Cartografando o Passado (6SNHH_Anais)

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    Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique de Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo

    (orgs). Caderno de resumos & Anais do 6. Seminrio Brasileiro de Histria da

    Historiografia O giro-lingustico e a historiografia: balano e perspectivas. Ouro Preto:

    EdUFOP, 2012. (ISBN: 978-85-288-0286-3)

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    CARTOGRAFANDO O PASSADO: OS CATLOGOS DE FONTES SEGUNDO

    CAPISTRANO DE ABREU, RODOLFO GARCIA, C. V. LANGLOIS E C.SEIGNOBOSVitor Claret Batalhone Jnior

    Desde as primeiras dcadas do sculo XIX o crescente interesse pela histria levou

    muitos eruditos, historiadores ou no, a se dedicarem procura, coleta, classificao e

    anlise crtica de mltiplos conjuntos documentais, especificamente no que tangia os

    documentos referentes a realidades pretritas relacionadas aos Estados nacionais que ento se

    formavam ou se consolidavam aps longo perodo de revolues, guerras de independnciasou disputas de tronos por casas reais divergentes. O grande interesse por documentos de um

    passado longnquo sugere ser devido estabilidade potencial que tal passado dito nacional

    poderia propiciar aos Estados nacionais modernos convulsionados havia pelo menos meio

    sculo. Desta forma, ao longo do sculo XIX, observamos o surgimento de coletneas

    monumentais tais como a Monumenta Germaniae Historica ou o Corpus Inscriptionum

    Latinarum. Entretanto, a prtica sistemtica de coletar e armazenar documentos remonta, por

    exemplo, no mnimo s prticas antiqurias ou ao Gabinete de Manuscritos Franceses(FARGE, 1989; GRAFTON, 1994; MOMIGLIANO, 2004; LANGLOIS & SEIGNOBOS,

    2004: 62-64, 72).

    A diferena fundamental entre tais prticas estava vinculada concepo e

    finalidade com que tais colees eram compostas: enquanto as colees organizadas por

    humanistas renascentistas ou por bibliotecrios das casas reais europeias visavam

    preservao e ao processamento crtico de documentos importantes no somente para a

    composio de histrias, mas tambm para o bom funcionamento administrativo e jurdicodos respectivos reinos, as coletneas monumentais serviam mais especificamente escrita de

    histrias nacionais tais como afirmado anteriormente. Com o aumento dessas colees

    documentais surgia tambm necessidade de organiz-las, classific-las para assim se obter o

    melhor controle possvel sobre tais corpora de documentos, uma vez que surgia diante de

    eruditos, bibliotecrios e historiadores um vasto cenrio de peas oriundas de mundos que no

    existiam mais. A resposta para tal problema foi a prtica de compor catlogos de fontes de

    Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da UFRGS. Bolsista CAPES.

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    forma que se tornasse mais fcil encontrar os desejados documentos quando necessrio ou

    mesmo fosse possvel divulgar tais acervos em regies distantes.

    Desta forma, o presente estudo se visar reflexo sobre algumas concepes relativas

    s funes e s naturezas de tais catlogos de documentos produzidos especialmente a partir

    do sculo XIX. Para tanto, sero analisados os escritos de duas famosas duplas de

    historiadores do referido perodo, a saber, os brasileiros Capistrano de Abreu e Rodolfo

    Garcia e os franceses Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. A proposta refletir

    sobre os discursos e as epistemologias que fundamentaram as prticas e concepes dos

    autores sobre o trabalho de busca, coleta, classificao e anlise crtica de corpora dedocumentos que poderiam ser instrumentalizados para a construo de historiografias

    nacionais sob a forma de catlogos documentais. Desta forma, discutiremos os limites, as

    proximidades e as singularidades de tais discursos e epistemologias acerca da construo de

    catlogos de documentos, os quais foram to caros aos historiadores pelo menos at as

    primeiras dcadas do sculo XX. A hiptese que se por um lado observamos uma noo

    mais prxima da historiografia alem vinculada filosofia da histria, por outro j podemos

    perceber uma crtica documental mais metodicamente regulada e com menor nfase em ideiastranscendentais sobre o passado, reconhecendo o carter presente dos objetos que, aps

    processados pela crtica tornar-se-ia uma fonte, um documento potencialmente utilizvel pelos

    historiadores.

    A noo caracterizada como prxima da historiografia e da filosofia da histria

    germnicas, comumente denominada idealismo alemo, seria aquela que compreende um

    passado qualquer como uma realidade ou dimenso dotada de existncia quase efetiva. Os

    objetos que utilizamos para acessar uma suposta realidade pretrita teriam a propriedade de

    nos permitir acesso o mais direto possvel mesma justamente em funo do surgimento de

    suas extenses no mundo ao longo da durao de tal realidade. Assim, aos olhos de alguns

    filsofos e historiadores, tais realidades pareciam possuir uma espcie de existncia

    transcendental passvel de ser recuperada por meio do trabalho massivo de coleta e crtica de

    documentos oriundos de tais passados, pois esses seriam objetos que vieram existncia

    numa realidade pretrita determinada e que, portanto, pareceriam carregar consigo elementos

    dessa realidade. Uma vez que tais realidades estariam previamente vinculadas a esses objetos

    dotados de extenso duradoura no mundo, capazes de surgirem numa determinada realidade

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    pretrita e durarem at um presente qualquer, bastaria obter domnio sobre o maior conjunto

    possvel de tais objetos e instrumentaliz-los para a consecuo da tarefa de reconstruo do

    passado.

    A crena de que esses objetos poderiam nos permitir uma espcie de acesso direto ao

    passado pode ser compreendida se entendermos que os documentos funcionariam, segundo

    um esquema lgico, como ndices de realidades pretritas. Um ndice uma modulao

    lgica de um signo. Um signo uma coisa que conduz outra coisa qualquer a se referir a um

    terceiro elemento que assim pode ser identificado a si prprio. A concepo real que temos de

    um objeto um signo que conecta a ideia que deste objeto temos ao objeto em si. Amodulao de um signo em ndice leva o signo a estabelecer um tipo de relao que

    poderamos caracterizar como sendo a mais direta possvel, inclusive espacial, com o objeto

    de referncia assim como aos sentidos e memria do sujeito a quem o signo serve de ndice

    (PEIRCE, 2003: 74). Desta forma, por exemplo, uma edificao bastante antiga, como um

    prdio tombado por alguma instituio de patrimnio ou mesmo os papis envelhecidos,

    amarelados em tom mbar pelo tempo nas estantes dos arquivos poderiam funcionar como

    ndices das realidades passadas das quais so oriundos poderamos pensar que tal edificaoou papis seriam o mais prximo possvel que poderamos chegar diretamente em relao

    referida realidade pretrita. Entretanto, o passado antes de tudo uma qualidade e no uma

    realidade efetiva que existiria para alm das relaes cognitivas e representaes que temos de

    realidades pretritas quaisquer: as coisas so passadas, pois seu mundo de origem passou

    (PROST, 2008: 64). Portanto, os objetos-documentos, por terem persistido desde um passado

    at o presente, sugeririam uma suposta propriedade de estabelecer o tipo de relao

    potencialmente direta entre a mente de um sujeito cognoscente e a realidade pretrita da qual

    oriundo. Obviamente essas relaes no so absolutas, mas sim dependentes da relao

    entre os objetos-documentos e a mente do sujeito cognoscente (PEIRCE, 2003: 64-70).

    Essa crena caracteriza a epistemologia que fundamenta a concepo sobre os

    catlogos de fontes segundo Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Em 1923, a Academia

    Brasileira de Letras (ABL), cujo presidente era ento o mdico legista Afrnio Peixoto que

    substitura Euclides da Cunha na cadeira de nmero sete, esboou um empreendimento que

    para a publicao de duas sries de obras raras epreciosas que tangessem a Histria

    Ptria. Era um esforo de coletar e levar a lume os clssicos nacionais. Esses volumes

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    constituiriam a coleo Biblioteca de Cultura Nacional, que deveria abranger obras e

    documentos classificados dentro das seguintes especificaes: histria, literatura, um item

    rubricado como dispersos e biobibliografia. Posteriormente, a coletnea foi rebatizada de

    Coleo Afrnio Peixoto em homenagem ao antigo presidente da instituio. Era previsto que

    tais edies fossem formatadas com introdues e notas crticas. Capistrano de Abreu e

    Rodolfo Garcia foram incumbidos da edio dos Tratados da terra e gente do Brasil de

    Ferno Cardim. A partir de ento, ambos os autores estavam encarregados de executar uma

    tarefa considerada essencial para a constituio da histria e da historiografia brasileiras.

    (ABL, s/d: s/p; GARCIA, 1939: 7-8).1Concomitantemente, o trabalho de anotar a Histria geral do Brasil de Francisco

    Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, tambm esteve relacionado a um

    empreendimento maior de coleta e crtica de documentos referentes ao passado colonial

    brasileiro. Ao mesmo tempo em que estabeleciam a edio crtica anotada da Histria de

    Varnhagen, Capistrano e Garcia tambm anotavam e prefaciavam um grande nmero de

    documentos, tais como a srie das Denunciaescoordenadas pelo visitador do Santo Ofcio

    Heitor Furtado de Mendona, a Histria do Brasil do Frei Vicente do Salvador alm dossupracitados Tratados de Ferno Cardim. Ao que tudo indica inclusive os Captulos de

    Histria Colonial foram escritos coo parte deste grande projeto historiogrfico executado por

    Capistrano de Abreu. Segundo Jos Honrio Rodrigues, os Captulos eram uma sntese da

    pesquisa realizada para anotar a Histria geral de Varnhagen e preparar a edio de textos

    histricos fundamentais; eram o filho legtimo de uma anlise demorada, cuidadosa e

    ilimitada (RODRIGUES, 1977: XLVII; OLIVEIRA, 2009).

    Todavia, todo esse empreendimento precisava ser controlado de forma a possibilitar

    que o manuseio desse montante de documentos fosse mais facilmente instrumentalizado.

    Entre as publicaes assinadas por Rodolfo Garcia, por exemplo, encontramos inmeras obras

    de referncia, tais como o Dicionrio de Brasileirismos de 1915; o Dicionrio Histrico,

    Geogrfico e Etnogrfico do Brasil, organizado pelo Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro (IHGB); o Catlogo dos Livros, Folhetos, Documentos, Retratos, Bustos, Mscaras

    etc., pertencentes Biblioteca, Arquivo e Museu do IHGB que foi publicado em um nmero

    especial daRevistado IHGB como edio comemorativa do Centenrio da Independncia do

    1 Disponvel em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&sid=127. Acessadoem: 22/07/2012.

    http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&sid=127http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&sid=127http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=44&sid=127
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    Brasil; alm de seu Sistemas de classificao bibliogrfica: da classificao decimal e suas

    vantagens(ABL, s/d: s/p).2

    Em 1881, Capistrano trabalhou na exposio de histria e geografia do Brasil

    organizada pela Biblioteca Nacional (BN), com durao do dia 2 de dezembro do referido ano

    data simblica, pois aniversrio do imperador Pedro II at o dia 2 de Janeiro do ano

    seguinte. Alm da exposio do vasto acervo documental da instituio tambm era prevista a

    publicao de um catlogo sobre esse material, sendo que desde os primeiros dias j haviam

    sido distribudos dois volumes arrolando 19278 itens ao longo de 1612 pginas, os quais

    posteriormente foram aumentados aproximadamente para 20000 itens e 1800 pginas quandodo lanamento de um suplemento. Todavia, esses dois volumes ainda eram apenas, nas

    palavras de Capistrano de Abreu, um mero pretexto da obra verdadeira, ou seja, o Catlogo

    da exposio de histria do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro a 2

    de dezembro de 1881. Mais incrvel ainda foi que todo esse esforo colaborou ainda para a

    organizao e publicao do Dicionrio Histrico, Geogrfico e Etnogrfico do Brasilsob a

    responsabilidade do Baro de Ramiz Galvo (ABREU, [1931]: III).

    Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia acreditavam que a evoluo da historiografiabrasileira estava condicionada consecuo de um empreendimento fundamental de

    rastreamento, coleta e crtica do maior nmero possvel de documentos relativos ao passado

    colonial brasileiro, pois ambos os autores acreditavam que isso possibilitaria a eliminao ou

    ao menos um fechamento eficiente das lacunas referentes histria brasileira que acreditavam

    existir na produo historiogrfica de ento. Entretanto, parece que tais lacunas existiriam

    para alm das efetivas narrativas sobre o passado que existiam ou poderiam existir, pois havia

    um imperativo que exigia a descoberta e o controle de documentos. Essa concepo sugere a

    existncia prvia de objetos que necessariamente deveriam ser caracterizados como

    documentos historiogrficos, como se tal processo no dependesse essencialmente dos

    questionamentos que os historiadores colocam em face desses objetos. Isso justamente porque

    para os referidos autores os documentos funcionariam como ndices de realidades pretritas,

    de forma que bastaria coletar todos os documentos ou seu maior nmero possvel para que a

    histria do Brasil fosse compreendida mais verdadeiramente, revelando um nomeno

    2 Disponvel em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350. Acessadoem: 22/07/2011.

    http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=212&sid=350
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    fenomnico estritamente vinculado documentao revelada e com existncia potencial para

    alm das representaes historiogrficas (WEHLING, 1999: 153, 193).

    Segundo esta epistemologia, os catlogos de fontes serviriam por fim como espcies

    de mapas de uma realidade pretrita determinada. A constituio desse tipo de material de

    referncia serviria para cartografar um dado passado, permitindo que o historiador obtivesse

    uma compreenso geral dos fenmenos que deveriam ser estudados para se narrar a histria

    em questo. Neste caso, o carter ativo de construo do conhecimento histrico no chega a

    ser eliminado, mas minimizado frente preponderncia que a descoberta e o controle de um

    corpus documental especfico poderiam exercer sobre a produo historiogrfica.Por outro lado, outra forma de compreender a crtica documental, os catlogos de

    fontes e o processo de construo do conhecimento histrico pode ser observada nos escritos

    dos historiadores franceses Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. Essa concepo

    caracteriza a crtica documental de uma forma mais metodicamente regulada e com menor

    nfase em ideias transcendentais sobre o passado como afirmado anteriormente. Neste caso, o

    carter presente dos objetos passveis de serem tornados documentos historiogrficos aps o

    devido trabalho de crtica e um carter mais ativo no processo de construo do conhecimentohistrico pelos historiadores enfatizado.

    No famosoIntroduo aos estudos histricos, obra principal,composio conjunta dos

    referidos autores, a questo da crtica e dos catlogos de fontes recebeu espao privilegiado ao

    longo dos dois primeiros Livros, sendo que a primeira Seo do Livro II foi dedicada

    especialmente Anlise histrica, mais especificamente crtica externa ou erudita, segundo

    os autores. Para Langlois e Seignobos, histria se fazia especificamente por meio dos

    documentos. Todavia, para os autores, os documentos funcionavam de maneira bastante

    divergente da previamente analisada para o caso de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia.

    Para Langlois e Seignobos, antes de serem processados criticamente pelo historiador, os

    objetos oriundos de realidades pretritas eram meros objetos antigos de datao remota.

    Conforme os autores, sem a orientao cognitiva que os questionamentos, os mtodos e as

    teorias sociais exercem sobre o trabalho do historiador, tais objetos eram meros objetos e no

    documentos. Como afirmou Antoine Prost, portanto, em Seignobos [e tambm em Langlois],

    estamos longe de um fetichismo do documento, ao contrrio do que podemos observar no

    exame da epistemologia que sustentou o trabalho historiogrfico de Capistrano de Abreu e

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    Rodolfo Garcia. Para Langlois e Seignobos, os documentos tinham natureza acima de tudo

    instrumental, operatria, eram antes meio para se alcanar outra coisa que acreditavam ser

    mais complexo do que um simples acmulo e controle sistemtico sobre um corpus

    documental determinado, ou seja, a produo de conhecimento sobre um passado qualquer

    (LANGLOIS & SEIGNOBOS, 2004 : 59, 86; PROST, 1994: 106-108).

    Para Langlois e Seignobos, a importncia dos documentos surgiria justamente por uma

    espcie de posio relativa que esses ocupariam entre ns e nosso mundo e os mundos dos

    quais os documentos so oriundos. Por trs desta concepo est a diferenciao entre

    documento e fato histrico, de modo que um no se reduz ao outro, ao contrrio do queobservamos em Capistrano e Garcia (PROST, 1994: 108-112). Para os historiadores

    franceses, o fato histrico deveria ser quase que esculpido da documentao, deveria ser

    trabalhado, processado, donde que podemos compreender um pouco a origem da noo to

    cara a Marc Bloch de que historiar fundamentalmente um ofcio. Marc Bloch foi aluno de

    Seignobos e muito o admirava, mesmo que o historiador francs Jacques Le Goff afirme o

    contrrio em seu prefcio reedio de Apologia da Histria, ou o Ofcio de historiador.

    Segundo Le Goff:

    O que Marc Bloch no aceitava em seu mestre Charles Seignobos, principalrepresentante desses historiadores positivistas, era iniciar o trabalho do historiadorsomente com a coleta dos fatos, ao passo que uma fase anterior essencial exige dohistoriador a conscincia de que o fato histrico no um fato positivo, mas oproduto de uma construo ativa de sua parte para transformar a fonte em documentoe, em seguida, constituir esses documentos, esses fatos histricos, em problemas (LEGOFF In BLOCH, 2002: 19).

    A questo que entre o que Langlois e Seignobos postularam em termos tericos eepistemolgicos e o tipo de historiografia que praticaram h uma enorme diferena. Suas

    historiografias se assemelham realmente ao estilo de histria criticada acima por Le Goff

    atravs de Bloch.

    Desta forma, a epistemologia que fundamenta a concepo dos catlogos de fontes

    segundo os referidos autores franceses difere radicalmente da de Capistrano e Garcia.

    Enquanto os historiadores brasileiros compreendiam tais catlogos como mapas de realidades

    pretritas, Langlois e Seignobos os pensavam como mapas do presente, mais especificamentecomo mapas dos arquivos que guardavam os objetos oriundos do passado que depois seriam

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    trabalhados criticamente para se tornarem documentos capazes de nos permitir a produo de

    conhecimento histrico sobre o passado metodicamente regulado. Se para Abreu e Garcia os

    catlogos ajudavam na maximizao do uso dos documentos, os quais eram compreendidos

    como ndices de realidade pretritas, para Langlois e Seignobos, eram os catlogos que

    funcionavam como ndices dos documentos depositados nos arquivos. Mesmo apesar da

    proximidade temporal que aproximava os quatro historiadores uns dos outros e as leituras

    acerca da historiografia alem da poca compartilhadas por eles, as duas concepes sobre

    documentos historiogrficos e seus respectivos catlogos diferia enormemente, nos mostrando

    o quanto as grandes e genricas rubricas classificatrias ao estilo de histria das ideias e dahistoriografia tradicionais podem ser simplificadoras.

    Referncias bibliogrficas

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    - ____________________________________. Discurso de posse de Rodolfo Garcia.

    Disponvel em:

    http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8478&sid=350. Acessado

    em: 17/02/2011.

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