, osromances Hercilia, Os Laras e A Ermida do Planalto,são parte da própria obra com a qual o autor mais serealizou publicamente, faltando para compor oquatrilho a publicação de Os Mellos, que só agora, emmais uma homenagem póstuma, vem a lume. Os Mellos– Jagunços e Potentados no Sertão do São Francisco,compõe uma série de textos que poderíamos chamarde romances históricos, mas que Ambrósio-paiclassificava como “novelas regionais”. Como na maiorparte dos constructos do universo ambrosiano, pode-sepostular que os arcaísmos em uso são produto docotidiano etnográfico do autor, que propõe o exercíciode recompor na escrita os jogos de oralidade de suasgentes. O livro a ser lançado em fins de agosto de 2018,dentro da programação da Semana Mineira de Folclore,foi transcrito de um manuscrito do autor datado depróprio punho em abril de 1932. Nele, há expressões eefeitos sonoros que por sua originalidade e desuso noslançam dúvidas que talvez nunca sejam equacionadas,descrição ambrosiana que só alimenta nossa vervemineiro-bahiana.

Os Mellos aparenta se alinhar à obra Os Laras,no sentido de que retrata o feudalismo tardio queimperou entre o norte de Minas e sul da Bahia, nodecorrer de todo o século XIX até meados do século

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XX. Manoel Ambrósio trata então, nesta obra, deum recorte histórico, geográfico e sociológicomuito próximo ao descrito e imortalizado na obraroseana, sobretudo em Grande Sertão Veredas, aúltima também ambientada no sertão do alto-médio Opará, depois rebatizado rio de São Francisco.Neste livro que ora vem a lume, prevalece a lógicade imensos territórios controlados por poucosfazendeiros, ainda vestidos de idade média, queexercem a ordem ao arrepio das novas leisrepublicanas, estribando sua força política emvínculos de parentesco, rifles, bacamartes,jagunçagem e “valentões a serviço”. São osconhecidos mineiros tardios, herdeiros de umaorganização fundiária patriarcal que remonta aotempo das Bandeiras paulistas, sertão adentro,gente que resistiu enquanto pode á implantaçãoda nova ordem republicana.

Ambrósio também demonstra seu vínculocom a produção literária oitocentista, quando fazbreve referência a ilha dos Guahibas de São Romão,congruente com as cenas de fundação do país quereificam o lugar da pessoa e dos coletivos indígenascomo aqueles que “são anteriores ao Brasil”,conforme nos lembra João Pacheco de Oliveira.

Como um escritor de seu tempo, não deixa de chamaratenção que nessa obra Ambrósio reifica a produção dainvisibilidade indígena, quando é sabido que nestecontexto distintos povos Jê ainda prevaleciam em suaspráticas sócio econômicas as margens do basilisco “riodos currais”.

Por fim, convidamos à leitura ambrosianasertanejos, sertanistas e todos os que querem conhecerum legítimo “tirotêi” norte-mineiro. Aqui os leitorestravarão contato com um certo João do Arrozal (Nãoseria Joca Ramiro?), e ainda com o poderoso Henriquede Mello (Hermógenes redivivo?), além de uma sériede personagens e eventos, em alguma medidafamiliares, com o qual o autor nos brinda. Trata-se domesmo “Sertão [que] é dentro da gente”, conformeapontava o “compadre meu Quelémem”.

Notas1 Ramiro Esdras Carneiro Batista,Pedagogo e antropólogo em formação, é professorde legislação e políticas públicas da Universidade Federaldo Amapá/UNIFAP.2 Douglas Nélio Lima de Oliveira, editor da Editora Folheando,arquiteto e urbanista, escritor, vencedor do Prêmio daFundaçãoCultural do Pará com o romance “ Histórias de Chuva” ,em 2017, e colaborador na revista Literatura e Fechadura.

Relatório de Atividades 2017-2018Edméia da Conceição de Faria Oliveira

1.Participação das Assembleias da Comissão Mineirade Folclore.

2.Encontro com a Trupe Conta Contos e realização deatividades no Parque Municipal “ contação de his-

tória, roda de lei-tura, cantigas ebrincadeiras tradi-c i o n a i s ,enriquecidas pelasquadrinhas folcló-ricas da ColeçãoAlecrim – Minhas

Andorinhas, Flores e Amores, O que é, o que é?

3.Primeiro Encontrão de Contadores de História deBelo Horizonte, no SESC PALADIUM – home-nagem ao Dia Internacional do Contador de Histó-ria “ comemorado no dia 20 de março. O evento,uma iniciativa dos contadores Pierre André e BeatrizMyrrha, reuniu mais de 80 contadores de Minas eoutros estados numa maratona de 12 horas

ininterruptas.Contei a Len-da da Espe-rança – histó-ria da tradiçãooral.

4. Partici-pação no Curso de PatrimônioCultural Imaterial – Cultura daInfância – no Arena da Cultura– Belo Horizonte/MG.

5.Autógrafo dos livros FolclorePoético e Todos Acorda-mos um Dia, no curso deCultura da Infância, na Arenada Cultura – Belo Horizonte/MG.

6.Encontros semanais de contadores de história na Bi-blioteca Infantil e Juvenil de Belo Horizonte.

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7.Realização de atividades do Projeto Leitura na Cal-çada na antiga Praça do Circo em Pompéu/MG.

8.Bate-papo com alunos da Escola Municipal Tabe-lião João Batista da Rocha em Pompéu/MG e au-tógrafo dos livros O Segredo da Rainha e Folclo-re Poético.

9.Criação de biblioteca com doação de livros no AsiloSão Vicente de Paula em Pompéu (MG), roda deversos e roda de história dos próprios moradores.

10. Releitura da obra de Antônio Henrique Weitzel“ Folclore Literário e Linguístico, Vozes do Sa-ber das Gentes e Folcterapias da fala.

Quem é Weitzel? Por que essa releitura agora?Professor universitário, pesquisador. Um dos vete-ranos da Comissão Mineira de Folclore. De Juizde Fora (MG). Uma vida dedicada à pesquisa eestudo da Literatura Oral e da Linguagem Popular.Professor Weitzel já nos brindou com quatro livros,resultados de suas memórias, de suas andanças, desuas análises, como afirma o autor.O motivo que me leva a ler e reler a obra dessemestre é o encantamento com a poesia e o saberdo povo. E a “segurança da abordagem, realizadacom firmeza e objetividade científica, paciênciaartesanal e sabedoria, além de entusiasmo e inteli-gência”, como observa Saul Martins na apresenta-ção do primeiro livro Folclore Literário eLinguístico. O que se aplica igualmente aos de-mais.Soma-se a isso o fato de ter sido o ProfessorWeitzel, sem o saber, o primeiro a dar-me lições deFolclore. E a história, inédita, de como este livroveio cair em minhas mãos. Foi por volta de 1986.Eu morava em Pompéu. Vim a Belo Horizonte,numa daquelas viagens para “buscar fogo”, comunsà gente do interior. Passando na porta do Paláciodas Artes, uma mesa rodeada de cadeiras fez umgesto, lá de dentro, convidando para descansar.Entrei. Olhei para as prateleiras. Um livro de capaazul, com uma boca falando a um ouvido, me fezsinal. Aproximei. A boca soprou algumas palavras.O livro saltou lá de cima e veio postar-se à mesa,como convidado, bem diante dos meus olhos. Abri.Li a dedicatória. Emoção! O índice pegou meudedo e mandou virar a página. Em cada página, aboca contava uma história, declamava umaquadrinha, cantava uma cantiga, convidava para

entrar na roda e brin-car. Brincando, fui sal-tando página, comopulavam fogueira nasrodas de despedida.Se olhava o relógio efazia menção de le-vantar, o ouvido mesegurava para ouvir

mais uma. E ia me arrastando para dentro do livro.De repente, minhas colegas do Grupo Escolar “Pre-sidente Dutra”, a Escola da Dona Maninha, apare-ceram, entraram na roda e começaram a cantar ebrincar. Tocou a sineta. Pulei para outra página.Iniciei a caminhada de volta da escola no meio dameninada. Osmaiores co-meçaram ojogo de tra-va-línguas er é p l i c a s .Tudo estavaali no papel. Ena memóriade infância.Por pouco, não perdi o último ônibus, das 19ho-ras. E o livro me segurando... A boca cochichou nomeu ouvido. Fui até o caixa. Paguei. E saímos cor-rendo para a rodoviária. O livro nu como nasceu.Fora da bolsa. Batendo palmas e cantando em por-tuguês e francês:Onde está a Margarida? / Où est la Marguerite?Olê, olé, olá! Oh gai! Oh gai! Oh gai! Onde está a Margarida? Où est la Marguerite?Olê, seus cavaleiros! Oh gai, franc cavalier!

Eu sou pobre, pobre, pobre / Je suis pauvre,pauvre, pauvre de marré/ marré, marré;Je m’en vais, m’en vais, m’en vais ; Eu sou pobre, pobre, pobreJe suis pauvre, pauvre, pauvre de marré desci. Je m’en vais d’ici.

Ahn!? Então é isso...” Minhas colegas e eu cantá-vamos “de marré, marré, marré...” sem nunca aten-tarmos ao sentido de tais palavras. Sem sentido.Ouvimos assim, aprendemos assim. Cantávamosassim. E pronto. Compreendíamos o significado dasdemais palavras, dos demais versos. A cantiga, abrincadeira falava por si só. Isso bastava para onosso entendimento e diversão.

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No curso preparatório para os Exames de Sufici-ência em Francês, conheci algumas cantigas e brin-cadeiras folclóricas. Ganhei do professor uma fitagravada: Chansons Folclorikes. Minha colega mepassou cópia da letra. E eu as utilizei nas aulas, comorecurso didático, visando à ludicidade, à motivaçãodos alunos. Mas o objetivo era o estudo da língua.Os estudos folclóricos, eu começava ali nas liçõesdo mestre Weitzel. Que riqueza!No ônibus, o livro não me deixou dormir. A bocainsistia: “lambe o dedo e vira a página!” Nãodesgrudou mais. Em casa, foi comigo para a cama.Dormiu debaixo do travesseiro. Para não incomo-dar o sono do marido, a meu lado. De manhã, en-trou na pasta. Foi para a escola brincar com os alu-nos.Em 1991, juntou com outro livro Folclore em Mi-nas Gerais, do Professor Saul Martins, que tam-

bém saltou da prateleira na mesma livraria, no Palá-cio das Artes. Este, por obra do Divino EspíritoSanto. A Pomba saiu de dentro de um quadro ver-melho na capa, veio em minha direção. Desceu so-bre mim. Pronto. Estava traçado o meu destino defolclorista. Os dois, cúmplices, não me deixarammais. Eu ainda não conhecia os autores. E já osadmirava. Já os amava. Já os seguia.Conheci, enfim, o Professor Saul. No primeiro en-contro, disse: “Vou te fazer folclorista.” Encheu-meos braços de livros. Logo, vieram as aulas.Presenciais nos sábados, na casa do mestre. Du-rante a semana, em casa, com o livro Folclore:Teoria e Método. Em 2000, publico o primeiro li-vro, Folclore Poético. E sou admitida na Comis-são Mineira de Folclore como membro efetivo.Em 2002, tenho a graça de viajar e ministrar umCurso com o Professor Weitzel e o nosso saudosoProfessor Domingos Diniz em Pirapora. E recebo o

livro Vozes do Saber dasGentes, autografadopelo autor.Semana passada, últimasaulas do Curso dePatrimônio CulturalImaterial – Cultura da In-fância _ a professora che-ga com uma sacola de li-

vros, espalha sobre a mesa. Os alunos em volta,folheando, comentando, fotografando. De repen-te, destaca-se o Folclore Literário e Linguístico,de Antônio Henrique Weitzel, citado como o maisinteressante, mais completo, mais divertido, maisdidático. Encho o peito de orgulho: “Eu conheçopessoalmente o autor, seu trabalho, sua obra” Econto dos outros títulos, que a professora desco-nhece.Em casa, vou direto à estante. Estou relendo. E

estudando.E aprenden-do. Quemme dera ou-tro cursocom o Pro-fessor-Au-tor! Maisuma vez,faço minhasas palavrasdo Profes-sor SaulMartins, quese aplicam a

toda a obra desse mestre da Literatura Oral e Lin-guagem Popular: “O livro ultrapassa superlativa-mente os outros do mesmo gênero, anteriormentepublicados, por seu valor didático e por sua lar-gueza com respeito ao tema. (...) É obra que agra-da a todos, seja qual for a procedência cultural dequem lê – mestres, lingüistas, leigos e iniciados, paraestudo ou mera recreação.”

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José Carlos Dias conta casos dossinos de São João Del Rei e outroscasos.

Um causo, uma estória, como já se escreveu, é contadasobre os sinos de São João del Rei. Há quem diga serverdadeiro, o mais provável, entretanto, é que ela habita oamplo espectro do folclore desta bela cidade de MinasGerais.

Os sinos de São João del Rei são famosos no Brasil, jáforam tema de inúmeros programas de TV e estão presentesem vídeos na rede mundial. Eles cumprem um ritual antesde exercerem seus ofícios: são batizados, recebem águabenta a fim de impelir para longe todo mal, ao mesmo tempoem que recebem um nome. Jerônimo, esse era o nome deum bonito sino de bronze que adornava a torre da magníficaigreja de São Francisco de Assis de São João del Rei. Tinhaa idade de 138 anos, pesava cerca de quatro toneladas. Osseus dobres e repiques se destacavam entre todos os outrossinos das demais igrejas, e a população da cidade sabiadiferenciá-lo. Era destacada a sua participação nas festasreligiosas e na vida litúrgica da igreja.

Ao final da década de 1930, Jerônimo cometeu um gravedelito que lhe custou à própria existência. Foi no períododa Semana Santa. Finalizava-se o maior, o mais belo eventolitúrgico da cidade cuja tradição e o fervor de toda a suapopulação faz celebrar.

A Procissão dos Passos acontecia, e todos os sinos, detodas as igrejas da cidade, se dobravam no que se chama“combate dos sinos”. Os sineiros se esforçavam ao máximo,cada um mais energicamente, de modo a fazer com que osseus sinos tivessem mais destaque do que os outros. Nãopoderia ser diferente com Jerônimo. Mas, naquele dia, eleficou mudo, um silêncio que falava, alguma coisa graveacontecera. E o motivo logo foi propagado, como o tombardas pedras de um dominó, a notícia foi se irradiando entretodos: o sineiro João Pilão estava caído, morto porJerônimo.

O João Pilão, diziam todos, era o melhor dos sineiros, suafama o consagrava, razão pela qual lhe empenharam

Jerônimo. Mas, também, pesava sobre João Pilão a vozpública de que abusava dos limites cabíveis no “gole”, era oque o que diziam, também.

A verdade é que o acidente foi fatal, João Pilão foiarremessado por Jerônimo de cima da torre, e o corpo dopobre homem se estatelou e jazia em frente à famosa igreja.A consequência foi que Jerônimo não poderia ficarsimplesmente isento de culpabilidade. Foi amarrado, ficoususpenso e proibido de ser tocado até que tivesse, como sediz, “o devido processo legal e transitado em julgado”. Oresultado foi que Jerônimo, ao final, ficou reconhecido comoculpado, sendo-lhe imposta a pena de 10 anos de reclusãoe, para tanto, levado, recolhido à cadeia pública.

Transcorrido esse tempo, Jerônimo foi refundido e seus“restos mortais” deram luz a Francisco, novo sino da igrejaSão Francisco. Francisco não se importa com a genética,mas é inegável que a herança recebida fica evidenciada porseus belos badalos

DiamantinaFoi em Diamantina, para os lados da Chapada, Minas Gerais,que se deu o fato, desses que à luz da ciência é rapidamenteesclarecido, pois não são raros, contudo, não deixam decausar assombro e impressionam aos que o presenciam,tanto mais, tendo em conta as circunstâncias em que sederam. Foi em 1833, tratava-se de um pobre cidadão, lavrador deterras alheias, tudo que ele produzia era preciso mear como dono do quinhão. A terra de pouca produtividade, muitohostil, exigia serviço duro de foice e enxada. Era casado etinha uma prole considerável.Um dia, este cidadão amanheceu morto. Desolada a famíliatratou do enterro, e para tanto foi necessário o apoio dospoucos amigos que havia para preparar o defunto, arrumar-lhe uma vestimenta “emprestada”, de modo que aquelesimples cidadão, ao menos em sua hora última, partisse comdignidade. Não houve tempo de velório, teriam de transportá-lo àcidade para, se possível, receber a benção e encomendaçãodo senhor vigário. Seguiu o féretro por tortuoso caminho,acompanhado dos mesmos poucos amigos e das amigassolidarias à viúva. Para conferir as práticas cristãs e oscostumes do local, os homens iam à frente revezando-se

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nas alças do caixão; as mulheres seguiam logo atrás comseus terços à mão puxando as orações e canto delamentação.

Em dado momento quandouma pequena pausa sefazia, dentro do caixão dopobre homem seimprimiram movimentoscausando assombro e osque o carregavam deixaramcair ao chão, tomados depavor empreenderamdesabalada carreira. Asmulheres caíram ao chão dejoelhos, olhos fechados de

medo, gritavam expressões como “valha meu Deus”, ou

“pela Santíssima Trindade”, ou ainda “Nossa do PerpétuoSocorro, acudi-nos”.Ao mesmo tempo, isso foi triste e cômico. Os poucosremanescentes conseguiram abrir o caixão e livrar o homemde uma asfixia iminente.Tratava-se de catalepsia que o humilde lavrador haviasofrido. É preciso cautela para se evitar mortes aparentes.

SIRENÍDEO É A MÃE!!!(Sobre diálogos no Ágape)

Por Ramiro Esdras Carneiro Batista & Roselles Magalhães Felício, conto engendradopor ocasião do centenário de Saul Alves Martins. Mãe D’Água do pincel de TerezinhaEscobar.

- E esta “[v]ontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira... que me paralisa o trabalho... vemdela, de suas noites negras... E este hábito de sofrer, que tanto me diverte, é herança... é doce herança... tambémeste orgulho, este olhar cabisbaixo... Como dói, Itabira!”...

- Bom dia! Cantando saudades, amigo Nézinho?

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- Bom dia meu amigo Saúl... você sabe que princípiode cantiga é assobio... por isso aproveitava a manhã ededilhava aqui uns versos drummondianos, na minha viola.Mas não vou mais assustá-lo com minha voz cavernosa.Sente-se...

- Esteja à vontade em vossas melodias... Sóacho que essa Itabira começa com jóta.

- Verdade, começa nos céus do norte, nas lagoas ebarrancas do São Francisco!

- Você sabe, amigo, que depois dessas novasconvenções geográficas... eu fico me perguntando se aindanos consideram de lá... É que meu torrão nascituro já estáatualmente em Bonito de Minas, e o seu no porto deManga...

- De lá sim senhor!? Estas convenções não passamde vôo de galinha... Januária é dentro da gente!!! É todo omundo sanfranciscano, a terra da prometida-fartura, já diziameu pai...

- Deveras meu amigo, tempos houve em que Januáriaera o tudo. As pessoas precisam voltar a ler o mestre-Ambrósio... receio que já não se entenda mais...

- Etambém o mestre-Saúl...

- Bondade sua amigo. E porque não falastes dasletras do Ambrósio-Filho!?

- Não se pode comparar com os fazeres de um ilustreantropólogo...

- Nézinho, deixe de modéstias que isto não nosconvêm... Os folcloristas são os primeiros antropólogos,antes mesmo que a ciência antropológica fosse conhecida eobtivesse seu status...

- Pode ser amigo, mas não sei se gosto dessas novasciências... Tenho tendência a ignorar essa chusma deconceitos, ora tidos como elementares, ora comoabsolutos...

- Eu também não. Vejo que o Folclore é algo como ouniverso-ambrosiano: Assaz abrangente... Bem mais do quenos dá a entender... não cabe e nem se restringe aosprocedimentos hipotético-dedutivos da ciência moderna...insisto e tenho dito que é preciso retornar ao mestre-Ambrósio.

- Veja os absurdos deles! Querem agora nominarnossa mãe-d’água de “sirenídeo”, pode uma coisa dessa?

- Não, não pode. Não tem cabimento, Nézinho!Deixa ela saber!?!

- Transforma todos eles em mulher! (kkkkkkk)...Num piscar de olhos! (kkkkkkkk)

- E é bem feito! (kkkkkkk)- Sirenídeo é a mãe! Bem feito pra eles!- Já vou indo... Ave Nézinho!- Vá pela sombra. Ave Saúl!

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Relatório Movimento dos Folcloristas em Minas GeraisContrato N°SEC/ SFIC/FEC/CONTRATO/ 177/2017 - Relatóriointermediário.

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Opções MetodológicasO maior desafio da produção de base de dados repousano âmbito das informações selecionadas. No caso do Sis-tema de Informações da Comissão Mineira de Folclore, háque entender o que se abriga sobre a palavra Folclore, cujaconcepção se modificou profundamente ao longo do tem-po.Para efeito deste relatório entende-se por Folclore:

Folclore é o estudo do saber popular fixado emhábitos sustentados em valores examinados sobo enfoque de como esses valores se fixam emrelações pessoais e de que modo sãocredenciados, descredenciados ou desconhecidosnas instâncias legitimadoras desses saberes.

Sob esse ponto de vista, o grande guarda chuva tem o nomede “Saber Popular”. Porém, não é qualquer saber popular,mas aqueles que se fixam em “Hábitos” entendidos como a“Segunda Natureza”. É assim porque tem que ser assim.Há mais um ponto a ressaltar: existem “instânciaslegitimadoras” do saber fixado em hábitos. Essas instânciasse deparam com tais hábitos para credenciá-los oudescredenciá-los e muitos deles lhes passam despercebi-dos, o que quer dizer que são desconhecidos ou despreza-dos nos processos de credenciamento oudescredenciamento.Ora com base no que é relevante para o sistema de infor-mação, há mais do que registrar os estudos do saber popu-lar fixado em hábitos, há que registrar também os estudosdos processos de credenciamento e descredenciamentodesse saber e, consequentemente, as agendas de mudançae recomendação de ações adequadas a saberescredenciados.Desse modo, o Sistema de Informações do Folclore deveabranger:Sistema dos Estudos dos Saberes:

1.Populares fixados em hábitos2.Populares justificados por saberes técnicos3.Populares fixados em hábitos e aprovados por ins-

tâncias legitimadoras4.Populares fixados em hábitos e combatidos por ins-

tâncias legitimadoras5.Padrões normativos propostos por instancias

legitimadoras de ações6.Sistemas de normas de justificativas de valores para

hábitos e ações não habituais.Sinteticamente, chega-se à seguinte ordem de agrupa-mento de informações:

Questão estruturante: Qual ou quais os segredos sus-tentam e celebram a verdade desses ramos de saber?

1. Saber viver e identidade local - toponímia e topofilia.Bairros, pedaços, quarteirões, vilas, favelas. A fi-xação dos nomes de lugares e sua história. Rela-ções de poder, mando, cooperação e conflitos comoutros lugares.

2. Saber viver e identidade grupal - Famílias, comu-nidades, grupos étnicos ou de procedência, tribos,grupos de interesse, galeras, torcidas organizadas,pertencimentos a igrejas.

3. Saber viver e direito à vida. Saber fazer e aprendera saber fazer. Trabalho e ritmos, educação, saúde,mobilidade e sustentabilidade.

4. Saber viver e atribuição de responsabilidade - Po-der e Nome do Pai, arquétipos, lei, polícia, consci-ência moral e coação. Como se transmitem valo-res. Violência física, violência simbólica, afetividadee rejeição. Culpa e dever cumprido. Amizade e ini-mizade.

5. Saber viver e representação: Os discursos longos.Celebrações, rituais, danças, encenações, contos,casos.

6. Saber viver e Lúdica - jogos, brinquedos, brinca-deiras, ritos de passagem.

7. Cidadania - estadania e condições da globalização- Como se reconhece a Humanidade do outro - omais humano e o menos humano. Com quem sepode conversar. Prática de direitos e ciência doOutro. Poder e submissão.

8. Dádiva, mercado; confiança e fraude. Cliente, fre-guês, companheiro, fiel, consumidor, cativo e remi-do. Saber viver nas relações de solidariedade/con-flito.

9. Saber viver e desafios à compreensão na diversi-dade. Discursos Breves. Ditos, provérbios e pre-ceitos, na tradição oral. Certezas invencíveis edialogáveis baseadas na fé, nas crenças e nas im-posições de Poder.

10. Tradição Popular e Tradição Ilustrada. História Orale Tradição Oral. Doutrinas e ideologias - a tradi-ção ilustrada. Literatura e Oratura.

11. Comissões de Folclore e a rede da diversidade: Dadiversidade fundada na unidade nacional à diversi-dade fundada na diversidade étnica .a) O que temsido estudado, - vertentes das principais ativida-des, projetos e obras desenvolvidas - bases de sus-tentação e condições de realização e de frustração.b) O que fazem outros grupos, ongs, secretarias decultura, departamentos universitários, linhas de pes-quisa, forma de incentivo e financiamento, condi-ções materiais e mobilização, forma deinstitucionalização. c) O Sistema Nacional de Cul-tura e suas articulações. Promessas e silêncios.

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Ficha da obra:MENDES, Murilo. História do Brasil, 1932. Rio de Ja-neiro: Nova Fronteira, 1991. 127 páginas. [Primeira edi-ção: Rio de Janeiro: Ariel editora, 1932][Acervo de JoséMoreira de Souza, disponível no Centro de Celebração deMinas da Comissão Mineira de Folclore]

Informações relevantes sobre o autor1902-1975Dilva Frazão escreveu; Murilo Mendes (1901-1975) foium poeta brasileiro. Fez parte do Segundo Tempo Moder-nista. Recebeu o Prêmio Graça Aranha com seu primeirolivro “Poemas”. Participou do Movimento Antropofágico,que buscava uma vinculação com as origens do Brasil.Murilo Monteiro Mendes (1901-1975), conhecido comoMurilo Mendes, nasceu em Juiz de Fora, em Minas Gerais,no dia 13 de maio de 1901. Iniciou seus estudos na terranatal, indo em seguida para o Internato do Colégio Salesianoem Niterói, Rio de Janeiro. Em 1920, muda-se para a ca-pital, onde participa do Movimento Antropofágico. Estreiana literatura escrevendo para duas revistas do modernis-mo, Terra Roxa e Outras Terras e Antropofagia.Em 1930, lançou seu primeiro livro “Poemas”. A poesia dageração de 30 teve grande preocupação social. A poesiade Murilo Mendes analisa o destino do ser humano comoum todo. Em 1932 escreve o poema “História do Brasil”,uma obra de fundo nacionalista, que retrata nossa históriasob uma visão ufanista-irônica.Em 1934, ingressa num grupo católico formado por artistase intelectuais e desenvolve temas religiosos. Em parceriacom o escritor Jorge de Lima, escreve “Tempos e Eterni-dade” (1935), onde conciliam a poesia religiosa com ascontradições do eu, com a preocupação social e com osobrenatural surrealista. Juntos foram os dois principais re-presentantes da poesia religiosa cultivada na segunda gera-ção do Modernismo. Nessa época, emprega-se como ban-cário e inspetor de ensino.Em 1938 escreve “A Poesia em Pânico”. Em 1944, escre-ve a prosa “O Discípulo de Emaús”. Trabalhou no Ministé-rio da Fazenda e no Cartório da 4ª Vara de Família. Casa-se com Maria da Saudade de Cortesão. O casal não tevefilhos. Em 1948, escreve “Janela do Caos”. Consideradopor alguns como o principal representante da PoesiaSurrealista, a obra de Murilo apresenta também traços dapoesia social, além do novo barroco e do cristianismo.Em 1953, foi convidado para lecionar literatura brasileiraem Lisboa. De 1953 a 1955, percorreu diversos países daEuropa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira.Em 1957, se estabeleceu em Roma, onde também lecionouLiteratura Brasileira.

Murilo Monteiro Mendes faleceu, em Estoril, Portugal, nodia 13 de agosto de 1975.

Plano da obra: tema, roteiro discursivo.A obra se apresenta em sessenta poemas nos quais se des-tacam momentos da História do Brasil. O cuidado moder-nista do autor subverte a preocupação de fidelidade às ca-tegorias abstratas de tempo e até mesmo de lugares. O pla-no discursivo do autor favorece diálogos importantes comnarrativas populares, nas quais, história e lugares sãoconstruídos sob coordenadas do vivido. Certamente, a lite-ratura erudita que determina o fazer história diria ser essaobra um “samba do crioulo doido”, Contudo, o autor captaem profundidade o tempo vivido para o narrador popularda história.A edição que serve de base a estes registros é elaboradacom cuidado crítico de Luciana Stegagno Picchio, a qualreproduz nas orelhas a apresentação de Aníbal Machadoelaborada para a edição original de 1932, abre a ediçãoatual com ensaio de apresentação e encerra no “Notas” emque são analisados os 60 poemas , seguidas de bibliografiado autor e sobre sua obra.A ordem do Murilo é a ordem da história popular. O antesvem depois e o depois fica no meio. Lembra-me o caso deum aluno que foi fazer prova de História. O professor es-creveu no quadro negro – alguém sabe hoje o que é quadronegro? -: Dissertar sobre OS ORDEUS. Aí veio um bran-co absoluto na cabeça da criança. O professor pensava terEscrito AS ORDENS, mas o A com um rabinho determi-nou que o aluno lesse O, esquecendo o rabo. Toda essaconfusão pôs a criança a delirar e escreveu: “Os Ordeuseram um povo muito belicoso que viveu na Ásia Menor nostempos de Abraão.”Destaques das divisõesOrelha: Aníbal Machado, 1932Vale a pena transcrever: Cabe aqui uma pergunta: Será oseu espírito que se dirige rindo para a história, ou é a nossaprópria história que já se oferece rindo para a imaginaçãodo poeta? Porque nós temos motivos impagáveis... Já notronco da árvore indígena Mário Macunaíma de Andradetinha dado uma dentada forte e talvez se ferido; Oswald deAndrade colheu uma resina cheirosa, líquido moral de seucerne; Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Jorge Lima eoutros cruzaram a canivete seu nome com o de suas namo-radas. Murilo subiu a árvore, agitou-lhe os galhos como umpossesso, gritou, fez escândalo.” [Escândalo entre os eru-ditos, porque o conto popular cria história sem medo dotempo abstrato. Vejam Revista da Comissão Mineira deFolclore nº 27: “Memória popular e narração do mito”.Vejam também a ficha da obra “Sítios e Personagens” e aluta do autor para corrigir lendas.]

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[Prefácio] Pequena História da História do Brasil deMurilo Mendes.Luciana Stegagno Picchio, Roma Outubro de 1988. P. 5-7Surpresa! A organizadora desta edição se chama Luciana!Até aí nenhuma surpresa. Tem como sobre nome StegagnoPicchio! Pode gerar um certo estranhamento, mas nem tan-to. Muitos sobrenomes italianos povoam a literatura e osestudos no Brasil. A surpresa aparece quando ela se decla-ra italiana e escreve da cidade de Roma! Maior ainda quan-do se dá a conhecer não como uma brasilianista, mas amantede um Brasil “que para mim se tornou pátria de eleição”!!!Tudo isto se torna mais esclarecedor no momento em que aautora nos revela que Murilo Mendes rejeitou seu Históriado Brasil ao se tornar universal. Contraditoriamente, afir-ma a autora, Murilo ao peregrinar pelos Estados Unidos,México, Portugal e Itália cria “cenáculos de adeptos que seencontram no seu nome.” Nós do lado de cá podemos ima-ginar a rejeição do autor ao seu História. O mundo não seinteressa por um momento de livre associação de um brasi-leiro no Brasil cheio de contradições.Luciana discorda – e que fique bem discordado -. “A His-tória de Murilo (...) é uma história exemplar do povo bra-sileiro, mas uma história em quadrinhos poéticos, “estória”em verso, em que história e mitologia, tradição e folclore,realidade e fantasia se misturam e convergem assim comocostumam misturar-se na cultura viva e nos sonhos dos ha-bitantes do Brasil.” P, 6

1. Ficha da obra: SOUZA, P. Joaquim Silvério de.Sítios e Personagens S. Paulo:Typographia Salesiana,1897. PP. 375 [Acervo de José Moreira de Souza queestará disponível no Centro de Celebração de Mi-nas]

2. Informações relevantes sobre o autor:

Joaquim Silvério de Souza nasceu em São Migueldo Piracicaba, então pertencente à comarca deSanta Bárbara. Estudou no Seminário de Marianae concluiu os estudos no Seminário do Caraça. Foiarguido pelo Imperador Dom Pedro II, no ano de1881, após ser escolhido como um dos alunos bri-lhantes. Foi capelão do Convento de Macaúbas,onde escreveu Sítios e Personagens. Nesse mes-mo local foi sagrado bispo para ser auxiliar de DomJoão Antônio dos Santos em Diamantina. Rigoro-so nos estudos, cuidou de, ao publicar suas obras,ir fundo nos documentos para não suprir fatos porlendas. No dia 2 de setembro de 1933, diante deDom Joaquim exposto para despedida dos fiéisna catedral provisória de Diamantina – igreja de

São Francisco - , um filho dos arredores da Serrada Piedade recordou aos presentes a trajetóriado padre Joaquim Silvério de Souza.

O orador era o futuro cardeal arcebispo de SãoPaulo e de Aparecida, Carlos Carmelo de Vascon-celos Mota, então, bispo auxiliar de Diamantina efuturo arcebispo de São Luiz do Maranhão.

Dom Carlos, fixou no percurso de Dom Joaquim opercorrer pelas montanhas; do Caraça, doItacolomi, da Serra da Piedade, do Ivituruí. Lem-brou, finalmente, o recolhimento no vale –Macaúbas. Foi desse vale que o padre Joaquim foielevado às honras episcopais como bispo auxiliarde Diamantina e seu primeiro arcebispo.

No dia 2 de fevereiro do ano de 1902, todo o Brasilestava voltado para a capela do Conventoeducandário de Nossa Senhora da Conceição deMacaúbas. Seu capelão fora escolhido para rece-ber a sagração episcopal. Dom Silvério Gomes Pi-menta – Níger sum – foi o consagrante, coadjuvadopor Dom João Batista Correia Neri, de Pouso Ale-gre, e Dom Fernando de Souza Monteiro, de Vitó-ria, Espírito Santo.

Minas deve a Dom Joaquim a fixação dos lugaresque lhe conferem identidade de seu patrimônioimaterial, a fixação de seus mitos.

A obra mais citada do padre Joaquim foi escritaem Macaúbas e publicada em 1897. Sítios e Perso-nagens é o título. Neles habitam os ermitães –aqueles que vivem a vida do espírito radicalmen-te - em seus sítios: Caraça, Serra da Piedade, Ro-ças Novas, o Asilo São Luiz, Lapa e Macaúbas.

Apesar de Dom Joaquim abominar a história fun-damentada em lendas, Sítios e Personagens exi-bem lendas importantes na formação de lugarese, especialmente, sobre a era dos ermitães, osquais dão origem ao Recolhimento de Macaúbas,à Serra da Piedade, ao Caraça e ao Santuário deCongonhas do Campo. Há mais do que isto, imagi-nem uma peregrinação de Nossa SenhoraAparecida à Serra da Piedade! Essa criação da ima-ginação popular abriga verdades históricas pro-fundas. A “Aparecida” pescada nas águas doParaíba do Sul, quando pescadores buscavam pei-xes para o Conde de Assumar, imediatamente pro-fetizou que o local mais digno para seu reinadoserá a Serra da Piedade nas Minas do Ouro e dosDiamantes. Do fundo de um Vale entre a Serra doMar e a Mantiqueira para o alto do Espinhaço.

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3. Plano da obra: tema, roteiro discursivo.

A obra é apresentada em 51 capítulos que reú-nem, segundo esclarecimento do autor, artigospublicados anteriormente nas colunas de “O Após-tolo”. Não são, porém artigos avulsos Há um pla-no que os articulam e dão sentido em dividi-la empartes:[Esta não é divisão ao autor, mas do leitor,em obediência à ordem dos capítulos. Há um des-taque importante: o Padre Joaquim cuida semprede confrontar documentos à tradição oral e sem-pre que pode confronta tradição a documentos.Há muitos casos como exemplo. Ele entrevistouum morador de Lagoa Santa para averiguar os re-latos de Warming sobre a Serra da Piedade. Fez omesmo quanto ao padre Gonçalves e outros per-sonagens que foram objeto de relatos na tradiçãooral. Há lendas interessantíssimas colhidas pelopadre Joaquim para confrontá-las à “realidade his-tórica”, como é o caso de Bacarena e Lourenço nacriação do Santuário da Serra da Piedade e doCaraça, ou do Asilo São Luiz.]

Ficha da obra:PEREIRA, Leopoldo. (professor) “O Município deAraçuaí”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969. Originaldo ano de 1911. [Arquivo pessoal de José Moreira deSouza, estará disponível no Centro de Celebração de Mi-nas da Comissão Mineira de Folclore]

2. Informações relevantes sobre o autor:

Leopoldo Pereira nasceu em Milho Verde - Serro - , no dia18 de novembro de 1868. Seu centenário foi celebradocom a publicação da obra em apreço nesta ficha, sem nomedo editor. Consta que publicou inúmeras obras eruditas,sendo de interesse encontrar uma, talvez de memórias, cujotítulo é “Destino perseguidor”. Seu nome é eternizado eminúmeros logradouros e escolas. Um delas em Araçuaí, ci-dade em que residiu e que foi Agente Executivo Municipal.Abaixo, biografia desse autor para a Escola Leopoldo Pe-reira de Araçuaí: “Nascido na região de Milho Verde, dis-trito do Serro, no Vale do Jequitinhonha, Leopoldo da Sil-va Pereira era intelectual e professor de latim, francês eportuguês. Casou-se em Araçuai, com Cristina da Cunha Melo comquem teve quatro filhos. “Após ficar viúvo, mudou-se paraBelo Horizonte, onde lecionou no Instituto Estadual de Edu-cação”, lembra sua sobrinha, Maria Emília Fulgêncio, pro-fessora aposentada. Em 1913 publicou o livro “ O Municí-pio de Araçuai”. Do seu segundo casamento, nasceu Caio Mário da SilvaPereira, filho mais velho de quatro irmãos e um dos mais

notáveis civilistas brasileiros, com várias obras publicadasno Brasil e no exterior, entre elas, Instituições de DireitoCivil, um dos clássicos da civilística brasileira. Leopoldo Pereira foi interventor de Araçuai ( hoje pre-feito) na década de 1920. Foi substituído pelo então se-nador Nuno da Cunha Melo.Faleceu em Belo Horizonte.”

Ficha da obra:SANTOS, Lúcio José dos. História de Minas Gerais –Resumo Didático. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1926.184 páginas. [Acervo de José Moreira de Souza, dispo-nível no Centro de Celebração de Minas da ComissãoMineira de Folclore]

Informações relevantes sobre o autorLúcio José dos Santos nasceu em Cachoeira do Campo– distrito de Ouro Preto – no ano de 1875 e faleceu emBelo Horizonte, no ano de 1944. Engenheiro por OuroPreto e Direito pela Escola de Minas e Direito pela Uni-versidade de Minas Gerais. Foi Diretor da Instrução Pú-blica do Estado de Minas Gerais, o equivalente atual aSecretário de Educação (1924) e Reitor da Universidadede Minas Gerais de 1931 a 1933.Como reitor entra na querela sobre Comunismo eintegralismo. Ver;Correspondência entre Gustavo Capanema e Lúcio Josédos Santos e onde este felicita o primeiro por sua atitudena discussão das bases do Partido Progressista; tece con-siderações sobre a Igreja e a luta contra o comunismo;explica o que se passou na nomeação do secretário dareitoria da Universidade de Minas Gerais e faz sugestõespara a reforma da Escola de Minas; felicita o ministro pelodiscurso na inauguração do curso da Faculdade de Filo-sofia. Belo Horizonte, Rio de Janeiro. [fonte:FGV:CPDOC]

Plano da obra: tema, roteiro discursivo.

A obra é precedida de prefácio do autor e se apresentaem XX capítulos com inúmeras ilustrações, mapas e umdiagrama do desenvolvimento escolar de 1822 até 1926.Pelo título já se sabe ser uma obra para uso escolar.

Ficha da obra:VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides Mineiras– 1664 – 1897. Belo Horizonte: Centro de EstudosHistóricos e Culturais,:Fundação João Pinheiro, 1998.

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1.114 páginas [ Introdução de Elaine Maria de AlmeidaCarneiro e Marta Eloísa Melgaço Neves] [Originais de1926, a primeira publicação é do ano de 1897] ][Acervode José Moreira de Souza, disponível no Centro deCelebração de Minas da Comissão Mineira de Folclore]

Informações relevantes sobre o autorJosé Pedro Xavier da Veiga nasceu em Campanha no dia13 de abril de 1846 e faleceu em Ouro Preto em 8 deagosto de 1900. Viveu, portanto exíguos 54 anos. MinasGerais deve a ele dois grandes feitos: fundar o Arquivo Pú-blico Mineiro e dedicar 18 anos na elaboração da obraEfemérides Mineiras.Pertencente a uma família de políticos influentes do Impé-rio, José Pedro fixa para a República a necessidade de cul-tivar a memória histórica e espacial. A Revista do ArquivoPúblico Mineira que ele funda e redige é o monumentoprincipal de sua colaboração pela fixação dessa memória.Efemérides Mineiras resulta desse empenho patriótico.Esta obra é quase que resposta às Efemérides Brasileirascuja publicação se inicia no ano de 1891 da pena do Barãodo Rio Branco no recém fundado Jornal do Brasil.Xavier da Veiga é um patriota no sentido mais exato. So-bressai-se muito além do que os governos lhe oferecemcomo condição. Criado por Lei o Arquivo Público Minei-ro, ele oferece a própria casa para acolher o acervo denossa história e junta ao acervo público todos os documen-tos que eram de sua propriedade. Elabora projeto de longoalcance para que o Arquivo contenha Documentos origi-nais, publicações relevantes para a história de Minas, e ima-gina a constituição de um museu que explicite o saber fazerem Minas Gerais. Estava anunciado: Acervo documental,hemeroteca, biblioteca pública e museu mineiro.Ciente de que a República se constituía de federação deestados, Xavier zela para obter documentos dispersos deMinas Gerais existentes nas, então, províncias de São Pau-lo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás e Bahia. Este em-penho indica a diferença entre a consciência de identidadeespacial da Capitania e da Província em contraste com anecessária ao Estado de uma federação.

Plano da obra: tema, roteiro discursivo.

A edição aqui fichada se apresenta em três volumes, dife-rentemente da original publicada em quatro volumes. Naedição atual, apenas os dois primeiros volumescorrespondem à antiga. O terceiro volume resulta de es-forço de preparação de índice Onomástico abrangendo163 páginas.

Ficha da obra: GÓES, Carlos. Histórias da TerraMineira. Rio de Janeiro: Livraria Garnier; Belo Horizon-te, 1994. 119 páginas. [Acervo de José Moreira deSouza, disponível no Centro de Celebração de Minas daComissão Mineira de Folclore]

Informações relevantes sobre o autorCarlos Góes nasceu no Rio de Janeiro em 1881, filho deDomingos Góes e de Maria Eugênia Machado Góes. Cur-sou Humanidades nos colégios Abílio e Externato Aquino,formando-se em Direito pela Faculdade do Estado de Mi-nas Gerais. Mudou-se do Rio de Janeiro para Minas Ge-rais, tornando-se Promotor Público em Muzambinho, atéingressar como Professor Catedrático de Português no Gi-násio Oficial de Minas Gerais, por brilhante concurso ondealcançou o 1º lugar, sendo muito cumprimentado pela bri-lhante tese “Da Linguagem”.Publicou inúmeros trabalhosdidáticos: “Dicionário de Galecismos”, “Dicionário de Raízese Cognatos” (premiado pela Academia Brasileira de Le-tras), “Dicionário de Afixos”, “Método de Análise”, “Sinta-xe da Regência”, “Sintaxe da Construção”, “GramáticaExpositiva Primária” e “Pontos de Língua Pátria”., Apaixo-nado pela Literatura e, em particular, pela poesia e primo-roso diletante da bela arte, publicou os livros “Crótulos”(1888), “Cítara” (1904) e “Espelhos” (1924). Dramatur-go, escreveu a peça histórica “O Governador das Esmeral-das” e algumas comédias e dramas. Foi titular da cadeira nº11 da Academia Mineira de Letras. No ano de 1931 veioresidir em Petrópolis e aqui impressionou a sociedade inte-lectual e cultural com seus talentos oratórios e de escritor,ingressando na Academia Petropolitana de Letras, na ca-deira nº 38, patronímica de Casimiro de Abreu, tomandoposse a 10 de setembro de 1933. Por pouco tempo enri-queceu a Academia e a Cultura de Petrópolis, falecendoem janeiro de 1935, recebendo homenagem acadêmica emsessão realizada a 7 de fevereiro do mesmo ano, sendoorador o acadêmico Álvaro Machado.Publicou a obra Mil Quadras Populares Brasileiras noano de 1916 pela editora Briguiet do Rio de Janeiro.Em 1919: Contos Morais e Cívicos do Brasil.Historia da Terra Mineira já contava em 1959 com 16edições. Parece que a primeira edição é do ano de 1916. Aobra segue o modelo das dedicadas à Educação Moral eCívica da época, tais como Livro de Leitura para o cursocomplementar das Escolas Primárias elaborado porManoel Bonfim e Olavo Bilac, publicado em 1914; Con-tos Pátrios (Para Crianças) obra em dois volumes deautoria de Olavo Bilac e Coelho Neto que obteve 42 edi-ções até o ano de 1954. Essa sequência de edições nãocompetia com o Best seller Cartilha Nacional de autoriade Hilário Ribeiro a qual em 1946 já contava com 239edições premiada em 1887 na Exposição de Objetos Es-

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colares e, com Medalha de Prata em 1889 na Exposiçãode Paris. [foi nesta Cartilha que eu aprendi impaciente-mente a visualizar as primeiras letras no ano de 1947.]Plano da obra: tema, roteiro discursivo.

A obra é composta por 24 contos com destaque para qua-tro linhas temáticas: Entradas e Bandeiras; descobrimentodas Minas e sua exploração; imigração e povoamento; es-pírito de nativismo.Prefácio da 1ª edição. P. 9 – 10Merece destaque: 1. “O plano do presente livrinho come-çou a formar-se em nosso espírito quando nos capacita-mos de que é dever patriótico ensinar às crianças de nossasescolas, sob a forma pitoresca de contos, a história retros-pectiva desta grande fração de nossa Pátria – o Estado deMinas Gerais, berço que foi da Liberdade.” P. 9Destaque 2. “A educação moral e cívica da infância é hojeo problema, que mais de perto, entende com a concretizaçãoda nossa nacionalidade. Um povo só pode verdadeira-mente ter a consciência de sua nacionalidade, quando seorgulha de seu passado e de suas tradições, - o que só sedá desde o momento , em que esse povo conheça os pas-sos de sua História, possua cultura bastante para aferir ovalor de seus heróis, e se inspire nos grandes lances, quehonorificaram a seus avoengos.” P. 9

Ficha da obra:MENESES, JOAQUIM FURTADO DE. CLERO MINEIRO I VOLU-ME:((1553 A 1889). RIO DE JANEIRO:TIPOGRAFIA AMERICANA,1933. VOL I. [Acervo de José Moreira de Souza, disponívelno Centro de Celebração de Minas da Comissão Mineirade Folclore]

Informações relevantes sobre o autorJoaquim Furtado de Meneses nasceu no Rio de Janeiro,

então capital do Império, no dia 19 de outubro de 1875, filho deJoaquim Gabriel Nunes Furtado e de Joaquina Gertrudes de

Meneses Furtado.

Cursou o secundário no Ginásio Barbacena (MG), in-gressando em seguida na Escola de Minas e na Escola de Far-mácia de Ouro Preto (MG). Ainda acadêmico, fundou, em 1897,o jornal O Discípulo. Formou-se, respectivamente, engenheiro

civil e de minas em 1900 e, em farmácia, em outubro de 1901.

Nomeado ainda neste último ano professor da Escolade Ouro Preto, fundou, em 1905, na mesma cidade, ORegenerador, órgão destinado a fazer a propaganda da candi-datura de Rui Barbosa à presidência da República. Realizado opleito em março do ano seguinte, sagrou-se vencedor AfonsoPena (1906-1909). Em 1909, voltou a engajar-se na campanhapela candidatura de Rui Barbosa, no movimento que recebeu onome de Campanha Civilista e assumiu caráter antimilitarista.

Em março de 1910, contudo, foi eleito o marechal Hermes da

Fonseca.

Em 1914, fundou o jornal Adoremos para fazer a pro-paganda católica, transferindo-se em seguida para Belo Hori-zonte. Durante os governos de Delfim Moreira (1914-1918), deArtur Bernardes (1918-1922) e de Raul Soares de Moura (1922-1924), exerceu o cargo de diretor de Indústria do estado deMinas Gerais. Neste período, ocupou interinamente, de setem-bro de 1920 a dezembro de 1922, a prefeitura de Águas Virtu-osas (atual Lambari, MG), tornando-se, em 1921, membro natodo Conselho de Minas do Estado de Minas Gerais. Em 1924,

exerceu, também interinamente, a prefeitura de Araxá (MG).

Senador estadual em Minas Gerais a partir de 1927, foieleito secretário da mesa do Senado estadual, tendo apresen-tado projeto que resultou na criação de colônias correcionaisno estado. Em 1929, engajou-se na campanha da Aliança Libe-ral em torno da candidatura de Getúlio Vargas à presidência daRepública, derrotado por Júlio Prestes em março de 1930. Coma Revolução de Outubro de 1930, teve interrompido seu man-dato de senador estadual, integrando em seguida o Conselhodos Quinhentos, criado em Minas Gerais após a vitória do movi-

mento revolucionário.

Membro do Conselho Consultivo do Estado de MinasGerais de 1931 a 1933, durante a interventoria de OlegárioMaciel (1930-1933), elegeu-se, em maio de 1933, deputado àAssembléia Nacional Constituinte pela legenda do Partido Re-publicano Mineiro (PRM). Empossado em novembro seguinte,participou dos trabalhos constituintes, propondo emendas re-lativas à legislação das minas e ao ensino religioso nas escolas,ao direito de voto dos clérigos e à proibição de brasileiros acei-tarem condecorações estrangeiras. Após a promulgação danova Carta (16/7/1934) e a eleição do presidente da Repúblicano dia seguinte, teve o mandato estendido até maio de 1935.Nesta data, como os demais eleitos em outubro de 1934, ini-ciou novo mandato de deputado federal por Minas Gerais. Per-maneceu na Câmara até novembro de 1937, quando, com oadvento do Estado Novo, foram suprimidos todos os órgãos

legislativos do país.

Foi também o primeiro presidente do conselho metro-politano da Sociedade São Vicente de Paulo, da Província Ecle-siástica de Belo Horizonte — da qual foi um dos fundadores —, presidente do conselho consultivo da Sociedade Mineira deEngenheiros e do Banco Central de Minas Gerais. Ainda na ca-pital mineira, participou da criação de várias entidades e insti-tuições católicas, entre elas, da Corporação dos Médicos Cató-licos, da Corporação dos Advogados Católicos e da Corporação

dos Engenheiros Católicos.

Faleceu em Belo Horizonte no dia 20 de maio de 1940.

Era casado com Zaira Porto de Meneses, com quem

teve quatro filhos.

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CARRANCA PÁGINA 21

Além de alguns opúsculos de doutrinação vicentina,publicou Clero mineiro, Alguns discursos na Assembléia Nacional

Constituinte e Resumo da doutrina social católica.

FONTES: ASSEMB. LEGISL. MG. Dicionário biográfico; BoletimMin. Trab. (5/36); CÂM. DEP. Deputados; Câm. Dep. seus compo-nentes; CONSULT. RAMOS, P.; Diário do Congresso Nacional;GODINHO, V. Constituintes;Personalidades; Rev. Arq. Públ. Mi-neiro (12/76).

FGV CPDOC

Plano da obra: tema, roteiro discursivo.Furtado de Meneses traz logo nas páginas iniciais uma in-formação importante. No ano de 1927, Aurélio Pires, entãopresidente do Instituto Histórico e Geográfico de MinasGerais, propôs aos membros uma listas de “teses” a ser de-fendidas sobre a formação de Minas Gerais, as quais deveri-am ser distribuídas entre os membros e não membros ten-do em vista o aprofundamento sobre o estado. Esse autorlogo se incumbiu de desenvolver a “tese” de nº 35, sobre aimportância da Igreja na formação de Minas Gerais de queresultou uma obra em dois volumes ocupando 463 páginasque foi publicada com o título de Clero Mineiro. [Ver que a“tese XIII” sobre os Africanos ficou a cargo de Nelson deSena]

O primeiro volume se ocupou das ações da Igreja Católicaem Minas Gerais até o ano de 1889, ou seja, antes da Repú-blica e, consequentemente, da separação da Igreja do Esta-do.

No capítulo final do primeiro volume, o autor mostra as di-ficuldades que a Igreja enfrentaria no contexto do EstadoSecular ou laico.

Há um aspecto que merece atenção do leitor. Furtado deMenezes se propõe a escrever uma história do clero comtotal aprovação dos superiores hierárquicos que zelam pelaDoutrina. Não é, portanto, uma obra crítica como exigem osdoutos da academia. Esta é uma contribuição importantetendo em vista a oportunidade de auscultar o pensamentoconveniente a um projeto eclesiástico para o desenvolvi-mento nacional.

A obra é apresentada em 15 capítulos aos quais se acrescen-tam 3 anexos.

Ficha da obra: MORAIS, Geraldo Dutra de. Históriade Conceição do Mato Dentro., Belo Horizonte : BibliotecaMineira de Cultura,1942. PP. 285 [Cópia Xerox Acervo daComissão Mineira de Folclore Centro de Celebração de Mi-nas]

Informações relevantes sobre o autor:Geraldo Dutra de Morais. 1915Há pouquíssimas informações sobre o autor. Sabe-se quepublicou outras obras sobre Música barroca mineira esobre o Aleijadinho. A obra sobre Conceição do MatoDentro é a mais bem elaborada pelo autor. Curiosamen-te, sua pessoa não é bem lembrada nessa cidade. Pareceque é paulista. Ele é mencionado em outras obras semqualquer indicação sobre sua biografia.

Ficha da obra:PASSOS. Zoroastro Vianna. Em torno da História deSabará: a Ordem Terceira do Carmo e a sua igreja,obras de Aleijadinho. Rio de Janeiro: SPHAN, 1940.Publicação nº 5 do Serviço do Patrimônio Histórico Na-cional. Prefácio de Rodrigo Melo Franco de Andrade[Disponível no Acervo de Biblioteca da Fundação JoãoPinheiro, governo de Minas Gerais.]PASSOS. Zoroastro Vianna. Em torno da História deSabará. Vol II. Belo Horizonte, Imprensa oficial, 1942.[Disponível no Acervo de Biblioteca da Fundação JoãoPinheiro, governo de Minas Gerais.]

Informações relevantes sobre o autor:

Nascido em 8 de setembro de 1887, em Sabará, faleceuem 05 de Setembro de 1945, concluiu o curso deMedicina no Rio de Janeiro, no ano de 1910. Foi professorcatedrático da Universidade de Minas Gerais membro daAcademia Mineira de Letras.Suas obras Discurso de Saudação ao Conselheiro RuiBarbosa Estudo Clínico da Fadiga O Aleijadinho,Pintor? O Alcoolismo Em torno de Dois Casos deApendicite Discurso de Posse A Dúvida Lição Inau-gural de Clínica Propedêutica Cirúrgica Notícia Histórica da Santa Casa de Sabará Problemade Assistência Pública o que se pode fazer pela Assis-tência Hospitalar Em Torno da História do Sabará - 2vols. Ficha da obra:PEREIRA, Leopoldo. (professor) “O Município deAraçuaí”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1969. Origi-nal do ano de 1911. [Arquivo pessoal de José Moreirade Souza, estará disponível no Centro de Celebração deMinas da Comissão Mineira de Folclore]

Leopoldo Pereira nasceu em Milho Verde - Serro - , nodia 18 de novembro de 1868. Seu centenário foi cele-brado com a publicação da obra em apreço nesta ficha,sem nome do editor. Consta que publicou inúmeras obraseruditas, sendo de interesse encontrar uma, talvez dememórias, cujo título é “Destino perseguidor”. Seu nome

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Relatório Movimento dos Folcloristas em Minas Gerais

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é eternizado em inúmeros logradouros e escolas. Um delasem Araçuaí, cidade em que residiu e que foi Agente Execu-tivo Municipal. Abaixo, biografia desse autor para a EscolaLeopoldo Pereira de Araçuaí: “Nascido na região de MilhoVerde, distrito do Serro, no Vale do Jequitinhonha, Leopoldoda Silva Pereira era intelectual e professor de latim, francêse português. Casou-se em Araçuai, com Cristina da Cunha Melo comquem teve quatro filhos. “Após ficar viúvo, mudou-se paraBelo Horizonte, onde lecionou no Instituto Estadual deEducação”, lembra sua sobrinha, Maria Emília Fulgêncio,professora aposentada. Em 1913 publicou o livro “ OMunicípio de Araçuai”. Do seu segundo casamento, nasceu Caio Mário da SilvaPereira, filho mais velho de quatro irmãos e um dos maisnotáveis civilistas brasileiros, com várias obras publicadasno Brasil e no exterior, entre elas, Instituições de DireitoCivil, um dos clássicos da civilística brasileira. Leopoldo Pereira foi interventor de Araçuai ( hoje prefeito)na década de 1920. Foi substituído pelo então senadorNuno da Cunha Melo.Faleceu em Belo Horizonte.”

Ficha da obra: PENNA, Octavio . Notascronológicas de Belo Horizonte. Introdução deBerenice Martins Guimarães. .Belo Horizonte:Fundação João Pinheiro 1997.278 pag.. [Aprimeira edição foi publicada porEstabelecimentos Gráficos Santa Maria, no anode 1950. Acervo de José Moreira de Souza.Souza disponível no Centro de Celebração deMinas da Comissão Mineira de Folclore]

Informações relevantes sobre o autorOctavio Goulart Penna Nasceu em Juiz de Fora no dia 6de outubro do ano de 1890, e faleceu em Belo Horizonte,no dia 26 de agosto de 1964. Engenheiro pela Escola Livrede Engenharia de Belo Horizonte, formou-se no ano de1919. Foi prefeito interino de Belo Horizonte no ano de1930, membro fundador da Escola de Arquitetura e daSociedade Mineira de Engenheiros.Sua preocupação com estatística o levou a produzir a obraNotas cronológicas de Belo Horizonte,da qual tirouquatro cópias, em 1943, as quais ofereceu a algunsamigos que seriam membros fundadores daComissão Mineira de Folclore: João Dornas Filhoe Franklin Sales, além de Abílio Barreto que podeapreciar as notas do autor até o ano de 1914. Aapreciação desses três leitores privilegiados émencionada pelo próprio autor nas páginas do

prefácio, com destaque para Abílio Barreto e JoãoDornas Filho.Como engenheiro, há que estar atento para aformação da cidade e os agentes de configuraçãodo espaço urbano da Capital. Porém Octavio estáatento para a vida urbana como transparece nessainformação preciosa a compreensão da “cultura”local:

1900 – 20 de abrilÉ levada à cena, com grande êxito, no TeatroSoucasseaux, a revista “O Gregório”, deArthur Lobo, a primeira escrita e interpretadana Capital sobre seus próprios tipos ecostumes. [p.65]

A atenção para a modernidade da Capital se mostrano acompanhamento dos grandes eventos. Veja-seeste:

1898 – 15 de junho.Por iniciativa do dr. Fernando Esquerdo, osciclistas da Capital re reúnem e fundam oVelo-Clube.

Plano da obra: tema, roteiro discursivo.

Notas Cronológicas de Octávio Penna é exemplo deatividade generosa para estudiosos. A intenção do autor éde registrar o percurso de Curral de Rei conforme expõena página 27:

i. Arraial do Curral Del Rei (17 de janeiro de 1711)ii. Arraial de Belo Horizonte (12 de abril de 1890)iii.Cidade de Minas (12 de dezembro de 1897)iv.Cidade de Belo Horizonte (11 de agosto de 1901)

Os feitos dessa Cidade de Minas, Cidade de BeloHorizonte, são acompanhados até o dia 3 de novembro de1930, quando nas palavras do autor “A população daCapital, que, desde 3 de outubro, vem experimentando fortesemoções de alegria, de temor ou de intranquilidade, rejubila-se ante a notícia de haver o dr. Getúlio Vargas assumido oGoverno da República”. [p.243]Este parágrafo do Prefácio resume o percurso do autor:

Fazendo comum a sua história com a históriade sua própria matriz, conheceu o Arraial todoo ciclo do ouro, até a sua decadência,conseguindo vencer quase 200 anos de existência,para, de chofre, desaparecer.Desaparecer, não. Diríamos melhor, transmutar-se numa linda Capital.Singular destino de um arraial que jamais logrouos foros de simples vila.[p. 22]

A obra não é simplesmente registro de notas. É exemplo dedisposição de informações para elaborações discursivas deum percurso. Como um simples arraial é escolhido para setornar a Capital do Estado de Minas Gerais e como se

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transforma para cumprir esse papel e faz reviver o sonhode uma nova capital para a República. Guarde-se esteregistro:

1899 – 21 de outubroO deputado Sá Freire apresenta na Câmara Federal,um projeto determinando a transferência da Capitalda República para a Cidade de Minas. [p.61]

Será esse cuidado de registrar fatos relevantes da cidadepara si mesma, da cidade para o Estado de Minas Gerais e

da Cidade como modelo de mudança do Império queembala o sonho de uma Nova Capital para a República.

Vivendo e aprendendoJosé Moreira de Souza

Nosso companheiro, Thiago Araújo defendeu no auditórioda Escola de Educação Física da UFMG a dissertação demestrado na área de concentração “EstudosInterdisciplinares de Lazer, cujo título foi Palhaços ePalhaças com deuses irreverentes em zonas devulnerabilidade social e em defesa dos Direitos Huma-nos.Nessa oportunidade, o autor encantou a plateia com a exi-bição de suas habilidades garantida pelo longo percursocomo animador de comunidades carentes da Região Me-tropolitana de Belo Horizonte. Em seguida, expôs, com aseriedade possível, o discurso sobre a arte palhacesca.Vejam:

RESUMO Este trabalho se constitui num exer-cício de análise da presença de palhaços epalhaças em zonas de vulnerabilidade social ena defesa pelos direitos humanos. Traçamos emprimeiro lugar, uma trajetória histórica e antro-pológica do palhaço, na qual são identificadoso Cômico Ritual e a Arte da Palhaçaria comojogo e linguagem, que dialogam com a antropo-logia da Dádiva e com o Grotesco. Por meio depesquisa bibliográfica sobre intervenções depalhaços e palhaças em zonas de vulnerabilidade,demonstramos diversas aplicações dos Jogos dePalhaço, bem como a ambiguidade que o oficiocarrega, ora assumindo funções regidas por va-

lores hegemônicos, ora por valores contrahegemônicos, através de sua presença em pro-jetos sociais, políticos e humanitários. Nesse sen-tido, as tensões identificadas na arte dapalhaçaria em zonas vulneráveis dialogam como campo do lazer, por compreender que o Pa-lhaço e a Palhaça atuam tanto como força polí-tica de transformação, estimulando as pessoasa se tornarem politicamente ativas, quanto comoatenuadores de conflitos. Contempla-se, tam-bém, como elemento empírico as narrativas deexperiências do autor como Palhaço.Palavras-chave: Palhaço. Zona devulnerabilidade. Riso. Recepção. Lazer

O núcleo do discurso é exibido no capítulo IV da disserta-ção:

4.1 História de vida 4.2 Retrato da atuação emfavelas de Belo Horizonte 4.3 Meu batizadocomo afilhado Hotxuá 4.4 O Ritual da Batata

Note-se que o autor percorre sua própria vivência comopalhaço que se exibe nas periferias de Belo Horizonte. Nãosatisfeito com a aceitação de seu trabalho na Academia,Thiago reservou o dia 21 de agosto , dentro da 51ª Sema-na Mineira de Folclore para dialogar com um público suigeneris – os dos frequentadores do “Espaço Comum LuizEstrela”.

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Merece fixar para os membros da ComissãoMineira de Folclore as seguintes palavras chaves:Dádiva e Grotesco. Com efeito os membros daComissão Mineira, com os de todos osmovimentos do folclore no Brasil vivem plenamenteesta realidade. Diferentemente da atenção aospalhaços, contemplam o grotesco dos tipospopulares. Será exatamente isto que nos ajuda acompreender que, Thiago tão logo deixou oemblemático auditório da Universidade,credenciado com mestre, correu para o “LuizEstrela” – espaço conquistado por um movimentopopular que eleva à memória coletiva do CentroMetropolitano o nome de um tipo popularsacrificado em meio às indignações que animaramo Brasil no ano de 2013.

Luiz Estrela na tese de Liliane Augusta Moreira

Seria pura coincidência que uma aluna de mestradona Escola de Arquitetura tenha se dedicado ao lo-cal escolhido por Thiago Araújo para conversar como mundo a respeito de Palhaços e Periferias, oudos palhaços com intérpretes do viver nas periferi-as?Isto deve ficar sem resposta. Mas vale fixar queLiliane Augusta Moreira se encantou com a ousa-dia de um movimento popular haver se dedicado àpreservação de um monumento tombado e prestesde se autodemolir em plena zona urbana da cidadesíntese de Minas – nossa Belo Horizonte.

Entre outras abordagens na tese de Liliane, há que chamara atenção para as glórias de um tipo popular e a ressurrei-ção de um tipo popular em Belo Horizonte e isto nos con-vida a dialogar com o que foi apresentado na Revista daComissão Mineira de Folclore nº 29 cujo assunto são ostipos populares urbanos.Liliane Moreira defendeu, no dia 9 de julho, na Escola deArquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Adissertação de mestrado com o título de OS MOVIMEN-TOS INSURGENTES E O PATRIMÔNIO.Trata-se de um estudo de um assunto da maior relevânciapara a compreensão das políticas públicas de cultura, ten-do em vista, entre miríades de aspectos, os efeitos dos

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Teses e Dissertaçõesusos urbanos e o espaço construído. Não é precisoimaginar muito, percorramos a área central de BeloHorizonte. O que é feito do Cine Candelária? Porque há um quarteirão em ruínas na avenida Amazonassituado entre as ruas dos Aimorés e a rua Mato Gros-so? O que pensar dos prédios situados no entorno daPraça da Estação e avenida Assis Chateaubriand?Pois bem, a tese da Liliane trata do problema do en-velhecimento dos usos e da “castanha no fogo” queresulta dessas mudanças de uso que decorrem do aban-dono de monumentos e perda da memória para o sa-ber viver na cidade.Explicita-se a luta entre memória do espaço construídoe as ambições do mercado imobiliário. Liliane põe emevidência um caso exemplar para o mundo. Um pré-dio construído no início do século XX para ser Hospi-tal Militar que se torna, em meados do século XX,Hospital de Psiquiatria Infantil e que, finalmente é aban-donado e se torna quase uma ruína na cidade. No in-terior das políticas de Patrimônio, o prédio é tombadopela Prefeitura pela sua importância histórica comomonumento arquitetônico, mas permanece degrada-do. Em meio àquele surto de indignação sem rumo, ouem todos os rumos, nos anos de 2013 e 2014, um dosmanifestantes morre – assassinado? - em meio ao fu-racão. Era um “tipo popular” quase invisível na cidademetropolitana, Belo Horizonte, a cidade síntese deMinas. Músico, artista múltiplo, sem casa, homosse-xual, devoto de bebidas alcoólicas, ocupava a cidadee desconhecia casa. Nome desse herói? LUIZ ES-TRELA. Desses instantes de indignação, instantes in-surgentes, surgem o movimento de ocupação do pré-dio abandonado da Rua Manaus localizado no interiordo Perímetro Interno da Avenida do Contorno em áreaconhecida como Santa Efigênia. Era o que fora Hos-pital, tombado em risco de desmoronamento. É da peripécia de ocupar e dar uso efetivo a esse lugarde que trata a tese de Liliane. Luiz Estrela tombadopela vida é elevado às glórias da memória de BeloHorizonte, juntamente com tudo que merece ser lem-brado com dor dessa história de saber viver na capi-tal. O espaço Luiz Estrela tornou-se, desde o ano de2014, um espaço emblemático para Belo Horizontecelebrar a vida com todas as suas contradições.Vale a pena conhecer um pouco a saga de Luiz Estrelamorto e sepultado e ressuscitado ao terceiro dia.Liliane nos recomenda a leitura de um artigo publica-do na Revista Piaui, - edição 87, dezembro de 2013 -.

A escolha do nome [do prédio tombado e ocu-pado pelo movimento cultural] tomou váriasreuniões. Com a iminência do dia D, o grupoacabou promovendo uma votação, em vez de

levar o debate até o consenso, como é comum em movi-mentos autogeridos. Ganhou “Espaço Comum Luiz Es-trela”, homenagem a um morador de rua, performer eativista gay que foi encontrado morto com indícios deespancamento. Estrela morreu em 26 de junho, dia doúltimo jogo da Copa das Confederações em Belo Hori-zonte – e da maior das manifestações populares queaconteceram naquele mês na capital mineira.Luiz Otávio da Silva era bonito e inteligente, mas nuncateve vida fácil. Aos 5 anos assistiu à separação dos paise à chegada de um padrasto com o qual nunca se deu.Por ser um menino afeminado, foi vítima de preconceitoe do que hoje chamamos de bullying. Aos 15, assumiua homossexualidade e foi internado pela família num cen-tro de recuperação, onde ficou quatro meses antes defugir. Não quis voltar a viver com a família e errava pelascasas de amigos e conhecidos. Fazia artesanato, vendiae gastava o dinheiro com facilidade incomum.Nos últimos anos, assumiu a rua como morada e migroupara o Centro da cidade. Começou a conviver entãocom a esquerda festiva de classe média, em centros cul-turais e na Praia da Estação, evento de protesto que háquatro anos povoa uma praça no Centro de Belo Hori-zonte com veranistas em trajes de banho. Tatuou umaestrela na testa e incorporou a palavra ao seu nome. Es-crevia poemas, recitava Drummond e Ana Cristina Cesar,ao mesmo tempo em que bebia cachaça a talagadas eficava cada vez mais dependente do álcool. Entre mora-dores de rua, é lembrado pela indumentária exótica, comcolares, brincos e meia arrastão.

Roberto Andrés, o autor do artigo aqui mencionado, professorda Escola de Arquitetura da UFMG, prossegue alguns parágra-fos à frente:

Em maio, Luiz Estrela viu sua mãe pela última vez. Che-gou de surpresa ao salão de beleza onde ela trabalha,pintou as unhas de azul e brincou com os clientes. Estavafeliz porque ganharia de aniversário um tratamento quelhe devolveria os dentes frontais. “Vou poder voltar asorrir.” Em junho, uma organização de defesa dos direi-tos humanos denunciou o assassinato maciço de mora-dores de rua na capital mineira, registrando o receio deque as mortes se intensificassem na Copa das Confede-rações.

Viver é muito perigoso! Viva Guimarães Rosa.O grande Sertão está muito mais próximo do que imaginamos.Está em nós.

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Educação, Escola e Etnia: a tese de Vanessa Lorena Anastácio.

UM POVO DA PALAVRA: RESSONÂNCIAS DACULTURA ACÚSTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLARINDÍGENA XAKRIABÁO leitor pode perguntar agora: O que há de comum entre adissertação de Thiago Araújo defendida na Escola de Edu-cação Física da UFMG e a de Lorena Anastácio, apresen-tada na Universidade do Estado de Minas Gerais?Linha de pesquisa: Culturas, Memórias e Linguagens emProcessos Educativos. Vou direto às semelhanças. Thiagoficou tão à vontade que exibiu todas as palhaçadas antesde se submeter à tradição das disputas acadêmicas comrito de passagem. Lorena ficou tão à vontade que oorientador afirmou que para ela a programação deveria seralterada e ela deveria iniciar a exposição às 7 horas damanhã e não às 9:30.A última coisa que ocorreu é que desde que a Idade Médiainventou relógios para regularizar os ritmos da vida cotidi-ana, as lutas dos cavaleiros têm tempo definido – 25 minu-tos para a cerimônia de armar cavaleiro, mais 20 paracada avaliador dos méritos. Lorena transgrediu todo esseritual. Iniciou a exposição ao som do tambor, foi seguida-mente aplaudida após cada exposição e foi aplaudida pe-los membros da banca, um após o outro.Houve mais uma curiosidade. Um membro da banca estra-nhou os excessos de autores. A convocação de folcloristascomo Câmara Cascudo para dialogar com os casos narra-dos pelos indígenas – Cascudo diria “Amerabas” -. Lorenanão deu importância a essa invectiva, mas este ouvinte in-

terpretou isto como “acting out” e a dificuldade de pessoasdo Folclore dialogarem com alguns sábios da Faculdade deEducação da UFMG. Com efeito, o próprio objeto da teseé mais do que convite para uma conversa com os estudio-sos de Folclore. Não se pode dizer de “pureza” de umacultura xacriabá e este assunto já vem incomodando os pró-prios antropólogos desde que deixaram de estudar apenasas comunidades indígenas isoladas.

RESUMO A voz do contador de histórias desempenhafunção social e histórica de grande importância na culturado povo Xakriabá. Assim, buscou-se analisar como a ex-pressão poética dessas vozes ressoam na educação escolarindígena Xakriabá por intermédio de narrativas empreendi-das na performance de professores que se configuram tam-bém como contadores de histórias. Neste movimento delançar um olhar mais acurado sobre a presença dos conta-dores na escola, interessaram-nos particularmente profes-sores de Cultura que também são identificados entre osXakriabá como narradores da tradição oral. Foi possívelcompreender o papel dos contadores de histórias na cultu-ra deste povo indígena, sua função de “homens-memória” ede conhecedores, e como se dão os modos de aprendiza-gem nas práticas de produção e transmissão do conheci-mento em que os contadores de histórias professores deCultura atuam. Na escola Xakriabá, o professor de Culturabem como os contadores de histórias assumem a função defazer circular a cultura, os costumes e as tradições concebi-

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Teses e Dissertaçõesdas no interior da “cultura” do grupo indígena e presentesnas histórias contadas. Observamos ainda a diversidade denarrativas gravadas nesta cultura acústica, mais baseada nosom do que na escrita, onde as histórias contadas são oreflexo dos processos de contato e mistura, e ressoam emum movimento contínuo de fortalecimento do ser Xakriabá.Percebemos como a educação diferenciada se edifica naescola deste povo indígena a partir das relações que se es-tabelecem entre diferentes saberes e gerações, na luta pelodireito à educação, ao território e à cultura em conformida-de com os modos específicos de ensinar e aprender.Palavras-chave: Educação Escolar Indígena. Cultura Acús-tica. Contadores de histórias. Narrativas orais.

Pelo exame do Sumário, pode-se ver quão à vontade seencontrava a autora diante de seu objeto de estudo. A leituramostrará também a aproximação que a autora se propõesjunto ao leitorSUMÁRIO1. IDEIAS SOBRE UM PERCURSO..…171.1 Sobre “comer da mesma panela”, as descobertasmetodológicas.…52. ÍNDIOS XAKRIABÁ: TESSITURASETNOGRÁFICAS E TEÓRICAS SOBRE TERRITÓRIOE IDENTIDADE 372.1 “Que o índio é que sempre foi o dono da terra”......…40 2.2 “Nós somo misturado, mas nós somo filho dessa terra,fruto daqui mesmo”.....582.3 Os lugares da pesquisa: aldeia Prata, aldeia Imbaúba eo espaço “entre 653. “CULTURA ACÚSTICA”: MEMÓRIA EORALIDADE ENTRE OS ÍNDIOS XAKRIABÁ.........773.1 Contadores de histórias Xakriabá...........823.2 Os contadores das histórias que ouvi.............903.2.1 Sr. Valdemar Xakriabá, aldeia Prata.…933.2.2 Deda Xakriabá, aldeia Imbaúba…100

4. “CULTURA ACÚSTICA” E TRADIÇÃO XAKRIABÁ108 4.1 O encantado e o encanto.....1104.2 Sobre pessoas e simpatias 1154.3 Batuque, um canto dançado 1194.4 Histórias da “bichaiada 1234.5 De Várzea Grande até o Rio São Francisco: narrativasde um novo capítulo da luta pela terra 1265. QUANDO “O CORPO PUXA A LÍNGUA”: AEDUCAÇÃO ESCOLAR XAKRIABÁ E O DIÁLOGOENTRE TRADIÇÕES 1345.1 Educação escolar indígena: um paralelo entre o Brasil eMinas Gerais 1365.2 Educação Escolar Indígena Xakriabá 1435.3 Educação diferenciada no contexto escolar indígenaXakriabá 1515.3.1 Peço licença para um parêntese, (Mas de que culturae tradição eles estão falando 1565.4 Professor de cultura ou contador de histórias: modosde aprendizagem e performance 1606. RESSONÂNCIAS 1787. REFERÊNCIAS 182ANEXOS 190

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CARRANCA

Órgão Informativo da Comissão Mineira de Folclore – CMFLNúmero 03-18– Julholho- Setembro - 2018.Acessível emwww.folcloreminas.com.br

Diretor Responsável – Míriam Stella BlonskiFotos: José Moreira de Souza,,

Editoração Gráfica: José Moreira de Souza

Diretoria da CMFL - 2014 - 2017Presidente de Honra: Domingos DinizPresidente: Míriam Stella BlonskiVice-presidente: Fabiane RibeiroSecretária: Marcus Vinícius Martins da CostaTesoureiro: Elieth Amélia de SousaConselho Fiscal da CMFLAntônio de Paiva MouraRaimundo Nonato de Miranda ChavesJosé Moreira de Souza

IMPRESSORemetenteComissão Mineira de FolcloreRua Pires da Mota - 202Bairro Madre Gertrudes

CEP – 30512-760Belo Horizonte - MGE-mail: [email protected]

Agradecimentos:

Prefeitura Municipal de Belo Ho-rizonte - Fundação Municipal de

Cultura

Comissão Mineira deFolclore

Novos TemposGestão 2018 - 2020

Contrato N°SEC/ SFIC/FEC/CONTRATO/ 177/2017

Movimento dos Folcloreistas em Minas Gerais- 1889 - 1951 -

Relatório intermediário.