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CARTAS PASTORAIS, GERAIS E HEBREUS Bruno Glaab INTRODUÇÃO O presente trabalho é uma pequena síntese de comentaristas bíblicos. Segue bem de perto o livro de Carrez quando trata do assunto em geral. Em 1Jo segue o livro de R. Brown, em 1Pd segue J. Elliott e, ao tratar de Hb, baseia-se em Estudos Bíblicos, n.34. Este polígrafo quer ser apenas uma pista de estudos. No início, ao introduzir aos três blocos temáticos (pastorais, católicas e Hb), apresenta diversas notas de rodapé, onde são indicadas as fontes para aprofundamento. A síntese segue, como foi dito acima, em três blocos: Cartas Pastorais, Católicas e Hebreus. Assim, espera-se, obter uma visão genérica sobre os escritos próprios desta ca- deira. I - Epístolas Pastorais A primeira e a segunda carta a Timóteo, bem como a carta a Tito têm algo em co- mum. Paul Anton (1726) as chamou de “Pastorais”. “A escolha deste termo foi muito feliz porque essas cartas foram dirigidas a responsáveis por Igrejas e lhes lembram seus deveres enquanto ‘pastores’ das comunidades confiadas aos seus cuidados”. 1 a) O Autor Comumente se diz que foi Paulo, no entanto, há dificuldades, pois: - o estilo é bem diferente do estilo de Paulo. - a teologia é bem diferente, isto até impede supor que fossem escritas por um se- cretário de Paulo. Pode-se imaginar que um discípulo de Paulo tivesse aproveitado de escritos pauli- nos e, após sua morte, já aí pelos anos 70-80 lhe tivesse dado nova redação, deixando que características próprias influenciassem os textos. b) Canonicidade Alguns manuscritos antigos não trazem as epístolas pastorais. O papiro Chester Beatty, bem como o papiro Vaticano não trazem as trazem, mas eles são fragmentados e perderam folhas. Já os manuscritos do Sinaítico, Alexandrino e Rescrito de Efrém contêm as pastorais em sua forma integral.. 1 CARREZ, M e outros. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. S. Paulo, Pau- linas, 1987. P. 245. 2 CHARPENTIER, E. A mensagem da Epístola aos Hebreus, in: Cadernos Bíblicos. V 21. S. Paulo, Paulinas. p.5.

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CARTAS PASTORAIS, GERAIS E HEBREUS Bruno Glaab

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é uma pequena síntese de comentaristas bíblicos. Segue bem

de perto o livro de Carrez quando trata do assunto em geral. Em 1Jo segue o livro de R.

Brown, em 1Pd segue J. Elliott e, ao tratar de Hb, baseia-se em Estudos Bíblicos, n.34.

Este polígrafo quer ser apenas uma pista de estudos. No início, ao introduzir aos

três blocos temáticos (pastorais, católicas e Hb), apresenta diversas notas de rodapé, onde

são indicadas as fontes para aprofundamento.

A síntese segue, como foi dito acima, em três blocos: Cartas Pastorais, Católicas e

Hebreus. Assim, espera-se, obter uma visão genérica sobre os escritos próprios desta ca-

deira.

I - Epístolas Pastorais

A primeira e a segunda carta a Timóteo, bem como a carta a Tito têm algo em co-

mum. Paul Anton (1726) as chamou de “Pastorais”.

“A escolha deste termo foi muito feliz porque essas cartas foram dirigidas a responsáveis por

Igrejas e lhes lembram seus deveres enquanto ‘pastores’ das comunidades confiadas aos seus cuidados”.

1

a) O Autor

Comumente se diz que foi Paulo, no entanto, há dificuldades, pois:

- o estilo é bem diferente do estilo de Paulo.

- a teologia é bem diferente, isto até impede supor que fossem escritas por um se-

cretário de Paulo.

Pode-se imaginar que um discípulo de Paulo tivesse aproveitado de escritos pauli-

nos e, após sua morte, já aí pelos anos 70-80 lhe tivesse dado nova redação, deixando que

características próprias influenciassem os textos.

b) Canonicidade

Alguns manuscritos antigos não trazem as epístolas pastorais. O papiro Chester

Beatty, bem como o papiro Vaticano não trazem as trazem, mas eles são fragmentados e

perderam folhas. Já os manuscritos do Sinaítico, Alexandrino e Rescrito de Efrém contêm

as pastorais em sua forma integral..

1CARREZ, M e outros. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. S. Paulo, Pau-

linas, 1987. P. 245. 2CHARPENTIER, E. A mensagem da Epístola aos Hebreus, in: Cadernos Bíblicos. V

21. S. Paulo, Paulinas. p.5.

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São Policarpo de Esmirna usava as pastorais em 125. Clemente de Roma (95),

Inácio de Antioquia (110) dão a impressão de usar as pastorais. O Cânon de Muratori

(180) menciona as pastorais.

d) Destinatários

As cartas são endereçadas a indivíduos. Mesmo assim se supõe que se dirigiam a

comunidades.

- Timóteo: de Listra, filho de mãe judia e pai pagão. Companheiro de missão de

Paulo (At 16,1-3; 17,14s; 1Tm 1,2; 2Tm 1,2; 1Cor 4,17). Paulo o cita (1Ts 1,1; 2Ts 1,1;

Rm 16,21; Fl 1,1).

- Tito: originário do paganismo, não circunciso (Gl 2,1-5). É mencionado como

conciliador (2Cor 7,6-16), como coletor (2Cor 8,6), Tc.

d) Estilo

Analisando as cartas pastorais, percebe-se um estilo diferente dos escritos de Pau-

lo. Enquanto este tem estilo profético entusiasmado, aquelas são monótonas, difusas e

um tanto moralistas. O vocabulário se afasta de Paulo. Faltam os temas paulinos, como:

evangelizar, circuncisão, graça, glória, Tc. Existem 305 termos nas Pastorais que não se

encontram em Paulo. Destes, 175 não ocorrem em outros livros do NT. Sua linguagem se

aproxima dos autores do século II.

II - Epístolas Católicas = destinação universal

São sete cartas dirigidas aos cristãos em geral: Tg, Jd, 1-2 Pd, 1-3Jo. Destas cartas,

somente 3Jo tem um destinatário concreto (Gaio). Mas, por ser ela do mesmo autor de 1 e

2Jo, passa a ser classificada como católica. Estas cartas, ao que parece, são posteriores a

Paulo. Seguramente pode-se colocar o ano 80 como a data mais aproximada destes escri-

tos. Talvez algumas cartas sejam do fim do 1º século.

III - Hebreus

Alguns escritos antigos chamavam Hb de Carta de Paulo. Na realidade, Hb não é

carta, nem é de Paulo e nem sequer se destina aos hebreus. Trata-se, antes, de um tratado

teológico sobre o sacerdócio de Jesus. Aliás, é o único escrito que chama Jesus de sacer-

dote. Charpentier a chama de “Homilia a cristãos desorientados”.2 O título e a autoria de-

vem ter sido atribuídos nos primeiros séculos, mas sem fundamento, pois não existe o es-

tilo paulino, nem na linguagem nem nos conceitos teológico, nem sequer há algo que leve

a crer que fosse destinado aos hebreus. Ela poderia melhor se chamar “a cristãos”.

2CHARPENTIER, E. A mensagem da Epístola aos Hebreus, in: Cadernos Bíblicos. V

21. S. Paulo, Paulinas. p.5.

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I – EPISTILAS PASTORAIS

No presente trabalho apenas será analisada 1Tm. Dado ao fato de Tt estar muito

próximo de 1Tm, esta carta será estudada na aula por comparação a 1Tm.

1.1 – A Primeira Carta a Timóteo

a) Introdução

A primeira carta a Timóteo faz parte das cartas pastorais por ser ela dirigida a um

responsável por uma igreja e lhe recorda os deveres enquanto pastor.

Timóteo, originário de Listra (At 16,1-3) é filho de mãe judia e pai pagão. Foi

companheiro de Paulo nas missões (At 17,14ss; 18,5; 19,22). Também encontram-se re-

ferências a este fato em 1Tm 1,2; 2,Tm 1,2; 1Cor 4,17, etc. Na presente carta Paulo re-

comenda que Timóteo permaneça em Éfeso para cuidar daquela igreja (1Tm 1,3). Era um

jovem de saúde frágil (1Tm 4,12; 5,23). Certamente tímido (1Cor 16,10).

Estrutura3

Endereço 1,1-2

I - Anúncio do evangelho 1,3-20

a) Luta contra falsos doutores 1,3-11

b) A graça de Deus 1,12-17

c) Combater o bom combate 1,18-20

II - A organização do culto 2,1-15

a) Caráter universal da oração da igreja 2,1-7

b) Formas concretas de oração 2,8-15

III - Os ministros da igreja 3,1-16

a) Qualidades dos bispos 3,1-7

b) Qualidades dos diáconos e diaconisas 3,8-13

c) Piedade 3,14-16

IV - O múnus pastoral 4,1-6,2a a) Combate ao ascetismo falso

44,1-5

b) O bom servidor observa as regras 4,6-16

c) Como lidar com as diversas categorias 5,1-5,2a

Conclusão 6,2b-21

3CARREZ e outros, p.248. 4Condenavam o matrimônio e certos alimentos - cf. Carrez, p. 248.

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O autor

A carta se apresenta como sendo de Paulo (1,1). Além disto, sabe-se que Timóteo

era companheiro de Paulo na missão. Persistem, porém, algumas dúvidas:

- 1Tm tem estilo bem diferente de Paulo. É lenta, difusa e monótona.

- Muitos termos não estão nas cartas sabidamente paulinas e vice-versa.

- Os conceitos teológicos também se diferenciam. Paulo quer evangelizar, 1Tm

quer cuidar do depósito da fé.

- Em Paulo percebe-se uma igreja carismática (1Cor 12-14). A estrutura está quase

ausente. Parece que Paulo se ocupou muito em semear, mas não em estruturar. Raras ve-

zes encontra-se resquícios de estrutura eclesial (Rm 16,1-2; Fl 1,1). Já em 1Tm encontra-

se uma estrutura muito viva: Bispos (3,1-7), Diáconos (3,8-13), Diaconisas 3,11), Viúvas

(5,9-15), Presbíteros (5,17-22). Além destes ainda se encontram os cargos de delegados

apostólicos (itinerantes) como Paulo (?) e Timóteo. Parece que estes eram enviados às

comunidades para permanências temporárias. Eles têm poderes para, expor a doutrina

(6,20), combater falsos doutores (1,3), exortar (2,1-10; 6,1-2), cuidar do culto (2,8-11),

responsáveis pela instituição de bispos e diáconos (3,2-7).

A tese mais em voga é que após a morte de Paulo, um discípulo seu, por volta de

70/80, valeu-se escritos do Apóstolo e lhes deu nova redação conforme as necessidades

de então, quando a igreja já está se institucionalizando. No segundo século, nos escritos

de S. Inácio de Antioquia (ano 110) já se encontra bem clara a estrutura: bispo, presbítero

e diácono.

b) Conteúdos

Dois conteúdos podem ser destacados em 1Tm: a referência aos cargos exercidos

na Igreja e o combate aos adversários.

1 - Os cargos de uma igreja que se institucionaliza

A fase carismática da Igreja (1Cor 12-14) fora boa nas suas origens, porém, com o

passar do tempo e com o crescimento das comunidades, começam a surgir as confusões.

É preciso por ordem na casa. Os missionários ambulantes, como os Doze, Paulo, Timó-

teo, etc., já não podiam resolver tudo. Era necessário estabelecer lideranças que garantis-

sem unidade. O mesmo se reflete em At 20,17ss. 1Tm reflete este período nas comuni-

dades, provavelmente, paulinas. São citados alguns cargos:

1.1 - Bispos e presbíteros 3,1-7; 5,17-22

Provavelmente os termos se eqüivalem. Em 3,1-13 passa-se de bispos para diáco-

nos, não mencionando os presbíteros. Isto seria uma sinal de que seriam os mesmos car-

gos. Sua função era: Presidir as reuniões (5,17), ensinar (3,2; 5,17), impor as mãos (4,14),

cuidar da igreja (3,5).

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1.2 - Diáconos 3,8-13

Não se fala de suas funções, como em At 6,1ss, só se fala de suas qualidades.

1.3 - Diaconisas e viúvas 3,11; 5,9-15

Certamente houve ministérios de diaconisas (1Tm 3,11; Rm 16,1-2). O mesmo se

pode dizer das viúvas (5,9-15). Falta, porém, clareza. Não se diz o que elas faziam.

2 - Os adversários

A 1º carta a Timóteo trava luta contra falsos doutores. Quem seriam?

- Judeus: especialistas em Lei (1,7), distinguem alimentos puros e impuros (4,3).

- Gentios: condenam o matrimônio (4,3), ascese exagerada (4,8-10), conhecimento

superior (6,20).

Conclusão

Uma nova fase se desenvolve na igreja, nos anos 70-80. É a fase da institucionali-

zação. Esta fase vem em decorrência das necessidades da época. Os apóstolos de 1º hora

estavam desaparecendo, novos missionários surgem. As idéias sobre Jesus estão criando

asas (Apócrifos). É necessário por ordem na casa. Os missionários itinerantes (aqui pro-

vavelmente um discípulo de Paulo) zelam pelas comunidades, instituindo lideranças que

levem a causa em diante. Para que os líderes locais, sedentários possam ser fiéis, faz al-

gumas recomendações que devem ser levadas em conta por Timóteo, antes de impor as

mãos. Combater os adversários é outra exigência.

Assim nasceu 1Tm nasceu em chão paulino, mas já depois da morte de Paulo,

quando a igreja está vivendo outra fase. 1Tm quer ser uma resposta para uma igreja ex-

cessivamente carismática e por isto mesmo, correndo o perigo de se desviar de Jesus his-

tórico, caindo numa religião idealista e moralista.

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II – EPÍSTOLAS CATÓLICAS

Neste estudo, serão analisadas as cartas de Tg, 1Pd, 1Jo, Jd. As cartas de 2 e 3 Jo

são apenas bilhetes. A 2º carta de S. Pedro será deixada para o estudo do aluno. Havendo

tempo suficiente, será analisada em aula.

2.1 – EPÍSTOLA DE TIAGO

Introdução

Quem

Quem é Tiago? No NT temos diversas referências a Tg:

- Filho de Zebedeu (Mc 1,19; 3,17).

- Filho de Alfeu (Mc 3,18).

- Irmão de Jesus (Mc 6,3; At 12,17; Gl 1,19).

- O menor (Mc 15,40).

- Pai de Judas (Lc 6,16; At 1,13).

Há certo consenso de que seria Tiago, o irmão de Jesus (Mc 6,3), o mesmo judai-

zante de At 12,17; 15,13-21; 21,18; Gl 2,12). Flávio Josefo atesta que este Tiago foi mar-

tirizado em 62. Talvez fosse um cristão desconhecido que atribuiu suas exortações a Tia-

go, bispo de Jerusalém, e tenha refletido assuntos próximos aos ensinamentos dele. Su-

postamente um judeu-cristão que não fez um processo de conversão como Paulo. Usou a

LXX, isto indicaria para um judeu da diáspora.

O Que

Trata da fé concreta que se expressa em obras. Lutero a chamava de carta de palha

e a julgava em contradição com Paulo e com toda Escritura. O escrito se apresenta como

uma carta, mas não tem conclusão nem saudação final. Não se deixa situar no espaço e

no tempo. Parece texto inacabado. Pelo fato de só ter entrado no cânon bíblico no séc. IV,

alguns autores julgavam ser um escrito judaico que entrara no mundo cristão sofrendo

acréscimos de Tg 1,1; 2,1 onde se menciona Jesus. Seria uma alegoria judaica de Jacó

(Tiago) às doze tribos de Israel. Lutero supunha ser um escrito judaico, pouco apostólico.

Queria excluí-la. De fato, Tiago está fora das correntes teológicas cristãs do primeiro sé-

culo.

Na carta há excesso de referências ao AT: Abraão (2,21-23), Raab (2,25), profetas

(5,10), Elias (5,17), sinagoga (2,2), etc. Enquanto Jesus só aparece 2 vezes.

É uma coleção de exortações encadeadas, sem grande coesão interna. O mesmo se

percebe nas parênese paulinas (Rm 12; Gl 5-6; Ef 4-6, em Hb, Didaque. Tg se assemelha

às parêneses do judaísmo e do helênico.

A carta vem escrita em estilo sapiencial do AT (cultura semita - versão dos LXX).

Há grande parentesco com o Sirácida (Eclo). Nenhuma semelhança com as teologias de

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Paulo e pouca com os outros escritos do NT. O mistério da Paixão, Morte e Ressurreição

não é mencionado. Porém, percebe-se, em Tiago, uma certa semelhança com Mateus.

Obedece ao gênero das parêneses e se baseia nas palavras de Jesus (os 8`(4"Logia).

Principalmente nas Bem-aventuranças. Tiago teria usado uma tradição que também foi

usada por Mt. Seria então a tradição de Jerusalém, onde Tiago era bispo.

Comparar

Tg 1,5.17 com Mt 7,7ss = Boas dádivas.

Tg 1,22 com Mt 7,24ss = Pôr em prática a Palavra.

Tg 4,12 com Mt 7,1 = Não julgar

Tg 1,6 com Mt 11,23s = Orar sem duvidar

Para quem

Provavelmente adaptada aos Judeu-cristãos do mundo grego para não perderem os

valores cristãos herdados do judaísmo. Fala pouco de Jesus por ter usado suas próprias

palavras (Logia). Jesus também não falou muito de si. Uma hipótese mais plausível é que

Tiago se dirige a cristãos considerados o Novo Israel que vivem na terra como peregrinos

(Gl 6,16; Fl 3,3).

Quando

Não é possível fixar data. Mas se pode supor que seja do final do 1º século, 80. É

mais nova que os escritos paulinos. Parece que nesta época Tiago já estava morto. A carta

só entrou definitivamente no cânon geral, no século IV, porém, em muitas igrejas ela já é

aceita desde o princípio.

Por que

Parece que houve um esfriamento religioso. Talvez alguns cristãos, possivelmente

ricos, tiraram conseqüências desastradas da pregação paulina (Rm 4 e Gl 3-4 = justifica-

ção pela fé sem as obras). Havia, então, problemas no culto (2,1-13; 3,1-13) ocasionados

pelo relacionamento entre ricos e pobres 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).

Como

Tg usa um grego elegante baseado na versão da LXX, porém marcado com semi-

tismos. Existe bastante proximidade com o Sirácida (Eclo). Enfim, segue a sabedoria ju-

daica. Menciona Jesus apenas duas vezes (1,1 e 2,1).

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Estrutura

É difícil estabelecer uma estrutura de Tiago, pois parece uma coleção de exorta-

ções agrupadas. Amphoux5 propõem a seguinte estrutura:

1 - Provação/tentação (exceto os v.5-11). a) v.2-4.12

b) v.13-25

2 - A fé a) v.1-13 a importância decisiva da fé na vida da comunidade.

b) v.14-26 fé e obras

3 - Fé e obras (3,1-4,10) a) 3,1-12 não abusar da palavra

b) 3,13-18 verdadeira sabedoria não ensina por palavras mas por conduta.

c) 4,1-10 as guerras são fruto da sabedoria do mundo.

4 - Julgamento e salvação (4,11-5,20). a) 4,11-5,6 não falar mal. Não ser jactancioso (4,13-17), não explorar (5,1-6).

b) 5,7-20 à espera da parusia do Senhor.

É preciso paciência (5,7-11).

Não jurar (5,12).

Oração e confissão - perdão (5,13-18).

Solidariedade na salvação (5,19-20).

De acordo com a leitura sociológica que se fará em seguida, tentar-se-á, aqui, uma

estrutura própria:

1 - Exortação aos pobres - Tg 1 - firmeza 1,2-4

- humildade 1,5-8

- advertência aos ricos 1,10-11

- paciência 1,12

- a cobiça é causa dos males 1,13-18

- os sábios devem escutar 1,19-27

2 - Exortação aos ricos - Tg 2,1-5,5 - não separar fé e vida 2

- não ser arrogantes 3

- não cobiçar 4

- não roubar 5,1-6

3 - Exortação aos pobres - Tg 5,7-20 - paciência 5,7-11

- oração 5,13-14

- comunidade 5,14-20

5 CARREZ, M. e outros. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. São Paulo:

Paulinas, 1987. p.294-297.

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LEITURA SOCIOLÓGICA

1 - O lado social

A carta de Tg mostra nitidamente conflitos surgidos na comunidade devido ao

comportamento dos ricos. Inicialmente o apóstolo exorta os pobres à firmeza (1,2-4), à

humildade (1,5-8). Adverte o rico (1,10-11). Dirige-se novamente ao pobre (1,12).

No cap. 2 surge claramente o problema dos ricos. Este problema se estende até o

cap. 5, onde novamente se volta falar aos pobres.

Os ricos querem privilégios até nas assembléias (2,1ss). Eles oprimem o pobre

(2,7), ele não têm piedade (2,13). Os ricos vivem uma religião sem compromisso

(2,14ss). Não dão comida ao pobre (2,16).

Os ricos se fazem passar por mestres (3,1ss), mas não controlam a língua, isto é, a

boca diz uma coisa e a prática é outra. Os ricos cobiçam, rivalizam, prejudicam a verdade

(3,14ss). Suas ambições são a causa das confusões e conflitos (4,1-4). Eles são arrogantes

(4,13-17). Exploram e roubam o pobre (5,1-6).

Em Tg 5,7 volta-se a falar aos pobres. Os pobres devem ter paciência, devem re-

sistir (5,7-11), devem recorrer à oração (5,13ss), devem recorrer à comunidade.

2 - As Classes

Percebe-se a preocupação de Tg em encorajar os pobres à resistência diante da ar-

rogância dos ricos. Tanto no cap. 1 como no cap. 5, os pobres são exortados a resistir

com seus mecanismos, isto é, com a firmeza (1,2-4), humildade (1,5-8) e com a paciência

(1,12). Novamente no cap. 5, eles são exortados a recorrer à paciência (5,7-11), à oração

(5,13ss) e à comunidade (5,14ss).

Os ricos recebem repreensão desde o cap. 2 até o cap. 5. Eles não devem separar fé

e vida, eles não devem ser arrogantes, eles não devem explorar.

Ficam evidentes duas classes:

Ricos causadores de problemas;

Pobres que devem resistir.

3 - O lado político

Os ricos oprimem (2,6-7). Eles difamam o “Nome”. Eles não têm piedade (2,13).

Cobiçam (3,14), criam conflitos (4,1-4), Querem ser mestres (3,1). Exploram (5,1-6).

Tg propõe alternativa ao poder dos ricos que se baseia na cobiça e no roubo. A al-

ternativa é: a paciência (5,7ss), a comunidade (5,13-20).

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4 - Lado ideológico

Tg arranca os argumentos dos ricos:

- a tentação não vem de Deus (1,13ss);

- o sábio deve escutar (1,19ss);

- religião requer prática da justiça (1,26-27).

- religião requer compromisso (2,14ss).

Tg tira aos ricos a vontade de dominar:

- não ser mestre (3,1);

- condena a sabedoria dos ricos (3,15);

- condena a arrogância (4,11-12).

- condena a auto-suficiência (4,13-17).

5 - O conflito

Transparecem dois conflitos:

a) Os ricos na Igreja. Eles entram, mas não querem que a religião mexa nos seus

interesses e privilégios. Querem ser cristãos e continuar a fazer o que lhes convém: ter os

primeiros lugares, explorar, roubar, dominar. Eles são a causa dos conflitos da comuni-

dade.

b) Os pobres e a resistência: Eles são fracos, mas devem resistir, por isto necessi-

tam da força de Deus e principalmente se unir e buscar a força da comunidade.

6 - Teologia

Diante deste quadro, não se deve ficar a ver rastros de cobras e laje de pedra. A

carta de Tiago não é um tratado de Teologia, mas uma carta com zelo pastoral, ou seja,

ela não quer ensinar teologia, mas apenas resolver problemas concretos que afligem a

comunidade. Daí que, o tema da fé sem obras (2,14ss) não pode ser contraposto ao mes-

mo tema de Paulo (Rm 4; Gl 3). Pois, enquanto Paulo se debate com judaizantes que ig-

noram a novidade de Jesus e por isto trazem um conflito teológico, Tiago se debate com

um problema social: ricos e pobres. O assunto não é teológico, mas pastoral.

Os pontos teológicos que merecem destaque, são:

- O pobre deve ter paciência;

- O pobre deve ser humilde e resistir;

- O rico não deve ser arrogante;

- O rico não deve separar fé e vida;

- O pobre deve buscar apoio na comunidade.

Em síntese: Tg quer um comunidade de irmãos. Tudo o mais são meios para con-

seguir tal objetivo.

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2.2 – A 1º CARTA DE PEDRO

Introdução

Quem

O autor se apresenta como “Pedro, apóstolo” (1,1) e como o “ancião” (5,1). Ainda

nos diz que escreveu por meio de Silvano (5,12), na companhia de Marcos. A Tradição

atribuiu esta carta a Pedro desde Clemente, Irineu, Tertuliano. Papias diz que há estreita

relação entre Pedro e Marcos (At 12,12).

Aqui, no entanto, esbarramos em dificuldades:

a - Um pescador da Galiléia escreveria um grego belo assim? Quando cita o AT, usa

a versão grega (LXX).

b - Existe paralelismo com a teologia paulina:

- Pedra de tropeço (1Pd 2,4-8 // Rm 9,32-33).

- Exortação à submissão às autoridades (1Pd 2,13-17 // Rm 13,1-7).

Teria sentido pensar em uma influência paulina sobre Pedro, depois de Gl 2,11-14?

Talvez existisse um fundo catequético comum que ambos usassem.

c - 1Pd parece um tanto distante de Jesus. Só se refere à vida de Jesus de forma ge-

nérica. Faltam temas como: Filho do Homem, Reino de Deus, etc. Será que Pedro, que

caminhou com Jesus, omitiria temas centrais?

d - A carta se refere às primeiras perseguições oficiais generalizadas do tempo de

Domiciano, dos anos 81-96 (1Pd 4,12; 5,9). Isto extrapolaria os anos de vida de Pedro, que

deve ter sido assassinado por volta de 67. Alguns autores acham que as perseguições pro-

vém do povo e não do governo.

Uma tese muito provável é que alguém anônimo escreveu a carta e, devido à proe-

minência de Pedro, atribuiu a carta a ele.

Para quem

A carta é endereçada aos cristãos de 5 províncias romanas da Ásia Menor.

"Aos eleitos que vivem como estrangeiros na dispersão, no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bití-

nia" (1Pd 1,1).

O termo "dispersão" significa judeus fora do seu país, mas pode, por analogia, sig-

nificar judeu-cristãos ou simplesmente os cristãos dispersos no mundo (2,11).

Quando

Alguns autores julgam ser a carta de 64, neste caso seria ainda do tempo do apósto-

lo Pedro. Outros, no entanto, julgam que há reflexos da perseguição de Domiciano (anos

90). Parece que esta última data é mais provável.

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Aonde

O autor diz que está na Babilônia (5,13). Isto seria uma referência a Roma (cf. tam-

bém Ap 17-18).

O que

A carta é uma coleção de exortações. Contém pouca doutrina. Pode-se destacar: o

sacerdócio real (1Pd 2,9) e a descida aos infernos ((1Pd 3,19).

Estrutura 0 - Introdução 1,1-12

1 - Primeira exortação a cristãos de origem pagã 1,13-2,10.

2 - Segunda exortação: conduta entre os pagãos 2,11-3,12.

3 - Terceira exortação: apelo à confiança diante da oposição 3,13-4,11.

4 - Quarta exortação: determinação diante a perseguição 4, 12-19.

5 - Exortações particulares 5,1-11.

6 - Conclusão 5,12-14

OS ESTRANHOS SEM CASA

1- O texto apresenta uma carta de Pedro (1,1) e de seus companheiros (5,12-13)

enviada a cristãos forasteiros em trânsito e estranhos residentes (1,1; 2,11) em províncias

romanas da Ásia Menor (1,1). Pedro exorta (5,12) estes cristãos em momentos difíceis:

1,6; 2,12.19-20; 3,14-16; 4,1-4.12-16.19; 5,9.

Os termos chave da presente leitura são:

estranhos residentes em terra estrangeira (2,11).

- residência no estrangeiro (1,17).

Casa de Deus (4,17).

Casa espiritual (2,5).

Estrangeiro peregrino, breve estadia, forasteiros em trânsito.

Assim:

(1Pd

1,1).

"Pedro apóstolo de Jesus Cristo aos eleitos estrangeiros peregrinos (breve estadia,

forasteiros) na dispersão".

(1Pd 1,17).

"Por todo tempo de vossa residência no estrangeiro".

Obs.: geralmente se traduz por "durante o exílio nesta terra".

(1Pd 2,11).

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Amados rogo-vos como estranhos residentes e forasteiros em trânsito".

Uma leitura meramente exegética não percebe o alcance sociológico destes termos,

caindo num moralismo espiritualizante, como é o caso de 1,17.

2 - Sentido de no mundo greco-romano

- vizinho, habitante em casa de outrem, estranho, estrangeiro.

- estrangeiro que não possui raízes nacionais, estranho à cultura, à reli-

gião, etc.

- minha casa, meu lar, minha família, minha cultura, meus deveres e meus

direitos.

morar permanente.

- parentesco, amigos, familiares.

Então:

- negação de tudo isto.

- pessoa deslocada, fora de seu lugar, segregado social, alienado cultural,

sem direitos civis.

Em alguns documentos antigos se distingue diversas categorias:

- cidadãos plenos.

- estrangeiros, livres e escravos.

Então formam um grupo reconhecido pelo estado, abaixo dos cidadãos

plenos e acima dos meros estrangeiros escravos. Era uma classe intermediária, semi-

marginalzados. É difícil saber a porcentagem destes no mundo greco-romano,

mas parece que havia muitos. Trabalhavam no comércio, nas artes, na agricultura, princi-

palmente nas terra apoderadas pelos citadinos. Era comum que o império desse terras aos

cidadãos distintos (puxa-sacos). Além disto, as cidades gregas possuíam glebas de terra

nos arredores. Estas terras eram cultivadas por semi-cidadãos que não possuíam direitos

plenos. Estes eram os Hoje seriam chamados arrendatários ou capatazes. Eram

eles que sustentavam as cidades.

Também na LXX se usa este termo:

Estranho residente: Abraão no Egito (Gn 12,10; 15,13).

Abraão em Canaã (Gn 17,88).

Ló em Sodoma (Gn 19,9).

O próprio Israel é muitas vezes visto como estrangeiro residente (Dt 23,8; 1Cr

29,15). O mesmo no Sl 38,12 e 11,19. Um texto bem ilustrativo da situação dos

se encontra em Eclo 29,21-28.

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A origem destes podem ser encontradas:

- frutos das invasões e conquistas (seqüestros).

- frutos da redução a hóspedes em suas próprias terras (os nativos viram hós-

pedes).

- migrações (migrantes viram hóspedes).

"Em 1,17 e 2,11 verifica-se a condição político-jurídica dos destinatários e estimula-se à sua acei-

tação na fé e obediência à vontade de Deus"6

"Os destinatários, que se distinguem, entre os vizinhos, como estrangeiros residentes e forasteiros

em trânsito, devem tirar vantagens dessa condição também para destacar sua identidade religiosa

distinta"7.

"Amados, exorto-vos, como a estranhos residentes e forasteiros em trânsito" (1Pd 2,11).

Assim 1,17 e 2,11 mostram a real situação dos destinatários de 1Pd, isto é, são es-

trangeiro e estranhos nos territórios que ocupam. No Império Romano se reduzia o povo

conquistado a peregrino em sua própria terra. Nem todos recebiam a cidadania romana

(lembrar os privilégios de Paulo).

3 - O sentido de em 1Pd.

Os estrangeiros residentes e forasteiros tinham situação vulnerável no Império Ro-

mano. Sofriam restrições quanto ao matrimônio, ao comércio, à propriedade, participação

nas assembléias. Pagavam mais taxas, tributos, penas civis e criminais.

A tudo isto soma-se o termo (1Pd 1,1). Isto lembra os judeus fora de Is-

rael. Então 1,1 se refere a cristãos que, como outrora os judeus, vivem fora da Palestina.

Em 5,13 se fala da Babilônia. Babilônia pode representar o lugar do exílio.

Então, e ,são em 1Pd indicativos

da identidade político-jurídica, social e religiosa dos destinatários e dos autores.

Estes termos são muitas vezes mal traduzidos, perdendo assim a dimensão política e

social.

Assim, temos para 1Pd 1,1 as seguintes traduções que não são boas:

"Estrangeiros na dispersão" (TEB).

"Estrangeiros dispersos" (KJV). "Exilados da dispersão" (RSV).

"Eleitos moradores por algum tempo na dispersão" (Beare).

"Povo eleito de Deus estabelecido temporariamente" (Kelly).

6 ELLIOT, John. Um lar para quem não tem casa - Interpretação sociológica da

primeira carta de Pedro. São Paulo: Ed. Paulinas. 1985. p.39. 7 ELLIOT, John. op.cit. p.40.

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"aos eleitos estrangeiros peregrinos (breve estadia, forasteiros) na dispersão" (au-

tor).

1Pd 1,17: .

"o tempo de vossa moradia aqui" (KJV).

"durante o tempo de vossa estada nesta terra" (TEB).

"Todo tempo de vosso exílio" (RSV).

"Por todo tempo de vossa residência no estrangeiro" (autor).

Obs.: "nesta terra" torna o conteúdo alterado.

1Pd 2,11: .

"Peregrinos e estrangeiros" (TEB).

"Estranhos exilados" (RSV).

"Estranhos em terra estrangeira" (NEB).

"Estranhos e exilados neste mundo" (TEV).

"estranhos residentes e forasteiros em trânsito" (autor).

Obs.: "neste mundo" altera o sentido.

Se olharmos as traduções comuns, conclui-se que o texto quer ser uma mensagem

teológica para peregrinos neste mundo que esperam sua verdadeira pátria no céu. Os fiéis

seriam estranhos no mundo porque seu destino é o céu. Assim desaparece a dimensão polí-

tica e social dos termos, tudo seria meramente espiritual. Porém, ao que parece, o texto

aponta para uma situação de conflito, própria a estranhos residentes e forasteiros que se

vêem limitados em seus direitos. O conflito não é céu e terra, mas social, ou seja:

"A comunidade cristã marginalizada e em tesão com seus vizinhos sociais"8.

Mesmo que a carta fale do céu, ela transpira conflitos da terra. 1Pd 2,11-12 e 4,1-6

mostram a vida dos estranhos e forasteiros entre os não-crentes, logo, não se trata de pere-

grinação aqui na terra, mas de peregrinação em terra estranha.

Os destinatários de 1Pd são mescla de estrangeiros, estranhos permanentes e tempo-

rários na Ásia Menor. Vivem em condições de estranhos e de alienação sociorreligiosa na

diáspora e Babilônia como os antigos Israelitas.

4 - Recapitulação

"Em 1Pd, os termos paroikia, paroikoi e parepidemoi identificam os destinatários como

uma classe de pessoas deslocadas, que na realidade são de fato estranhos residindo

de forma permanente (paroikoi) ou forasteiros em trânsito (parepidemoi) nas qua-

tro províncias da Ásia Menor"9.

8 ELLIOT, John. op. cit. p.48. 9 ELLIOT, John. op. cit. p.53.

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Isto não significa apenas deslocação geográfica, mas também limitações políticas,

legais, sociais e religiosas. Podem ser agricultores ou citadinos. Possuíam estatutos jurídi-

cos inferiores à cidadania plena: agricultores, artesãos, operários, comerciantes, etc.

Eram estranhos à sociedade, não ao mundo.

"O foco central de 1Pd volta-se para a interação dos cristãos e da sociedade, os contrastes e confli-

tos sociais que vieram a criar um estado de crise para o movimento cristão na Ásia Menor"10

.

"A primeira carta de Pedro está endereçada aos estranhos/estrangeiros residentes e aos forasteiros

em trânsito que, a partir de sua conversão ao cristianismo, ainda se sentem estranhos e sem lugar

no seu meio"11

.

Destinatários de 1Pd e sua situação

1 - Localização geográfica

Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia (1,1) são regiões da Anatólia que caíram

no domínio romano em 133/31 a.C. A área tinha uma população de 8.500.000 habitantes.

É uma região de diversidade de terras, povos e culturas.

A romanização e a helenização quase só atingiram as cidades. No interior vivia-se

de forma tribal. Havia poucas cidades e colônias militares.

Diante de um mundo tribal, a urbanização é sinônimo de domínio romano. A urba-

nização traz também a língua grega e o latim, porém, as línguas nativas e suas tradições

persistiram muito tempo, ainda no século IV há vestígios. As tribos ignoravam a língua e

os costumes de seus dominadores, bem como sua dominação.

O processo de romanização deve ter usado de cautela, não impondo pura e sim-

plesmente sua religião (culto ao imperador). Parece que os problemas de 1Pd não são os

mesmo do Apocalipse (culto ao imperador). 1Pd 5,9 fala de um conflito social por todo o

mundo. Fruto das condições sociais, mas parece não ser confronto com Roma. Este confli-

to (1Pd 5,9 reflete situação rural, já que nas cidades a romanização apagava o conflito.

Pode-se, então supor que 1Pd se destina a cristãos da roça que estão num tribalismo

decadente. Os paroikoi poderiam ser fazendeiros tribais vivendo em vilas, cujas terras iam

se anexando a centros maiores (cidades). Neste caso eles viravam estranhos residentes em

suas próprias terras.

Certamente havia cristãos entre todos os grupos, mas parece que predominavam en-

tre os agricultores:

1,22-24 = mundo agrário

2,25 = mundo pastoril

10 Op. cit. p.55.

11 Op. cit. p.55.

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5,2-4 = mundo pastoril

5,8 = mundo rural

Este é o chão encontrado pelo cristianismo e sobre o qual se move 1Pd.

A região pressupõe uma vasta ação missionária. Paulo esteve na Galácia e na Ásia,

mas não no Ponto e na Capadócia. Estas duas cidades são nomeadas em At 2,9-11. Poderi-

am ter sido evangelizados por judeus peregrinos de Jerusalém (At 2,9-11). Se assim for, a

carta deveria ser no mínimo trinta anos após o Pentecostes.

Pedro se distancia das cartas e da ação Paulina. Paulo se move no mundo urbano.

Pedro vai além das fronteiras paulinas, para o mundo rural. Portanto, os problemas encon-

trados por 1Pd são outros que os de At, Ap e Paulo.

Os problemas de 1Pd são tensões sociais locais entre nativos e estranhos, desloca-

dos e marginalizados socialmente no seu meio. Os problemas decorrem da urbanização, da

desapropriação e não do culto imposto por Roma.

Além disto, a diversidade social, política, cultural e religiosa oprimia os cristãos.

Isto 1Pd quer enfrentar.

2 - Constituição étnica

Parece que houve mistura de judeus e não-judeus, prevalecendo os não-judeus. 1Pd

reflete a vida de cristãos oriundos do paganismo que deveriam romper com a libertinagem

da vida passada (1,14; 2,10).

3 - Seu estatuto legal, econômico e social

É difícil saber com exatidão como era a vida destes cristãos. Tendo por base o texto,

os paroikoi eram diferentes do comum do povo. Estas diferenças traziam desvantagens po-

líticas, legais e econômicas. Constituíam classe intermediária entre nativos e estrangeiros

(. Sendo a maioria agricultores, constituíam a espinha dorsal da economia do impé-

rio. Produziam o que as cidades consumiam.

Não votavam nas assembléias, não possuíam terras, não podiam casar com mem-

bros de outras classes, eram forçados ao serviço militar, tinham liberdade religiosa, não

podiam ser sacerdotes das religiões oficiais, eram responsáveis por pesados tributos e ta-

xas.

"Somente os cidadãos gozavam de plenos direitos civis, ao passo que os estranhos residentes (...)

eram considerados como nascidos no estrangeiro, ainda que de fato nascidos na cidade e lá tives-

sem crescido"12

.

Diante deste quadro, os paroikoi deviam ser responsáveis:

12 Op. cit. p.68.

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- ter procedimento exemplar 2,12;

- respeitar as autoridades 2,13s;

- ser servos obedientes 2,18.

São mencionados:

- homens livres 2,16;

- mulheres de homens não-cristãos 3,1-6;

- maridos de mulheres não-cristãs 3,7;

- presbíteros 5,1-4;

- neoconvertidos 5,5.

A advertência às esposas sobre os adornos (3,3) pode indicar que havia algumas de

certa posição social. A exortação aos escravos (2,18-20) lembra que em geral eram de

classe pobre.

Enfim, escravos, semi-livres e livres, todos carregavam em seus ombros o ônus da

Pax Romana. Este cenário, economicamente dilacerado, fazia com que o povo se abrisse à

novidade cristã. O cristianismo foi um sinal de alívio para o povo sofrido.

4 - Sua identidade religiosa: sectarismo

O espírito sectarista caracteriza os destinatários de 1Pd. Isto lhes causava hostilida-

des. Sofriam pelo nome de cristão (1Pd 4,14-16). Tal perseguição não seria propriamente

movida pelo império romano, como no Apocalipse, mas seriam as cruzes decorrentes de

sua maneira sectária de ser.

O sectarismo se fecha, é exclusivista. Isto provoca reações na sociedade:

Características de seita:

a) emerge de um protesto;

b) rejeita a visão da realidade estabelecida;

c) é igualitária;

d) oferece aos adeptos aceitação e amor na comunidade;

e) organização voluntária;

f) prescreve comportamento rígido;

h) é adventista, espera fim iminente;

i) isola seus fiéis do resto da comunidade.

1Pd se enquadra neste esquema:

- os destinatários tem comunidade bem definida e divinamente prescrita: povo eleito

(1,4b; 2,5.9.10).

- chamados por Deus (1,1-2).

- segregados do resto (1,5.18-21; 2,4-10).

- vida fraterna (1,22; 2,5.17).

- fé singular em Jesus (1,2-3).

- ética firme (1,17; 2,17).

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1Pd é uma seita conversionista. Ela quer transformar a pessoa. Tais seitas surgem

em situações de individualização, quando ocorrem profundas mudanças sociais, como:

- enfraquecimento das estruturas, destruição das comunidades, migrações forçadas,

invasões.

Assim, os indivíduos precisam acomodar-se às novas exigências. Aí entra o papel

das seitas conversionistas. Parece que este tenha sido o chão propício à expansão do cristi-

anismo primitivo.

Este seria o chão de 1Pd. Numa sociedade onde estranhos/estrangeiros estão deslo-

cados, surge o cristianismo como perspectiva comum de salvação numa fraternidade de

amor. O cristianismo não é apenas um fenômeno religioso, mas também social. O cristia-

nismo representava lugar onde se sentiam em casa os muitos deslocados sem casa e sem

pátria. Tratava-se de sociedade alternativa e auto-suficiente onde os deslocados podiam

conservar seus valores diferentes da sociedade. As pessoas enxotadas na sociedade se sen-

tiam atraídos pelo cristianismo. Nele achavam força para superar tensões.

Assim, 1Pd não quer mudar as estruturas da sociedade, mas sim, o coração e a

consciência (2,19-20; 3,3-4.15-16.21). No entanto, esta nova comunidade representava um

protesto social. Este aspecto provocava reações na sociedade. O sectarismo provocava re-

púdio de ambas as partes.

"Os conflitos e sofrimentos dos destinatários de 1Pd podem, em outros termos, considerar-se como

fator concomitante de sua organização nos moldes de uma seita religiosa"13

.

5 - A interação dos cristãos com os não-cristãos

O motivo de 1Pd foi a interação dos cristãos sectários com os demais grupos (não-

cristãos). O cristianismo havia se espalhado nas cidades e zonas rurais de algumas provín-

cias da Ásia Menor. A proposta de salvação tornou-se atraente, principalmente aos deslo-

cados (estranhos/estrangeiros) que necessitavam de segurança social e econômica. Expres-

savam-se de forma judaica. Como os judeus, tinham fronteiras bem traçadas entre os

membros e os de fora. Eram alheios aos acontecem-tos da vida civil e social. Desta, forma,

os de fora olhavam estranhamente para os cristãos e estes se auto-excluíam. Os cristãos se

faziam estranhos social e religiosamente.

Estranhos sempre são, ou parecem ser, perigo para a ordem pública. Isto terá des-

pertado suspeição diante de pessoas que desconhecem a realidade. Ainda mais, seu líder

foi crucificado como rebelde e em Roma os cristãos eram acusados de incendiar a cidade.

Tudo isto deixava os cristãos suspeitos. Isto lhes trazia inúmeros sofrimentos.

Principais reações:

- Ignorância do povo 2,15

- Curiosidades 3,15

13 Op. cit. p.79.

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- Suspeita 2,12;4,14-16

- Hostilidade 3,13-14.16

Os de fora não conheciam a vida dos cristãos, tudo era mistério. Isto se tornava mo-

tivo de desprezo.

Havia suspeitas:

- falta de lealdade civil 2,13-17

- desleais aos senhores 2,18-20

- desleais aos esposos pagãos 3,1-6

- desleais às esposas pagãs 3,7

- líderes desleais ao povo 5,2

Os antigos amigos estranhavam o rompimento de laços dos cristãos (4,4) Assim de-

nunciavam os cristãos e seu Deus (4,14). Os cristãos, diante deste quadro sentiam medo e

tristeza. Por isto, 1Pd quer encorajar estes cristãos estranhos, sofredores.

Conclusão: 1Pd não reflete perseguição oficial, mas popular. É comum em todo o

NT se falar de tal perseguição (At 28,22). 1Pd quer confirmar e consolidar este grupo.

6 - Data de 1Pd

1Pd pode ser situada entre os anos 69-92 d.C., mais especificamente no período fla-

viano. Nesta época, devido à Guerra Judaica (66-70), os cristãos se espalham e se distin-

guem claramente dos judeus (Jâmnia - 90).

Muitos apóstolos já não vivem: Tiago Zebedeu morreu no ano 44 (At l2,1s); Tiago,

o irmão do Senhor, no ano 62 (cf. Flávio Josefo); Pedro e Paulo, supostamente no ano de

67.

O problema teológico já não é mais o templo, a Lei e a circuncisão, como em Paulo

e Atos dos Apóstolos. Agora é mister encorajar a identidade da nova seita frente ao mun-

do, sua legitimação (1Pd 1,6-7; 4,12). Agora o relacionamento é menos personalizado por

ter destino mais amplo.

1Pd, como Tiago e Hebreus encoraja os cristãos, mas não lembra a perseguição vio-

lenta do Apocalipse (anos 95). Portanto, a tribulação de 1Pd não é de Domiciano (1Pd

2,13-14.17), isto é, o documento é mais antigo que o Apocalipse.

A estratégia sóciorreligiosa de 1Pd

Uma seita fechada, ridicularizada e perseguida recebeu a carta de 1Pd.

"A carta consolava e encorajava os cristãos que sofriam nos confins do mundo político e social da

Ásia Menor"14

.

14 Op. cit. p.40/41.

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O autor reagiu frente aos problemas da tensão social soabre a seita cristã. Confir-

mava seus membros, incentivava a sua identidade singular, bem como a disciplina e coe-

são interna. Assim, o conflito entre cristãos e gentios se tornava benéfico para a seita.

"O conflito iluminava fronteiras grupais e confirmava as diferenças, causava também coesão inter-

na cristã"15

.

Assim se tornavam missionários diante dos de fora. 1Pd parece não querer superar o

problema dos paroikoi, mas quer manter a distinção dos demais como pré-requisito para a

eficácia do testemunho missionários16

. Todo fechamento, distinção, comportamento obedi-

ente serviria como zelo missionário.

Como os cristãos eram ridicularizados na sociedade, o autor lhes insuflava uma

idéia de auto-estima, isto é, apontava para a sua Eleição por Deus (1Pd 1,1-2). 1Pd mostra

que também os cristãos de condição social inferior em Cristo são iguais (1Pd 2,13-17 =

povinho; 2,18-25 = pobres; 3,1-6 = mulheres).

Significado e função de casa em 1Pd

Diante do quadro de Paroikoi e Parepidemoi, qual o sentido de oikos "casa" (2,5 e

4,17)?

Geralmente, nos estudos bíblicos, oikos só é visto como conceito teológico, esque-

cendo-se sua função social. Em 1Pd encontram-se diversos termos derivados:

- casa espiritual 2,5

- casa de Deus 4,17

- criados 2,18

- ser edificado 2,5

- administradores 4,10

- residência temporária 1,17

- que mora no estrangeiro 2,11

- conviver 3,7

Então, em 1Pd tem sentido de casa ou família, às vezes comunidade social,

política e religiosa. Ou ainda:

"Os fiéis como bons ecônomos da multiforme graça de Deus"17

.

15 Op. cit. p.l4l.

16 Não se pode esperar que 1Pd quisesse resolver os problemas sociais estrutu-

rais, pois os cristãos eram uma minoria, quase insignificante. 17 Op. cit. p.149.

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1 - Destinatários de 1Pd como casa de Deus

Em 1Pd, é símbolo eclesiológico ou comunitário. Um grupo (seita) que vivia

como estrangeiros, estranhos, semi-cidadãos, recebendo hostilidades, recebe em 1Pd exor-

tação e encorajamento como uma fraternidade cristã, casa ou família de Deus.

Casa ou família é componente básico em 1Pd:

a - O radical é usado muitas vezes:

- casa=família 2,5;4,17

- ser construído 2,5

- criados da casa 2,18

- conviver na casa 3,7.

b - Muitos termos que no NT são usados, em 1Pd adquirem novo sentido, ligado à

casa:

- maridos amar as esposas Cl 3,22; Ef 5,25

- maridos amar as esposas = conviver

- escravos Lc 2,29; Cl3,22; Ef 6,5-8

- servos = escravos

- templo 1Cor 3,16; Ef 2,21

- templo = casa espiritual

- administradores 4,10

c - Outros termos lembram o caráter doméstico:

- fraternidade 2,17; 5,9

- amor fraterno 3,8

O julgamento começa com os de casa (4,17). Os outros não estão na casa. Os de

dentro não podem se comportar como os de fora (4,18). A divisa entre cristãos e não cris-

tãos fica clara, é a casa (4,12-19).

2 - Papel e função de casa/família em 1Pd

Casa tem função eclesiológica, sociológica, literária e teológica. O simbolismo do

Povo de Deus como já se encontra na antiga história secular e religiosa:

a - Na história secular:

- unidade social primária e modelo da vida comunitária.

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"Para os incontáveis estrangeiros e forasteiros deslocados e expatriados desse período, a pertença a

um , fosse uma comunidade de conterrâneos da pátria de origem ou de companheiros de

imigração, companheiros de comércio ou de religião, significava a possibilidade de ao menos um

nível mínimo de segurança social e sentimento de aceitação"18

.

b - No AT:

No AT, ou Bait são sinônimos de Povo de Deus: Casa de Israel.

c - No NT:

entidade étnica: Casa de Davi, etc.

templo, casa de Deus, comunidade crente.

Muitas vezes é ponto focal do movimento cristão. O movimento cristão re-

sulta da conversão de famílias, por isto, no a Igreja nascente encontra sua base de

sustentação. Pelas conversões velhas famílias se desfaziam e novas se construíam.

e designam a macrofamília de Deus, tanto casas particulares como

assembléias públicas.

Se tem papel tão importante na simbologia de 1Pd, isto significa que o termo

possuía seu papel e função no ambiente cultural da carta. A família foi uma forma de orga-

nização cristã nas origens de Roma e da Ásia Menor. Assim a organização doméstica in-

fluenciou a linguagem da comunidade.

Por que a casa?

Seus destinatários estavam deslocados geograficamente, marginalizados, alienados

social, cultural e religiosamente. Eram inferiores. Sua conversão ao cristianismo lhes trou-

xe mais sofrimentos. Seu caráter sectário, seu exclusivismo os opõem às chacotas. São vis-

tos com desconfiança. Estavam ameaçados de desintegração, internamente esfriavam e ex-

ternamente se conformavam ou se acomodavam.

Este sofrimento era dano irreparável ao espírito missionário. Para sobreviver era ne-

cessário: reafirmar a identidade comunitária, reforçar a coesão grupal, mostrar a compati-

bilidade entre a situação concreta e sua esperança e eleição divina.

Em síntese, esta é a perspectiva de 1Pd: Quer ser uma carta fraterna de encoraja-

mento e parênese, conforto e confirmação (5,12). Para afirmar a identidade, se chama a

comunidade de casa/família de Deus.

"Para os paroikoi cristãos - diminuídos, despossuídos e dispersos no seio de uma sociedade estra-

nha e alheia - a sua identificação com a casa eleita e santa de Deus constituía meio particularmente eficaz de se afirmar sua identidade comunitária peculiar e distintiva e sua integridade sociorreligio-

sa"19

.

18 Op. cit. p.206.

19 Op. cit. p.211.

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Assim, era ideologia que fazia levantar qualquer cabeça deprimida.

Existem, em 1Pd, outros termos coletivos para designar a comunidade cristã: gera-

ção eleita, casa do rei, corporação de sacerdotes, nação santa, povo de Deus (1Pd 2,9-10).

O fato de serem povo de Deus (2,9-10) é a força para romperem com as antigas formas de

vida pagã (1,14.18; 2,11; 4,3).

Os fiéis são associados a Cristo:

- devem sofrer pelo seu nome (4,16), pois também ele foi rejeitado (2,4).

- Cristo sofreu injustamente (2,21-24), assim também o cristão (2,12.20).

- Cristo ressuscitou (1,3.21; 3,22), assim também o cristão ressuscitará (4,5-6).

Enfim, em tudo o cristão deve-se comportar como Cristo. Isto é ser casa/família de

Deus. Pela casa/família estão unidos a Jesus. O centro desta associação está em

- Jesus, pedra viva 2,6-8.

- Comunidade messiânica: pedra viva, casa onde o espírito habita (2,9-10).

Já que os fiéis são a casa de Deus, devem viver como Por isto a

obediência a Deus vem em moldes domésticos: servos/escravos domésticos (2,18ss;

3,1ss.8; 4,9). Toados devem servir como administradores da graça de Deus (4,10). Assim,

casa/família são o tema de integração literária e teológica.

3 - Conclusão

Casa/família tem função social:

- Afirma e encoraja a seita em sua identidade;

- Reconhece a tensão na sociedade e a correlação na comunidade de fé. Na socieda-

de eles são paroikoi, na comunidade eles são oikoi tou Theou.

expressava o sonho de unificação grupal, necessidades econômicas e sociais,

casa, lugar de convivência, lugar de pertença e aceitação. A igreja torna-se o lar dos que

não têm casa. A casa protege os de dentro, defende contra os de fora. Fora de casa os pa-

roikoi não têm segurança. Fora está satã (5,8) que quer devorar a casa.

A Igreja casa/família torna-se assim a proteção de estranhos mal aceitos numa soci-

edade hostil.

"Somente nesta família é que os outros rejeitados tornavam-se o povo eleito e os privilegiados de Deus"20

.

Aqui os paroikoi podem sonhar. Por isto, também, a carta assume um caráter de de-

veres domésticos (2,18ss). Tudo gira ao redor da casa e visa fomentar a solidariedade in-

terna da seita.

20 Op.cit. p.214.

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"Em 1Pd, o código é nitidamente um código doméstico, usado para elaborar os papéis, relaciona-

mentos e responsabilidades do pessoal que integrava a casa de Deus"21

.

Sua ética não é mera conformação ao Estado (2,13ss), mas quer manter a casa, ou

seja, a coesão interna da seita contra os de fora. Todas as pessoas devem respeitar o rei. Os

cristãos o fazem por causa de Cristo (2,13).

"Respeitai a todas as pessoas, amai vossos irmãos, temei a Deus e tributai honra ao rei" (2,17).

Os termos refletem tensão entre a seita e a socie-

dade. reflete a vida real e refile-te a possibilidade criativa. Então não se

deve ver como conceitos teológicos da peregrinação

nesta terra, mas sim, como tensão sóciorreligiosa.

Não se deve pensar que os cristãos são estranhos e peregrinos neste mundo e que

terão pátria definitiva no céu, mas sim, que são estranhos na Ásia Menor e que terão uma

casa aqui e agora no seio da comunidade.

1Pd que manter a casa em pé.

21 Op. cit. p.215.

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2.3 – A EPÍSTOLA DE JUDAS

Introdução

O que

Judas é uma Carta-exortação contra falsos mestres que surgiram negando Jesus, o

Senhor e disfarçando a graça de Deus (v.4-5). A carta quer defender a fé tradicional (1,3-

4). Adverte para os castigos, apelando para a história de Israel, inclusive recorre a textos

apócrifos:

- v.5 no Êxodo Deus fez perecer os incrédulos (Nm 14,35).

- v.6 os anjos maus (Gn 6,1-2 e também Ap. de Enoc).

- v.7 Sodoma e Gomorra (Gn 19 e também o Testamento de Neftali).

- v.11 Caim (Gn 4), Balaão (Nm 22-24), Coré (Nm 16).

Os mesmos castigos que atingiram Israel no passado, devido à sua infidelidade,

ameaçam também os falsos mestres, pois seu comportamento é semelhante. O comporta-

mento destes falsos mestres pode ser assim descrito:

- v.8-16 libertinagem da carne, não respeitam a Deus nem aos anjos, avacalham as

refeições.

Contra os abusos dos falsos mestres, o autor lembra a autoridade ou a pregação dos

apóstolos de Jesus (v.17-19). Neles repousa a autoridade para refutar quem incorreu em

erros.

Para que

Falsos mestres, supostamente gnósticos libertinos atrapalham as comunidades:

- provocam divisões (19).

- perturbam os agapes (12).

- são arrogantes (16).

- são mundanos, sem Espírito (19).

- são sonhadores (delírios) (v.8).

- negam a graça de Deus e o Senhor Jesus Cristo (4).

- não respeitam os seres celestes (8).

- vivem de forma licenciosa (4.7-8.10.18).

"São, por conseguinte, representantes de uma tendência gnóstica que sustenta e afirma uma exis-

tência verdadeiramente pneumática de maneira alguma é afetada pelo que a carne faz"22

.

Este gnosticismo também é conhecido em Ap 2,6.14-15.20ss e 1Cor.

Judas escreve sua carta para repreender e ameaçar estes falsos mestres (5-7.12-

13.15) e exorta os fiéis a permanecer na fé confiada aos santos (3) e usa argumentos dos

apóstolos para dar autoridade (17-19).

22 KÜMMEL, Werner. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Ed. Paulinas.

1982. p.560.

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Para quem

"Aos que são chamados, que são amados por Deus Pai e guardados para Jesus Cris-

to" (1).

Parece que não são comunidades específicas. Provavelmente se dirige a cristãos

vindos do paganismo, pois aos judeus não seria necessário recomendar contra as licencio-

sidades.

Quem

"Judas, servo de Jesus Cristo, irmão de Tiago" (1). Certamente trata-se de Tiago

Maior, o irmão do Senhor, pois o menor já estava morto (At 12,1-2). Encontram-se refe-

rências ao Tiago em Tg 1,1; Gl 1,19; 1Cor 15,7).

Judas é citado junto com Tiago, nos evangelhos, como o irmão do Senhor (Mc 6,3;

Mt 13,55). Mas não se sabe se é o mesmo que o apóstolo Judas (Lc 6,16; At 1,13) que é

chamado Judas, filho de Tiago.

É difícil provar que o autor seja este mesmo Judas, o apóstolo, ou o irmão de Jesus.

É mais fácil admitir que o autor seja um cristão-judeu que se baseia nos escritos apocalíp-

ticos do judaísmo: Ascensão de Moisés (9), Apocalipse de Enoc (14), Lendas Judaicas

(9.11). Tem-se a impressão que não seja o apóstolo, pois fala dos apóstolos como um gru-

po ao qual ele não pertence (17).

A maneira bela de escrever e as referências aos livros apocalípticos certamente não são

atributos de uma galileu como Judas, o apóstolo.

Quando

A carta pertence à era tardia do NT, isto é, fim do primeiro século ou início do se-

gundo. Judas usa Tiago e por sua vez é usado por 2Pd. Já no segundo século a epístola está

no cânon, mas é contestado por alguns autores (Orígenes, Eusébio e Jerônimo), pelo fato

de recorrer a textos apócrifos. Sua canonicidade definitiva e geral acontece a partir do sé-

culo IV.

Onde

O texto simplesmente não deixa nenhuma pista.

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Plano da Epístola23

1-2 Endereço-saudação

3-4 Finalidade da carta: exortar os destinatários a combate-

rem pela fé, porque homens perigosos

para a comunidade começaram a causar

prejuízos.

5-23 Argumentação:

5-7 Desejo trazer-vos 3 exemplos de cas-

tigo tirados do antigo Testamento:

o povo durante o êxodo,

os anjos

Sodoma e Gomorra.

8-16 Essas pessoas agem do mesmo modo, lo

go, são passíveis dos mesmos casti-gos.

17-23 Exortação: "Vós, porém, amados...",

lembrai-vos das palavras de vossos apóstolos... Vivei

na fé, no amor e na esperança...

24-25 Doxologia final.

Pontos a ponderar

- O v. 6 Anjos acorrentados. Lenda judaica inspirada em Enoc 6-10. A TEB em sua

nota g ao v.6 diz:

"Estes anjos tinham abandonado sua posição, seduzindo mulheres; desta união tinham nascido gi-

gantes que desolavam a terra (Enoc, cc 6-10).

Sobre 2Pd 2,4, que trata do mesmo assunto, a nota v da TEB diz:

"No judaísmo posterior, em volta de Gn 6,1-4 tinham-se desenvolvido especulações sobre o pecado

dos anjos - os filhos de Deus - e sobre seu castigo (livro de Enoc, cc. 19 e 21).

O v.7b"Corrido atrás de seres de outra natureza". A nota i da TEB no diz:

"Trata-se de vícios contra a natureza, praticados pelos habitantes de Sodoma e Gomorra. Segundo

Gn 19,1-25 eles quiseram abusar de anjos que tomaram por seres humanos.

O v.8 "Conspurcam (sujam) a carne, menosprezam a Soberania e insultam as

glórias". Conspurcar (sujar) a carne é sinônimo de contaminar-se por práticas libertinas. A

soberania se refere provavelmente ao Cristo (TEB). As glórias se refere a anjos (lendas).

O v.9 "Miguel e satanás". Esta lenda é encontrada em Zc 3,2; Dn 10,13 e era rela-

tada nos apocalipses judaicos, principalmente na Assunção de Moisés.

23 CARREZ, Maurice et. al. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. São Pau-

lo: Ed. Paulinas, 1987. p.306.

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O v.10 "O que sabem de maneira instintiva". Conhecer gnóstico. Falta o espírito

(cf. Jd 19).

O v.12 "Maculam as vossas refeições". Os hereges ainda participam da vida da

Igreja, mas indignamente.

O v.14 "Enoc, o sétimo depois de Adão". Cf Gn 5,3-18. Este relato é retomado pe-

lo Apocalipse de Enoc 60,8.

9 - Conclusão

A Epístola combate falsos mestres de tendência gnóstica e que são libertinos. Eles

criam divisão na comunidade devido à sua maneira arrogante e mundana de viver. Pres-

cindem da graça de Deus e de Jesus. Querem ser mais que os seres celeste.

"O autor apresenta um retrato dos falsos mestres, que se dizem cristãos, mas negam o valor salvífi-

co dos atos de Jesus. Por amor ao dinheiro, eles falseiam os grandes princípios do Evangelho, ma-

nipulando a fé dos ouvintes; para eles, a salvação está no conhecimento ou "gnose", que não tem

ligação nenhuma com a vida prática"24

.

A autoridade para conter os abusos heréticos, é o ensinamento dos apóstolos de Je-

sus (17-19).

24 BÍBLIA SAGRADA, Ed. Pastoral, nota a 2Pd 2.

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2.4 – A PRIMEIRA EPÍSTOLA DE S. JOÃO

Introdução

Quem

O autor nunca se identifica. Percebe-se que é alguém com preocupação de corrigir

erros cristológicos nas comunidades. Ele combate grupos heréticos (2,18; 4,1-6). Um

grupo de dissidentes que saiu da comunidade (2,19) e continua a conflituar.

Seria ele o mesmo João que escreveu a 2ª e 3ª Carta de João, bem como o 4º

Evangelho e o apocalipse? 1Jo, 2Jo e 3Jo provavelmente são do mesmo autor, mas este

certamente não é o mesmo do Evangelho e do Apocalipse. No entanto, há consenso de

que todos os escritos joaninos venham do mesmo grupo, ou seja, as epístolas vêm da es-

cola joanina, pois há consideráveis semelhanças no estilo e na teologia. A tese mais acei-

ta é que um grupo de escribas joaninos escreveu as três cartas. Da escola joanina saiu o

Evangelho e também as epístolas.

Na 2ª e 3ª Carta, o autor se apresenta como o Presbítero (2Jo 1 e 3Jo 1). No fim do

1º século havia presbíteros na Igreja (At 14,23; 20,17-30). Mas parece que o presbítero

aqui tem autoridade especial quando ataca os separatistas e interfere em comunidades

alheias. Parece um bispo, mas nas comunidades joaninas não se tem resquício de estrutu-

ra episcopal. Papias e Irineu chamam de presbíteros a geração de instrutores que conhe-

ceu os apóstolos. Isto significaria que o autor fosse um discípulo da escola joanina.

Por que

Alguém interpretou erroneamente o 4º Evangelho, ou seja, a alta cristologia, a

pneumatologia, a ética e a escatologia. Este grupo divide Jesus, negando-lhe a carne (4,2-

3), não guarda os mandamentos (1,6-8; 2,4). 1Jo quer corrigir erros de interpretação, por

isto ressalta o outro lado da moeda. O 4º Evangelho trata dos de fora: os judeus; 1Jo trata

dos de dentro: hereges (2,19).

O que

1Jo é uma releitura do 4º Evangelho, com vistas de corrigir erros. Interpretando o

Evangelho de forma diferente, o grupo está dividindo a comunidade. São separatistas. 1Jo

exorta os fiéis contra os erros dos separatistas, por ser ele representante da longa tradição

joanina (1,1-2). Ele reinterpreta o 4º Evangelho diante dos abusos dos separatistas.

Quando?

Percebendo-se em 1Jo uma releitura do Evangelho e, supondo-se ser este dos anos

90, as epístolas podem ser aproximadamente do ano 100.

Quem eram os separatistas

Não se conhece este grupo, a não ser pela Carta de João (2,19). Eles não deixaram

textos escritos, por isto deve-se supor que pregavam aquilo que o autor condena. Conhe-

cemo-los indiretamente por meio de 1Jo. Isto, no entanto, é perigoso, pois João escreve

de maneira apaixonada e, talvez nem tudo o que deles diz é verdadeiro. Nosso retrato dos

separatistas será visto pela lente de João. Assim veremos um corpo de doutrinas que su-

postamente professavam. Tanto 1Jo como os separatistas querem ser fiéis à Tradição joa-

nina, isto é, ambos são herdeiros do Evangelho de João. O Evangelho de João oferece

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certas possibilidades de ambivalência. 1Jo é o intérprete abalizado que destitui os adver-

sários.

Alguns autores vêem os separatistas como sendo gnósticos. No entanto, a gnose se

firma no século II. Os separatistas seriam pré-gnsósticos.

ÁREAS DE DEBATE

O debate, ou melhor, o combate se dá nas áreas de cristologia, da ética, da escato-

logia e da pneumatologia, baseado no 4º Evangelho.

1 - Cristologia

O Evangelho de João tem uma cristologia elevada. No Prólogo já se fala da pree-

xistência de Jesus (Jo 1,1). Tal cristologia trazia conseqüências:

- a ênfase na divindade de Jesus ofusca a humanidade para cristãos que não o co-

nheceram pessoalmente.

- para cristãos perseguidos, qualquer falsa cristologia é motivo de guerra.

1.1 - Posição dos separatistas

Conforme as afirmações de 1Jo:

"Mentiroso o que nega que Jesus é o Cristo" (2,22s).

"Quem confessar que Jesus Cristo é o Filho de Deus, Deus permanece nele" (4,15).

"Todo o que crê que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus" (5,1). "O que crê que Jesus é o filho de Deus" (5,5).

Há uma clara insistência em dizer que Jesus é o Cristo (Messias, Filho de Deus).

Isto combate idéias contrárias (2,22-23).

Por que a epístola deve afirmar tal coisa, pois o Evangelho (20,31) já o fizera? Há

uma perspectiva diferente: O Evangelho descreve o Jesus histórico e o identifica com o

Filho de Deus preexistente. A Carta está num contexto onde não se conhece Jesus pesso-

almente, mas se conhece bem seus títulos messiânicos: Cristo, Filho de Deus, etc. Parte-

se então dos títulos e quer-se aplicá-los ao Jesus histórico.

Quem conheceu Jesus tem dificuldade de admiti-lo como Messias. Quem vive na

comunidade joanina e conhece bem os títulos messiânicos e tem dificuldade em admitir

que ele tenha vivido em Jesus (pobre e crucificado). 1Jo afirma: "Todo espírito que con-

fessa que Jesus Cristo vem na carne é de Deus" (4,2s). Isto nos mostra que os adversários

de 1Jo tanto enfatizam a divindade que esquecem a humanidade de Jesus.

No século II conhecem-se heresias que negam a humanidade de Jesus. Os Docetas

( = aparência) diziam que o corpo de Jesus é só aparência. No Apocalipse de Pedro

(apócrifo do séc. II) se fala de Jesus que ri dos que o atormentam na cruz. Seu corpo apa-

rente não sente dor. Cerinto, doceta, dizia que Cristo desceu sobre Jesus no batismo e de-

le se afastou na hora da cruz. 1Jo 5,6 refuta tal teoria.

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O Evangelho de Jo mostra Jesus real (Jo 20,24-29 = Tomé). Talvez os separatistas

não chegassem ao extremo dos docetas, mas simplesmente acentuavam o divino e empa-

lideciam o humano. Não julgavam a humanidade de Jesus como algo importante para a

salvação. Isto encontra eco no Evangelho:

- Jesus joanino é muito divino. Ele preexistia (Jo 1,1). Mostrou sua glória (Jo

1,14). O milagre de Caná manifestou glória de Jesus (Jo 2,11). Jesus usa o Eu sou

(8,24.28.58). O Jesus de João quase não come e nem bebe (Jo 4,32ss). Pão e água (4,7ss;

7,38 adquirem sentido espiritual. A postura de Jesus diante da morte de Lázaro é estra-

nha. Ele se alegra (Jo 11,11ss). Jesus sabe todas as coisas (Jo 16,30; 6,5s): sabia o que

iria fazer. Jesus já sabia que Judas o iria trair (Jo 6,64.70s). Jesus é um com o Pai (Jo

10,30).

- João empalidece a importância salvífica da vida terrena de Jesus. Parece que o

Verbo preexistente trouxe a salvação, sem muita importância o que o Verbo encarnado

fez (Jo 17,3.8. A salvação consiste em crer que Jesus foi enviado, não depende da Paixão,

Morte e Ressurreição. Mesmo o relato joanino da Paixão não tem aquele peso que tem

nos sinóticos. Enquanto estes e Paulo vêem a morte de Jesus como sacrifício para a sal-

vação (Mc 10,45; Hb 5,8; Fl 2,8) João vê a morte de Jesus de forma vitoriosa:

"Dou a minha vida para retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livremente. Tenho poder

de entregá-la e poder de retomá-la" (Jo 10,17-18).

Nos sinóticos e Hb Jesus é vítima (Mc 14,35; Hb 5,8). Em Jo 18,6 os soldados ca-

em por terra. Jesus é superior a Pilatos (Jo 19,8-11). Até na cruz ele supera o relato de

Mc. Declara tudo consumado (Jo 19,30). Em Mc 15,34 clama pelo Pai que o abandonou.

Os separatistas viam nestes relatos apenas referências à vida de Jesus, mas o que

importava era sua divindade.

1Jo quer corrigir estes desmandos quando diz:

"Este é o que veio pela água e pelo sangue" (1Jo 5,6).

Jesus salva pela água (batismo = quem é Jesus cf. Mc 1,11) e pelo sangue (morte =

quem é Jesus cf. Mc 15,39). A salvação envolve batismo e morte.

1.2 - Posição de 1Jo

O autor de 1Jo refuta os erros, mas não nega os conceitos do Evangelho:

- a preexistência:

Ev.: "No princípio era o Verbo" (Jo 1,1).

Ep.: "O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vi-mos...o que contemplamos...o

que apalpamos" (1Jo 1,1).

"A vida eterna que estava com o Pai nos apareceu" (1Jo 1,2; 3,8; 4,9; 5,20).

- valor salvífico da morte de Jesus: O Evangelho também traz referências à morte expiatória de Jesus (1,29;

6,51; 10,11.15; 11,51s; 12,24; 18,14).

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A Epístola insiste na morte expiatória: "O sangue de Jesus nos purifica do pecado" (1,7).

"Ele é a vítima da expiação" (1Jo 2,2).

"Deu sua vida por nós" (3,16). "Vítima de expiação" (1Jo 4,10).

O autor salienta o derramamento de sangue (sangue e água - 5,6).

Conclusão: O autor clareia idéias contidas no Evangelho de modo pálidas. O Jesus

de 1Jo é o mesmo do 4º Evangelho, mas salienta o redentor.

2 - Ética

Os separatistas incorrem em três problemas éticos:

2.1 - Não pecam mais

Os separatistas se julgam tão unidos a Deus que não pecam mais:

"Se dissermos que estamos em comunhão com ele e andamos nas trevas, mentimos e não prati-

camos a verdade" (1,6). "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em nós"

(1,8).

"Se dissermos que não pecamos fazemo-lo mentiroso e sua palavra não está em nós" (1,10).

"Aquele que diz: ´Eu o conheço`, mas não guarda os seus mandamentos é mentiroso" (2,4). "Aquele que diz que está na luz, mas odeia seu irmão, ainda está nas trevas até agora" (2,9).

"Se alguém disser: ´Amo a Deus`, mas odeia seu irmão, é um mentiroso" (4,20).

Os separatista podiam se inspirar no Evangelho para afirmar tal coisa:

"Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele" (Jo 6,56). "Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida" (Jo 8,12).

"Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto" (Jo 15,5).

"Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei ainda mais a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles" (Jo 17,26).

Em 1Jo 1,8.10 o autor acusa aqueles que pretendem estar sem pecado (cf. exposto

acima). Tais afirmações concordam com o 4º Evangelho. Jesus chama de culpados de

pecado (Jo 15,22) e escravos do pecado (Jo 8,31ss) aos não crentes. Nesta concepção, o

crente é livre do pecado.

Pode-se, ainda citar:

"Se não crerdes que Eu Sou, morrereis em vossos pecados"(Jo 8,24).

"Ele argüirá o mundo do pecado, da justiça e do julgamento. A respeito do pecado, porque não

crêem em mim" (Jo 16,8s).

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Nesta perspectiva, os crentes não estão sujeitos ao pecado. Os separatistas levaram

isto ao extremo. Além do mais, Jo 3,17-21 diz que quem não crê é julgado. Em outras pa-

lavras, a tradição joanina deixa a entender que quem segue a Jesus não é mais pecador.

Mesmo 1Jo reconhece a ausência de pecado:

"Todo aquele que permanece nele não peca" (1Jo 3,6). "Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado" (1Jo 3,9).

Qual é a diferença entre o autor e os separatistas?

O Autor: ausência de pecado é conseqüência da adesão a Jesus. Mas ainda há a

possibilidade do pecado (1Jo 2,1).

Os separatistas: ausência de pecado é fato consumado. Não admitem exceção.

2.2 - Não observam os mandamentos

O autor insiste na observância dos mandamentos:

"E sabemos que o conhecemos se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: ´Eu o co-nheço`, mas não guarda os seus mandamentos é mentiroso" (1Jo 2,3-4).

"Porque guardamos seus mandamentos" (1Jo 3,22).

"Aquele que guarda seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele" (1Jo 3,24). "Quando amamos a Deus e guardamos seus mandamentos. Pois este é o amor de Deus: observar

os seus mandamentos" (1Jo 5,2-3).

Diante disto, pode supor, serem os separatistas libertinos? 1Jo não fala de vícios, a

não ser em 2,15-17. Mas chama os adversários de falsos profetas (4,1). Não se pode afir-

mar que eles erram libertinos. Mais provável é que eles não ligavam para o comporta-

mento, ou seja, assim como não ligavam para a vida histórica de Jesus, também não atri-

buíam valor salvador à vida moral do cristão. Consideravam-se fora do mundo (Jo 15,19;

17,16).

"Se a vida eterna consiste em conhecer a Deus, e aquele que ele enviou (17,3), pode-se afirmar

que se tem intimidade com Deus, independentemente do que se faz no mundo"25

.

O Ev. de Jo é pobre em ensino moral. Tudo se resume em crer em Jesus. "A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou" (Jo 6,29). "Se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados" (Jo 8,24).

"Vós já estais puros por causa da palavra que vos fiz ouvir" (Jo 15,3).

"Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto" (Jo 15,5).

25 BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Ed. Pau-

linas, 1983, p.134.

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Jo não menciona os grandes vícios como os sinóticos. O grande pecado é não crer.

Tal cristologia teria levado os separatistas a menosprezar os mandamentos. O autor ad-

verte que o cristão deve andar como Jesus andou (1Jo 2,6; 3,3.7).

2.3 - Não cumprem o amor fraterno

Como poderiam os separatistas não se importar com os mandamentos se o Evangelho de

João fala explicitamente deles (Jo l3,34-35; l4,l5.21; 15,10.12.17)? Todas as vezes que o

Evangelho fala de mandamentos, fala também de amor. "Eu vos dou um mandamento

novo" (Jo 13,34).

O autor de 1Jo também reduz todos os mandamentos ao amor (3,22-24; 5,21; 5,3).

Quando ataca os separatistas, o faz em relação à falta de amor (2,9-11; 3,11-18; 4,20).

Então, será corre-to supor que os separatistas não amavam? É possível que não dessem

muita importância a este mandamento, mas cabe uma observação:

- certamente amavam, mas somente os de dentro. O próprio 1Jo também só consi-

dera irmãos os que estão em comunhão com ele.

- a falta de amor, de que são acusados, é o rompimento com a comunidade. A

mesma acusação poderia ser feita pelos separatistas ao autor e sua comunidade. A aspere-

za com que o autor trata seus adversários seria prova de ódio. Isto mostra como o Escrito

do NT que mais insiste no amor (4,20), é também a voz que mais condena os adversários,

chamando-os de demônios, anticristos, falsos profetas (2,18.22; 3,4-5; 4,1-6). O amor do

autor só se estende aos de dentro da comunidade e se nega aos de fora, isto é, aos apósta-

tas. Deve-se rezar pelos que pecam, mas somente se for pecado que não leva à morte

(5,15-17). O pecado da apostasia não merece amor.

Nisto há uma grande diferença com Mt 5,44 que pede oração pelos inimigos. Jo

13,34-35 e Jo 15,12-17 parece ser amor aos que são discípulos, não aos de fora. Até Jesus

se recusa a rezar pelo mundo (Jo 17,9).

3 - Escatologia

O Evangelho de João parece trazer uma escatologia já realizada. Enquanto os sinó-

ticos esperam o Reino de Deus para o futuro (Mc 1,15; 10,30; Lc 12,8-9), o 4º Evangelho

mostra Jesus já cumprindo sua missão. "Quem crê nele não é julgado; quem não crê já está julgado" (Jo 3,18).

"Aquele que ouve a minha palavra e crê nAquele que me enviou tem a vida eterna; ele não vem a juízo, mas passou da morte para a vida" (Jo 5,24).

"Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna" (Jo 6,54).

"Todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais" (Jo 11,26).

Com base nestas e em outras citações os separatistas tiravam suas conclusões: toda

a salvação já está consumada pelo Verbo. Por isto os cristãos não têm com que se preo-

cupar neste mundo. Jesus cuidou de tudo. O autor também concorda com tal escatologia

(1,7; 2,9-10. 13-14). Mas não quer que tal escatologia reforce a posição alienada dos se-

paratistas.

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a - Requer compromisso: "Mas se andamos na luz... então estamos em comunhão..." (1Jo 1,7).

"Mas o que guarda sua Palavra, nele o amor de Deus é verdadeiramente perfeito" (1Jo 2,5).

b - Apela para o futuro: "Já somos filhos de Deus, mas o que seremos ainda não se manifestou" (1Jo 3,2). "Todo o que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo" (1Jo 3,3).

"Quando se manifestar, teremos plena confiança e não seremos coberttos de vergonha" (2,28).

"Temos plena confiança para o dia do julgamento" (4,17).

A diferença entre os separatistas e o autor consiste nisto: os separatistas vêem a

salvação como fato consumado. O autor vê a salvação como fato, mas que é preciso cul-

tivar com a vida.

4 - Pneumatologia

Ao que parece, na Igreja Joanina não havia estrutura apostólica. Então poderia ha-

ver nela papéis de profetas e doutores com em 1Cor 12,28 e At 13,1. Porém, não há cer-

teza sobre isto. Pode-se supor que entre os separatistas alguns se arvoravam tais títulos e

que diziam falar pelo Espírito Santo. Pode-se deduzir isto das acusações do autor:

Ao que parece, na Igreja Joanina não havia estrutura apostólica. Então poderia ha-

ver nela papéis de profetas e doutores com em 1Cor 12,28 e At 13,1. Porém, não há cer-

teza sobre isto. Pode-se supor que entre os separatistas alguns se arvoravam tais títulos e

que diziam falar pelo Espírito Santo. Pode-se deduzir isto das acusações do autor:

"Não tendes precisão de que alguém vos ensine" (1Jo 2,27).

"Muitos falsos profetas se espalharam pelo mundo" (4,1).

Os separatistas encontram apoio no Evangelho de João para suas teses. João fala

muito no Paráclito:

"O Pai vos dará um outro Paráclito que permanecerá convosco para sempre" (Jo l4,l7). "O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas" (Jo

14,26).

"Quando vier o Espírito de verdade, ele vos conduzirá à verdade plena" (Jo 16,13).

O autor de 1Jo reage a estas pretensões dos separatistas:

a - Cita pouco o Espírito Santo (isto destoa do 4º Evangelho). Cita-o apenas em

duas ocasiões:

1º) 3,24-4,13 = Distinção ente o Espírito de Deus e o do Anticristo ( combate aos

separatistas).

2º) 5,6-8 = O Espírito como testemunha de Jesus (contra os separatistas).

b - Não usa de autoridade apostólica para corrigir. Uma vez que o Paráclito era o

Mestre, o autor tem dificuldades em corrigir. Ele apela para a orientação íntima dos cris-

tãos:

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"Quanto a vós, tendes uma unção que vem do Santo, e todos tendes conhecimento" (1Jo 2,20).

"Não tendes precisão de que alguém vos ensine" (1Jo 2,27).

O autor lembra que cada cristão tem unção (Espírito) e não precisa dos mestres se-

paratistas. Assim não se autodenomina "Mestre". Assim, os separatistas estão errados

porque romperam a comunhão com os crentes (1Jo 2,19). O autor continua a tradição,

pois anuncia o Evangelho que vem deste o princípio (1Jo 1,1).

Percebe-se que o autor corrige sem muita autoridade hierárquica, as apenas moral.

"Nós vos anunciamos" (1Jo 1,3). "Nós" que permanecemos no grupo.

"Não deis crédito a qualquer espírito...O Espírito de Deus confessa Jesus vindo na carne... o Espí-rito que divide Jesus é o espírito do Anticristo" (1Jo 4,1-3).

"Nós somos de Deus. Quem conhece a Deus nos ouve, quem não é de Deus não nos ouve" (1Jo

4,6).

Mesmo assim, sua correção deve ter sido ineficaz, pois constata que eles crescem

(1Jo 4,5).

Conclusão

A 1ª Carta de João é uma reinterpretação do 4º Evangelho, feita por algum mem-

bro das comunidades joaninas, ou melhor, da tradição joanina. O Evangelho tem, às ve-

zes, uma linguagem ambígua. Para fiéis contagiados pela filosofia grega (dualismo gre-

go), este terreno era fértil para reduzir Jesus ao mundo das idéias. Jesus é divino, sua hu-

manidade pouco conta. Esta postura refletiu na ética, na pneumatologia e na escatologia.

O autor de 1Jo, baseado na verdadeira tradição Joanina, corrige estes abusos, recorrendo

ao próprio Evangelho e ao Bom Senso dos fiéis.

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III – HEBREUS

Hebreus não e um texto abstrato, como muitas vezes se pensou, mas visa a uma

comunidade concreta a quem exorta (13,22). Não se pode precisar quem a escreveu, nem

quais sejam as comunidades, mas pode-se supor que o autor esteja afastado (13,19) e que

havia problemas de perseguição (13,23).

O que

Hebreus sempre foi apresentada como carta, mas não é. É antes um discurso, tra-

tado ou sermão. Mistura doutrina com parêntese (2,1-4;3,7-4,11; 4,14-16; 5,11-6,12;

10,19-39; 12,1-13,17). Pode-se perceber a seguinte estrutura:

a) A Palavra de Deus em Jesus 1,1-4,13

- Jesus é superior aos anjos 1,1-2,18

- Jesus é superior a Moisés e Josué 3,1-4,13

b) Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,31

- aproximar-se de Jesus, o sumo sacerdote 4,14-16

- Jesus, o sumo sacerdote solidário 5,1-10

- Parênese 5,11-6,20

- Jesus, sumo sacerdote perfeito = Melquisedec 7,1-28.

- Jesus, sumo sacerdote celeste se ofertou a si 8,1-10,18.

- Parênese 10,19-31

c) Perseverar em Jesus (parênese) 10,32-13,17

- esperar a vinda de Jesus com paciência 10,32-39

- testemunhos, desde Abel até Jesus 11,1-12,3

- os sofrimentos são correção. É preciso suportar 12,4-17

- não negligenciar a Revelação de Deus em Jesus (12,18-29

- Amar o próximo, resignação e obediência 13,1-17

- Conclusão 13,18-25.

Quem

Nos primeiros séculos da igreja Hb é vista como uma carta paulina (Orígenes),

mas não do próprio Paulo, antes de um discípulo seu (Lc?). No ocidente ela não é consi-

derada paulina até o século IV. Tertuliano a atribuiu a Barnabé. Só no século IV ela entra

definitivamente no cânon e é encarada como a 14ª carta de Paulo.

Lutero e outros reformadores duvidavam ser ela de Paulo. Trento a decretou pauli-

na. Mais tarde, ainda no século XVI, os protestantes voltaram a classificá-la de paulina.

Só em 1828, o biblista Bleek (protestante) concluiu definitivamente que ela não era pau-

lina.

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Em 1914 a Pontifícia Comissão Bíblica decidiu que Hb deve ser incluída nas pau-

linas, ainda que talvez não fosse de Paulo. A partir de então, os biblistas católicos con-

cluem sempre mais que ela não é paulina. Bem mais tarde a Comissão deu o caso por

vencido.

Não sobram elementos, no texto, que possam definir o autor. Sabe-se, no entanto

que não foi Paulo, nem sequer um discípulo seu, uma vez que a linguagem e os conceitos

divergem bastante.

Como

A estrutura de Hb é bem diferente das cartas de Paulo. Este sempre traz uma seção

principal contendo doutrina e depois vem a parênese. Hb mistura tudo.

O estilo e a linguagem são bem distantes de Paulo. Só a conclusão (13,18ss) tem

certa semelhança. O vocabulário é grego fino, os conceitos teológicos pouco tem de pa-

rentesco com os do apóstolo:

Paulo Ressurreição: Hb Exaltação no céu

Paulo Reconciliação: Hb Purificação

Hb S. sacerdote. ausente em Paulo. Paulo Just. p/fé aus. em Hb

Hb se aproxima do judaísmo alexandrino e de Filon. Interpreta o AT livremente,

sem se importar com sua história (4,3; 7,2). Liga o NT com o AT = Melquisedec (7), o

tabernáculo (8,2. 5).

Hb, além da proximidade com a literatura helenista, tem parentesco com a gnose

(8,1ss;9,11.23s).

Para quem

Pensava-se ser um escrito para judeu-cristãos, pois usa muito o AT, argumenta

conceitos teológicos judaicos (Moisés, Aliança, etc.). Esta teoria cai, pois Hb não reflete

o mundo conturbado de Jerusalém que se conhece do primeiro século cristão.

Não se pode dizer claramente quem é o destinatário, mas parece que se dirige a

cristãos vindos da gentilidade (Novo Israel (6,1; 11,6).

Pode-se, no entanto, dizer algo sobre a situação das comunidades:

- Quando o autor lembra a superioridade de Jesus sobre os anjos (1,1-2,18), ele se

refere a cristãos de segunda geração que esfriaram seu ardor e se fascinam pela angeolo-

gia grega. Em 2,1-4 se interrompe a cristologia e se faz uma exortação. Isto também re-

flete cristãos de 2ª geração, pois lhes falta o testemunho daqueles que ouviram Jesus.

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- Jesus, superior a Moisés e Josué (3,1-4,13) reflete comunidades relapsas que de-

vem ver na negligência do antigo povo, que não chegou ao descanso, uma advertência.

Jesus é superior, mas mesmo assim, poderão ficar fora.

Alguns destaques

- Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,39. O sumo sacerdócio é derivado de Aarão. Je-

sus tem seu sacerdócio da ordem de Melquisedec. Sua base é a oferta de si mesmo.

- Exortações 12,1-13,17. A comunidade passa por momentos difíceis: persegui-

ções (12,4), certa letargia (12,2), lembrar-se dos presos (13,2), gente tentando desviar o

povo (13,9).

- A comunidade tem um passado que enobrece 10,32.33.34. Por isto, não devem

perder a segurança (10,35), nem se voltar para trás (10,39).

- A história do povo de Deus é lembrada (11,1-40). Pela fé os grandes personagens

do AT permaneceram fiéis. Eles são modelos de fé. Assim como os heróis do passado,

também os cristãos devem permanecer fiéis (12,1).

- Acima de tudo, os cristãos devem ter o modelo de Jesus (12,2ss; 2,14-18; 4,14-

16). Ele sofreu a cruz, por isto os cristãos devem suportar

"Não há consolo maior do que saber que a causa dos leitores cansados e amedrontados está bem

representada junto ao coração de Deus"26

.

Conclusão

Para que serve Hb? Pixeley supunha ser um evangelho espiritual para as massas ur-

banas, próximo à filosofia platônica. Hb fala do imaterial que é visto como o real (8,5), o

material, como esboço do celeste. O Reino de Deus visto como imaterial (12,18-21.28).

Porém, Hb acentua bastante a dimensão histórica do processo de salvação (1,1-3; 8.12).

Isto, segundo Ragaz seria sinal de Hb ser uma carta militante, antes de ser espiritual.

Resposta às religiões

A comunidade estava cercada de uma miscelânea de crenças. Por uma lado as reli-

giões exóticas, por outro, as formais (judeus e romanos). Nenhuma respondia ao povo.

Quanto mais o formalismo das religiões oficiais se acentuava, tanto mais a busca por mis-

térios aumentava. As religiões mistéricas se tornavam o chão fecundo para as fugas do po-

vo. Nestas religiões havia manifestações das divindades no auge do culto: transe. Isto en-

cantava, mas eram deuses distantes, pois só se manifestavam ao povo em momentos espe-

ciais, no culto, fora disto, desapareciam. As religiões mistéricas tornam-se escatológicas,

26 HOFFELMANN, V. Alento para os cansados e atemorizados. in: Estudos Bíbli-

cos, n.34. Vozes, 1992. p.14.

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ou seja, manifestam ao fiel, um pouco do além. Por um isto encanta, mas por outro, aliena

o fiel, pois, para contemplar o mundo do além, o fiel foge deste mundo, se esquece do real.

Certamente alguns cristãos, diante das perseguições e da constante exposição a estas

doutrinas, se sentiam atraídos para tais aberrações (Hb 5,11ss). Isto representava um ópio

para o povo. A carta aos Hb usa linguagem mistérica (6,4s; 12,22s) para se fazer entender

pelo povo.

Porém, Hb insiste na materialidade de Jesus (1,1ss; 11,1-40; 12,1-4). Assim comba-

te a alienação das religiões mistéricas e lança o fiel à militância. Até o conceito de história

em Hb é diferente do que na filosofia grega. Ou seja, em Hb a história não é sobra do pas-

sado, mas remete para o futuro (11,1-12,12).

Em Hb a salvação é celestial e a história é cópia da celestial (8,5). Desta forma Hb

arranca a escatologia do presente (religiões mistéricas) e a remete ao futuro, pois a escato-

logia presente (transe) não tem compromisso com a história.

Pontos a ponderar

- A salvação não é desmaterializada da história como no êxtase, nem é intransponí-

vel. Jesus fez um acesso para todos (6,19s; 9,8.11; 13.12).

- Encarnação, paixão e ascensão acontecem na história, não no mundo das idéias

(2,17). Também o processo salvífico só se dará na história (13,12-13).

- Se Cristo foi tão material, é de se supor que a salvação não seja imaterial 9,24).

- Como Cristo realiza a salvação na história, assim, os fiéis devem seguir o caminho

histórico de Jesus (10,19-20).

Concluindo

Hb insiste na historicidade de Jesus, bem como na dos heróis do AT. Isto é uma luta

aberta contra a a-historicidade dos mistéricos (11,1ss). A a-história é o veneno da história.

Hb reconta a história para neutralizar a a-história. Então, a fé no Cristo histórico estava em

jogo entre os fiéis. Hb quer resgatá-la.

A história do Deus encarnado, bem como a dos heróis históricos (11,1ss) são sinais de re-

sistência diante do a-historicismo. Deus é fiel na história, por isto mesmo, o Deus apresen-

tado em Hb é solidário com os sofrimentos (Hb 2,17ss; 4,15; 5,17). Sua história entra na

história dos sofredores. Um rebelde uniu a terra ao céu. Contando a história, Hb não en-

tende a vida como fuga do mundo. A salvação não é apenas da alma, mas realização histó-

rica da esperança escatológica.

B I B L I O G R A F I A

BROWN, R. A comunidade do discípulo amado. S. Paulo: Paulinas, 1983

CARREZ, M. et. al. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. São Paulo: Paulinas, 1987

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