Carta de Galileu a Grã-Duquesa Da Toscana

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  • 7/25/2019 Carta de Galileu a Gr-Duquesa Da Toscana

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    ANA PAULA BROLLO

    "Galileu Galilei: Carta Senhora Cristina de

    Lorena, Gr-Duquesa de Toscana."

    MESTRADO: HISTRIA DA CINCIA

    PUC/SPSO PAULO

    2006

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    ANA PAULA BROLLO

    "Galileu Galilei: Carta Senhora Cristina de

    Lorena, Gr-Duquesa de Toscana."

    Dissertao apresentada BancaExaminadora da Pontifcia UniversidadeCatlica de So Paulo, como exignciaparcial para obteno do ttulo deMESTRE em Histria da Cincia sob aorientao do Prof. Dr. Carlos Arthur

    Ribeiro do Nascimento.

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    SO PAULO

    2006

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    Banca Examinadora

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    Ao meu querido pai e grande mestre, que

    me apresentou o cu e agora faz parte

    dele.

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    Resumo

    Esta dissertao tem como objeto a relao do sistema de Coprnico com a

    Bblia; questo crucial que pode ser analisada na Carta a Cristina de Lorena, de

    Galileu, escrita em 1615, na qual tal tema abordado pelo clebre florentino.

    So consideradas de incio algumas observaes de Galileu ( manchas

    solares, fases de Vnus e satlites de Jpiter) que davam crdito tese de

    Nicolau Coprnico, que colocava o Sol no centro do universo e fazia a Terra girar

    em torno de si mesma e ao redor do Sol. Tese introduzida mais de meio sculo

    antes, mas sem provas para fundament-la. As descobertas observacionais de

    Galileu proporcionaram sustentao para o sistema copernicano, discutindo-se o

    carter desta: prova rigorosa (demonstrao necessria) ou fundamentao de

    uma hiptese capaz de salvar os fenmenos?.

    Procuramos analisar a Carta de Galileu a Cristina de Lorena, destacando as

    estratgias utilizadas por Galileu para mostrar o acordo do sistema copernicano

    com a Bblia; destacando tambm como Galileu concebe o estudo do livro da

    Natureza e a interpretao da Bblia.

    Para Galileu, tanto a Natureza como a Sagrada Escritura so obras de

    Deus; so, portanto, dois livros desprovidos de erro e no podem se contradizer;

    no entanto, a Natureza e a Escritura so dois livros escritos em linguagens

    diferentes, com finalidades diferentes, no se podendo l-los da mesma forma.

    As fontes primrias utilizadas foram as cartas de Galileu que se referem

    relao do sistema copernicano com a Bblia, principalmente a carta a Cristina de

    Lorena. Tambm utilizamos textos da poca que foram teis para a compreenso

    do confronto entre cincia e religio no caso em questo.

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    Abstract

    This dissertation has as subject the relation of Copernicus system with the

    Bible; a crucial question that may be analyzed in Galileos Letter to Cristine of

    Lorene, wrote in 1615, in which this subject is treated by the celebrated Florentine.

    At first, some observations of Galileo are considered (solar spots, phases of

    Venus and Jupiter satellites) which gave credit to the thesis of Nicolaus

    Copernicus, who placed Sun in the center of Universe and made Earth to turn

    around itself and around the Sun. This thesis was introduced more than one half

    century before, but without proofs to support it. The observacional discoveries of

    Galileo provided support for the copernican system, being argued the character of

    this support: a rigorous proof (necessary demonstration) or endorcement of an

    hypothesis saving the phenomena.

    We endeavor to analyze the Letter of Galileo to Cristine of Lorene, stressing

    the strategies used by Galileo to show the agreement of the copernican system

    with the Bible; stressing also as Galileo conceives the study of the book of Nature

    and the interpretation of the Bible.

    For Galileo, Nature as much as Sacred Scripture are works of God; they

    are, therefore, two books without error and cannot contradict one another;

    however, Nature and Scripture are two books written in different languages, with

    different purposes, not being able to be read in the same way.

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    Primary sources used were the letters of Galileo related to the relation of the

    copernican system with the Bible, mainly the letter to Cristine of Lorene. We used

    also texts of the time, that were useful for understanding the confrontation between

    science and religion in the case at hand.

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    NDICE

    Introduo.................................................................................................................9

    1. Carta Gr- duquesa Cristina de Lorena: Precedentes.....................................12

    2. Carta a Cristina de Lorena..................................................................................24

    3. Bblia, Interpretao e Natureza.........................................................................45

    4. Teologia..............................................................................................................53

    5. Argumento de autoridade...................................................................................55

    6. Os dois livros: as Sagras Escrituras e a Natureza..............................................59

    7. Argumentos astronmicos..................................................................................63

    Concluso...............................................................................................................68

    Bibliografia..........................................................................................................72

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    Introduo

    A aceitao do copernicanismo por Galileu no est claramente

    documentada at 1597, cinco anos depois que obteve a ctedra de matemtica da

    Universidade de Pdua. Em uma carta a Kepler, manifesta ele, ento estar de

    acordo sobre a verdade da teoria copernicana.

    Em maro de 1610, Galileu publicou seus descobrimentos feitos com o

    telescpio em um livro importante, Sidereus nuncius (O Mensageiro sideral). A

    afirmava que a Lua no era um corpo esfrico perfeito, tendo montanhas, vales e

    crateras, como a Terra. Havia estrelas no firmamento no discernidas a olho nu: a

    via lctea aparecia composta por agrupamentos de estrelas. Em Jpiter se

    observavam quatro luas.

    Estas descobertas com o telescpio transformaram a natureza da questo

    copernicana. Por exemplo, a superfcie acidentada da Lua mostrava que algumas

    caractersticas da Terra se repetiam no cu. O movimento das estrelas

    mediceanas, isto , das luas de Jpiter, deixava claro que satlites podiam ter

    rbitas em torno de outros corpos que no a Terra. As fases de Vnus, outra

    importante descoberta com o telescpio, atestavam que pelo menos um planeta

    podia girar em torno do Sol. E as manchas escuras observadas no Sol

    conspiravam contra a perfeio deste.

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    O padre Benedetto Castelli escreveu a Galileu em 14 de maro de 1613,

    informando-o sobre o encontro com a famlia Mdici, a 12 de dezembro de 1613,

    durante o qual se discutira o sistema copernicano, tendo a Gr-duquesa Cristina

    exigido que se mostrasse a ortodoxia deste sistema. A notcia perturbou Galileu e

    o levou a uma resposta. Escreveu uma carta a Castelli no dia 21 de dezembro de

    1613, argumentando sobre a relao entre a verdade descoberta na Natureza e a

    revelada na Bblia. Uma verso ampliada e com argumentao mais desenvolvida

    desta carta, veio a se tornar a Carta a Cristina de Lorena, escrita em meados de

    1615, em que Galileu procurou compatibilizar o sistema copernicano com o texto

    bblico.

    Na carta a Cristina de Lorena, como mostraremos, podemos destacar

    numerosas "autoridades" que Galileu cita para sustentar suas teses, recorrendo

    principalmente a passagens de Santo Agostinho, cujas obras, ocioso dizer,

    tinham grande peso na poca e as passagens citadas eram particularmente

    favorveis posio adotada por Galileu no tocante s relaes da doutrina crist

    e das Escrituras com os estudos astronmicos.

    Mostraremos tambm que Galileu seguiu na carta as partes convencionais

    da arte de escrever cartas: salutatio, captatio benevolentiae, narratio, petitio e

    conclusio.

    Focalizaremos, enfim, algumas questes especficas dentro da Carta a

    Cristina de Lorena, como a interpretao da Bblia e da Natureza, ou seja, que

    uma e outra so como dois livros desprovidos de erro, ambos sendo obras divinas;

    o erro estaria, portanto, na interpretao da Escritura, por parte daqueles que no

    entenderiam o seu real sentido. Supe-se que os que estudariam a Natureza

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    apresentariam verdades rigorosamente demonstradas, servindo estas inclusive de

    orientao para a interpretao da Escritura. Ao abordarmos estas questes,

    estaro em jogo alguns aspectos concernentes ao conceito de cincia e de

    mtodo, sem que se pretenda entrar em anlises que seriam certamente extensas

    e complexas.

    A teologia outro tpico abordado, por Galileu em sua argumentao, pois

    deve ele situar-se face considerao de que a teologia a rainha de todas as

    cincias; o que Galileu aceita, dado o objeto de que esta se ocupa, ou seja, as

    coisas que concernem a Deus; tambm pelo fato de proceder por meios sublimes,

    quer dizer, a revelao divina. Mas, a teologia no rainha no sentido de que, o

    que outras cincias ensinam, se encontre nas investigaes tratadas pela teologia.

    Quanto ao argumento de autoridade, j mencionado, definir-se- seu

    significado e ser analisado o uso por Galileu para validar suas teses, de citaes

    dos Pais da Igreja, sobretudo Santo Agostinho.

    O trabalho se encerra com a contraproposta do Cardeal Belarmino, pedindo

    que Galileu tratasse o copernicanismo como uma simples hiptese.

    Os trechos das cartas de Galileu encontrados neste trabalho foram

    retirados de Antnio Favaro, Le Opere di Galileo Galilei, Edizione Nazionale, 2

    ed., Florena, G. Barbra, 1932. A numerao constante desta mesma edio. A

    traduo de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, publicada sob o ttulo de

    Cincia e F. So Paulo: Nova Stella e Instituto Cultural talo-Brasileiro; Rio de

    Janeiro: MAST, 1988.

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    1. CARTA GR DUQUESA CRISTINA DE LORENA: PRECEDENTE

    Em 1609 Galileu foi atrado pelos comentrios sobre uma nova curiosidade

    holandesa chamada luneta ou culo1 (perspicillum, em latim, occhiale, em

    italiano), que podia fazer os objetos distantes parecerem mais prximos do que

    estavam. Galileu procurou aperfeioar a luneta2, por procedimentos artesanais3e

    foi a Veneza mostrar ao doge e ao senado veneziano do que seu invento era

    capaz.

    Como ele prprio diz, deixando as coisas terrenas, dedicou-se s

    celestes4, apontando uma de suas lunetas para a face da Lua; fez uma srie de

    desenhos da Lua em vrias fases. E concluiu: Dado que sua observao da Lua

    se torna mais fcil e evidente por obra do culo, no considero imprprio reexp-la

    neste lugar, tanto mais quanto assim mais claramente se mostra o parentesco e

    semelhana entre a Lua e a Terra.5

    1O termo telescpio s ser usado a partir de 1611. G. Galilei, O Mensageiro Sideral, p. 36.2 Segundo Feyerabend, Galileu registra que obteve xito na construo do telescpio graas aprofundo estudo da teoria da refrao. Sugere isso que ele tinha razes teorticas para preferir oresultado das observaes por telescpio ao das observaes a olho desarmado. Entretanto, aparticular razo que Galileu apresenta mais aprofundado conhecimento da teoria da refrao nem correta nem suficiente. A razo no correta por existirem srias dvidas quanto aoconhecimento de Galileu acerca das partes da tica fsica de seu tempo que seriam relevantespara a compreenso dos fenmenos telescpicos. Tentativa e erro significa que no caso dotelescpio, no a matemtica e sim a experincia foi que levou Galileu a uma f na fidedignidadede seu instrumento. P. Feyerabend, Contra o Mtodo, pp. 157-159.3G. Galilei, O Mensageiro Sideral, pp. 36-39 e notas.4Ibid.,p. 37.5Ibid.,p. 49.

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    Em suas observaes6, Galileu deparou tambm com a descoberta de

    quatro planetas em rbita em torno do planeta Jpiter. Descobriu igualmente as

    fases de Vnus, viu Saturno como um astro composto de uma parte central

    ladeada por duas outras, percebeu que a Via Lctea constituda por

    inumerveis estrelas.

    Galileu registrou algumas dessas descobertas num novo livro j

    mencionado, o Sidereus Nuncius7, publicado em 1610.

    A publicao do Sidereus Nuncius suscitou no apenas elogios, mas

    crticas e desconfiana8. A validez das observaes telescpicas resultava difcil

    de demonstrar, porque a importncia do telescpio estava em revelar fenmenos

    celestes que no eram visveis a olho nu ou de difcil observao precisa, como as

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    Segundo M. Clavelin,A Revoluo Galileana: Revoluo Metodolgica ou Terica?, p.37. Saberraciocinar a partir da observao dificilmente pode ser considerado uma inovao de Galileu; ahistria das cincias cita grandes observadores que o antecederam ( Tycho Brahe, por exemplo) ealguns de seus contemporneos no podem de forma alguma ser negligenciados (por exemplo, opadre Scheiner, sobre as manchas solares).7 O Mensageiro Sideral (Sidereus Nuncius) foi escrito em latim porque era dirigido ao mundocientfico. Galileu enviou uma cpia a Cosimo II de Medici, junto com seu telescpio aprimorado.Galileu dedicou as quatro luas de Jpiter Casa do Gro-duque, chamando-as de planetasmedicianos. O prncipe exprimiu seu agradecimento em 1610, nomeando Galileu MatemticoMorda Universidade de Pisa e Filsofo e Matemtico do Gro Duque. L. Geymonat, Galileu Galilei, p.51.8 Os filsofos, astrnomos e telogos, que se declararam contrrios ao que a luneta mostrava,quando no se recusavam a observar atravs do telescpio, afirmavam que o que viam atravs daluneta eram iluses de ptica. Por exemplo, Christopher Clavius, professor de matemtica noColgio Romano, acreditou, em um primeiro momento, que no existia prova de que qualquercoisa observada por intermdio de lentes curvas existisse do outro lado realmente a no ser essaslentes, pois o que era visto atravs delas desaparecia quando as lentes eram retiradas. Contudo,depois de realizar com seriedade as observaes telescpicas, Clavius reconheceu que Galileutinha razo. Kepler, a quem Galileu solicitou uma opinio, escreveu uma monografia intituladaDissertatio cum nuncio sidereo a Galileo Galilaeo(Conversa com o mensageiro celeste), publicadaem 1610, na qual reconheceu as descobertas como reais. A atitude dos citados filsofos,astrnomos e telogos estava longe de ser pura cabeudisse ou ignorncia, devido sdificuldades tcnicas na construo da luneta (por exemplo produzir vidro sem bolhas ou colocaras lentes perfeitamente alinhadas), que provocavam efeitos indesejados (halos coloridos em tornodo astro, multiplicao dos objetos vistos, etc.).Sobre este assunto pode-se encontrar mais esclarecimentos em L. Geymonat, Galileu Galilei, p.54.

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    manchas da Lua ou as manchas solares9. Alm disso, quem garantia que no

    espao sideral o telescpio funcionaria do mesmo modo que na atmosfera.10

    Uma das questes polmicas suscitadas pelas observaes e descobertas

    de Galileu foi em relao perfeio e imutabilidade dos cus, por abalarem uma

    crena antiga e medieval.A Lua, observando-a com o telescpio, mostrou-se com

    superfcie coberta de buracos e crateras, vales e montanhas. As observaes

    telescpicas do Sol tambm mostravam imperfeies: manchas negras que

    apareciam e desapareciam na sua superfcie; a existncia dessas manchas estava

    em conflito com a perfeio da regio celeste; o seu aparecimento e

    desaparecimento estava em conflito com a imutabilidade dos cus e dos corpos

    celestes; o movimento dos pontos no disco do Sol indicavam que o Sol girava

    continuamente sobre o seu eixo.

    bom relembrar que as descobertas de Galileu, a rigor, se opunham a

    duas consideraes distintas. De um lado, a figura do mundo aceita pelo senso

    comum da poca, baseada na observao expontnea e que distingue duas

    regies, a terrestre, onde vivem os homens, sujeita a contnuas transformaes e

    a celeste, ocupada pelos astros, incorruptvel, onde a nica mudana o

    movimento local em sua forma perfeita, isto , circular. O centro destes movimento

    o centro do mundo, onde est localizada a Terra, cujo centro coincide com o

    9Galileu no foi o nico observador das manchas solares. Um jesuta alemo, o Padre ChristophScheiner, que utilizou o pseudnimo de Apelles , defendia a idia de que as manchas solarespodiam ser vrias estrelas circundando o Sol. Scheiner apresenta seu trabalho em 5 de janeiro de1612 intitulado Tres epistolae de Maculis Solaribus Scriptae ad Marcum Velserum . Galileu nohavia notado nada parecido com uma estrela nas manchas solares; a seu ver, pareciam-se maiscom nuvens. B. Dame, Galile et les taches solaires (1610-1613), in Galile, aspects de as vie etde son oeuvre, p. 187.10 Muitos aristotlicos, inclusive os astrnomos jesutas do Colgio Romano, desconfiavam dasobservaes telescpicas. Estes ltimos foram convencidos por Galileu durante uma viagem que

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    centro do mundo. Por outro lado, as elaboraes cosmolgicas e astronmicas a

    respeito destes dados da observao comum, que incluam observaes mais

    acuradas e teorias que procuravam dar conta do observado. No que se refere s

    teorias astronmicas (sistemas planetrios) podem ser sumariamente distinguidos

    o sistema das esferas homocntricas de Aristteles e dos excntricos e epiciclos

    de Ptolomeu. Os dois sistemas no so superponveis, havendo tendncia a se

    utilizar Aristteles em cosmologia e a apoiar-se em Ptolomeu quando se tratava de

    astronomia matemtica.

    Os interlocutores de Galileu, que continuavam a aderir s teorias

    tradicionais procuravam muitas vezes explicar as novidades galileanas por meio

    de hipteses ad hoc. Por exemplo, explicar as irregularidades da Lua por meio de

    diferenas de densidade da mesma e as manchas solares como corpos que

    giravam em torno do Sol.

    Algumas destas observaes e descobertas11 de Galileu davam crdito

    tese de Nicolau Coprnico12, que colocava o Sol no centro do universo, introduzida

    mais de meio sculo antes, mas sem provas para fundament-la. Alm disso, as

    observaes das luas de Jpiter, que para Galileu giravam em torno deste,

    pareciam fornecer um modelo visvel do sistema solar de Coprnico. Os

    fez a Roma em 1611. Apesar de aceitarem a imutabilidade do cosmos estes jesutas no negarama evidncia fornecida por seus sentidos. C. S. Morphet, Galileu e a astronomia copernicana, p.32.11Referimo-nos quelas que se relacionam diretamente com o copernicanismo, como a descobertadas luas de Jpiter, das fases de Vnus e das manchas solares, j observadas antes pelo jesutaCristvo Scheiner (1573-1650).12 Em 1543, o cnego polons Nicolau Coprnico, em seu livro Sobre as revolues dos orbescelestes, ou De Revolutionibus orbium coelestium, Libri VI, tirou a Terra de sua posio central e acolocou em orbita em torno do Sol. Embora Coprnico tenha feito muitas observaes a olho nu daposio dos planetas, a maior parte de seu trabalho se constitua de leitura, reflexo e clculosmatemticos. No forneceu evidncia observacional em apoio do que propunha. Sobre a fsica e acosmologia de Coprnico, vide T. S. Kuhn,A Revoluo Copernicana, pp. 171-184.

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    argumentos a favor do copernicanismo13eram, assim, reforados devido a essas

    descobertas. Particularmente, as observaes de Vnus forneciam um forte apoio

    para a hiptese de Coprnico, embora fossem compatveis com o sistema de

    Tycho Brahe.14

    Quando Galileu observou Vnus, pde notar que o tamanho e a forma do

    planeta variavam. Portanto, a variao de brilho de Vnus explicaria a existncia

    de fases. Alguns astrnomos, especialmente os ligados Igreja Catlica,

    reconheceram que as provas da existncia de fases em Vnus pesavam

    gravemente contra o sistema ptolomaico15. As fases de Vnus no podem ser

    distinguidas a olho nu, mas o telescpio aumenta suficientemente os planetas

    13 P. Feyerabend sustenta que o comportamento de Galileu difere das explanaes histricashabituais: no aponta fatos novos que ofeream apoio indutivo idia de Terra em movimento,nem menciona quaisquer observaes que refutariam o ponto de vista geocntrico, mas queseriam explicadas pelo copernicanismo. Ao contrrio, sublinha que tanto as concepes dePtolomeu quanto as de Coprnico so refutadas pelos fatos. P. Feyerabend, Contra o Mtodo, p.

    156.14 As contribuies de Tycho Brahe astronomia foram enormes. No somente projetou econstruiu instrumentos, mas tambm calibrou-os e verificou sua exatido periodicamente. Mudoutambm a prtica observacional profundamente, visto que alguns astrnomos mais adiantadostinham ficado satisfeitos em observar as posies dos planetas e da lua em determinados pontosimportantes de suas rbitas. No general, Tycho fez medies astronmicas mais precisas do queos astrnomos precedentes.

    As observaes de Tycho da estrela nova de 1572 e de um cometa de 1577, e suas publicaessobre estes fenmenos, eram instrumentais para estabelecer o fato de que estes corpos estavamacima da lua e que consequentemente os cus no eram imutveis como Aristteles tinhadiscutido e os filsofos tinham acreditado. Os cus eram mutveis e consequentemente a divisoaristotelica entre as regies supralunar e sublunar veio a ser atacada (ver, por exemplo, Dilogo deGalileo) e foi deixada de lado eventualmente. Mas, se os cometas estivessem nos cus, mover-se-

    iam com os cus. As observaes de Tycho mostraram que este arranjo era impossvel porque oscometas se moveriam atravs das esferas. As esferas celeste desvaneceram-se entre 1575 e1625.Se Tycho destrusse a dicotomia entre o mundo sublunar corruptvel e sempre em mudana e oscus perfeitos e imutveis, ento o novo universo seria mais aceitvel para o arranjo planetrioheliocntrico, proposto por Nicolau Copernico. Mas Tycho no era um seguidor de Copernico.Tycho desenvolveu um sistema que combinasse o melhor de ambos os mundos. Manteve a Terrano centro do universo, de modo que pudesse reter a fsica Aristotelica. A lua e o sol revolveriam emtorno da Terra, e a esfera das estrelas fixas foi centrada na Terra. Mas Mercrio, Vnus, Marte,Jpiter, e Saturno revolveriam em torno do Sol. Ps o trajeto circular do cometa de 1577 entreVnus e Marte. Mais detalhes vide: T. S. Kuhn,A Revoluo Copernicana, pp. 232-242.

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    para mostrar que a forma de Vnus varia e esta variao fornece fortes evidncias

    de que Vnus se move numa rbita centrada no Sol.

    Nenhuma das observaes, mesmo a das fases de Vnus, fornece, porm,

    um argumento irrefutvel para o sistema de Coprnico16, embora o telescpio

    tenha sido um instrumento poderoso a favor do copernicanismo.17.

    Os padres jesutas18concordavam com Galileu quanto ao reconhecimento

    da verdade de fato das observaes astronmicas por ele realizadas, no na

    15 O sistema ptolomaico no podia explicar as fases de Vnus. O sistema copernicano, aocontrrio, oferece uma explicao destas observaes. Para mais detalhes sobre o fenmeno, videT. S. Kuhn,A Revoluo Copernicana, p. 255.16Algumas questes importantes sobre o sistema de Coprnico foram feitas por D. C. Lindberg,Galileo, the Church, and the Cosmos, inD. C. Lindberg & R. L. Numbers, orgs., When Science &Christianity Meet, pp. 33-60. Sintetizaremos algumas delas. Por qu aqueles astrnomos queprimeiro dominaram o De Revolutionibus de Coprnico recusaram aceitar a verdade doheliocentrismo? porque a evidncia que poderia ser conduzida no meio do sculo XVII em apoio domodelo heliocntrico como fisicamente verdadeiro no era convincente. Sem observao, ele crque poderia provar que o Sol est parado e a Terra se move. Predies usando o novo sistema (naforma dada no De Revolutionibus) no foram mais precisas do que aquelas oferecidas pelosantigos. 1) eliminao do equante ptolomaico significou que todos os movimentos so uniformes

    em relao o centro deles. 2) a teoria lunar de Coprnico e sua teoria de precesso dosequincios foram reconhecidas como tecnicamente superiores s de Ptolomeu. 3) o sistemaheliocntrico teve um certo nmero de vantagens que se situavam no esquivo domnio: ordem,coerncia ou inteligibilidade. Por exemplo, o sistema ptolomaico no oferecia princpio bvio paradeterminar a verdadeira seqncia das rbitas planetrias. Coprnico poderia explicar omovimento retrgrado dos planetas. No explicado pela astronomia de Ptolomeu, o movimentoretrgrado foi revelado pelo heliocentrismo como um simples caso de iluso de tica, devido aofato que observamos aqueles planetas de uma plataforma em movimento. Ao lado destasvantagens do modelo heliocntrico algumas desvantagens. 1) colocar a Terra em movimentorepresentou uma violao do senso comum. 2) a mudana da Terra do centro do cosmosrepresentou um ataque destrutivo fsica de Aristteles e por isso representou uma sria violaodo senso comum cientfico. 3) colocar a Terra em movimento, foi coloc-la dentro dos cus,destruindo a dicotomia entre os cus e a Terra. 4) Ausncia de paralaxe estelar. Segundo os

    autores do texto, aqueles astrnomos e filsofos naturais que rejeitaram o heliocentrismo no ofizeram por causa do conservadorismo cego ou intolerncia religiosa, mas pelo compromisso delescom princpios cientficos e teorias fizeram largamente aceitos. De fato, os primeiros crticos sriosforam jovens astrnomos alemes, que perceberam a simplicidade e inteligibilidade da teoriaheliocntrica e a usaram para clculo, mas a consideraram como fisicamente impossvel.Coprnico tinha dedicado o De Revolutionibusao papa. E, exceto uma ou duas pessoas, ningum

    julgou suas idias perigosas tolas, talvez, mas dificilmente uma ameaa.17Em dezembro de 1615 Galileu pensou ter encontrado uma nova sustentao para Coprnico: omovimento das mars, acreditava Galileu, dava um testemunho constante de que o planeta Terrade fato girava no espao. Se a Terra permanecesse imvel, o que poderia fazer suas guas irempara l e para c, subindo e baixando em intervalos regulares ao longo das costas? O fato, porm,de Galileu no poder explicar as mars sem o movimento da Terra no provava que a Terra se

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    interpretao das mesmas. A confirmao oficial das descobertas galileanas foi

    dada pelos padres ao prprio Galileu em uma conferncia deste, realizada no

    Colgio Romano em 1611, com o ttulo de Nuncius sidereus Collegii Romani.19

    O problema se agravou quando, depois destes descobrimentos, e Galileu

    concretizava mais sua defesa do sistema copernicano, foi posto em relevo que as

    teses centrais deste, a imobilidade do Sol e o movimento da Terra, chocavam-se,

    pelo menos aparentemente, com algumas passagens bblicas. As mais

    conhecidas e citadas no prprio sculo XVII eram: Salmos18,6 e 103,5, Crnicas

    16,30, Eclesiastes1,4-6, Josu10,12. Estas passagens referem-se estabilidade

    da Terra e ao movimento do Sol. Da a importncia de se buscar a concordncia

    da cincia astronmica com a Bblia.20

    movia. Ver a respeito: Pablo Mariconda, A Quarta Jornada do Dilogoe a teoria das mars., In:Idem, Galileu Galilei, Dilogo sobre os dois mximos sistemas do mundo, pp. 843-868.18Os jesutas representavam naquele momento, a ordem religiosa mais aberta para as cinciasexatas; eram, contudo, apesar de tal abertura, os mais rgidos defensores da ortodoxia catlica epretendiam usar sua prpria competncia cientfica para impedir que a cincia assumisse umsignificado contrrio doutrina catlica. Pertencia Companhia de Jesus o cardeal RobertoBelarmino, um representante do espirito contra-reformista, professor no Colgio Romano e,posteriormente, telogo do Papa, consultor do Santo Ofcio, examinador dos bispos. Belarminoenviou perguntas aos matemticos do Colgio Romano sobre o que eles pensavam a respeito dasnovas descobertas astronmicas, preocupado com os reflexos que poderiam ter estesdesenvolvimentos da cincia sobre a concepo de mundo e sobre a teologia. Os matemticos eastrnomos do Colgio Romano confirmaram as descobertas de Galileu, formulando apenasalgumas reservas sobre o formato de Saturno e a constituio da Via Lctea. A. Banfi, GalileuGalilei, p. 141.19 O Colgio Romano era uma instituio de ensino sob os cuidados da Companhia de Jesus.

    Abrigava cerca de dois mil estudantes vindos de toda a Europa, que encontravam na gramtica,retrica, tica, dialtica aristotlica, Escrituras, hebraico e grego, instrumentos para as seisctedras de teologia, sendo trs de escolstica e as demais de teologia positiva, casustica e decontrovrsia contra os herticos. Alm disso, era tambm uma comunidade cientfica, compesquisas astronmicas e matemticas, exigindo de seus participantes a conciliao entre aspreocupaes cientficas e as exigncias doutrinais catlicas. Mas quanto filosofia natural, isto ,a fsica e a cosmologia prendia-se tradio e polemizava com as formas de aristotelismo quecirculavam fora das universidades ou em algumas ctedras heterodoxas. Seus estudos baseavam-se em disciplina, pesquisa e solidariedade. C. V. Oliveira, O Livro da Natureza: Galileu Galilei, p. 4.20 M. A. Granada, Il problema astronomico-cosmologico e le Sacre Scritture dopo Copernico:Christoph Rothmann e la teoria dellaccomodazione. Rivista di Storia della Filosofia, pp. 789-828.

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    Galileu manifesta confiana em relao contribuio das cincias

    naturais para a interpretao do texto bblico. Por exemplo, a propsito da

    passagem de Josu (10,12), a qual relata a parada do Sol no meio do cu, Galileu

    desenvolve uma interpretao para mostrar como esta passagem, no sentido mais

    direto das palavras, concorda melhor com a teoria de Coprnico do que com a de

    Ptolomeu.

    assim que na carta a Castelli, Galileu trata do Milagre de Josu que havia

    sido utilizado como argumento contra o sistema heliocntrico. Desejando afastar

    os obstculos ao desenvolvimento da atividade cientfica e tambm pretendendo

    evitar uma possvel condenao do copernicanismo, entra na interpretao bblica,

    terreno que no deveria ter pisado em coerncia com seu prprio pensamento

    sobre a questo. Mesmo assim, o que disse sobre a passagem de Josu

    sobretudo um argumento contra os partidrios do geocentrismo, pois no caso de

    uma interpretao literal, e tendo em conta a constituio sustentada pelos

    partidrios deste, o milagre, tal como o narra a Bblia, no poderia ter lugar.21

    Sustentar tal interpretao literal seria compatvel com a constituio do universo

    que o sistema copernicano defende.22Ento, os telogos iro advertir Galileu de

    21O dominicano Tommaso Cacini, comentando o captulo X do livro de Josu, se dirigia a Galileue seus seguidores servindo-se das palavras de So Lucas: Homens da Galileia, que estaiscontemplando no cu? [viri Galilaei, quid statis adspicientes in coelum?], pronunciando emcontinuao um violento ataque contra os matemticos fazedores de heresias e contra a mesmamatemtica, a que considerava como arte diablica, Galileu no contestou diretamente tal tipo deadversrios; a propsito dos ataques contra os matemticos, assinalou que tais sujeitos noadvertiam que contradizer a geometria o mesmo que negar abertamente a verdade. GalileuGalilei, O Ensaiador, p. 32. M. Gonzlez,Carta a Cristina de Lorena y otros textos sobre ciencia yreligin, p. 20.22 Galileu explica primeiro que a rotao do Sol em torno do seu eixo a causa de todos osmovimentos planetrios. Conclui que, quando Josu exclamou: Sol, detm-se!, o Sol parou degirar e, em conseqncia, se paralisou tanto o movimento anual da Terra como o dirio. ParaGalileu, se a Terra parasse brusca e repentinamente, montanhas e cidades cairiam. Se seinterpretasse da Bblia de acordo com Ptolomeu, a repentina parada do Sol no teria nenhum

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    que a interpretao da Escritura pertence aos telogos,23no cabendo a ele como

    astrnomo e leigo dar lies a estes.

    Em reunies da corte, Suas Serenssimas Altezas Cosimo II, a

    arquiduquesa Maria Madalena e a gr-duquesa me Madama Cristina24recebiam

    convidados capazes de inform-los sobre diversos temas. O monge beneditino

    Benedetto Castelli, discpulo de Galileu e recm-nomeado para a ctedra de

    matemtica de Pisa, era um desses comensais. Durante o jantar no dia 12 de

    dezembro de 1613 quando a conversao girava em torno do telescpio e

    observaes astronmicas, a opinio geral parece ter sido a favor dos

    descobrimentos do telescpio de Galileu, mas Csimo Boscaglia, professor de

    filosofia da Universidade de Pisa, afirmou que o movimento da Terra era algo

    impossvel, em particular porque as Sagradas Escrituras eram contrrias a esta

    opinio. A conversao continuou e Castelli foi pressionado por Cristina de Lorena

    para que defendesse o movimento da Terra contra a prova das Escrituras.

    efeito fsico aprecivel, e o milagre continuaria sendo crvel como so os milagres. Se interpretassesegundo Galileu, Josu no s houvesse destrudo os filisteus como a Terra toda.X. Granados; F.Reus; P. Fuente; G. Santa-Maria; A. Garrigs & A. M. Rius, Galileu e a Astronomia Copernicana,p. 47.23Depois da publicao do De revolutionibus(1543), catlicos e protestantes aduziram o problemateolgico como prova evidente da falsidade da teoria copernicana. Giovanni Maria Tolosani,telogo dominicano de Florena, insistiu sobre a impossibilidade fsica do princpio copernicano emcontradio com a verdade de uma Terra imvel no centro do mundo. Tolosani afirmava que ateoria copernicana contradizia a Escritura. Melanchton evidencia a incompatibilidade do movimentoda Terra e a Escritura em seu Initia doctrinae physicae, um manual de filosofia natural publicadoem 1549. Na Segunda edio da obra em 1550, Melanchton atenuou a crtica a Coprnico sobre aquesto fsica, reconhecendo a possibilidade de um uso instrumental ou exclusivamentematemtico do movimento terrestre e do heliocentrismo; mas acusa o axioma copernicano decontradizer a Escritura. Calvino, provavelmente em 1556 sem fazer uma explicita referncia Bblia ou a Coprnico, condenou a tese do movimento da Terra como um sinal de loucura e indciode uma natureza monstruosa que perverte a ordem natural. Para melhores explicaes vide M. A.Granada, Il problema astronomico-cosmologico e le sacre scritture dopo Copernico: ChristophRothmann e la Teoria dellaccomodazione, in Rivista di Storia della Filosofia, pp. 789-828.24Filha de Carlos, duque de Lorena, casou-se em 1589 com o gro-duque da Toscana, FerdinandoI. Convidou Galileu em 1605 para dar aulas a Csimo, seu filho, que, na poca em que a Carta a

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    Em 14 de dezembro de 1613, Castelli escreveu a Galileu, informando-o

    sobre este encontro com a famlia Mdici. A gr-duquesa Cristina, como j

    mencionado, exigira que se mostrasse a ortodoxia do sistema copernicano25. A

    notcia perturbou Galileu e o levou a uma resposta. Escreveu uma carta a Castelli

    no dia 21 de dezembro de 161326, argumentando sobre a relao entre a verdade

    descoberta na natureza e a revelada na Bblia.

    Quanto primeira questo genrica de Madama Serenssima,

    parece-me tenha sido muito prudentemente proposto por ela subscrito e

    estabelecido por V. Paternidade, no poder a Sagrada Escritura jamais

    mentir ou errar, e possurem os seus decretos absoluta e inviolvel

    verdade. Eu acrescentaria somente que, se bem que a Escritura no possa

    errar, algum de seus intrpretes e expositores poderia, entretanto, incorrer

    por vezes em erro, e de vrias maneiras.27

    Para Galileu, no possvel nem adequado tomar a linguagem bblica

    atendo-se sempre ao mero significado das palavras. H indubitavelmente muitos

    artifcios literrios inseridos na Bblia para ajudar a plebe a compreender os

    problemas pertinentes salvao. Neste sentido, a linguagem bblica apresenta

    Cristina de Lorena ( 1615) foi escrita, era o gro-duque com o nome de Csimo II e grandeprotetor de Galileu. G. Galilei, Cincia e F, p. 41.25Madama Cristina era uma catlica fervorosa, que ouvia com freqncia seu confessor, outrospadres, cardeais e o papa. Ela tinha lido a Bblia e podia citar o livro de Josu (10, 12) no qual oSol e a Lua recebem a ordem de ficar parados o que implica que estavam se movendo.26O tema central da carta se refere ao perigo ao recorrer em matrias cientficas Bblia, o queno somente poderia prejudicar a liberdade cientfica, como tambm poderia desrespeitar adignidade do livro sagrado, pois seria utilizado para condenar uma doutrina que, com o tempo,poderia vir a ser demonstrada verdadeira.

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    de modo simplificado certos efeitos fsicos da Natureza, para conform-los

    experincia comum. Portanto, encontramos na Sagrada Escritura muitas

    proposies que tm aspecto literal diferente do verdadeiro, mas que esto assim

    redigidas para acomodarem-se capacidade de entendimento do povo.28

    Castelli, junto com amigos, copiaram esta carta e passaram-na adiante. No

    dia 21 de dezembro de 1614 Galileu foi atacado do plpito da igreja de Santa

    Maria Novella, em Florena, por Tommaso Caccini, um dominicano que tinha

    relaes com a liga dos pombos29.

    Galileu recebeu um pedido de desculpas escrito pelo superior dominicano

    de Caccini. Mas um outro dominicano florentino, Niccol Lorini, submeteu ao

    inquisidor-geral de Roma uma cpia da ento bastante lida carta de Galileu a

    Castelli. Certas passagens da carta teriam sido alteradas para reforar um

    possvel desrespeito de Galileu pela Sagrada Escritura.30 Galileu, por sua vez,

    enviou uma cpia autntica da carta a seu amigo no Vaticano, Piero Dini, que por

    sua vez a transcreveu para vrios cardeais dispostos a colaborar para limpar o

    nome de Galileu.

    Galileu se propunha ampliar e melhorar a cpia certificada do original que

    remeteu a Roma, para fazer frente a seus adversrios e para expor de forma mais

    detalhada suas idias. A verso ampliada, com argumentao mais desenvolvida,

    27Carta ao Padre Benedetto Castelli (21/12/1613), p. [282].28Ibid.,p. [282].29Alguns filsofos, especialmente Ludovico delle Colombe, da Academia Florentina, que polemizoulongamente com Galileu a respeito da flutuao dos corpos na gua. Ludovico declarou-se anti-Galileu em resposta posio antiaristotlica de Galileu. Os partidrios de Galileu, por sua vez,adotaram o ttulo de galileanos e procuraram desacreditar a filosofia de Ludovico jogando deforma depreciativa com seu nome: como colombe significa pombas em italiano, apelidaram oscrticos de Galileu de liga dos pombos. A. Banfi, Galileu Galilei,pp. 149-153.

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    se transformaria na Carta a Cristina de Lorena. Nesta carta podemos destacar

    numerosas autoridades que Galileu cita para sustentar suas teses, recorrendo

    principalmente a Santo Agostinho e ao Pseudo Dionsio Areopagita31, cujas obras

    tinham grande peso na poca. Ao lado destas autoridades, Galileu apresenta

    outros argumentos de carter geral como os acima mencionados, bem como aduz

    alguns argumentos especficos a que nos referiremos em seguida.

    30Traduo do texto desta cpia em Os documentos do processo de Galileu Galilei. Petrpolis:Vozes, 1994, pp. 38-46. Original em A. Favaro, Galileo e lInquisizione, Documenti del ProcessoGalileiano. Florena: G. Barbera, 1907, pp. 39-45.31 So Dionsio Areopagita foi um autor do final do sculo V; apresentou seus escritos comoDionsio, o Aeropagita, convertido por So Paulo (Atos dos Apstolos, 17,34). Seus escritos foramde grande prestgio e autoridade desde a Antigidade at a Idade Mdia e a Renascena.

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    2. Carta a Cristina de Lorena

    2.1 Apresentao geral da carta

    Na Carta a Cristina de Lorena, escrita em meados de 161532, Galileu

    procura compatibilizar o sistema copernicano com o texto bblico33.

    2.1.1 Divises da Carta

    Podemos definir, segundo um autor annimo de Bolonha, uma epstola ou

    carta como o adequado arranjo das palavras assim colocadas para expressar o

    sentido pretendido por seu remetente. Ou, em outras palavras, uma carta um

    Somente no sculo XVIII ficou estabelecido que o autor dos escritos areopagticos no tinha nadaa ver com o personagem convertido por Paulo em Atenas. G. Galilei, Cincia e F, p. 37.32 No conhecida a data exata em que Galileu terminou a redao definitiva desta carta;provavelmente devia t-la terminado em meados de 1615. M. Gonzlez, Carta a Cristina de Lorenay otros textos sobre cincia y religin, p. 34.33Algumas cartas de Galileu referem-se especialmente relao do sistema de Coprnico com aSagrada Escritura, principalmente, a carta a Benedetto Castelli de 21/12/1613, a Piero Dini de16/02/1615 e de 23/03/1615 e Gr-Duquesa Me de Toscana, Cristina de Lorena, de 1615.

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    discurso composto de partes ao mesmo tempo distintas e coerentes, significando

    plenamente os sentimentos de seu remetente. 34

    Galileu empregou na Carta a Cristina de Lorena as partes convencionais da

    arte de escrever cartas desenvolvida em Bolonha sculos antes: salutatio, captatio

    benevolentiae, narratio, petitio e conclusio. Eis como o Annimo de Bolonha

    caracteriza cada uma destas partes:

    A salutatio35, (Saudao) uma expresso de cortesia que transmite um

    sentimento amistoso compatvel com a ordem social das pessoas envolvidas.

    Pode ser prescrita se o nome do destinatrio escrito primeiro, seguido por

    todas as suas qualificaes; subscrita se o nome do destinatrio posto ao fim

    com todas as qualificaes, como se a saudao apresentada fosse inteiramente

    escrita na ordem oposta; circunscrita se o nome do destinatrio escrito em

    vrios lugares.

    A captatio benevolentiae36, uma certa ordenao das palavras para influir

    com eficcia na mente do destinatrio. Isso pode ser assegurado numa carta por

    cinco modos: pela pessoa que envia a carta, ou pela pessoa que a recebe, ou por

    ambas imediatamente, ou pelo efeito das circunstncias, ou pela matria em

    questo. A boa disposio pode ser assegurada pela pessoa que envia a carta se

    menciona humildemente alguma coisa sobre seus negcios, ou suas obrigaes,

    ou suas razes. Freqentemente a maior parte da captao da benevolncia j

    est em curso na prpria saudao.

    34A. Bolonha; E. Roterdam & J. Lpsio,A Arte de escrever cartas, p. 83.35Ibid.,p. 84.36Ibid.,pp. 97-98.

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    A narratio37, a enumerao ordenada dos fatos sob discusso, ou melhor,

    uma apresentao dos fatos de um modo que parecem eles prprios se

    apresentar.

    A petitio38 a parte da carta na qual se tenta pedir alguma coisa.

    A conclusio39 a passagem pela qual uma carta terminada. costumeiro

    na concluso referir-se ao motivo pelo qual a questo vantajosa ou no,

    segundo os assuntos tratados na carta.

    Galileu, como explicaremos posteriormente, introduz uma elaborada

    estratgia de argumentao para sustentar suapetitio. Na Salutatiose enderea a

    sua patrona com apropriada deferncia, ao mesmo tempo em que pe em relevo

    a si mesmo e suas descobertas: Galileu Galilei Serenssima Senhora, a Gr

    duquesa Me; Eu descobri h poucos anos, como bem sabe Vossa Alteza

    Serenssima, muitas particularidades no cu, que tinham permanecido invisveis

    at esta poca.40

    A captatio benevolentiae comea modelando-se pela norma clssica:

    menciona seu singular talento e, para apelar simpatia de sua leitora, passa a

    descrever o ataque de rivais no s cticos, mas tambm mal intencionados. As

    observaes a que se refere incluem as apresentadas no Sidereus Nuncius,

    dedicado a Cosimo II, sendo os satlites de Jpiter, a descritos, nomeados

    37Ibid.,p. 99.38Ibid.,p. 99.39Ibid., p. 100.40Carta Senhora Cristina de Lorena [309]. Na anlise da Carta a Cristina de Lorena, dentro doquadro da literatura epistolar nos apoiaremos bem de perto em J. D. Moss, Galileos letter toChristina: Some Rhetorical Considerations. inRenaissance Quaterly, pp. 547-576. Tambm C. A.R. do Nascimento A Carta de Galileu Gr Duquesa Cristina de Lorena, Discurso, pp. 323-328;Idem,Galileu Galilei: Carta a Cristina de Lorena (traduo e introduo). Cadernos de Histria eFilosofia da Cincia, pp. 91-123.

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    estrelas mediceanas. Como o prprio Galileu declara no prefcio: Chamei-as

    Astros Medceos, confiando que por fora desta denominao recebam estas

    estrelas tanta dignidade quanto as outras conferem aos demais heris.41

    A existncia de um rascunho da Carta a Cristina dirigido a uma certa

    Paternidade levou a se especular sobre o endereamento efetivo da carta Gr

    Duquesa Me. De fato, Galileu poderia ter pensado em enderear a carta a

    Benedetto Castelli (tratado na carta de 21-12-1613 como Vossa Paternidade) ou

    mesmo a Monsenhor Piero Dini. Mas, parte o fato de que no jantar de 12-12-

    1613 a Gr Duquesa tinha se mostrado preocupada com a concordncia de

    Coprnico com a Bblia, dirigir a carta a ela, seria uma nova homenagem casa

    de Mdici (depois do Sidereus Nuncius), bem como poderia tornar a tarefa menos

    pesada. Com efeito, Galileu estaria se dirigindo a uma leiga e no a um

    eclesistico (suposto entender do assunto melhor que ele), poderia atingir um

    vasto pblico a ser como que entreouvido pelas autoridades eclesisticas, o

    endereo certo da carta.42

    Como prope ainda Jean Dietz Moss43o fato de a carta se dirigir como que

    a trs audincias (Cristina, o pblico em geral e as autoridades eclesisticas)

    acabou, no entanto, complicando: se o tom de crtica a seus adversrios podia ser

    recebido com simpatia por Cristina e os amigos de Galileu, tinha grande

    probabilidade de irritar as autoridades eclesisticas.

    41G. Galilei, O Mensageiro Sideral, p. 33.42J. Dietz Moss, op. cit., pp. 552-554; M. Gonzles, Galileo Galilei, Carta a Cristina de Lorena yotros textos sobre cincia y religin, pp. 30-31.43Idem, ibdem, p. 553.

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    Com seu tom desaprovador Galileu destaca um grupo de filsofos e

    telogos como adversrios, cujos erros vai definir na narratio. So homens

    determinados a preservar a todo preo o que eles acreditam em vez de admitir o

    que bvio para os olhos deles. Seguem invocando a Bblia para refutar

    argumentos em assuntos de fsica. Por outro lado, aqueles que so bem versados

    na cincia fsica e astronomia so perfeitamente capazes de ver a verdade de

    suas descobertas. neste contexto que Galileu invoca uma citao de Santo

    Agostinho:

    Pelo momento, contentando-nos em observar uma piedosa reserva,

    nada devemos crer apressadamente sobre este assunto obscuro, no temor

    de que, por amor a nosso erro, rejeitemos o que a verdade, mais tarde,

    poderia nos revelar no ser contrrio de modo nenhum aos santos livros do

    Antigo e do Novo Testamento.44

    A citao deriva do comentrio de Agostinho no livro do Gnesis (De

    Genesi ad litteram (Lib. 2, cap. 18)), em que este considera o que pode ser dito

    com certeza sobre os corpos celestes. O texto , de fato, uma transio para a

    narratio onde Galileu relata as circunstncias envolvendo a controvrsia sobre o

    sistema de Coprnico. Este mote ser repetido em vrios lugares na carta e ser

    usado como o contexto no qual formula sua petitio s autoridades eclesisticas

    por liberdade de pensamento. Por toda a carta Galileu recorre ao De Genesi ad

    litteram, citando-o mais freqentemente do que qualquer outra fonte.

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    A elaborada argumentao desenvolvida por Galileu na carta apoia-se

    inicialmente sobre a suposio de que seus oponentes procuram desacredit-lo.

    contra estes que dirige sua refutao. Diz Galileu:

    Ora, por causa destes falsos oprbrios que estas pessoas procuram

    to injustamente me imputar, julguei necessrio, para minha justificao

    junto ao pblico em geral, de cujo juzo e conceito em matria de religio e

    de reputao devo fazer grande estima, discorrer acerca daqueles

    particulares que estas pessoas vo apresentando para detestar e abolir

    esta opinio e, em suma, para declar-la no apenas falsa, mas hertica.45

    Acrescenta: Donde eu esperar demonstrar com quanto mais piedoso e

    religioso zelo procedo eu do que o fazem eles quando proponho, no que no se

    condene este livro, mas que no se condene como o quereriam estes: sem

    entend-lo, ouvi-lo, nem mesmo v-lo.46

    Deixa clara qual sua motivao:

    Porque o meu propsito no tende a outra coisa seno a que se

    nestas consideraes afastadas da minha profisso, entre os erros que

    puderem estar nelas contidos, se acha alguma coisa apta para levar outros

    a alguma advertncia til para a Santa Igreja no que concerne deciso a

    44Carta a Cristina de Lorena p. [310].45Ibid.,p. [313].46Ibid.,p. [313].

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    respeito do sistema copernicano ela seja conservada e feito dela o uso

    que aprouver aos superiores.47

    Assim, ele espera que a defesa desenvolvida ajude a Igreja, mas se seu

    esforo no for visto como construtivo, promete renunciar qualquer erro que

    pudesse ter cometido concernindo a questes religiosas. Enfim: que o meu

    escrito seja mesmo rasgado e queimado, pois no pretendo tirar dele nenhum

    fruto que no seja piedoso e catlico.48

    Na divisioGalileu expe como a condenao das duas teses de que a terra

    gira em torno do seu eixo e se move ao redor do sol levaria seus detratores a

    suprimir tambm qualquer discusso de outras observaes e proposies fsicas

    correlacionadas com elas. Mostra que esta viso do sistema planetrio no

    originalmente dele mas de Coprnico, um fato que seus inimigos tm tentado

    esconder das pessoas comuns. Relembrando ainda que o De Revolutionibus, uma

    vez impresso, foi recebido pela Santa Igreja, lido e estudado por todo o mundo

    sem que nunca se tenha descoberto, todavia, a mnima sombra de inquietao na

    sua doutrina.49 Galileu alega que somente a campanha para desacredit-lo

    induziu a este esforo para condenar o livro de Coprnico. 50

    De modo geral Galileu procede na refutationo estilo de um cientista-filsofo

    que tambm um habilidoso retrico. Da a importncia em notar a terminologia

    precisa que ele usa quando apresenta um argumento, particularmente quando o

    47Ibid.,pp. [314-315].48Ibid.,p. [315].49Ibid.,p. [312].

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    caracteriza como uma demonstrao necessria. Galileu enuncia a questo

    central de um modo que Dietz Moss qualifica de provocativo e dramtico51:

    O motivo, pois, que eles apresentam para condenar a opinio da

    mobilidade da Terra e estabilidade do Sol que, lendo-se nas Escrituras

    em muitas passagens que o Sol se move e que a Terra permanece parada

    e, no podendo a Escritura jamais mentir ou errar, segue-se da como

    conseqncia necessria que errnea e condenvel a sentena de quem

    pretendesse afirmar que o Sol por si mesmo imvel e a Terra, mvel.52

    Dietz Moss prossegue: Galileu apresenta a questo deste modo, depois de

    ter mostrado possuir idias idnticas s de Coprnico. sinal de sua deciso de

    tratar do assunto no terreno teolgico. Trata-se de uma deciso audaciosa: Galileu

    estava procedendo contra o conselho de seus amigos de Roma, prncipe Cesi,

    Monsenhor Ciampoli e o cardeal Baberini, no sentido de manter a discusso num

    campo geral. De acordo com eles, contanto que Galileu falasse como um

    matemtico e considerasse o sistema copernicano como uma hiptese no

    haveria nenhum problema. Mas, aventurar-se em argumentos teolgicos e

    sustentar que a teoria fosse demonstrvel, seria temerrio. O prprio Galileu

    reconheceu bem isto numa carta a Monsenhor Dini, dizendo que ele tinha sido

    recomendado a no discutir questes escritursticas e que nenhum astrnomo ou

    50 J. Dietz Moss chama a ateno para certas inexatides de Galileu: por exemplo, Coprniconunca foi ordenado padre e o De Revolutionibusno teve uma aceitao to unnime como diz.op. cit., pp. 558-59.51op. cit.,pp. 561.52Carta a Cristina de Lorena p. [315].

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    cientista que permanecesse dentro dos devidos limites jamais tinha se ocupado

    com tais coisas. Teria, ento, se decidido a discutir estas questes depois de ter

    lido a longa carta do carmelita Paolo Antnio Foscarini, em que este defende as

    descobertas de Galileu e o sistema copernicano argumentandoque as Escrituras

    poderiam ser interpretadas diferentemente. Foscarini enviou sua obra ao Cardeal

    Belarmino, o qual a recebeu e respondeu cortesmente em abril de 1615,

    resumindo a posio da Igreja. Galileu parece ter acreditado que poderia

    argumentar com sucesso contra a opinio de Belarmino.53

    De sua parte, o cardeal deve ter querido dizer que sua carta referia-se tanto

    a Galileu como a Foscarini , pois os menciona logo de incio: Digo que me parece

    que Vossa Paternidade e o Senhor Galileu ajam prudentemente, contentando-se

    em falar por suposio e no de modo absoluto, como eu sempre cri que tenha

    falado Coprnico.54Em seguida, adverte que

    querer afirmar que realmente o Sol est no centro do mundo e gira

    apenas sobre si mesmo sem correr do oriente ao ocidente e que a Terra

    est no 3 cu e gira com suma velocidade em volta do Sol, coisa muito

    perigosa no s de irritar todos os filsofos e telogos escolsticos, mas

    tambm de prejudicar a Santa F ao tornar falsas as Sagradas

    Escrituras.55

    53 J. Dietz Moss, op. cit., p. 561-62. Quanto ao texto da carta de Belarmino a Foscarini, ver G.Galileu, Cincia e F, pp. 105-107.54Carta de Roberto Belarmino a Paolo Foscarini p. [171]. J. Dietz Moss, op. cit.,p. 562.55Ibid., p. [171].

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    Concorda com Foscarini e Galileu que no sistema copernicano salvam-se

    todas as aparncias melhor do que [no ptolomaico] com a afirmao dos

    excntricos e epiciclos56 e pensa que isto o que os matemticos podem bem

    dizer.

    Sua segunda observao concerne ao decreto do Conclio de Trento

    proibindo declaraes que contradigam o consenso dos Santos Padres. O caso da

    terra estar estacionria no centro do universo um destes, pois todo os

    comentrios modernos57e todos os expositores gregos e latinos58 concordam

    que este o sentido da Escritura.

    A ltima observao da carta de Belarmino diz que a Escritura poderia ter

    necessidade de uma nova interpretao se houvesse verdadeira demonstrao

    de que o Sol esteja no centro do mundo e a Terra no 3 cu e de que o Sol no

    circunda a Terra, mas a Terra circunda o Sol.59Ele acrescenta:

    Mas no crerei que h tal demonstrao at que me seja mostrada.

    Nem o mesmo demonstrar que, suposto que o Sol esteja no centro e a

    Terra no cu, salvam-se as aparncias, e demonstrar que na verdade o Sol

    esteja no centro e a Terra no cu. Porque a primeira demonstrao creio

    que possa haver, mas da Segunda tenho dvida muitssimo grande e, em

    caso de dvida, no se deve abandonar a Escritura Sagrada, explicada

    pelos Santos Padres. 60

    56Ibid.,p. [171].57Ibid., p. [171].58Ibid., p. [172].59Ibid., p. [172].60Ibid., p. [172].

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    J. Dietz Moss destaca com preciso: Para o cardeal este o ponto crucial.

    Se os astrnomos puderem demonstrar o fato fsico do sistema copernicano,

    ento a Escritura dever ser reinterpretada.61 Galileu tambm pensou que a

    demonstrao era importante para o caso, como bvio numa carta que escreveu

    a Monsinhor Dini em maio de 1615, provavelmente depois de saber da resposta

    do cardeal Belarmino a Foscarini: a maneira mais fcil de provar que a posio de

    Coprnico no contraria as Escrituras, seria apresentar uma srie de provas de

    que ela verdadeira e de que o contrrio no pode ser sustentado. Ora, como

    duas verdades no podem contradizer-se, ento o sistema de Coprnico e a Bblia

    devero estar em perfeito acordo.

    Ora, Galileu decide no proceder deste modo, alegando que os

    peripatticos a serem convencidos no so capazes de seguir o mais simples dos

    argumentos. Isto eqivalia a desafiar os procedimentos estabelecidos.62

    A maneira como Galileu trata esta questo crtica simplesmente presumir

    de incio que tal prova existe. Na divisio, onde relembra a suposta aceitao

    anterior da Igreja a respeito do livro de Coprnico, Galileu diz categoricamente que

    acha difcil acreditar que algum possa considerar sua doutrina hertica, agora,

    enquanto se vai descobrindo quanto ela bem fundada sobre experincias

    manifestas e demonstraes necessrias.63

    Desta forma, apesar do conselho de seus amigos eclesisticos, Galileu no

    procura reafirmar o sistema copenicano com base cientfica. Ao contrrio, por toda

    61op. cit.,p.563.62Idem, Ibidem, pp. 563-64.63Carta a Cristina. p. [312]; Dietz Moss, p. 564.

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    a carta, ele no apresenta nenhuma confirmao indutiva ou provas dedutivas a

    seu favor. Em vez disso, ele se apoia numa refutao de argumentos dedutivos de

    origem teolgica para contra argumentar. Para a Gr-Duquesa e o pblico em

    geral, ele assume que precisa apenas declarar que as demonstraes existem e

    ento considerar as dificuldades teolgicas de maneira retrica. Quanto a seus

    oponentes, ele simplesmente os pe no mesmo saco como peripatticos, isto ,

    aqueles acadmicos que somente consideram o texto de Aristteles, para provar

    uma proposio. No se poderia esperar que dessem ateno a argumentos,

    qualquer evidncia fsica proposta ou a provas por mais convincentes que fossem,

    a no ser que alguma corroborao fosse achada nas obras de Aristteles. Nesta

    caracterizao de seus oponentes, Galileu deixa de considerar que entre os

    leitores da carta havia outros, oponentes ou no convencidos, que eram

    aristotlicos progressistas, como Dini, Belarmino, Barberini, e os astrnomos

    jesutas do Colgio Romano. Eles, diferentemente dos peripatticos

    conservadores, poderiam ter sido receptivos a uma demonstrao cientfica. Mas

    ele no apresenta nenhuma, nem explica que alguma poderia ser apresentada

    oportunamente; prefere atacar as posies teolgicas de seus oponentes.

    Seguindo seu ousado reconhecimento do carter possivelmente hertico da

    posio copernicana no comeo da refutatio, Galileu procura mostrar porque tal

    caracterizao insustentvel. Em resumo, seu argumento o seguinte. Primeiro,

    verdade que a Bblia no pode errar, isto , se o seu verdadeiro sentido for

    compreendido. No entanto, seu verdadeiro sentido nem sempre claro, pois, s

    vezes, o texto ambguo e adota o modo comum de falar afim de se acomodar

    aos iletrados.

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    Galileu diz ainda, que duas verdades no podem se contradizer: tanto a

    Natureza como a Escritura no podem ser falsas porque ambas tm origem divina.

    A Natureza o que nossos sentidos e demonstraes necessrias mostram que

    ela . Assim, j que a Natureza no pode ser diferente do que ela , enquanto que

    a Escritura pode ser e s vezes interpretada diferentemente do sentido estrito de

    suas palavras, ento a Natureza no deveria ser posta em questo por causa de

    certas passagens bblicas.

    Galileu conclui esta linha de raciocnio citando Tertuliano: Ns declaramos

    que Deus deve ser conhecido primeiro pela Natureza e depois reconhecido pela

    doutrina: pela Natureza, atravs das obras; pela doutrina, atravs das

    pregaes.64 (Adversus Marcionem, Lib. p, Cap. 18) De acordo com a

    observao de J. Dietz Moss, Galileu usa habilmente, como um dos principais

    apoios na refutatio, um argumento teolgico, freqentemente denominado teoria

    da acomodao:

    Ora, assim como estas proposies, ao ditado do Esprito Santo,

    foram de tal modo proferidas pelos escritores sagrados para adaptar-se

    capacidade do vulgo assaz rude e iletrado, igualmente para aqueles que

    merecem ser separados da plebe necessrio que os sbios expositores

    apresentem os verdadeiros sentidos delas e indiquem as razes

    particulares pelas quais tenham sido proferidas sob tais palavras.65

    64Carta a Cristina de Lorena p. [317].65 Ibid., pp. [315-316] J. Dietz Moss, op. cit., p. 566. A autora relembra que Galileu volta a esteargumento nas pp. [333]-[334], reforando-o com referncias a So Jernimo e a So Toms de

    Aquino. Observa tambm que o uso deste argumento poderia ter um efeito indesejado junto aos

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    Tendo dado a razo para a contradio textual de verdades fsicas, Galileu

    explica porque as Escrituras no revelam a natureza da realidade fsica. Esta

    explanao proporciona o outro grande pilar da refutatio. Ele cita Santo Agostinho:

    relembrarei em duas palavras, a respeito da figura do cu, que nossos

    autores sagrados tinham sobre este ponto noes conformes com a

    verdade, mas que o Esprito de Deus que falava por eles no quis ensinar

    aos homens tais coisas que no deviam ser de nenhuma utilidade para a

    salvao.66(Genesis ad literam, lib. 2, c.9).

    Galileu acrescenta a concluso inevitvel de que, se o Esprito Santo no

    forneceu conhecimento sobre os cus porque isto irrelevante para a nossa

    salvao e, ento, a crena a respeito dos corpos celestes no poderia ser

    matria obrigatria de f. Indaga ele: Poder, portanto, uma opinio ser hertica

    e no concernir em nada salvao das almas?67. Cita, ento, as palavras do

    cardeal Barnio: a inteno do Esprito Santo ensinar-nos como se vai para o

    cu e no como vai o cu.68

    J. Dietz Moss destaca que, quanto ao assunto que mais perturbava os

    telogos, o conflito das Escrituras com o sistema copernicano, Galileu apresentou

    dois importantes contra-argumentos, ambos extrados dos mais respeitados Pais e

    telogos da Igreja: Toms de Aquino, Jernimo, Agostinho. Os dois argumentos

    leitores telogos ou simplesmente membros do clero: no negariam o princpio, mas acentuariamque caberia aos telogos aplic-lo e no a um astrnomo.66Carta a Cristina de Lorena p. [318].67Ibid., p. [319].68Ibid., p. [319].

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    so hoje aceitos pela Igreja Catlica Romana e esto de acordo com a encclica

    de 1893 do papa Leo XIII, Providentissimus Deus, que indica como as Escrituras

    deveriam ser interpretadas.69 Quando Galileu os apresentou em sua carta eles

    no foram convincentes. Muitos ressentiram-se com seu tom arrogante, sua

    presuno em falar sobre temas teolgicos, e sua passagem do domnio da

    astronomia matemtica ao da filosofia natural. A razo mais importante, no

    entanto, teria sido a que foi primeiro mencionada pelo cardeal Belarmino: para que

    a Igreja renunciasse uma posio teolgica autorizada sobre a natureza do

    universo, que poderia ter vasta repercusso na f das pessoas, uma

    demonstrao necessria das realidades fsicas teria que ser apresentada. Galileu

    fala no incio da carta como se tais demonstraes estivessem disponveis.

    Conduz, ento, o leitor atravs do argumento, j mencionado acima, a respeito

    das verdades paralelas, provenientes do Esprito Santo: Natureza e Escritura.

    Tendo feito isto com admirvel lgica, esperar-se-ia de sua parte um retorno

    razo para apresent-la em primeiro lugar: a evidncia fsica que elimina as

    dificuldades da Escritura.

    A este respeito, Galileu menciona cerca de vinte e cinco vezes a

    experincia manifesta e demonstrao necessria que mostrariam a validade da

    hiptese de Coprnico; estas referncias ressaltam a importncia da experincia e

    da demonstrao, falando como se tais provas existissem. Geralmente esta

    terminologia introduzida no contexto da necessidade de novas interpretaes

    69op. cit., p. 567. A. M. Dubarle, Les prncipes xegtiques et thologiques de Galile concernantla science de la nature. In Revue des Sciences Philosophiques et Theologiques, pp. 65-87. Chegaa supor que Leo XIII, ao redigir sua encclica, tinha a Carta a Cristina de Lorena diante de si,dadas as coincidncias redacionais entre os dois documentos.

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    escritursticas. Galileu tambm refere-se a algumas observaes sensveis, que

    deveriam acompanhar a demonstrao necessria: suas observaes das

    grandes variaes de posio de Vnus e Marte relativamente terra e as

    mudanas de aparncia de Vnus. Mas no as incorpora em uma demonstrao.

    Sustenta que estas e muitas outras observaes de modo algum podem se

    ajustar ao sistema ptolemaico, mas so argumentos firmssimos do

    copernicano.70

    Como tem sido freqentemente notado, Galileu certamente deve ter sabido

    que elas poderiam tambm ser usadas como argumento a favor do sistema de

    Tycho Brahe, j que podem ser reconciliadas com este.

    J. Dietz Moss considera que a melhor explicao da estratgia

    argumentativa de Galileu parece ser de que ele estava convencido que Coprnico

    estava certo e desejava to intensamente prov-lo, que acreditou que verdadeiras

    demonstraes poderiam logo ser apresentadas. Alm disso, como a carta era

    dirigida nominalmente a Cristina ele deve ter decidido que poderia se dispensar de

    apresentar as provas e que bastava simplesmente assegurar que elas existiam.71

    Galileu apresenta tambm uma defesa da demonstrao cientfica,

    distinguindo-a, inclusive atravs de referncias aos Pais da Igreja, da opinio

    provvel ou da conjectura verossmil. preciso no confundi-las e guardar pela

    cincia apoiada em demonstraes indubitveis o mesmo respeito que por ela

    tiveram os Padres.72

    70Carta a Cristina de Lorena p. [328]. Lista das passagens em que h referncia a experinciamanifesta e demonstrao necessria em J. Dietz Moss, op. cit.,pp. 567-568.71J. Dietz Moss, op. cit.,p. 569.72Carta a Cristina de Lorena pp. [320]-[323]; ver tambm pp. [326]-[329].

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    Aborda igualmente o problema das relaes entre teologia e astronomia.

    Pode-se considerar que o centro da discusso encontra-se na interpretao do

    ttulo de rainha de todas as cincias 73 atribudo teologia. Considera que a

    teologia poderia ser tida como rainha, pelo fato de que seu estudo contivesse os

    frutos de todas as outras cincias ou, ento, porque o tema de que se ocupa

    supera em dignidade todos os outros temas que so matria das outras cincias e

    ainda porque os seus ensinamentos procedem com meios mais sublimes.74

    Conclui que o ttulo e a autoridade rgia, cabe teologia do segundo modo.75

    Esta no desce s especulaes mais baixas e humildes das cincias inferiores,

    antes, como se declarou acima, destas no cuida, pois no concernem

    beatitude.76 Donde, ser necessrio que os professores dela no se pronunciem

    sobre assuntos que nem estudaram nem praticaram. O maior problema com estes

    professores seria o fato de que exigem dos astrnomos que retratem suas provas

    como falaciosas. Para Galileu, isto seria algo mais do que impossvel, porque no

    somente se lhes ordena que no vejam aquilo que eles vem e que no

    compreendam aquilo que eles compreendem, mas que, pesquisando, encontrem o

    contrrio do que lhes chega s mos.77 J. Dietz Moss observa que, embora a

    passagem seja uma emocionante defesa da evidncia sensvel e intelectual, seria

    de fato uma interpretao inadequada da posio da Igreja tal como Belarmino a

    73Ibid., p. [324].74Ibid., p. [325].75

    Ibid., p. [325] O primeiro modo de entender a supremacia da teologia ligava-se tradioagostiniana, sendo exemplificada no sculo XIII por Roger Bacon. O segundo modo exemplificado na mesma poca por Toms de Aquino, que acentua a especificidade dasdisciplinas cientficas, num quadro epistmico de tipo aristotlico. C. A. R. do Nascimento, Carta aCristina de Lorena.Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia, p. 92.76Carta a Cristina de Lorena. p. [325].77Ibid., p. [326].

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    apresentou: sua carta a Foscarini pedia apenas que, at que provas fossem

    disponveis, os astrnomos se abstivessem de reivindicaes de verdade plena e

    apresentassem seus resultados s hipoteticamente.78

    Ainda segundo J. Dietz Moss, neste ponto, Galileu realiza o mais notvel

    golpe retrico da carta: virando a mesa contra os telogos termina por dizer que

    caberia a eles o nus de provar que os astrnomos estavam errados. Primeiro, ele

    retoma a distino entre verdades que so meramente enunciadas e as que so

    demonstradas, ecoando as palavras de Belarmino a Foscarini. Em seguida,

    argumenta que, se concluses naturais realmente demonstradas no tm como

    ser modificadas luz da Bblia, mas, de preferncia, a Escritura deve ser

    reinterpretada; ento, antes que as autoridades condenem uma proposio natural

    preciso mostrar que ela no est demonstrada necessariamente.79 Isto

    eqivale a dizer que uma proposio fsica seja aceita, mesmo se houver conflito

    com a Escritura, a menos que se possa provar que ela falsa. O que se segue

    parece ser o ponto culminante: mostrar que tal proposio no est

    necessariamente demonstrada cabe queles que a julgam falsa. O que

    corresponde s disposies naturais, pois, muito mais facilmente descobrem as

    falcias os que julgam algo falso, do que os que o julgam verdadeiro. Santo

    Agostinho, j citado desde o incio, pode tambm ser aqui invocado:

    Ela [uma proposio] no pode ser considerada em oposio F

    enquanto no for refutada de modo certo; se isto tiver lugar, ento preciso

    78op. cit., p. 570.79Carta a Cristina de Lorena [327]. J. Dietz Moss, op. cit., pp. 570-71.

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    considerar que esta proposio provinha, no da divina Escritura, mas da

    ignorncia humana.80(Genesis ad literam, Lib. 1, cap. 19)

    Mais para o final da carta, antes de examinar o milagre de Josu 10,12,

    Galileu resume se pensamento:

    Em suma, se no possvel que uma concluso seja declarada

    hertica enquanto se duvida se ela pode ser verdadeira, v dever ser a

    fadiga daqueles que pretendem condenar a mobilidade da Terra e a

    estabilidade do Sol se primeiro no demonstram que ela impossvel e

    falsa.81

    Galileu tem em conta tambm um aspecto mencionado por Belarmino em

    sua carta a Foscarini: a necessidade de seguir o consenso dos Padres na

    interpretao da Bblia, como mencionado pelo Conclio de Trento. Ora, segundo

    Galileu, no era possvel haver acordo entre os Padres, pois estes nunca

    discutiram tal questo, que nem sequer teria sido formulada, ento.82O decreto do

    Conclio de Trento Sobre a edio e o uso dos livros sagrados tambm tido em

    conta. Galileu fala dele de modo semelhante a como falou do consenso dos

    Padres. Este decreto diz respeito a interpretaes tortuosas da Bblia no que de

    80Carta a Cristina de Lorena p. [310], [331] e [339]. Esta frase aparece na p. [339].81Ibid.,p. [343].82 Ibid., pp. [335]-[336]. Galileu refora seu argumento citando o Comentrio sobre J de DiegoZiga, ignorando que a interpretao de Ziga tinha sido fortemente contestada por um telogo

    jesuta Juan de Pieda. J. D. Moss, op. cit., p. 572, n. 42. Na p. [337] cita interpretaes diferentesentre si do milagre de Josu, 10,12.

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    f, concernente aos costumes e doutrina crist, o que no vem ao caso na

    questo sobre a imobilidade do Sol e a mobilidade da Terra.83

    Galileu conclui seu exame do problema com a petitioa favor da confiana

    na experincia sensorial e na demonstrao cientfica, inclusive como critrio para

    determinar o sentido das Escrituras; no se devendo, assim, impedi-las de

    antemo com citaes abusivas destas.

    Numa espcie de anexo, aps a petitioele examina a passagem de Josu

    10,12 sobre a qual a Gr Duquesa Cristina questionara Castelli no jantar.

    Tomando o texto tal e qual, Galileu procura mostrar que o sistema copernicano

    concorda melhor com tal passagem do que o ptolomaico. Assim procedendo,

    Galileu parece no somente usar a Escritura para consagrar uma concluso fsica,

    como praticar o que critica em seus oponentes. Uma interpretao benigna ou

    caridosa seria dizer que Galileu desce arena de seus adversrios e mostra, que

    mesmo no modo de proceder deles, a passagem questionada no constituiria

    problema para o sistema copernicano; muito pelo contrrio, seria um argumento a

    favor deste, ao passo que no seria possvel entend-la no sistema ptolomaico.84

    Em sua conclusio, Galileu sugere, que assim como a passagem de Josu

    10,12 pode ser entendida em harmonia com o que a cincia diz sobre o mundo

    fsico, as outras passagens que so julgadas contrrias ao sistema copernicano,

    por ser este tido como falso, encontrariam uma exposio concorde com esta e

    at mesmo outras passagens poderiam ser achadas pelos telogos que

    estivessem tambm em acordo com estas descobertas. Diz ele: Encontrariam

    83Carta a Cristina de Lorena. p. [337].84Ibid.,pp. [343]-[347].

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    interpretaes destas muitssimo congruentes, sobretudo se acrescentassem

    algum conhecimento das cincias astronmicas compreenso das Sagradas

    Escrituras.85

    Os cardeais Belarmino e Barberini tinham prevenido Galileu para usar

    grande precauo em no ir alm dos argumentos usados por Ptolomeu e

    Coprnico, no excedendo as limitaes astronmicas e da matemtica.

    Lembraram tambm que a explanao da Escritura tida pelos telogos como

    campo deles, e se novas idias forem introduzidas, mesmo por algum capacitado

    para tanto, nem todo mundo tem a atitude desapaixonada para consider-las tais

    como soam.86

    85Ibid.,p. [347]. Assim como, presentemente, enquanto a [esta posio a de Coprnico] julgamfalsa, lhes parece encontrar, ao ler as Escrituras, somente passagens contrrias a ela, se tivessemformado um outro conceito, talvez encontrassem outras tantas concordes.86Carta de Belarmino a Foscarini e J. Dietz Moss, op. cit.,pp. 574-576.

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    3. Bblia, Interpretao e Natureza

    Para Galileu, tanto a Natureza como a Escritura so obras de Deus;

    portanto, so como dois livros desprovidos de erros: No pode a Sagrada

    Escritura jamais mentir ou errar, e possuem os seus decretos absoluta e inviolvel

    verdade.87 O erro estaria na interpretao da Escritura, por parte daqueles que

    no entenderiam o seu real sentido, ou naqueles que estudariam a Natureza e no

    teriam entendido seus modos de operar e recnditas razes.

    Com relao interpretao da Bblia, Galileu escreve:

    Os seus interpretes e expositores poderiam, entretanto, incorrer por

    vezes em erros, e de vrias maneiras. Entre esses erros, um seria

    gravssimo e freqentssimo, ocorrendo sempre que tais intrpretes

    quisessem ater-se ao mero significado das palavras, porque assim produzir-

    se-iam no s diversas contradies, mas graves heresias e tambm,

    blasfmias.88

    Com relao Natureza e cincia, afirma ele:

    87Carta de Galileu a Benedetto Castelli (21/12/1613). p. [282].88Ibid.,p. [282].

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    Visto, pois, que a Escritura, em muitas passagens, no apenas

    permite, mas necessariamente exige exposies diferentes do aparente

    significado das palavras, parece-me que nas discusses naturais ela

    deveria ser citada somente em ltima instncia. Porque, procedendo

    igualmente do Verbo Divino a Sagrada Escritura e a Natureza, aquela como

    palavra ditada pelo Esprito Santo e esta como perfeitssima executora das

    ordens de Deus, sabendo-se agora, ainda mais, que as Escrituras dizem

    muitas coisas diferentes da verdade absoluta, quanto ao aspecto e

    significado das palavras, a fim de adaptarem-se ao entendimento de todos,

    e sendo, todavia, a Natureza inexorvel, imutvel e indiferente a que suas

    recnditas razes e modos de operar sejam acessveis ou no ao

    entendimento dos homens, razo pela qual jamais transgride os termos das

    leis a ela impostas, parece que o concernente aos efeitos naturais, que a

    experincia sensvel coloca-nos diante dos olhos, ou que as necessrias

    demonstraes comprovam, no deva de maneira alguma ser colocado em

    dvida pelas passagens da Escritura devido ao fato de haver nas palavras

    uma aparncia de significado diferente.89

    Galileu prope a distino entre um saber fundado na autoridade da

    revelao e o saber fundado em princpios acessveis s faculdades humanas: a

    razo e os sentidos. Podemos citar tambm uma passagem da Carta a Cristina de

    Lorena:

    89Ibid., p. [282 283].

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    Parece-me que, nas discusses de problemas concernentes

    Natureza, no se deveria comear com a autoridade de passagens das

    Escrituras, mas com as experincias sensveis e com as demonstraes

    necessrias.90

    Para Galileu, o saber acerca da Natureza s poderia ser adquirido atravs

    de um processo contnuo de investigao (experincias sensveis e

    demonstraes necessrias). Em sua opinio, no se poderia e nem deveria

    recorrer Bblia para negar ou confirmar uma doutrina cientfica. Por outro lado,

    as proposies naturais estabelecidas pelas experincias sensveis ou as

    demonstraes necessrias deveriam servir de critrio na interpretao das

    Sagradas Escrituras.

    Galileu negava teologia e aos telogos o direito de decidirem sobre a

    verdade ou falsidade de proposies cosmolgicas, por estas no serem do

    domnio da cincia destes. No afirmava, porm, que a verdade no estivesse na

    Bblia. O sentido do texto bblico ambguo por ter que acomodar-se linguagem

    do povo; portanto, necessrio buscar seu verdadeiro sentido.

    Ainda na carta a Cristina de Lorena Galileu escreve:

    Mas que o prprio Deus que nos dotou de sentidos, de discurso e

    de intelecto, tenha querido, postergando o uso destes, dar-nos por outro

    90Carta a Cristina de Lorena. p. [316].

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    meio os conhecimentos que podemos conseguir atravs deles, de tal modo

    que mesmo no que se refere s concluses concernentes Natureza que,

    ou pelas experincias sensveis ou pelas demonstraes necessrias, se

    nos apresentam expostas diante dos olhos e ao intelecto, devemos negar

    os sentidos e a razo, no creio que seja necessrio cr-lo.91

    Nesta frase, relativamente longa, Galileu afirma, por meio de uma dupla

    negao, que o homem dotado de certos meios que lhe permitem adquirir

    conhecimentos, isto , concluses referentes Natureza. Tais meios so os

    sentidos, o discurso ou a razo e o intelecto. Uma concluso pode ento se

    apresentar exposta diante dos olhos pelo uso dos sentidos (experincia sensvel)

    ou ao intelecto, atravs do discurso racional, sob a forma de demonstraes

    necessrias.

    Assim, Galileu parece retomar, no s a distino aristotlica entre

    sentidos, razo e intelecto como tambm seu conceito de cincia como

    demonstrao necessria e o primado da experincia visual.

    No entanto essa semelhana quanto a estes aspectos no impede a

    distino radical que encontramos entre a viso aristotlica do mundo e a nova

    concepo galileana da natureza. A distino aristotlica entre um mundo

    imutvel, o mundo do movimento circular e uniforme e omundo terrestre, mutvel,

    sujeito ao movimento retilneo, foi negado por Galileu; consequentemente

    demonstra ele a unicidade da natureza e, portanto, dissolve a hierarquizao

    91Ibid., p. [317].

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    aristotlica entre os dois mundos. Galileu no ir fazer distino entre o mundo

    celeste e o terrestre. Rompe, assim com o mundo de duas regies, ou seja, a

    concepo de que os corpos celestes so homogneos e de formas perfeitas, ao

    contrrio da Terra, onde os acidentes geogrficos apresentam grande

    heterogeneidade de formas. Alm do rompimento com a cosmologia aristotlica,

    Galileu opera uma transformao no interior da cincia como conhecimento

    necessrio, generalizando o uso da matemtica, especialmente da geometria,

    como linguagem da cincia da Natureza.92

    Embora as obras e cartas de Galileu contenham observaes, como as que

    acabam de ser citadas, sobre o mtodo e a maneira como deve ser concebida a

    cincia, ele no escreveu um Discurso do mtodo. Seja qual for a posio que se

    adote na complexa questo do mtodo de Galileu, fica clara na carta a Cristina

    de Lorena a relevncia tanto da experincia sensvel como da demonstrao

    necessria.

    Quanto a esta ltima, Galileu a distingue claramente da opinio, que se

    apoia em razes provveis, e mais ainda de um simples relato:

    Alm disso, que tambm nas proposies que no so de Fide a

    autoridade das prprias Sagradas Escrituras deva ser anteposta

    autoridade de todas as escrituras humanas escritas, no com mtodo

    demonstrativo, mas a modo de pura narrao ou ainda com razes

    92 A fsica de Aristteles se baseia na percepo sensvel e por isso que consideradaantimatemtica. Ela se recusa a substituir por uma abstrao geomtrica os fatos determinadospela experincia e pelo senso comum, e nega a prpria possibilidade de uma fsica matemtica,fundamentando-se: a) numa heterogeneidade entre os conceitos matemticos e os dados da

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    provveis, eu diria que isto se deve reputar tanto mais adequado e

    necessrio quanto a prpria sabedoria divina supera todo juzo e conjectura

    humanos.93

    Um ponto que merece destaque que, para Galileu h uma ntida distino

    entre filosofia e religio ou f: e por isso desamparados, enfim, de defesa

    enquanto permanecem no campo filosfico, resolveram tentar escudar as falcias

    de seus discursos com o manto de uma religio fingida e com a autoridade das

    Sagradas Escrituras94. Mas no parece haver, para ele, uma distino muito clara

    entre cincia e filosofia nos termos mais recentes. Ambas se fundam em

    experincias sensveis e razes necessrias: sendo que aquele que sustenta a

    verdade pode dispor de muitas experincias sensveis e de muitas demonstraes

    necessrias para a sua parte, ao passo que o adversrio no pode valer-se de

    outra coisa seno de aparncias enganadoras, de paralogismos e de falcias.95

    H mesmo, na Carta a Cristina de Lorena, passagens em que cincia e filosofia

    so mais aproximadas do que distinguida, chegando a dizer que a astronomia e a

    filosofia se ocupam com a constituio das partes do mundo e sustentam as teses

    copernicanas, como podemos ler no seguinte trecho:

    Persistindo, pois, tais adversrios no seu primeiro plano de querer

    por todo meio imaginvel derrubar-me e s minhas coisas; sabendo como

    experincia sensvel; b) na incapacidade das matemticas de explicar a qualidade e de deduzir omovimento. E. Iamundo, Os conceitos de cincia e mtodo em GalileuGalilei,p. 30.93Carta a Cristina de Lorena. p. [317].94Ibid., p. [311].95Ibid.,p. [342].

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    eu, nos meus estudos de astronomia e de filosofia, sustento, a respeito da

    constituio das partes do mundo, que o Sol, sem mudar de lugar,

    permanece situado no centro das revolues dos orbes celestes e que a

    Terra, que gira sobre si mesma, se move em torno dele.96

    O mximo que se poderia talvez dizer que, aqui, Galileu alude

    astronomia (matemtica) e filosofia (da natureza).

    Na carta a Cristina de Lorena, h bastante vezes o par experincias

    sensveis e demonstraes necessrias como fundamento das concluses

    cientficas. J. Dietz Moss chegou mesmo a fazer uma listagem destas

    passagens.97

    Nesta carta, o conceito de experincia no parece ter o sentido de

    experimentao mas de observao (controlada), na medida em que no haveria

    sentido em se falar de experimentao em astronomia: parece, quanto aos efeitos

    naturais, que aquilo que deles a experincia sensvel nos coloca diante dos olhos,

    ou as demonstraes necessrias nos fazem concluir.98

    As demonstraes necessrias eqivalem a concluir e so operadas pelo

    intelecto e pela razo como se mencionou anteriormente. Se associam a

    compreender, por oposio a ver Porque no somente se lhes ordena que no

    vejam aquilo que eles vem e que no compreendam aquilo que eles

    compreendem, mas que, pesquisando, encontrem o contrrio do que lhes chega

    96 Ibid., p. [311].97nota 72.98Carta a Cristina de Lorena. p. [317].

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    s mos.99 Assim como as experincias sensveis se opem s aparncias

    enganadoras, elas se opem aos paralogismos e falcias100: Sendo que aquele

    que sustenta a verdade pode dispor de muitas demonstraes necessrias para a

    sua parte, ao passo que o adversrio no pode valer-se de outra coisa seno de

    aparnciasenganadoras, de paralogismos e de falcias.101

    99Ibid., p. [326].100C. A. R. do Nascimento, Carta a Cristina de Lorena, Caderno de Histria e filosofia da Cincia,pp.91-124.101Carta a Cristina de Lorena. p. [3