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CARTA ENCÍCLICA DEUS CARITAS EST DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS ÀS PESSOAS CONSAGRADAS E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS SOBRE O AMOR CRISTÃO INTRODUÇÃO 1. « Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele » (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: « Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem ». Nós cremos no amor de Deus deste modo pode o cristão exprimir a opção fundamental da sua vida. Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: « Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna » (3, 16). Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de fato, reza todos os dias com as palavras do Livro do Deuteronômio, nas quais sabe que está contido o centro da sua existência: « Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças » (6, 4-5). Jesus uniu fazendo deles um único preceito o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo, contido no Livro do Levítico: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo » (19, 18; cf. Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um « mandamento », mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós. Estão assim indicadas as duas grandes partes que compõem esta Carta, profundamente conexas entre elas. A primeira terá uma índole mais especulativa, pois desejo ao início do meu Pontificado especificar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com o nexo intrínseco daquele Amor com a realidade do amor humano. A segunda parte terá um caráter mais concreto, porque tratará da prática eclesial do mandamento do amor ao próximo. O argumento aparece demasiado amplo; uma longa explanação, porém, não entra no objetivo da presente

Carta Encíclica - Deus é Amor

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  • CARTA ENCCLICA

    DEUS CARITAS EST DO SUMO PONTFICE

    BENTO XVI

    AOS BISPOS

    AOS PRESBTEROS E AOS DICONOS

    S PESSOAS CONSAGRADAS

    E A TODOS OS FIIS LEIGOS

    SOBRE O AMOR CRISTO

    INTRODUO

    1. Deus amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele (1 Jo

    4, 16). Estas palavras da I Carta de Joo exprimem, com singular clareza, o centro da f

    crist: a imagem crist de Deus e tambm a consequente imagem do homem e do seu

    caminho. Alm disso, no mesmo versculo, Joo oferece-nos, por assim dizer, uma

    frmula sinttica da existncia crist: Ns conhecemos e cremos no amor que Deus

    nos tem .

    Ns cremos no amor de Deus deste modo pode o cristo exprimir a opo fundamental da sua vida. Ao incio do ser cristo, no h uma deciso tica ou uma

    grande idia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que d vida um

    novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, Joo tinha

    expressado este acontecimento com as palavras seguintes: Deus amou de tal modo o

    mundo que lhe deu o seu Filho nico para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida

    eterna (3, 16). Com a centralidade do amor, a f crist acolheu o ncleo da f de Israel

    e, ao mesmo tempo, deu a este ncleo uma nova profundidade e amplitude. O crente

    israelita, de fato, reza todos os dias com as palavras do Livro do Deuteronmio, nas

    quais sabe que est contido o centro da sua existncia: Escuta, Israel! O Senhor,

    nosso Deus, o nico Senhor! Amars ao Senhor, teu Deus, com todo o teu corao,

    com toda a tua alma e com todas as tuas foras (6, 4-5). Jesus uniu fazendo deles um nico preceito o mandamento do amor a Deus com o do amor ao prximo, contido no Livro do Levtico: Amars o teu prximo como a ti mesmo (19, 18; cf.

    Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor

    j no apenas um mandamento , mas a resposta ao dom do amor com que Deus

    vem ao nosso encontro.

    Num mundo em que ao nome de Deus se associa s vezes a vingana ou mesmo o dever

    do dio e da violncia, esta uma mensagem de grande atualidade e de significado

    muito concreto. Por isso, na minha primeira Encclica, desejo falar do amor com que

    Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por ns. Esto assim indicadas

    as duas grandes partes que compem esta Carta, profundamente conexas entre elas. A

    primeira ter uma ndole mais especulativa, pois desejo ao incio do meu Pontificado especificar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com o nexo intrnseco daquele Amor com a

    realidade do amor humano. A segunda parte ter um carter mais concreto, porque

    tratar da prtica eclesial do mandamento do amor ao prximo. O argumento aparece

    demasiado amplo; uma longa explanao, porm, no entra no objetivo da presente

  • Encclica. O meu desejo insistir sobre alguns elementos fundamentais, para deste

    modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento na resposta

    humana ao amor divino.

    I PARTE

    A UNIDADE DO AMOR NA CRIAO E NA HISTRIA DA SALVAO

    Um problema de linguagem

    2. O amor de Deus por ns questo fundamental para a vida e coloca questes

    decisivas sobre quem Deus e quem somos ns. A tal propsito, o primeiro obstculo

    que encontramos um problema de linguagem. O termo amor tornou-se hoje uma

    das palavras mais usadas e mesmo abusadas, qual associamos significados

    completamente diferentes. Embora o tema desta Encclica se concentre sobre a questo

    da compreenso e da prtica do amor na Sagrada Escritura e na Tradio da Igreja, no

    podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas vrias

    culturas e na linguagem atual.

    Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semntico da palavra amor : fala-se

    de amor da ptria, amor profisso, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre

    pais e filhos, entre irmos e familiares, amor ao prximo e amor a Deus. Em toda esta

    gama de significados, porm, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem

    indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que

    parece irresistvel, sobressai como arqutipo de amor por excelncia, de tal modo que,

    comparados com ele, primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge

    ento a questo: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor,

    apesar de toda a diversidade das suas manifestaes, em ltima instncia um s, ou, ao

    contrrio, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?

    Eros e gape diferena e unidade

    3. Ao amor entre homem e mulher, que no nasce da inteligncia e da vontade mas de

    certa forma impe-se ao ser humano, a Grcia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde

    j que o Antigo Testamento grego usa s duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo

    Testamento nunca a usa: das trs palavras gregas relacionadas com o amor eros, philia (amor de amizade) e gape os escritos neo-testamentrios privilegiam a ltima, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade

    (philia), este retomado com um significado mais profundo no Evangelho de Joo para

    exprimir a relao entre Jesus e os seus discpulos. A marginalizao da palavra eros,

    juntamente com a nova viso do amor que se exprime atravs da palavra gape, denota

    sem dvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e prprio relativamente

    compreenso do amor. Na crtica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com

    radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma

    absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno

    a beber ao eros, que, embora no tivesse morrido, da teria recebido o impulso para

    degenerar em vcio. Este filsofo alemo exprimia assim uma sensao muito

    generalizada: com os seus mandamentos e proibies, a Igreja no nos torna porventura

    amarga a coisa mais bela da vida? Porventura no assinala ela proibies precisamente

  • onde a alegria, preparada para ns pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz

    pressentir algo do Divino?

    4. Mas, ser mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o

    mundo pr-cristo. Os gregos alis, de forma anloga a outras culturas viram no eros sobretudo o inebriamento, a subjugao da razo por parte duma loucura divina

    que arranca o homem das limitaes da sua existncia e, neste estado de transtorno por

    uma fora divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. Deste modo, todas as

    outras foras quer no cu quer na terra resultam de importncia secundria: Omnia

    vincit amor o amor tudo vence , afirma Virglio nas Buclicas e acrescenta: et nos cedamus amori rendamo-nos tambm ns ao amor . Nas religies, esta posio traduziu-se nos cultos da fertilidade, aos quais pertence prostituio sagrada que

    prosperava em muitos templos. O eros foi, pois, celebrado como fora divina, como

    comunho com o Divino.

    A esta forma de religio, que contrasta como uma fortssima tentao com a f no nico

    Deus, o Antigo Testamento ops-se com a maior firmeza, combatendo-a como

    perverso da religiosidade. Ao faz-lo, porm, no rejeitou de modo algum o eros

    enquanto tal, mas declarou guerra sua subverso devastadora, porque a falsa

    divinizao do eros, como a se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De

    fato, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, no so

    tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para

    suscitar a loucura divina : na realidade, no so deusas, mas pessoas humanas de

    quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado no subida, xtase at

    ao Divino, mas queda, degradao do homem. Fica assim claro que o eros necessita de

    disciplina, de purificao para dar ao homem, no o prazer de um instante, mas uma

    certa amostra do vrtice da existncia, daquela beatitude para que tende todo o nosso

    ser.

    5. Dois dados resultam claramente desta rpida viso sobre a concepo do eros na

    histria e na atualidade. O primeiro que entre o amor e o Divino existe qualquer

    relao: o amor promete infinito, eternidade uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existncia. E o segundo que o caminho para tal meta

    no consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. So necessrias

    purificaes e amadurecimentos, que passam tambm pela estrada da renncia. Isto no

    rejeio do eros, no o seu envenenamento , mas a cura em ordem sua

    verdadeira grandeza.

    Isto depende primariamente da constituio do ser humano, que composto de corpo e

    alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em

    ntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando

    se consegue esta unificao. Se o homem aspira a ser somente esprito e quer rejeitar a

    carne como uma herana apenas animalesca, ento esprito e corpo perdem a sua

    dignidade. E se ele, por outro lado, renega o esprito e consequentemente considera a

    matria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza. O

    epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes com a saudao: Alma!

    . E Descartes replicava dizendo: Carne! . Mas, nem o esprito ama sozinho, nem

    o corpo: o homem, a pessoa, que ama como criatura unitria, de que fazem parte o

    corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade,

  • que o homem se torna plenamente ele prprio. S deste modo que o amor o eros pode amadurecer at sua verdadeira grandeza.

    Hoje no raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversrio da

    corporeidade; a realidade que sempre houve tendncias neste sentido. Mas o modo de

    exaltar o corpo, a que assistimos hoje, enganador. O eros degradado a puro sexo

    torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma coisa que se pode comprar e

    vender; antes, o prprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto

    no constitui propriamente uma grande afirmao do seu corpo. Pelo contrrio, agora

    considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar

    e explorar com proveito. Uma parte, alis, que ele no v como um mbito da sua

    liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente

    agradvel e incuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradao do corpo

    humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existncia,

    deixa de ser expresso viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado

    para o campo puramente biolgico. A aparente exaltao do corpo pode bem depressa

    converter-se em dio corporeidade. Ao contrrio, a f crist sempre considerou o

    homem como um ser uni-dual, em que esprito e matria se compenetram mutuamente,

    experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-

    nos elevar em xtase para o Divino, conduzir-nos para alm de ns prprios, mas

    por isso mesmo requer um caminho de ascese, renncias, purificaes e saneamentos.

    6. Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificao?

    Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e

    divina? Uma primeira indicao importante, podemos encontr-la no Cntico dos

    Cnticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos msticos. Segundo a

    interpretao hoje predominante, as poesias contidas neste livro so originalmente

    cnticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de npcias, na qual deviam

    exaltar o amor conjugal. Neste contexto, muito elucidativo o fato de, ao longo do

    livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o amor . Primeiro, aparece

    a palavra dodim , um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situao de

    procura indeterminada. Depois, esta palavra substituda por ahab , que, na verso

    grega do Antigo Testamento, traduzida pelo termo de som semelhante gape , que

    se tornou como vimos o termo caracterstico para a concepo bblica do amor. Em

    contraposio ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocbulo

    exprime a experincia do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro,

    superando assim o carter egosta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-

    se cuidado do outro e pelo outro. J no se busca a si prprio, no busca a imerso no

    inebriamento da felicidade; procura, ao invs, o bem do amado: torna-se renncia, est

    disposto ao sacrifcio, antes o procura.

    Faz parte da evoluo do amor para nveis mais altos, para as suas ntimas purificaes,

    que ele procure agora o carter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da

    exclusividade apenas esta nica pessoa e no sentido de ser para sempre . O amor compreende a totalidade da existncia em toda a sua dimenso, inclusive a

    temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o

    amor visa a eternidade. Sim, o amor xtase ; xtase, no no sentido de um instante

    de inebriamento, mas como caminho, como xodo permanente do eu fechado em si

    mesmo para a sua libertao no dom de si e, precisamente dessa forma, para o

    reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: Quem procurar

  • salvaguardar a vida, perd-la-, e quem a perder, conserv-la- (Lc 17, 33) disse Jesus; afirmao esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes (cf. Mt 10,

    39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim descreve Jesus o seu caminho pessoal,

    que O conduz, atravs da cruz, ressurreio: o caminho do gro de trigo que cai na

    terra e morre e assim d muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifcio pessoal e do

    amor que a alcana a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve tambm a essncia

    do amor e da existncia humana em geral.

    7. Inicialmente mais filosficas, as nossas reflexes sobre a essncia do amor

    conduziram-nos agora, pela sua dinmica interior, f bblica. Ao princpio, colocou-se

    o problema de saber se os vrios, ou melhor, opostos, significados da palavra amor

    subentenderiam no fundo uma certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados

    um ao lado do outro. Mas, acima de tudo, surgiu a questo seguinte: se a mensagem

    sobre o amor, que nos anunciada pela Bblia e pela Tradio da Igreja, teria algo a ver

    com a experincia humana comum do amor ou se, pelo contrrio, se opusesse a ela. A

    este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para

    significar o amor mundano e gape como expresso do amor fundado sobre a f e

    por ela plasmado. As duas concepes aparecem frequentemente contrapostas como

    amor ascendente e amor descendente . Existem outras classificaes afins como,

    por exemplo, a distino entre amor possessivo e amor oblativo (amor concupiscentiae

    amor benevolentiae), qual, s vezes, se acrescenta ainda o amor que procura o prprio interesse.

    No debate filosfico e teolgico, estas distines foram muitas vezes radicalizadas at

    ao ponto de as colocar em contraposio: tipicamente cristo seria o amor descendente,

    oblativo, ou seja, a gape; ao invs, a cultura no crist, especialmente a grega,

    caracterizar-se-ia pelo amor ascendente, ambicioso e possessivo, ou seja, pelo eros. Se

    se quisesse levar ao extremo esta anttese, a essncia do cristianismo terminaria

    desarticulada das relaes bsicas e vitais da existncia humana e constituiria um

    mundo independente, considerado talvez admirvel, mas decididamente separado do

    conjunto da existncia humana. Na realidade, eros e gape amor ascendente e amor descendente nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimenses, na nica realidade do

    amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja

    inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente fascinao pela grande promessa de felicidade depois, medida que se aproxima do outro, far-se- cada vez menos perguntas sobre si prprio, procurar sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se-

    cada vez mais dele, doar-se- e desejar existir para o outro. Assim se insere nele o

    momento da gape; caso contrrio, o eros decai e perde mesmo a sua prpria natureza.

    Por outro lado, o homem tambm no pode viver exclusivamente no amor oblativo,

    descendente. No pode limitar-se sempre a dar, deve tambm receber. Quem quer dar

    amor, deve ele mesmo receb-lo em dom. Certamente, o homem pode como nos diz o Senhor tornar-se uma fonte donde correm rios de gua viva (cf. Jo 7, 37-38); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte

    primeira e originria que Jesus Cristo, de cujo corao trespassado brota o amor de

    Deus (cf. Jo 19, 34).

    Os Padres viram simbolizada de vrias maneiras, na narrao da escada de Jacob, esta

    conexo indivisvel entre subida e descida, entre o eros que procura Deus e a gape que

    transmite o dom recebido. Naquele texto bblico refere-se que o patriarca Jacob num

  • sonho viu, assente na pedra que lhe servia de travesseiro, uma escada que chegava at

    ao cu, pela qual subiam e desciam os anjos de Deus (cf. Gn 28, 12; Jo 1, 51).

    Particularmente interessante a interpretao que d o Papa Gregrio Magno desta

    viso, na sua Regra pastoral. O bom pastor diz ele deve estar radicado na contemplao. De fato, s assim lhe ser possvel acolher de tal modo no seu ntimo as

    necessidades dos outros, que estas se tornem suas: per pietatis viscera in se

    infirmitatem caeterorum transferat . Neste contexto, So Gregrio alude a So Paulo

    que foi arrebatado para as alturas at aos maiores mistrios de Deus e precisamente

    desta forma, quando desce, capaz de fazer-se tudo para todos (cf. 2 Cor 12, 2-4; 1 Cor

    9, 22). Alm disso, indica o exemplo de Moiss que repetidamente entra na tenda

    sagrada, permanecendo em dilogo com Deus para poder assim, a partir de Deus, estar

    disposio do seu povo. Dentro [da tenda] arrebatado at s alturas mediante a

    contemplao, fora [da tenda] deixa-se encalar pelo peso dos que sofrem: Intus in

    contemplationem rapitur, foris infirmantium negotiis urgetur . 8. Encontramos, assim,

    uma primeira resposta, ainda bastante genrica, para as duas questes atrs expostas: no

    fundo, o amor uma nica realidade, embora com distintas dimenses; caso a caso,

    pode uma ou outra dimenso sobressair mais. Mas, quando as duas dimenses se

    separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma

    forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente tambm que a f bblica no constri

    um mundo paralelo ou um mundo contraposto quele fenmeno humano originrio que

    o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para

    purific-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimenses. Esta novidade da f

    bblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem

    de Deus e a imagem do homem.

    A novidade da f bblica

    9. Antes de qualquer coisa, temos a nova imagem de Deus. Nas culturas que circundam

    o mundo da Bblia, a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado, pouco

    clara e em si mesma contraditria. No itinerrio da f bblica, ao invs, vai-se tornando

    cada vez mais claro e unvoco aquilo que a orao fundamental de Israel, o Shema,

    resume nestas palavras: Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, o nico Senhor!

    (Dt 6, 4). Existe um nico Deus, que o Criador do cu e da terra, e por isso tambm

    o Deus de todos os homens. Dois fatos se singularizam neste esclarecimento: que

    verdadeiramente todos os outros deuses no so Deus e que toda a realidade onde

    vivemos se deve a Deus, criada por Ele. Certamente a idia de uma criao existe

    tambm alhures, mas s aqui aparece perfeitamente claro que no um deus qualquer,

    mas o nico Deus verdadeiro, Ele mesmo, o autor de toda a realidade; esta provm da

    fora da sua Palavra criadora. Isto significa que esta sua criatura Lhe querida,

    precisamente porque foi desejada por Ele mesmo, foi feita por Ele. E assim aparece

    agora o segundo elemento importante: este Deus ama o homem. A fora divina que

    Aristteles, no auge da filosofia grega, procurou individuar mediante a reflexo,

    certamente para cada ser objeto do desejo e do amor como realidade amada esta divindade move o mundo , mas ela mesma no necessita de nada e no ama, somente amada. Ao contrrio, o nico Deus em que Israel cr, ama pessoalmente. Alm

    disso, o seu amor um amor de eleio: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-

    o mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dvida como eros, que no entanto

    totalmente gape tambm.

  • Sobretudo os profetas Oseas e Ezequiel descreveram esta paixo de Deus pelo seu

    povo, com arrojadas imagens erticas. A relao de Deus com Israel ilustrada atravs

    das metforas do noivado e do matrimnio; consequentemente, a idolatria adultrio e

    prostituio. Assim, se alude concretamente como vimos aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros, mas ao mesmo tempo descrita tambm a relao de

    fidelidade entre Israel e o seu Deus. A histria de amor de Deus com Israel consiste, na

    sua profundidade, no fato de que Ele d a Torah, isto , abre os olhos a Israel sobre a

    verdadeira natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por seu

    lado, o homem, vivendo na fidelidade ao nico Deus, sente-se a si prprio como aquele

    que amado por Deus e descobre a alegria na verdade, na justia a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial: Quem terei eu nos cus? Alm de Vs, nada

    mais anseio sobre a terra (...). O meu bem estar perto de Deus (Sal 73/72, 25.28).

    10. O eros de Deus pelo homem como dissemos ao mesmo tempo totalmente gape. E no s porque dado de maneira totalmente gratuita, sem mrito algum

    precedente, mas tambm porque amor que perdoa. Sobretudo Oseas mostra-nos a

    dimenso da gape no amor de Deus pelo homem, que supera largamente o aspecto da

    gratuidade. Israel cometeu adultrio , rompeu a Aliana; Deus deveria julg-lo e

    repudi-lo. Mas precisamente aqui se revela que Deus Deus, e no homem: Como te

    abandonarei, Efraim? Entregar-te-ei, Israel? O meu corao d voltas dentro de

    mim, comove-se a minha compaixo. No desafogarei o furor da minha clera, no

    destruirei Efraim; porque sou Deus e no um homem, sou Santo no meio de ti (Os 11,

    8-9). O amor apaixonado de Deus pelo seu povo pelo homem ao mesmo tempo um amor que perdoa. E to grande, que chega a virar Deus contra Si prprio, o seu

    amor contra a sua justia. Nisto, o cristo v j esboar-se veladamente o mistrio da

    Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele prprio homem, segue-o at

    morte e, deste modo, reconcilia justia e amor.

    O aspecto filosfico e histrico-religioso saliente nesta viso da Bblia o fato de, por

    um lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafsica de Deus:

    Deus absolutamente a fonte originria de todo o ser; mas este princpio criador de

    todas as coisas o Logos, a razo primordial , ao mesmo tempo, um amante com toda a paixo de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros enobrecido ao mximo, mas

    simultaneamente to purificado que se funde com a gape. Daqui podemos

    compreender por que a recepo do Cntico dos Cnticos no cnone da Sagrada

    Escritura tenha sido bem cedo explicada no sentido de que aqueles cnticos de amor, no

    fundo, descreviam a relao de Deus com o homem e do homem com Deus. E, assim, o

    referido livro tornou-se, tanto na literatura crist como na judaica, uma fonte de

    conhecimento e de experincia mstica em que se exprime a essncia da f bblica: na

    verdade, existe uma unificao do homem com Deus o sonho originrio do homem , mas esta unificao no confundir-se, um afundar no oceano annimo do Divino; unidade que cria amor, na qual ambos Deus e o homem permanecem eles mesmos, mas tornando-se plenamente uma coisa s: Aquele, porm, que se une ao

    Senhor constitui, com Ele, um s esprito diz So Paulo (1 Cor 6, 17).

    11. Como vimos, a primeira novidade da f bblica consiste na imagem de Deus; a

    segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narrao

    bblica da criao fala da solido do primeiro homem, Ado, querendo Deus pr a seu

    lado um auxlio. Dentre todas as criaturas, nenhuma pde ser para o homem aquela

    ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a

  • todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Ento, de uma costela do

    homem, Deus plasma a mulher. Agora Ado encontra a ajuda de que necessita: Esta ,

    realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2, 23). Na base desta

    narrao, possvel entrever concepes semelhantes s que aparecem, por exemplo, no

    mito referido por Plato, segundo o qual o homem originariamente era esfrico, porque

    completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punio pela sua soberba, foi

    dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade

    e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade. Na narrao bblica, no se

    fala de punio; porm, a idia de que o homem de algum modo esteja incompleto,

    constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua

    totalidade, isto , a idia de que, s na comunho com o outro sexo, possa tornar-se

    completo , est sem dvida presente. E, deste modo, a narrao bblica conclui com

    uma profecia sobre Ado: Por este motivo, o homem deixar o pai e a me para se

    unir sua mulher; e os dois sero uma s carne (Gn 2, 24).

    Aqui h dois aspectos importantes: primeiro, o eros est de certo modo enraizado na

    prpria natureza do homem; Ado anda procura e deixa o pai e a me para

    encontrar a mulher; s no seu conjunto que representam a totalidade humana, tornam-

    se uma s carne . No menos importante o segundo aspecto: numa orientao

    baseada na criao, o eros impele o homem ao matrimnio, a uma ligao caracterizada

    pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, que se realiza a sua

    finalidade ntima. imagem do Deus monotesta corresponde o matrimnio

    monogmico. O matrimnio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o cone

    do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-

    se a medida do amor humano. Esta estreita ligao entre eros e matrimnio na Bblia

    quase no encontra paralelos literrios fora da mesma.

    Jesus Cristo o amor encarnado de Deus

    12. Apesar de termos falado at agora prevalentemente do Antigo Testamento, j se

    deixou clara a ntima compenetrao dos dois Testamentos como nica Escritura da f

    crist. A verdadeira novidade do Novo Testamento no reside em novas idias, mas na

    prpria figura de Cristo, que d carne e sangue aos conceitos um incrvel realismo. J no Antigo Testamento a novidade bblica no consistia simplesmente em noes

    abstratas, mas na ao imprevisvel e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta ao de

    Deus ganha agora a sua forma dramtica devido ao fato de que, em Jesus Cristo, o

    prprio Deus vai atrs da ovelha perdida , a humanidade sofredora e transviada.

    Quando Jesus fala, nas suas parbolas, do pastor que vai atrs da ovelha perdida, da

    mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho prdigo e o abraa,

    no se trata apenas de palavras, mas constituem a explicao do seu prprio ser e agir.

    Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si prprio, com o qual

    Ele Se entrega para levantar o homem e salv-lo o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala Joo (cf. 19, 37), compreende o que

    serviu de ponto de partida a esta Carta Encclica: Deus amor (1 Jo 4, 8). l que

    esta verdade pode ser contemplada. E comeando de l, pretende-se agora definir em

    que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristo encontra o caminho do seu viver e

    amar.

    13. Jesus deu a este ato de oferta uma presena duradoura atravs da instituio da

    Eucaristia durante a ltima Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreio entregando-Se j

  • naquela hora aos seus discpulos, no po e no vinho, a Si prprio, ao seu corpo e sangue

    como novo man (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o

    verdadeiro alimento do homem aquilo de que este vive enquanto homem era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para

    ns como amor. A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. No s de modo esttico que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinmica da sua

    doao. A imagem do matrimnio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo

    anteriormente inconcebvel: o que era um estar na presena de Deus torna-se agora,

    atravs da participao na doao de Jesus, comunho no seu corpo e sangue, torna-se

    unio. A mstica do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus at ns, de

    um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mstica elevao do

    homem poderia realizar.

    14. Temos agora de prestar ateno a outro aspecto: a mstica do Sacramento tem

    um carter social, porque, na comunho sacramental, eu fico unido ao Senhor como

    todos os demais comungantes: Uma vez que h um s po, ns, embora sendo muitos,

    formamos um s corpo, porque todos participamos do mesmo po diz So Paulo (1 Cor 10, 17). A unio com Cristo , ao mesmo tempo, unio com todos os outros aos

    quais Ele Se entrega. Eu no posso ter Cristo s para mim; posso pertencer-Lhe somente

    unido a todos aqueles que se tornaram ou tornaro Seus. A comunho tira-me para fora

    de mim mesmo projetando-me para Ele e, deste modo, tambm para a unio com todos

    os cristos. Tornamo-nos um s corpo , fundidos todos numa nica existncia. O

    amor a Deus e o amor ao prximo esto agora verdadeiramente juntos: o Deus

    encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que o termo gape se tenha

    tornado tambm um nome da Eucaristia: nesta a gape de Deus vem corporalmente a

    ns, para continuar a sua ao em ns e atravs de ns. S a partir desta fundamentao

    cristolgico-sacramental que se pode entender corretamente o ensinamento de Jesus

    sobre o amor. A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao duplo

    mandamento do amor a Deus e ao prximo, a derivao de toda a vida de f da

    centralidade deste preceito no uma simples moral que possa, depois, subsistir

    autonomamente ao lado da f em Cristo e da sua re-atualizao no Sacramento: f, culto

    e ethos compenetram-se mutuamente como uma nica realidade que se configura no

    encontro com a gape de Deus. Aqui, a habitual contraposio entre culto e tica

    simplesmente desaparece. No prprio culto , na comunho eucarstica, est contido o

    ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que no se traduza em amor

    concretamente vivido, em si mesma fragmentria. Por outro lado como adiante havemos de considerar de modo mais detalhado o mandamento do amor s se torna possvel porque no mera exigncia: o amor pode ser mandado , porque antes

    nos dado.

    15. a partir deste princpio que devem ser entendidas tambm as grandes parbolas de

    Jesus. O rico avarento (cf. Lc 16, 19-31) implora, do lugar do suplcio, que os seus

    irmos sejam informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre

    que passava necessidade. Jesus recolhe, por assim dizer, aquele grito de socorro e

    repete-o para nos acautelar e reconduzir ao bom caminho. A parbola do bom

    Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o

    conceito de prximo , at ento, se referia essencialmente aos concidados e aos

    estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, comunidade

    solidria de um pas e de um povo, agora este limite abolido. Qualquer um que

    necessite de mim e eu possa ajud-lo, o meu prximo. O conceito de prximo fica

  • universalizado, sem deixar, todavia de ser concreto. Apesar da sua extenso a todos os

    homens, no se reduz expresso de um amor genrico e abstrato, em si mesmo pouco

    comprometedor, mas requer o meu empenho prtico aqui e agora. Continua a ser tarefa

    da Igreja interpretar sempre de novo esta ligao entre distante e prximo na vida

    prtica dos seus membros. preciso, enfim, recordar de modo particular a grande

    parbola do Juzo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critrio para a deciso

    definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os

    necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. Sempre

    que fizestes isto a um destes meus irmos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes

    (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao prximo fundem-se num todo: no mais pequenino,

    encontramos o prprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus.

    Amor a Deus e amor ao prximo

    16. Depois de termos refletido sobre a essncia do amor e o seu significado na f

    bblica, resta uma dupla pergunta a propsito do nosso comportamento. A primeira:

    realmente possvel amar a Deus, mesmo sem O ver? E a outra: o amor pode ser

    mandado? Contra o duplo mandamento do amor, existe uma dupla objeo que se faz

    sentir nestas perguntas: ningum jamais viu a Deus como poderemos am-Lo? Mais: o amor no pode ser mandado; , em definitivo, um sentimento que pode existir ou no,

    mas no pode ser criado pela vontade. A Escritura parece dar o seu aval primeira

    objeo, quando afirma: Se algum disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu irmo,

    mentiroso, pois quem no ama a seu irmo ao qual v, como pode amar a Deus, que no

    v? (1 Jo 4, 20). Este texto, porm, no exclui de modo algum o amor de Deus como

    algo impossvel; pelo contrrio, em todo o contexto da I Carta de Joo agora citada, tal

    amor explicitamente requerido. Nela se destaca o nexo indivisvel entre o amor a Deus

    e o amor ao prximo: um exige to estreitamente o outro que a afirmao do amor a

    Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao prximo ou, inclusive, o odiar. O

    citado versculo joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao

    prximo uma estrada para encontrar tambm a Deus, e que o fechar os olhos diante do

    prximo tornam cegos tambm diante de Deus.

    17. Com efeito, ningum jamais viu a Deus tal como Ele em Si mesmo. E, contudo,

    Deus no nos totalmente invisvel, no se deixou ficar pura e simplesmente

    inacessvel a ns. Deus amou-nos primeiro diz a Carta de Joo citada (cf. 4, 10) e este amor de Deus apareceu no meio de ns, fez-se visvel quando Ele enviou o seu

    Filho unignito ao mundo, para que, por Ele, vivamos (1 Jo 4, 9). Deus fez-Se visvel:

    em Jesus, podemos ver o Pai (cf. Jo 14, 9). Existe, com efeito, uma mltipla visibilidade

    de Deus. Na histria de amor que a Bblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro,

    procura conquistar-nos at a ltima Ceia, at ao Corao trespassado na cruz, at s aparies do Ressuscitado e s grandes obras pelas quais Ele, atravs da ao dos

    Apstolos, guiou o caminho da Igreja nascente. Tambm na sucessiva histria da Igreja,

    o Senhor no esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, atravs de

    homens nos quais Ele Se revela; atravs da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente

    na Eucaristia. Na liturgia da Igreja, na sua orao, na comunidade viva dos crentes, ns

    experimentamos o amor de Deus, sentimos a sua presena e aprendemos deste modo

    tambm a reconhec-la na nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a

    ser o primeiro a amar-nos; por isso, tambm ns podemos responder com o amor. Deus

    no nos ordena um sentimento que no possamos suscitar em ns prprios. Ele ama-

  • nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta antecipao de Deus pode, como

    resposta, despontar tambm em ns o amor.

    No desenrolar deste encontro, revela-se com clareza que o amor no apenas um

    sentimento. Os sentimentos vo e vm. O sentimento pode ser uma maravilhosa

    centelha inicial, mas no a totalidade do amor. Ao incio, falamos do processo das

    purificaes e amadurecimentos, pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo, se

    torna amor no significado cabal da palavra. prprio da maturidade do amor abranger

    todas as potencialidades do homem e incluir, por assim dizer, o homem na sua

    totalidade. O encontro com as manifestaes visveis do amor de Deus pode suscitar em

    ns o sentimento da alegria, que nasce da experincia de ser amados. Tal encontro,

    porm, chama em causa tambm a nossa vontade e o nosso intelecto. O reconhecimento

    do Deus vivo um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade d'Ele une intelecto,

    vontade e sentimento no ato globalizante do amor. Mas isto um processo que

    permanece continuamente em caminho: o amor nunca est concludo e completado;

    transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si

    prprio. Idem velle atque idem nolle querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa , segundo os antigos, o autntico contedo do amor: um tornar-se semelhante ao outro,

    que leva unio do querer e do pensar. A histria do amor entre Deus e o homem

    consiste precisamente no fato de que esta comunho de vontade cresce em comunho de

    pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem

    cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me

    impem de fora os mandamentos, mas a minha prpria vontade, baseada na

    experincia de que realmente Deus mais ntimo a mim mesmo de quanto o seja eu

    prprio. Cresce ento o abandono em Deus, e Deus torna-Se a nossa alegria (cf. Sal

    73/72, 23-28).

    18. Revela-se, assim, como possvel o amor ao prximo no sentido enunciado por Jesus,

    na Bblia. Consiste precisamente no fato de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa

    que no me agrada ou que nem conheo sequer. Isto s possvel realizar-se a partir do

    encontro ntimo com Deus, um encontro que se tornou comunho de vontade, chegando

    mesmo a tocar o sentimento. Ento aprendo a ver aquela pessoa j no somente com os

    meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O seu amigo

    meu amigo. Para alm do aspecto exterior do outro, dou-me conta da sua expectativa

    interior de um gesto de amor, de ateno, que eu no lhe fao chegar somente atravs

    das organizaes que disso se ocupam, aceitando-o talvez por necessidade poltica. Eu

    vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao outro muito mais do que as coisas

    externamente necessrias: posso dar-lhe o olhar de amor de que ele precisa. Aqui se v a

    interao que necessria entre o amor a Deus e o amor ao prximo, de que fala com

    tanta insistncia a I Carta de Joo. Se na minha vida falta totalmente o contacto com

    Deus, posso ver no outro sempre e apenas o outro e no consigo reconhecer nele a

    imagem divina. Mas, se na minha vida negligencio completamente a ateno ao outro,

    importando-me apenas com ser piedoso e cumprir os meus deveres religiosos ,

    ento definha tambm a relao com Deus. Neste caso, trata-se duma relao correta

    , mas sem amor. S a minha disponibilidade para ir ao encontro do prximo e

    demonstrar-lhe amor que me torna sensvel tambm diante de Deus. S o servio ao

    prximo que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo

    como Ele me ama. Os Santos pensemos, por exemplo, na Beata Teresa de Calcut hauriram a sua capacidade de amar o prximo, de modo sempre renovado, do seu

    encontro com o Senhor eucarstico e, vice-versa, este encontro ganhou o seu realismo e

  • profundidade precisamente no servio deles aos outros. Amor a Deus e amor ao

    prximo so inseparveis, constituem um nico mandamento. Mas, ambos vivem do

    amor preveniente com que Deus nos amou primeiro. Deste modo, j no se trata de um

    mandamento que do exterior nos impe o impossvel, mas de uma experincia do

    amor proporcionada do interior, um amor que, por sua natureza, deve ser ulteriormente

    comunicado aos outros. O amor cresce atravs do amor. O amor divino , porque

    vem de Deus e nos une a Deus, e, atravs deste processo unificador, transforma-nos em

    um Ns, que supera as nossas divises e nos faz ser um s, at que, no fim, Deus seja

    tudo em todos (1 Cor 15, 28).

    II PARTE

    CARITAS A PRTICA DO AMOR PELA IGREJA ENQUANTO COMUNIDADE DE AMOR

    A caridade da Igreja como manifestao do amor trinitrio

    19. Se vs a caridade, vs a Trindade escrevia Santo Agostinho. Ao longo das reflexes anteriores, pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf. Jo 19, 37; Zc 12,

    10), reconhecendo o desgnio do Pai que, movido pelo amor (cf. Jo 3, 16), enviou o

    Filho unignito ao mundo para redimir o homem. Quando morreu na cruz, Jesus como indica o evangelista entregou o Esprito (cf. Jo 19, 30), preldio daquele dom do Esprito Santo que Ele havia de realizar depois da ressurreio (cf. Jo 20, 22).

    Desde modo, se atuaria a promessa dos rios de gua viva que, graas efuso do

    Esprito, haviam de emanar do corao dos crentes (cf. Jo 7, 38-39). De fato, o Esprito

    aquela fora interior que harmoniza seus coraes com o corao de Cristo e leva-os a

    amar os irmos como Ele os amou, quando Se inclinou para lavar os ps dos discpulos

    (cf. Jo 13, 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida por todos (cf. Jo 13, 1; 15, 13).

    O Esprito tambm fora que transforma o corao da comunidade eclesial, para ser,

    no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma nica

    famlia, em seu Filho. Toda a atividade da Igreja manifestao dum amor que procura

    o bem integral do homem: procura a sua evangelizao por meio da Palavra e dos

    Sacramentos, empreendimento este muitas vezes herico nas suas realizaes histricas;

    e procura a sua promoo nos vrios mbitos da vida e da atividade humana. Portanto,

    amor o servio que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e s

    necessidades, mesmo materiais, dos homens. sobre este aspecto, sobre este servio da

    caridade, que desejo deter-me nesta segunda parte da Encclica.

    A caridade como dever da Igreja

    20. O amor do prximo, radicado no amor de Deus, um dever antes de mais para cada

    um dos fiis, mas -o tambm para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus

    nveis: desde a comunidade local passando pela Igreja particular at Igreja universal

    na sua globalidade. A Igreja tambm enquanto comunidade deve praticar o amor.

    Consequncia disto que o amor tem necessidade tambm de organizao enquanto

    pressuposto para um servio comunitrio ordenado. A conscincia de tal dever teve

    relevncia constitutiva na Igreja desde os seus incios: Todos os crentes viviam unidos

    e possuam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuam o dinheiro por

    todos de acordo com as necessidades de cada um (At 2, 44-45). Lucas conta-nos isto

  • no quadro duma espcie de definio da Igreja, entre cujos elementos constitutivos

    enumera a adeso ao ensino dos Apstolos , comunho (koinonia), frao

    do po e s oraes (cf. At 2, 42). O elemento da comunho (koinonia), que

    aqui ao incio no especificado, aparece depois concretizado nos versculos

    anteriormente citados: consiste precisamente no fato de os crentes terem tudo em

    comum, pelo que, no seu meio, j no subsiste a diferena entre ricos e pobres (cf.

    tambm At 4, 32-37). Com o crescimento da Igreja, esta forma radical de comunho

    material verdade se diga no pde ser mantida. Mas o ncleo essencial ficou: no seio da comunidade dos crentes no deve haver uma forma de pobreza tal que sejam

    negados a algum os bens necessrios para uma vida condigna.

    21. Um passo decisivo na difcil busca de solues para realizar este princpio eclesial

    fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o incio do ofcio

    diaconal (cf. At 6, 5-6). De fato, na Igreja primitiva tinha-se gerado, na distribuio

    quotidiana s vivas, uma disparidade entre a parte de lngua hebraica e a de lngua

    grega. Os Apstolos, a quem estavam confiados antes de mais a orao (Eucaristia e

    Liturgia) e o servio da Palavra , sentiram-se excessivamente carregados pelo

    servio das mesas ; decidiram, por isso, reservar para eles o ministrio principal e criar

    para a outra manso, tambm ela necessria na Igreja, um organismo de sete pessoas.

    Mas este grupo no devia realizar um servio meramente tcnico de distribuio:

    deviam ser homens cheios do Esprito Santo e de sabedoria (cf. At 6, 1-6). Quer

    dizer que o servio social que tinham de cumprir era concreto sem dvida alguma, mas

    ao mesmo tempo era tambm um servio espiritual; tratava-se, na verdade, de um ofcio

    verdadeiramente espiritual, que realizava um dever essencial da Igreja, o do amor bem

    ordenado ao prximo. Com a formao deste organismo dos Sete, a diaconia o servio do amor ao prximo exercido comunitariamente e de modo ordenado ficara instaurada na estrutura fundamental da prpria Igreja.

    22. Com o passar dos anos e a progressiva difuso da Igreja, a prtica da caridade

    confirmou-se como um dos seus mbitos essenciais, juntamente com a administrao

    dos Sacramentos e o anncio da Palavra: praticar o amor para com as vivas e os rfos,

    os presos, os doentes e necessitados de qualquer gnero pertence tanto sua essncia

    como o servio dos Sacramentos e o anncio do Evangelho. A Igreja no pode descurar

    o servio da caridade, tal como no pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra.

    Para o demonstrar, bastam alguns exemplos. O mrtir Justino ( por 155), no contexto da celebrao dominical dos cristos, descreve tambm a sua atividade caritativa

    relacionada com a Eucaristia enquanto tal. As pessoas abastadas fazem a sua oferta na

    medida das suas possibilidades, cada uma o que quer; o Bispo serve-se disso para

    sustentar os rfos, as vivas e aqueles que por doena ou outros motivos passam

    necessidade, e tambm os presos e os forasteiros. O grande escritor cristo Tertuliano ( depois de 220) conta como a solicitude dos cristos pelos necessitados de qualquer

    gnero suscitava a admirao dos pagos. E, quando Incio de Antioquia ( por 117) designa a Igreja de Roma como aquela que preside caridade (gape) , pode-se

    supor que ele quisesse, com tal definio, exprimir de qualquer modo tambm a sua

    atividade caritativa concreta.

    23. Neste contexto, pode revelar-se til uma referncia s estruturas jurdicas primitivas

    que tinham a ver com o servio da caridade na Igreja. A meados do sculo IV ganha

    forma no Egito a chamada diaconia , que , nos diversos mosteiros, a instituio

    responsvel pelo conjunto das atividades assistenciais, pelo servio precisamente da

  • caridade. A partir destes incios, desenvolve-se at ao sculo VI no Egito uma

    corporao com plena capacidade jurdica, qual as autoridades civis confiam mesmo

    uma parte do trigo para a distribuio pblica. No Egito, no s cada mosteiro, mas

    tambm cada diocese acabou por ter a sua diaconia uma instituio que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente. O Papa Gregrio Magno ( 604) fala da diaconia de Npoles. Relativamente a Roma, as diaconias so documentadas a partir

    dos sculos VII e VIII; mas naturalmente j antes, e logo desde os primrdios, a

    atividade assistencial aos pobres e doentes, segundo os princpios da vida crist

    expostos nos Atos dos Apstolos, era parte essencial da Igreja de Roma. Este dever

    encontra uma sua viva expresso na figura do dicono Loureno ( 258). A dramtica descrio do seu martrio era j conhecida por Santo Ambrsio ( 397) e, no seu ncleo, mostra-nos seguramente a figura autntica do Santo. Aps a priso dos seus irmos na

    f e do Papa, a ele, como responsvel pelo cuidado dos pobres de Roma, fora concedido

    mais algum tempo de liberdade, para recolher os tesouros da Igreja e entreg-los s

    autoridades civis. Loureno distribuiu o dinheiro disponvel pelos pobres e, depois,

    apresentou estes s autoridades como sendo o verdadeiro tesouro da Igreja.

    Independentemente da credibilidade histrica que se queira atribuir a tais particulares,

    Loureno ficou presente na memria da Igreja como grande expoente da caridade

    eclesial.

    24. Uma aluso merece a figura do imperador Juliano o Apstata ( 363), porque demonstra uma vez mais quo essencial era para a Igreja dos primeiros sculos a

    caridade organizada e praticada. Criana de seis anos, Juliano assistira ao assassnio de

    seu pai, de seu irmo e doutros familiares pelas guardas do palcio imperial; esta

    brutalidade atribuiu-a ele com razo ou sem ela ao imperador Constncio, que se fazia passar por um grande cristo. Em consequncia disso, a f crist acabou

    desacreditada a seus olhos uma vez por todas. Feito imperador, decide restaurar o

    paganismo, a antiga religio romana, mas ao mesmo tempo reform-lo para se tornar

    realmente a fora propulsora do imprio. Para isso, inspirou-se largamente no

    cristianismo. Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes. Estes deviam

    promover o amor a Deus e ao prximo. Numa das suas cartas, escrevera que o nico

    aspecto do cristianismo que o maravilhava era a atividade caritativa da Igreja. Por isso,

    considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir, a par do sistema de

    caridade da Igreja, uma atividade equivalente na sua religio. Os Galileus dizia ele tinham conquistado assim a sua popularidade. Havia que imit-los, seno mesmo super-los. Deste modo, o imperador confirmava que a caridade era uma caracterstica

    decisiva da comunidade crist, da Igreja.

    25. Chegados aqui, registremos dois dados essenciais tirados das reflexes feitas:

    a) A natureza ntima da Igreja exprime-se num trplice dever: anncio da Palavra de

    Deus (kerygma-martyria), celebrao dos Sacramentos (liturgia), servio da caridade

    (diakonia). So deveres que se reclamam mutuamente, no podendo um ser separado

    dos outros. Para a Igreja, a caridade no uma espcie de atividade de assistncia social

    que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence sua natureza, expresso

    irrenuncivel da sua prpria essncia.

    b) A Igreja a famlia de Deus no mundo. Nesta famlia, no deve haver ningum que

    sofra por falta do necessrio. Ao mesmo tempo, porm, a caritas-gape estende-se para

    alm das fronteiras da Igreja; a parbola do bom Samaritano permanece como critrio

  • de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado

    encontrado por acaso (cf. Lc 10, 31), seja ele quem for. Mas, ressalvada esta

    universalidade do mandamento do amor, existe tambm uma exigncia especificamente

    eclesial precisamente a exigncia de que, na prpria Igreja enquanto famlia, nenhum membro sofra porque passa necessidade. Neste sentido se pronuncia a Carta aos

    Glatas: Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas

    principalmente para com os irmos na f (6, 10).

    Justia e caridade

    26. Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a atividade caritativa da Igreja uma

    objeo, explanada depois com insistncia, sobretudo pelo pensamento marxista. Os

    pobres diz-se no teriam necessidade de obras de caridade, mas de justia. As obras de caridade as esmolas seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtrarem-se instaurao da justia e tranquilizarem a conscincia, mantendo as suas

    posies e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as

    diversas obras de caridade para a manuteno das condies existentes, seria necessrio

    criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra

    e, por conseguinte, j no teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade

    existe devemos reconhec-lo nesta argumentao, mas h tambm, e no pouco, de errado. verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecuo da

    justia e que a finalidade de uma justa ordem social garantir a cada um, no respeito do

    princpio da subsidiariedade, a prpria parte nos bens comuns. Isto mesmo sempre o

    tm sublinhado a doutrina crist sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. Do ponto

    de vista histrico, a questo da justa ordem da coletividade entrou numa nova situao

    com a formao da sociedade industrial no oitocentos. A apario da indstria moderna

    dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma

    mudana radical na composio da sociedade, no seio da qual a relao entre capital e

    trabalho se tornou a questo decisiva questo que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produo e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas

    mos de poucos, comportava para as massas operrias uma privao de direitos, contra

    a qual era preciso revoltar-se.

    27. Foroso admitir que os representantes da Igreja s lentamente se foram dando

    conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade.

    No faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogncia ( 1877). Como resposta s necessidades concretas, surgiram tambm crculos,

    associaes, unies, federaes e, sobretudo novas congregaes religiosas que, no

    Oitocentos, desceram em campo contra a pobreza, as doenas e as situaes de carncia

    no sector educativo. Em 1891, entrou em cena o magistrio pontifcio com a Encclica

    Rerum novarum de Leo XIII. Seguiu-se-lhe a Encclica de Pio XI Quadragesimo anno,

    em 1931. O Beato Papa Joo XXIII publicou, em 1961, a Encclica Mater et Magistra,

    enquanto Paulo VI, na Encclica Populorum progressio (1967) e na Carta Apostlica

    Octogesima adveniens (1971), analisou com afinco a problemtica social, que entretanto

    se tinha agravado sobretudo na Amrica Latina. O meu grande predecessor Joo Paulo

    II deixou-nos uma trilogia de Encclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo

    rei socialis (1987) e, por ltimo, Centesimus annus (1991). Deste modo, ao enfrentar

    situaes e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social catlica,

    que em 2004 foi apresentada de modo orgnico no Compndio da doutrina social da

    Igreja, redigido pelo Pontifcio Conselho Justia e Paz . O marxismo tinha indicado,

  • na revoluo mundial e na sua preparao, a panacia para a problemtica social:

    atravs da revoluo e consequente coletivizao dos meios de produo asseverava-se em tal doutrina devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difcil situao em que hoje nos encontramos

    por causa tambm da globalizao da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se

    uma indicao fundamental, que prope vlidas orientaes muito para alm das

    fronteiras eclesiais: tais orientaes face ao progresso em ato devem ser analisadas em dilogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do

    seu mundo.

    28. Para definir com maior cuidado a relao entre o necessrio empenho em prol da

    justia e o servio da caridade, preciso anotar duas situaes de fato que so

    fundamentais:

    a) A justa ordem da sociedade e do Estado dever central da poltica. Um Estado, que

    no se regesse segundo a justia, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladres, como

    disse Agostinho uma vez: Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna

    latrocinia? . Pertence estrutura fundamental do cristianismo a distino entre o que

    de Csar e o que de Deus (cf. Mt 22, 21), isto , a distino entre Estado e Igreja ou,

    como diz o Conclio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. O Estado no

    pode impor a religio, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os

    aderentes das diversas religies; por sua vez, a Igreja como expresso social da f crist

    tem a sua independncia e vive assente na f, a sua forma comunitria, que o Estado

    deve respeitar. As duas esferas so distintas, mas sempre em recproca relao.

    A justia o objetivo e, consequentemente, tambm a medida intrnseca de toda a

    poltica. A poltica mais do que uma simples tcnica para a definio dos

    ordenamentos pblicos: a sua origem e o seu objetivo esto precisamente na justia, e

    esta de natureza tica. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questo:

    como realizar a justia aqui e agora? Mas esta pergunta pressupe outra mais radical: o

    que a justia? Isto um problema que diz respeito razo prtica; mas, para poder

    operar retamente, a razo deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira tica,

    derivada da prevalncia do interesse e do poder que a deslumbram, um perigo nunca

    totalmente eliminado.

    Neste ponto, poltica e f tocam-se. A f tem, sem dvida, a sua natureza especfica de

    encontro com o Deus vivo um encontro que nos abre novos horizontes muito para alm do mbito prprio da razo. Ao mesmo tempo, porm, ela serve de fora

    purificadora para a prpria razo. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas

    cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A f consente razo de

    realizar melhor a sua misso e ver mais claramente o que lhe prprio. aqui que se

    coloca a doutrina social catlica: esta no pretende conferir Igreja poder sobre o

    Estado; nem quer impor, queles que no compartilham a f, perspectivas e formas de

    comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a

    purificao da razo e prestar a prpria ajuda para fazer com que aquilo que justo

    possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, tambm realizado.

    A doutrina social da Igreja discorre a partir da razo e do direito natural, isto , a partir

    daquilo que conforme natureza de todo o ser humano. E sabe que no tarefa da

    Igreja fazer ela prpria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formao da

  • conscincia na poltica e ajudar a crescer a percepo das verdadeiras exigncias da

    justia e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que

    tal colidisse com situaes de interesse pessoal. Isto significa que a construo de um

    ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete,

    um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada gerao. Tratando-se de uma

    tarefa poltica, no pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo

    uma tarefa humana primria, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificao

    da razo e atravs da formao tica, a sua contribuio especfica para que as

    exigncias da justia se tornem compreensveis e politicamente realizveis.

    A Igreja no pode nem deve tomar nas suas prprias mos a batalha poltica para

    realizar a sociedade mais justa possvel. No pode nem deve colocar-se no lugar do

    Estado. Mas tambm no pode nem deve ficar margem na luta pela justia. Deve

    inserir-se nela pela via da argumentao racional e deve despertar as foras espirituais,

    sem as quais a justia, que sempre requer renncias tambm, no poder afirmar-se nem

    prosperar. A sociedade justa no pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela

    poltica. Mas toca Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justia trabalhando

    para a abertura da inteligncia e da vontade s exigncias do bem.

    b) O amor caritas ser sempre necessrio, mesmo na sociedade mais justa. No h qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar suprfluo o servio do amor.

    Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto

    homem. Sempre haver sofrimento que necessita de consolao e ajuda. Haver sempre

    solido. Existiro sempre tambm situaes de necessidade material, para as quais

    indispensvel uma ajuda na linha de um amor concreto ao prximo. Um Estado, que

    queira prover a tudo e tudo aambarque, torna-se no fim de contas uma instncia

    burocrtica, que no pode assegurar o essencial de que o homem sofredor todo o homem tem necessidade: a amorosa dedicao pessoal. No precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconhea e

    apie, segundo o princpio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas

    foras sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de

    ajuda. A Igreja uma destas foras vivas: nela pulsa a dinmica do amor suscitado pelo

    Esprito de Cristo. Este amor no oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas

    tambm refrigrio e cuidado para a alma ajuda esta muitas vezes mais necessria que o apoio material. A afirmao de que as estruturas justas tornariam suprfluas as obras

    de caridade esconde, de fato, uma concepo materialista do homem: o preconceito

    segundo o qual o homem viveria s de po (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) convico que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que mais especificamente humano.

    29. Deste modo, podemos determinar agora mais concretamente, na vida da Igreja, a

    relao entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade, por um

    lado, e a atividade caritativa organizada, por outro. Viu-se que a formao de estruturas

    justas no imediatamente um dever da Igreja, mas pertence esfera da poltica, isto ,

    ao mbito da razo auto-responsvel. Nisto, o dever da Igreja mediato, enquanto lhe

    compete contribuir para a purificao da razo e o despertar das foras morais, sem as

    quais no se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito

    tempo.

    Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade prprio

    dos fiis leigos. Estes como cidados do Estado so chamados a participar pessoalmente

  • na vida pblica. No podem, pois, abdicar da mltipla e variada ao econmica,

    social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgnica e

    institucionalmente o bem comum . Por conseguinte, misso dos fiis leigos

    configurar retamente a vida social, respeitando a sua legtima autonomia e cooperando,

    segundo a respectiva competncia e sob prpria responsabilidade, com os outros

    cidados. Embora as manifestaes especficas da caridade eclesial nunca possam

    confundir-se com a atividade do Estado, no entanto a verdade que a caridade deve

    animar a existncia inteira dos fiis leigos e, consequentemente, tambm a sua atividade

    poltica vivida como caridade social .

    Caso diverso so as organizaes caritativas da Igreja, que constituem um seu opus

    proprium, um dever que lhe congnito, no qual ela no se limita a colaborar

    colateralmente, mas atua como sujeito diretamente responsvel, realizando o que

    corresponde sua natureza. A Igreja nunca poder ser dispensada da prtica da caridade

    enquanto atividade organizada dos crentes, como alis nunca haver uma situao onde

    no seja precisa a caridade de cada um dos indivduos cristos, porque o homem, alm

    da justia, tem e ter sempre necessidade do amor.

    As mltiplas estruturas de servio caritativo no atual contexto social

    30. Antes ainda de tentar uma definio do perfil especfico das atividades eclesiais ao

    servio do homem, quero considerar a situao geral do empenho pela justia e o amor

    no mundo atual.

    a) Os meios de comunicao de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno,

    aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos. Se, s vezes, este

    estar juntos suscita incompreenses e tenses, o fatos, porm, de agora se chegar de

    forma muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui,

    sobretudo um apelo a partilhar a sua situao e as suas dificuldades. Cada dia vamo-nos

    tornando conscientes de quanto se sofre no mundo, apesar dos grandes progressos em

    campo cientfico e tcnico, por causa de uma misria multiforme, tanto material como

    espiritual. Por isso, este nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o

    prximo necessitado. Sublinhou-o j o Conclio Vaticano II com palavras muito claras:

    No nosso tempo, em que os meios de comunicao so mais rpidos, em que quase se

    venceu a distncia entre os homens, (...) a atividade caritativa pode e deve atingir as

    necessidades de todos os homens .

    Por outro lado e trata-se de um aspecto provocatrio e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalizao , o presente pe nossa disposio inumerveis instrumentos para prestar ajuda humanitria aos irmos necessitados, no sendo os

    menos notveis entre eles os sistemas modernos para a distribuio de alimento e

    vesturio, e tambm para a oferta de habitao e acolhimento. Superando as fronteiras

    das comunidades nacionais, a solicitude pelo prximo tende, assim, a alargar os seus

    horizontes ao mundo inteiro. Justamente o ps em relevo o Conclio Vaticano II:

    Entre os sinais do nosso tempo, digno de especial meno o crescente e inelutvel

    sentido de solidariedade entre todos os povos . Os entes do Estado e as associaes

    humanitrias apadrinham iniciativas com tal finalidade, fazendo-o na maior parte dos

    casos atravs de subsdios ou descontos fiscais, os primeiros, e pondo disposio

    verbas considerveis, as segundas. E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil

    supera significativamente a dos indivduos.

  • b) Nesta situao, nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaborao entre

    as estruturas estatais e as eclesiais, que se revelaram frutuosas. As estruturas eclesiais,

    com a transparncia da sua ao e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor, podero

    animar de maneira crist tambm as estruturas civis, favorecendo uma recproca

    coordenao que no deixar de potenciar a eficcia do servio caritativo. Neste

    contexto, formaram-se tambm muitas organizaes com fins caritativos ou

    filantrpicos, que procuram, face aos problemas sociais e polticos existentes, alcanar

    solues satisfatrias sob o aspecto humanitrio. Um fenmeno importante do nosso

    tempo a apario e difuso de diversas formas de voluntariado, que se ocupam duma

    pluralidade de servios. Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreo e gratido

    a todos aqueles que participam de diversas formas, nestas atividades. Tal empenho

    generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a

    solidariedade e a disponibilidade a darem no simplesmente qualquer coisa, mas darem-

    se a si prprios. anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga,

    contrape-se deste modo o amor que no procura o prprio interesse, mas que,

    precisamente na disponibilidade a perder-se a si mesmo pelo outro (cf. Lc 17, 33 e

    paralelos), se revela como cultura da vida.

    Na Igreja Catlica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, tambm apareceram novas

    formas de atividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado. So formas nas

    quais se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligao entre evangelizao e

    obras de caridade. Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande

    predecessor Joo Paulo II escreveu na sua Encclica Sollicitudo rei socialis, quando

    declarou a disponibilidade da Igreja Catlica para colaborar com as organizaes

    caritativas destas Igrejas e Comunidades, uma vez que todos ns somos movidos pela

    mesma motivao fundamental e temos diante dos olhos idntico objetivo: um

    verdadeiro humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajud-lo a

    levar uma vida conforme a esta dignidade. Depois, a Encclica Ut unum sint voltou a

    sublinhar que, para o progresso rumo a um mundo melhor, necessria a voz comum

    dos cristos, o seu empenho em fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades

    de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos . Quero exprimir aqui

    a minha alegria pelo fato de este desejo ter encontrado um vasto eco por todo o mundo

    em numerosas iniciativas.

    O perfil especfico da atividade caritativa da Igreja

    31. O aumento de organizaes diversificadas, que se dedicam ao homem em suas

    vrias necessidades, explica-se fundamentalmente pelo fato de o imperativo do amor ao

    prximo ter sido inscrito pelo Criador na prpria natureza do homem. Mas, o referido

    aumento efeito tambm da presena, no mundo, do cristianismo, que no cessa de

    despertar e tornar eficaz este imperativo, muitas vezes profundamente obscurecido no

    decurso da histria. A reforma do paganismo, tentada pelo imperador Juliano o

    Apstata, apenas um exemplo incipiente de tal eficcia. Neste sentido, a fora do

    cristianismo propaga-se muito para alm das fronteiras da f crist. Por isso, muito

    importante que a atividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e no se

    dissolva na organizao assistencial comum, tornando-se uma simples variante da

    mesma. Mas, ento quais so os elementos constitutivos que formam a essncia da

    caridade crist e eclesial?

  • a) Segundo o modelo oferecido pela parbola do bom Samaritano, a caridade crist ,

    em primeiro lugar, simplesmente a resposta quilo que, numa determinada situao,

    constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os

    doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc. As organizaes caritativas da

    Igreja, a comear pela Critas (diocesana, nacional e internacional), devem fazer o

    possvel para colocar disposio os correlativos meios e, sobretudo os homens e

    mulheres que assumam tais tarefas. Relativamente ao servio que as pessoas realizam

    em favor dos doentes, requer-se antes de mais a competncia profissional: os socorristas

    devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo,

    assumindo tambm o compromisso de continuar o tratamento. A competncia

    profissional uma primeira e fundamental necessidade, mas por si s no basta. que

    se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento

    apenas tecnicamente correto: tm necessidade de humanidade, precisam da ateno do

    corao. Todos os que trabalham nas instituies caritativas da Igreja devem distinguir-

    se pelo fato de que no se limitam a executar habilidosamente a ao conveniente

    naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenes sugeridas pelo corao, de

    modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, alm da

    preparao profissional, requer-se tambm e, sobretudo a formao do corao :

    preciso lev-los quele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o

    seu ntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do prximo j no seja um

    mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequncia resultante da sua

    f que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6).

    b) A atividade caritativa crist deve ser independente de partidos e ideologias. No um

    meio para mudar o mundo de maneira ideolgica, nem est ao servio de estratgias

    mundanas, mas atualizao aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem

    necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por

    diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical o marxismo.

    Uma parte da estratgia marxista a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa

    situao de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se

    de fato ao servio daquele sistema de injustia, fazendo-o resultar, pelo menos at certo

    ponto, suportvel. Deste modo fica refreado o potencial revolucionrio e,

    consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se

    contesta e ataca a caridade como sistema de conservao do status quo. Na realidade,

    esta uma filosofia desumana. O homem que vive no presente sacrificado ao moloch

    do futuro um futuro cuja efetiva realizao permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanizao do mundo no pode ser promovida renunciando, de momento, a

    comportar-se de modo humano. S se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem

    agora e pessoalmente, com paixo e em todo o lado onde for possvel,

    independentemente de estratgias e programas de partido. O programa do cristo o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus um corao que v . Este corao v onde h necessidade de amor, e atua em consequncia. Obviamente, quando

    a atividade caritativa assumida pela Igreja como iniciativa comunitria,

    espontaneidade do indivduo h que acrescentar tambm a programao, a previdncia,

    a colaborao com outras instituies idnticas.

    c) Alm disso, a caridade no deve ser um meio em funo daquilo que hoje indicado

    como proselitismo. O amor gratuito; no realizado para alcanar outros fins. [30]

    Isto, porm, no significa que a ao caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e

    Cristo de lado. Sempre est em jogo o homem todo. Muitas vezes precisamente a

  • ausncia de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome

    da Igreja, nunca procurar impor aos outros a f da Igreja. Sabe que o amor, na sua

    pureza e gratuidade, o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual

    somos impelidos a amar. O cristo sabe quando tempo de falar de Deus e quando

    justo no o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus amor (cf. 1 Jo 4, 8) e

    torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a no ser amar.

    Sabe voltando s questes anteriores que o vilipndio do amor vilipndio de Deus e do homem, a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor

    defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. dever das organizaes

    caritativas da Igreja reforar de tal modo esta conscincia em seus membros, que estes,

    atravs do seu agir como tambm do seu falar, do seu silncio, do seu exemplo , se tornem testemunhas credveis de Cristo.

    Os responsveis da ao caritativa da Igreja

    32. Por ltimo, devemos ainda fixar a nossa ateno sobre os responsveis pela ao

    caritativa da Igreja, a que j aludimos. Das reflexes feitas anteriormente, resulta

    claramente que o verdadeiro sujeito das vrias organizaes catlicas que realizam um

    servio de caridade a prpria Igreja e isto a todos os nveis, a comear das parquias passando pelas Igrejas particulares at chegar Igreja universal. Por isso, foi

    muito oportuna a instituio do Pontifcio Conselho Cor Unum, feita pelo meu venerado

    predecessor Paulo VI, como instncia da Santa S responsvel pela orientao e

    coordenao entre as organizaes e as aditividades caritativas promovidas pela Igreja

    Catlica. Depois, cnsono estrutura episcopal da Igreja o fato de, nas Igrejas

    particulares, caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apstolos a primeira

    responsabilidade pela realizao, mesmo atualmente, do programa indicado nos Atos

    dos Apstolos (cf. 2, 42-44): a Igreja enquanto famlia de Deus deve ser, hoje como

    ontem, um espao de ajuda recproca e simultaneamente um espao de disponibilidade

    para servir mesmo aqueles que, fora dela, tm necessidade de ajuda. No rito de

    Ordenao Episcopal, o ato verdadeiro e prprio de consagrao precedido por

    algumas perguntas ao candidato, nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu

    ofcio e so-lhe lembrados os deveres do seu futuro ministrio. Neste contexto, o

    Ordenando promete expressamente que ser, em nome do Senhor, bondoso e

    compassivo com os pobres e todos os necessitados de conforto e ajuda. O Cdigo de

    Direito Cannico, nos cnones relativos ao ministrio episcopal, no trata

    explicitamente da caridade como mbito especfico da atividade episcopal, falando

    apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras de apostolado

    no respeito da ndole prpria de cada uma. Recentemente, porm, o Diretrio para o

    ministrio pastoral dos Bispos aprofundou, de forma mais concreta, o dever da caridade

    como tarefa intrnseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese, sublinhando que a

    prtica da caridade um ato da Igreja enquanto tal e que tambm ela, tal como o servio

    da Palavra e dos Sacramentos, faz parte da essncia da sua misso originria.

    33. No que diz respeito aos colaboradores que realizam, a nvel prtico, o trabalho

    caritativo na Igreja, foi dito j o essencial: eles no se devem inspirar nas ideologias do

    melhoramento do mundo, mas deixarem-se guiar pela f que atua pelo amor (cf. Gal 5,

    6). Por isso, devem ser pessoas movidas antes de qualquer coisa pelo amor de Cristo,

    pessoas cujo corao Cristo conquistou com o seu amor, nele despertando o amor ao

    prximo. O critrio inspirador da sua ao deveria ser a afirmao presente na II Carta

    aos Corntios: O amor de Cristo nos constrange (5, 14). A conscincia de que, n'Ele,

  • o prprio Deus Se entregou por ns at morte, deve induzir-nos a viver, no mais para

    ns mesmos, mas para Ele e, com Ele, para os outros. Quem ama Cristo, ama a Igreja e

    quer que esta seja cada vez mais expresso e instrumento do amor que d'Ele dimana. O

    colaborador de qualquer organizao caritativa catlica quer trabalhar com a Igreja, e

    consequentemente com o Bispo, para que o amor de Deus se espalhe no mundo. Com a

    sua participao na prtica eclesial do amor, quer ser testemunha de Deus e de Cristo e,

    por isso mesmo, quer fazer bem aos homens gratuitamente.

    34. A abertura interior dimenso catlica da Igreja no poder deixar de predispor o

    colaborador a sintonizar-se com as outras organizaes que esto ao servio das vrias

    formas de necessidade; mas isso dever verificar-se no respeito do perfil especfico do

    servio requerido por Cristo aos seus discpulos. No seu hino caridade (cf. 1 Cor 13),

    So Paulo ensina-nos que a caridade sempre algo mais do que mera atividade: Ainda

    que distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser

    queimado, se no tiver caridade, de nada me aproveita (v. 3). Este hino deve ser a

    Magna Carta de todo o servio eclesial; nele se encontram resumidas todas as reflexes

    que fiz sobre o amor, ao longo desta Carta Encclica. A ao prtica resulta insuficiente

    se no for palpvel nela o amor pelo homem, um amor que se nutre do encontro com

    Cristo. A ntima participao pessoal nas necessidades e no sofrimento do outro torna-se

    assim um dar-se-lhe a mim mesmo: para que o dom no humilhe o outro, devo no

    apenas dar-lhe qualquer coisa minha, mas dar-me a mim mesmo, devo estar presente no

    dom como pessoa.

    35. Este modo justo de servir torna humilde o agente. Este no assume uma posio de

    superioridade face ao outro, por mais miservel que possa ser de momento a sua

    situao. Cristo ocupou o ltimo lugar no mundo a cruz e, precisamente com esta humildade radical, nos redimiu e ajuda sem cessar. Quem se acha em condies de

    ajudar h-de reconhecer que, precisamente deste modo, ajudado ele prprio tambm;

    no mrito seu nem ttulo de glria o fato de poder ajudar. Esta tarefa graa. Quanto

    mais algum trabalhar pelos outros, tanto melhor compreender e assumir como

    prpria esta palavra de Cristo: Somos servos inteis (Lc 17, 10). Na realidade, ele

    reconhece que age, no em virtude de uma superioridade ou uma maior eficincia

    pessoal, mas porque o Senhor lhe concedeu este dom. s vezes, a excessiva vastido

    das necessidades e as limitaes do prprio agir podero exp-lo tentao do

    desnimo. Mas precisamente ento que lhe serve de ajuda saber que, em ltima

    instncia, ele no passa de um instrumento nas mos do Senhor; libertar-se- assim da

    presuno de dever realizar, pessoalmente e sozinho, o necessrio melhoramento do

    mundo. Com humildade, far o que lhe for possvel realizar e, com humildade, confiar

    o resto ao Senhor. Deus quem governa o mundo, no ns. Prestamos-Lhe apenas o

    nosso servio por quanto podemos e at onde Ele nos d a fora. Mas, fazer tudo o que

    nos for possvel e com a fora de que dispomos, tal o dever que mantm o servo bom

    de Cristo sempre em movimento: O amor de Cristo nos constrange (2 Cor 5, 14).

    36. A experincia da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-

    nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por

    parte de Deus, pelos vistos, no consegue: a soluo universal de todo o problema. Por

    outro lado, aquela pode tornar-se uma tentao para a inrcia a partir da impresso de

    que, seja como for, nunca se levaria nada a termo. Nesta situao, o contacto vivo com

    Cristo a ajuda decisiva para prosseguir pela justa estrada: nem cair numa soberba que

    despreza o homem e, na realidade, nada constri, antes at destri; nem abandonar-se

  • resignao que impediria de deixar-se guiar pelo amor e, deste modo, servir o homem.

    A orao, como meio para haurir continuamente fora de Cristo, torna-se aqui uma

    urgncia inteiramente concreta. Quem reza no desperdia o seu tempo, mesmo quando

    a situao apresenta todas as caractersticas duma emergncia e parece impelir

    unicamente para a ao. A piedade no afrouxa a luta contra a pobreza ou mesmo contra

    a misria do prximo. A Beata Teresa de Calcut um exemplo evidentssimo do fato

    que o tempo dedicado a Deus na orao no s no lesa a eficcia nem a operosidade do

    amor ao prximo, mas realmente a sua fonte inexaurvel. Na sua carta para a

    Quaresma de 1996, esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos: Ns precisamos

    desta unio ntima com Deus na nossa vida quotidiana. E como poderemos obt-la?

    Atravs da orao .

    37. Chegou o momento de reafirmar a importncia da orao face ao ativismo e ao

    secularismo que ameaa muitos cristos empenhados no trabalho caritativo. Obviamente

    o cristo que reza, no pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus

    previu; procura, antes, o encontro com o Pai de Jesus Cristo, pedindo-Lhe que esteja

    presente, com o conforto do seu Esprito, nele e na sua obra. A familiaridade com o

    Deus pessoal e o abandono sua vontade impedem a degradao do homem, salvam-no

    da priso de doutrinas fanticas e terroristas. Um comportamento autenticamente

    religioso evita que o homem se arvore em juiz de Deus, acusando-O de permitir a

    misria sem sentir compaixo pelas suas criaturas. Mas, quem pretender lutar contra

    Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem, sobre quem poder contar

    quando a ao humana se demonstrar impotente?

    38. certo que Job pde lamentar-se com Deus pelo sofrimento, incompreensvel e

    aparentemente injustificado, presente no mundo. Assim se exprime ele na sua dor:

    Oh! Se pudesse encontr-Lo e chegar at ao seu prprio trono! (...) Saberia o que Ele

    iria responder-me e ouviria o que Ele teria para me dizer. Oporia Ele contra mim o seu

    grande poder? (...) Por isso, a sua presena me atemoriza; contemplo-O e tremo diante

    d'Ele. Deus enervou o meu corao, o Onipotente encheu-me de terror (23, 3.5-6. 15-

    16). Muitas vezes no nos concedido saber o motivo pelo qual Deus retm o seu

    brao, em vez de intervir. Alis, Ele no nos impede sequer de gritar, como Jesus na

    cruz: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mt 27, 46). Num dilogo

    orante, havemos de lanar-Lhe em rosto esta pergunta: At quando esperars, Senhor,

    Tu que s santo e verdadeiro? (Ap 6, 10). Santo Agostinho d a este nosso sofrimento

    a resposta da f: Si comprehendis, non est Deus se O compreendesses, no seria Deus . O nosso protesto no quer desafiar a Deus, nem insinuar n'Ele a presena de

    erro, fraqueza ou indiferena. Para o crente, no possvel pensar que Ele seja

    impotente, ou ento que esteja a dormir (cf. 1 Re 18, 27). Antes, a verdade que at

    mesmo o nosso clamor constitui, como na boca de Jesus na cruz, o modo extremo e

    mais profundo de afirmar a nossa f no seu poder soberano. Na realidade, os cristos

    continuam a crer, no obstante todas as incompreenses e confuses do mundo

    circunstante, na bondade de Deus e no seu amor pelos homens (Tt 3, 4). Apesar de

    estarem imersos como os outros homens na complexidade dramtica das vicissitudes da

    histria, eles permanecem inabalveis na certeza de que Deus Pai e nos ama, ainda

    que o seu silncio seja incompreensvel para ns.

    39. A f, a esperana e a caridade caminham juntas. A esperana manifesta-se

    praticamente nas virtudes da pacincia, que no esmorece no bem nem sequer diante de

    um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistrio de Deus e confia n'Ele

  • mesmo na escurido. A f mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por ns e assim

    gera em ns a certeza vitoriosa de que isto mesmo verdade: Deus amor! Deste modo,

    ela transforma a nossa impacincia e as nossas dvidas em esperana segura de que

    Deus tem o mundo nas suas mos e que, no obstante todas as trevas, Ele vence, como

    revela de forma esplendorosa o Apocalipse, no final, com as suas imagens

    impressionantes. A f, que toma conscincia do amor de Deus revelado no corao

    trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino a luz fundamentalmente, a nica que ilumina incessantemente um mundo s escuras e nos d a coragem de viver e agir. O amor possvel, e ns somos capazes de o praticar

    porque criados imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de

    Deus no mundo: tal o convite que vos queria deixar com a presente Encclica.

    CONCLUSO

    40. Por fim, olhemos os Santos, aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade.

    Penso, de modo especial, em Martinho de Tours ( 397), primeiro soldado, depois monge e Bispo: como se fosse um cone, ele mostra o valor insubstituvel do

    testemunho individual da caridade. s portas de Amiens, Martinho partilhara metade do

    seu manto com um pobre; durante a noite, aparece-lhe num sonho o prprio Jesus

    trazendo vestido aquele manto, para confirmar a perene validade da sentena

    evanglica: Estava nu e destes-Me de vestir (...). Sempre que fizestes isto a um destes

    meus irmos mais p