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CARTA Eis que te procuro agora como nunca, te espero agora como nunca. Se tu visses… A casa fica no meio das oliveiras e de um quintal de verdura. O tempo não passa por ela distraído, e demora-se sempre um pouco. Quando é pela primavera, há flores nas macieiras e pintainhos novos pelo pátio. E quando é o Verão, há as manhãs solenes, e quando é o Outono, o ouro das colheitas. Lembro essas manhãs e o brilho fresco da água pelas noites sufocantes de Julho, e o frémito da terra na hora do recomeço. Meu pai, quando parti, disse- me: Volta. Minha mãe olhava-me em silêncio, dorida, e todavia serena como se detivesse o fio do meu destino, ou soubesse, da sua carne, que tudo estava certo com a vida: o nascer, o partir, o morrer. Volta repetiu ainda meu pai. Eis que volto, enfim, nesta tarde de Inverno, e o ciclo se fechou. Abro as portas da casa deserta, abro as janelas e a varanda. No quintal as ervas crescem com as sombras, as oliveiras têm a cor escura do céu. Em baixo, no chão húmido ao pé da loja, há restos de ferragem enferrujada: um sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai amava a terra. Lembro-me de o ajudar a podar o pequeno corrimão de videiras, de lhe ir encher o regador para o cebolo novo. Minha mãe olhava-nos da varanda e os três sabíamos uns dos outros no silêncio dos corações. Pensei, sofri, lutei. Mas de tudo o que aconteceu é como se nada me tivesse acontecido. Alguém me incumbiu do que fiz, muito antes de eu nascer, quando outros homens, outra gente, acabavam a tarefa que eu havia de começar. Essa tarefa deixo-a aos que vierem depois. De tudo, ficou-me apenas esta voz humilde que ouço, que ouço. Se voltares tu o dizias. Aqui estou. Acendo lenha no fogão e as chamas crescem como uma memória antiga. Silêncio bom. Como outrora. Como quando nada tínhamos já a dizer, e estávamos cheios, todavia, da presença um do outro. Estendo as minhas mãos ao calor, e olho, e escuto. O lume enche-as de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias: Ninguém conhece as suas mãos. Só talvez as dos outros. É bom ter as tuas aqui, com os dedos todos submissos. Estranhas noites estas de Inverno, sem um rumor. Só os cães ladram das quintas. Discutem pela noite fora até adormecerem. Ouço um já rouco, lá nos confins da noite, agora a falar sozinho, decerto para ter a última palavra. Houve um cão outrora cá em casa. Numa manhã de chuva, achámo-lo à porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar. Minha mãe não gostava de cães.

CARTA Vergilio Ferreira

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  • CARTA

    Eis que te procuro agora como nunca, te espero agora como nunca. Se tu visses A casa

    fica no meio das oliveiras e de um quintal de verdura. O tempo no passa por ela distrado,

    e demora-se sempre um pouco. Quando pela primavera, h flores nas macieiras e

    pintainhos novos pelo ptio. E quando o Vero, h as manhs solenes, e quando o

    Outono, o ouro das colheitas. Lembro essas manhs e o brilho fresco da gua pelas noites

    sufocantes de Julho, e o frmito da terra na hora do recomeo. Meu pai, quando parti, disse-

    me:

    Volta.

    Minha me olhava-me em silncio, dorida, e todavia serena como se detivesse o fio do meu

    destino, ou soubesse, da sua carne, que tudo estava certo com a vida: o nascer, o partir, o

    morrer.

    Volta repetiu ainda meu pai.

    Eis que volto, enfim, nesta tarde de Inverno, e o ciclo se fechou. Abro as portas da casa

    deserta, abro as janelas e a varanda. No quintal as ervas crescem com as sombras, as

    oliveiras tm a cor escura do cu. Em baixo, no cho hmido ao p da loja, h restos de

    ferragem enferrujada: um sacho sem cabo, um aro de pipa, um regador. Meu pai amava a

    terra. Lembro-me de o ajudar a podar o pequeno corrimo de videiras, de lhe ir encher o

    regador para o cebolo novo. Minha me olhava-nos da varanda e os trs sabamos uns dos

    outros no silncio dos coraes. Pensei, sofri, lutei. Mas de tudo o que aconteceu como se

    nada me tivesse acontecido. Algum me incumbiu do que fiz, muito antes de eu nascer,

    quando outros homens, outra gente, acabavam a tarefa que eu havia de comear. Essa tarefa

    deixo-a aos que vierem depois. De tudo, ficou-me apenas esta voz humilde que ouo, que

    ouo.

    Se voltares tu o dizias.

    Aqui estou. Acendo lenha no fogo e as chamas crescem como uma memria antiga.

    Silncio bom. Como outrora. Como quando nada tnhamos j a dizer, e estvamos cheios,

    todavia, da presena um do outro. Estendo as minhas mos ao calor, e olho, e escuto. O

    lume enche-as de sangue, acende-as por dentro como brasas. Tu dizias:

    Ningum conhece as suas mos. S talvez as dos outros. bom ter as tuas aqui, com os

    dedos todos submissos.

    Estranhas noites estas de Inverno, sem um rumor. S os ces ladram das quintas. Discutem

    pela noite fora at adormecerem. Ouo um j rouco, l nos confins da noite, agora a falar

    sozinho, decerto para ter a ltima palavra. Houve um co outrora c em casa. Numa manh

    de chuva, achmo-lo porta da cozinha, todo ensopado, a tiritar. Minha me no gostava de

    ces.

  • Sujam tudo, roem tudo.

    Enxuguei-o, dei-lhe po, pus-lhe um nome. Minha me resignou-se. Os caadores levavam-

    no caa porque tinha bom faro. Um dia, no sei como, mataram-no com um tiro. Era um

    co perdigueiro. Tinha um olhar humano.

    A chama apaga-se, a pirmide de carves desmorona-se. Os ces adormecem enfim, sob o

    grande cu de estrelas. No h lua. Nem vento. S as estrelas vibram no cu negro de

    veludo. Se tu viesses. Eu te imagino, desde o fundo do meu cansao, silenciosa e grave

    como esta hora final, como um apelo obscuro vindo do abismo do tempo. Um halo de

    sombra coroa o teu olhar, a tua presena quente como o fluido da ternura. Tudo em vo,

    tudo em vo. Ou no bem isso, no bem isso. Alguma coisa me ficara esperando talvez,

    desde antes e antes, qualquer coisa que eu trazia do lado de l da vida. Eis que a encontro e

    me fala e floresce no sangue e procuro reconhec-la na tua face. Aqui ao p do fogo h

    uma cadeira de braos. Minha me sentava-se nela, meu pai nesta em que escrevo. Pelas

    noites de vento, olhavam o lume, deixavam-se adormecer Tu dizias:

    bom terem j dito tudo e reconhecerem-se ainda.

    Abro de novo a varanda para a noite, o ar gela-me a face como um espelho. Ao fundo do

    quintal havia uma figueira grande. Minha me franjeava xailes e cintas para fora. E eu atava

    as cintas e balouava-me na figueira.

    Ah, tu acabas por deitar a figueira abaixo. E j rompeste duas cintas.

    Numa noite brava de Inverno, a figueira caiu. E minha me dizia sempre, da em diante, que

    fora de eu me balouar

    Tanta coisa aconteceu e eu recordo e eu recupero no talvez na lembrana, no talvez, mas

    num apelo indistinto e longnquo e angustiante como o silncio desta noite. Olho ainda o

    frmito das estrelas sobre a aridez fria da terra. E penso: Qualquer coisa vai acontecer de

    misterioso e grande, qualquer coisa miraculosa se anuncia como a vinda de um Deus.

    Sim, a esperana talvez a melhor parte da vida.

    Tu o dizias. Eis que porm a minha esperana tem agora a cor do cansao e da resignao.

    E de tudo o que pensei e quis que brotasse da terra, de tudo o que foi novo e me comoveu,

    da agitao do meu sangue, do clamor com que fiquei rouco, da fria, do choro, da alegria,

    de tudo o que me deu a conhecer os meus dentes, os meus ossos, as minhas pobres vsceras

    a forma que se desenha e que me envolve agora tem o volume quente do seio da piedade.

    Se amanh quando me erguesse e pensasse que havia ainda um dia rido a vencer, e outra

    noite, e outro dia, e quantos dias e quantas noites o tempo guarda para mim, eu de manh te

    encontrasse preparando o fogo e o aroma da casa, e te sentasses nesta cadeira ao lado, e os

    dois nos esquecssemos de falar, at um dia, at um dia, e nos deixssemos enfim

    adormecer

    Ferreira, Verglio, Contos, Lisboa: Bertrand Editora, 2008.