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CARTA ENCÍCLICA REDEMPTOR HOMINIS DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO EPISCOPADO, AOS SACERDOTES E ÀS FAMÍLIAS RELIGIOSAS, AOS FILHOS E FILHAS DA IGREJA E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE, NO INÍCIO DO SEU MINISTÉRIO PONTIFICAL.

CARTA ENCÍCLICA REDEMPTOR HOMINIS¨que/Oeuvres...O Redentor do homem, Jesus Cristo, é o centro do cosmos e da história. Para Ele se dirigem o meu pensamento e o meu coração nesta

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CARTA ENCÍCLICAREDEMPTOR HOMINIS

DO SUMO PONTÍFICEJOÃO PAULO II

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS NO

EPISCOPADO, AOS SACERDOTES E ÀSFAMÍLIAS RELIGIOSAS, AOS FILHOS E

FILHAS DA IGREJA E A TODOS OSHOMENS DE BOA VONTADE, NO INÍCIO

DO SEU MINISTÉRIO PONTIFICAL.

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Veneráveis Irmãos e caríssimos Filhos, Saúde eBênção Apostólica !

I. HERANÇA

No final do segundo MilénioO Redentor do homem, Jesus Cristo, é o

centro do cosmos e da história. Para Ele sedirigem o meu pensamento e o meu coraçãonesta hora solene da história, que a Igreja e ainteira família da humanidade contemporâneaestão a viver. Efectivamente, este tempo, no qual,depois do predilecto Predecessor João Paulo I,por um seu misterioso desígnio Deus me confiouo serviço universal ligado com a Cátedra de SãoPedro em Roma, está muito próximo já do anoDois Mil. É difícil dizer, neste momento, o queaquele ano virá a marcar no quadrante da históriahumana, e como é que ele virá a ser para cada umdos povos, nações, países e continentes, muitoembora se tente, já desde agora, prever algunseventos. Para a Igreja, para o Povo de Deus quese estendeu – se bem que de maneira desigual –até aos mais longínquos confins da terra, esse anovirá a ser o ano de um grande Jubileu. Estamos já,portanto, a aproximar-nos de tal data que –respeitando embora todas as correcções devidas àexactidão cronológica – nos recordará e renovaráem nós de uma maneira particular a consciênciada verdade-chave da fé, expressa por São Joãonos inícios do seu Evangelho : « O Verbo fez-se

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carne e veio habitar entre nós » ;1 e numa outrapassagem « Deus, de facto, amou de tal modo omundo, que lhe deu o Seu filho unigénito, paraque todo o que nele crer não pereça, mas tenha avida eterna ».2

Estamos também nós, de alguma maneira, notempo de um novo Advento, que é tempo deexpectativa. « Deus, depois de ter falado outroraaos nossos pais, muitas vezes e de muitos modos,pelos Profetas, falou-nos nestes últimos tempospelo Filho... »,3 por meio do Filho-Verbo, que sefez homem e nasceu da Virgem Maria. Com esteacto redentor a história do homem atingiu, nodesígnio de amor de Deus, o seu vértice. Deusentrou na história da humanidade e, enquantohomem, tornou-se sujeito à mesma, um dosmilhares de milhões e, ao mesmo tempo, Único !Deus, através da Encarnação, deu à vida humanaaquela dimensão, que intentava dar ao homem jádesde o seu primeiro início e deu-lha de maneiradefinitiva – daquele modo a Ele somente peculiar,segundo o seu eterno amor e a sua misericórdia,com toda a divina liberdade – e, simultaneamente,com aquela munificência, que, perante o pecadooriginal e toda a história dos pecados dahumanidade e perante os erros da inteligência, davontade e do coração humano, nos dá azo a

1 Jo 1, 14.2 Jo 3, 16.3 Hebr 1, 1s.

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repetir com assombro as palavras da SagradaLiturgia : « Ó ditosa culpa, que tal e tão grandeRedentor mereceu ter ».4

2. Primeiras palavras do novo PontificadoA Cristo Redentor elevei os meus

sentimentos e pensamentos a 16 de Outubro doano passado, quando, após a eleição canónica, mefoi feita a pergunta : « Aceitais ? » E eu respondientão : « Com obediência de fé em Cristo, meuSenhor, e confiando na Mãe de Cristo e da Igreja,não obstante as muitas dificuldades, eu aceito ».Quero hoje dar a conhecer publicamente aquelaminha resposta a todos, sem excepção alguma,tornando assim manifesto que está ligado com averdade primeira e fundamental da Encarnação oministério que, com a aceitação da eleição paraBispo de Roma e para Sucessor do ApóstoloPedro, se tornou meu específico dever na suamesma Cátedra.

Escolhi os mesmos nomes que haviaescolhido o meu amadíssimo Predecessor JoãoPaulo I. Efectivamente, quando a 26 de Agostode 1978 ele declarou ao Sacro Colégio (dosCardeais) que queria ser chamado João Paulo –um binómio deste género não tinha antecedentesna história do Papado – já então reconheci nissoum eloquente bom auspício da graça sobre onovo Pontificado. E dado que esse Pontificadodurou apenas trinta e três dias, cabe-me a mim4 Missal Romano, Hino Exsultet da Vigília Pascal.

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não somente continuá-lo, mas, de certo modo,retomá-lo desse mesmo ponto de partida. Istoprecisamente é confirmado pela escolha, feita pormim, desses dois nomes. E ao escolhê-los assim,em seguida ao exemplo do meu venerávelPredecessor, desejei como ele também euexprimir o meu amor pela singular herançadeixada à Igreja pelos Sumos Pontífices JoãoXXIII e Paulo VI ; e, ao mesmo tempo,manifestar a minha disponibilidade pessoal para adesenvolver com a ajuda de Deus.

Através destes dois nomes e dos doispontificados, quero vincular-me a toda a tradiçãodesta Sé Apostólica, com todos os Predecessoresno espaço de tempo deste século vinte e dosséculos precedentes, ligando-me gradualmente,segundo as diversas épocas até às mais remotas,àquela linha da missão e do ministério queconfere à Sé de Pedro um lugar absolutamenteparticular na Igreja. João XXIII e Paulo VIconstituem uma etapa, à qual desejo referir-medirectamente, como a um limiar do qual é minhaintenção, de algum modo juntamente com JoãoPaulo I, prosseguir no sentido do futuro,deixando-me guiar por confiança ilimitada e pelaobediência ao Espírito, que Cristo prometeu eenviou à sua Igreja. Ele, efectivamente dizia aosseus Apóstolos, na véspera da sua Paixão : « Émelhor para vós que eu vá ; porque, se Eu nãofor, o Consolador não virá a vós ; mas, se eu for,

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enviar-vo-lo-ei ».5 « Quando vier o Consolador,que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai, oEspírito da verdade que do Pai procede, ele darátestemunho de Mim. E vós também dareistestemunho de Mim, porque estais comigo desdeo princípio ».6 « Quando, porém, Ele vier, oEspírito da verdade, Ele guiar-vos-á para averdade total, porque não falará por Si mesmo,mas dirá tudo o que tiver ouvido e anunciar-vos-áas coisas vindouras ».7

3. Confiança no Espírito da Verdade e doAmor

É, pois, confiando plenamente no Espírito daverdade, que eu entro na posse da rica herançados pontificados recentes. Esta herança acha-sefortemente radicada na consciência da Igreja demaneira absolutamente nova, nunca dantesconhecida, graças ao II Concílio do Vaticano,convocado e inaugurado por João XXIII e, emseguida, concluído felizmente e actuado comperseverança por Paulo VI, cuja actividade eupróprio pude observar de perto. Fiquei sempremaravilhado com a sua profunda sapiência e coma sua coragem, e igualmente com a sua constânciae paciência no difícil período pós-conciliar do seuPontificado. Como timoneiro da Igreja, barca dePedro, ele sabia conservar uma tranquilidade e

5 Jo 16, 7.6 Jo 15, 26s.7 Jo 16, 13.

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um equilíbrio providenciais mesmo nosmomentos mais críticos, quando parecia que elaestava a ser abalada por dentro, mantendo sempreuma inquebrantável esperança na suacompacidade. Aquilo, de facto, que o Espíritodisse à Igreja mediante o Concílio do nossotempo, e aquilo que esta Igreja diz a todas asIgrejas8 não pode – apesar das inquietudesmomentâneas – servir para outra coisa senão parauma compacidade mais maturada ainda de todo oPovo de Deus, bem consciente da sua missãosalvífica.

Desta consciência contemporânea da Igrejaprecisamente, Paulo VI fez o primeiro tema dasua fundamental Encíclica, que se inicia com aspalavras Ecclesiam suam ; e seja-me permitido fazerreferência e pôr-me em conexão, antes de maisnada, com esta Encíclica, neste primeiro e, porassim dizer, inaugural documento do presentePontificado. Com as luzes e com o apoio doEspírito Santo a Igreja tem uma consciência cadavez mais aprofundada quer pelo que se refere aoseu mistério divino, quer pelo que se refere à suamissão humana, quer mesmo, finalmente, quantoa todas as suas fraquezas humanas : estaconsciência, precisamente, é e deve permanecer aprimeira fonte do amor por esta Igreja, assimcomo o amor, da sua parte, contribui paraconsolidar e para aprofundar tal consciência.8 Cfr. Apoc 2, 7.

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Paulo VI deixou-nos o testemunho de umaconsciência da Igreja assim, extremamenteperspicaz. Através das multíplices e não rarosofridas componentes do seu Pontificado, eleensinou-nos o amor destemido pela Igreja, a qual– como afirma o Concílio – é « sacramento, ousinal, e instrumento da íntima união com Deus eda unidade de todo o género humano ».9

4. Referência à primeira Encíclica dePaulo VI

Por tal razão, exactamente, a consciência daIgreja há-de andar unida com uma aberturauniversal, a fim de que todos possam nelaencontrar « as imperscrutáveis riquezas deCristo »,10 das quais fala o Apóstolo das gentes.Uma tal abertura, organicamente conjunta com aconsciência da própria natureza, com a certeza daprópria verdade, da qual o mesmo Cristo disse« não é minha, mas do Pai que me enviou »,11

determina o dinamismo apostólico, que o mesmoé dizer missionário, da Igreja, professando eproclamando integralmente toda a verdadetransmitida por Cristo. E simultaneamente ela, aIgreja, deve conduzir aquele diálogo que Paulo VIna sua Encíclica Ecclesiam suam chamou « diálogoda salvação », diferenciando com precisão cada

9 Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1 : AAS 57 (1965) 5.10 Ef 3, 8.11 Jo 14, 24.

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um dos círculos no âmbito dos quais ele deveriaser conduzido.12

Quando assim me refiro hoje a estedocumento programático do Pontificado dePaulo VI, não cesso de dar graças a Deus, pelofacto de este meu grande Predecessor e aomesmo tempo verdadeiro pai ter sabido – nãoobstante as diversas fraquezas internas, por quefoi afectada a Igreja no período posconciliar –patentear « ad extra », « para o exterior », o seuautêntico rosto. De tal maneira, também grandeparte da família humana, nas diversas esferas dasua multiforme existência, se tornou – na minhaopinião – mais consciente do facto de lhe sernecessária verdadeiramente a Igreja de Cristo, asua missão e o seu serviço. E esta consciênciaalgumas vezes demonstrou-se mais forte do queas diversas atitudes críticas, que atacavam « abintra », vindas « de dentro », a mesma Igreja, assuas instituições e estruturas, e os homens daIgreja e as suas actividades.

Um tal crítica crescente teve sem dúvidadiversas causas e, por outro lado, estamos certosde que ela não foi sempre destituída de umsincero amor à Igreja. Manifestou-se nela,indubitavelmente, entre outras coisas, a tendênciapara superar o chamado triunfalismo, de que sediscutia com frequência durante o Concílio. Noentanto, se é uma coisa acertada que a Igreja,12 Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam : AAS 56 (1964) 650 ss.

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seguindo o exemplo do seu Mestre que era« humilde de coração »,13esteja bem assentetambém ela na humildade, que possua o sentidocrítico a respeito de tudo aquilo que constitui oseu carácter e a sua actividade humana e que sejasempre muito exigente para consigo própria, éóbvio igualmente que também a crítica deve teros seus justos limites. Caso contrário, ela deixa deser construtiva, não revela a verdade, o amor e agratidão pela graça, da qual principal eplenamente nos tornamos participantesexactamente na Igreja e mediante a Igreja. Alémdisto, o espírito crítico não exprime a atitude deserviço, mas antes a vontade de orientar a opiniãode outrem segundo a própria opinião, algumasvezes divulgada de maneira assaz imprudente.

Deve-se gratidão a Paulo VI ainda, porque,respeitando toda e qualquer parcela de verdadecontida nas várias opiniões humanas, eleconservou ao mesmo tempo o equilíbrioprovidencial do timoneiro da Barca.14 A Igreja que

13 Mt 11, 29.14 A serem recordados os documentos mais salientes do pontificado dePaulo VI, alguns dos quais foram recordados pelo próprio pontífice nahomilia pronunciada durante a Missa da Solenidade dos Apóstolos SãoPedro e São Paulo, no ano de 1978 : Enc. Ecclesiam suam : AAS 56 (1964)609-659 ; Exort. apost. Investigabiles divitias Christi : AAS 57 (1965) 298-301 ; Enc. Mysterium Fidei : AAS 57 (1965) 753-774 ; Enc. Sacerdotaliscaelibatus : AAS 59 (1967) 657-697 ; Sollemnis professio Fidei : AAS 60 (1968)433-445 ; Exort. apost. Quinque iam anni : AAS 63 (1971) 97-106 ; Exort.apost. Evangelica testificatio : AAS 63 (1971) 497-535 ; Exort. apost. Paternacum benevolentia : AAS 67 (1975) 5-23 ; Exort. apost. Gaudete in Domino :AAS 67 (1975) 289-322 ; Exort. apost. Evangelii nuntiandi : AAS 68 (1976)

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– através de João Paulo I – quase imediatamentedepois dele me foi confiada, não se achacertamente isenta de dificuldades e de tensõesinternas. Entretanto, ela encontra-seinteriormente mais premunida contra os excessosdo autocriticismo ; poder-se-ia dizer, talvez, queela é mais crítica diante das diversas críticasimprudentes, e está mais resistente no querespeita às várias « novidades », mais maturada noespírito de discernimento e mais idónea para tirardo seu perene tesouro « coisas novas e coisasvelhas »,15 mais centrada no próprio mistério e,graças a tudo isto, mais disponível para a missãoda salvação de todos : « Deus quer que todos oshomens se salvem e cheguem ao conhecimentoda verdade ».16

5. Colegialidade e apostoladoEsta Igreja – contra todas as aparências – está

mais unida na comunhão de serviço e naconsciência do apostolado. Tal união nascedaquele princípio de colegialidade, recordado peloII Concílio do Vaticano, que o próprio Cristoenxertou no Colégio Apostólico dos Doze, comPedro na chefia, e que renova continuamente noColégio dos Bispos, o qual cresce cada vez maissobre toda a terra, permanecendo unido com oSucessor de São Pedro e sob a sua orientação. O

5-76.15 Mt 13, 52.16 1 Tim 2, 4.

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Concílio não se limitou a recordar este princípiode colegialidade dos Bispos, mas vivificou-oimensamente, além do mais, auspiciando ainstituição de um órgão permanente, que PauloVI estabeleceu constituindo o Sínodo dos Bispos,cuja actividade não somente deu uma novadimensão ao seu Pontificado, mas, em seguida, sereflectiu claramente logo desde os primeiros diasno Pontificado de João Paulo I e no do seuindigno Sucessor.

O princípio de colegialidade demonstrou-separticularmente actual no difícil período pós-conciliar, quando a comum e unânime posição doColégio dos Bispos – o qual manifestou a suaunião ao Sucessor de Pedro sobretudo através doSínodo – contribuía para dissipar as dúvidas eindicava ao mesmo tempo as justas vias darenovação da Igreja, na sua dimensão universal.Do Sínodo, efectivamente, se originou, entreoutras coisas, aquele impulso essencial para aevangelização que teve a sua expressão naExortação Apostólica Evangelii nuntiandi,17

acolhida com tanta alegria como programa darenovação de carácter apostólico e conjuntamentepastoral. A mesma linha foi seguida também nostrabalhos da última sessão ordinária do Sínododos Bispos, aquela que se realizou cerca de umano antes da morte do Sumo Pontífice Paulo VI,a qual foi dedicada, como é sabido, à Catequese.17 Cfr. Paulo VI, Exort. apost. Evangelii nuntiandi : AAS 58 (1976) 5-76.

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Os resultados daqueles trabalhos requerem aindauma sistematização e uma enunciação por parteda Sé Apostólica.

E uma vez que estamos a tratar do manifestodesenvolvimento das formas em que se exprime aColegialidade episcopal, devemos pelo menosrecordar o processo de consolidação dasConferências Episcopais Nacionais em toda aIgreja e de outras estruturas colegiais de carácterinternacional ou continental. Referindo-nos,depois, à tradição secular da Igreja, convémsalientar a actividade dos diversos Sínodos locais.Foi de facto ideia do Concílio, coerentementeactuada por Paulo VI, que as estruturas destegénero, de há séculos comprovadas pela Igreja,bem como as outras formas de colaboraçãocolegial dos Bispos – por exemplo a que se centranas metrópoles, para não falar já de cada uma dasdioceses singularmente tomadas – pulsassem emplena consciência da própria identidade econjuntamente da própria originalidade, naunidade universal da Igreja.

Um idêntico espírito de colaboração e decorresponsabilidade se está a difundir tambémentre os sacerdotes, o que é confirmado pelosnumerosos Conselhos Presbiterais que surgiramapós o Concílio. O mesmo espírito se difundiutambém entre os leigos, não apenas confirmandoas organizações de apostolado laical já existentes,mas criando outras novas, que não raro se

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apresentam com um perfil diverso e umadinâmica excepcional. Além disto, os leigos,conscientes da sua responsabilidade pela Igreja,aplicaram-se de boa vontade na colaboração comos Pastores e com os representantes dosInstitutos de vida consagrada, no âmbito dosSínodos diocesanos, e dos Conselhos pastoraisnas paróquias e nas dioceses.

Para mim importa ter em mente tudo istonos inícios do meu Pontificado, para agradecer aDeus, para exprimir um vivo encorajamento atodos os Irmãos e Irmãs e, além disto, pararecordar com sentida gratidão a obra do IIConcílio do Vaticano e os meus grandesPredecessores, que deram início a esta nova« vaga » a animar a vida da Igreja, movimentomuito mais forte do que os sintomas de dúvida,de abalo e de crise.

6. Caminho para a união dos cristãosE que dizer de todas aquelas iniciativas que se

originaram da nova orientação ecuménica ? Oinesquecível Papa João XXIII, com clarezaevangélica, pôs e enquadrou o problema da uniãodos cristãos como simples consequência davontade do próprio Jesus Cristo, nosso Mestre,afirmada por mais de uma vez e expressa, demodo particular, durante a oração no Cenáculo,na véspera da sua morte : « Rogo... Pai... quetodos sejam uma só coisa ».18 E o II Concílio do18 Jo 17, 21 ; cfr. ibid. 11, 22-23 ; 10, 16 ; Lc 9, 49-50.54.

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Vaticano respondeu a esta exigência de formaconcisa com o Decreto sobre o Ecumenismo. OPapa Paulo VI, por sua vez, valendo-se dacolaboração do Secretariado para a União dosCristãos, começou a dar os primeiros difíceispassos na caminhada para o conseguimento deuma tal união.

Já teríamos andado muito nesta caminhada ?Sem querer dar uma resposta pormenorizada,podemos dizer que fizemos verdadeiros eimportantes progressos. E uma coisa é certa :temos trabalhado com perseverança e coerência ;e conjuntamente connosco têm vindo a aplicar-setambém os representantes de outras Igrejas e deoutras Comunidades cristãs, pelo que lhesestamos sinceramente obrigados. Depois, é certotambém que na presente situação histórica dacristandade e do mundo, não se apresenta outrapossibilidade para se cumprir a missão universalda Igreja pelo que respeita aos problemasecuménicos, senão esta : procurar lealmente, comperseverança, com humildade e também comcoragem as vias de aproximação e de uniãodaquele modo que nos deixou o exemplo pessoalo Papa Paulo VI. Devemos buscar a união,portanto, sem nos deixarmos vencer pelodesânimo perante as dificuldades que se possamapresentar ou acumular ao longo de tal caminho ;caso contrário, não seríamos fiéis à palavra de

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Cristo, não executaríamos o Seu testamento. Eserá lícito correr um tal risco ?

Há pessoas que, encontrando-se diante dasdificuldades, ou julgando negativos os resultadosdos trabalhos iniciais no campo ecuménico,teriam tido vontade de voltar atrás. Há mesmoalguns que exprimem a opinião de que estesesforços são nocivos para a causa de Evangelho elevam a uma ulterior ruptura na Igreja, provocama confusão de idéias nas questões da fé e da morale vão desembocar a um específico indiferentismo.Talvez seja um bem que os porta-voz de taisopiniões exprimam os seus receios ; no entanto,também pelo que se refere a este ponto, énecessário manter-se dentro dos devidos limites.É claro que esta nova fase da vida da Igreja exigede nós uma fé particularmente consciente,aprofundada e responsável. A verdadeiraactividade ecuménica comporta abertura,aproximação, disponibilidade para o diálogo ebusca em comum da verdade no pleno sentidoevangélico e cristão ; mas tal actividade demaneira nenhuma significa nem pode significarrenunciar ou causar dano de qualquer modo aostesouros da verdade divina, constantementeconfessada e ensinada pela Igreja.

A todos aqueles que, por qualquer motivo,quereriam dissuadir a Igreja de buscar a unidadeuniversal dos cristãos, é necessário repetir aindauma vez : Ser-nos-á lícito deixar de o fazer ?

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Poderemos nós – não obstante toda a fraquezahumana, todas as deficiências acumuladas nosséculos passados – não ter confiança na graça deNosso Senhor, tal como ela se manifestou nosúltimos tempos, mediante a palavra do EspíritoSanto, que ouvimos durante o Concílio ? Seprocedessemos assim, negaríamos a verdade quediz respeito a nós mesmos e que o Apóstoloexpressou de maneira tão eloquente : « Pela graçade Deus sou aquilo que sou, e a graça que Ele meconferiu não foi estéril em mim ».19

Se bem que de um modo diverso e com asdevidas diferenças, importa aplicar isto queacabámos de dizer agora à actividade que intentaa aproximação com os representantes dasreligiões não-cristãs e que se exprime também elaatravés do diálogo, dos contactos, da oração emcomum e da busca dos tesouros da espiritualidadehumana, os quais, como bem sabemos, nãofaltam também aos membros destas religiões.Não acontece, porventura, algumas vezes, que acrença firme dos sequazes das religiões não-cristãs – crença que é efeito também ela doEspírito da verdade operante para além dasfronteiras visíveis do Corpo Místico – deixaconfundidos os cristãos, não raro tão dispostos,por sua vez, a duvidar quanto às verdadesreveladas por Deus e anunciadas pela Igreja, e tãopropensos ao relaxamento dos princípios da19 1 Cor 15, 10.

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moral e a abrir o caminho ao permissivismoético ? É nobre o estar-se predisposto paracompreender cada um dos homens, para analisartodos os sistemas e para dar razão àquilo que éjusto ; isso, porém, não significa absolutamenteperder a certeza da própria fé20 ou entãoenfraquecer os princípios da moral, cuja falta bemdepressa se fará ressentir na vida de inteirassociedades, causando aí, além do mais,deploráveis consequências.

II. O MISTÉRIO DA REDENÇÃO

7. No Mistério de CristoEntretanto, se as vias a seguir, para as quais o

Concílio do nosso século orientou a Igreja, viasque nos indicou na sua primeira Encíclica osaudoso Papa Paulo VI, permanecerão de modoperduradoiro exactamente as vias que nós todosdevemos seguir, ao mesmo tempo nesta nova fasepodemos justamente interrogar-nos : Como ? Deque maneira será conveniente prosseguir ? O queserá necessário fazer, para que este novo adventoda Igreja, conjugado com o já iminente fim dosegundo Milénio, nos aproxime d'Aquele que aSagrada Escritura chama « Pai perpétuo », Paterfuturi saeculi ?21 Esta é a pergunta fundamental queo novo Sumo Pontífice tem de pôr-se, desde o20 Cfr. Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius, can. III De fide, n. 6 :Conciliorum Oecumenicorum Decreta, Ed. Istituto per le Scienze religiose,Bologna 1973³, p. 811.21 Is 9, 6.

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momento em que aceitou, em espírito deobediência de fé, o chamamento emconformidade com a ordem mais de uma vezdirigida a Pedro : « Apascenta os meuscordeiros » ;22 o que quer dizer : « Sê pastor domeu rebanho » ; e depois : « ... e tu, uma vezconvertido, confirma os teus irmãos ».23

É precisamente aqui neste ponto, caríssimosIrmãos, Filhos e Filhas, que se impõe umaresposta fundamental e essencial, a saber : a únicaorientação do espírito, a única direcção dainteligência, da vontade e do coração para nós éesta : na direcção de Cristo, Redentor dohomem ; na direcção de Cristo, Redentor domundo. Para Ele queremos olhar, porque són'Ele, Filho de Deus, está a salvação, renovando aafirmação de Pedro : « Para quem iremos nós,Senhor ? Tu tens as palavras de vida eterna ».24

Através da consciência da Igreja, tãodesenvolvida pelo Concílio, através de todos osgraus desta consciência, através de todos oscampos de actividade onde a Igreja se afirmapresente, se encontra e se consolida, devemostender constantemente para Aquele « que é aCabeça »,25 para « Aquele de quem tudo provém e

22 Jo 21, 15.23 Lc 22, 32.24 Jo 6, 68 ; cfr. Hebr 4, 8-12.25 Cfr. Ef 1, 10.22 ; 4, 25 ; Cl 1, 18.

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nós somos criados para Ele »,26 para Aquele que é,ao mesmo tempo, « o caminho e a verdade »27 e« a ressurreição e a vida »,28 para Aquele ao ver oQual vemos o Pai,29 para Aquele, enfim, que deviair, deixando-nos30 – entende-se aqui a alusão à suamorte na Cruz e depois à sua Ascensão ao Céu –para que o Consolador viesse a nós e continue avir constantemente como o Espírito da verdade.31

N'Ele estão « todos os tesouros da sabedoria e daciência »32 e a Igreja é o seu Corpo.33 A Igreja « emCristo é como que um sacramento, ou sinal, einstrumento da íntima união com Deus e daunidade de todo o género humano » ;34 e disto éEle a fonte ! Ele mesmo ! Ele o Redentor !

A Igreja não cessa de ouvir as suas palavras,continuamente as relê e reconstrói com a máximadevoção todos os pormenores da sua vida. Estaspalavras são escutadas também pelos não cristãos.A vida de Cristo fala ao mesmo tempo também amuitos homens que ainda não se acham emcondições de repetir com Pedro : « Tu és o

26 1 Cor 8, 6 ; Cfr. Cl 1, 17.27 Jo 14 :6. 28 Jo 11 :25.29 Cfr. Jo 14, 9.30 Cfr. Jo 16, 7.31 Cfr. Jo 16, 7.13.32 Cl 2, 3.33 Cfr. Rm 12, 5 ; 1 Cor 6, 15 ; 10, 17 ; 12, 12.27 ; Ef 1, 23 ; 2, 16 ; 4, 4 ; Cl1, 24 ; 3, 15.34 Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1 : AAS 57 (1965) 5.

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Cristo, o Filho de Deus vivo ».35 Ele, Filho deDeus vivo, fala aos homens também comoHomem : é a sua própria vida que fala, a suahumanidade, a sua fidelidade à verdade e o seuamor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua mortena Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade doseu sofrimento e do seu abandono. A Igreja nãocessa nunca de reviver a sua morte na Cruz e asua Ressurreição, que constituem o conteúdo davida quotidiana da mesma Igreja. De facto, é pormandato do próprio Cristo, seu Mestre, que aIgreja celebra incessantemente a Eucaristia,encontrando nela « a fonte da vida e dasantidade »,36 o sinal eficaz da graça e dareconciliação com Deus e o penhor da vidaeterna. A Igreja vive o seu mistério e nele vaihaurir sem jamais se cansar, e buscacontinuamente as vias para tornar este mistériodo seu Mestre e Senhor próximo do génerohumano : dos povos, das nações, das geraçõesque se sucedem e de cada um dos homens emparticular, como se repetisse sempre, seguindo oexemplo do Apóstolo : « Tomei a resolução denão saber, entre vós, outra coisa, a não ser JesusCristo, e Jesus Cristo crucificado ».37 A Igrejapermanece na esfera do mistério da Redenção,

35 Mt 16, 16.36 Cfr. Litanias do Sagrado Coração.37 1 Cor 2, 2.

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que se tornou precisamente o princípiofundamental da sua vida e da sua missão.

8. Redenção : renovada criaçãoRedentor do mundo ! N'Ele se revelou de um

modo novo, de maneira admirável, aquelaverdade fundamental respeitante à criação que oLivro do Génesis atesta quando repete mais deuma vez : Deus viu que as coisas eram boas.38 Obem tem a sua nascente na Sapiência e no Amor.Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado porDeus para o homem39 – aquele mundo que,entrando nele o pecado, foi submetido àcaducidade40 _ readquire novamente o vínculooriginário com a mesma fonte divina da Sapiênciae do Amor. Com efeito, « Deus amou tanto omundo que lhe deu o seu Filho unigénito ».41

Assim como no homem-Adão este vínculo foiquebrado, assim no Homem-Cristo foi de novoreatado.42 Não nos convencem, porventura, a nóshomens do século vinte, as palavras do Apóstolodas gentes, pronunciadas com uma arrebatadoraeloquência, acerca da « criação inteira que geme esofre, em conjunto, as dores do parto, até aopresente »,43 e « atende ansiosamente a revelação

38 Cfr. Gn 1.39 Cfr. Gn 1, 26-30.40 Rm 8, 20 ; cfr. ibid. 8, 19-22 ; Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes,2 ; 13 : AAS 58 (1966) 1026 ; 1034 s.41 Jo 3, 16.42 Cfr. Rm 5, 12-21.43 Rm 8, 22.

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dos filhos de Deus »,44 acerca da criação que « foisubmetida à caducidade » ? O imenso progressonunca dantes conhecido, que se verificouparticularmente no decorrer do nosso século, nocampo do domínio sobre o mundo por parte dohomem, não revela acaso ele próprio e ainda porcima em grau nunca dantes conhecido, aquelamultiforme submissão « à caducidade » ? Bastarecordar aqui certos fenómenos, como porexemplo a ameaça do inquinamento do ambientenatural nos locais de rápida industrialização, ouentão os conflitos armados que rebentam e serepetem continuamente, ou ainda as perspectivasde autodestruição mediante o uso das armasatómicas, das armas com hidrogénio e com osneutrões e outras semelhantes e a falta de respeitopela vida dos não-nascidos. O mundo da épocanova o mundo dos vôos cósmicos, o mundo dasconquistas científicas e técnicas, nunca alcançadasantes, não será ao mesmo tempo o mundo que« geme e sofre »45 e « atende ansiosamente arevelação dos filhos de Deus » ?46

O II Concílio do Vaticano, na sua penetranteanálise do « mundo contemporâneo », chegavaaquele ponto que é o mais importante do mundovisível, o homem, descendo – como Cristo – atéao profundo das consciências humanas, tocando

44 Rm 8, 19-20.45 Rm 8, 22.46 Rm 8, 19.

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mesmo o mistério interior do homem, que nalinguagem bíblica (e também não bíblica) seexprime com a palavra « coração ». Cristo,Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, deuma maneira singular e que não se pode repetir,no mistério do homem e entrou no seu« coração ». Justamente, portanto, o mesmo IIConcílio do Vaticano ensina : « Na realidade, sóno mistério do Verbo Encarnado se esclareceverdadeiramente o mistério do homem. Adão, defacto, o primeiro homem, era figura do futuro(Rom 5, 14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que éo novo Adão, na própria revelação do mistério doPai e do seu Amor, revela também plenamente ohomem ao mesmo homem e descobre-lhe a suavocação sublime ». E depois, ainda : « Imagem deDeus invisível (Col 1, 15), Ele é o homemperfeito, que restitui aos filhos de Adão asemelhança divina, deformada desde o primeiropecado. Já que n'Ele a natureza humana foiassumida, sem ter sido destruída, por isso mesmotambém em nosso benefício ela foi elevada a umadignidade sublime. Porque, pela sua Encarnação,Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cadahomem. Trabalhou com mãos de homem, pensoucom uma mente de homem, agiu com umavontade de homem e amou com um coração dehomem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós

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em tudo, excepto no pecado ».47 Ele, o Redentordo homem.

9. Dimensão divina do mistério daRedenção

Ao reflectirmos novamente sobre este textoadmirável do Magistério conciliar, nãoesqueçamos, nem sequer por um momento, queJesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou anossa reconciliação junto do Pai.48 Eleprecisamente e só Ele satisfez ao eterno amor doPai, àquela paternidade que desde o princípio seexpressou na criação do mundo, na doação aohomem de toda a riqueza do que foi criado, aofazê-lo « pouco inferior aos anjos »,49 enquantocriado « à imagem e à semelhança de Deus » ;50 e,igualmente satisfez àquela paternidade de Deus eàquele amor, de um certo modo rejeitado pelohomem, com a ruptura da primeira Aliança51 e dasalianças posteriores que Deus « repetidas vezesofereceu aos homens ».52 A redenção do mundo –aquele tremendo mistério do amor em que acriação foi renovada53 – é, na sua raiz maisprofunda, a plenitude da justiça num Coração

47 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 22 : AAS 58 (1966) 1042s.48 Cfr. Rm 5, 11 ; Col 1, 20.49 Sal 8, 6.50 Cfr. Gn 1, 26.51 Cfr. Gn 3, 6-13.52 Cfr. IV Prece Eucarística.53 Cfr. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 37 : AAS 58 (1966)1054s ; Const. dogm. Lumen gentium, 48 : AAS 57 (1965) 53s.

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humano : no Coração do Filho Primogénito, afim de que ela possa tornar-se justiça doscorações de muitos homens, os quais,precisamente no Filho Primogénito, forampredestinados desde toda a eternidade para setornarem filhos de Deus54 e chamados para agraça, chamados para o amor. A cruz no Calvário,mediante a qual Jesus Cristo – Homem, Filho deMaria Virgem, filho putativo de José de Nazaré –« deixa » este mundo, é ao mesmo tempo umanova manifestação da eterna paternidade deDeus, o Qual por Ele (Cristo) de novo seaproxima da humanidade, de cada um doshomens, dando-lhes o três vezes santo « Espíritoda verdade ».55

Com esta revelação do Pai e efusão doEspírito Santo, que imprimem um sigilo indelévelno mistério da Redenção, se explica o sentido dacruz e da morte de Cristo. O Deus da criaçãorevela-se como Deus da redenção, como Deus« fiel a si próprio »,56 fiel ao seu amor para com ohomem e para com o mundo, que já se revelarano dia da criação. E este seu amor é amor quenão retrocede diante de nada daquilo que nelemesmo exige a justiça. E por isto o Filho « quenão conhecera o pecado, Deus tratou-o, por nós,

54 Cf. Rm 8, 29s ; Ef 1,8.55 Cf. Jo 16, 13.56 Cf. 1 Ts 5, 24.

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como pecado ».57 E se « tratou como pecado »Aquele que era absolutamente isento de qualquerpecado, fê-lo para revelar o amor que é sempremaior do que tudo o que é criado, o amor que éEle próprio, porque « Deus é amor ».58 Esobretudo o amor é maior do que o pecado, doque a fraqueza e do que « a caducidade do que foicriado »,59 mais forte do que a morte ; é amorsempre pronto a erguer e a perdoar, semprepronto para ir ao encontro do filho pródigo,60

sempre em busca da « revelação dos filhos deDeus »,61 que são chamados para a glória futura.62

Esta revelação do amor é definida tambémmisericórdia ;63 e tal revelação do amor e damisericórdia tem na história do homem umaforma e um nome : chama-se Jesus Cristo.

10. Dimensão humana do mistério daRedenção

O homem não pode viver sem amor. Elepermanece para si próprio um serincompreensível e a sua vida é destituída desentido, se não lhe for revelado o amor, se elenão se encontra com o amor, se o nãoexperimenta e se o não torna algo seu próprio, se57 2 Cor 5, 21 ; cf. Gl 3, 13.58 1 Jo 4, 8.16.59 Cf. Rm 8, 20.60 Cf. Lc 15, 11-32.61 Rm 8, 19.62 Cf. Rm 8, 18.63 Cf. Santo Tomás, Summa Theol. III, q. 46, a. l ad 3.

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nele não participa vivamente. E por istoprecisamente Cristo Redentor, como já foi ditoacima, revela plenamente o homem ao própriohomem. Esta é – se assim é lícito exprimir-se – adimensão humana do mistério da Redenção.Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza,a dignidade e o valor próprios da suahumanidade. No mistério da Redenção o homemé novamente « reproduzido » e, de algum modo, énovamente criado. Ele é novamente criado !« Não há judeu nem gentio, não há escravo nemlivre, não há homem nem mulher : todos vós soisum só em Cristo Jesus ».64 O homem que quisercompreender-se a si mesmo profundamente –não apenas segundo imediatos, parciais, não rarosuperficiais e até mesmo só aparentes critérios emedidas do próprio ser – deve, com a suainquietude, incerteza e também fraqueza epecaminosidade, com a sua vida e com a suamorte, aproximar-se de Cristo. Ele deve, porassim dizer, entrar n'Ele com tudo o que é em simesmo, deve « apropriar-se » e assimilar toda arealidade da Encarnação e da Redenção, para seencontrar a si mesmo. Se no homem se actuareste processo profundo, então ele produz frutos,não somente de adoração de Deus, mas tambémde profunda maravilha perante si próprio. Quegrande valor deve ter o homem aos olhos doCriador, se « mereceu ter um tal e tão grande64 Gál 3,28.

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Redentor »,65 se « Deus deu o seu Filho », paraque ele, o homem, « não pereça, mas tenha a vidaeterna ».66

Na realidade, aquela profunda estupefacção arespeito do valor e dignidade do homem chama-se Evangelho, isto é a Boa Nova. Chama-setambém Cristianismo. Uma tal estupefacçãodetermina a missão da Igreja no mundo, também,e talvez mais ainda, « no mundocontemporâneo ». Tal estupefacção econjuntamente persuasão e certeza, que na suaprofunda raiz é a certeza da fé, mas que de ummodo recôndito e misterioso vivifica todos osaspectos do humanismo autêntico, estáintimamente ligada a Cristo. Ela estabelecetambém o lugar do mesmo Jesus Cristo – seassim se pode dizer – o seu particular direito decidadania na história do homem e dahumanidade. A Igreja, que não cessa decontemplar o conjunto do mistério de Cristo,sabe com toda a certeza da fé, que a Redençãoque se verificou por meio da Cruz, restituiudefinitivamente ao homem a dignidade e osentido da sua existência no mundo, sentido queele havia perdido em considerável medida porcausa do pecado. E por isso a Redenção realizou-se no mistério pascal, que, através da cruz e damorte, conduz à ressurreição.

65 Missal Romano, hino Exultet da Vigília Pascal.66 Cf. Jo 3, 16.

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A tarefa fundamental da Igreja de todos ostempos e, de modo particular, do nosso, é a dedirigir o olhar do homem e de endereçar aconsciência e experiência de toda a humanidadepara o mistério de Cristo, de ajudar todos oshomens a ter familiaridade com a profundidadeda Redenção que se verifica em Cristo Jesus.Simultaneamente, toca-se também a esfera maisprofunda do homem, a esfera – queremos dizer –dos corações humanos, das consciências humanase das vicissitudes humanas.

11. O Mistério de Cristo na base damissão da Igreja e do Cristianismo

O II Concílio do Vaticano realizou umtrabalho imenso, para formar aquela plena euniversal consciência da Igreja, acerca da qualescrevia o Papa Paulo VI na sua primeiraEncíclica. Uma tal consciência – ou antesautoconsciência da Igreja – forma-se « nodiálogo », o qual, antes de se tornar colóquio,deve volver a própria atenção para « o outro », ouseja para aquele com o qual queremos falar. OConcílio Ecuménico deu um impulsofundamental para se formar a autoconsciência daIgreja, apresentando-nos, de maneira adequada ecompetente, a visão do orbe terrestre como deum « mapa » de várias religiões. Além disto, eledemonstrou como sobre este « mapa » dasreligiões do mundo se sobrepõe em estratos –nunca dantes conhecidos e característicos da

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nossa época – o fenómeno do ateísmo nas suasvárias formas, a começar do ateísmo programado,organizado e estruturado em sistema político.

Quanto à religião, trata-se, antes de mais, dareligião como fenómeno universal, conjunto coma história do homem desde o início ; depois, dasvárias religiões não cristãs e, por fim, do própriocristianismo. O documento do Concílio dedicadoàs religiões não cristãs é, em particular, umdocumento cheio de estima profunda pelosgrandes valores espirituais, ou melhor, peloprimado daquilo que é espiritual, e que encontrana vida da humanidade a sua expressão na religiãoe, em seguida, na moralidade, que se reflecte emtoda a cultura. Justamente os Padres da Igrejaviam nas diversas religiões como que outrostantos reflexos de uma única verdade, como que« germes do Verbo »,67 os quais testemunham que,embora por caminhos diferentes, está contudovoltada para uma mesma direcção a maisprofunda aspiração do espírito humano, tal comoela se exprime na busca de Deus ; econjuntamente na busca, mediante a tensão nosentido de Deus, da plena dimensão dahumanidade, ou seja, do sentido pleno da vidahumana. O Concílio dedicou uma particular

67 Cf. S. Justino, I Apologia, 46, 1-4 ; II Apologia, 7 (8), 1-4 ; 10, 1-3 ; 13, 3-4 ; Florilegium Patristicum II, Bonn 1911², p. 81, 125, 129, 133 ; ClementeAlexandrino, Stromata I, 19, 91.94 : S. C. 30, p. 117s,. ; 119 s. ; Conc. Vat.II, Decr. Ad gentes, 11 : AAS 58 (1966) 960 ; Const. dogm. Lumen gentium,17 : AAS 57 (1965) 21.

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atenção à religião judaica, recordando o grandepatrimónio espiritual que é comum aos cristãos eaos judeus, e exprimiu a sua estima para com oscrentes do Islão, cuja fé se refere também aAbraão.68

Em virtude da abertura provocada pelo IIConcílio do Vaticano, a Igreja e todos os cristãospuderam alcançar uma consciência mais completado mistério de Cristo, « mistério oculto por tantosséculos »69 em Deus, para ser revelado no tempo,no Homem Jesus Cristo, e para se revelarcontinuamente, em todos os tempos. Em Cristo epor Cristo, Deus revelou-se plenamente àhumanidade e aproximou-se definitivamentedela ; e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo,o homem adquiriu plena consciência da suadignidade, da sua elevação, do valortranscendente da própria humanidade e dosentido da sua existência.

Importa, pois, que nós todos – quantossomos seguidores de Cristo – nos encontremos enos unamos em torno d'Ele mesmo. Esta união,nos diversos sectores da vida, da tradição e dasestruturas e disciplina de cada uma das Igrejas oudas Comunidades eclesiais, não poderá seractuada sem um válido trabalho que tenda para sechegar a um conhecimento recíproco e para aremoção dos obstáculos ao longo do caminho

68 Cf. Conc. Vat. II, Decl. Nostra aetate, 3-4 : AAS 58 (1966) 741-743.69 Cl 1,26.

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para uma perfeita unidade. No entanto, podemose devemos, já a partir de agora, conseguir emanifestar ao mundo a nossa unidade : noanunciar o mistério de Cristo, no tornar patente adimensão divina e conjuntamente humana daRedenção, no lutar com infatigável perseverançapor aquela dignidade que todos os homensalcançaram e podem alcançar continuamente emCristo, que é a dignidade da graça da adopçãodivina e simultaneamente dignidade da verdadeinterior da humanidade, a qual – se na consciênciacomum do mundo contemporâneo chegou a terum realce assim tão fundamental – para nós aindaressalta mais à luz daquela realidade que é Ele :Jesus Cristo.

Jesus Cristo é princípio estável e centropermanente da missão que o próprio Deusconfiou ao homem. E nesta missão devemosparticipar todos, nela devemos concentrar todasas nossas forças, uma vez que ela é mais do quenunca necessária para a humanidade do nossotempo. E se uma tal missão parece encontrar nanossa época oposições maiores do que emqualquer outro tempo, então esta circunstânciaestá a demonstrar também que ela na nossa épocaé ainda mais necessária e – não obstante asoposições – mais esperada do que nunca. Aquitocamos indirectamente naquele mistério daeconomia divina que uniu a salvação e a graçacom a Cruz. Não foi em vão que Cristo disse

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alguma vez que « o reino dos céus é objecto deviolência, e os violentos tornam-se seussenhores » ;70 e, ainda, que « os filhos destemundo são mais sagazes do que os filhos daluz ».71 Aceitemos esta admoestação de bomgrado, para sermos como aqueles « violentos deDeus » que tantas vezes nos foi dado ver nahistória da Igreja e que descortinamos ainda hoje,a fim de nos unirmos conscientemente na grandemissão, ou seja : revelar Cristo ao mundo, ajudarcada um dos homens para que se encontre a simesmo n'Ele, ajudar as gerações contemporâneasdos nossos irmãos e irmãs, povos, nações,estados, humanidade, países ainda nãodesenvolvidos e países da opulência, ajudar todos,em suma, a conhecer as « imperscrutáveisriquezas de Cristo »,72 pois estas são para todos ecada um dos homens e constituem o bem de cadaum deles.

12. Missão da Igreja e liberdade dohomem

Nesta união na missão, da qual decidesobretudo o mesmo Cristo, todos os cristãosdevem descobrir aquilo que os une, ainda antesde se realizar a sua plena comunhão. Esta é aunião apostólica e missionária, missionária eapostólica. Graças a esta união, podemos juntos

70 Mt 11, 12.71 Lc 16, 8.72 Ef 3, 8.

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aproximar-nos do magnífico património doespírito humano, que se manifestou em todas asreligiões, como diz a Declaração do II Concíliodo Vaticano Nostra aetate.73 E graças à mesmaunião, abeirar-nos-emos também de todas asculturas, de todas as concepções ideológicas e detodos os homens de boa vontade. E aproximar-nos-emos com aquela estima, respeito ediscernimento que, já desde os temposapostólicos, distinguiam a atitude missionária e domissionário. Basta-nos recordar São Paulo e, porexemplo, o seu discurso no Areópago de Atenas.74

A atitude missionária começa sempre por umsentimento de profunda estima para com aquilo« que há no homem »,75 por aquilo que ele, noíntimo do seu espírito, elaborou quanto aosproblemas mais profundos e mais importantes ;trata-se de respeito para com aquilo que neleoperou o Espírito, que « sopra onde quer ».76 Amissão não é nunca uma destruição, mas umareassunção de valores e uma nova construção,ainda que na prática nem sempre tenha havidoplena correspondência com um ideal assim tãoelevado. A conversão, que da missão deve tomarinício, sabemos bem que é obra da graça, na qual

73 Cf. Conc. Vat. II, Decl. Nostra aetate, l s : AAS 58 (1966) 740s.74 Hebr 17, 22-31.75 Jo 2, 25.76 Jo 3, 8.

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o homem há-de encontrar-se plenamente a simesmo.

Por tudo isto, a Igreja do nosso tempo dágrande importância a tudo aquilo que o IIConcílio do Vaticano expôs na Declaração sobre aLiberdade Religiosa, tanto na primeira como nasegunda parte do Documento.77 Sentimosprofundamente o carácter compromissivo daverdade que Deus nos revelou. Damo-nos conta,em particular, do grande sentido deresponsabilidade por esta verdade. A Igreja, porinstituição de Cristo, dela é guarda e mestra,sendo precisamente para isso dotada de umasingular assistência do Espírito Santo, a fim depoder guardá-la fielmente e ensiná-la na sua maisexacta integridade.78

No desempenho desta missão, olhemos parao próprio Cristo, Aquele que é o primeiroevangelizador,79 e olhemos também para os seusApóstolos, Mártires e Confessores. A Declaraçãosobre a Liberdade Religiosa põe a claro, de modobem convincente, como Cristo e, em seguida, osseus Apóstolos, ao anunciarem a verdade que nãoprovém dos homens, mas sim de Deus – « aminha doutrina não é tão minha como daqueleque me enviou », ou seja, o Pai80 – embora agindo

77 Cf. AAS 58 (1966) 929-946.78 Cf. Jo 14, 26.79 Paulo VI, Exort. apost. Evangelii nuntiandi, 6 : AAS 68 (1976) 9.80 Jo 7, 16.

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com todo o vigor do espírito, conservam umaprofunda estima pelo homem, pela suainteligência, pela sua vontade, pela suaconsciência e pela sua liberdade.81 De tal modo, aprópria dignidade da pessoa humana torna-seconteúdo daquele anúncio, mesmo sem palavras,mas simplesmente através do comportamento emrelação à mesma pessoa livre. Umcomportamento assim parece corresponder àsnecessidades particulares do nosso tempo. Umavez que nem em tudo aquilo que os váriossistemas e também homens singulares vêem epropagam como liberdade está de facto averdadeira liberdade do homem, mais a Igreja,por força da sua divina missão, se torna guardadesta liberdade, a qual é condição e base daverdadeira dignidade da pessoa humana.

Jesus Cristo vai ao encontro do homem detodas as épocas, também do da nossa época, comas mesmas palavras que disse alguma vez :« conhecereis a verdade, e a verdade torna-vos-álivres ».82 Estas palavras encerram em si umaexigência fundamental e, ao mesmo tempo, umaadvertência : a exigência de uma relação honestapara com a verdade, como condição de umaautêntica liberdade ; e a advertência, ademais,para que seja evitada qualquer verdade aparente,toda a liberdade superficial e unilateral, toda a

81 Cf. AAS 58 (1966) 936 ss.82 Jo 8, 32.

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liberdade que não compreenda cabalmente averdade sobre o homem e sobre o mundo. Aindahoje, depois de dois mil anos, Cristo continua aaparecer-nos como Aquele que traz ao homem aliberdade baseada na verdade, como Aquele queliberta o homem daquilo que limita, diminui ecomo que espedaça essa liberdade nas própriasraízes, na alma do homem, no seu coração e nasua consciência. Que confirmação estupendadisto mesmo deram e não cessam de dar aquelesque, graças a Cristo e em Cristo, alcançaram averdadeira liberdade e a manifestaram até emcondições de constrangimento exterior !

E o próprio Jesus Cristo, quandocompareceu prisioneiro diante do tribunal dePilatos e por ele foi interrogado acerca dasacusações que Lhe tinham sido feitas pelosrepresentantes do Sinédrio, porventura nãorespondeu Ele : « Para isto é que eu nasci e paraisto é que eu vim ao mundo : para dartestemunho da verdade » ?83 Com tais palavraspronunciadas diante do juiz, no momentodecisivo, foi como se quisesse confirmar, uma vezmais ainda, o que já havia dito em precedência :« Conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-álivres ». No decorrer de tantos séculos e de tantasgerações, a começar dos tempos dos Apóstolos,não foi acaso o mesmo Jesus Cristo que tantasvezes compareceu ao lado dos homens julgados83 Jo 18, 37.

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por causa da verdade, e não foi Ele para a morte,talvez, conjuntamente com homens condenadospor causa da verdade ? Cessa Ele, porventura, decontinuamente ser o porta-voz e advogado dohomem que vive « em espírito e em verdade » ?84

Do mesmo modo que não cessa de sê-lo diantedo Pai, assim também continua a sê-lo em relaçãoà história do homem. E a Igreja, por sua vez,apesar de todas as fraquezas que fazem parte dahistória humana, não cessa de seguir Aquele queproclamou : « Aproxima-se a hora, ou melhor, jáestamos nela, em que os verdadeiros adoradoresadorarão o Pai em espírito e em verdade, porqueé assim que o Pai quer os seus adoradores. Deus éespírito, e os que o adoram em espírito e verdadeé que o devem adorar ».85

III. O HOMEM REMIDO E A SUA SITUAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

13. Cristo uniu-se com cada um doshomens

Quando, através da experiência da famíliahumana, em contínuo aumento a ritmo acelerado,penetramos no mistério de Jesus Cristo,compreendemos com maior clareza que, na basede todas aquelas vias ao longo das quais – deacordo com a sapiência do Sumo Pontífice Paulo

84 Cf. Jo 4, 23.85 Jo 4, 23s.

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VI86 – a Igreja dos nossos tempos deveprosseguir, existe uma única via : é a viaexperimentada de há séculos, e é, ao mesmotempo, a via do futuro. Cristo Senhor indicouesta via sobretudo, quando – como ensina oConcílio – « pela sua Encarnação, Ele, o Filho deDeus, se uniu de certo modo a cada homem ».87 AIgreja reconhece, portanto, como sua tarefafundamental fazer com que uma tal união sepossa actuar e renovar continuamente. A Igrejadeseja servir esta única finalidade : que cadahomem possa encontrar Cristo, a fim de queCristo possa percorrer juntamente com cadahomem o caminho da vida, com a potênciadaquela verdade sobre o homem e sobre omundo, contida no mistério da Encarnação e daRedenção, e com a potência do amor que de talverdade irradia. Sobre o pano de fundo dossempre crescentes processos na história, que nanossa época parecem frutificar de modoparticular no âmbito de vários sistemas, deconcepções ideológicas do mundo e de regimes,Cristo torna-se, de certo modo, novamentepresente, malgrado todas as suas aparentesausências, malgrado todas as limitações dapresença e da actividade institucional da Igreja. EJesus Cristo torna-se presente com a potênciadaquela verdade e daquele amor que n'Ele se

86 Cf. Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam : AAS 56 (1964) 609-659.87 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 22 : AAS 58 (1966) 1042.

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exprimiram como plenitude única e que não sepode repetir, se bem que a sua vida na terra tenhasido breve e ainda mais breve a sua actividadepública.

Jesus Cristo é a via principal da Igreja. Elemesmo é a nossa via para « a casa do Pai »88 e étambém a via para cada homem. Por esta via queleva de Cristo ao homem, por esta via na qualCristo se une a cada homem, a Igreja não podeser entravada por ninguém. Isso é exigência dobem temporal e do bem eterno do mesmohomem. Por respeito a Cristo e em razão daquelemistério que a vida da mesma Igreja constitui,esta não pode permanecer insensível a tudoaquilo que serve o verdadeiro bem do homem,assim como não pode permanecer indiferenteàquilo que o ameaça. O II Concílio do Vaticano,em diversas passagens dos seus documentos,deixou bem expressa esta fundamental solicitudeda Igreja, a fim de que « a vida no mundo /seja/mais conforme com a dignidade sublime dehomem »,89 em todos os seus aspectos, e portornar essa vida « cada vez mais humana ».90 Estaé a solicitude do próprio Cristo, o Bom Pastor detodos os homens. Em nome de uma talsolicitude, conforme lemos na Constituiçãopastoral do Concílio, « a Igreja que, em razão da

88 Cf. Jo 14, 1 ss.89 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 91 : AAS 58 (1966) 1113.90 Ibid., 38 : l.c., p.1056.

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sua missão e competência, de modo algum seconfunde com a comunidade política nem estáligada a qualquer sistema político determinado, éao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda docarácter transcendente da pessoa humana ».91

Aqui, portanto, trata-se do homem em toda asua verdade, com a sua plena dimensão. Não setrata do homem « abstracto », mas sim real : dohomem « concreto », « histórico ». Trata-se de« cada » homem, porque todos e cada um foramcompreendidos no mistério da Redenção, e comtodos e cada um Cristo se uniu, para sempre,através deste mistério. Todo o homem vem aomundo concebido no seio materno e nasce daprópria mãe, e é precisamente por motivo domistério da Redenção que ele é confiado àsolicitude da Igreja. Tal solicitude diz respeito aohomem todo, inteiro, e está centrada sobre ele demodo absolutamente particular. O objecto destescuidados da Igreja é o homem na sua única esingular realidade humana, na qual permaneceintacta a imagem e semelhança com o próprioDeus.92 O Concílio indica isto precisamente,quando, ao falar de tal semelhança recorda que ohomem é « a única criatura sobre a terra a serquerida por Deus por si mesma ».93 O homem talcomo foi « querido » por Deus, como por Ele foi

91 Ibid., 76 : l.c., p.1099.92 Cf. Gn 1,27.93 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 24 : AAS 58 (1966) 1045.

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eternamente « escolhido », chamado e destinado àgraça e à glória, este homem assim é exactamente« todo e qualquer » homem, o homem « o maisconcreto », « o mais real » ; este homem, depois, éo homem em toda a plenitude do mistério de quese tornou participante em Jesus Cristo, mistériode que se tornou participante cada um dos quatrobiliões de homens que vivem sobre o nossoplaneta, desde o momento em que é concebidosob o coração da própria mãe.

14. Todas as vias da Igreja levam aohomem

A Igreja não pode abandonar o homem, cuja« sorte », ou seja, a escolha, o chamamento, onascimento e a morte, a salvação ou a perdição,estão de maneira tão íntima e indissolúvel unidosa Cristo. E trata-se aqui precisamente de todos ecada um dos homens sobre este planeta, nestaterra que o Criador deu ao primeiro homem,dizendo ao mesmo tempo ao homem e à mulher :« submetei-a (a terra) e dominai-a ».94 Cadahomem, pois, em toda a sua singular realidade doser e do agir, da inteligência e da vontade, daconsciência e do coração. O homem nessa suasingular realidade (porque é « pessoa ») tem umaprópria história da sua vida e, sobretudo, umaprópria história da sua alma. O homem que,segundo a interior abertura do seu espírito, econjuntamente a tantas e tão diversas94 Gn 1, 28.

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necessidades do seu corpo e da sua existênciatemporal, escreve esta sua história pessoal, fá-loatravés de numerosos ligames, contactos,situações e estruturas sociais, que o unem aoutros homens ; e faz isso a partir do primeiromomento da sua existência sobre a terra, desde omomento da sua concepção e do seu nascimento.O homem, na plena verdade da sua existência, doseu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu sercomunitário e social – no âmbito da própriafamília, no âmbito de sociedades e de contextosbem diversos, no âmbito da própria nação, oupovo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo),enfim no âmbito de toda a humanidade – estehomem é o primeiro caminho que a Igreja devepercorrer no cumprimento da sua missão : ele é aprimeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelopróprio Cristo e via que imutavelmente conduzatravés do mistério da Encarnação e daRedenção.

Este homem assim precisamente, em toda averdade da sua vida, com a sua consciência, coma sua contínua inclinação para o pecado e, aomesmo tempo, com a sua contínua aspiração pelaverdade, pelo bem, pelo belo, pela justiça e peloamor, precisamente um tal homem tinha diantedos olhos o II Concílio do Vaticano, quando, aodelinear a sua situação no mundocontemporâneo, se transferia sempre dascomponentes externas desta situação para a

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verdade imanente da humanidade : « É no íntimodo homem precisamente que muitos elementos secombatem entre si. Enquanto, por uma parte, elese experimenta, como criatura que é,multiplamente limitado, por outra, sente-seilimitado nos seus desejos e chamado a uma vidasuperior. Atraído por muitas solicitações, vê-seobrigado a escolher entre elas e a renunciar aalgumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitasvezes aquilo que não quer e não realiza o quedesejaria fazer. Sofre assim em si mesmo adivisão, da qual tantas e tão graves discórdias seoriginam para a sociedade ».95

É este homem assim que é a via da Igreja ;via que se encontra, de certo modo, na base detodas aquelas vias pelas quais a Igreja devecaminhar : porque o homem – todos e cada umdos homens, sem excepção alguma – foi remidopor Cristo ; e porque com o homem – cadahomem, sem excepção alguma – Cristo de algummodo se uniu, mesmo quando tal homem dissonão se acha consciente : « Cristo, morto eressuscitado por todos os homens, a estes – atodos e a cada um dos homens – oferecesempre... a luz e a força para poderemcorresponder à sua altíssima vocação ».96

Sendo portanto este homem a via da Igreja,via da sua vida e experiência quotidianas, da sua

95 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 10 : AAS 58 (1966) 1032.96 Ibid., 10 : l.c., p.1033.

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missão e actividade, a Igreja do nosso tempo temde estar, de maneira sempre renovada, bem cienteda « situação » de tal homem. E mais : a Igrejadeve estar bem ciente das suas possibilidades, quetomam sempre nova orientação e assim semanifestam ; ela tem de estar bem ciente, aomesmo tempo ainda, das ameaças que seapresentam contra o homem. Ela deve estarcônscia, outrossim, de tudo aquilo que parece sercontrário ao esforço para que « a vida humana setorne cada vez mais humana »97 e para que tudoaquilo que compõe esta mesma vida correspondaà verdadeira dignidade do homem. Numa palavra,a Igreja deve estar bem cônscia de tudo aquilo queé contrário a um tal processo de nobilitação da vidahumana.

15. De que é que o homemcontemporâneo tem medo

Conservando, pois, viva na memória aimagem que de maneira tão perspicaz eautorizada traçou o II Concílio do Vaticano,procuraremos, uma vez mais ainda, adaptar estequadro aos « sinais dos tempos », bem como àsexigências da situação que muda continuamente eevolui em determinadas direcções.

O homem de hoje parece estar sempreameaçado por aquilo mesmo que produz ; ouseja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e,

97 Ibid., 38 : l.c., p.1056 ; Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 21 : AAS 59(1967) 267 s.

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ainda mais, pelo resultado do trabalho da suainteligência e das tendências da sua vontade. Osfrutos desta multiforme actividade do homem,com muita rapidez e de modo muitas vezesimprevisível, passam a ser, não tanto objecto de« alienação », no sentido de que são simplesmentetirados àquele que os produz, quanto, ao menosparcialmente e num círculo consequente eindirecto dos seus efeitos, tais frutos se voltamcontra o próprio homem. Eles passam então, defacto, a ser dirigidos, ou podem ser dirigidoscontra o homem. E nisto assim parece consistir ocapítulo principal do drama da existência humanacontemporânea na sua mais ampla e universaldimensão. O homem, portanto, cada vez maisvive com medo. Ele teme que os seus produtos,naturalmente não todos e não na maior parte,mas alguns e precisamente aqueles que encerramuma especial porção da sua genialidade e da suainiciativa, possam ser voltados de maneira radicalcontra si mesmo ; teme que eles possam tornar-semeios e instrumentos de uma inimaginávelautodestruição, perante a qual todos oscataclismas e as catástrofes da história, que nósconhecemos, parecem ficar a perder de vista.Deve pôr-se, portanto, uma interrogação : porque razão um tal poder, dado desde o princípioao homem, poder mediante o qual ele deviadominar a terra,98 se volta assim contra ele,98 Cf. Gn 1, 28.

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provocando um compreensível estado deinquietude, de consciente ou inconsciente medo,e de ameaça que de diversas maneiras secomunica a toda a família humanacontemporânea e se manifesta sob váriosaspectos ?

Este estado de ameaça contra o homem, daparte dos seus mesmos produtos, tem váriasdirecções e vários graus de intensidade. Pareceque estamos cada vez mais cônscios do facto de aexploração da terra, do planeta em que vivemos,exigir um planeamento racional e honesto. Aomesmo tempo, tal exploração para fins nãosomente industriais mas também militares, odesenvolvimento da técnica não controlado nemenquadrado num plano com perspectivasuniversais e autenticamente humanístico, trazemmuitas vezes consigo a ameaça para o ambientenatural do homem, alienam-no nas suas relaçõescom a natureza e apartam-no da mesma natureza.E o homem parece muitas vezes não dar-se contade outros significados do seu ambiente natural,para além daqueles somente que servem para osfins de um uso ou consumo imediatos. Quando,ao contrário, era vontade do Criador que ohomem comunicasse com a natureza como« senhor » e « guarda » inteligente e nobre, e nãocomo um « desfrutador » e « destrutor » semrespeito algum.

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O progresso da técnica e o desenvolvimentoda civilização do nosso tempo, que é marcadoaliás pelo predomínio da técnica, exigem umproporcional desenvolvimento também da vidamoral e da ética. E no entanto este último,infelizmente, parece ficar sempre atrasado. Porisso, este progresso, de resto tão maravilhoso, emque é difícil não vislumbrar também os autênticossinais da grandeza do mesmo homem, os quais,em seus germes criativos, já nos são revelados naspáginas do Livro do Génesis, na descrição da suamesma criação,99 este progresso não pode deixarde gerar multíplices inquietações. Uma primeirainquietação diz respeito à questão essencial efundamental : Este progresso, de que é autor efautor o homem, torna de facto a vida humanasobre a terra, em todos os seus aspectos, « maishumana » ? Torna-a mais « digna do homem » ?Não pode haver dúvida de que, sob váriosaspectos, a torna de facto tal. Esta pergunta,todavia, retorna obstinadamente e pelo querespeita àquilo que é essencial em sumo grau : seo homem, enquanto homem, no contexto desteprogresso, se torna verdadeiramente melhor, istoé, mais amadurecido espiritualmente, maisconsciente da dignidade da sua humanidade, maisresponsável, mais aberto para com o outros, emparticular para com os mais necessitados e os

99 Cf. Gn 1-2.

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mais fracos, e mais disponível para proporcionare prestar ajuda a todos.

Esta é a pergunta que os cristãos devem pôr-se, precisamente porque Cristo os sensibilizouassim de modo universal quanto ao problema dohomem. E a mesma pergunta devem tambémpôr-se todos os homens, especialmente aquelesque fazem parte daqueles ambientes sociais quese dedicam activamente ao desenvolvimento e aoprogresso nos nossos tempos. Ao observar estesprocessos e tomando parte neles, não podemosdeixar que se aposse de nós a euforia, nempodemos deixar-nos levar por um unilateralentusiasmo pelas nossas conquistas ; mas todosdevemos pôr-nos, com absoluta lealdade,objectividade e sentido de responsabilidademoral, as perguntas essenciais pelo que se refere àsituação do homem, hoje e no futuro. Todas asconquistas alcançadas até agora, bem como asque estão projectadas pela técnica para o futuro,estão de acordo com o progresso moral eespiritual do homem ? Neste contexto o homem,enquanto homem, desenvolve-se e progride, ouregride e degrada-se na sua humanidade ?Prevalece nos homens, « no mundo do homem »– que é em si mesmo um mundo de bem e de malmoral – o bem ou o mal ? Crescemverdadeiramente nos homens, entre os homens, oamor social, o respeito pelos direitos de outrem –de todos e de cada um dos homens, de cada

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nação, de cada povo – ou, pelo contrário,crescem os egoísmos de vário alcance, osnacionalismos exagerados em vez do autênticoamor da pátria, e, ainda, a tendência para dominaros outros, para além dos próprios e legítimosdireitos e méritos, e a tendência para desfrutar detodo o progresso material e técnico-produtivoexclusivamente para o fim de predominar sobreos outros, ou em favor deste ou daqueloutroimperialismo ?

Eis as interrogações essenciais que a Igrejanão pode deixar de pôr-se, porque, de maneiramais ou menos explícita, as põem a si própriosbiliões de homens que vivem hoje no mundo. Otema do desenvolvimento e do progresso andanas bocas de todos e aparece nas colunas detodos os jornais e nas publicações, em quasetodas as línguas do mundo contemporâneo. Nãoesqueçamos, todavia, que este tema não contémsomente afirmações e certezas mas tambémperguntas e angustiosas inquietudes. Estas últimasnão são menos importantes do que as primeiras.Elas correspondem à natureza dialécticafundamental da solicitude do homem pelohomem, pela sua própria humanidade e pelofuturo dos homens sobre a face da terra. A Igreja,que é animada pela fé escatológica, considera estasolicitude pelo homem, pela sua humanidade epelo futuro dos homens sobre a face da terra e,por consequência, pela orientação de todo o

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desenvolvimento e progresso, como um elementoessencial da sua missão, indissoluvelmente ligadocom ela. E o princípio de uma tal solicitudeencontra-o a mesma Igreja no próprio JesusCristo, como testemunham os Evangelhos. E épor isso mesmo que ela deseja acrescê-lacontinuamente n'Ele, ao reler a situação dohomem no mundo contemporâneo, segundo osmais importantes sinais do nosso tempo.

16. Progresso ou ameaça ?Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da

nossa geração, o tempo que se vai aproximandodo fim do segundo Milénio da nossa era cristã, senos manifesta como um tempo de grandeprogresso, ele apresenta-se também como umtempo de multiforme ameaça contra o homem,da qual a Igreja deve falar a todos os homens deboa vontade e sobre a qual ela deveconstantemente dialogar com eles. A situação dohomem no mundo contemporâneo, de facto,parece estar longe das exigências objectivas daordem moral, assim como das exigências dajustiça e, mais ainda, do amor social. Não se trataaqui senão daquilo que teve a sua expressão naprimeira mensagem do Criador dirigida aohomem no momento em que lhe dava a terra,para que ele a « dominasse ».100 Esta primeiramensagem de Deus foi confirmada depois, no

100 Gn 1, 28 ; Conc. Vat. II, Decr. Inter mirifica, 6 : AAS 56 (1964) 147 ;Const. past. Gaudium et spes, 74, 78 : AAS 58 (1966) 1095s ; 1101 s.

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mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foiexpresso pelo II Concílio do Vaticano naquelesbelíssimos capítulos do seu ensino que dizemrespeito à « realeza » do homem, isto é, à suavocação para participar na função real – o« munus regale » – do mesmo Cristo.101 O sentidoessencial desta « realeza » e deste « domínio » dohomem sobre o mundo visível, que lhe foiconfiado como tarefa pelo próprio Criador,consiste na prioridade da ética sobre a técnica, noprimado da pessoa sobre as coisas e nasuperioridade do espírito sobre a matéria.

É por isso mesmo que é necessárioacompanhar atentamente todas as fases doprogresso hodierno : é preciso, por assim dizer,fazer a radiografia de cada uma das suas etapasexactamente deste ponto de vista. Está em causao desenvolvimento da pessoa e não apenas amultiplicação das coisas, das quais as pessoaspodem servir-se. Trata-se – como disse umfilósofo contemporâneo e como afirmou oConcílio – não tanto de « ter mais », quanto de« ser mais ».102 Com efeito, existe já um real eperceptível perigo de que, enquanto progrideenormemente o domínio do homem sobre omundo das coisas, ele perca os fios essenciais

101 Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 10 ; 36 : AAS 57 (1965) 14-15 ; 41-42.102 Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 35 : AAS (1966) 1053 ;Paulo VI, Discurso ao Corpo Diplomático, 7 de janeiro de 1965 : AAS 57(1965) 232 ; Enc. Populorum progressio, 14 : AAS 59 (1967) 264.

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deste seu domínio e, de diversas maneiras,submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio setorne objecto de multiforme manipulação, se bemque muitas vezes não directamente perceptível ;manipulação através de toda a organização davida comunitária, mediante o sistema deprodução e por meio de pressões dos meios decomunicação social. O homem não poderenunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhecompete no mundo visível ; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemaseconómicos, escravo da produção e escravo dosseus próprios produtos. Uma civilização de feiçãopuramente materialista condena o homem a talescravidão, embora algumas vezes,indubitavelmente, isso aconteça contra asintenções e as mesmas premissas dos seuspioneiros. Na raiz da actual solicitude pelohomem está sem dúvida alguma este problema. Enão é questão aqui somente de dar uma respostaabstracta à pergunta : quem é o homem ; mastrata-se de todo o dinamismo da vida e dacivilização. Trata-se do sentido das váriasiniciativas da vida quotidiana e, ao mesmo tempo,das premissas para numerosos programas decivilização, programas políticos, económicos,sociais, estatais e muitos outros.

Se nós ousamos definir a situação do homemcontemporâneo como estando longe dasexigências objectivas da ordem moral, longe das

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exigências da justiça e, ainda mais, do amor social,é porque isto é confirmado por factos bemconhecidos e por confrontos que se podem fazere que, por mais de uma vez, já tiveramressonância directa nas páginas das enunciaçõespontifícias, conciliares e sinodais.103 A situação dohomem na nossa época não é certamenteuniforme, mas sim diferenciada de múltiplasmaneiras. Estas diferenças têm as suas causashistóricas, mas também têm uma forteressonância ética. É assaz conhecido, de facto, oquadro da civilização consumística, que consiste

103 Cf. Pio XII, Radiomensagem para o 50º aniversário da Encícl. « Rerumnovarum » de Leão XIII (1 de junho de 1941) : AAS 33 (1941 ) 195-205 ;Radiomensagem de Natal (24 de de dezembro de 1941) : AAS 34 (1942) 10-21 ; Radiomensagem de Natal (24 de dezembro de 1942) : AAS 35 (1943) 9-24 ; Radiomensagem de Natal (24 de dezembro de 1943) : AAS 36 (1944)1124 ; Radiomensagem de Natal (24 de dezembro de 1944) : AAS 37 (1945)10-23 ; Discurso aos Cardeais (24 de dezembro de 1946) : AAS 39 (1947) 7-17 ; Radiomensagem de Natal (24 de de dezembro de 1947) : AAS 40 (1948)8-16 ; João XXIII, Enc. Mater et Magistra : AAS 53 (1961 ) 401-464 ; Enc.Pacem in terris : AAS 55 (1963) 257-304 ; Paulo VI, Enc. Ecclesiam suam :AAS 56 (1964) 609-659 ; Discurso à Assembleia das Nações Unidas (4 deoutubro de 1965) : AAS 57 (1965) 877-885 ; Populorum progressio : AAS 59(1967) 257-299 ; Discurso aos camponeses colombianos (23 de agosto de 1968) :AAS 60 (1968) 619-623 ; Discurso à Assembleia Geral do Latino-Americano (24de agosto de 1968) : AAS 60 (1968) 639-649 ; Discurso à Conferência daFAO (16 de novembro de 1970) : AAS 62 (1970) 830-838 ; Carta apost.Octogesima adveniens : AAS 63 (1971) 401-441 ; Discurso aos Cardeais (23 dejunho de 1972) : AAS 64 (1972) 496-505 ; João Paulo II, Discurso à IIIConferência Geral do Episcopado Latino-Americano (28 de janeiro de 1979) :AAS 71 (1979) 187ss ; Discurso aos índios de Cuilapán (29 de janeiro de1979) : l.c., p.207ss ; Discurso aos operários de Guadalajara (30 de janeiro de1979) : l.c., p.221ss ; Discurso aos operários de Monterrey (31 de janeiro de1979) : l.c., p.240ss ; Conc. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae : AAS 58 (1966)929-941 ; Const. past. Gaudium et spes : AAS 58 (1966) 1025-1115 :Documenta Synodi Episcoporum, De iustitia in mundo : AAS 63 (1971 )923-941.

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num certo excesso de bens necessários aohomem e a sociedades inteiras – e aqui trata-seexactamente das sociedades ricas e muitodesenvolvidas – enquanto que as restantessociedades, ao menos largos estratos destas,sofrem a fome, e muitas pessoas morremdiariamente por desnutrição ou inédia.Simultaneamente sucede que se dá por parte deuns um certo abuso da liberdade, que está ligadoprecisamente a um modo de comportar-seconsumístico, não controlado pela ética,enquanto isso limita contemporâneamente aliberdade dos outros, isto é, daqueles que sofremnotórias carências e se vêem empurrados paracondições de ulterior miséria e indigência.

Este confronto, universalmente conhecido, eo contraste a que dedicaram a sua atenção, nosdocumentos do seu magistério, os SumosPontífices do nosso século, mais recentementeJoão XXIII assim como Paulo VI,104 representamcomo que um gigantesco desenvolvimento daparábola bíblica do rico avarento e do pobreLázaro.105

A amplitude do fenómeno põe em questão asestruturas e os mecanismos financeiros,monetários, produtivos e comerciais, que,

104 Cf. João XXIII, Enc. Mater et Magistra : AAS 53 (1961 ) 418ss ; Enc.Pacem in terris : AAS 55 (1963) 289ss ; Paulo VI, Enc. Populorum progressio :AAS 59 (1967) 257-299.105 Cf. Lc 16,19-31.

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apoiando-se em diversas pressões políticas, regema economia mundial : eles demonstram-se comoque incapazes quer para reabsorver as situaçõessociais injustas, herdadas do passado, quer parafazer face aos desafios urgentes e às exigênciaséticas do presente. Submetendo o homem àstensões por ele mesmo criadas, dilapidando, comum ritmo acelerado, os recursos materiais eenergéticos e comprometendo o ambientegeofísico, tais estruturas dão azo a que seestendam incessantemente as zonas de miséria e,junto com esta, a angústia, a frustração e aamargura.106

Encontramo-nos aqui perante o grandedrama, que não pode deixar ninguém indiferente.O sujeito que, por um lado, procura auferir omáximo proveito, bem como aquele que, poroutro lado, paga as consequências dos danos edas injúrias, é sempre o homem. E tal drama éainda mais exacerbado pela proximidade com osestratos sociais privilegiados e com os países daopulência, que acumulam os bens num grauexcessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezespor causa do abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto ajuntem-se a febre da inflação e apraga do desemprego : e eis outros sintomas detal desordem moral, que se faz sentir na situação

106 Cf. João Paulo II, Homilia em Santo Domingo, 3 : AAS 71 (1979) 157ss ;Discurso para os índios e os camponeses de Oaxaca, 2 : l.c., p.207ss ; Discurso aosoperários de Monterrey, 4 : l.c., p. 242.

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mundial e que exige por isso mesmo resoluçõesaudaciosas e criativas, conformes com a autênticadignidade do homem.107

Uma tal tarefa não é impossível de realizar. Oprincípio de solidariedade, em sentido lato, deveinspirar a busca eficaz de instituições e demecanismos apropriados : quer se trate do sectordos intercâmbios, em que é necessário deixar-seconduzir pelas leis de uma sã competição, quer setrate do plano de uma mais ampla e imediataredistribuição das riquezas e dos controlos sobreas mesmas, a fim de que os povos que seencontram em vias de desenvolvimentoeconómico possam, não apenas satisfazer às suasexigências essenciais, mas também progredirgradual e eficazmente.

Não será fácil avançar, porém, neste difícilcaminho, no caminho da indispensáveltransformação das estruturas da vida económica,se não intervier uma verdadeira conversão dasmentes, das vontades e dos corações. A tarefaexige a aplicação decidida de homens e de povoslivres e solidários. Com muita frequência seconfunde a liberdade com o instinto do interesseindividual e colectivo, ou ainda com o instinto deluta e de domínio, quaisquer que sejam as coresideológicas de que eles se revistam. E óbvio queesses instintos existem e operam ; mas não serápossível ter-se uma economia verdadeiramente107 Cf. Paulo VI, Carta apost. Octogesima adveniens, 42 : AAS 63 (1971 ) 431.

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humana, se eles não forem assumidos, orientadose dominados pelas forças mais profundas que seencontram no homem, e que são aquelas quedecidem da verdadeira cultura dos povos. E éprecisamente destas fontes que deve nascer oesforço, no qual se exprimirá a verdadeiraliberdade do homem, e que será capaz de aassegurar também no campo económico. Odesenvolvimento económico, conjuntamente comtudo aquilo que faz parte do seu modo próprio eadequado de funcionar, tem de serconstantemente programado e realizado dentrode uma perspectiva de desenvolvimento universale solidário dos homens tomados singularmente edos povos, conforme recordava de maneiraconvincente o meu Predecessor Paulo VI naEncíclica Populorum progressio. Sem isso, a simplescategoria do « progresso económico » torna-seuma categoria superior, que passa a subordinar oconjunto da existência humana às suas exigênciasparciais, sufoca o homem, desagrega associedades e acaba por desenvolver-se nas suaspróprias tensões e nos seus mesmos excessos.

É possível assumir este dever ; testemunham-no os factos certos e os resultados, que é difícilenumerar aqui de maneira mais pormenorizada. Euma coisa, contudo, é certa : na base deste campogigantesco é necessário estabelecer, aceitar eaprofundar o sentido da responsabilidade moral,que tem de assumir o homem. Ainda uma vez e

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sempre, o homem. Para nós cristãos uma talresponsabilidade torna-se particularmenteevidente, quando recordamos – e devemosrecordá-lo sempre – a cena do juízo final,segundo as palavras de Cristo, referidas noEvangelho de São Mateus.108

Essa cena escatológica tem de ser sempre« aplicada » à história do homem, deve ser sempretomada como « medida » dos actos humanos,como um esquema essencial de um exame deconsciência para cada um e para todos : « Tivefome e não Me destes de comer... ; estava nú enão Me vestistes... ; estava na prisão e não fostesvisitar-Me ».109 Estas palavras adquirem um maiorcunho de admoestação ainda, se pensamos que,em vez do pão e da ajuda cultural a novos estadose nações que estão a despertar para a vidaindependente, algumas vezes, se lhes oferecem,não raro com abundância, armas modernas emeios de destruição, postos ao serviço deconflitos armados e de guerras, que não são tantouma exigência da defesa dos seus justos direitos eda sua soberania, quanto sobretudo uma formade « chauvinismo », de imperialismo e de neo-colonialismo de vários géneros. Todos sabemosbem que as zonas de miséria ou de fome, queexistem no nosso globo, poderiam ser« fertilizadas » num breve espaço de tempo, se os

108 Cf. Mt 25,31-46.109 Mt 25,42.43.

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gigantescos investimentos para os armamentos,que servem para a guerra e para a destruição,tivessem sido em contrapartida convertidos eminvestimentos para a alimentação, que servempara a vida.

Esta consideração talvez permaneçaparcialmente « abstracta » ; talvez dê azo a uma eà outra « parte » para se acusar reciprocamente,esquecendo cada qual as próprias culpas ; talvezprovoque mesmo novas acusações contra aIgreja.

Esta, porém, não dispondo de outras armas,senão das do espírito, das armas da palavra e doamor, não pode renunciar a pregar a Palavra,insistindo oportuna e inoportunamente.110 Porisso, ela não cessa de solicitar a cada uma daspartes e de pedir a todos, em nome de Deus e emnome do homem : Não mateis ! Não prepareispara os homens destruições e extermínio ! Pensainos vossos irmãos que sofrem a fome e amiséria ! Respeitai a dignidade e a liberdade decada um !

17. Direitos do homem « letra » ou« espírito »

O nosso século tem sido até agora um séculode grandes calamidades para o homem, degrandes devastações, não só materiais, mastambém morais, ou melhor, talvez sobretudomorais. Não é fácil, certamente, comparar épocas110 2 Tim 4,2.

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e séculos sob este aspecto, uma vez que issodepende também dos critérios históricos quemudam. Não obstante, prescindido muitoembora de tais comparações, importa verificarque até agora este século foi um tempo em que oshomens prepararam para si mesmos muitasinjustiças e sofrimentos. Este processo terá sidodecididamente entravado ? Em qualquer hipótese,não se pode deixar de recordar aqui, com apreçoe com profunda esperança para o futuro, oesforço magnífico realizado para dar vida àOrganização das Nações Unidas, um esforço quetende para definir e estabelecer os objectivos einvioláveis direitos do homem, obrigando-se osEstados-membros reciprocamente a umaobservância rigorosa dos mesmos. Estecompromisso foi aceito e ratificado por quasetodos os Estados do nosso tempo ; e isto deveriaconstituir uma garantia para que os direitos dohomem se tornassem em todo o mundo, oprincípio fundamental do empenho em prol dobem do mesmo homem.

A Igreja não precisa de confirmar quanto esteproblema está intimamente ligado com a suamissão no mundo contemporâneo. Ele está, comefeito, nas mesmas bases da paz social einternacional, como declararam a este propósitoJoão XXIII, o II Concílio do Vaticano e depoisPaulo VI, com documentos pormenorizados. Emúltima análise, a paz reduz-se ao respeito dos

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direitos invioláveis do homem – « efeito da justiçaserá a paz » – ao passo que a guerra nasce daviolação destes direitos e acarreta consigo aindamais graves violações dos mesmos. Se os direitosdo homem são violados em tempo de paz, issotorna-se particularmente doloroso e, sob o pontode vista do progresso, representa umincompreensível fenómeno de luta contra ohomem, que não pode de maneira alguma pôr-sede acordo com qualquer programa que seautodefina « humanístico ». E qual seria oprograma social, económico, político e culturalque poderia renunciar a esta definição ? Nósnutrimos a convicção profunda de que não há nomundo de hoje nenhum programa em que, atémesmo sobre a plataforma de ideologias opostasquanto à concepção do mundo, não seja postosempre em primeiro lugar o homem.

Ora, se apesar de tais premissas, os direitosdo homem são violados de diversas maneiras, sena prática somos testemunhas dos campos deconcentração, da violência, da tortura, doterrorismo e de multíplices discriminações, istodeve de ser uma consequência de outraspremissas que minam, ou muitas vezes quaseanulam a eficácia das premissas humanísticasdaqueles programas e sistemas modernos. Entãoimpõe-se necessariamente o dever de submeter osmesmos programas a uma contínua revisão sob o

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ponto de vista dos objectivos e invioláveisdireitos do homem.

A Declaração destes direitos, juntamentecom a instituição da Organização das NaçõesUnidas, não tinham certamente apenas afinalidade de nos apartar das horríveisexperiências da última guerra mundial, mastambém a finalidade de criar uma base para umacontínua revisão dos programas, dos sistemas edos regimes, precisamente sob este fundamentalponto de vista, que é o bem do homem –digamos, da pessoa na comunidade – e que, qualfactor fundamental do bem comum, deveconstituir o critério essencial de todos osprogramas, sistemas e regimes. Caso contrário, avida humana, mesmo em tempo de paz, estácondenada a vários sofrimentos ; e, ao mesmotempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo,de neocolonialismo e de imperialismo, as quaisameaçam mesmo a convivência entre as nações.Na verdade, é um facto significativo econfirmado por mais de uma vez pelasexperiências da história, que a violação dosdireitos do homem anda coligada com a violaçãodos direitos da nação, com a qual o homem estáunido por ligames orgânicos, como que com umafamília maior.

Já desde a primeira metade deste século, noperíodo em que se estavam a desenvolver vários

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totalitarismos de estado, os quais – como se sabe– levaram à horrível catástrofe bélica, a Igrejahavia claramente delineado a sua posição defrontea estes regimes, que aparentemente agiam por umbem superior, qual é o bem do estado, enquantoque a história haveria de demonstrar que, pelocontrário, aquilo era apenas o bem de umdeterminado partido, que se tinha identificadocom o estado.111 Esses regimes, na realidade,haviam coarctado os direitos dos cidadãos,negando-lhes o reconhecimento daqueles direitosinvioláveis do homem que, pelos meados donosso século obtiveram a sua formulação noplano internacional. Ao compartilhar a alegria deuma tal conquista com todos os homens de boavontade, com todos os homens que amamverdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, cônsciade que a « letra » somente pode matar, ao passoque só « o espírito vivifica »,112 deve,conjuntamente com estes homens de boavontade, de contínuo perguntar se a Declaraçãodos direitos do homem e a aceitação da sua« letra » significam em toda a parte também arealização do seu « espírito ». Surgem,efectivamente, receios fundados de que muitofrequentemente estamos ainda longe de uma tal

111 Pio XI, Enc. Quadragesimo anno : AAS 23 (1931 ) 213 ; Enc. Nonabbiamo bisogno : AAS 23 (1931) 285-312 ; Enc. Divini Redemptoris : AAS 29(1937) 65-106 ; Enc. Mit brennender Sorge : AAS 29 (1937) 145-167 ; PioXII, Enc. Summi Pontificatus : AAS 31 (1934) 413-453.112 Cf. 2 Cor 3, 6.

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realização, e de que por vezes o espírito da vidasocial e pública se acha em dolorosa oposiçãocom a declarada « letra » dos direitos do homem.Este estado de coisas, gravoso para as respectivassociedades, tornaria aqueles que contribuem parao determinar particularmente responsáveis,perante essas sociedades e perante a história dohomem.

O sentido essencial do Estado, comocomunidade política, consiste nisto : que asociedade e, quem a compõe, o povo é soberanodo próprio destino. Um tal sentido não se tornauma realidade, se, em lugar do exercício do podercom a participação moral da sociedade ou dopovo, tivermos de assistir à imposição do poderpor parte de um determinado grupo a todos osoutros membros da mesma sociedade. Estascoisas são essenciais na nossa época, em que temcrescido enormemente a consciência social doshomens e, conjuntamente com ela, a necessidadede uma correcta participação dos cidadãos na vidapolítica da comunidade, tendo em conta as reaiscondições de cada povo e o necessário vigor daautoridade pública.113 Estes são, pois, osproblemas de primária importância sob o pontode vista do progresso do mesmo homem e dodesenvolvimento global da sua humanidade.

A Igreja sempre tem ensinado o dever de agirpelo bem comum ; e, procedendo assim, também113 Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 31 : AAS 58 (1966) 1050.

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educou bons cidadãos para cada um dos Estados.Além disso, ela sempre ensinou que o deverfundamental do poder é a solicitude pelo bemcomum da sociedade ; daqui dimanam os seusdireitos fundamentais. Em nome precisamentedestas premissas, respeitantes à ordem éticaobjectiva, os direitos do poder não podem serentendidos de outro modo que não seja sobre abase do respeito pelos direitos objectivos einvioláveis do homem. Aquele bem comum que aautoridade no Estado serve, será plenamenterealizado somente quando todos os cidadãosestiverem seguros dos seus direitos. Sem isto,chega-se ao descalabro da sociedade, à oposiçãodos cidadãos contra a autoridade, ou então a umasituação de opressão, de intimidação, de violência,ou de terrorismo, de que nos forneceramnumerosos exemplos os totalitarismos do nossoséculo. É assim que o princípio dos direitos dohomem afecta profundamente o sector da justiçasocial e se torna padrão para a sua fundamentalverificação na vida dos Organismos políticos.

Entre estes direitos insere-se, e justamente, odireito à liberdade religiosa ao lado do direito daliberdade de consciência. O II Concílio doVaticano considerou particularmente necessárioelaborar uma mais ampla Declaração sobre estetema. É o Documento que se intitula Dignitatishumanae,114 no qual foi expressa, não somente a114 Cf. AAS 58 (1966) 929-946.

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concepção teológica do problema, mas também aconcepção sob o ponto de vista do direitonatural, ou seja da posição « puramente humana »,em base àquelas premissas ditadas pela própriaexperiência do homem, pela razão e pelo sentidoda sua dignidade. Certamente, a limitação daliberdade religiosa das pessoas e das comunidadesnão é apenas uma sua dolorosa experiência, masatinge antes de mais nada a própria dignidade dohomem, independentemente da religiãoprofessada ou da concepção que elas tenham domundo. A limitação da liberdade religiosa e a suaviolação estão em contraste com a dignidade dohomem e com os seus direitos objectivos. ODocumento conciliar acima referido diz combastante clareza o que seja uma tal limitação eviolação da liberdade religiosa. Encontramo-nosem tal caso, sem dúvida alguma, perante umainjustiça radical em relação àquilo que éparticularmente profundo no homem e emrelação àquilo que é autenticamente humano.Com efeito, até mesmo os fenómenos daincredulidade, da a-religiosidade e do ateísmo,como fenómenos humanos, compreendem-sesomente em relação com o fenómeno de religiãoe da fé. É difícil, portanto, mesmo de um pontode vista « puramente humano », aceitar umaposição segundo a qual só o ateísmo tem direitode cidadania na vida pública e social, enquantoque os homens crentes, quase por príncipio, são

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apenas tolerados, ou então tratados comocidadãos de segunda categoria, e até mesmo – oque já tem sucedido – são totalmente privadosdos direitos de cidadania.

É necessário, embora com brevidade, tratartambém deste tema, porque ele realmente fazparte do complexo das situações do homem nomundo actual, e porque ele também está atestemunhar quanto esta situação estáprofundamente marcada por preconceitos e porinjustiças de vários géneros. Se me abstenho deentrar em pormenores neste campo precisamente,no qual me assistiria um especial direito e deverpara o fazer, isso é sobretudo porque, juntamentecom todos aqueles que sofrem os tormentos dadiscriminação e da perseguição por causa donome de Deus, sou guiado pela fé na forçaredentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto,em virtude de meu múnus, em nome de todos oshomens crentes do mundo inteiro, dirigir-meàqueles de quem, de alguma maneira, depende aorganização da vida social e pública, pedindo-lhesardentemente para respeitarem os direitos dareligião e da actividade da Igreja. Não se pedenenhum privilégio, mas o respeito de umelementar direito. A actuação deste direito é umdos fundamentais meios para se aquilatar doautêntico progresso do homem em todos osregimes, em todas as sociedades e em todos ossistemas ou ambientes.

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IV. A MISSÃO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM

18. A Igreja solicita pela vocação dohomem em Cristo

Esta vista de olhos, necessariamente sumária,da situação do homem no mundocontemporâneo, faz-nos voltar ainda mais osnossos pensamentos e corações para Jesus Cristo,para o mistério da Redenção, no qual o problemado homem se acha inscrito com uma especialforça de verdade e de amor. Se Cristo « se uniu decerto modo a cada homem »,115 a Igreja,penetrando no íntimo deste mistério, na sualinguagem rica e universal, está a viver tambémmais profundamente a própria natureza e missão.Não é em vão que o Apóstolo fala do Corpo deCristo, que é a Igreja.116 Se este Corpo Místico deCristo, depois, é Povo de Deus – como dirá porseu turno o II Concílio do Vaticano, baseando-seem toda a tradição bíblica e patrística – isto querdizer que todos os homens nele são penetradospor aquele sopro de vida que provém de Cristo.Deste modo, o voltar-se para o homem, voltar-separa os seus reais problemas, para as suasesperanças e sofrimentos, para as suas conquistase quedas, também faz com que a mesma Igrejacomo corpo, como organismo e como unidade

115 Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 22 : AAS 58 (1966) 1042.116 Cf. 1 Cor 6, 15 ; 11, 3 ; 12, 12s ; Ef 1, 22s ; 2, 15s ; 4, 4s ; 5, 30 ; Cl 1,18 ; 3, 15 ; Rm 12, 4s ; Gl 3, 28.

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social, perceba os mesmos impulsos divinos, asluzes e as forças do Espírito que provêm deCristo crucificado e ressuscitado ; e é por istoprecisamente que ela vive a sua vida. A Igreja nãotem outra vida fora daquela que lhe dá o seuEsposo e Senhor. De facto, precisamente porqueCristo no seu mistério de Redenção se uniu a ela,a Igreja deve estar fortemente unida com cada umdos homens.

Uma tal união de Cristo com o homem é emsi mesma um mistério, do qual nasce o « homemnovo », chamado a participar na vida de Deus,117

criado novamente em Cristo para a plenitude dagraça e da verdade.118 A união de Cristo com ohomem é a força e a nascente da força, segundo aincisiva expressão de São João no prólogo do seuEvangelho : « O Verbo deu-lhes o poder de setornarem filhos de Deus ».119 É esta força quetransforma interiormente o homem, qualprincípio de uma vida nova que não fenece nempassa, mas dura para a vida eterna.120 Esta vida,prometida e proporcionada a cada homem peloPai em Jesus Cristo, eterno e unigénito Filho,encarnado e nascido da Virgem Maria « ao chegara plenitude dos tempos »,121 é o complemento

117 2 Pd 1, 4.118 Cf. Ef 2, 10 ; Jo 1,14. 16.119 Jo 1, 12.120 Cf. Jo 4, 14.121 Cf. Gál 4.4.

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final da vocação do homem ; é, de algumamaneira, o cumprir-se daquele « destino » que,desde toda a eternidade, Deus lhe preparou. Este« destino divino » torna-se via, por sobre todos osenigmas, as incógnitas, as tortuosidades e ascurvas, do « destino humano » no mundotemporal. Se, de facto, tudo isto, não obstantetoda a riqueza da vida temporal, leva porinevitável necessidade à fronteira da morte e àmeta da destruição do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para além desta meta : « Eu sou aressurreição e a vida. Aquele que crê em Mim...não morrerá jamais ».122 Em Jesus Cristocrucificado, deposto no sepulcro e depoisressuscitado, « brilha para nós a esperança da felizressurreição... a promessa da imortalidadefutura »,123 em direcção à qual o homem caminha,através da morte do corpo, partilhando com tudoo que é creado e visível esta necessidade a queestá sujeita a matéria. Nós intentamos eprocuramos aprofundar cada vez mais alinguagem desta verdade que o Redentor dohomem encerrou na frase : « O espírito é quevivifica, a carne para nada serve ».124 Estaspalavras, malgrado as aparências, exprimem amais alta afirmação do homem : a afirmação docorpo, que o espírito vivifica !

122 Jo 11, 25s.123 Missal Romano, Prefácio dos defuntos I.124 Jo 6, 63.

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A Igreja vive esta realidade, vive destaverdade sobre o homem, o que lhe permitetranspor as fronteiras da temporaneidade e, aomesmo tempo, pensar com particular amor esolicitude em tudo aquilo que, nas dimensõesdesta temporaneidade, incide na vida do homem,na vida do espírito humano, onde se afirmaaquela inquietude perene, expressa nas palavrasde Santo Agostinho : « Fizestes-nos, Senhor, paraVós, e o nosso coração está inquieto, até que nãorepouse em Vós ».125 Nesta inquietude criativabate e pulsa aquilo que é mais profundamentehumano : a busca da verdade, a insaciávelnecessidade do bem, a fome da liberdade, anostalgia do belo e a voz da consciência. A Igreja,ao procurar ver o homem como que com « osolhos do próprio Cristo », torna-se cada vez maiscônscia de ser a guarda de um grande tesouro,que não lhe é lícito dissipar, mas que devecontinuamente aumentar. Com efeito, o SenhorJesus disse : « Quem não ajunta comigo,dispersa ».126 Aquele tesouro da humanidade,enriquecido do inefável mistério da filiaçãodivina,127 da graça de « adopção como filhos »128

no Unigénito Filho de Deus, mediante a qual

125 Confessiones, I, 1 : CSL 33, p. 1.126 Mt 12, 30.127 Cf. Jo 1, 12.128 Gál 4, 5.

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dizemos a Deus « Abbá, Pai »,129 é ao mesmotempo uma força potente que unifica a Igrejasobretudo por dentro e que dá sentido a toda asua actividade. Por tal força a Igreja une-se com oEspírito de Cristo, com aquele Espírito Santo queo Redentor havia prometido e que comunicacontinuamente, e cuja descida, revelada no dia doPentecostes, perdura sempre. Assim, no homemrevelam-se as forças do Espírito,130 os dons doEspírito,131 os frutos do Espírito Santo.132 E aIgreja do nosso tempo parece repetir cada vezcom maior fervor e com santa insistência :« Vinde, Espírito Santo ! ». Vinde ! Vinde ! « Lavaio que se apresenta sórdido ! Regai o que estáárido ! Sarai o que está ferido ! Abrandai o que érígido ! Aquecei o que está frígido ! Guiai o que seacha transviado ! ».133

Esta oração ao Espírito Santo, elevadaprecisamente com a intenção de obter o Espírito,é a resposta a todos os « materialismos » da nossaépoca. São estes que fazem nascer tantas formasde insaciabilidade do coração humano. Estasúplica faz-se ouvir de diversas partes e pareceque frutifica também de modos diversos. Poder-se-á dizer que, nesta súplica, a Igreja não está

129 Gál 4, 6 ; Rm 8, 15.130 130.Cf. Rm 15,13 ; 1 Cor 1,24.131 Cf. Is 11, 21 ; Hebr 2, 38.132 Cf. Gál 5, 22s.133 Missal Romano, sequência da Missa de Pentecostes.

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sozinha ? Sim, pode-se dizer, porque « anecessidade » daquilo que é espiritual é exprimidatambém por pessoas que se encontram fora dosconfins visíveis da Igreja.134 Ou não será istomesmo confirmado, talvez, por aquela verdadesobre a Igreja, posta em evidência com tantaperspicácia pelo recente Concílio na Constituiçãodogmática Lumen gentium, naquela passagem emque ensina ser a Igreja « sacramento, ou sinal, einstrumento da íntima união com Deus e daunidade de todo o género humano ? ».135

Esta invocação ao Espírito e pelo Espíritonão é outra coisa senão um constante introduzir-se na plena dimensão do mistério da Redenção,no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem,nos comunica sem cessar esse mesmo Espíritoque põe em nós os sentimentos do Filho e nosorienta para o Pai.136 É por isso que a Igreja danossa época – época particularmente faminta deEspírito, porque faminta de justiça, de paz, deamor, de bondade, de fortaleza, deresponsabilidade e de dignidade humana – deveconcentrar-se e reunir-se em torno de tal mistérioda Redenção, encontrando nele a luz e a forçaindispensáveis para a própria missão. Com efeito,se o homem – como dizíamos em precedência – éa via da vida quotidiana da Igreja, é preciso que a

134 Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 16 : AAS 57 (1965) 20.135 Ibid., 1 : l.c., p.5.136 Cf. Rm 8, 15 ; Gl 4,6.

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mesma Igreja esteja sempre consciente dadignidade da adopção divina que o homemalcança, em Cristo, pela graça do Espírito Santo,137

e da sua destinação à graça e à glória.138

Ao reflectir sempre de modo renovado sobretudo isto, e aceitando-o com uma fé cada vezmais consciente e com um amor cada vez maisfirme, a Igreja torna-se simultaneamente maisidónea para aquele serviço do homem, para oqual a chama Cristo Senhor, quando diz : « OFilho do homem... veio não para ser servido, maspara servir ».139 A Igreja exerce este seu ministério,participando na « tríplice função » que é própriado seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina,com o seu fundamento bíblico, foi posta emplena luz pelo II Concílio do Vaticano, comgrande vantagem para a vida da Igreja. Quando,de facto, nos tornamos conscientes dessaparticipação na tríplice missão de Cristo, no seutríplice múnus – sacerdotal, profético e real140 –simultânea e paralelamente tornamo-nos maisconscientes também daquilo que deve servir aIgreja toda, como sociedade e comunidade doPovo de Deus sobre a terra, compreendendo,

137 Cf. Rm 8, 15.138 Cf. Rm 8, 30.139 Mt 20, 28.140 Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 31-36 : AAS 57 (1965) 37-42.

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além disso, qual deva ser a participação de cadaum de nós nesta missão e neste serviço.

19. A Igreja responsável pela verdadeAssim, à luz da sagrada doutrina do II

Concílio do Vaticano, a Igreja aparece frente anós como sujeito social da responsabilidade pelaverdade divina. Ouçamos com profunda emoçãoo mesmo Cristo, quando diz : " A palavra que vósouvis não é minha, é do Pai, que me enviou ".141

Nesta afirmação do nosso Mestre, não se adverte,porventura, aquela responsabilidade pela verdaderevelada, que é « propriedade » do mesmo Deus,se até Ele, o « Filho unigénito » que vive « no seiodo Pai »,142 quando a transmite, como profeta ecomo mestre, sente necessidade de frisar bem queage em plena fidelidade à sua divina fonte ? Amesma fidelidade deve ser uma qualidadeconstitutiva da fé da Igreja, quer quando ela aprofessa, quer quando ela a ensina. A fé comoespecífica virtude sobrenatural infundida noespírito humano, faz-nos participantes noconhecimento de Deus, em resposta à sua Palavrarevelada. Por isso se exige que a Igreja, quandoprofessa e ensina a Fé esteja estritamenteaderente à verdade divina,143 e que a mesma Fé setraduza em comportamentos vividos de obséquio

141 Jo 14, 24.142 Jo 1, 18.143 Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 5, 10, 21 : AAS 58 (1966)819 ; 822 ; 827s.

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consentâneo à razão.144 O próprio Cristo,preocupado com esta fidelidade à verdade divina,prometeu à Igreja a particular assistência doEspírito da verdade, concedeu o dom dainfalibilidade145 àqueles a quem confiou omandato de transmitir tal verdade e de a ensinar146

– doutrina esta que já havia sido claramentedefinida pelo I Concílio do Vaticano147 e que,depois, foi repetida também pelo II Concílio doVaticano148 – e dotou ainda todo o Povo de Deusde um particular sentido da fé.149

Por consequência, tornámo-nos participantesde tal missão de Cristo profeta ; e, em virtude damesma missão e juntamente com Ele, servimos averdade divina na Igreja. A responsabilidade poresta verdade implica também amá-la e procurarobter a sua mais exacta compreensão, de maneiraa torná-la mais próxima de nós mesmos e dosoutros, com toda a sua força salvífica, com o seuesplendor e com a sua profundidade esimplicidade a um tempo. Este amor e estaaspiração por compreender a verdade devemandar juntos, como o estão a confirmar ashistórias pessoais dos Santos da Igreja. Eles eram

144 Conc. Vat. I, Const. dogm. Dei Filius, 3 ; Denz-Schönm., 3009.145 Cf. Conc. Vat. I, Const. dogm. Pastor aeternus : l.c.146 Cf. Mt 28, 19.147 Cf. Conc. Vat. I, Const. dogm. Pastor aeternus : l.c.148 Cf. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 18-27 : AAS 57 (1965)21-33.149 Ibid., 12, 35 : l.c., p.16-17 ; 40-41.

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os mais iluminados pela autêntica luz queesclarece a verdade divina e que aproxima amesma realidade de Deus, porque se acercavamdesta verdade com veneração e amor : amorsobretudo para com Cristo, Palavra viva daverdade divina e, ainda, amor para com a suaexpressão humana no Evangelho, na Tradição ena Teologia. De igual modo hoje são necessárias,antes de mais, tal compreensão e tal interpretaçãoda Palavra divina ; é necessária tal Teologia. ATeologia teve sempre e continua a ter uma grandeimportância, para que a Igreja, Povo de Deus,possa participar na missão profética de Cristo demaneira criadora e fecunda. Por isso, os teólogos,como servidores da verdade divina, dedicando osseus estudos e trabalhos a uma cada vez maispenetrante compreensão da mesma verdade, nãopodem nunca perder de vista o significado do seuserviço na Igreja, contido no conceito do« intellectus fidei » ou seja, da a inteligência dafé ». Este conceito funciona, por assim dizer, aum ritmo bilateral, segundo a expressão de SantoAgostinho : « intellege, ut credas - crede, utintellegas ».150 Depois, funciona de maneiracorrecta quando os mesmos teólogos procuramservir o Magistério confiado na Igreja aos Bispos,unidos pelo vínculo da comunhão hierárquicacom o Sucessor de Pedro, e, ainda, quando sepõem ao serviço da sua solicitude no ensino e na150 Cf. S. Agostinho, Sermo 43, 7-9 : PL 38, 257-258.

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pastoral, como também quando se põem aoserviço dos interesses apostólicos de todo o Povode Deus.

Como em épocas precedentes, também hoje– e talvez mais ainda – os teólogos e todos oshomens de ciência na Igreja são chamados aunirem a fé com a ciência e a sapiência, a fim decontribuírem para uma recíproca compenetraçãodas mesmas, como lemos na oração litúrgica damemória de Santo Alberto Magno, Doutor daIgreja. Este interesse ampliou-se enormementenos dias de hoje, dado o progresso da ciênciahumana, dos seus métodos e das suas conquistasno conhecimento do mundo e do homem. E istodiz respeito tanto às chamadas ciências exactas,quanto igualmente às ciências humanas, bemcomo à Filosofia, cujos ligames estreitos com aTeologia foram recordados pelo II ConcíliodoVaticano.151

Neste campo do conhecimento humano, quecontinuamente se alarga e a um tempo sediferencia, também a fé deve aprofundar-seconstantemente, tornando manifesta a dimensãodo mistério revelado e tendendo para acompreensão da verdade, que tem em Deus aúnica e suprema fonte. Se é lícito – e é até mesmopara desejar – que aquele trabalho imenso que

151 151.Cf. Conc. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 44.57.59.62 : AAS58 (1966) 1064s ; 1077ss ; 1079s ; 1082ss ; Decr. Optatam totius, 15 : AAS58 (1966) 722.

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está por fazer neste sentido tome emconsideração um certo pluralismo de métodos, taltrabalho, todavia, não pode afastar-se dafundamental unidade no ensino da Fé e da Moral,como finalidade que lhe é própria. Éindispensável, portanto, que haja uma estreitacolaboração da Teologia com o Magistério.Todos os teólogos devem estar particularmenteconscientes daquilo que Cristo exprimiu, quandodisse : « A palavra que vós ouvis não é minha, édo Pai, que me enviou ».152 Ninguém, porconseguinte, pode tratar a Teologia como que seela fosse uma simples colectânea dos própriosconceitos pessoais ; mas cada um deve ter aconsciência de permanecer em íntima união comaquela missão de ensinar a verdade, de que éresponsável a Igreja.

A participação no múnus profético dopróprio Cristo plasma a vida de toda a Igreja, nasua dimensão fundamental. Uma participaçãoparticular em tal múnus compete aos Pastores daIgreja, os quais ensinam e, continuamente e dediversos modos, anunciam e transmitem adoutrina da Fé e da Moral cristãs. Este ensino,quer sob o aspecto missionário quer sob oaspecto ordinário, contribui para congregar oPovo de Deus em torno de Cristo, prepara aparticipação na Eucaristia e indica as vias da vidasacramental. O Sínodo dos Bispos em 1977152 Jo 14, 24.

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dedicou uma atenção especial à catequese nomundo contemporâneo ; e o fruto amadurecidodas suas deliberações, experiências e sugestõesencontrará, dentro em breve, a sua expressão –em conformidade com a proposta dosparticipantes no mesmo Sínodo – numapropriado Documento pontifício. A catequeseconstitui, certamente, uma perene e ao mesmotempo fundamental forma de actividade da Igreja,na qual se manifesta o seu carisma profético :testemunho e ensino andam juntos. E se bem queaqui se fale em primeiro lugar dos Sacerdotes, nãose pode deixar de recordar também o grandenúmero de Religiosos e Religiosas que se dedicamà actividade catequística por amor do divinoMestre. E seria difícil, por fim, não mencionartantos e tantos Leigos que, nesta mesmaactividade, encontram a expressão da sua fé e dasua responsabilidade apostólica.

Além disso, é preciso procurar cada vez maisque as várias formas de catequese e os seusdiversos campos – a começar daquela formafundamental que é a catequese « familiar », isto é,a catequese dos pais em relação aos própriosfilhos – atestem a participação universal de todoo Povo de Deus no múnus profético do mesmoCristo. É necessário que, coligada a este facto, aresponsabilidade da Igreja pela verdade divinaseja cada vez mais, e de diversas maneiras,compartilhada por todos. E assim, o que é que

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diremos aqui dos especialistas das diversasdisciplinas, dos representantes das ciênciasnaturais e das letras, dos médicos, dos juristas,dos homens da arte e da técnica, e dos que sededicam ao ensino nos vários graus eespecializações ? Todos eles – como membros doPovo de Deus – têm a sua parte própria namissão profética de Cristo, no seu serviço àverdade divina, até só através do seu modohonesto de comportar-se em relação à verdade,seja qual for o campo a que ela pertença, aomesmo tempo que educam os outros na verdade,ou lhes ensinam a maturar no amor e na justiça.

Deste modo, portanto, o sentido deresponsabilidade pela verdade é um dosfundamentais pontos de encontro da Igreja comtodos e cada um dos homens ; e é igualmenteuma das fundamentais exigências, quedeterminam a vocação do homem na comunidadeda Igreja. A Igreja dos nossos tempos, guiadapelo sentido de responsabilidade pela verdade,deve perseverar na fidelidade à própria natureza, àqual pertence a missão profética que provém domesmo Cristo : « Assim como o Pai me enviou,também eu vos envio a vós... Recebei o EspíritoSanto ».153

20. Eucaristia e PenitênciaNo mistério da Redenção, isto é, da obra

salvífica realizada por Jesus Cristo, a Igreja153 Jo 20, 21s.

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participa no Evangelho do seu Mestre, nãoapenas mediante a fidelidade à Palavra e atravésdo serviço à verdade, mas igualmente mediante asubmissão, cheia de esperança e de amor, elaparticipa na força da sua acção redentora, que Eleexpressou e encerrou, de forma sacramental,sobretudo na Eucaristia.154 Esta é o centro e ovértice de toda a vida sacramental, por meio daqual todos os cristãos recebem a força salvífica daRedenção, a começar do mistério do Baptismo,no qual somos imergidos na morte de Cristo, paranos tornarmos participantes da suaRessurreição,155 como ensina o Apóstolo. A luzdesta doutrina, torna-se ainda mais clara a razãopela qual toda a vida sacramental da Igreja e decada cristão alcança o seu vértice e a sua plenitudeprecisamente na Eucaristia. Neste Sacramento, defacto, renova-se continuamente, por vontade deCristo, o mistério do sacrifício que Ele fez de simesmo ao Pai sobre o altar da Cruz ; sacrifícioque o Pai aceitou, retribuindo esta doação total deseu Filho, que se tornou « obediente até àmorte »,156 com a sua doação paterna ; ou seja,com o dom da vida nova imortal na ressurreição,porque o Pai é a primeira fonte e o doador davida desde o princípio. Essa vida nova, que

154 Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, 10 : AAS 56 (1964)102.155 Cf. Rm 6, 3ss.156 Flp 2, 8.

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implica a glorificação corporal de Cristocrucificado, tornou-se sinal eficaz do novo domoutorgado à humanidade, dom que é o EspíritoSanto, mediante o qual a vida divina, que o Paitem em si e concede ao Filho ter em si mesmo,157

é comunicada a todos os homens que estãounidos com Cristo.

A Eucaristia é o Sacramento mais perfeitodesta união. Ao celebrarmos e conjuntamente aoparticiparmos na Eucaristia, nós unimo-nos aCristo terrestre e celeste, que intercede por nósjunto do Pai ;158 mas unimo-nos sempre atravésdo acto redentor do seu sacrifício, por meio doqual Ele nos remiu, de modo que fomos« comprados por um preço elevado ».159 O « preçoelevado » da nossa redenção comprova tambémele o valor que o mesmo Deus atribui ao homem,comprova a nossa dignidade em Cristo.Realmente, tornando-nos « filhos de Deus »,160

filhos de adopção,161 à sua semelhança nóstornamo-nos ao mesmo tempo « reino desacerdotes », alcançamos o « sacerdócio real »,162

isto é, participamos naquela restituição única eirreversível do homem e do mundo ao Pai, que

157 Cf. Jo 5, 26 ; 1 Jo 5, 11.158 Hebr 9, 24 ; 1 Jo 2,1.159 1 Cor 6, 20.160 Jo 1, 12. 161 Cf. Rm 8, 23 ; 1 Pe 2, 9.162 1 Pd 5, 10.

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Ele, Filho eterno163 e ao mesmo tempo verdadeiroHomem, operou de uma vez para sempre. AEucaristia é o Sacramento no qual se exprimemais cabalmente o nosso novo ser, e no qual omesmo Cristo, incessantemente e sempre demaneira nova, « dá testemunho » no EspíritoSanto ao nosso espírito164 de que cada um de nós,enquanto participante no mistério da Redenção,tem acesso aos frutos da filial reconciliação comDeus,165 tal como Ele mesmo a actuou e continuasempre a actuar no meio de nós, mediante oministério da Igreja.

É uma verdade essencial, não só doutrinalmas também existencial, que a Eucaristia constróia Igreja ;166 e constrói-a como autênticacomunidade do Povo de Deus, como assembleiados féis, assinalada pelo mesmo carácter deunidade de que foram participantes os Apóstolose os primeiros discípulos do Senhor. A Eucaristiaconstrói renovando-a sempre esta comunidade eunidade ; constrói-a sempre e regenera-a sobre abase do sacrifício do mesmo Cristo, porquecomemora a sua morte na cruz,167 com o preço da163 Cf. Jo 1, 1-4.18 ; Mt 3, 17 ; 11, 27 ; 17, 5 ; Mc 1, 11 ; Lc 1, 32.35 ; 3, 22 ;Rm 1, 4 ; 2 Cor 1, 19 ; 1 Jo 5, 5.20 ; 2 Pd 1, 17 ; Hebr 1, 2.164 Cf. 1 Jo 5, 5-11.165 Cf. Rm 5, l0s ; 2 Cor 5, 18s ; Col 1, 20-22.166 Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 11 : AAS 57 (1965) 15s ;Paulo VI, Discurso de 15 de setembro de 1965 : Ensinamentos de Paulo VI, III(1965) 1036.167 Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, 47 : AAS 56 (1964)113.

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qual fomos por Ele remidos. Por isso, naEucaristia nós tocamos de certo modo o própriomistério do Corpo e do Sangue do Senhor, comoatestam as suas mesmas palavras no momento dainstituição, em virtude da qual tais palavras setornaram as palavras da perene celebração daEucaristia, por parte dos chamados a esteministério na Igreja.

A Igreja vive da Eucaristia, vive da plenitudedeste Sacramento, cujo maravilhoso conteúdo esignificado tiveram a sua expressão no Magistérioda Igreja, desde os tempos mais remotos até aosnossos dias.168 Contudo, podemos dizer comcerteza que este ensino – sustentado pelaperspicácia dos teólogos, pelos homens deprofunda fé e de oração e pelos ascetas emísticos, com toda a sua fidelidade ao mistérioeucarístico – permanece como que no limiar,sendo incapaz de captar e de traduzir em palavrasaquilo que é a Eucaristia em toda a sua plenitude,aquilo que ela exprime e aquilo que nela se actua.Ela é, de facto, o Sacramento inefável ! Oempenho essencial e, sobretudo, a graça visível efonte da força sobrenatural da Igreja como Povode Deus é o perseverar e o progredirconstantemente na vida eucarística e na piedadeeucarística, é o desenvolvimento espiritual noclima da Eucaristia. Com maior razão, portanto,não é lícito nem no pensamento, nem na vida,168 Cf. Paulo VI, Enc. Mysterium Fidei : AAS 57 (1965) 533-574.

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nem na acção tirar a este Sacramento,verdadeiramente santíssimo, a sua plenadimensão e o seu significado essencial. Ele é aomesmo tempo Sacramento-Sacrifício,Sacramento-Comunhão e Sacramento-Presença.Se bem que seja verdade que a Eucaristia foisempre e deve ser ainda agora a mais profundarevelação e celebração da fraternidade humanados discípulos e confessores de Cristo, ela nãopode ser considerada simplesmente como uma« ocasião » para se manifestar uma talfraternidade. No celebrar o Sacramento do Corpoe do Sangue do Senhor, é necessário respeitar aplena dimensão do mistério divino, o plenosentido deste sinal sacramental, em que Cristo,realmente presente, é recebido, a alma é repletade graça e é dado o penhor da glória futura.169

Daqui deriva o dever de uma rigorosaobservância das normas litúrgicas e de tudoaquilo que testemunha o culto comunitáriorendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele,neste sinal sacramental, Se nos entrega comconfiança ilimitada, como se não tivesse emconsideração a nossa fraqueza humana, a nossaindignidade, os nossos hábitos, a rotina, ou atémesmo a possibilidade de ultraje. Todos na Igreja,mas principalmente os Bispos e os Sacerdotes,devem vigiar por que este Sacramento de amor

169 Cf. Conc. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, 47 : AAS 56 (1964)113.

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esteja no centro da vida do Povo de Deus e porque, através de todas as manifestações do cultodevido, se proceda de molde a pagar « amor comamor » e a fazer com que Ele se torneverdadeiramente « a vida das nossas almas ».170

Nem poderemos, ainda, esquecer nunca asseguintes palavras de São Paulo : « Examine-se,pois, cada qual a si mesmo e, assim, coma destepão e beba deste cálice ».171

Esta exortação do Apóstolo indica, pelomenos indirectamente, o estreito ligame existenteentre a Eucaristia e a Penitência. Com efeito, se aprimeira palavra do ensino de Cristo, a primeirafrase do Evangelho-Boa Nova, foi « fazeipenitência e acreditai na Boa-Nova »(metanoèite),172 o Sacramento da Paixão, da Cruze Ressurreição parece reforçar e consolidar, demodo absolutamente especial, um tal convite àsnossas almas. A Eucaristia e a Penitência tornam-se assim, num certo sentido, uma dimensãodúplice e, a um tempo, intimamente conexa, daautêntica vida segundo o espírito do Evangelho,da vida verdadeiramente cristã. Cristo, queconvida para o banquete eucarístico, é sempre omesmo Cristo que exorta à penitência, que repeteo « convertei-vos ».173 Sem este constante e

170 Cf. Jo 6, 52.58 ; 14, 6 ; Gl 2,20.171 1 Cor 11, 28.172 Mc 1, 15.173 Ibid.

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sempre renovado esforço pela conversão, aparticipação na Eucaristia ficaria privada da suaplena eficácia redentora, falharia ou, de qualquermodo, ficaria enfraquecida nela aquela particulardisponibilidade para oferecer a Deus o sacrifícioespiritual,174 no qual se exprime de modo essenciale universal a nossa participação no sacerdócio deCristo. Em Cristo, de facto o sacerdócio estáunido com o próprio sacrifício, com a sua entregaao Pai ; e uma tal entrega, precisamente porque éilimitada, faz nascer em nós – homens sujeitos amultíplices limitações – a necessidade de nosvoltarmos para Deus, de uma forma cada vezmais amadurecida e com uma constanteconversão, cada vez mais profunda.

Nos últimos anos muito se fez para pôr emrealce – em conformidade, aliás, com a maisantiga tradição da Igreja – o aspecto comunitárioda penitência e, sobretudo, do sacramento daPenitência na prática da Igreja. Estas iniciativassão úteis e servirão certamente para enriquecer aprática penitencial da Igreja contemporânea. Nãopodemos esquecer, no entanto, que a conversão éum acto interior de uma profundidade particular,no qual o homem não pode ser substituído pelosoutros, não pode fazer-se « substituir » pelacomunidade. Muito embora a comunidadefraterna dos fiéis, participantes na celebraçãopenitencial, seja muito útil para o acto da174 Cf. 1 Pd 2, 5.

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conversão pessoal, todavia, definitivamente énecessário que neste acto se pronuncie o próprioindivíduo, com toda a profundidade da suaconsciência, com todo o sentido da suaculpabilidade e da sua confiança em Deus,pondo-se diante d'Ele, à semelhança do Salmista,para confessar : « Pequei contra vós ! ».175 AIgreja, pois, ao observar fielmente a plurissecularpráctica do Sacramento da Penitência – a práticada confissão individual, unida ao acto pessoal dearrependimento e ao propósito de se corrigir e desatisfazer – defende o direito particular da almahumana. É o direito a um encontro mais pessoaldo homem com Cristo crucificado que perdoa,com Cristo que diz, por meio do ministro dosacramento da Reconciliação : « São-te perdoadosos teus pecados » ;176 « Vai e doravante não tornesa pecar ».177 Como é evidente, isto é ao mesmotempo o direito do próprio Cristo em relação atodos e a cada um dos homens por Ele remidos.É o direito de encontrar-se com cada um de nósnaquele momento-chave da vida humana, que é omomento da conversão e do perdão. A Igreja, aomanter o sacramento da Penitência, afirmaexpressamente a sua fé no mistério da Redenção,como realidade viva e vivificante, quecorresponde à verdade interior do homem,

175 Sal 50 (51), 6.176 Mc 2, 5.177 Jo 8, 11.

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corresponde à humana culpabilidade e tambémaos desejos da consciência humana. « Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,porque serão saciados ».178 O sacramento daPenitência é o meio para saciar o homem comaquela justiça que provém do mesmo Redentor.

Na Igreja que, sobretudo nos nossos tempos,se reune especialmente em torno da Eucaristia edeseja que a autêntica comunidade eucarística setorne sinal da unidade de todos os cristãos,unidade esta que vai maturando gradualmente,deve estar viva a necessidade da penitência, querno seu aspecto sacramental,179 quer também noque respeita à penitência como virtude. Estesegundo aspecto foi expresso por Paulo VI naConstituição Apostólica Paenitemini.180 Uma dasobrigações da Igreja é o pôr em prática a doutrinaque aí se contém. Trata-se de matéria que deverá,certamente, ser ainda mais aprofundada por nós,em comum reflexão, e tornada objecto de muitasdecisões ulteriores, em espírito de colegialidadepastoral, com respeito pelas diversas tradiçõesrelacionadas com este ponto e pelas diversascircunstâncias da vida dos homens do nosso178 Mt 5,6.179 Cf. S. Congr. para a Doutrina da Fé, Normae pastorales circa absolutionemsacramentalem generali modo impertiendam : AAS 64 (1972) 510-514 ; Paulo VI,Discurso a um grupo de Bispos dos Estados Unidos de América, em visita « adliminam » (20 de abril de 1978) : AAS 70 (1978) 328-332 ; João Paulo II,Discurso a um grupo de Bispos do Canadá em visita « ad liminam » (17 denovembro de 1978) : AAS 71 (1979) 32-36.180 Cf. AAS 58 (1966) 177-198.

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tempo. Todavia, é certo que a Igreja do novoAdvento, a Igreja que se prepara continuamentepara a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igrejada Eucaristia e da Penitência. Somente com esteperfil espiritual da sua vitalidade e actividade, ela éa Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis(em estado de missão), conforme nos foi reveladoo rosto da mesma pelo II Concílio do Vaticano.

21. Vocação cristã : servir e reinarO II Concílio do Vaticano, ao elaborar a

partir dos próprios fundamentos a imagem daIgreja como Povo de Deus – mediante aindicação da tríplice missão do mesmo Cristo,participando na qual nós nos tornamosverdadeiramente Povo de Deus – pôs em realcetambém aquela característica da vocação cristãque se pode definir « real ». Para apresentar toda ariqueza da doutrina conciliar sobre isto, serianecessário fazer aqui referência a numerososcapítulos e parágrafos da Constituição Lumengentium, bem como a muitos outros Documentosconciliares. No meio de toda esta riqueza, porém,há um elemento que parece emergir : aparticipação na missão real de Cristo, isto é, ofacto de redescobrir em si e nos outros aquelaparticular dignidade da nossa vocação, que sepode designar por « realeza ». Uma tal dignidadeexprime-se na disponibilidade para servir,

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segundo o exemplo de Cristo, o qual « não veiopara ser servido, mas para servir ».181

Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, sepode verdadeiramente « reinar » somente« servindo », ao mesmo tempo este « servir » exigeuma tal maturidade espiritual, que se tem dedefiní-la precisamente como « reinar ». Para sepoder servir os outros digna e eficazmente, énecessário saber dominar-se a si mesmo, é precisopossuir as virtudes que tornam possível um taldomínio. A nossa participação na missão real deCristo – exactamente na sua « função real »( munus) – anda intimamente ligada com toda aesfera da moral cristã e também humana.

O II Concílio do Vaticano, ao apresentar oquadro completo do Povo de Deus, recordandoqual o lugar que nele ocupam, não apenas ossacerdotes, mas também os leigos, e não apenasos representantes da Hierarquia, mas também as eos representantes dos Institutos de vidaconsagrada, não deduziu essa imagem somente deuma premissa sociológica. A Igreja, enquantosociedade humana, pode sem dúvida alguma serexaminada e definida segundo aquelas categoriasde que se servem as ciências humanas. Mas taiscategorias não são suficientes. Para toda acomunidade do Povo de Deus e para cada umdos seus membros, não se trata somente de umespecífico « pertencer socialmente », mas181 Mt 20, 28.

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sobretudo é essencial, para cada um e para todos,uma particular « vocação » A Igreja, realmente,enquanto Povo de Deus – segundo a doutrinaacima aludida de São Paulo, recordada de modoadmirável por Pio XII – é também « CorpoMístico de Cristo ».182 O pertencer a tal « Corpo »deriva de um chamamento particular, junto com aacção salvífica da graça. Portanto, se quisermoster presente esta comunidade do Povo de Deus,tão vasta e sumamente diferenciada, devemosantes de mais ver Cristo, que diz, de um certomodo, a cada um dos membros desta mesmacomunidade : « Segue-me ».183 Esta é acomunidade dos discípulos, cada um dos quais,de maneira diversa, por vezes muito consciente ecoerentemente, e por vezes poucoconscientemente e muito incoerentemente, segueCristo. Nisto manifesta-se também o aspectoprofundamente « pessoal » e a dimensão destasociedade, a qual – não obstante todas asdeficiências da vida comunitária, no sentidohumano desta palavra – é uma comunidadeprecisamente pelo facto de que todos aconstituem juntamente com o mesmo Cristo, senão por outro motivo, ao menos porque têm nassuas almas o sinal indelével de quem é cristão.

O II Concílio do Vaticano aplicou umaatenção muito particular em demonstrar de que

182 Pio XII, Enc. Mystici Corporis : AAS 35 (1943) 193-248.183 Jo 1, 43.

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maneira esta comunidade « ontológica » dosdiscípulos e dos confessores se deve tornar cadavez mais, também « humanamente », umacomunidade consciente da própria vida eactividade. As iniciativas do Concílio quanto aisto encontraram a sua continuidade emnumerosas iniciativas ulteriores, de caráctersinodal, apostólico e organizativo. Devemos tersempre presente, no entanto, a verdade de quetoda e qualquer iniciativa em tanto serve parauma verdadeira renovação da Igreja e em tantocontribui para aportar a autêntica luz de Cristo,184

em quanto se baseia sobre uma adequadaconsciência da vocação e da responsabilidade poresta graça singular, única e que não se poderepetir, mediante a qual cada um dos cristãos nacomunidade do Povo de Deus edifica o Corpo deCristo. Este princípio, que é a regra-chave de todaa prática cristã – prática apostólica e pastoral, eprática da vida interior e da vida social – deve seraplicado, em proporção adequada, a todos oshomens e a cada um deles. Também o Papa,assim como todos os Bispos, o devem aplicar a simesmos. A este princípio devem igualmente serfiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas.Com base nele, ainda, devem construir a sua vidaos esposos, os pais, as mulheres e os homens decondições e de profissões diversas, a começar poraqueles que ocupam na sociedade os cargos mais184 Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1 : AAS 57 (1965) 5.

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elevados e a acabar por aqueles que fazem ostrabalhos mais simples. É este justamente oprincípio daquele « serviço real », que impõe acada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, odever de exigir de si próprio exactamente aquilopara que somos chamado, e a que – paracorresponder à vocação – nós nos obrigámospessoalmente, com a graça de Deus.

Uma tal fidelidade à vocação recebida deDeus, mediante Cristo, acarreta consigo aquelasolidária responsabilidade pela Igreja, para a qualo II Concílio do Vaticano desejou educar todosos cristãos. Na Igreja, de facto, enquanto nacomunidade do Povo de Deus, guiada pela acçãodo Espírito Santo, cada um possui « o própriodom », conforme ensina São Paulo.185 Este« dom », porém, embora seja uma vocaçãopessoal e uma forma também pessoal departicipação na obra salvífica da Igreja, serveigualmente para os outros e constrói a Igreja e ascomunidades fraternas nas várias esferas daexistência humana sobre a terra.

A fidelidade à vocação, ou seja, aperseverante disponibilidade para o « serviçoreal », tem um significado particular para estamultíplice construção, sobretudo pelo que serefere às tarefas mais compromissivas, as quaistêm maior influência na vida do nosso próximo ede toda a sociedade. Devem distinguir-se pela185 1 Cor 7, 7 ; cfr. 12, 7. 27 ; Rom 12, 6 ; Ef 4, 7.

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fidelidade à própria vocação os esposos, comoresulta da natureza indissolúvel da instituiçãosacramental do matrimónio. Devem distinguir-sepor uma análoga fidelidade à própria vocação ossacerdotes, dado o carácter indelével que osacramento da Ordem imprime nas suas almas.Ao receber este Sacramento, nós, na IgrejaLatina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no celibato ; e por isso, cada um denós deve fazer todo o possível, com a graça deDeus, por ser reconhecido por este dom e fiel aovínculo assumido para sempre. E isto nãodiversamente dos esposos : eles devem tender,com todas as suas forças, para perseverar naunião matrimonial, construindo com estetestemunho de amor a comunidade familiar eeducando as novas gerações de homens paraserem capazes de consagrar, também eles, toda asua vida à própria vocação, ou seja, àquele« serviço real » do qual nos foram dados oexemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo.

A Igreja de Cristo, que nós todos formamos,é « para os homens », no sentido de que,baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo186 ecolaborando com a graça que Ele nos obteve, nóspodemos atingir um tal « reinar », que o mesmo édizer, realizar uma maturada humanidade em cadaum de nós. Humanidade maturada significa pleno

186 Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 36 : AAS 57 (1965) 41s.

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uso do dom da liberdade, que recebemos doCriador, no momento em que Ele chamou àexistência o homem feito à sua imagem esemelhança. Este dom encontra a sua plenarealização na doação, sem reservas, de toda aprópria pessoa humana, em espírito de amoresponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todosaqueles aos quais Ele envia homens e mulheresque a Ele são totalmente consagrados segundo osconselhos evangélicos. Este é o ideal da vidareligiosa, assumido pelas Ordens e Congregações,tanto antigas como recentes, e pelos Institutosseculares.

Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se,erroneamente, que a liberdade é fim para simesma, que cada homem é livre na medida emque usa da liberdade como quer, e que para isto énecessário tender-se na vida dos indivíduos e dassociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é umgrande dom quando dela sabemos usarconscientemente, para tudo aquilo que é overdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor usoda liberdade é a caridade, que se realiza no dom eno serviço. Foi para tal liberdade « que Cristo noslibertou »187 e nos liberta sempre. A Igreja vaihaurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e oimpulso para a sua missão e para o seu serviço nomeio de todos os homens. A verdade plena sobrea liberdade humana acha-se profundamente187 Gál 5, 1 ; cfr. ibid 13.

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gravada no mistério da Redenção. A Igreja prestaverdadeiramente um serviço à humanidade,quando tutela esta verdade, com infatigávelaplicação, com amor ardente e com diligênciamaturada ; e, ainda, quando, em toda a própriacomunidade, através da fidelidade à vocação decada um dos cristãos, a mesma Igreja a transmitee a concretiza na vida humana. Deste modo éconfirmado aquilo a que já nos referimos emprecedência, isto é, que o homem é econtinuamente se torna a « via » da vidaquotidiana da Igreja.

22. A Mãe da nossa confiançaQuando no início do novo Pontificado dirijo

para o Redentor do mundo o meu pensamento eo meu coração, desejo deste modo entrar epenetrar no ritmo mais profundo da vida daIgreja. Com efeito, se a Igreja vive a sua própriavida, isso acontece porque ela a vai haurir emCristo, o qual deseja sempre uma só coisa, isto é,que nós tenhamos a vida e a tenhamosabundantemente.188 Aquela plenitude de vida queestá n'Ele é ao mesmo tempo destinada para ohomem. Por isso, a Igreja, ao unir-se a toda ariqueza do mistério da Redenção, torna-se Igrejados homens que vivem ; e vivem, porquevivificados do interior pela acção do « Espírito daVerdade »,189 e porque assistidos pelo amor que o

188 Cfr. Jn 10, 10.189 Jo 16, 13.

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Espírito Santo difunde nos nossos corações.190

Assim, o objectivo de qualquer serviço na Igreja,seja ele apostólico, pastoral, sacerdotal ouepiscopal, é o de manter este ligame dinâmico domistério da Redenção com todos e cada um doshomens.

Se estamos conscientes deste intento arealizar, então parece-nos compreender melhor oque significa dizer que a Igreja é mãe ;191 e, ainda,o que significa que a Igreja, sempre, mas de modoparticular nos nossos tempos, tem necessidade deuma Mãe. Devemos uma gratidão especial aosPadres do II Concílio do Vaticano, por teremexpresso esta verdade na Constituição Lumengentium, com a rica doutrina mariológica que nelase encerra.192 E dado que Paulo VI, inspirado poresta doutrina, proclamou a Mãe de Cristo « Mãeda Igreja »,193 e que tal denominação teve umaampla ressonância, seja permitido também ao seuindigno Sucessor dirigir-se a Maria como Mãe daIgreja, no final das presentes considerações, queera oportuno desenvolver no início do seuserviço pontifical.

190 Cfr. Rm 5, 5.191 Cfr Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 63-64 : AAS 57 (1965)64.192 Cfr. cap. VIII, 52-69 : AAS 57 (1965) 58-67.193 Paulo VI, Discurso no encerramento da III Sessão do Concílio EcuménicoVaticano II, 21 de novembro de 1964 : AAS 56 (1964) 1015.

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Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtudeda inefável eleição do mesmo Pai Eterno194 e soba particular acção do Espírito de Amor,195 Ela deua vida humana ao Filho de Deus, « do qualprocedem todas as coisas e para o qual vão todasas coisas »,196 e do qual assume a graça e adignidade da eleição todo o Povo de Deus. O seupróprio Filho quis explicitamente estender amaternidade de sua Mãe – e estendê-la de ummodo facilmente acessível a todas as almas e atodas os corações – apontando-lhe do alto daCruz como filho o seu discípulo predilecto.197 E oEspírito Santo sugeriu-lhe que permanecesse noCenáculo, após a Ascensão do Senhor, tambémEla, recolhida na oração e na expectativa,juntamente com os Apóstolos, até ao dia doPentecostes, quando devia visivelmente nascer aIgreja, saindo da obscuridade.198

E em seguida, todas as gerações de discípulose de quantos confessam e amam Cristo – àsemelhança do Apóstolo João – acolheramespiritualmente em sua casa199 esta Mãe, queassim, desde os mesmos primórdios, isto é, apartir do momento da Anunciação, foi inserida na

194 Cfr. Conc. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 56 : AAS 57 (1965) 60.195 Ibid.196 Hebr 2, 10.197 Cfr. Jo 19, 26.198 Cfr. Hebr 1, 14 ; 2.199 Cfr. Jo 19, 27.

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história da Salvação e na missão da Igreja. Nóstodos, portanto, os que formamos a geraçãohodierna dos discípulos de Cristo, desejamosunir-nos a Ela de modo particular. E fazemo-locom total aderência à tradição antiga e, ao mesmotempo, com pleno respeito e amor pelosmembros de todas as Comunidades cristãs.

Fazemo-lo, depois, impelidos por profundanecessidade da fé, da esperança e da caridade. Se,efectivamente, nesta fase difícil e cheia deresponsabilidade da história da Igreja e dahumanidade nós advertimos uma especialnecessidade de nos dirigir a Cristo, que é oSenhor da sua Igreja e o Senhor da história dohomem, em virtude do mistério da Redenção,estamos convencidos de que ninguém mais comoMaria poderá introduzir-nos na dimensão divina ehumana deste mistério. Ninguém como Maria foiintroduzido nele pelo próprio Deus. Nistoconsiste o carácter excepcional da graça daMaternidade divina. Não somente é única e algoque se não pode repetir a dignidade destaMaternidade na história do género humano, masúnica também pela profundidade e raio de acçãoé a participação de Maria no plano divino dasalvação do homem, através do mistério daRedenção.

Este mistério formou-se, podemos dizer, sobo coração da Virgem de Nazaré, quando Elapronunciou o seu « fiat » (faça-se). A partir

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daquele momento esse coração virginal e aomesmo tempo materno, sob a particular acção doEspírito Santo, acompanha sempre a obra do seuFilho e palpita na direcção de todos aqueles queCristo abraçou e abraça continuamente com o seuinexaurível amor. E, por isso mesmo, estecoração deve ser também maternalmenteinexaurível. A característica deste amor materno,que a Mãe de Deus insere no mistério daRedenção e na vida da Igreja, encontra a suaexpressão na sua singular proximidade em relaçãoao homem e a todos as suas vicissitudes. Nistoconsiste o mistério da Mãe. A Igreja, que A olhacom amor e esperança muito particular, desejaapropriar-se deste mistério de maneira cada vezmais profunda. Nisto, de facto, a mesma Igrejareconhece também a via da sua vida quotidiana,que é todo o homem, todos e cada um doshomens.

O eterno amor do Pai, manifestando-se nahistória da humanidade através do Filho que omesmo Pai deu « para que todo aquele que crên'Ele não pereça mas tenha a vida eterna »,200 esseamor aproxima-se de cada um de nós por meiodesta Mãe e, de tal modo, adquire sinaiscompreensíveis e acessíveis para cada homem.Por conseguinte, Maria deve encontrar-se emtodas as vias da vida quotidiana da Igreja.Mediante a sua maternal presença, a Igreja ganha200 Jo 3, 16.

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certeza de que vive verdadeiramente a vida do seuMestre e Senhor, de que vive o mistério daRedenção em toda a sua vivificante profundidadee plenitude. De igual modo, a mesma Igreja, quetem as suas raízes em numerosos e variadoscampos da vida de toda a humanidadecontemporânea, adquire também a certeza e, dir-se-ia, a experiência de estar bem próxima dohomem, de todos e de cada um dos homens, deque é a sua Igreja : Igreja do Povo de Deus.

Perante tais tarefas, que surgem ao longo dasvias da Igreja, ao longo daquelas vias que o PapaPaulo VI nos indicou claramente na primeiraEncíclica do seu Pontificado, nós, cônscios daabsoluta necessidade de todas estas vias e, aomesmo tempo, das dificuldade que sobre elas seamontoam, sentimos ainda mais ser-nosindispensável uma profunda ligação com Cristo.Ressoam em nós, como um eco sonoro, aspalavras que Ele disse : « Sem mim, nada podeisfazer ».201 E não só sentimos esta necessidade,mas ainda um imperativo categórico para umagrande, intensa e crescente oração de toda aIgreja. Somente a oração pode fazer com queestas grandes tarefas e dificuldades que se lhesseguem não se tornem fonte de crise, mas ocasiãoe como que fundamento para conquistas cada vezmais maturadas na caminhada do Povo de Deusem direcção à Terra Prometida, nesta etapa da201 Jo 15, 5.

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história que se vai aproximando do final dosegundo Milénio.

Portanto, ao terminar esta meditação, comuma calorosa e humilde exortação à oração,desejo que se persevere nesta oração unidos comMaria, Mãe de Jesus,202 assim como perseveraramos Apóstolos e discípulos do Senhor, após aAscensão, no Cenáculo de Jerusalém.203 E suplicoa Maria, celeste Mãe da Igreja, sobretudo, quenesta oração do novo Advento da humanidade,Ela se digne de perseverar connosco, queformamos a Igreja, isto é, o Corpo Místico do SeuFilho unigénito. Eu espero que, graças a taloração, nós possamos receber o Espírito Santoque desce sobre nós ;204 e, deste modo, tornar-nostestemunhas de Cristo « até às extremidades daterra »,205 como aqueles que saíram do Cenáculode Jerusalém no dia do Pentecostes.

Com a Bênção Apostólica.Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 4 de Março,

primeiro Domingo da Quaresma, do ano de 1979, primeiro do meuPontificado.

IOANNES PAULUS PP. II

202 Cfr. Hebr 1, 14.203 Cfr. Hebr 1, 13.204 Cfr. Hebr 1, 8.205 Ibid.

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