Carta Capital - Neoliberalismo e manifestações - que uma coisa tem a ver com a outra

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Neoliberalismo e manifestaes:
que uma coisa tem a ver com a outra?

Os movimentos das dcadas de 1970-1980 lutavam pela democracia e pelo Estado de Bem-Estar. Hoje, questionam a qualidade da democracia

por Eduardo Fagnani publicado 09/10/2013 14:02, ltima modificao 09/10/2013 20:56

Entre 1998 e 2013, por diversas vezes as ruas ganharam, mas no levaram. As elites dirigentes vrias vezes conseguiram mudar para conservar o status quo. Essas manobras, iniciadas na transio democrtica, foram aprofundadas entre 1990 e 2002, quando se formou no Brasil o grande consenso favorvel ao projeto neoliberal.No campo poltico, inicia-se o longo ciclo de crise da democracia participativa, a mesma que agora, em 2013, est sendo contestada. Assiste-se, nessa quadra, remontagem da tradicional coalizo que tem sustentado o poder conservador no Brasil. Polticos identificados com a ditadura e outros identificados com o projeto reformista democrtico dos anos 1970 passaram a ser a base de sustentao do antagnico projeto liberalizante.No campo da cidadania social, a conservao do status quo social passava a exigir a eliminao do captulo sobre a Ordem Social da Constituio da Repblica. O Estado mnimo, cerne da agenda liberalizante, a anttese do Estado de Bem-Estar Social, cujos valores foram consagrados na Carta de 1988 (e, em tese, assegurariam o tal padro Fifa exigido pelas ruas). verdade que o neoliberalismo corresponde etapa da concorrncia capitalista no contexto da globalizao. Mas muitos autores sustentam que no Brasil houve opo passiva ao projeto. No prximo artigo analisaremos o caso brasileiro. Neste, sero privilegiadas as mudanas ocorridas no plano internacional.A partir do final dos anos de 1970, a ideologia neoliberal ganha expresso no cenrio internacional. Para Jos Luis Fiori, essa ascenso inicia-se nos anos de 1960, quando as teses de Friedrich von Hayek e Milton Friedman e de tantos outros comearam a ganhar espao acadmico, sobretudo nas universidades norte-americanas. O fator decisivo da passagem da teoria para a prtica ocorreu com a chegada ao poder das foras liberal-conservadoras, a partir da vitria eleitoral de Margaret Thatcher (1979), Ronald Reagan (1980), e Helmut Kohl (1982). Nesse contexto, destacou-se o pioneirismo da experincia de Thatcher, organizada sobre o trip da desregulao, da privatizao e da abertura comercial. Nos anos de 1980, essas ideias foram consagradas pelas organizaes multilaterais que se transformaram no ncleo de formulao do pensamento e das polticas neoliberais voltadas para o ajustamento econmico da periferia capitalista. O neoliberalismo ganhou expresso ainda maior aps a queda do Muro de Berlim (1989). De l para c, essas ideias se transformaram no pensamento nico, uma espcie de utopia quase religiosa, afirma o autor.No plano econmico, a estratgia imposta aos pases subdesenvolvidos para ajustarem-se nova ordem capitalista mundial foi sintetizada no chamado Consenso de Washington, que impunha condicionalidades aos pases perifricos para renegociao das dvidas externas agravadas pela crise de 1982. A readmisso no sistema financeiro internacional dependia da adoo de programa de ajuste macroeconmico ou de estabilizao monetria, tendo como prioridade absoluta a obteno de supervit fiscal primrio que envolvia, invariavelmente, a reviso das relaes fiscais intergovernamentais e a reestruturao dos sistemas de previdncia pblica. O ajuste macroeconmico era complementado por um conjunto de reformas estruturais voltadas liberao financeira e comercial, desregulao dos mercados, privatizao das empresas estatais e reduo do Estado. No incio dos anos 1990, essas regras j haviam sido impostas a mais de sessenta pases, sobretudo da periferia subdesenvolvida.No campo poltico, o capitalismo transformado em sentido neoliberal minou as bases da democracia liberal representativa e ocorre ampla submisso da sociedade civil e do Estado economia, afirma Joachim Hirsch. Para ele, o processo de globalizao na essncia um ataque s conquistas democrticas do sculo 19 e, sobretudo, do sculo 20. O objetivo exitoso da grande contraofensiva neoliberal era criar um sistema poltico-econmico livre de interferncias democrticas. Estabeleceu-se um sistema mundial de Constitucionalismo neoliberal que, na prtica, retirou de cada Estado a possibilidade da influncia poltica democrtica.Nesse processo, o carter do sistema poltico tambm sofreu modificaes essenciais. O sistema fordista de partidos populares", que aglutinavam amplos interesses sociais e procuravam influenciar os processos polticos decisrios, passou a ser coisa do passado. Esse modelo foi substitudo pela ideia da individualizao, impulsionada pelos prprios partidos, pela qual o comportamento de mercado penetra em todas as reas da vida, desde a famlia at as escolas e as universidades. Para Hirsch, o indivduo como empresrio de si mesmo torna-se a figura central das relaes sociais.Com a hegemonia dos mercados desregulados, a poltica deixou de tutelar a economia. A sociedade perdeu a capacidade de conter o mpeto desagregador das foras de mercado. Na percepo dos crticos da Golden Age (1947-1973), havia Estado demais, regulamentao demais, controles demais, sindicatos demais, proteo social demais, interveno demais. Enfim, poltica demais! A partir de meados da dcada de 1970, a economia passou a se vingar da poltica, afirma Frederico Mazzucchelli.O neoliberalismo um produto da derrota da luta social. A partir do final dos anos 1960, comeou a haver certo incmodo com o poder dos sindicatos e com a interferncia do Estado. Para Luiz Gonzaga Belluzzo, a primeira coisa que Reagan e Thatcher fizeram foi derrotar os sindicatos. Esse foi o fator decisivo para impulsionar o neoliberalismo.De fato, o ataque aos direitos trabalhistas constitui um dos ncleos da ofensiva dos mercados. Na base de tal redirecionamento estava a vontade de quebrar a espinha dorsal dos sindicatos e dos movimentos organizados da sociedade, segundo Snia Miriam Draibe. De acordo com Jorge Mattoso, configurou-se uma situao de desordem do trabalho, percebida pela crescente ampliao da insegurana observada em diferentes nveis: no mercado de trabalho, no emprego, na renda, na contratao e na representao do trabalho. Houve aumento das demandas pela flexibilizao e desregulamentao dos mercados de trabalho, segundo Carlos Alonso Barbosa de Oliveira.Outro foco da revanche dos mercados foi o Estado de Bem-Estar, tido como manifestao do excesso da interveno estatal durante a Golden Age. O iderio do Estado do Bem-Estar Social foi esconjurado em favor do iderio do Estado mnimo, que representa sua negao: focalizao versus universalizao; assistncia versus direitos; seguro social versus seguridade social; mercantilizao versus servios pblicos; contratos flexveis versus direitos trabalhistas e sindicais.O ncleo do Estado mnimo ocupado por polticas focalizadas de combate pobreza extrema. Essa estratgia nica tambm abria as portas para a privatizao dos servios sociais. Ao Estado cabe somente cuidar dos pobres eleitos pelos organismos internacionais (aqueles que recebem at US$ 2 por dia). Os que esto acima dessa arbitrria linha de pobreza precisam buscar no mercado privado os servios de sade, previdncia, saneamento, transporte pblico, educao e outros bens e servios sociais bsicos.O Chile foi o laboratrio do paradigma liberalizante para os pases subdesenvolvidos. Com base nessa experincia, desenvolvida no incio dos anos de 1980 por delegao de Pinochet a Milton Friedman, o Banco Mundial elaborou o conhecido modelo dos trs pilares. Ao Estado cabia somente atuar de forma focalizada no pilar inferior, onde se concentra a pobreza arbitrada pelas agncias internacionais. Para os pilares intermedirios e supe-riores, as solues seriam ditadas pelo mercado. A privatizao foi imposta para setores essenciais, como sade, previdncia, saneamento e transporte pblico. No Chile, a educa-o tambm foi privatizada. No caso da previdncia, nos anos de 1990 nove pases de Am-rica Latina e treze da Europa Oriental e sia fizeram as reformas paradigmticas propostas pelo Banco Mundial.O que isso tudo tem a ver com as marchas de 2013? De um lado, porque por esse processo se fez o esvaziamento da poltica e da democracia. De outro, pelas contramarchas impostas cidadania social (o tal padro Fifa). A Constituio de 1988 instituiu um sistema de proteo social inspirado nos valores dos regimes de Estado de Bem-Estar Social (Direitos, Igualdade, Universalidade e Seguridade Social). Mas isso passou a ser incompatvel com o ajuste macroeconmico e a reforma liberal do Estado. Essas faturas esto sendo cobradas pelas marchas populares de 2013.

* Eduardo Fagnani doutor em economia e polticas pblicas e professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordena a rede Plataforma Poltica Social.