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Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação
Ilca Pena Baia Sarraf
CARTOGRAFIA DE PROFESSORAS MIGRANTES:
Formação Docente na Construção de Identidades
Belém 2015
Ilca Pena Baia Sarraf
CARTOGRAFIA DE PROFESSORAS MIGRANTES:
Formação Docente na Construção de Identidades
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado da Universidade do Estado do Pará como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Formação de Professores e Práticas Pedagógicas. Orientação: Profª. Drª. Albêne Lis Monteiro.
Belém 2015
Dados Internacionais de Catalogação na publicação Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA
_________________________________________________________________ Baia Sarraf, Ilca Pena Cartografia de Professoras Migrantes: formação docente na construção de identidades. / Ilca Pena Baia Sarraf; orientadora Albêne Lis Monteiro. Belém, 2015. 272 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará. Belém, 2015. 1. Professores – Formação. 2. Educação – Melgaço (PA). 3. Migração. I. Monteiro, Albêne Lis (Orientadora). II. Título. CDD: 21 ed. 371.12
Ilca Pena Baia Sarraf
CARTOGRAFIA DE PROFESSORAS MIGRANTES:
Formação Docente na Construção de Identidades
Data de Aprovação: 26/10/2015. Banca Examinadora ___________________________________ – Orientadora Profª. Drª. Albêne Lis Monteiro Doutora em Educação – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade do Estado do Pará ___________________________________ – Membro externo Profº. Drº. Elizeu Clementino de Souza Doutor em Educação – Universidade Federal da Bahia Universidade do Estado da Bahia ___________________________________ – Membro externo Profª. Drª. Sônia Maria da Silva Araújo Doutora em Educação – Universidade de São Paulo Universidade Federal do Pará
O FLORESCER DA EDUCAÇÃO MELGACENSE
O migrar pra construir identidades Creio não ser tarefas das mais fáceis
E, no entanto, em busca da felicidade, Muitos se tem lançado ao desenlace
De partir para terras tão distantes
Levando quase nada nas bagagens Mas vou falar aqui de comandantes
Que se arriscaram por essas paragens
Trazendo o perfume - pois são flores - E a delicadeza - são mulheres -
E um sonho intenso de revolução...
Então Melgaço - antes nunca vista - Finalmente floresce e então conquista
Seu lugar no mapa da Educação!
E aqui - presto - em tom de prefácio Com minh'alma jubilosa, cativa, Homenagem a 5 flores, 5 divas
Sem as quais não se explica Melgaço:
Flor Morena
Bela e cheirosa a buscar um jardim Onde possa esparzir seu perfume
Chega à Melgaço - pacata e sem lume - A Flor Morena de Marapanim...
Aqui, a sociedade de alheio costume,
Se mostra arredia a quem chega assim De malas e cuias e afinca, por fim,
Seus pés na cidade causando ciúme...
Traz, porém, na bagagem algo novo: A semente do sonho de leitura
Há anos acalentada pelo povo...
E essa flor que nasceu em Marudá É, hoje, um ícone da nossa cultura -
Raimunda Wilma Corrêa Vilar!
Flor de Alfazema
Feliz em poder respirar outros ares Ser mote de versos pra um novo poema
Toda perfumosa a Flor de Alfazema Chega à Melgaço vinda de Colares...
A mesma estranheza, os mesmos falares,
E o povo inteiro repete o dilema: Quem chega assim só pode ter problema
E então é alvo de conversas e olhares.
Todavia, ela só veio pra somar Concretizando o desejo, o ideal
Do povo que, enfim, pôde sonhar...
Qual o sangue que corre pela veia Tua ajuda nos foi mais que essencial...
Graças, ó flor, Maria Dilma Corrêa!
Flor de Gardénia
De Colares também veio outra flor Pra juntar-se às que já estão aqui
E num só objetivo prosseguir: Educar o povo com fé e amor.
Se o olhar primeiro da comunidade
É de receio ou de desconfiança Não percamos, por isso, a esperança
De erguermos o pilar da liberdade.
E ela chega contente e bem faceira E nos traz um conceito, na algibeira, Que impede que o povo se abstenha
De pensar em sua própria trajetória.
E com ela aprendemos o que é História: Rosiete Correa Siqueira, Flor de Gardênia!
Flor de Acácia
Atravessando a área fronteiriça Que separa Breves de Melgaço
Chega outra flor (entre riso e abraço) E se entrega à difícil liça
De educar. (E é bom fazer justiça Ao olhar do povo com embaraço
Que diz: Não vamos dividir o espaço Que é nosso com gente não castiça...
Porque é um povo leigo) é preciso
Educar este povo com bom siso!... ... E fizeste a tarefa com eficácia!
Poucos se doam assim como te entregas
Jurema do Socorro Pacheco Viegas Nossa inebriante Flor de Acácia!
Flor de Lis
De Igarapé-Açu sai Flor de Lis Buscando algo novo, desconhecido, Mas trazia, no coração, adormecido,
O desejo de viver muito feliz...
Não obstante o olhar desconfiado Que lhe lançaram logo ao chegar
Ela mostrou que veio pra ficar E neste solo deixou o seu legado
Em prol de uma rica aprendizagem
Que um dia nossa gente ideou De cantar à Pátria Amada! Salve! Salve!
E, por isso, prestamos nossa homenagem
À flor última que em nosso jardim brotou Maria de Fátima Rodrigues Alves!
Léo Frederico de Las Vegas
DEDICATÓRIA
Existem pessoas que chegam em nossas vidas para
trazer luz e ajudar a trilharmos novos mundos, sonhos e
conquistas. Elas são seres especiais que foram escolhidas,
penso, por Deus, para ajudar outras vidas a acender-se em
brilho próprio. Eu ganhei uma pessoa especial em minha
vida e é a ela que dedico esta dissertação.
Agenor Sarraf Pacheco é seu nome. Ser de
energia, luz que me acompanha por todo os meus percursos
acadêmicos; meu equilíbrio nos momentos de tensão,
orientador de dúvidas e incertezas; leitor crítico de profunda
exigência, que puxa por mim, mesmo quando desejo
desistir; principal incentivador de minha liberdade
acadêmica, profissional e pessoal.
Volto-me, então, para você. És meu eterno
companheiro, planejaste e realizamos tudo o que precisei
para a pesquisa e a escrita; dividiste teu exíguo tempo e
espaço de descanso para as partilhas de emoções, dramas
e limites que vivi nesse percurso.
Por TUDO que fizeste e faz por mim e pelos seus
outros....e são tantos; pela educação de Melgaço, este
campo que doaste parte da tua existência para ver florir.
Compartilho, então, contigo esta conquista, que nunca foi
individual, pois desde seu começo fez-se em teias de
polifônicas vozes e histórias. A você minha admiração e meu
querer bem... sempre!
AGRADECIMENTOS
Cumprir essa etapa de minha vida acadêmica é trazer comigo uma corda
de seres especiais que foram singulares nessa viagem, sem eles jamais poderia
estar congratulando tão importante conquista. Aqui todas as palavras são poucas
para expressar meu sentimento de MUITO OBRIGADA por tudo que fizeram por
mim e pelos meus filhos durante a estada nesse percurso.
Me considero uma pessoa especial aos olhos de Deus e de Maria
Santíssima, por estarem sempre presentes em minha vida, creio que sem a
permissão e a graça deles seria um percurso solitário e triste. A esses seres
divinos meu eterno louvor!
Cuidadosamente, fui puxando a corda para trazer as pessoas que foram
significativas nessa construção e que, inesperadamente, surpreenderam-me com
suas motivações, orientações ou fazendo a diferença naquilo que podiam para
reservar a mim tempo ao estudo e à pesquisa.
Aos meus pais – Raimundo Soares Baia e Luiza Pena Baia – por
estarem comigo em todos os percursos da vida, não importa o tempo nem o
espaço que eu esteja, a orientação é sempre afetuosa, cuidadosa, amável, cheia
de fé e bons princípios. Segura de vossas presenças, a viagem realizada seguiu
caminhos menos turbulentos. A vocês todo meu amor e gratidão!
Aos amores que transcendem a minha vida – Ariel Irley, Ícaro Arley e
Ana Ísis – falar do quanto vocês foram importantes nesse percurso e são
importantes em minha vida é perder o trato com as palavras, porque é um
sentimento que não se resume nesses códigos culturais, mas nas relações,
sentimentos expressos em atitudes de carinho e alegria que vivemos a cada
momento. A vocês meu eterno agradecimento pelas (in)compreensões de minha
ausência nos momentos do “querer mãe”.
Aos meus amados irmãos – Hélio, Héli, Hélica, Hérica, Helié e Héliton –
por serem parte de mim e estarem dispostos a guiar o barco ou ficarem nos
portos de minhas chegadas para ajudarem a amarrar os meus desejos e sonhos.
Agradeço pelas alegrias compartilhadas e pelo apoio recebido.
No campo intelectual, Albêne Lis Monteiro, minha orientadora, foi anjo
de sabedoria que assumiu o papel de mãe acadêmica. Os laços de compromisso
com a pesquisa foram se tramando desde a proposta inicial, os quais alcançaram
a dimensão afetiva pessoal. Seu modo de ser está fotografado em minha
memória. Orientou, exigiu, mas sempre permitiu que eu fizesse os voos
desejados. Garantiu autonomia para ir ao encontro das histórias de vida das
professoras migrantes; abriu seu aposento, deixou-me desvendar sua biblioteca e
emprestou seus livros. Esses gestos são extremamente significativos para mim,
pois me senti acolhida e segura para o embarque. A você, minha admiração pela
humildade intelectual e meu muito OBRIGADA por realizar comigo essa viagem.
Aos professores do Programa de Mestrado em Educação da UEPA,
principalmente, aqueles que estiveram conosco ministrando disciplinas: Ivanilde
Apoluceno, Albêne Lis, Maria das Graças, Maria Betânia, Josefa Távora,
Socorro Cardoso e Marta Genú. A contribuição de cada uma foi instigante para
questionar, rever, duvidar e amadurecer academicamente. OBRIGADA!
A dissertação não seria possível sem as principais vozes das professoras
migrantes – Wilma Vilar, Maria Dilma, Rosiete Siqueira, Jurema Pacheco e
Fátima Rodrigues. Minha gratidão pela oportunidade concedida para registrar
suas histórias de vida em Melgaço, focalizando a experiência migratória, a
formação docente e a (re)construção das identidades. A colaboração de vocês foi
primordial para que a cartografia de suas histórias pudesse ser tecida.
Aos professores examinadores, Elizeu Clementino de Souza e
Emmanuel Ribeiro Cunha, pelas valiosas contribuições no texto de qualificação.
Tomei as sugestões como bússolas para nortear a escrita final dessa viagem. Ao
professor Elizeu, sou grata pelas indicações de leitura e pelos muitos escritos que
atravessam minha formação.
À Universidade do Estado do Pará (UEPA), à Fundação Amazônia de
Amparo a Estudos e Pesquisas do Pará (FAPESPA), à Secretaria de
educação do Estado (SEDUC) e à Prefeitura Municipal de Melgaço por terem
confiado e garantido a mim o direito à pesquisa e à formação. Sou grata pelo
apoio e financiamento concedido pela Fapespa.
Aos meus colegas de turma, agradeço pela bonita amizade que
construímos. Nunca esquecerei que foram muitos os risos partilhados, assim
como as tensões divididas, conversas socializadas e comidinhas para garantir um
tempo a mais aos assuntos extra academia. Viver o mestrado com vocês foi
ressignificar a minha vida. VALEUZÃO!
À amiga Isabel Rodrigues, por todo apoio, dicas e palavras de estímulo
para vencer o desafio de entrar no tão concorrido mestrado da UEPA; à querida
Francinete Lima, minha migamana, pelo forte laço de amizade, cuidados,
orientações místicas e dias de estudos da língua inglesa; à amiga sempre
presente Marlene Gomes, pela generosidade de estar comigo nos momentos que
precisei, seja para fazer compras ou tomar um café em fim de tarde e a Regilene
Araujo e Roselina Alves, duas pessoas especiais que estiveram comigo neste
percurso, cuidando de mim, de minha família e, inúmeras vezes, assumiram o
meu papel para cuidar da minha caçula, a grande menina Ana Ísis.
Ao poeta melgacense, Léo Frederico de Las Vegas, um dos
pseudônimos de Jaime Adilton Marques de Araújo, por atender meu pedido em
homenagear as professoras migrantes com a belíssima, contextualizada e
sensível poesia “O florescer da educação melgancense”. Para finalizar, expresso
meu agradecimento a Lucas Monteiro, “menino” que tive o prazer em conhecê-lo
pela boniteza de seu coração e pela gentileza nascida de sua alma. Muito
obrigada por traduzir o resumo da dissertação para o inglês.
Sou eternamente grata por enlaçar-me nessa consistente corda, formada
por seres que me permitiram viver o tempo do mestrado. Com a ajuda e o apoio
de vocês, tudo tornou-se possível de realização. Durante esses dois anos (2013-
2015), minha vida se expandiu, ganhei novos olhares e consegui vencer o medo
de me mostrar. Ao mesmo tempo, tive maior consciência de que meus limites não
são motivos para não seguir novas rotas de navegação.
RESUMO BAIA SARRAF, Ilca Pena. Cartografia de Professoras Migrantes: formação docente na construção de identidades. 272 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém-PA, 2015.
Nesta pesquisa cartografo as trajetórias das professoras migrantes, Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil, Maria Dilma Corrêa, Rosiete Corrêa Siqueira, Jurema do Socorro Pacheco Viegas e Maria de Fátima Rodrigues Alves, originarias de diferentes localidades paraenses como Marapanim, Colares, Igarapé-Açu e Breves. Com exceção de Jurema que não experienciou a vida em Belém, todas deslocaram-se no início da década de 1980 para Melgaço, Marajó das Florestas-PA, e vieram contribuir na construção da história da educação municipal. A bússola da investigação orientou-me para compreender como as professoras migrantes construíram trajetória pessoal e profissional nas relações entre si, com alunos e comunidade em geral para a (re)construção de suas identidades? Visando percorrer esse caminho, elenquei como questões norteadoras: Que razões as levaram a migrarem para Melgaço nos primeiros anos da década de 1980? Com que formação acadêmica iniciaram a profissão docente e de que modo trilharam os caminhos da formação continuada? Na tessitura deste mapa de pesquisa, tracei um percurso teoricometodológico que procurou interrelacionar a Cartografia com a Histórias de Vida e busquei na Análise Compreensiva-Interpretativa desvelar e apreender, nas memórias narradas, percursos e vivências comungadas pelas professoras migrantes. Nos itinerários da investigação, debrucei-me sobre os eixos temáticos – história local, migração, formação de professores e (re)construção de identidades para analisar razões da migração; práticas de vivências estabelecidas pelas professoras entre si, com alunos e comunidade em geral, nos últimos 30 anos, e processo de formação que contribuíram para construção/reconstrução de suas identidades. Entre as descobertas, explicito que a experiência migrante fez parte da história de vida de todas as comandantes. Elas residiram em outras moradias, trocaram o tempo de infância por afazeres domésticos, viveram o estranhamento, as dificuldades e as superações. Em Melgaço, envolveram-se em diferentes espaços educacionais, culturais e políticos; garantiram formação e estabilidade profissional; ganharam respeito e prestígio pelas lutas promovidas em defesa do ensino e dos direitos humanos; construíram família, estruturaram a vida financeira e criaram teias de afeto com o município e seus moradores. Portanto, assinalo que a história das professoras migrantes produziu inúmeras relações e envolvimentos com o lugar. Elas afetaram e foram afetadas, permitiram novas reflexões de si, da profissão e da vida na cidade e contribuíram para a (re)construção de suas identidades pessoais e profissionais.
Palavras-chave: Professoras Migrantes; Formação Docente; (Re)construção de Identidades; Histórias de Vida.
ABSTRACT BAIA SARRAF, Ilca Pena. Migrant Teachers Cartography: teaching formation in the construction of identities. 272 p. Dissertation (Master in Education) – State University of Pará, Belém-PA, 2015.
In this research I cartographer the trajectories of migrant teachers, Raimunda Wilma Correa Vilar Brasil, Maria Dilma Correa, Rosiete Corrêa Siqueira, Jurema do Socorro Pacheco Viegas and Maria de Fatima Rodrigues Alves, originated from different places of Pará like Marapanim, Colares, Igarapé-Açu and Breves. Excepting Jurema that did not experienced the life in Belém, all moved up in the early 1980 decade to Melgaço, Forest Marajó-PA, and have contributed to the build of the municipal education’s history. The compass of research guided me to understand how migrants teachers built personal and professional trajectory in relations between each ohther, with students and the community in general to the (re)construction of their identities? Seeking to course this way, I listed as guiding questions: What reasons led them to migrate to Melgaço in the early years of the 1980 decade? With what academic formation they have began the teaching profession and how they have trod the ways of continuous education? In the tessiture of this research map, I have traced a theoretical and methodological way that searched for interrelate the Cartography with Life Histories and looked at the Comprehensive-Interpretative Analysis uncover and seize, at the narrated memories, pathways and life experiences shared by the migrant teachers. At the research’s itineraries, I leaned over the thematic axis - local history, migration, teacher formation and (re)construction of identities to analyze the reasons of migration; practices of life experiences established by the teachers among themselves, students and the community in general over the past 30 years, and formation process that contributed to construction/reconstruction of their identities. Among the discovers, I explicit that the migrant experience made part of the life history of all commanders. They lived in other dwellings, changed the childhood time for housework, lived the strangeness, the difficulties and overshoots. In Melgaço, they were involved in different educational, cultural and political spaces; they have guaranteed formation and professional stability; gained respect and prestige by the struggles promoted in defense of education and human rights; built family, structured the financial life and created affection webs with the municipality and its residents. Therefore, I mark that the history of the migrant teachers produced countless relationships and involvement with the place. They affected and were affected, allowed new reflections to themselves, of the profession and of the life in the city and contributed to the (re)construction of their personal and professional identities. Keywords: Migrant Teachers; Teaching Formation; Identities (Re)construction; Life Stories.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
IMAGEM 01. Frente central da cidade e Melgaço 33
IMAGEM 02. Parte da Orla 37
IMAGEM 03. Mapa parcial do Marajó das Florestas 39
IMAGEM 04. Gráfico Populacional 40
IMAGEM 05. Lado Oeste da Orla de Melgaço 44
IMAGEM 06. Trapiche da Saúde – Lanchas Escolares 45
IMAGEM 07. Estrada do Moconha 46
IMAGEM 08. As Professoras Migrantes 60
IMAGEM 09. Residência dos professores em 1983 70
IMAGEM 10. Orla de Melgaço com o atual cais de arrimo 71
IMAGEM 11. Casa Flutuante na década de 1980 73
IMAGEM 12. Porto do Moconha 74
IMAGEM 13. Pés das Professoras Migrantes 80
IMAGEM 14. Escola Estadual Bertoldo Nunes 86
IMAGEM 15. Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Pres. Tancredo de Almeida Neves
88
IMAGEM 16. Divisão de Atendimento Escolar 117
IMAGEM 17. Mãos das Professoras Migrantes 143
IMAGEM 18. Pisadas na Formação 161
IMAGEM 19. As Professoras Migrantes 190
IMAGEM 20. Professora Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil 198
IMAGEM 21. Professora Rosiete Corrêa Siqueira 201
IMAGEM 22. Professora Maria Dilma Corrêa 203
IMAGEM 23. Professora Jurema do Socorro Pacheco Viegas 205
IMAGEM 24. Professora Maria de Fátima Rodrigues Alves 209
IMAGEM 25. Homenagem às fundadoras do Conselho Municipal da Mulher
230
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
BAND Rede Bandeirantes (Grupo Bandeirantes de Comunicação)
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior
CEBs Comunidades Eclesiais de Bases
CTRH Coordenadoria de Treinamento e Recursos Humanos
DEPOL Delegacia de Polícia
DST Doenças Sexualmente Transmissíveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios
IEP Instituto de Educação do Estado do Pará
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC Ministério da Educação
NEPRE Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação
ONU Organização das Nações Unidas
PARFOR Plano Nacional de Formação de Professores
PECPROF Programa de Formação Continuada de Professores
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PREPES Programa de Pós-Graduação Lato-Sensu
PUC-MG Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SEDUC-PA Secretaria de Estado de Educação do Pará
SEMED Secretaria Municipal de Educação
SOME Sistema de Organização Modular de Ensino
SOPs Seminário de Oficinas Pedagógicas
UEPA Universidade do Estado do Pará
UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UFMT Universidade Federal de Mato Grosso
UFPA Universidade Federal do Pará
UNAMA Universidade da Amazônia
UNIVERSO Universidade Salgado de Oliveira
SUMÁRIO
EM RIOS DA PESQUISA: Embarque
Esboço das Rotas da Viagem 18 Mapas de Navegação 21 Exposição dos Percursos 30
PRIMEIRO PERCURSO
CARTOGRAFIA DO LUGAR: Lembranças & Histórias 33 1.1. Primeiras Palavras 34 1.2. (Re)apresentando Melgaço 37 1.3. Entre Várzea e Terra Firme 47 1.4. No Leme: as comandantes professoras 59 1.5. Olhares à Vista: as professoras narram a cidade 66
SEGUNDO PERCURSO
LONGE DA ROCHA-MÃE: Migração & Educação 80 2.1. Primeiras Palavras 81 2.2. Tempos de Migração 85 2.3. Razões da Partida: esperanças à flor da pele 90 2.4. Memórias da Terra Hospedeira: encontros e sentidos 103 2.5. (Des)encontros e Sociabilidades 117 2.6. Rizomas do Retorno 129
TERCEIRO PERCURSO
TRAMAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES 143 3.1. Primeiras Palavras 144 3.2. Escolha pela Docência e Significados da Profissão 147 3.3. Nos Trânsitos da Formação 160 3.4. Múltiplas Teias na Vida das Comandantes 174
QUARTO PERCURSO
ENTRE O PESSOAL E O PROFISSIONAL: (re)construção de identidades
190
4.1. Primeiras Palavras 191 4.2. Autoidentificação e interpretação de si 195 4.3. Afetos e desejos: outros vínculos identitários 210 4.4. (Re)construção de Identidades em novos espaços 225
REMEMORAÇÕES DA VIAGEM
Desembarque
247
MARINHEIROS DA VIAGEM
255
APÊNDICES
267
17
EM RIOS DA PESQUISA:
Embarque
O porão [...] ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas [...] no porão, a ‘racionalização’ é menos rápida e menos clara; não é nunca definitiva (BACHELARD, 1978, p. 209). Mas quem disse que a cartografia só pode representar fronteiras e não construir imagens das relações e dos entrelaçamentos, dos caminhos em fuga e dos labirintos? [...] nossos mapas cognitivos chegam hoje a outra figura, a do arquipélago, pois, desprovido de fronteira que o una, o continente se desagrega em ilhas múltiplas e diversas que se interconectam (MARTÍN-BARBERO, 2004, pp. 12-3).
18
Esboço das Rotas da Viagem
A inspiração em Bachelard (1978), ao explorar a metáfora do porão como
lugar do desconhecido, imprevisível, mas também do encontro com as raízes
capazes de explicar o nascimento e a trilha da experiência humana, ajuda-me a
pensar caminhos para cartografar1 Histórias de Vida e Construção de Identidades
na Formação Docente de Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil, Maria Dilma
Corrêa, Rosiete Corrêa Siqueira, Jurema do Socorro Pacheco Viegas e Maria de
Fátima Rodrigues Alves, mulheres que se fizeram professoras em território não-
familiar.
Sarraf-Pacheco (2004; 2006), em trabalho de campo para o mestrado em
História Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
entrevistou Wilma, Rosiete e Jurema. Apesar do significativo material coletado, o
historiador explorou apenas algumas passagens do depoimento de Rosiete,
quando discutiu o fazer-se da educação em Melgaço. Por saber de meu interesse
em investigar a história de vida das cinco professoras, gentilmente cedeu o
material das três narrativas transcritas e digitadas. Dez anos depois (2003/4-
2013/4), reproduzi cópias e entreguei às docentes para fazerem leitura e, se
considerassem necessárias, possíveis alterações. Examinadas as memórias
escritas, recebi autorização para usá-las na pesquisa. As entrevistas concedidas,
permitiram às professoras avaliarem sua própria trajetória e motivarem-se para
socializar outras vivências.
A partir daí, em síntese, mergulhei em novas práticas de escuta e diálogo
com as cinco professoras migrantes, realizarei dois grandes encontros com cada
uma, o que me permitiu identificar os principais eixos temáticas para a feitura da
dissertação, tais como: História do Lugar; Migração e Educação; Formação
Docente e Construção de Identidades. Esses eixos foram analisados a partir da
literatura pertinente e cruzados aos campos teoricometodológicos e empíricos.
A ida ao porão possibilitou embarcar em memórias dessas professoras
que se fizeram ou adensaram a experiência docente em Melgaço, no Marajó das
Florestas2. Pelos caminhos sugeridos por Martín-Barbero (2004) em torno do
1 Mais à frente discutiremos melhor o papel da cartografia na construção da pesquisa. 2 O termo foi cunhado por Sarraf-Pacheco (2006) para ampliar o sentido convencional de Ilha de Marajó, objetivando realçar diferenças e semelhanças na constituição geo-histórica e
19
desafio de navegar sem rotas traçadas a priori, mas como rios abertos a
diferentes igarapés, afirmo que conhecer sonhos, projetos de vida, decepções,
lutas e conquistas vivenciadas pelas professoras migrantes na formação
profissional e (re)construção de suas identidades fez parte dos desejos dessa
investigação. Em outras palavras, a cartografia, inicialmente, percorreu trilhas
pela cidade de Melgaço, desvendando traços de sua história e olhares em torno
das vivências locais. Em seguida, dialogou com valores, sentimentos, conflitos e
negociações que as professoras alinhavaram com o lugar e seus moradores.
O percurso para seguir a carta náutica dessa viagem, partiu do seguinte
problema: Como as professoras migrantes construíram sua trajetória pessoal e
profissional nas relações entre si, com alunos e comunidade em geral para a
construção de identidades a partir de 1980 em Melgaço? Ao visar percorrer esse
caminho, elenquei como questões norteadoras: Que razões levaram as
professoras a migrarem para o município de Melgaço nos primeiros anos da
década de 1980? Com que formação acadêmica iniciaram a profissão docente em
Melgaço e de que modo trilharam os caminhos da formação continuada?
Na tentativa de responder a problemática e as questões norteadoras, o
desafio de rememoração, sob a regência das histórias de vida, levou-as ao
encontro com dimensões do passado vivido dinamicamente. Com isso, trouxeram
à tona um passado à luz de inquietações e avaliações do presente, criando ou
projetando perspectivas para o futuro. Como pensa Alarcão (2004, p. 09),
a narração das histórias de vida permite remexer o passado, reordená-lo, contextualizá-lo no tempo, no espaço e no contexto de cada indivíduo, entretece-lo na teia da história – a história de uma pessoa – e compreendê-la na sua natureza multifacetada.
Comigo não foi diferente, viver com as professoras a experiência da
pesquisa, os momentos de rememoração também afloram em nós muitas
lembranças compartilhadas. Nossas histórias, em certas situações, foram bem
parecidas. Vivemos muitas experiências, fui aluna e colega de trabalho, o que
possibilitou um forte laço de amizade, carinho e respeito.
socioculturais dos diferentes municípios. Para o estudioso, o imenso arquipélago de Marajó possui duas regiões distintas e relacionais: o Marajó das Florestas, conformado por 09 (nove) municípios – Afuá, Gurupá, Anajás, Breves, Melgaço, Portel, Bagre, Curralinho e São Sebastião da Boa Vista – e o Marajó dos Campos, constituído por 07 (sete) municípios – Chaves, Soure, Salvaterra, Cachoeira do Arari, Santa Cruz do Arari, Muaná e Ponta de Pedras.
20
Dessa rememoração trago a lembrança que depois de completar o Ensino
Fundamental e o Curso de Magistério pelo Sistema de Organização Modular de
Ensino (SOME), fui aprovada no vestibular da Universidade Federal do Pará
(UFPA) para o Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia. Ao longo do curso,
apaixonei-me pela temática da formação de professores. Sempre que foi possível,
procurei adquirir e ler trabalhos desta área. Belmira Oliveira Bueno et al. (1998),
Íria Brzenski (2000), Selma Garrido (2002), Raquel Barbosa (2003) foram
algumas das intelectuais deste campo de estudo com quem interagi,
especialmente a partir dos últimos anos do curso de Pedagogia.
Envolvi-me nas leituras e fui incentivada por alguns professores a
mergulhar no campo metodológico da História Oral, quando desenvolvi a
monografia de conclusão de curso “Professores, Pais e Ex-Alunos: memórias e
experiências do Magistério em Melgaço (1990-2001). Após a conclusão deste
estudo, constatei que se o trabalho revelou a luta do município pela implantação
do Ensino Normal, valorizando as vozes de diferentes sujeitos que construíram
aquele importante capítulo da história da educação da cidade, outras histórias de
vida e formação docente ainda estavam por serem desvendadas.
A despeito disso, todos os ex-alunos do Magistério como eu, e,
atualmente, professores da Educação Básica, tiveram parte de sua formação
docente costurada com a ajuda de outras agentes sociais que não foram foco de
preocupação desta primeira pesquisa. Falo, portanto, das professoras migrantes.
Foi com a aprovação em 2013 no Mestrado em Educação da
Universidade do Estado do Pará (UEPA) que decidi fazer o embarque e seguir o
percurso nas histórias de vida daquelas professoras. Por se tratar de um espaço
de pesquisa conformado por rios, florestas, terras firmes e várzeas, o próprio
ambiente faz pensar na mobilidade e desafios que envolvem o ato de escavar
memórias deitadas ou fertilizadas pelo movimento das águas marajoaras.
Neste percurso, muitos desafios e emoções vivi. Diante da experiência, é
possível concordar que
pesquisar talvez seja mesmo ir por dentro da chuva, pelo meio de um oceano, sem guarda-chuva, sem barco. Logo, percebemos que não há como indicar caminhos muito seguros ou estáveis. Pesquisar é experimentar, arriscar-se, deixar-se perder. No meio do caminho, irrompem muitos universos díspares provocadores de
21
perplexidade, surpresas, temores, mas também de certa sensação de alívio e de liberdade do tédio (OLIVEIRA e PARAISO, 2012, p. 161).
Intenciono, deste modo, investigar as razões que levaram as professoras
a migrarem para o município de Melgaço nos primeiros anos da década de 1980 e
o movimento trilhado para (re)construção de suas identidades; analisar trajetórias
pessoais e profissionais construídas nas relações estabelecidas entre si, com
alunos e comunidade em geral e refletir com que formação acadêmica iniciaram a
profissão docente em Melgaço e de que modo trilharam os caminhos da formação
continuada.
Foram muitas interrogações que emergiram em minha mente e fizeram
refletir na investigação. Que embarque fazer? Que rios seguir e como navegá-
los? Quem assumiria, nesta viagem o papel de capitã, comandante e
marinheiro(a)?3 O que iria encontrar no percurso? Como seria a chegada? Depois
de inúmeras interrogações surgiu a certeza, o embarque precisou ser feito, pois
“pesquisar é experimentar, arriscar-se, deixar-se perder”.
A opção metodológica escolhida procurou, então, cruzar duas
perspectivas de investigação da realidade social: a Cartografia na interface com a
História de Vida, alinhavadas pela experiência da memória.
Mapas de Navegação
O desafio da investigação foi navegar pelas histórias de vidas das
comandantes, não para narrar heroísmos, mas reconstituir suas vivências na
condição de educadoras que se destacaram e muito contribuíram na construção
da história da educação no município de Melgaço. Nas partilhas com as
professoras migrantes, apreendo (des)encontros e confrontos, avanços e desafios
em suas trajetórias docentes em terras não-familiar.
A escolha desta investigação justifica-se, entre outros motivos, primeiro
pela minha própria relação com a história da educação de Melgaço e profunda
convivência com essas professoras. Em segundo lugar, pela carência de estudos
3 Adotarei esses termos para me referir a sujeitos e intelectuais com quem dialoguei na produção do texto dissertativo. Na metáfora de que a pesquisa é uma viagem, assumo o papel de capitã; as professoras são as comandantes e os intelectuais, o(a)s marinheiro(a)s. Neste texto, para me referir as narradoras da pesquisa, utilizarei ora professoras migrantes, ora comandantes.
22
relacionando “professoras migrantes, histórias de vida, identidades e formação
docente” em territórios amazônicos. Um terceiro motivo ainda pode ser descrito
pela necessidade de documentar e, com isso, valorizar a contribuição dada por
essas professoras à história da educação do município.
Conforme assinala Almeida (1998), pesquisas a respeito da presença
feminina na Educação brasileira até a década de 1990 ainda eram restritas,
mesmo sendo ela determinante nos rumos da profissão docente. Se a carência
desses estudos no país, denunciada por Almeida, já vem sendo enfrentada com
novas investigações, no mundo amazônico essa temática, voltada à compreensão
do movimento trilhado por professoras migrantes, ainda está por ser construída.
Ao visar contribuir na tessitura de um mapa de pesquisas dessa temática,
tracei um percurso teoricometodológico que procurou interrelacionar a Cartografia
com a Histórias de Vida para compreender razões da migração das professoras
para Melgaço e o fazer-se de suas identidades na formação docente, não
esquecendo que outras esferas contribuíram para tal construção.
A Cartografia se configura como um campo que questiona as dualidades
da ciência moderna. Ela possibilita pensar, registrar e refletir a complexidade dos
caminhos que trilha uma investigação científica, humanizadora e inclusiva.
Ao me propor a romper fronteiras estabelecidas pelo pensamento abissal
(SANTOS, 2010), a Cartografia construída adotou outra gramática nas etapas da
pesquisa. Evitei termos como dados, sujeito-objeto, procedimentos, técnicas,
dentre outros, por fazerem parte de um sistema de pensamento científico que
negou a arte da escrita e da vida, separando ciência de arte, objetividade da
subjetividade (HISSA, 2013).
Nas escolhas, optei pela Cartografia por valorizar todo e qualquer registro,
seja ele oficial ou popular, tal como ensina a História Cultural (BURKE, 1992;
1997; 2005). Entre esses registros, narrativas orais ganham forte representação
por permitirem valorizar trajetórias de vida que ficaram, quase sempre, no
anonimato ou reduzidas a dados estatísticos. A despeito do encanto com a
riqueza das trajetórias pessoais e profissionais, a Cartografia interessa-se por
captar conflitos, negociações, afetividades e contribuir com o campo das
pesquisas educacionais, ao valorizar histórias de vida de professoras migrantes
23
via mergulho no universo das memórias (SARRAF-PACHECO, 2015; BAIA
SARRAF, SARRAF-PACHECO e MONTEIRO, 2015).
De acordo com Burnier et al. (2007, p. 344), a pesquisa em educação, a
partir dos anos de 1990, voltou-se para o campo teoricometodológico da História
de Vida. Com isso, “tem contribuído para uma melhor compreensão da condição
docente, na medida em que renova as teorizações e os dispositivos de pesquisa e
formação profissional”. Trabalhar com esse campo de pesquisa permite
acompanhar percursos pessoais, profissionais e práticas vividas em coletividade,
mas apreendidos a partir da ótica e subjetividades das próprias professoras.
Nesta perspectiva, Abrahão (2004b) considera que a História de Vida
desencadeia um conjunto de reflexões capaz de despertar sentimentos e motivar
tomadas de iniciativas na vida da própria pessoa que narra. Assim, explica:
A história de vida narra-nos a viagem ao longo da existência individual. Insere o ser biológico nos contextos físicos e sócio-culturais e reconhece a sua interactividade. Revela-nos o que aconteceu e o que, dos acontecimentos, se reteve. Dá visibilidade à personalidade da pessoa em foco, manifesta os seus anseios, as suas realizações. Mas também as suas frustrações. Revela ideais e valores. Como todos sabemos é bem menos frequente que sejam desocultados os fracassos como se esses tivessem sido apagados da memória ou impedidos de se manifestarem (ABRAHÃO, 2004b, p. 09).
O relacionamento iniciado desde o primeiro embarque entre Cartografia e
Histórias de Vida na análise das trajetórias pessoais e profissionais construídas
pelas professoras migrantes em intercâmbios estabelecidas entre si, com alunos
e comunidade melgacense, ajudou a apreender significações de narrativas
também relacionais e complexas. Nessa teia, frustações, sonhos rompidos,
conflitos diversos, misturam-se a realizações profissionais, sociabilidades e fortes
laços de amizade com o outro e com o lugar.
Para extrair significações das narrativas que fazem parte do corpus da
pesquisa a partir dessas orientações teoricometodológicas, busquei na análise
compreensiva-interpretativa desvelar e apreender discursos, ações e percursos
de vivências expressas nas memórias narradas pelas professoras migrantes.
Souza (2014) fundamentado em Poirier et. al., (1999) e Ricoeur (1996)
apreende a análise compreensiva-interpretativa como uma relação de
colaboração entre pesquisador e interlocutor para o alcance das trajetórias
24
planejadas. O autor entende esse método interpretativo como um processo de
constante “investigação-formação” estabelecido no ato de rememorar
“conhecimentos e aprendizagens individual/coletiva construída ao longo da vida”
(SOUZA, 2014, p. 43).
No afã de melhor explorar o conteúdo das narrativas em sintonia com
seus contextos geo-históricos e socioculturais, segui caminhos palmilhados por
Souza (2014, p. 46) na orientação “dos três tempos de análise: a) pré-análise e
leitura cruzada; b) leitura temática; e c) leitura interpretativa-compreensiva”. A
pesquisa orientada por esses procedimentos, foi produzida em colaboração com
as comandantes, as quais, entre outras identidades, assumem na escrita do texto
o papel de atrizes e autoras de sua própria história.
Estabelecer diálogos com as professoras exigiu recorrer à orientação de
Oliveira nas sendas da História Oral via afloramento da memória.
[...] o processo de reavivamento das lembranças através de um trabalho mais refinado da memória é visualizado nos projetos de investigação/formação de professores. Os baús, as caixinhas e os álbuns, ao serem trazidos para o trabalho de escrita autobiográfica, ou no momento da entrevista, permitem que as pessoas reconstruam imagens com mais detalhamento e sentimento (OLIVEIRA, 2005, p. 96).
O ato de rememorar é uma intervenção no caos das imagens guardadas.
Quando as comandantes acionaram suas lembranças, houve um enorme esforço
para selecionar e organizar as que consideram mais significativas. Nesse
processo, o passado e o presente se entrelaçaram, tornando-se difícil separar
seus fios (MALUF, 1995). Na mesma perspectiva, Bosi (2003, p. 53) afirma que “a
memória é, sim, um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado
pela cultura e pelo indivíduo” e, ainda, “do vínculo com o passado se extrai a força
para a formação de identidade” (BOSI, 2003, p.16).
A interação com memórias narradas pelas professoras migrantes criou
condições para realizar embarques e desembarques em suas Histórias de Vida. A
relação exigiu, a princípio, “uma troca de olhares” (PORTELLI, 2010, p. 20) e a
construção de laços de confiança, “numa visão mútua”, pois “uma parte não pode
realmente ver a outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca. Os dois
25
sujeitos, interatuando, não podem agir juntos a menos que uma espécie de
mutualidade seja estabelecida” (PORTELLI, 1997, p. 09).
Amado et al. (2001) também aponta ser necessário um primeiro contato
com o informante para socializar os interesses do pesquisador e situá-lo a
respeito de sua colaboração no processo de investigação. O sucesso dessa
construção coletiva, a exemplo do que ensina Portelli, ocorre quando se
alinhavam teias de respeito e reciprocidade.
Alberti amplia esse entendimento ao esclarecer que:
[...] é a continuidade da relação entre entrevistado e entrevistador que permite a ambos se conhecer melhor, estabelecer pontes e aproximações entre o que foi dito em sessões diferentes, identificar as peculiaridades de cada um e as situações que parecem conduzir a um diálogo mais proveitoso para o objetivo comum: enfim, é a continuidade da relação que muitas vezes permite criar as condições de sucesso de uma entrevista (ALBERTI, 1989, p. 71).
Ciente dessas lições, também primei pela ética da pesquisa por
compreender que comungar dimensões da história de vida para serem analisadas
e, posteriormente, publicadas em trabalhos acadêmicos, requer cuidado e
seriedade com as informações confiadas, não apenas numa carta de cessão4,
documento importante, mas, acima de tudo, na apropriação dos sentidos das
narrativas.
Na construção, procurei manter o diálogo humano, sincero e responsável
com as professoras migrantes. Desde o primeiro momento de meu ingresso no
mestrado, não deixei de comunicá-las do interesse do projeto e da importância da
pesquisa para os estudos amazônicos e marajoaras. Enfatizei, ainda, o desejo de,
mediante esta investigação, reconhecer e valorizar o importante trabalho por elas
desempenhado na história da educação de Melgaço.
Assumo a postura de retornar as narrativas às comandantes, vejo tal
atitude como componente fundamental para estreitar diálogo, como possibilitar
que elas avaliem o que socializaram de seus baús de memória. A oportunidade
de lerem as narrativas orais transcritas permitiu realizarem reflexões, retirarem ou
complementarem aspectos que consideram importantes à compreensão de suas
4 As cartas de cessão para o uso das entrevistas e fotografias foram assinadas e reconhecidas em cartório pelas professoras migrantes e fazem parte dos arquivos da pesquisa.
26
histórias de vida. O exercício ajudou ainda acompanharem o desfecho de suas
trajetórias e certificarem-se da integridade da transcrição.
O diálogo com as comandantes manifestou-se distinto, especialmente
com Rosiete, que preferiu, inicialmente, escrever suas narrativas. Logo, pensei no
tempo da pesquisa e nas muitas atividades de uma professora, então, contra
argumentei e mostrei a intenção pela gravação. Ela resistiu ao enfatizar que gosta
de organizar suas ideias e a escrita lhe possibilitaria esse exercício.
Diante de tal situação, não podia desconsiderar o desejo dessa
comandante, tampouco, deixá-la fora de meu interesse, pois visualizei em leituras
referentes às Histórias de Vida que as narrativas escritas são tão importantes
quanto as orais para a investigação. Ao rever os percursos, compartilhei
argumento de Souza (2008d, p. 91) sobre a escrita da narrativa.
A arte de narrar inscreve-se na subjetividade e insere-se nas dimensões espaço-temporal dos sujeitos quando narram suas experiências. O processo de escrita da narrativa, por potencializar no sujeito o contato com sua singularidade e o mergulho na interioridade do conhecimento de si, inscreve-se como atividade formadora porque remete o sujeito a refletir sobre sua identidade a partir de diferentes níveis de atividades e registros.
Aceitei a sugestão da comandante e a apresentei as questões
norteadoras. Ela desenvolveu a escrita de algumas questões, mas notificou de
suas dificuldades em manusear o computador. Escreveu, de forma manuscrita,
leu, explicou-me e digitalizei as narrativas. Depois as encaminhei para sua leitura
final.
A socialização das narrativas foi cheia de emoção. Na leitura de suas
histórias, Rose, como é conhecida na cidade, viveu sentimentos que enlaçaram
riso e choro. Ora ficava cabisbaixa, ora ficava alegre ou empolgada com as
histórias em releitura. A experiência explicita que tanto o compartilhar oralmente,
quanto por escrito da vida pessoal e profissional, orienta-se pela prática da
subjetividade. Depois do segundo encontro, a comandante sugeriu a realização
da entre-vista, justificou a escassez do tempo e a dificuldade de manusear o
computador, então, agendamos e concluímos com a gravação de voz.
O diálogo com as professoras migrantes seguiu quatro direções.
Primeiramente a identificação quando registrei nome completo, data e lugar de
27
nascimento; ano de migração para Melgaço; área de formação; tempo de trabalho
na esfera estadual e municipal, situação profissional atual e visões acerca da
cidade nas inter-relações passado e presente.
As demais focalizaram as temáticas discutidas nos percursos da escrita.
Explorei, então, migração com o intuito de perceber razões que fizeram irem para
Melgaço; expectativas a respeito da experiência docente construída em terra
estrangeira; recepção da comunidade; o que pensavam sobre Melgaço e, por
último, o retorno a terra natal.
O terceiro eixo centrei na Formação docente, para saber motivos da
escolha pela profissão; formação inicial ou profissional e caminhos à formação
continuada; limites, desafios e dificuldades enfrentados no exercício do
Magistério, captando sonhos realizados ou abandonados no correr da vida.
Por último, a temática da identidade emergiu com o propósito de
conhecer experiências das professoras migrantes que foram significativas em
Melgaço e influenciaram em suas trajetórias profissionais e pessoais; sondei
relações sociais que construíram com alunos e comunidade em geral; esforcei-me
identificar mudanças na vida como moradoras e professoras de Melgaço e o que
pensavam a respeito de si mesmas.
Em levantamento no banco de dissertações do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará acerca do tema
“professoras migrantes” ou eixos que articulem “Educação, Mulher, Memória,
Formação”, voltadas para as questões de história de vida, identidade pessoal e
profissional e formação docente, não localizei nenhum trabalho com ênfase mais
específica acerca da temática professoras migrantes. Essa carência de estudos
também foi constatada no acervo de dissertações já defendidas no Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.
André (2009) divulgou dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Nível Superior (CAPES) concernente às temáticas de formação de
professores e identidade em pesquisas realizadas por programas de mestrado e
doutorado em educação no Brasil.
No período de 1990 a 1998, foram defendidas 6.244 dissertações e teses das quais 410 (6%) trataram do tema formação de professores. Nos cinco anos seguintes, a produção total da área passou para 8.280, das quais 1.184 (14%) abordaram o tema
28
formação de professores Esses dados deixam evidente que cresceu muito, no período, o interesse dos pós-graduandos pelo tema formação de professores. A comparação dos temas e subtemas tratados nas dissertações e teses dos dois períodos mostra uma grande mudança. Se, nos anos 1990, a grande maioria das pesquisas se debruçava sobre os cursos de formação inicial (72%), nos anos 2000, a maior parte dos trabalhos investiga questões relacionadas a identidade e profissionalização docente (41%). Houve uma mudança de foco dos cursos de formação para os docentes e seus saberes (ANDRÉ, 2009, p. 48).
Ao mapear trabalhos com a temática em contexto amazônico, encontrei a
tese de doutorado “Autoformação, história de vida e construções de identidades
do/a educador/a”, de autoria de Monteiro (2002). A pesquisadora ainda publicou o
artigo, “Construções e reconstruções do processo formativo pessoal e
profissional: a metodologia história de vida na autoformação, identidade”
(MONTEIRO, 2011). Completam o levantamento, “História das mulheres, história
de vida de professoras: elementos para pensar a docência”, de Araújo (2014).
Em outra realidade brasileira, sobre a migração docente, Tanus em 1992
defendeu a tese Mundividências: Histórias de vidas de migrantes professores,
realizada pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), publicada em 2002.
O lócus da pesquisa foi a cidade de Cuiabá, mais especificamente o bairro do
Planalto, nos anos de 1990 e 1991, formado por migrantes. A pesquisadora
traçou como objetivo compreender o imaginário e a realidade de grupos de
migrantes professores, valorizando a identidade e a concepção do lugar de
chegada.
Sem a preocupação de fazer uma escrita cruzando teoria e prática, mas
atenta ao rigor teórico metodológico, a autora buscou valorizar o cotidiano dos
professores, mediante o uso das Histórias de Vida, tais como se apresentam “pela
vitrine que construiu dele mesmo, naquele momento” (TANUS, 2002, p.17).
A cartografia desses estudos ampliou-se com Nobre (2009) que realizou
estudos de mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A pesquisa
investigou vivências de professores que vieram de outros Estados e atuaram na
Educação Básica em Mato Grosso do Sul (UFMS). O percurso biográfico realizou-
se com seis professores e examinou o processo de construção das identidades.
Igualmente, a pesquisadora esforçou-se por identificar marcas da pluralidade sul-
mato-grossense inseridas nas trajetórias dos professores. A investigação foi
29
realizada com base na metodologia de História de Vida “como um caminho
pertinente para se conhecer o universo que cerca o professor migrante” (NOBRE,
2009, p.14).
Já Campos (2011) no artigo “Professoras Migrantes de Campo Verde”,
resultado da dissertação “Vou Buscar a Sorte: relatos de vida de professoras
migrantes de Campo Verde (MT)”, defendida em 2010 na (UFMT), visou
compreender a vida de professoras provenientes de outros Estados que atuaram
em escolas públicas do município. Os resultados da pesquisa trazem “reflexão a
respeito das questões etnicorraciais, que muitas vezes podem ser evidenciadas
nas relações conflituosas do cotidiano de alunos, pais e professores” (CAMPOS,
2011, p. 95-96).
A análise do processo de adaptação e estranhamento vivido pelas
professoras no encontro e confronto do novo espaço geográfico e cultural emerge
como importante objetivo. Além das transformações e ou permanências vividas no
trânsito, a autora valorizou a leitura de “aspectos relevantes das relações
interpessoais mais especificamente, procurando compreender como se dá o
encontro com o outro: seja no ambiente social, de trabalho ou nas relações de
convivência escolar” (CAMPOS, 2011, p. 96).
Na conclusão do levantamento acerca da temática em tela, descobri o
artigo “Professoras Migrantes em Mato Grosso”, de Alexandre (2011). A pesquisa
foi desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e
Educação (NEPRE), da Universidade Federal de Mato Grosso. O estudo foi
realizado na região de extremo norte de Mato Grosso nas cidades de Sinop, Alta
Floresta, Colíder, Sorriso e Guarantã do Norte. Ao centrar-se nas trajetórias de
vida das professoras migrantes, a pesquisadora procurou compreender as
diversas experiências pessoais e profissionais “que mulheres professoras de
diferentes origens socioeconômicas, geográficas e étnico-raciais estabelecem
entre si na escola em que trabalham” (ALEXANDRE, 2011, p. 01). Desvendou,
neste contexto, a construção de laços de solidariedade e empoderamento, sem
negligenciar conflitos ocorridos em função das especificidades regionais5.
5 A busca pela construção de um repertório com as produções acadêmicas em torno da temática – Professoras Migrantes – permitiu deparar-me com uma tese e duas dissertações, que, infelizmente, apesar dos esforços, não foram localizadas em seu texto integral nos bancos de dados virtuais. Estou me referindo a: “Professoras em Peixoto de Azevedo/Mato Grosso: mulher,
30
As dissertações e a tese mapeadas são estudos realizados em Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul. A pretensão foi verificar o modo como as
pesquisadoras abordaram o assunto. Ao longo da escrita, estabeleço diálogos,
quando possíveis, com esses textos, pois tive como intenção: cartografar, por
meio das Histórias de Vida, o movimento trilhado pelas professoras migrantes na
trajetória pessoal e profissional.
Exposição dos Percursos
O mapa cartográfico foi pensado e tecido em quatro percursos, com as
interpretações das professoras em diálogo com os marinheiros da viagem,
articulando empiria e teoria. Em Cartografia do Lugar: Lembranças &
Histórias, apresento minha relação com Melgaço. Na condição de migrante,
narro a chegada, meus medos e estranhamentos. Reconstituo lembranças de
uma cidade em tempos de outrora e procuro articular com os tempos presentes.
Em (Re)apresentando Melgaço trago sinais da Cartografia no diálogo com
aqueles que vivem ou viveram o lugar. Entre Várzea e Terra Firme, valorizo
determinados acontecimentos no campo educacional brasileiro e amazônico,
esforçando-me por contextualizar o processo histórico que se conecta às
vivências das professoras migrantes. No Leme: as comandantes professoras,
traço, de forma resumida, o perfil de cada uma delas, contextualizando suas
histórias de vida, origem, formação e deslocamentos e finalizo com Olhares à
Vista: as professoras narram a cidade que expressa uma representação de
Melgaço em meados dos anos 1980 e os sentimentos e significados, em tempos
atuais, na ótica das comandantes.
No segundo percurso, Longe da “Rocha-Mãe”: Migração & Educação,
discuto razões da partida em consonância com elaborações de alguns
marinheiros desta viagem. Em Tempos de Migração, faço uma contextualização
histórica do processo migratório de professores para Melgaço. Nas Razões da
Partida: esperanças à flor da pele, abordo as muitas trajetórias de migração
vivenciadas pelas professoras posteriormente. Na sequência traduzo: Memórias
uma história para contar das vicissitudes de ser”, de Speller (2002), “Migração, projetos e identidade profissional: um estudo sobre professoras do município de SINOP/MT no período de 1973 a 1982, de Lando (2003) e “Migrantes camponesas e professoras primárias: trajetórias de vida entre o espaço privado e o espaço público”, de Schüssler (2007). Nos próximos investimentos de pesquisa pretendo interagir com esses trabalhos.
31
da Terra Hospedeira: encontros e sentidos, falando de expectativas e motivos que
influenciaram a partida para Melgaço. Desembarco em (Des)encontros e
Sociabilidades para desvelar desafios vividos com os modos de ser daqueles que
estão e daquelas que chegam, sem esquecer as tramas vividas internamente. No
tópico em Rizomas do Retorno expresso o entrelaçamento nos dois lugares, o de
partida e o de chegada, e os sentimentos e identidades do ser migrante.
No terceiro percurso, Tramas na Formação de Professores, discuto a
formação docente à luz dos marinheiros selecionados e da legislação brasileira.
Em Escolha pela docência e significados da profissão, enfoco os desejos
profissionais e os sonhos vividos ou abandonados no exercício do Magistério. Nos
trânsitos da Formação, mapeio cursos e percursos vivenciados na prática da
qualificação profissional. Já em Múltiplas Teias na Vida das Comandantes, aponto
limites e avanços no processo metodológico e relacional entre professor-aluno e
demais agentes sociais.
Para fechar os percursos, Entre o Pessoal e o Profissional:
(Re)construção de identidade, baseada na leitura dos marinheiros, evidencio
processos, limites e desafios na (re)construção das identidades das professoras
migrantes. Na Autoidentificação e interpretação de si, busco os olhares das
comandantes sobre si a partir das suas reinterpretações e em Afetos e Desejos,
seleciono narrativas de experiências em contextos relacionais que constituíram
outros vínculos identitários. Finalmente, na (Re)construção de Identidades em
novos espaços, interajo com interpretações das comandantes no processo de
(re)construção de suas identidades no encontro com Melgaço e a profissão.
Os rios visitados nessa viagem foram marcados por histórias de
professoras migrantes, analisadas e (re)interpretadas por uma capitã que também
vive sua história em trânsito. Falar delas é falar de mim, histórias entrecruzadas
em singulares momentos, expressão da condição humana em tempos
contemporâneos.
Portanto, orientada por Spivak (2012), preocupei-me em criar condições
no texto dissertativo para que as vozes migrantes falassem e ficassem vivas nos
percursos da viagem. Tentei não limitar as histórias de vida das comandantes,
mas permiti o aflorar da subjetividade na escrita, pois interagi com mulheres
dotadas de formação familiar, religiosa, intelectual, política e, especialmente,
32
afetiva. Procurei tecer uma relação de diálogos, intermediada pelos marinheiros e
por nossas visões de mundo. Com isso, lembrei da argumentação de Costa
(2014, p. 51) quando afirma que interpretar “é também permitir que na construção
desse conhecimento aflore a polifonia de vozes que se esconde no corpus
pesquisado; é, antes de tudo, dar visibilidade ao outro, deixar que a voz do outro
aflore no texto interpretativo”.
33
PRIMEIRO PERCURSO:
CARTOGRAFIA DO LUGAR:
Histórias & Lembranças
Realizar experimentações com a memória, através das narrativas das mulheres professoras que vinham de espaços e tempos diferentes, em termos de formação e atuação profissional, e que, como “colaboradoras” das nossas pesquisas, decidiam fazer de sua história de vida também a construção da história da docência, da história da profissão, (OLIVEIRA, 2005, p. 92) ‘é o meu desejo’.
34
1.1. Primeiras Palavras
Não lembro o dia nem o mês, mas sei que o ano era 1992, quando meus
pais partiram comigo do rio Tajapuru, município de Breves, em direção à cidade
de Melgaço, no Marajó das Florestas. Era minha primeira experiência de
deslocamento e corte do cordão umbilical familiar. Naquele ano, estava saindo do
seio materno para morar com parentes poucos conhecidos e em uma cidade
quase não visitada. Aprender a conquistar amigos era um dos desafios e, o maior
deles, enfrentar a realidade, superar a dor da separação e o choque da diferença
cultural, pois para os moradores urbanos, eu era alguém do espaço rural.
Mesmo sabendo que não fui a primeira e nem serei a última a
experienciar a migração interna nessa região, não fui preparada para viver essa
mudança e acredito que poucos de nós somos. A presença afetiva de meus pais
e avós maternos parecia se romper naquele momento. Na condição de primeira
filha e primeira neta, toda atenção, carinho e cuidado voltavam-se a mim e agora
o sentimento era de perda e insegurança. Como viver sem aqueles que
consideramos portos seguros? Como lidar com situações inusitadas? Como viver
e se comportar na cidade? Estes e outros questionamentos, assim como difíceis
situações vividas sem dar conta de resolvê-las da melhor maneira possível,
fizeram-me chorar e pensar em retornar à “rocha-mãe”6.
A mudança de lugar e a separação da família aconteceram por existir um
planejamento maior de meus genitores com a formação acadêmica dos filhos.
Concluir o Ensino Fundamental e ingressar no Ensino Médio era desejo que
caminhava comigo e meus pais. Assim, depois de realizar a 4ª série no espaço
rural, a continuação dos estudos exigia deslocamento para um outro lugar, uma
vez que em 1992 minha comunidade ainda não havia alcançado o direito de
ofertar o Ensino Fundamental de 5ª a 8ª séries. Uma década depois é que, em
cinco escolas-polo, foi implantado o “Projeto Janelas para o Saber – O Ensino de
5ª a 8ª séries no Espaço Rural”, de autoria do professor Dr. Agenor Sarraf
Pacheco7.
6 Aproprio-me do termo cunhado por Sayad (1998) para me referir ao lugar de origem do migrante. 7 De janeiro de 2001 a fevereiro de 2002 o professor exerceu, no município, a função de secretário municipal de educação, deixando-a para realizar seus estudos de mestrado e doutorado em História Social na PUC-SP.
35
Frente a essa necessidade, fui ser moradora provisória de Melgaço. E
como era Melgaço em 1992? As lembranças trazem uma Melgaço pouco
desenvolvida em todos os aspectos, todavia bem aconchegante por não fugir
muito dos referentes da realidade ribeirinha. Somente aos poucos fui percebendo
quanto de rural tinha aquela vida urbana, sem saber ou refletir naquela ocasião,
era moradora de uma típica “cidade-floresta”8 marajoara, tema estudado e
defendido por Sarraf-Pacheco (2006; 2015).
São muitas as imagens que agora fluem da memória. Emergem a
precária estrutura física, a difícil situação econômica, social e política, as práticas
de convivialidade tecida nas linhas da entre-ajuda e da disputa. Nessas
relembranças, a chegada da energia elétrica somente às 18h00 e seu apagar,
depois dos três sinais, às 24h00, ganham destaque. Muitas ruas eram cheias de
capim, assim como a frente da cidade entoalhada por mururés9.
A dependência econômica era grande frente aos municípios vizinhos.
Para exemplificar, o chopp de frutas naturais e artificiais e o cheiro-verde vinham
de Breves para serem comercializados em Melgaço. Junto a isso, eu tomava
banho no rio, andava de canoa e caminhava na estrada com o mato roçando
minhas pernas em busca de tucumã, o que, em certo sentido, interligava-me às
andanças com minha avó pelo roçado de arroz no rio Tajapuru.
Foi a partir de 1992, quando iniciei a 5ª série é que entrei em contato com
Wilma, Rosiete, Dilma, Jurema, Fátima e tantas outras que depois de um bom
tempo de trabalho no município resolveram seguir novos rumos.
Desde o primeiro encontro com as professoras migrantes, nossas
histórias estiveram sempre cruzadas. Seguíamos dinâmicas diferentes, mas ora
ou outra nos aproximávamos. Se também fosse contar um pouco desta trajetória
pessoal de formação educacional, uma espécie de “escrita de si”, para lembrar
Nunes et al. (2005) ou “narrativa de si”, para não esquecer Alves (2007), não
poderia deixar de citar os tempos em que, na condição de aluna, interagi com
essas comandantes.
8 O termo “cidade-floresta” foi cunhado por Sarraf-Pacheco (2006, p. 24), para assinalar que ele “remete a noções de uma urbanidade singular que se elabora pelos saberes, linguagens e experiências sociais de populações formadas dentro de uma outra lógica de cidade, onde antigos caminhos de roça cedem lugar à construção de ruas de chão batido, depois asfaltadas, assim como a permanência de práticas de viveres ribeirinhos nesses novos espaços de moradia”. 9 É uma planta aquática flutuante, típica da região amazônica.
36
Hoje ao avaliar aqueles tempos, constato que também me tornei uma
delas: sou professora e técnica migrante, pois sendo marajoara, desde julho de
2010 resido em Belém. Antes, em 2000, na condição de professora contratada
pelo município, mas atuando na escola estadual, dividi com as professoras
migrantes espaços de trabalho, experiência de planejamento coletivo, sonhos,
organização de manifestações artístico-culturais e importantes programações
socioeducativas e culturais. Passamos a ser interlocutoras dessa complexa
história. Entre 2002 a junho de 2010, estivemos mais próximas e, com isso, pude
juntar-me a elas para continuar a (re)construção da história da educação de
Melgaço, iniciada por elas nos primeiros anos da década de 1980.
Os relacionamentos afetivos e, especialmente, profissionais, construídos
com essas comandantes, quando exerci o cargo de coordenadora pedagógica na
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Presidente “Tancredo de
Almeida Neves”, fizeram tomar uma importante decisão: a realização da pesquisa
de Mestrado em Educação, tematizaria Histórias de Vida, Formação Docente e
Construção de Identidades, cujo centro de análise seriam as trajetórias pessoais e
profissionais das professoras migrantes.
Realizar essa pesquisa justifica-se, entre outros, por duas necessidades:
a) valorizar as trajetórias de vida de professoras migrantes que construíram sua
identidade pessoal e profissional nas experiências compartilhadas com a história
da educação do município de Melgaço no contexto de 1980 até 2014; e, b)
contribuir com a produção bibliográfica acerca da pesquisa em educação na
Amazônia, em temáticas que articulam professoras migrantes, histórias de vida,
memórias e identidades na formação docente como eixos importantes para
avançar em outras compreensões da experiência social educacional na região.
A partir da identificação como moradora de Melgaço, comecei a viver o
sentimento de pertencimento ao lugar, sonhos e desejos já não eram só pessoais,
faziam parte de uma tessitura coletiva. Foi nesse processo de identificação com o
lugar que me interessei por recuperar e visibilizar um pouco de sua história.
37
1.2. (Re)apresentando Melgaço
O nascimento do núcleo colonial de Melgaço pelos lusitanos, segundo
estudos já realizados por Sarraf-Pacheco (2006; 2010), está vinculado à chegada
da Companhia de Jesus na Amazônia. Às margens da baia da cidade, em 1659, o
padre Antônio Vieira com o objetivo de catequizar os povos indígenas,
pejorativamente chamados de Nheengaíba, expandiu o império religioso católico
jesuítico para essa área e, estrategicamente, fundou a aldeia Guarycuru.
Entre a fundação do povoado e “a expulsão dos religiosos do Brasil pela
Carta Régia de 06 de junho de 1775”, Melgaço “ficou sob o domínio dos colonos
portugueses que, alguns anos depois, elevaram a aldeia à condição de vila”
(SARRAF-PACHECO, 2006, p. 46). Em homenagem aos imigrantes portugueses
que vieram da região de Barão de Melgaço, a vila recebe o nome de Melgaço.
Imagem nº 02: Parte da Orla.
Fonte: Arquivo da pesquisa, domingo de páscoa de 201410.
Para além de dados e informações oficiais da fundação e localização da
cidade, reina nas memórias dos moradores mais antigos outros saberes que
enriquecem essa historiografia. A esse respeito, Baia (2015, p. 71) comenta:
A criação e ocupação da vila de São Miguel de Melgaço não se dão de forma linear, desde a frente extrativista e agrícola até a formação da cidade. Gesta-se diante das dinâmicas econômicas da fronteira amazônica com suas relações sociais, crenças e mitos incorporados por ribeirinhos que diante das diferentes
10 A fotografia retrata a baia Guarycuru que banha a cidade. Nela se visualiza o novo prédio da prefeitura municipal, inaugurado em 1997, depois que o antigo prédio foi queimado na revolta popular de 12 de agosto de 1996.
38
situações em que vivem, tentam explicar as origens da formação e localização da vila de Melgaço. Os ribeirinhos passaram a acreditar que a vila era para ser fundada do outro lado da baia de Melgaço, num lugar denominado de Pacoval, porém, como a imagem de São Miguel Arcanjo, seu padroeiro, foi encontrado deste lado, todas às vezes que pretendiam levar a imagem para o outro lado, alguma coisa o impedia. Essas memórias ainda estão vivas na cultura dos moradores que iniciaram, na sua infância, o povoamento da vila, acreditando que o santo não queria sua formação em outro local.
Ao longo do século XVIII, diferentes práticas extrativistas, assim como a
agricultura, a pesca e o criatório fizeram parte da vida das populações que
habitavam esse lado ocidental marajoara (SARRAF-PACHECO, 2010). Os
estudos que abordam os séculos XIX e XX expõem memórias da extração da
borracha, práticas de exportação, migrações nordestinas, apogeu e decadência
de uma certa vida urbana ou de uma típica “cidade-floresta”, sempre articulada
com a forte crença em São Miguel Arcanjo, suas festas, peregrinações e milagres.
Depois dos tempos de dominação vividos por Melgaço, entre 1930 a 1960, em 30
de dezembro de 1961, o município iniciou uma nova trajetória em sua
constituição: a nova emancipação política.
A história da educação do presente está completamente ligada àqueles
tempos de emancipação e lutas pela escolarização dos poucos moradores que
residiam na sede do município. Nesse enredo, a presença das professoras
migrantes é um capítulo importante dessa narrativa histórica.
Depois da breve apresentação de encontros com Melgaço e aspecto de
sua história, considero importante apresentá-la em alguns específicos olhares.
Sarraf-Pacheco (2006, p. 23), em estudo a respeito da “cidade-floresta” assim a
situa:
Melgaço [...] é um município pouco conhecido entre os 143 que desenham o mapa paraense11. Com uma população de 20.061 habitantes, dos quais 85% se encontram em contato intenso com os viveres da floresta, que pode ser chamada de zona rural do município, tem sua população distribuída irregularmente nos 6.774 km² que lhe restaram depois da sofrida apropriação de parte de seu território pelos municípios de Gurupá, Breves e Portel. Localizado nas margens de rios e matas, na fronteira do
11 O Estado do Pará, é formado por 144 municípios, depois de 2012, quando foi criado o município Mojuí dos Campos, localizado no Centro da Região Norte.
39
arquipélago dos Marajós12, na boca da baía de água doce, Melgaço teve seus traçados urbanos pintados com tons culturais de homens, mulheres e crianças que, em contato intenso com sensibilidades da floresta, constituíram específicos modos de viver, trabalhar, lutar pela sobrevivência e pela reatualização de hábitos, costumes, manifestações religiosas, curtindo perdas e ganhos, experimentando sensações diversas na ambiguidade de suas sobrevivências.
A Melgaço apresentada por Sarraf-Pacheco (2006) é um município que
está em fronteiras, limites e disputas traçadas por “perdas e ganhos”. Ela perdeu
territórios, mas ganhou novos “tons culturais”. É a Melgaço que está “à margem
de uma concepção restrita de Marajó”, no entanto a cada dia aprende a viver seu
tempo, ressignificar sua história a partir da dinamicidade do mundo urbano,
tecnológico e da especificidade do lugar.
Imagem nº 03: Mapa parcial do Marajó das Florestas.
Fonte: Diário Online/30/06/2013.
No recorte do mapa, visualiza-se o município situado na microrregião de
Portel, mesorregião de Marajó, tem uma área de 6.774 km², limita-se ao norte
com os municípios de Breves e Gurupá; ao sul com Portel; a leste com Breves e
Bagre, este último não focalizado na imagem; a oeste com Porto de Moz e
Gurupá. Sua sede dista 290 km de Belém, por via fluvial (SARRAF-PACHECO,
2006, p. 12).
Dados do Censo Demográfico de 2010, apresentam Melgaço com 24.808
habitantes distribuídos na sede e no espaço rural, como demonstra o gráfico:
12 Sarraf-Pacheco (2006) faz opção pelo termo “Marajós” para enfatizar a pluralidade, diversidade e complexidade que a região apresenta em seus diversos aspectos.
40
Imagem nº 04: Gráfico Populacional.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2010.
Conforme os índices do IBGE parcela significativa da população
melgacense encontra-se ainda no espaço rural, pois são 77,8% que estão em
“contato intenso com os viveres da floresta”, mas interconectados com a dinâmica
do mundo urbano, seus sonhos, ilusões, contradições e possibilidades de
alcançar uma vida melhor.
No ano de 2013, o município ganhou destaque nas redes midiáticas
nacionais e internacionais, depois da divulgação do resultado da avaliação do
Índice de Desenvolvimento Humano dos Municípios (IDHM), coordenado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU) com base
nos dados do Censo Demográfico de 2010. A notícia trouxe Melgaço na última
posição no ranking dos municípios brasileiros, assinalando como pior lugar para
se viver no Brasil, de acordo com a lógica internacional.
Na última posição no ranking do IDHM está a cidade de Melgaço, no Pará, que obteve índice de 0,418 e registra "muito baixo" desenvolvimento humano. Com 24.808 habitantes segundo o IBGE, fica situada a 290 quilômetros da capital Belém – a única entrada da cidade é por via fluvial. Embora na última colocação, Melgaço registrou evolução positiva de 136% em relação ao índice divulgado em 1998. Na ocasião, o IDHM do município foi de 0,177. Em relação a 2003, a evolução foi de 60,7% – na ocasião, o índice de Melgaço era de 0,260 (G1, 29/07/2013, às 14h30).
Na Wikipédia, as representações de Melgaço não são diferentes.
41
Melgaço é o município mais atrasado do país, com índice de IDH igual a 0,418, comparável com o índice do Malaui, país do sudeste da África, um dos 20 países com IDH mais baixos do mundo, segundo o PNUD. Isto significa que as condições e vida no município são semelhantes às condições de vida do Zimbábue, Etiópia e Ruanda. No índice, destaca-se a educação do município, que alcança baixíssimos 0,207, indicando que a cidade possui a pior média de anos de estudo do Brasil, e ainda a pior expectativa de anos de estudo.
Os últimos retratos de Melgaço nos meios de comunicação expressam
que o nível de desenvolvimento do município está sempre em situação de baixa
qualidade nas avaliações13. A divulgação desses índices não foi recebida de
maneira pacífica e tranquila por moradores e classe política local, gestando
diferentes discursos e reações no cotidiano da cidade.
Na concepção dos moradores os dados retratavam a péssima gestão
pública do grupo que passou a comandar o poder local em 2009. Já na ótica
desse grupo político, os índices por retratarem a realidade do município no
período de 2001-2010, centravam-se em oito anos do prefeito anterior, por isso
não poderia ser culpabilizado.
Diferentes entrevistas foram realizadas com políticos e intelectuais
especialistas na temática marajoara nos efervescentes dias quando o PNUD
tornou público os dados do IDHM em 2013. Em uma delas, publicada no Jornal O
Diário do Pará em 11/08/2013, Sarraf-Pacheco contextualizou a formação da
sociedade marajoara, a qual possibilitou compreensões mais amplas do quadro
histórico-social de Melgaço.
Melgaço, como um município do Marajó e da Amazônia, tem uma formação histórica pautada no modelo monocultural da grande propriedade. Ali poucos detêm muita terra e muitos não detêm quase nada ou não têm terras para trabalhar. Essa geografia de uma vida rural fez com que, na medida em que esses municípios fossem se emancipando, chegasse ali um modelo de gestão pública baseado em políticas coronelistas, clientelista, de política de favores, em que, muitas vezes, não se rompe a fronteira do que é público e do que é privado [...]. Outra questão é que foi implantado em Melgaço um modelo de economia agroextrativista que não previu a sustentabilidade e a sociodiversidade. Com a
13 Na segunda semana do mês de setembro de 2014, a rede de televisão BAND apresentou uma série de reportagem denominada Brasil: entre o céu e o inferno. A intenção era mostrar municípios de melhor e pior IDHM do Brasil, nesta reportagem jornalística Melgaço é apresentado como o inferno do Brasil. Os arquivos da série estão disponíveis em http://noticias.band.uol.com.br/jornaldaband/series.asp
42
agricultura tradicional sem dialogar com as novas tecnologias a economia fica frágil, exportando-se pouco e, geralmente, quem explora essas áreas agroextrativistas são empresas estrangeiras ou multinacionais. O resultado é que vai ficando ali um vazio e uma população pobre.
Na compreensão do historiador, que nesse período concedeu uma série
de entrevistas aos meios de comunicação, é preciso considerar dois aspectos: um
endógeno e um exógeno.
No aspecto endógeno a longa história de Melgaço, especialmente depois
de sua emancipação política em 1961, foi traçada por gestores que assumiram a
administração pública com quase nenhuma compreensão de que o bem público
não é propriedade particular. Por isso, ainda hoje existem resquícios de práticas
coronelistas e clientelistas, culminando na escolha de pessoas para os cargos
estratégicos da gestão com pouca escolarização ou sem relação com a filosofia
daquela pasta.
No aspecto exógeno, o pesquisador assevera que a criação de modelos
únicos para avaliar o desenvolvimento local, desconsidera a importante dimensão
cultural que constitui as práticas humanas em qualquer espaço. Muitos projetos
pensados em Brasília, por exemplo, não conseguem se consolidar por
desconhecimento da sociodiversidade regional. Apesar dessas discrepâncias,
Sarraf-Pacheco (2013) considera que há uma mudança de mentalidade tanto na
esfera municipal, no que tange a escolha de equipes técnicas qualificadas e
responsabilidades com o gerenciamento dos recursos públicos, quanto na esfera
federal, no sentido de ouvir as vozes locais e planejar coletivamente algumas
ações.
A analítica elaborada por Sarraf-Pacheco (2013) parece ser
esclarecedora, pois em Melgaço os moradores, de seu modo sociocultural,
expressaram suas reações. Entre tais reações um primeiro grupo, por exemplo,
organizou passeatas e foi às ruas reivindicar da gestão municipal, mudança de
atitude, melhor qualidade de vida e explicações sobre a situação de “calamidade”
na educação, saúde, saneamento básico, além da falta ou atraso na aplicação de
verbas destinadas à melhoria da infraestrutura urbana e rural. Já um segundo
grupo, formado, especialmente, por políticos locais, intelectuais e poetas
discordou dos critérios de avaliação do IDHM.
43
Foi nesse enredo de situações vividas pelos melgacenses que Antônio
Juraci Siqueira, poeta marajoara, compôs uma poesia intitulada, “Sou Melgaço,
Muito Prazer”. Ela revela um pouco das angustias “daqueles” que foram marcados
pela exclusão da história social e aponta expectativas de se ter uma Melgaço
vista pelos olhos “daqueles” que detém o “poder” e podem fazer a diferença para
construir uma história inclusiva.
A poesia foi pensada a partir de uma expedição denominada Guarycuru,
organizada pela Faculdade Estácio de Sá com alunos do curso de Comunicação
Social, junto ao grupo de alunos estavam alguns convidados, dentre eles o poeta
Antônio Juraci. O objetivo da expedição era revelar riquezas patrimoniais naturais,
humanas e culturais que o IDHM silencia. Depois de visitar vários espaços
melgacenses, o poeta construiu em verso uma outra representação de Melgaço.
SOU MELGAÇO, MUITO PRAZER
Alô, Brasil! Sou Melgaço,
um pequeno pedaço do lendário Marajó. O maçarico, o socó, o tralhoto e o japiim
sabem muito mais de mim que jornalista da globo
que, com maldade de lobo mostrou-me pro mundo inteiro
como sendo o derradeiro município do país,
pois conheço o meu valor, meu povo é trabalhador,
belo, alegre e hospitaleiro. Município brasileiro com menor IDH?
Pode ser. E o que é que há? Isso não me tira o meu brio, não me faz menos Brasil,
não macula a minha história, não ofusca a minha glória
nem me impede de sonhar, de sorrir e de cantar!
No meu nome trago mel: não sou inferno nem céu
mas sou belo, com certeza pela própria natureza do que de fato careço, isso sim eu reconheço,
é de política pública do Estado e da República
44
com o apoio do gestor e não por mero favor
mas por justiça, direito e com o devido respeito
pois de ninguém quero dó deixo ao mundo meu abraço de argila e sol. Sou Melgaço,
Brasil, Pará, Marajó!
O poeta marajoara em sua poesia valoriza a beleza natural de Melgaço
para comunicar que o título de “pior lugar para se viver”, como foi apresentado
pela mídia, foi avaliado somente por dados estatísticos. Os meios de
comunicação desconsideraram as singularidades e subjetividades que os
melgacenses atribuem ao lugar e aos modos de vida. Todavia, isso não diminui a
responsabilidade da gestão pública em promover o desenvolvimento do município
e oferecer condições digna para a população, “não por mero favor, mas por
justiça, direito e com devido respeito”.
Imagem nº 05: Lado Oeste da Orla de Melgaço14.
Fonte: Site Cidade Brasil / Estado de Pará / Município de Melgaço » Informação geral. Capturada no dia 8 de julho de 2008. Conhecida no dia 7 de agosto de 2014.
Se fatores históricos internos precisam ser levados em consideração para
se compreender os caminhos trilhados por Melgaço, percepções restritas do
Ministério da Educação a respeito da realidade marajoara não podem ser
ignoradas. Na primeira década do século XXI, o município foi contemplado com 14 Neste registro fotográfico é visualizado um pouco da beleza natural da cidade e neste tempo a cidade vive o tradicional festival de verão, principal atração do mês de férias.
45
10 lanchas escolares, com motor de 150 HP, para realizar o transporte escolar
nas escolas rurais. De acordo com discurso do prefeito municipal, o consumo de
gasolina torna inviável a implantação do programa da forma como foi planejado
pelo MEC. O ideal era que essas lanchas fossem a diesel, pois o município
economizaria no combustível e conseguiria colocar todas elas em funcionamento
nas escolas-polo. Em agosto de 2011, algumas lanchas começaram a ser
utilizadas para transportar alunos de localidades próximas à sede do município,
que por não terem acesso ali ao ensino de 5ª a 8ª séries e ensino médio,
deslocam-se pela manhã à Melgaço e retornam à tarde para suas residências.
Imagem nº 06: Trapiche da Saúde15.
Fonte: Arquivo Expedição Guarycuru. Fotógrafo Laercio Cruz Esteves - novembro de 2013.
Entre belezas naturais, denúncias das condições sociais e esforços
mínimos para resolução de problemáticas educacionais, recupero aspectos de um
de meus retornos a Melgaço para passar a semana santa e adensar a pesquisa
de campo. Era aproximadamente 9h00 da manhã, do dia 16 de abril de 2014,
quando cheguei com minha família ao Porto do Moconha, local onde atracam
embarcações de grande porte, distante a 1.500 metros da cidade. Foi na chegada
que meu filho do meio, Ícaro, foi recepcionado pela cidade com um banho. O
acontecimento não foi um ritual, foi acidental, pela péssima condição
15 Local onde ficam guardadas as lanchas escolares.
46
infraestrutural da ponte que dá acesso à estrada de chão-batido. O moto taxi,
principal meio de transporte da cidade, desequilibrou-se entre o trapiche principal
e um pedaço de tábua, porque sua estrutura está completamente deteriorada.
Para caminhar em risco, precisa-se fazer a travessia pelas emendas. Meu filho e
o motorista caíram no rio, junto com a mala e todos os pertences.
Diante daquela cena era impossível rever a cidade sob a ótica do senso
comum. Na condição de ex-moradora, foi o olhar de pesquisadora e crítica social
que orientou a entrada na cidade. A saudade da família e dos amigos misturou-se
ao sentimento de revolta. Certamente o acidente vivido por meu filho era pequeno
demais para históricos sofrimentos que acompanham a vida das populações
menos favorecidas. Diálogo com diversos moradores confirmaram as
contradições da gestão pública local.
Imagem nº 07: Estrada do Moconha.
Fonte: Arquivo da pesquisa – setembro de 2015.
Da estrada do Moconha, que liga o trapiche à cidade de Melgaço, é
preciso entrar em intensa cobertura de lamaçal. Sigo no moto taxi equilibrando-
me no rio de lamas, prestes a qualquer hora a nos surpreender com novos
escorregões e quedas. Na estrada, encontrei crianças, sem conhecimento do
perigo de contaminação, brincando em poças e deslizando-se na lama amarelada
e também adultos vindos da cidade com suas compras, fazendo malabarismo
para chegar até suas moradias.
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Em tempo de inverno, calçados não fazem parte da rotina do povo que
mora à beira da estrada, porque na disputa com a lama, o dono do calçado acaba
perdendo-o. Além disso, a sandália e o sapato não representam utilidade nem
luxo àquela realidade vivida pela população da estrada do Moconha.
Foi neste (des)encontro com Melgaço, com a atenção voltada para o
lócus da pesquisa, que comecei a olhar a cidade por uma perspectiva de
investigação. A primeira imagem fez perceber o quanto a beleza natural está
ofuscada pelas vestes do desprezo do poder público. A falta de planejamento e a
não aplicação de recursos dignos às especificidades locais contribuem para o
aumento das problemáticas sociais de Melgaço. Precisei, contudo, levantar
informações para melhor compreender o contexto nacional e estadual em que se
inseriram as professoras migrantes quando chegaram ao município na década de
1980.
1.3. Entre Várzea e Terra Firme
A escolha pelo recorte temporal advém da chegada das professoras
migrantes a Melgaço, como já enfatizei anteriormente. Elas chegaram ao
município em meados dos anos de 1980.
Ao repensar o período histórico e temporal, destaco alguns pontos que
julgo importantes para compreender o contexto sócio-histórico e educacional, a
partir da década de 1980 no Brasil e seus reflexos no Marajó, em especial em
Melgaço. Nessa escrita uso a metáfora da várzea para representar caminhos
cartográficos moventes e provisórios, cheios de incertezas, e o da terra firme,
quando as lutas pela educação de qualidade consolidam tradições, mesmo que
não seja possível festejar por longo tempo.
Os anos de 1980 foram marcados pelas lutas de redemocratização e
institucionalização das demandas educativas. A Associação Nacional de
Professores do Ensino Superior (ANDES), por exemplo, nasceu em 1981. Neste
período, havia um descontentamento com a profissão docente, vários eram os
fatores que influenciavam para tal situação, entre eles destaco: baixo salário,
intenso regime de trabalho, descaso com a educação, culminando na má
qualidade do ensino.
48
Esse cenário conecta-se com a realidade paraense, pois a proposta
recebida pelas professoras migrantes para trabalharem em Melgaço com a
garantia de casa para morar e ajuda de custo, por parte do poder público
municipal, parecia seguir na contramão das condições em que se encontravam no
concorrido mercado de trabalho em Belém, especialmente para Dilma, Wilma e
Rosiete. A oportunidade de melhorar a renda para ajudar seus familiares que
residiam em municípios paraenses mostrou-se decisiva para o ato migratório.
Importa considerar que nos primeiros anos da década de 1980, os fortes
movimentos contra o governo militar ainda não tinham derrubado o velho regime
ditatorial e as lutas dos professores por políticas democráticas e inclusivas
continuavam a todo vapor. A bandeira da educação, nesse momento, veste-se
compromissada com o social, e o professor, apesar de seu descontentamento,
volta sua preocupação para discutir novos caminhos à prática pedagógica. Essa
conjuntura provocou várias manifestações docentes, tal como a derrubada das
grades do Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, em típico exemplo de que a
dominação militar não poderia mais continuar.
Nesta década, depois das Diretas Já, mais precisamente em 1988, o
movimento em defesa da escola pública e gratuita assumiu linha de frente no
campo da educação. A batalha por essa causa já vinha se constituindo desde
1987 com a criação do Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública. Na
Constituição de 1988, a educação pública, laica e de qualidade, um direito de
todos, foi contemplada em um de seus artigos, assim como os funcionários
públicos também ganharam o direito de se sindicalizarem.
A respeito dos acontecimentos ocorridos na década de 1980 na área da
educação brasileira, um de seus intérpretes reflete:
[...] no início dos anos de 1980, momento esse marcado pela redemocratização da sociedade brasileira e por diferentes movimentos no âmbito da defesa da escola pública e gratuita, bem como pela discussão e afirmação da didática enquanto ciência da educação; uma época de discussões sobre o papel transformador da escola e da prática educativa no bojo de uma sociedade capitalista e excludente (SOUZA, 2006a, p. 76).
Em Melgaço, a gestão de 1983-1988 é considerada pelos moradores
mais antigos, de acordo com as pesquisas de Sarraf-Pacheco (2006), como o
49
tempo de construção da cidade, pois incentivou o desenvolvimento educacional
local.
Obviamente não se pode esquecer que esses governos defendiam uma
concepção de educação baseada no lema ordem e progresso, discurso do
civilismo, amor aos símbolos nacionais, culto ao patriotismo, já que a base
formadora de suas visões de mundo foi alicerçada no período militar.
Não por acaso, as professoras migrantes rememoram que ao final do ano
letivo, na década de 1980, o governo municipal realizava grandes festas de
encerramento. Entre as atrações, premiava com bolas, bonecas, carros e outros
brinquedos as crianças e com prêmios em cadernetas de poupança ou dinheiro
em envelopes entregues aos primeiros lugares de cada turma de alunos da
Escola Estadual de Ensino Fundamental Presidente “Tancredo de Almeida
Neves”.
Assim, a exigência da sociedade local para a expansão do Ensino de 1º
Grau, hoje, Ensino Fundamental, na cidade, fez, em 1984, o grupo das
professoras migrantes implantar a primeira turma de 5ª série16. Essas lembranças
fluíram na memória de Wilma ao falar de sua relação com a história da educação
melgacense.
As professoras que chegaram aqui foram implantando o ensino de 5ª a 8ª série e hoje a comunidade já supre a necessidade, no que diz respeito a professores da educação básica, isso é um período muito curto dentro de Melgaço, foi uma explosão dentro da educação, apesar de ter passado por vários processos. Eu digo que essa educação é recente, ela teve um período de florescimento, mas depois de decadência, de 1980 até início da década de 1990 ela floresceu muito, especialmente a educação estadual. Na década de 1990 caiu a educação municipal e a estadual aguentou, sem apoio sem nada, mas nós fomos permanecendo por aqui, a gente já tinha família, tinha casa, fomos ficando, algumas foram embora mesmo, como a Célia Rosa, a Graça Alves, a Luiza, a Lúcia, elas não aguentaram o pique e foram embora (Professora Wilma – 2014).
Interesses governamentais e compromissos das professoras migrantes,
que se mostraram as principais articuladoras junto à gestão municipal, fizeram
16 O historiador Agenor Sarraf Pacheco confirma que a década de 1980 foi o segundo e maior momento de migração de professores para Melgaço. “A chegada dos profissionais que vieram trabalhar com o ensino marca um momento importante na história da educação e do desenvolvimento social da região” (SARRAF-PACHECO, 2006, p. 141).
50
Melgaço, entre os anos de 1984 a 1987 consolidar o Ensino de 5ª a 8ª séries, e
de 1990 a 1992, o Ensino Médio em Magistério.
É preciso lembrar que Jurema exerceu na gestão de 1983-1988, o cargo
de chefa do setor de Educação, investindo, de acordo com as condições da
política educacional naquele período, na infraestrutura das escolas rurais, na
formação dos professores e nos programas de merenda escolar, material e livros
didáticos.
Ao partir da compreensão de Chauí (1994, p. 20) sobre o ato de lembrar
quando assinala que “[...] lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, reflexão
do agora a partir do outrora; é ensinamento, reaparição do feito e do ido, não usa
mera repetição”, Jurema rememorou o tempo em que era responsável pela
direção da educação municipal.
Quando eu fui convidada para assumir a secretaria e comecei a fazer o trabalho, vi que a maioria dos professores eram leigos, pois tinham só a 1ª e 2ª séries primária, então, eu pensei: “vamos fazer a mesma coisa que o município de Breves fez”. Fazíamos as oficinas com os professores, todo ano no mês de janeiro e fevereiro a gente dava formação de professores, só que não era de forma técnica, institucionalizada, faltou essa institucionalização do município com o Estado, então, faltou esse valor oficial, institucional. Trabalhamos e tentamos fazer um bom trabalho. O meu padrinho dava muito apoio à educação, muito mesmo. Todo ano nós fazíamos treinamento para os professores da zona rural. Eu cheguei a ministrar cursos, nós trazíamos outros professores também, depois nós fizemos um curso de capacitação e, nesse, conseguimos dar certificado para os professores. Fomos nós que adotamos o boletim de frequência, porque nós copiamos de Breves. Como eu tinha sido professora em Breves, eu peguei o modelo de lá e coloquei aqui. Nós aumentamos o número de escolas, eu lembro muito bem que terminamos com 120 escolas, nós assumimos o município com 70 escolas, do governo de seu Alberto Felipe, e aumentamos para 120 na zona rural (Professora Jurema – 2014).
Nos anos de 1990 o país viveu um novo cenário sociopolítico, as
manifestações de ruas são mais silenciadas em virtude do nascimento das
emergentes formas de reivindicações, por exemplo, as organizações da
sociedade civil se reestabelecem e entram novamente em cena. As divergências
políticas e ideológicas e as lutas pelos direitos sociais são tratadas, em grande
parte, na base da negociação, sem necessariamente apagar as experiências de
protestos.
51
Segundo Gohn (2013), este período foi traçado por formas variadas
encontradas pela sociedade civil para se organizar e participar da gestão
governamental, assim como foi uma década marcante para a sociedade brasileira
ressignificar, por meio de suas ações, o conceito de cidadania.
[...] Surgem novas facetas à cidadania tais como o exercício da civilidade, o compromisso e a responsabilidade social do cidadão como um todo, a sustentabilidade das práticas coletivas etc. Ou seja, foi destacado não apenas os direitos, que é a alavanca básica do conceito de cidadania, mas também foi introduzida a questão dos deveres, da responsabilização nas arenas públicas, e essa responsabilização abriu caminhos para a participação de diferentes e novos atores sociais nas políticas de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. Passa-se a enfatizar a responsabilização dos cidadãos, as empresas, e os órgãos governamentais nas novas políticas públicas; criam-se espaços para a participação nestas políticas via parcerias, ou nos espaços criados institucionalmente, como os conselhos gestores e os fóruns sociais públicos (GOHN, 2013, p. 303).
Foi no início desta década que ressurge um novo perfil de movimento dos
estudantes no Brasil, os “cara-pintadas”. Este movimento foi importante para que,
de forma democrática, acontecesse a deposição de um presidente do Brasil.
Assim Gohn (2013, p. 04) explica:
A década de 1990 também é um referencial comparativo interessante para o caso brasileiro porque o protagonismo da sociedade civil despertou, na época, para a questão da ética e dos direitos, levando ao impeachment do ex-presidente Collor de Melo. Os estudantes 'cara-pintadas' tiveram lugar de destaque na cena dos protestos.
Essa década foi marcada por organizações institucionalizadas com
destaque para indígenas, funcionários públicos e ecologistas. A exemplo de lutas
dos funcionários por melhores condições de trabalho e qualidade de vida, em
Melgaço, segundo Sarraf-Pacheco (2013), no dia 12 de agosto de 1996
aconteceu um estopim que marcou a história local. Inicialmente o movimento era
de caráter pacífico, pois buscou negociar o direito dos trabalhadores com o
governo municipal. Contudo, depois de três meses sem receber seus
vencimentos e com o descontentamento da população pelo descaso da gestão
com o município, funcionários e populares queimaram o prédio onde ficava a
52
Prefeitura, a Câmara Municipal, a Junta Militar e a Agencia dos Correios e ainda
danificam os meios de comunicação e geração de energia elétrica na cidade.
A respeito desse acontecimento histórico, Wilma relembrou com
sentimento de bravura o envolvimento da população contra as tiranias do
governo.
Então o povo saiu à rua, mostrou que ele é capaz de derrubar um governo. Eu lembro um pouco da cabanagem17, o povo derrubando o governo, fazendo com que este governo venha tomar novas decisões e mudar o seu projeto de governar. Algumas coisas que aconteceram deixaram um pouco de tristeza, porque muitas coisas se perderam como documentação que não foi retirado nada dos prédios, foi queimado tudo. Diria que um pouco da história do povo se perdeu, mas a gente pode construir a história de uma outra forma. Eu me senti como historiadora nesse momento, com a alma lavada, tu entendeste? Porque eu vi o processo de crescimento da mentalidade do povo, ele gritando na rua que não aceitava mais ser massacrado, ser enganado, ser espoliado. E isso, esse processo aqui no Marajó foi inédito, porque nesse período, a maioria dos prefeitos estavam passando por esse processo de corrupção e aqui em Melgaço não era diferente. Quando eu ia à Breves eu ficava lá em cima, quando ouvia eles falarem: “mas o povo de Melgaço é um povo consciente, heim! É um povo forte, detonou com o governo lá, detonou com o prefeito”, eu me sentia orgulhosa desse povo, eu me sentia melgacense, porque eu participei desse processo, eu fui para rua, eu fui reivindicar, eu fui dizer que eu não queria esse prefeito (Professora Wilma – 2014).
O município viveu de 1993 a 1996 um período de crise administrativa.
Malversação do dinheiro público, irresponsabilidade administrativa, sucateamento
e atraso do salário dos servidores municipais, entre outras práticas da gestão
levaram a escândalos que ganharam a grande imprensa paraense.
Boa parte dos anos de 1990 foi, para a história política do município, um tempo de perdas e retrocessos. A chegada de políticos irresponsáveis com o uso e aplicação de recursos e bens públicos causou transtornos, dores e revoltas no seio da população (SARRAF-PACHECO, 2013b, p. 14).
17 A Cabanagem foi um movimento social de forte expressão popular que ocorreu no período imperial brasileiro, na Província do Grão-Pará, entre 1835 a 1840. Ele foi formado por fazendeiros e comerciantes que pretendiam participar das decisões administrativas e políticas da província, e, especialmente, por índios, negros e mestiços pobres que estavam descontentes com as duras condições de trabalho, falta de terra, carência de moradia, alimentos, entre outras necessidades. Para saber mais, entre a vasta literatura a respeito do assunto, ver: (PINHEIRO, 1998; RICCI, 2001; LIMA, 2010).
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Este período foi considerado perdido na história do município,
acompanhando a estagnação política e econômica e os escândalos nacionais da
chamada Era Collor. Em Melgaço, existiram muitas perseguições políticas com os
funcionários públicos e os professores foram um dos alvos, dentre eles estavam
as professoras migrantes.
Nesse período, o fato de a maioria ter formação acadêmica contribuiu
para não se calarem diante das injustiças sociais e descaso da política local e
estadual com a educação. Por isso, elas foram à luta para garantir os direitos da
população, colocando em corda bamba seus próprios empregos e permanências
na cidade.
Wilma novamente com muita veemência falou deste tempo como um
tempo de detonação dos direitos dos funcionários públicos, principalmente dos
professores, e afirmou que o governo só não conseguiu tirar delas a dignidade.
O governo do Oni em 1993, eu tenho muitas recordações. Foi um período que a educação retroagiu, foi para o fundo do poço, nada aqui funcionou, era irresponsabilidade total. Os professores perderam seu valor como profissionais da educação. As coisas que nós vínhamos adquirindo ao longo do tempo como nossa mesada, a casa dos professores, fomos perdendo aos poucos, para permanecer no município tivemos que alugar casas e passar a sobreviver do nosso próprio salário. Mas isso não fez com que desmotivássemos, só dava força, porque estávamos vendo que o município estava necessitando de nós cada vez mais. As piores humilhações os professores aqui passaram, e como diretora da escola passei muito mais. Todo e qualquer apoio para essa escola foi retirado, mas nós professores aqui não cruzamos os braços. A única escola que funcionou no município de Melgaço durante esse período de terror, foi a Escola Tancredo Neves, o ensino aqui não decaiu, a qualidade de ensino não decaiu, era a única mola, era o único elo da educação no município de Melgaço, porque a pré-escola até, então, tinha paralisado e as escolas do interior também (Professora Wilma – 2014).
No Brasil, especificamente no campo da educação, em 1996 foi instituída
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nº. 9.394/96. A temática
formação de professores, fundamentada nessa legislação, começou a configurar-
se como centro de preocupações e debates no cenário educacional e político
brasileiro, referendado nos artigos 61 e 62 da Lei em vigência.
O Parágrafo Único do Artigo 61 prevê que: A formação dos profissionais
de educação, de modo a atender às especificidades do exercício de suas
54
atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da
educação básica, terá como fundamentos (incluído pela Lei 12.056, de 2009)18:
I. A presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho. II. A associação entre teoria e prática, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço (CARNEIRO, 2011. p. 452. Destaque da autora).
Nesta década, na efervescência da nova política de educação garantida
pela Lei em questão, o professor assume o papel de professor-investigador ou
professor-pesquisador, visa desenvolver articulação entre teoria/prática,
pesquisa/ensino e reflexão/ação.
A política educacional de Melgaço em desnível com as exigências
nacionais, tardiamente investe na formação de professores. Segundo Sarraf-
Pacheco (2012) a precária infraestrutura e a falta de qualificação profissional são
aspectos que contribuem para explicar o porquê dos baixos índices no rendimento
escolar. Nas palavras do estudioso, no final do governo de (1997-2000), com
Wilma Vilar, uma das professoras migrantes, no cargo de Secretária Municipal de
Educação, é que o compromisso com a política de formação continuada em
Melgaço, de modo sistematizado e legal, inicia-se.
As mudanças, contudo, começam a aparecer no governo de 2001-2008,
quando estiveram à frente da educação municipal o professor Agenor Sarraf
Pacheco (2001-2002) e Elias Sarraf Pacheco (2002-2007).
Uma das estratégias politicamente planejadas nas Gestões 2001-2004 e 2005 até janeiro de 2007, foi a criação e efetivação de um consistente Programa de Educação Continuada de Professores (PECPROF)19. Tal ação contribuiu para Melgaço fazer saltar de 25% para 72% o número de professores licenciados ou licenciando-se, no período de 2000 a 2006 (SARRAF-PACHECO, 2012, p. 221).
18 Acrescenta parágrafos ao art. 62 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 19 De acordo com Sarraf-Pacheco (2012) através deste programa foi possível firmar convênio com a UEPA e a UFPA por intermédio da Associação dos Municípios do Arquipélago de Marajó (AMAM), apoiar a instalação da Universidade Vale do Acaraú (UVA) no município. Também foi criado em 2006, os Seminários de Oficinas Pedagógicas (SOP’s), os quais aconteciam nos meses de janeiro e julho. Neste mesmo período, 2001, aconteceu a conclusão do Projeto Gavião II, em convênio com a Prefeitura Municipal e a implantação da primeira turma na área de Formação de Professores em nível superior pela UEPA em Melgaço.
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Conheci de perto a execução deste Programa e posso afirmar que foi um
período de grandes avanços na política de formação de professores. Os
profissionais da educação municipal, mensalmente participavam de cursos e
oficinas, organizados e ministrados pela equipe pedagógica da Secretaria
Municipal de Educação (SEMED). Os cursos aconteciam tanto na sede do
município quanto no próprio local de trabalho do professor no meio rural. Aspecto
importante desse movimento é a forte atuação das comandantes dessa viagem,
seja como integrantes das equipes de planejamento, ministrantes de cursos,
oficinas e palestras, sejam como participantes das atividades de formação.
Fátima rememorou esse tempo, quando fazia parte da equipe pedagógica
do município juntamente com Rosiete Siqueira.
Eu comecei a trabalhar na Secretaria de Educação no governo do Zequinha, [...] eu fui trabalhar de orientadora, cada trabalho que desenvolvemos, fazemos novas amizades, novas experiências, novos conhecimentos e sempre tenta ajudar as pessoas como podemos. Naquela época, trabalhava eu, Rose, Miguelina, também saímos juntas de lá. Eu e a Rose, a gente fazia as oficinas com os professores, tu lembras disso? Como eu já tinha as experiências, eu não era orientadora, mas era professora, sempre falamos que nós fomos orientadoras, mas nós nunca deixamos de ser professoras, nós somos professoras-orientadoras. Nós sabemos o que acontece em sala de aula e podemos estar ajudando nossos professores (Professora Fátima –2014).
Nos Seminários de Oficinas Pedagógicas (SOPs), os professores
ministrantes vinham de renomadas instituições universitárias como Universidade
Federal do Pará e Universidade do Estado do Pará. Também houve participação
de uma professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo20.
Em relatório produzido em 2007 para a Secretaria Municipal de
Educação, Sarraf-Pacheco fez uma demonstração do nível de formação dos
professores do final 2005 e início de 2006, resultado das ações desenvolvidas
20 Segundo Sarraf-Pacheco (2007), Melgaço foi palco do primeiro e inédito curso realizado em toda região marajoara para trabalhar a Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na educação básica. Tratou-se do curso de Culturas Negras em Diásporas, sob a orientação da historiadora, pós-doutora pela École dês Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, Maria Antonieta Antonacci, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História Social da PUC-SP, fundadora e coordenadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (Relatório SEMED, 2007, p. 05).
56
pelo Programa de Educação Continuada de Professores (PECPROF). Assim,
apresentava:
215 profissionais é o número que compõem o quadro do ensino fundamental municipal, envolvendo professores e orientadores educacionais. Destes, 35% são licenciados, alguns especialistas outros cursando especialização; 37% estão cursando licenciatura nas áreas de Pedagogia, História, Geografia, Matemática, Letras, Formação de Professor e Biologia; 25% possuem o Magistério e apenas 3% o curso médio de Educação Geral (Relatório SEMED, 2007, p. 02).
A partir de fevereiro de 2007, todavia, é perceptível o retrocesso vivido na
política de formação de professores no município de Melgaço. Pela falta de
vontade política dos gestores municipais, o PECPROF foi extinto e nenhum outro
programa de formação continuada, por iniciativa local, foi implantado para
substituí-lo.
O fim dos cursos normais e a necessidade de contratação de novos
docentes forçaram o município a trabalhar com número expressivo de professores
leigos, sem desconsiderar neste contexto, os antigos e atuais apadrinhamentos
políticos, muito forte ainda na região marajoara e, em Melgaço, a história não é
diferente.
Já em 2013, o município comporta em seu quadro funcional na rede de ensino, 401 professores. Destes 67 são pós-graduados (16,71%); 104 possuem cursos de graduação (25,93%); 70 estão cursando nível superior (17,46%); 72 cursaram apenas o Magistério (17,95%); 88 lecionam com o Ensino Médio na modalidade Educação Geral (21,95%). Portanto, 160 professores, o que corresponde a 39,90% do total de professores lotados nas escolas municipais de Melgaço não estão incluídos em nenhum curso de formação em nível superior (Proposta apresentada ao PARFOR/UFPA pela SEMED, 2013, p. 07 e 08. Destaque da autora).
Tenho conhecimento de que a ausência de políticas de desenvolvimento
e a situação de abandono pelos governos não é “mérito” de Melgaço. Ela
expressa o retrato de toda a sociedade brasileira, principalmente da realidade
marajoara. Reflete neste enredo, precariedade na saúde pública, no saneamento
básico, na educação e ainda a tímida valorização das riquezas naturais, materiais
e culturais do lugar e dos seus moradores.
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A crise nacional que reflete nos cortes dos investimentos públicos provoca
ações reivindicatórias por parte da população brasileira. Um retrato dessa questão
são as greves e os movimentos sociais que foram às ruas denunciar e reivindicar
as conquistas sociais e condições emergenciais para o país.
Gohn (2013, p. 01) enfoca os principais fatores que promoveram “os
movimentos de Junho de 2013, que provisoriamente chamarei de Movimento dos
Indignados das Praças, Ruas e Avenidas".
Olhando-se para os noticiários da mídia nacional nos últimos meses pode-se listar os prováveis motivos para a indignação que levou milhares de brasileiros às ruas, aderindo ao movimento dos jovens, a saber: os gastos altíssimos com estádios da Copa, megaeventos e uso do dinheiro público em eventos promocionais, a má qualidade dos serviços públicos, especialmente nos transportes, educação e saúde. Outros agravantes são: a persistência dos índices de desigualdade social, inflação, denúncias de corrupção, clientelismo político, a PEC 37, sentimento de impunidade, sistema político arcaico, a criminalização de movimentos sociais - especialmente rurais e indígenas, o projeto de Lei que tramitava no Congresso sobre "cura gay", a condução de importantes postos políticos no cenário nacional por políticos com passado marcado por denúncias etc. Ou seja, a despeito das políticas governamentais de inclusão social, e a boa imagem internacional do país até recentemente, como um emergente de sucesso, o Brasil tudo azul, para o senso comum de seu povo em geral, era uma construção irreal (GOHN, 2013, p. 02).
O retrato da realidade fez com que a juventude urbana em 2014,
explorando as redes sociais como principal canal de mobilização social, fosse às
ruas com o objetivo de reivindicar diferentes direitos sociais e novas posturas da
classe política brasileira, questionando as estruturas viciadas da gestão
governamental nas diferentes esferas. Eles lutam por um novo tipo de política de
inclusão social com ética, contra a corrupção, liberdade de expressão, sem
distinção de classe, partido político, concepção religiosa, orientação sexual e/ou
formação cultural.
Em sintonia, mais uma vez com a realidade brasileira, numa espécie de
intercâmbio intercultural, em agosto de 2013, depois da divulgação do (IDHM),
uma parcela significativa da população melgacense também foi às ruas reivindicar
seus direitos sociais e denunciar a malversação do dinheiro público, o atraso nas
obras com recursos federais e estaduais, a falta de diálogo com a sociedade civil.
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O ponto mais alto dos protestos foi quando a liderança do movimento,
apoiada pelos manifestantes, anunciou que gostaria de uma audiência na Câmara
Municipal com a gestão municipal e todos os vereadores. A reunião durou 06
horas e com pauta de reivindicações organizada, 12 moradores e trabalhadores
de Melgaço fizeram o poder local ouvi-los.
A posição do município no ranking nacional como o último lugar no IDHM
e considerado pior lugar para se viver no Brasil, sem deixar de lembrar que esse
índice internacional não leva em conta os saberes locais, as especificidades
regionais e a diversidade sociocultural, gestou os protestos. Observo que depois
das manifestações, houve maior esforço do gestor municipal em buscar
estratégias políticas para sanar os déficits há anos traçados no município, marcas
da incompetência política e má administração pública na última década.
Antes desses protestos, com o intuito de melhorar o quadro da formação
docente, o gestor atual procurou o professor Agenor Sarraf Pacheco para que ele
ajudasse a administração municipal na retomada da política de qualificação
profissional. Em 2012, a partir de estudo da trajetória da política educacional de
Melgaço, apresentaram à UFPA uma proposta para a implantação em Melgaço de
um Núcleo do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica
(PARFOR).
Em 2013 a proposta foi aprovada e, em 30 de junho de 2014, iniciaram as
aulas para 04 (quatro) turmas de professores pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), sendo 02 (duas) turmas de Pedagogia, uma (01) turma de Ciências
Naturais e 01 (uma) turma de Matemática. Considerando que o cadastro na
Plataforma Freire é aberto para todo e qualquer professor brasileiro, o Núcleo de
Melgaço foi formado por professores locais (124), Portel (67), Bagre (08) e Anajás
(01). Para contemplar toda essa demanda, o professor Agenor Sarraf em diálogo
com a coordenadora do PARFOR da Universidade do Estado do Pará (UEPA),
ainda conseguiu a implantação de 01 (uma) turma de Pedagogia para iniciar em
janeiro de 2015, formada somente por professores de Melgaço.
Com a inclusão de 116 professores leigos nos cursos ofertados pelo
PARFOR da UFPA e UEPA, Melgaço passa a cumprir parte do que deixou de
fazer nos últimos anos em prol da qualificação profissional. Urge, contudo,
retomar a formação em serviço para que os educadores locais tenham a
59
oportunidade de atualizações contínuas, preparando-se para enfrentar os novos
desafios de se fazer educação no Marajó das Florestas. Na proposta apresentada
pela Prefeitura Municipal de Melgaço à Coordenação Geral do PARFOR da
UFPA, Sarraf-Pacheco contextualizou:
Sem desconsiderar os múltiplos aspectos que contribuem para a baixa qualidade da educação básica no município de Melgaço, não se pode esquecer que o foco central desta problemática centra-se na formação inicial do professor. A carência de disciplinas pedagógicas no campo da didática, planejamento de ensino, procedimentos pedagógicos, instrumentos de avaliação, práticas de leitura e escrita interdisciplinares, valorização da história e memória local, interferem diretamente na forma como estes professores ribeirinhos leigos conduzem o processo de ensino em sua escola (Proposta apresentada ao PARFOR/UFPA pela SEMED, 2013, p. 10).
Acompanhar aspectos da trajetória de lutas do povo brasileiro e
melgacense por melhores condições de vida, escolarização e formação docente,
faz perceber o quanto as populações locais sem a presença efetiva, responsável,
democrática e inclusiva do Estado na condução das políticas sociais, assim como
a falta de aplicação dos recursos públicos pelos gestores municipais, não poderão
alcançar o gozo de seus direitos humanos e sociais.
A formação de uma consciência política em Melgaço por parte de ex-
alunos, profissionais liberais, professores e moradores em geral é tributária das
sementes que as professoras migrantes começaram a plantar no início da década
de 1980, quando a cidade era constituída por menos de 1.000 habitantes. 30 anos
depois, Wilma, Rosiete, Dilma, Jurema e Fátima continuam envolvidas nas
questões educacionais, políticas, socioculturais e religiosas de Melgaço. Se hoje
elas não estão na direção do processo educacional local, as heranças deixadas
por sua forte atuação nessas três décadas expressam as marcas de seus
empenhos, dedicações e contribuições.
1.4. No Leme: as comandantes professoras
As experiências vividas e fortemente marcadas nas memórias das
professoras migrantes só foram possíveis porque ousaram deixar a “rocha-mãe” e
trilhar novos percursos pessoais e profissionais em terra estrangeira.
60
Para acompanhar esses percursos, orientada pelo desejo de produzir
leituras cruzadas (SOUZA, 2014), enfrentei os desafios do embarque. Nos rios
vivi angustias, senti alegrias, encontrei obstáculos, mas também experienciei o
diálogo, orientação, troca de experiências e aprendizagens com comandantes e
marinheiro(a)s que sustentam os desafios de desvendar as trajetórias docentes.
Nesta viagem, então,
tentarei colocar em foco, “navegando por dentro”, o perfil e, se possível, a fisionomia dos componentes, como também a dinâmica dos labores, os encontros e desencontros, quiçá conflitos, daqueles que, junto comigo, constroem, paulatinamente, este trabalho (TANUS, 2002, p. 97).
Imagem nº 08: As Professoras Migrantes.
Fonte: Arquivo da pesquisa – setembro de 2015.
Na condição de comandantes e colaboradoras nessa escrita, todas do
sexo feminino, fizeram o embarque cinco professoras migrantes. Para uma
melhor compreensão de quem segura o comando da embarcação, apresento
resumidamente cada uma delas.
Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil nasceu em 30 de agosto de 1952,
em um pequeno vilarejo chamado Marudá, pertencente ao município de
61
Marapanim. Com 16 anos tinha apenas a 4ª série, sua mãe, resolveu montar um
pequeno comércio e dar-lhe de presente, para que pudesse construir sua vida.
Ela trabalhou dois anos no seu comércio e durante esse período, apesar
das orientações da mãe para voltar a estudar, Wilma não se interessou em
retornar à escola. Ficou grávida e, depois do nascimento do filho, conheceu uma
senhora que morava em Belém e por passar férias em Marudá, hospedava-se em
uma das casas da mãe de Wilma. A senhora chamada Letícia a convidou para
morar com ela em Belém e na oportunidade continuar os estudos.
Como Wilma já não era sozinha, por isso resolveu migrar para Belém com
o objetivo de estudar e dar uma vida melhor para o filho. Sua mãe ficou com a
criança e ela foi com dona Letícia ser empregada doméstica e aproveitar a
oportunidade para estudar. Trabalhou, estudou e conseguiu concluir o antigo 1º
Grau, morando por muito tempo na casa daquela senhora. Em seguida, dona
Letícia mudou-se de Estado e Wilma passou a morar com Alberto, parente de
dona Letícia, exercendo a mesma profissão, empregada doméstica.
Depois de concluir o 1º Grau, a comandante fez o teste de seleção para
entrar na escola de 2° Grau e escolheu fazer o curso de Magistério. Aprovada,
começou a estudar no Instituto de Educação do Pará (IEP). No primeiro ano do
magistério, Wilma novamente trocou de moradia, só que dessa vez, apesar de
continuar como doméstica, ganhava seu salário e passou a ajudar sua família.
Quando estava terminando o 3º ano, essa comandante conheceu um
senhor chamado Jair, que era juiz no município de Melgaço. Como ele admirava o
esforço, dedicação e responsabilidade de Wilma, perguntou se ela gostaria de
exercer a docência em Melgaço. Explicou-lhe como era o lugar e quais eram as
condições que a gestão pública garantia aos professores.
Foi em 1982 que Wilma pela segunda vez resolveu migrar, só que desta
vez com um diferencial: já estava formada e ia exercer a profissão que escolheu
para trabalhar, contudo, não pensava ser em terra distante da sua. Foi em
Melgaço que a professora Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil construiu toda a
sua carreira na docência, assim como a parte mais significativa de sua história de
vida.
Ela formou-se em Magistério e licenciou-se em História pela UFPA –
Campus de Soure, e especializou-se em duas áreas: História do Brasil pela
62
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e Gestão Escolar
pela UNAMA. Já está aposentada pela esfera estadual e aguarda aposentadoria
pela esfera municipal.
A segunda comandante é Maria Dilma Corrêa, escolhida para conduzir
conosco essa viagem. Ela nasceu no dia 18 de fevereiro de 1955, no município de
Colares, filha de pais separados, foi criada com seus avós maternos, Marcelino e
Maria. Viveu em Colares até os 14 anos de idade. No município, concluiu a 4ª
série. Continuar a estudar era seu grande objetivo, mas para seguí-lo precisou
afastar-se de sua família e veio morar em Belém na casa de uma família bem-
sucedida e amiga de seus avós.
Na nova residência, Dilma encontrou todo o apoio para estudar, não
aprendeu somente o conhecimento escolar, mas também aprendeu muitos
afazeres da vida doméstica. Com esta família viveu 3 anos, depois, em virtude de
mudar de colégio, foi morar na casa de uma tia.
Na nova residência, Dilma viveu vários desafios, além de estudar tinha
que trabalhar na casa e as exigências de sua tia eram tantas, que lhe levou a
reprovação na disciplina de Educação Física, ministrada no contra turno.
Ao sentir-se prejudicada em seus estudos e com a permissão de seus
avós, resolveu morar com uma prima, fez o curso Científico e começou a
trabalhar no comércio em venda de confecção e depois em vários outros tipos de
trabalho. Apesar do cansaço, gostava da profissão.
Já estabilizada, a vida financeira da professora migrante começou a
melhorar e com seu salário também ajudava seus avós, mas resolveu continuar a
estudar e fez o curso de Magistério. Trabalhava durante o dia e estudava à noite.
Com isso, conseguiu concluir o curso normal. Em um encontro casual com uma
professora de Melgaço, foi informada que aquela profissional estava de retorno
para a capital por querer ficar perto da família. Por essa razão, a professora lhe
convidou para assumir a docência naquele município marajoara, apresentou-lhes
possíveis vantagens que um profissional da área de educação teria e falou das
tranquilidades do lugar.
Encantada com a possibilidade de se estabilizar profissionalmente, o
convite foi aceito. Em 1982, Dilma chega a Melgaço para viver pela primeira vez a
experiência docente. Depois, fez os Estudos Adicionais e Licenciou-se em
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Matemática pela UFPA – Campus de Soure. Está aposentada pelo Estado e em
atividade docente pelo município, mas já preparando o processo de
aposentadoria.
A terceira comandante é Rosiete Corrêa Siqueira. Ela nasceu no dia 14
de abril de 1958, na comunidade de Itajurá, no município de Colares, filha de
agricultores e desde seus 07 anos ajudava sua mãe a cuidar dos afazeres da
casa e de seus irmãos menores. Rosiete na sua infância convivia no circuito
escolar, pois a sala de sua casa era também espaço de uma sala de aula, assim
como sua casa servia de hospedaria para os professores da comunidade.
Rosiete considera sua infância muito boa e divertida, o tempo do brincar
era reservado. As cicatrizes em seu corpo testemunham sinais das brincadeiras
infantis. Seus pais eram pessoas muito preocupadas com a formação escolar dos
filhos, aspecto que explica o porquê de todos terem conseguido concluir o 2º
Grau.
Ela chegou a fazer até a 3ª série em sua comunidade e aos treze anos
conheceu seus padrinhos que eram fazendeiros da região, mas moravam em
Belém. Com a permissão dos pais, deixou sua terra e veio residir na capital.
Como já havia terminado o 1º semestre em Belém, não foi possível
alcançar vaga na escola pública, concluiu o ano estudando em uma escolinha
particular. A mudança de lugar e instituição escolar fez Rosiete perceber que tinha
muitas dificuldades para acompanhar o desenvolvimento da turma, mas, segundo
ela, com seu esforço, conseguiu supera-las. No ano seguinte, iniciou a 4ª série
em escola pública e assim foi até a conclusão de seu 2º Grau, formando-se em
Técnica de Laboratório. Concluído o curso técnico, saiu da casa de sua madrinha,
foi morar com amigas e trabalhar em uma loja, quando passou a ganhar seu
primeiro salário, pois, até então, só trabalhava como doméstica, mas não tinha
renumeração.
Nunca foi plano de Rosiete ser professora, seus interesses eram voltados
para a área da saúde, entretanto a vida lhe traçou outros destinos. Depois do
segundo convite de sua prima, Maria Dilma, que já era professora em Melgaço e,
naquele momento, exercia o cargo de diretora escolar, Rosiete foi se encantando
com as histórias do lugar e com a possibilidade de garantir um emprego fixo e de
melhor renumeração.
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Decidida a mudar de vida, entregou seu cargo de vendedora na
Marmobrás e, em 1983, sua história tomou novos rumos: migrou como sua prima
para Melgaço. Abandonou seu sonho de ser médica e foi viver a experiência de
ser professora em terra distante e desconhecida. Sem a formação em Magistério,
Rosiete enfrentou muitos desafios, mas sempre buscou superá-los, lendo e
trocando experiências com as colegas. Um desejo caminhava com ela: assim que
fosse possível iria especializar-se na nova profissão.
Rosiete fez o curso de Magistério, licenciou-se em História pela UFPA –
Campus de Soure, e especializou-se em Gestão Escolar pela Universidade da
Amazônia (UNAMA). Por uma década, ela exerceu a função de diretora na única
escola estadual do município. Em 2014, iniciou o processo de aposentadoria do
Estado e continua em atividade docente pelo município, porém já organizando os
procedimentos para a aposentadoria.
A embarcação precisou dar passagem para a comandante Jurema do
Socorro Pacheco Viegas, que nasceu no dia 17 de setembro de 1960 na Vila
São José, localizada no Rio Tajapuru, pertencente ao município de Breves.
Jurema em suas memórias recupera a pessoa de seu pai como o principal
educador e os ensinamentos adquiridos, fundamentados nos princípios da religião
católica.
Com 08 anos de idade, ela saiu pela primeira vez da casa de seus pais e
foi morar com seus avós maternos para iniciar o processo de escolarização. A
ausência do lar a fez perder a ludicidade de sua infância e começou a assumir
responsabilidades para cuidar dos afazeres de uma casa. Essa situação nunca foi
aceita por Jurema, apesar de sua tenra idade, questionava com os pais porque
tinha que passar por tal situação. Os pais explicavam que o motivo estava no fato
de não existir escola perto de sua casa.
No ano de 1970, os padrinhos de Jurema incentivaram seus pais para ela
morar com eles na cidade de Breves e continuar os estudos. Foi, então, que
Jurema conseguiu estudar até a 4ª série e retornou à sua casa. Por estar ficando
moça, os pais decidiram ser melhor que ficasse sob a responsabilidade deles e
também acreditavam que alcançar o ensino de 4ª série já era o suficiente para
uma filha de família pobre.
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Em 1977 quando tinha 17 anos, Jurema recebeu um convite de sua tia
Maria Pacheco para ser professora em sua comunidade, por ser ela, naquele
entorno, a única pessoa com maior nível de escolaridade. Essa comandante
começou ali sua primeira experiência na docência, apesar de o contrato ter sido
feito no nome de sua mãe, sem escolarização, já que ainda era menor de idade.
No exercício da profissão Jurema vislumbrou novamente a oportunidade
de continuar seus estudos, quando foi convocada pela Secretaria de Educação de
Breves a concluir o 1º Grau e, posteriormente, seguiu para a conclusão do 2º
Grau em Magistério.
Em 1982, Jurema recebeu um convite mais ousado, seu padrinho foi
eleito prefeito de Melgaço e lhe ofertou o cargo de chefa do setor de educação,
mais tarde transformado em Secretária Municipal de Educação. No final desse
ano, ela arrumou sua mala e com toda a sua família migrou a Melgaço para
começar a construir e viver outras histórias na educação.
Jurema formou-se em Magistério, licenciou-se em Letras pela UFPA –
Campus de Soure – e fez três especializações: Métodos e Técnicas de Ensino
pela Universidade Salgado de Oliveira - (UNIVERSO-RJ), Língua Portuguesa,
pela PUC-MG e Educação do Campo pela UFPA. Entre 2013 a 2015 realizou o
mestrado em Artes pela UFPA.
Para completar esse preliminar exercício cartográfico de apresentações
das professoras migrantes, trago para a viagem Maria de Fátima Rodrigues
Alves, comandante que nasceu no dia 13 de maio de 1964, num município
chamado Santana do Acaraú, no Estado do Ceará. Seu nome foi escolhido por
sua mãe em homenagem à Nossa Senhora de Fátima.
Quando migrou para o Pará junto com a família, tinha apenas 08 anos de
idade e, até então, não havia frequentado escola. Segundo Fátima, o motivo da
mudança foi a seca e porque boa parte das famílias de seus pais já tinha migrado
para o Pará. Considera que sua infância em Santana foi divertida, tem viva as
lembranças das brincadeiras que participava na fazenda de seu avô materno.
Ao chegar ao Pará, Fátima saiu de perto de seus pais e foi morar com um
tio no município de Igarapé Açu, na localidade km 32, e com 08 anos de idade
começou a frequentar a escola pela primeira vez: era uma escola rural e ali
cursou até a 3ª série. Depois passou um ano sem estudar, por não ter o ensino de
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4ª série na localidade, por isso uma professora que morava na cidade de Igarapé
Açu, a pediu a seus pais para que Fátima fosse com ela continuar seus estudos.
A comandante foi e cursou até a 6ª série, morando na casa da professora.
A vida dessa professora migrante, a partir da saída de perto de seus pais,
não foi fácil. Na casa da professora em que residia, além do compromisso com os
estudos assumiu as responsabilidades de cuidar dos filhos dela. As brincadeiras
passaram a ser sonhos. O tempo de brincar era passado.
Por várias situações desagradáveis e constrangedoras, Fátima decidiu
abandonar os estudos e retornar à casa de seus pais. Um belo dia, novamente
surgiu a oportunidade de voltar a estudar, só que desta vez, Fátima veio para
Belém morar com uma senhora, a promessa era ser tratada como filha, mas a
história foi bem diferente.
Depois de muitas histórias vividas, ela com a ajuda e apoio incondicional
de sua mãe, conseguiu concluir o curso de Magistério. Seu maior desejo era
ingressar na docência e seguir carreira na capital do Estado, porém, sua trajetória
seguiu outras rotas.
Na reta final do curso, com 21 anos de idade, a comandante engravidou.
Desempregada, sem a companhia do namorado para assumir as
responsabilidades da criança e, por outro lado, não enxergava perspectiva para
retornar ao seu interior, já que seus pais tinham 18 filhos e a situação não seria
confortável.
Foi no ano de 1986 que veio para Melgaço a convite de uma amiga
enfermeira para ser babá de sua filha. No encontro com a cidade recebeu a
proposta para exercer a docente. O desafio foi aceito e, até hoje, segue na
profissão. Licenciou-se em Ciências Naturais pela UEPA – Campus de Soure; fez
duas especializações, uma em Métodos e Técnicas de Ensino pela UNIVERSO-
RJ e outra em Ciências pela UFPA – Campus de Breves. A professora é
funcionária pública concursada tanto pela esfera estadual quanto municipal.
1.5. Olhares à Vista: as professoras narram a cidade
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E, de vez em quando, olhando para trás...
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E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo... Alberto Caeiro
[...] quando chegou à baía que eu olhei Melgaço, aquele lugar pequenininho lá distante, aí eu comecei a chorar, desabei em choro, chorei, chorei, mas depois na mesma hora eu disse: “não, eu já escolhi, estou aqui, vamos ver o que vai acontecer (Professora Dilma – 2014).
As comandantes da pesquisa chegaram, sentiram e a mais de trinta anos
estão entrelaçadas com Melgaço. Que imagens reconstroem da cidade do
passado? Como olham a cidade de hoje? São as interpretações dos olhares
cartográficos das professoras migrantes acerca de Melgaço que vou escrever a
partir deste tópico.
Encontrar e viver o lugar não pode ser um simples “passar de tempo”, um
olhar na penumbra, tudo tem seu encanto e desencanto, até porque o olhar é um
arrebol, uma prática historicamente construída, ele diz respeito ao modo como se
interpreta a relação do passado no presente.
Conversar com as comandantes a respeito de Melgaço foi viver
momentos de muitas emoções trazidas nos olhares para os lados, para traz e
também para a frente. Esses olhares vieram cheios de lembranças dos tempos de
outrora, do tempo real e do tempo esperado. Permitiram reflexões saudosas,
revoltosas e esperançosas, as quais acompanho pelos seus olhares
memorialísticos representações da cidade a partir dos anos 1980. Wilma
descreveu como era Melgaço em 1982, assim que pisou pela primeira vez nessa
terra:
Quando eu cheguei em Melgaço, eu gostei da cidadezinha, era pequena, apenas com uma faixa de três ruas nesse período. Ao chegar fui diretamente para casa dos professores, tinham outras professoras que vieram comigo, no caso a Dilma, a Graça Alves e a Isabel, nós chegamos juntas (Professora Wilma – 2014).
As primeiras lembranças de Wilma referem-se ao espaço físico da
“cidadezinha”, talvez por ter vivido toda a sua juventude na capital do Estado e ao
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se encontrar com uma cidade ribeirinha marajoara tenha feito comparações, mas
também lhe causou encantamento pela simplicidade e aconchego do lugar.
Depois acrescentou outras recordações significativas, como o cotidiano, a
alimentação e a hospitalidade.
A alimentação era muito boa naquele período, era muito peixe bom, não era difícil de se adquirir, o que era difícil era a verdura que já estávamos acostumadas, mas tinha o açaí, o peixe, a carne sempre teve por aqui e era mais farto em relação a peixe. Agora a alimentação está totalmente diversificada, mas naquele período era um pouco difícil você conseguir uma fruta, a não ser que fosse em Breves, às vezes, íamos a Breves para comprar frutas, mas comíamos frutas nativas daqui mesmo como a banana, plantada por aqui, algumas outras frutas conseguíamos do interior, nós comprávamos no trapiche, vinha muita laranja, uxi, mari, tangerina eram essas frutas que tínhamos acesso. O finado Marcílio vendia muito esses tipos de frutas como laranja, ingá comprido, tinha tanta pupunha aqui em Melgaço e hoje não vejo. Ilca, às vezes, chegávamos nas casas das pessoas e erámos bem recebidas, chamavam nós para jantar, mandavam convite, principalmente, na casa do seu Osvaldo Viegas, ele nos adorava, ele mandava fazer açaí, mandava chamar a Graça e nós, os filhos dele eram todos pequenos, ele tinha o prazer de oferecer jantar para nós, quando ele mandava assar um peixe bacana ele mandava chamar as professoras para comer. Ele era vice-prefeito, nesse período, do seu Hermógenes, ele gostava muito de nós, era muita consideração (Professora Wilma – 2014).
Na interpretação da comandante é revelada a situação econômica e os
costumes culturais dos melgacenses em meados dos anos de 1980. Peixes,
caças e frutas vinham do espaço rural para serem comercializados no trapiche da
cidade. Muitos moradores da cidade, por serem oriundos do espaço rural,
também criavam animais e faziam hortas nos quintais de suas casas e sítios na
estrada Melgaço-Jangui para venda e consumo familiar. Para apreciar outros
tipos de alimentos não regionais como: frutas e verduras, era preciso deslocar-se
para Breves, cidade vizinha, ponto e porto de passagem e encosto de navios que
transportavam mercadoria de Belém para as cidades da região.
Em meio as facilidades ou dificuldades na dieta alimentar, as professoras
migrantes experimentaram, nos primeiros anos de vida em Melgaço, práticas de
carinho, respeito e sociabilidade por parte de alguns moradores, especialmente
de poder aquisitivo maior, como vice-prefeito ou dono de fábrica de palmito que
as convidavam para almoços, jantares e festas comemorativas. Prática
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interessante vivida pelas comandantes na cidade, que relembra modos de
entreajuda no meio rural, era o fato de receberam em suas residências frutas,
alimentos e refeições dos mais distintos moradores.
Dilma, que também chegou no mesmo ano de Wilma em Melgaço, retrata,
em sua narrativa, concepção dos costumes de compartilhar da comunidade com o
grupo de professoras.
[...] a comunidade trazia esse carinho para nós, então, nós tínhamos que saber retribuir esse carinho a ela, porque era uma coisa muito legal isso, qualquer pessoa, de repente chegava alguém em casa: “olha para a senhora ir lá em casa”, vamos lá, chegávamos lá era para comer alguma coisa, comer uma caça, “olha está aqui uma tapioca”, era impressionante, era um amor fora de sério (Professora Dilma – 2014).
Para quem morava numa capital e não estava acostumada com esse tipo
de relação entre os vizinhos, as atitudes dos moradores de Melgaço impactaram
inicialmente as comandantes. O tratamento da comunidade foi enlaçando e
motivando-as a permanecerem e sentirem-se importantes naquele lugar. Os
gestos de afeto fizeram as professoras migrantes refletirem que precisavam
retribuir aquele tratamento recebido no exercício pedagógico cotidiano com os
diferentes alunos da cidade.
Baia (2015, p. 82) analisa essa dinâmica do lugar da seguinte
perspectiva:
As práticas produtivas, sociais e culturais estavam firmadas em territórios rurais que se diluíam em todas as dimensões da vida dos moradores. Melgaço é uma cidade que emerge das entranhas das ruralidades e o urbano, nas primeiras décadas, daquela cidade era praticamente inexistente.
Para o pesquisador, Melgaço é uma cidade marajoara que se constituiu
por outros conceitos e significados de urbano. A peculiar relação campo e cidade
se manifesta em práticas culturais, sociais e econômicas ainda hoje conformadas
na geografia da cidade e arquitetura das casas, nos modos de trabalho, lazer e
relacionar-se.
Rosiete que chegou um ano depois de Wilma e Dilma, olhando uma
imagem da cidade, cartograficamente a reapresentou ao professor Sarraf-
Pacheco, na entrevista de 2002.
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A rua, as árvores na frente da residência do prefeito, na frente do espaço onde existia o posto, a cidade era mais atrasada, mas olhando o espaço ele era mais gostoso. As ruas não eram asfaltadas, eram de capim. No tempo de chuva havia muita lama, mas esse espaço era importante. Olha, aqui está presente a residência dos professores, a rua Senador Lemos, a residência do prefeito, bem junto a casa dos professores, está o posto telefônico, ele era muito olhado, chamava a atenção. A rua Senador Lemos ainda hoje, é uma rua muito especial e importante para a cidade de Melgaço. Havia em frente a essa residência uma espécie de muro de arrimo que estava já quebrado. Existia muito uma espécie de vegetal que as pessoas depois me disseram que se chamava aturiá, aturiazal, alguma coisa assim, muito cheio de espinho, quando ficava alto, nós não víamos o rio, víamos malmente os barcos passarem, porque as árvores, o mato estava alto, mas nós gostávamos de sentar nessa parte desse muro quebrado, nós, à noite, ficávamos horas conversando nesse espaço. A tarde nós chegávamos da escola, às 18h00, já que nós não trabalhávamos à noite, nós sentávamos ali, algumas sentavam nesse espaço, outras colocavam a cadeira em frente da residência e ficávamos conversando, trocando ideias, isso era muito gostoso, interessante para nós, um carinho especial (Professora Rosiete – 2002).
Ao mostrar a foto da residência dos professores que ficava localizada na
frente da cidade, na Avenida Senador Lemos, a comandante relembrou com
saudosismo os tempos que ali viveu.
Imagem nº 09: Residência dos Professores em 1983.
Fonte: Arquivo pessoal do Srº Ademir Borges.
A memória de Rosiete dinamizou a fotografia da cidade através de suas
interpretações. Costa (2014, p. 49) em leitura de Ricoeur (1993, p. 63) aponta que
“narrar é contar o vivido, é colocá-lo em uma temporalidade e, assim, humanizar o
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tempo, alinhar os personagens, tecer uma intriga; é, ainda, transgredir o discurso
oficial em busca da criação”.
Imagem nº 10: Orla de Melgaço com o atual cais de arrimo, construído na gestão de 2005-2008.
Fonte: Arquivo da pesquisa – setembro de 2015.
Uma cidade murada por vegetais, ruas asfaltadas com capim nativo,
lamas em tempo de chuva, cais de arrimo quebrado, posto telefônico vigiado
pelos curiosos para ela não significou drama nem insegurança, aprendeu a viver
com a peculiaridade do lugar. Ao comparar o tempo vivido com o tempo presente,
considerou que o espaço da cidade do passado era mais apreciativo para viver
em sociabilidade com suas companheiras comandantes e com a comunidade.
Jurema que chegou no mesmo ano de Rosiete recompôs outras
lembranças da cidade do passado, no contexto da gestão de 1983-1988.
Eu vejo que foi um bom mandato, apesar de que naquela época as coisas eram muito atrasadas no município, nem se pensava em computador e a energia elétrica era reduzida e fraca, água encanada era uma precariedade. Eu lembro que a água quando nós chegamos aqui era enferrujada (Professora Jurema – 2014).
Jurema retratou a ausência de infraestrutura e de outros elementos que
caracterizam uma cidade desenvolvida na concepção moderna ocidental. A
despeito dessas características, considerou que o avanço na área da educação
foi satisfatório para aquele tempo. Já Fátima, que chegou três anos depois,
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enfatizou o índice de crescimento populacional e espacial do tempo atual para o
tempo de outrora.
Antes quando eu cheguei aqui, Melgaço era muito pequena e conseguíamos visualizar bem, inclusive essa parte que moramos era como se fosse já o fim da cidade. Hoje já mudou bastante, está muito grande, quando passamos em lugares, nas ruas já não conhecemos as pessoas, que vieram de Breves, de Portel e de outros locais. Eu não tenho essa visão que eu tinha antes de passar e conhecer a maioria das pessoas, hoje não vemos isso, porque cresceu bastante em todos os sentidos, na estrutura e vai crescer mais, hoje estamos no centro da cidade, porque aqui para traz já tem bastante rua. Quando eu comecei a trabalhar aqui só tinha o bairro que chamavam bairro do Centro, agora tem o Tucumã, o Castanheira, apesar de não ser oficializado em documento ainda, mas as pessoas já estão falando. O centro é aqui, o Castanheira e o Tucumã ficam lá para traz, tem muitas casas é muito grande mesmo para lá, fora aquela área do Moconha que não existia. Quando eu cheguei, a gente chegava em Melgaço pela casinha flutuante, aquela maromba, então descia do barco lá e vinha em outro barquinho para cá, era totalmente diferente do que é hoje, mas isso é o curso natural das coisas, tinha que mudar alguma coisa, se não mudasse seria estranho (Professora Fátima – 2014).
A narrativa de Fátima Rodrigues focalizou processos de mudanças
vividos pela cidade em três aspectos: o aumento populacional; a expansão
urbana com a abertura de novas ruas e o nascimento de novos bairros; e o
embarque e desembarque de passageiros e mercadorias que acontecia no meio
da baia Guarycuru e, atualmente, faz-se no porto do Moconha.
As memórias das comandantes, em diálogo com a imagem, retratam
tempos distintos que parecem desconhecer seus laços. Entre as décadas de 1970
a 1990, o mundo das águas era mais intenso na história e na vida da cidade. Em
1986, a cidade apresentava-se como um espaço mais familiar, pois as pessoas se
conheciam e se cumprimentavam, porque o número de habitantes era reduzido e
o território urbano de menor porte. Existia somente um bairro e a casa de Fátima
ficava no fim da cidade.
O porto de embarque e desembarque localizava-se no meio da baía em
uma “casinha flutuante” em virtude da cidade ter sido erigida em uma enseada
rasa e não haver um porto com canal suficiente para navios de linha, de grande
calado, fazerem o encosto.
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Imagem nº 11: Casa Flutuante, localizada na década de 1980.
Fonte: Arquivo pessoal de Civaldo Ribeiro Moreira. Imagem nº 12: Porto do Moconha.
Fonte: Arquivo da pesquisa – setembro de 2015.
O aumento demográfico urbano nos últimos anos justifica-se pelo
processo migratório de diferentes direções e interesses. De acordo com Baia
(2015, p. 94)
A conclusão do ensino fundamental de jovens e adultos nas comunidades ribeirinhas desloca, anualmente, famílias inteiras ou parte delas em direção à cidade em busca de continuidade escolar. Além disso, a abertura de concursos públicos nas esferas
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municipal e estadual trouxe parcela significativa de moradores de outras cidades vizinhas, a fixarem moradia em território melgacense. Esses fenômenos demográficos estão sendo decisivos na ampliação do quantitativo populacional e no crescimento da malha espacial urbana.
A mobilidade da população de um espaço para o outro, conforme se ver
na experiência das comandantes no segundo percurso, pode ser compreendida
como um duplo processo: a) convite ao desenraizamento dos modos de viver,
trabalhar e se socializar no antigo espaço; e b) convite ao enraizamento com
dinâmicas, linguagens, costumes e tradições no novo território de habitação.
Obviamente, os lugares são produzidos na interculturalidade dos contatos,
conflitos e acomodações ao longo do tempo, que se expressa nas práticas que os
migrantes reproduzem nos modos de vida urbano e nas novas incorporações
apreendidas com o cotidiano da cidade (BHABHA, 2003; HALL, 2003a).
Se na primeira narrativa, Wilma relembrou como era a cidade quando lá
chegou, agora trago o que pensa não mais como migrante, mas como moradoras
da cidade. A entrevista se fez entre emotividade com voz meio pesada e
empoderamento, ampliando com o uso de várias metáforas para falar de
Melgaço.
(Inicia com a voz pesada-emotiva) Hoje, Melgaço é para mim como se fosse uma poesia que está sendo estruturada, a cada verso sendo criado um novo aspecto. A cada dia eu ouço: “ah! Fulano passou no vestibular; ah! Fulano está fazendo pós-graduação, ah! Fulano está fazendo mestrado, doutorado”. Melgaço para mim é um sonho que vai se realizando aos poucos e eu me sinto muito feliz de viver em Melgaço. Eu vou ver Melgaço tão bonito como eu sempre sonhei, limpinha, cuidada, uma educação para dizer estará lá no alto no IDEB, a saúde estará ótima. Melgaço é uma grande poesia em construção a cada verso, na tristeza, na doença, na falta de amor, às vezes, pelos próprios políticos, mas vem outras pessoas por traz e costura com coisas bonitas, pessoas que vem de fora e daqui mesmo e vai suprindo a tristeza com esperança. Eu sou muito esperançosa e antes de morrer vou ver Melgaço que idealizei, não são grandes coisas, são pequenas, mas que fazem a mudança, por exemplo, um buraco na rua que alguém cuidou, a lixeira que alguém colocou, ruas limpas, povo educado que cuida [...]. Então, Melgaço para mim é uma criança que está sendo ensinada. Agora está faltando pessoas com capacidade para estruturar, conduzir e ensinar essa criança a dar passos seguros, não olhar para essa verba e ficar de olhos arregalados para querer o dinheiro que não é dele, mas empregar no que tem que empregar e fazer coisas boas. Hoje eu fiquei tão feliz! Eu fui lá no centro de evangelização,
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um prédio bonito, bem feito, não é tudo feio. Melgaço é um despertar, de repente você passa por uma rua depois volta e já não é a mesma. Está faltando pouca coisa, um governante que ame Melgaço, que não venha dizer: “eu sou filho de Melgaço” para ser prefeito, mas que ame Melgaço, como o bispo falou: “quem ama cuida”, porque até agora, estou há 32 anos aqui e nenhum prefeito amou Melgaço [...], é carinho que está faltando nas pessoas que administram Melgaço para que essa poesia alguém consiga ler e dizer: “olha Melgaço é bonita, é estruturada na educação”. O pessoal está estudando, mas tem que ter alguma coisa para esse povo, por enquanto, está muito na mesmice, está muito devagar. Estão esperando o que para melhorar? Eu sei que outros passaram e é difícil construir coisas que ficaram no fundo do poço. Mas, é teimoso esse município, ele levanta das cinzas Ilca, vi essa prefeitura pegando fogo, vi as cinzas de Melgaço e hoje fico feliz, vou aqui para traz e vejo casas bonitas, Melgaço é uma cidade onde eu me sinto bem, eu quero o melhor para ela e si quero o melhor para Melgaço é para todo mundo não é só para mim. Eu não desejo ganhar aquilo que não tenho direito, quero o que é meu e nenhum centavo a menos. Eu vejo esse povo guerreiro, eu admiro, quando querem fazer as greves fazem, quando querem queimar queimam, quando querem dizer desaforo dizem, é um povo que não tem medo, é destemido, então, está faltando só respeito e alguém amar Melgaço de verdade. Eu espero que o próximo prefeito, eu vou ver quem é e se a pessoa que estou apostando não vier, eu não voto em ninguém, meu voto é nulo, não vou estragar meu voto mais, porque, se acontecer o contrário, o que eu estou imaginando, não vai acontecer (silencia e abaixa o tom de voz) (Professora Wilma – 2014).
Três tipos de sentimentos são visualizados na narrativa de Wilma: a)
felicidade por ver o crescimento do povo na questão da consciência política, do
conhecimento acadêmico, do desenvolvimento urbano e expansão física da
cidade; b) indignação por perceber que muitas questões estruturais da cidade
precisam ser mudadas, mas pela falta de ética e compromisso político de
gestores, que já estiveram à frente do poder municipal, deixaram de aplicar com
justiça e dignidade as verbas públicas, soma-se a isso a pouca conscientização
ambiental da população em dedicar maior cuidado com a cidade; e c) esperança
por acreditar na possibilidade de construir uma Melgaço diferente daquela
divulgada nas mídias, como por exemplo, de pior lugar para se viver, uma cidade
onde todos sintam-se corresponsáveis pelo seu crescimento e tenha na gestão
pública pessoas de bons princípios e amor no ato de governar. A esse respeito,
acrescentou: “quando se administra com amor há respeito e sensibilidade com os
bens e os recursos públicos”. Por fim, referendou que seu protesto nas próximas
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eleições municipais, se por acaso não acreditar no plano de trabalho de nenhum
candidato, anulará o voto para não contribuir com o fracasso de Melgaço.
Enquanto Wilma trouxe um posicionamento bastante político e crítico,
Dilma ao falar de Melgaço recordou seu saudoso esposo, denominou-o como um
melgacense apaixonado por sua terra que nunca expressou o desejo de sair de
lá. Assim ampliou seu olhar sobre a cidade
Ah menina! Melgaço! Sei lá, Melgaço é sei lá. Meu marido dizia que Melgaço é um dos lugares onde todo mundo pode viver e lá você tem a possibilidade de não se preocupar tanto com as coisas, porque o pouco que se ganha é o suficiente para viver, hoje, claro, já mudou muito, já não é como era antes, mas não podemos pensar num Melgaço que nunca iria ter esse desenvolvimento. Hoje, nós temos tanta coisa de mudança para melhor, mas aquele Melgaço de antigamente, acolhedor, que tudo era carinho, tudo era paz, sabemos que não podemos mais contar com isso, justamente, pela grande quantidade de pessoas que a cada dia chega, pessoas que nem conhecemos e já transformaram de uma forma até violenta, mas Melgaço é um pedacinho do Pará que Deus colocou para que pudéssemos viver e viver bem. Eu defino Melgaço como uma terra querida muito boa para viver, conviver. Aquelas pessoas antigas, hoje já são poucas que conhecemos, mas elas com certeza jamais trocam Melgaço por outro lugar (Professora Dilma – 2014).
Dilma refez o passado com os olhos do presente, expressando o modo
peculiar de como era e de como está Melgaço. Junto com as mudanças e do
desenvolvimento vieram os problemas sociais, como: o aumento de furtos,
violências, prostituição, insegurança pública, venda e consumo de drogas e
desemprego. Portanto, a cidade do passado que representava “tranquilidade” aos
seus moradores, abriu-se para outros tempos e perspectivas e com ela os
moradores foram dinamizando o espaço e a vida para garantir o lazer, a saúde, o
trabalho, a educação e a assistência. Porém, aos olhos da professora migrante
ainda é um espaço bom de viver e se relacionar com o lugar e sua gente.
Para Rosiete falar de Melgaço foi expressar sua gratidão ao lugar por
todas conquistas de sua vida. Nosso diálogo foi extremamente emocionante, riu e
por várias vezes chorou ao recordar sua vida antes e depois da chegada na
cidade. Foi um relato cheio de subjetividade.
(Risos) Olha, eu vejo em Melgaço uma terra de oportunidade, boas oportunidades para pessoas que, realmente, pretendem agarrar as oportunidades que estão aí (chora). Eu até me
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emociono, porque, às vezes, questiono: “será que eu teria conquistado tudo isso, se eu não viesse? ” Talvez sim, mas acredito que com muitas lutas. Quem sabe eu não teria voltado para Itajurá, minha terrazinha, mas não pretendia porque não era isso que eu queria, eu percebia que eu não daria para o trabalho pesado, para a vida de dona de casa, até porque via isso na minha mãe e não queria para mim. Agora, eu penso que retribuir com a comunidade a oportunidade, eu acho que fiz isso (choro) [...]. Melgaço é uma terra muito boa, infelizmente, os nossos governantes, ainda, pessoas talvez “despreparadas intelectualmente” para saber a importância que tem a educação, não dão a devida importância que ela merece. Também aquelas pessoas que tiveram chance para cursar a universidade de se preparar melhor não aproveitaram, muitos depois perceberam que o caminho é a educação, que o caminho é você estudar, é você prosperar, além disso, nunca esquecer da sua comunidade, isso é muito importante e Melgaço é o lugar que eu conquistei tudo isso, por isso penso que ela é uma terra boa para si viver, apesar de ser um município tão distante de Belém, dos centros urbanos, mas para mim tudo foi fluindo, foi se facilitando, foi abrindo caminhos, eu me considero uma pessoa muito importante nesta comunidade, conhecida pelas pessoas, isso para mim é muito bom, essa experiência toda que eu adquiri aqui (Professora Rosiete – 2014).
Com base em sua história de vida e pela relação com Melgaço, a
professora migrante avaliou-a como uma terra de boas oportunidades para as
pessoas crescerem na vida pessoal e profissional. Não deixou, todavia, de
observar que a cidade necessita de atenção e de responsabilidade por parte dos
governantes para melhor valorizar, principalmente, a educação. Enfatiza que a
ausência de competência intelectual de muitos daqueles que chegam ao poder
para governar o município implica na falta de capacidade e ética para gestar. Com
a narrativa, observei que este é o principal problema que se vive hoje no
município.
Outro aspecto abordado, a partir de seu olhar, foi a questão do não
investimento, por parte de muitos jovens, na formação em nível superior e na
preparação para o mundo do trabalho. Segundo Rosiete, essa preocupação surge
com as exigências da vida adulta.
Apesar de considerar relevante o posicionamento da comandante, esse
olhar por ela adotado não deve se restringir somente ao jovem, mas levar em
consideração a existência de um conjunto de fatores que influenciam para a não
permanência ou continuidade na formação. Dentre esses fatores, enfatizo: maior
investimento ou ampliação de políticas públicas que oportunizem o jovem
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estudante a prosseguir a formação; responsabilidade da escola em desenvolver
estratégias para garantir o interesse e a inserção do aluno e o apoio familiar pelo
incentivo e parceria nessa importante fase do estudante.
Jurema também elucidou seu olhar acerca da cidade a partir do
envolvimento profissional e pessoal no campo educacional e político do município.
Melgaço, dá para cantar uma música (risos), “uma cidadezinha, muito bonitinha de minha estimação, só ponho o dedo no violão, para cantar Melgaço do meu coração”. Melgaço é uma cidade encantada, uma cidade que me encanta e me chama, por que Melgaço tem muitos problemas ainda, então, para mim é um convite para novos desafios, porque muitas coisas ainda precisam mudar e eu estava tentando, porque alguém diz assim: “há! Porque Melgaço precisa mudar”, o pessoal da política que é contra o governo, eles falam. Está precisando mudar em muita coisa, os pais precisam mudar as suas atitudes. Melgaço precisa mudar as atitudes dos pais que não vão à escola acompanhar o desenvolvimento do seu filho. Melgaço tem juventude e pessoas já adultas desequilibradas emocionalmente, o seu emocional é desequilibrado, não consegue olhar para outro, conversar, dialogar com a própria autoridade política, mas vai na agressão, então isso para mim precisa mudar. Eu começo a ver o que posso fazer para mudar isso? Melgaço para mim é um espaço de desafios para novas mudanças sociais, políticas, econômicas, culturais, porque a gente pode pensar que os gestores precisam valorizar mais, mas muita coisa que eles não valorizam é porque muitas vezes desconhecem o valor da cultura, da arte, dos saberes populares. Agora como fazer com que esses políticos tomem conhecimento? Eu penso em fazer palestras em levar pessoas para falar a eles, para formar a mentalidade desses políticos. Sabemos como fazer, como professora nós sabemos, só que nós não estamos lá no lugar deles. Então, eu fico pensando e por isso eu digo, Melgaço é um espaço de grandes desafios para novas mudanças, sociais, políticas, econômicas, culturais, enfim, .... (Professora Jurema – 2014).
As memórias compostas pelas comandantes acerca da cidade não
apenas recuperam o passado vivido, mas também projetam novos desejos e
necessidades de mudanças. Maluf (1995) orienta que as memórias e seus
registros precisam ser visualizados e compreendidos como “fachos de luz” para
apreender com profundidade as intenções e os enredos daquele que fala. “Nada é
esquecido ou lembrado no trabalho de recriação do passado que não diga
respeito a uma necessidade presente daquele que registra” (MALUF, 1995, p. 31).
Por esse viés, a narrativa de Jurema expressa posicionamento político,
identidade profissional e compromisso com Melgaço. Além de se ver como agente
79
social que contribuiu e ainda pode contribuir com a transformação da cidade,
também trouxe para si a responsabilidade pela formação dos políticos que
administram o município. Em sua interpretação, eles desconhecem saberes e
valores socioculturais, por isso não investem em ações de desenvolvimento local.
A posição da professora migrante não é totalmente defensiva, mas vejo
como um pensamento que não refletiu criticamente o papel social e político de
uma gestão governamental, assim como deixou de olhar os reflexos que estão
por traz de certas atitudes da população. É preciso considerar, no entanto, que a
produção da narrativa expressa o lugar social de onde a enunciamos. Portanto,
cada um defende aquilo que compõe seu horizonte de expectativas e interesses.
Para finalizar o olhar cartográfico das professoras migrantes sobre a
cidade, Fátima salientou
Melgaço é o lugar que me acolheu e aqui eu cresci profissionalmente e pessoalmente, pois aqui constituir família, foi o lugar que morei a mais tempo, já estou há 28 anos e aqui trabalho, enfim a maior parte de minha história de vida está nesse município, como disse nosso saudoso Francisco Mamede no hino de Melgaço, nessa terra querida onde criei meus filhos e hoje é como se eu fosse melgacense (Professora Fátima – 2014).
Para Fátima falar de Melgaço é contar sua própria história de vida, ambas
se encontram e conectam, segundo a comandante, o principal elo de ligação,
chama-se Cristiane21. Portanto, além de ser uma cidade acolhedora que ajudou a
criar seus filhos, permitiu seu crescimento pessoal e profissional estruturou
financeiramente a sua vida, também criou suas raízes e suas eternas lembranças.
Os olhares das comandantes retrataram um pouco as muitas histórias de
Melgaço, assim como o envolvimento pessoal, profissional e político de cada
uma. Isso revelou que elas não foram nem são simples coadjuvantes da história
local e, especialmente, da história da educação daquele município, mas viveram e
fizeram ali uma história marcante e decisiva, demonstrando profundo respeito e
gratidão pela acolhida e aceitação.
Para conhecer suas intensas vivências em Melgaço, embarco no percurso
da migração, trazendo suas chegadas, seus (des)encontros e confrontos com o
lugar e com a sociedade.
21 A História de Cristiane, filha de Fátima, será enfatizada no 2º percurso.
80
SEGUNDO PERCURSO:
LONGE DA “ROCHA-MÃE”:
Migração & Educação
[...] eles são os grãozinhos de areia arrancado à rocha-mãe pela ação de um vento que assopra numa longa tempestade e que, transplantados para longe, acabaram constituindo, assim que encontraram o primeiro acidente de terreno, essa imensa “duna” em que hoje se transformaram os imigrantes (SAYAD, 1998, p. 72).
81
2.1. Primeiras Palavras
A expressão metafórica de Sayad me leva a refletir acerca da constituição
do território brasileiro. Os lugares que formam essa nação são espaços de
molduras abertas compostas por rostos oriundos de vários povos e culturas, o
que faz ver um retrato rico de diversidades social, cultural, étnica, política,
religiosa, entre outras que vão surgindo no movimento de entradas e saídas de
gentes e histórias. Em outras palavras, cada lugar desse imenso país tornou-se
um “acidente de terreno” para que “os grãozinhos de areias” pudessem
transformar-se em “duna” de imigrantes.
Segundo Demartini (2010), as últimas décadas do século XIX podem ser
consideradas o período de maior fluxo imigratório para o Brasil em virtude das
lutas pela abolição e emergência da economia do café no Estado de São Paulo.
Uma forte propaganda foi veiculada em países europeus para recrutar
trabalhadores livres que, sonhando em fazer a vida na América, poderiam depois
retornar para suas terras de origem. A história mostrou que os caminhos trilhados
por esses imigrantes foram variados. Uns voltaram mais pobres do que vieram,
alguns morreram, outros melhoraram suas condições e não quiseram mais voltar
e ainda teve aqueles que conseguiram transitar entre lá e cá, disseminando essa
prática entre seus descendentes.
Os imigrantes eram selecionados para entrar no país na condição de
mão-de-obra assalariada, trabalhando em regime forçado, principalmente nas
atividades agrícolas. A respeito do maior fluxo da imigração,
É difícil tratar em um único texto das várias situações envolvidas, mas algumas anotações são possíveis a partir de uma perspectiva histórico-sociológica que trata do período dos grandes fluxos imigratórios do final do século XIX, até o período pós Segunda Guerra Mundial (DEMARTINI, 2010, p. 51).
No diálogo com alguns especialistas na temática aprendo que variados
foram os períodos, diversos foram os sujeitos e razões a fomentar a dinâmica
migratória em solo brasileiro. Mota (2004) em estudo etnográfico realizado com 12
famílias brasileiras, residente nos Estados Unidos, investigou as “competências”
das duas línguas e o esforço dos pais para garantir a permanência do domínio da
Língua Portuguesa no seio familiar. O estudo mostra que na década de 1980 o
82
Brasil apresentou um grande fluxo da migração internacional em especial para os
Estados Unidos, reflexo da instabilidade econômica no Brasil.
Segundo a pesquisadora, os brasileiros revelavam “estar”
temporariamente no estrangeiro para firmarem-se financeiramente, “ganhar
dinheiro” e retornar ao Brasil para construir fixamente a vida, todavia, nem sempre
o discurso migrante condizia com a realidade, vejo um certo prolongamento da
estada no país estrangeiro, mesmo tendo que viver em constante conflitos com a
cultura local e a tensão de perda da cultura original, principalmente, a língua
materna.
Mota (2008) compreende que a migração internacional na década de
1980, em tempos de expansão do projeto globalizador, é construída dentro de
uma nova lógica econômica e cultural.
A globalização traz, entre outros efeitos, a crescente onda de migrações internacionais, engatilhada a partir da proliferação de eixos econômicos flutuantes, decorrentes das dinâmicas de poder do mercado internacional. Nesse bojo dos acontecimentos, pela primeira vez na nossa história – a partir da década de 80 – o Brasil deixa de ser um país de imigrantes para se incluir naqueles que exportam trabalhadores para diversas partes do mundo, especialmente para os Estados Unidos (MOTA, 2008, p. 309).
Nesta perspectiva, Mota (2008, p. 310) ainda referenda como os
migrantes comparavam os dois países enquanto território de experiência e
referência de vida, “o Brasil é emoldurado como o país do sol quente e do
aconchego da família, enquanto os Estados Unidos trazem a neve e as
oportunidades de trabalho”.
Para o migrante, o Brasil como lugar de origem não deixa de ser o ponto
importante de aconchego do lar, na diversidade cultural e na beleza natural. Essa
referência impulsionava os brasileiros a focarem seus interesses na “neve” para
garantir a oportunidade de trabalho e de melhores condições de vida, o que o
“país do sol” naquele momento não os oportunizou. A situação de referência e
vivência torna o migrante um sujeito do “entre-lugar” (BHABHA, 2003).
A crise econômica no Brasil, mais o discurso e a propaganda de
facilmente vencer na vida em países desenvolvidos, levou muitos brasileiros a
submeterem-se a diversas e perigosas situações para conseguir entrar nesses
países, correndo o risco de perder a própria vida, fato retratado na telenovela
83
brasileira, escrita por Glória Perez, intitulada “América”, exibida em 2005 na Rede
Globo.
A autora visou mostrar as estratégias utilizadas pelos brasileiros para
entrar no país americano, a personagem Sol, principal protagonista, tenta entrar
legalmente, mas inúmeras vezes tem o visto negado. Mesmo diante das
dificuldades, ela persiste com a ideia de oferecer à família uma vida digna e
confortável, por isso decide seguir por outros caminhos ilegais, como por
exemplo, por meio da ajuda de coyotes, os percursos feitos causaram-lhe muitos
sofrimentos e decepções.
Este é um caso fictício que apresentou uma versão da migração
internacional, pois é fato que outras histórias são vividas no processo migratório.
Assis (2007) socializa em seus estudos informações desta natureza ao mostrar os
desafios que os migrantes precisaram passar, tanto na travessia, quanto na
relação com as pessoas e com o lugar. Por esse viés afirmou que
No final do século XX e início do século XXI, as imagens e notícias de imigrantes sendo ‘barrados’ em aeroportos, navegando à deriva em balsas precárias, atravessando a fronteira do México e enfrentando os perigos do deserto evidenciam que a circulação de trabalhadores no mundo globalizado é bem mais controlada e dramática do que a circulação de dinheiro, bens ou mesmo negociantes e turistas. No mundo globalizado, os migrantes não considerados livres para circular são tratados como ameaça, como questão de segurança nacional (ASSIS, 2007, p. 745).
Os estudos de Lechner (2009) reafirmam a pesquisa de Assis (2007)
quando retrata o estado de ser do migrante, depois de fazer uma travessia de
forma violenta e traumática. Além do sofrimento durante o processo da migração,
ainda enfrenta o desafio da solidão pelo corte do laço familiar e da língua
materna. “Tais experiências podem chegar a dissolver a vontade de viver, para
alguns, ou podem estilhaçar as existências, criando verdadeiros estaleiros
biográficos e identitários que exigem um herculeano trabalho de reconstrução”
(LECHNER, 2009, p. 95).
Contíguo ao processo de idas e vindas entre os países, o Brasil
experimentou deslocamentos entre regiões. No século XIX, por exemplo, as
chamadas secas do Nordeste e o boom da economia da borracha na Amazônia
trouxeram expressivo número de cearenses para os seringais da região
84
(LACERDA, 2010). Já sobre o século XX, Campos (2011, p. 22) faz um apanhado
acerca da migração interestadual, ao situar o período e os lugares mais
recorrentes.
Na década de 1930, foram significativos os processos migratórios dos estados do Nordeste e de Minas Gerais para São Paulo, enquanto os paulistas iam se deslocando para o norte do Paraná, que, no período de 1930-60, recebeu um processo migratório muito intenso. Também os estados de Goiás, Pará e Mato Grosso passaram a ser atração para as migrações camponesas. Na década de 1970, o Paraná deixa de ser polo atrativo das migrações e o estado de Mato Grosso ocupa esse espaço.
O processo migratório que forma as molduras do Brasil revela um país em
trânsitos, pois assim como recebe os de fora, mesmo seguindo as restrições de
acolhida, os de dentro estão em constante mobilidade. A presença do Pará no
mapa das migrações contemporâneas permite dizer que elas são diversas e com
diferentes motivos e rotas. Sem desejar reconstituir os momentos mais fortes
desse processo, em diálogo com Alencar (2010, p. 109) é possível assinalar:
Falar sobre migração no Estado do Pará implica [sic] recompor trajetórias de diferentes grupos sociais que, ao longo de séculos e em contextos políticos e econômicos distintos, buscaram a Amazônia como lugar de moradia, numa trajetória de migração que em muitos resultou em morte, na perda de identidades e no retorno ao lugar de origem.
Uma experiência singular migratória viveu o Estado do Amapá no final da
década de 1990. A Revista Veja de 01/12/1999 noticiou que aquele Estado se
transformou em maior polo de migração no Brasil, com destaque para paraenses
e maranhenses. Nesse contexto, muitos professores marajoaras, motivados por
melhores salários e estabilidade funcional, deixaram seus antigos empregos ou
pediram licença sem remuneração e foram viver essa experiência na condição de
professores migrantes.
Quase duas décadas antes desse processo, sem participar de um
movimento de deslocamentos mais amplos, algumas mulheres de municípios
paraenses, aqui considerados “rocha-mãe”, como Marudá, Colares, Primavera,
Santa Maria, Portel, Breves, partiram para Melgaço, carregando consigo a
esperança de dias melhores em suas vidas a partir da prática docente.
85
A chegada das professoras migrantes, assim como de qualquer outro
migrante, é traçada por encontros e desencontros na relação consigo, com o
outro e com o lugar. Nesse contato, estranhamentos, choques culturais, negação
e aceitação passam a fazer parte dos sentimentos daquele(a) que chega. Como
bem enfatiza Nobre (2009, p. 14),
esse deslocamento não ocorre sem deixar marcas, pois o migrante experimenta processos conflituosos, tensos, de perda do território ou das relações cotidianas, processo esses que dão origem a um sentimento de desenraizamento ou desarraigamento.
Experienciar a migração parece ser condição sine qua non da vida
moderna e pós-moderna (HALL, 2003b). Razões e motivações que explicam os
deslocamentos misturam-se a sentimentos de expectativas, esperanças,
saudades, medos e (des)encontros. Tudo isso é atravessado por tempos e
lugares, conforme acompanharemos a experiência vivida pelas professoras
migrantes em Melgaço.
2.2. Tempos de Migração
A história da educação de Melgaço está associada a experiências de
professoras migrantes. Para uma melhor compreensão deste percurso
cartográfico é preciso reconstituir narrativas de deslocamento anteriores a 1980
vividos por outros professores.
Sarraf-Pacheco (2006; 2013a) em pesquisas nos arquivos da Delegacia
de Polícia de Melgaço (DEPOL) descobriu inúmeros documentos referentes à
administração local nas décadas de 1960 e 1970. Dentre esses documentos,
encontrou nomeação de professoras oriundas de outros municípios paraenses.
Além de documentos oficiais, o pesquisador ainda interagiu com
depoimentos orais de moradores que trouxeram à tona lembranças das primeiras
professoras migrantes que chegaram a Melgaço a partir da década de 1960,
quando o município conseguiu sua autonomia política, libertando-se da
dominação de Breves e Portel. De posse das informações reunidas, Sarraf-
Pacheco (2013a, p. 54. Grifo da autora) escreve:
A partir de 1968, com a construção da 1ª escola estadual na sede do município e a contratação de três professores de Belém, em
86
1970, planta-se as primeiras sementes do processo educacional na sede do município, de acordo com os comentários de Hermógenes F. dos Santos. No caderno de memórias de seu Mamede, essas professoras vieram do município de Capanema e todas eram normalistas. As professoras Maria Bezerra da Silva, conhecida pela população como Jura, assumiu o cargo de diretora da Escola Bertoldo Nunes; Maria Leite Rosas da Silva (Nena) e Delzirene foram lotadas com o cargo de professora.
A história da educação na cidade de Melgaço, após seu processo de
emancipação em 1961 até meados da década de 1990, foi tecida pelas mãos de
professoras migrantes. Nos depoimentos recuperados por Sarraf-Pacheco (2006;
2013a) estão vivas as histórias compartilhadas com as primeiras professoras
oriundas de outros lugares que faziam moradia e exerciam a profissão em
Melgaço. Umas chegaram à cidade para acompanhar a família e depois se
tornaram professoras, outras chegaram exclusivamente para o exercício da
docência.
Imagem nº 14: Escola Estadual Bertoldo Nunes22.
Fonte: Arquivo pessoal da Srª Ana Kelly Amorim.
O processo de migração de professoras para esse município aconteceu
possivelmente em dois distintos momentos. O primeiro ocorreu em 1971 quando
chegaram ali quatro professoras da cidade de Capanema para trabalhar na
22 Primeira escola estadual construída na cidade, após o processo de emancipação político vivido
por Melgaço em 1961. A imagem foi registrada em 1968, na cerimônia de inauguração, o município contou com a presença do, então, Governador do Estado, Alacid Nunes, falecido no último dia 05/09/2015.
87
Escola Estadual Bertoldo Nunes cujo prédio foi inaugurado em 1968, conforme se
visualiza na imagem acima.
O segundo momento de migração se deu na década de 1980 quando
chegou a Melgaço um número mais significativo de professoras para fazer parte
da trajetória educacional do município. Relata o historiador marajoara:
Entrevistando seis professoras, percebi que estas não foram as únicas que vieram de outros lugares do Pará. Desde a década de 80, momento de forte migração de profissionais para as cidades marajoaras, no contexto da chamada “abertura política do país”, vários professores chegaram nessa “cidade-floresta” para exercer funções docentes, lutando pela melhoria da qualidade de ensino na localidade. Algumas professoras permaneceram, apesar das perseguições enfrentadas na década de 90 pela administração pública, por não concordar com suas atitudes e cobranças; outras não suportando tal situação, retornaram para seus municípios ou foram trabalhar em outros lugares (SARRAF-PACHECO, 2006, p. 142).
Foi no segundo momento da migração de professoras para a “cidade-
floresta” Melgaço que as comandantes desta pesquisa chegaram para construir
suas histórias com o lugar e com a educação do município. Elas são as
professoras migrantes que “permaneceram, apesar das perseguições enfrentadas
na década de 1990 pela administração pública”. Por suas opções de vida e
profissão, assumiram variados desafios e defenderam diversas bandeiras de luta,
entre elas a melhoria da qualidade da educação, políticas de formação, garantia
dos direitos profissionais, além de permanentes afirmações pela própria vida em
terra não-familiar. Essas mulheres professoras saíram de suas terras, umas
desde criança, outras na juventude em busca de realizações de seus sonhos e foi
nessas idas que se encontraram com a cidade de Melgaço e nela fizeram-se
profissionais da educação.
Os fatores considerados como justificáveis para um número significativo
de migração de professores para Melgaço pautava-se, especialmente, na
carência de formação dos filhos da terra para exercerem a profissão professor; na
ampliação da demanda estudantil; nas exigências ao direito à educação e na
necessidade de promover a expansão e melhorar a qualidade da educação no
município.
88
De acordo com pesquisa que desenvolvi para a conclusão do curso de
pedagogia, intitulada “Professores, Pais e Ex-Alunos: memórias e experiências do
Magistério em Melgaço 1990-2001” (BAIA SARRAF, 2003) é possível
compreender o percurso que o município realizou no processo de formação de
professores para atuarem no Ensino Fundamental e, posteriormente, no Ensino
Médio.
O Ensino Médio em Melgaço chegou em 1990, por meio do Sistema de
Organização Modular de Ensino (SOME), implantado no Estado do Pará em
1980. O curso de Magistério foi a área contemplada pelo município. Com isso,
iniciava-se na própria sede, a política de formação de professores para atuarem
na pré-escola e séries iniciais. Para melhor explicação desta realidade, em
diálogo com sujeitos da pesquisa, enfatizo:
A cidade de Melgaço até 1989 ainda não contava com o curso de Magistério, tinha apenas o 1º Grau, por isso não dispunha de profissionais suficientes para assumir essa área de trabalho. Dessa forma, os gestores municipais contratavam a maioria dos professores que vinham de outros municípios, pessoas que tinham ou não cursado o antigo 2º Grau na área de Magistério (BAIA SARRAF, 2003, p. 33).
Imagem nº 15: Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Presidente
Tancredo de Almeida Neves”23.
Fonte: Arquivo da pesquisa – setembro de 2015.
23 A escola foi fundada em 1984, única escola da esfera estadual na cidade. Com a sua criação, a
antiga Escola Bertoldo Nunes foi desativada, seu prédio foi reformado e transformado em Câmara Municipal.
89
Com base nesta informação é visível o quanto Melgaço foi território de
migração docente na década de 1980 e da formação de professores nas duas
décadas seguintes, pois em 2001 com a extinção do Magistério, o Ensino Médio
passou a ser em Educação Geral.
Em minha pesquisa de graduação pude dizer que, com a migração das
professoras para Melgaço na década de 1980, em 1984 o município conseguiu
formar a primeira turma de 5ª série e em 1987, o festejava a conclusão do ensino
de 8ª séries de 14 alunos. Essa demanda, todavia, precisou esperar dois anos,
pois somente em 1990, uma parceria com o governo do Estado e com o apoio da
comunidade, permitiu a Melgaço implantar o Ensino Médio em Magistério.
Nos depoimentos recuperados no estudo que realizei em 2003, sobre a
Formação de Professores em Melgaço, os entrevistados anunciaram o desejo de
os próprios filhos da terra exercerem a docência. Enfatizaram, ainda, a
importância de investimentos à formação de professores no próprio município
para não mais depender de profissionais vindo de outros lugares. Era necessário
que o ensino, principalmente, de 1ª a 4ª série, fosse ministrado pelos filhos da
“rocha-mãe”. Para isso se tornar realidade foi que:
O SOME surgiu para atender essa necessidade, possibilitar a ampliação do universo profissional e a diminuição da carência de profissionais nas áreas de Magistério, Administração e Contabilidade, já que eram os cursos que, a princípio, eram oferecidos pelo projeto e também para diminuir a má qualidade da educação no Estado (BAIA SARRAF, 2003, p. 24).
A criação do SOME pelo governo do Estado tinha como filosofia básica
garantir o acesso ao Ensino Médio em comunidades longínquas à Belém. Sem
estruturas para organizar um sistema regular de ensino, a Secretaria de
Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA) possibilitou à Melgaço iniciar a
formação do professor e lentamente melhorar o quadro de professores24 da rede
municipal de ensino.
Depois do segundo momento de migração de professores na década de
1980 e com a implantação do curso de Magistério, outra demanda de professores
migrantes pisou em solo melgacense na década de 1990. Desta vez, porém, são
24 De 1990 a 2001, período em que o Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME) esteve em Melgaço, foram formadas 10 (dez) turmas e 115 alunos concluíram o curso de Magistério.
90
professores migrantes itinerantes, pois o tempo de moradia era provisório,
perfazendo um período de 55 a 60 dias, estabelecido pela organização funcional
do SOME.
O projeto funciona através de um calendário escolar específico para o sistema, estabelecido pela SEDUC, cujo ano escolar corresponde a 200 (duzentos) dias letivos, sendo que as disciplinas são ministradas em 04 (quatro) módulos, cada módulo contém a duração de 56 (cinquenta e seis) dias, incluindo os 6 (seis) dias de recuperação para os alunos que não forem aprovados (BAIA SARRAF, 2003, p. 18).
A partir de 2003, quando os professores para ministrar aulas no Ensino
Médio deixaram de vir da capital do Estado, a direção da Escola Estadual de
Ensino Fundamental e Médio Presidente “Tancredo de Almeida Neves” precisou
criar o ensino médio regular e solicitar a contratação de professores para esse
nível de ensino. Assim, nessa última década, posso afirmar que o quadro de
professores do Ensino Médio regular em Melgaço foi formado com professores
migrantes da década de 1980, alunos das primeiras turmas de Magistério que se
graduaram pelo Campus de Soure e pelo Campus de Breves e alguns novos
professores migrantes. Como se vê, a prática da migração continuou na história
da educação melgacense, mas isso é assunto para outra pesquisa.
De agora em diante, tento discutir o deslocamento das professoras
migrantes em diálogo com estudiosos da sociologia, da história e da educação e
com as comandantes desta pesquisa.
2.3. Razões da Partida: esperanças à flor da pele
A raiz se desprende do solo que parecia propício à germinação da semente. De novo à flor da terra, novamente à flor da pele. A esperança tem que se fazer presente, de alguma forma, no coração do migrante (TANUS, 2002, p. 242).
Tanus (2002) em sua fala poética leva a pensar em motivações,
sentimentos, sonhos e projetos que as professoras migrantes desejavam ou
precisaram viver para dar sentido ao percurso a que se colocaram a atravessar.
Com base na ideia de que “A esperança tem que se fazer presente, de
alguma forma, no coração do migrante”, assinalo que ele encontra nesse
sentimento ajuda para superar os desafios enfrentados em solos distantes, assim
91
como sentido para ressignificar modos de vida, saberes e relações fundamentais
para (re)construção de sua identidade.
Sayad (1998), ao tratar da identidade, faz perceber como a migração
deslocou a identidade do migrante, consequência de um duplo sistema de
referência, o de lá e o de cá ou o de cá e o de lá. O autor ainda acrescenta que
para ser restaurada a integridade de forma mais coerente sobre as múltiplas
contradições vividas pelo migrante, faz-se necessário recorrer a socioanálise, um
caminho fundamental para se rastrear as diferentes dimensões da experiência
migratória. Já em Demartini (2010, p. 50)
o deslocamento pode ser resultado de um desejo/projeto de vida, motivado pelas complexas vivências enfrentadas por cada grupo que se desloca; mas há diferenciações pelas singularidades dos processos imigratórios e pelas diversificadas trajetórias desenvolvidas, mesmo quando se trata de uma mesma sociedade receptora, de um mesmo grupo de origem e do mesmo momento histórico.
A intelectual considera que o deslocamento ou o processo migratório é
“resultado de um desejo ou projeto de vida” motivado por complexas vivências e
cada deslocar-se é singular pela especificidade das trajetórias, relações
estabelecidas, recepções, concepções sociais, históricas, econômicas e culturais
vividas nos encontros e confrontos de cada grupo ou pessoa migrante.
Para Sayad (1998, p. 55) “foi o trabalho que fez ‘nascer’ o imigrante, que
o fez existir; é ele, quando termina, que faz ‘morrer’ o imigrante, que decreta sua
negação ou que o empurra para não-ser”. Nesta concepção considera o imigrante
“essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória,
temporária, em trânsito” (SAYAD, 1998, p. 54). Portanto, o trabalho determina o
lugar e limita o tempo de permanência do migrante.
Neste entendimento, migração e trabalho estão intensamente imbricados.
O trabalho é o principal promissor para incentivar ou desmotivar o processo
migratório. A migração é a busca de melhor qualificação, aprimoramento e
estabilização para o trabalho, contrariamente, a não migração é a confirmação de
condição estável no trabalho em terra própria ou a aposentadoria por tempo de
trabalho ou “invalidez” na lógica da produtividade capitalista.
92
Sayad confirma que o ser migrante é um estado provisório, temporal e em
trânsito. O trabalho, o lugar e a habitação são moventes e emergenciais, pois
representam o próprio estado do ser migrante.
A habitação do imigrante só pode ser o que o imigrante é: uma habitação excepcional, como é “excepcional” a presença do imigrante; uma habitação de emergência para uma situação de emergência: uma habitação provisória – duplamente provisória, porque os ocupantes só a habitam provisoriamente e porque ela mesma constitui uma resposta para uma situação pensada para ser provisória – para um residente provisório, pois é sempre assim que se imagina o imigrante (SAYAD, 1998, p. 75).
Quando se mapeia trabalhos acerca de outras motivações capazes de
provocar fenômenos migratórios emergem catástrofes ambientais, falta de
trabalho, ou desastres naturais. Isso leva a perceber um distanciamento do
pensamento de Demartini quando referenda que o deslocamento pode acontecer
por um desejo ou projeto de vida, no entanto, compartilha com Sayad ao assinalar
que “foi o trabalho que fez ‘nascer’ o imigrante”. Assim, o trabalho ou a fuga de
uma tragédia ocasionam formas de deslocamento. Em relação à tragédia
distancia-se do desejo e do projeto de uma vida melhor a priori, ela força o ato de
migrar por uma fatalidade natural.
Outros fatores que incentivam a migração são apresentados por Assis
(2007) quando traz a presença do fluxo da migração feminina a partir da década
de 1970. A dinâmica tornou-se mais frequente com o avanço dos meios de
comunicação e transportes que possibilitaram maior acesso aos lugares e mais
comunicabilidade com aqueles que ficaram. Desta forma, menor distância e maior
contato entre a “sociedade de origem e a sociedade de destino”. Assim esclarece
Com relação às motivações para a migração, um outro conjunto de fatores de ordem não econômica parece ter impacto na seletividade da migração e é mencionado mais por mulheres do que por homens. Podem ser citados como fatores não econômicos: a transgressão dos limites sexuais impostos pela sociedade, os problemas conjugais e a violência física, a impossibilidade de divórcio, os casamentos infelizes e desfeitos, a discriminação contra grupos femininos específicos e a ausência de oportunidades para as mulheres (ASSIS, 2007, p. 751).
Os fatores apresentados dialogam com o pensamento de Demartini
(2010), por entender que o deslocamento da “rocha-mãe” não está vinculado
93
somente a questões econômicas e à procura do trabalho, mas pela busca de
liberdade e contra a discriminação e exclusão social, principalmente com o sexo
feminino. Nessa compreensão, migrar significa uma realização pessoal, um
desejo de encontro e descoberta de si.
Nesta reflexão, Hanciou (2009, p. 125), por exemplo, partindo da
problematização de como compreender a trajetória voluntária de imigrantes e
exilados que são empurrados para fora de seu país e lugar de origem por uma
“força interior, pela necessidade de ‘outra coisa’, sem que possam defini-la por
completo, sem entretanto cortar as pontes com o país de origem”, analisa
sentidos do exílio de artistas e escritores que contam sua condição exilar,
conformada por “passagens, despaisamento e pertença a várias culturais” (Idem,
p. 134).
Tanus (2002, p. 11) em sua pesquisa de doutoramento ao denominar os
interlocutores de “heróis anônimos, os migrantes-professores, ao saírem em
busca de melhores condições de vida, realizam a saga iniciática em busca de si
mesmo”. Sem negar a relação migração-trabalho, semelhante ao que ocorre com
Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima.
Quando Tanus focaliza “melhores condições de vida”, sem excluir outras
questões que proporcionam qualidade de vida, compreendo como enfoque
principal a questão do trabalho, mas um trabalho que proporcione o encontro de
si. Nesta perspectiva, a necessidade de trabalhar orienta a própria condição
humana.
O trabalho aparece como ponto referencial de encontro e desencontro
com o eu. Sair em busca de trabalho é ir “em busca de si mesmo”. Conquistar a
estabilidade profissional é encontrar-se consigo e tornar-se um ser
verdadeiramente situado na profissão e no meio social em que está inserido.
A busca de si mesmo, fez-me questionar. Será fugir de um possível
destino traçado por laços familiares? Tal indagação fluiu quando estava fazendo o
cruzamento das narrativas. No diálogo com as professoras migrantes, percebi que
já haviam experimentado, em outros momentos da vida, a saída da “rocha-mãe” e
a motivação foi a busca de formação educacional inicial, objetivando livrar-se, no
futuro, de representações que emolduraram o retrato da mãe no passado,
conformado nas características: de ser dona de casa, ter muitos filhos e levar uma
94
vida de intenso trabalho doméstico, no extrativismo, na agricultura ou na pesca.
Porém, é importante enfatizar que todas demonstraram respeito e admiração às
atitudes e coragens das mães em saber enfrentar e superar os desafios e limites
da vida.
Araújo (2014, p. 306) ao trabalhar com histórias de vida de professoras
ribeirinhas analisa que
“tornar-se professora” exige um profundo mergulho na complexidade sociológica em que a menina se constitui enquanto profissional da docência porque esta “escolha” está imbricada às condições de subjugação às quais as mulheres da Amazônia de um modo geral foram assujeitadas ao longo da sua história local e à formação escolar deficiente nos interiores da Amazônia.
A inquietude de um desejo traçado provocou a espera da oportunidade
para desprender os rizomas e seguir novos percursos. Na esperança do encontro
de si, Wilma, encontrou essa oportunidade quando tinha 18 anos de idade e já era
mãe do primeiro filho. Depois de alguns anos fora da escola e já envolvida no
trabalho, um convite lhe fez refletir sobre a vida e decidir fazer o primeiro
deslocamento.
Ao ficar grávida, eu continuei no meu comércio. Quando o meu filho nasceu, eu conheci uma senhora que alugava a casa de minha mãe, no período de férias, o nome dela era Letícia. No mês de julho, a dona Letícia veio para Marudá e alugou a casa, conversou comigo se eu não queria ir para Belém, se eu não queria continuar meus estudos. Então eu repensei, olhei para o meu filho, eu queria dar o melhor para ele, porque se eu quisesse ir embora, a minha mãe ficaria com ele. Assim, desfiz-me do comércio e fui para Belém morar com dona Letícia sendo doméstica (Professora Wilma – 2002).
Wilma foi criada por sua mãe Teodora, seu pai faleceu quando ela tinha 4
anos de idade. Dona Teodora assumiu o comando da família, apesar de viver
outros casamentos, mas conduziu precisamente a criação dos 5 filhos. Uma de
suas características era o poder de decisão e a disposição para o trabalho, já o
pai de Wilma era envolvido na arte do pescar, mas reservava parte do seu tempo
para o hábito da leitura. A comandante expressou que as virtudes dos pais foram
referências para a sua personalidade.
Wilma engravidou e resolveu assumir sem a presença do pai a criação do
filho, no entanto, sempre contou com o apoio de sua mãe, a principal
95
incentivadora para ela prosseguir os estudos. Na percepção dessa professora
migrante, as atitudes adotadas por sua genitora contribuiriam para despertar em
si o desejo de profissionalizar-se como advogada, por exemplo, porque poderia
oferecer maior conforto ao filho. Nas asas desse sonho, ela enfrentou o desafio
do deslocamento e da distância de seu menino. Foi para Belém, trabalhou como
empregada doméstica, estudava durante à noite e pode, então, concluir seus
estudos, formando-se em Magistério.
Nas teias da cartografia migrante, Rosiete rememorou seu primeiro
deslocamento, quando veio morar com seus padrinhos na capital do Estado do
Pará. Ela comunicou que a partida para estudar foi incentivo de sua mãe, Maria
Corrêa Siqueira, que não lhe desejava como herança os trabalhos pesados da
roça. No entanto, é visível no estilo e posicionamento da comandante que seus
sonhos estavam para além de ser uma simples mulher e trabalhadora do roçado.
Vim para Belém em 1970, conheci meus padrinhos que eram pessoas muito finas, fazendeiros, moravam em um espaço muito bem localizado dentro de Belém, na Avenida Governador José Malcher. Eu, então, aos 13 anos vim morar com eles [...]. Você morar com as pessoas é diferente, muito pequena, por exemplo, para cuidar de uma cozinha, para cozinhar, eu nunca havia cozinhado, eu nunca tinha cuidado de uma cozinha, eu só via a minha mãe fazer, eu nunca fiz esse trabalho, isso eu sentia demais, eu reclamava muito, eu não conseguia aceitar aquela vida, de eu ter que cozinhar todo dia, de eu ter que varrer uma casa todo dia, levantar para fazer café, lavar roupa, isso me doeu bastante. Mas uma coisa a minha mãe sempre dizia, que eu deveria ficar, que era a minha oportunidade para eu estudar, e como eles sempre colocavam, é na casa das pessoas que a gente aprende, a minha mãe falava muito isso. De fato, eu aprendi muitas coisas que serviram para a minha vida e que me proporcionaram dias melhores (Professora Rosiete – 2002).
Na tentativa de fugir de um possível destino, Rose, mesmo sem
compreender a importância do afastamento da família para a projeção de seu
futuro profissional e também pessoal, resolveu partir. Tanus (2002) acredita que
“os sonhos são escadas por onde é possível subir para projetar o futuro ou descer
para buscar as profundezas. Podem ser projeto de vida, atividades do
inconsciente, perambulações do imaginário” (TANUS, 2002, p. 174). Desse modo,
o encontro com o desconhecido, a ausência da família e da “rocha-mãe”
significaram mais do que um deslocamento para ela, o que aconteceu foi uma
96
mudança estrutural em sua vida. O custo da formação roubo-lhe o tempo da
adolescência, assumiu a responsabilidade dos afazeres doméstico na casa de
seus padrinhos.
Varrer, lavar, cozinhar, viraram atividades rotineiras, o que antes era
apenas uma prática de observação passou a ser um exercício cotidiano. A função
de doméstica a ela atribuída não foi aceita passivamente, mesmo no silêncio
Rosiete questionava sua condição de migrante e sofria a dor da ausência familiar.
Eu chorava muito, eu passei um ano chorando com saudade da minha mãe, dos meus irmãos, do meu pai, da minha família. Eu dizia que eu nunca me acostumava, que eu trabalhava muito. E a minha mãe dizia assim para mim: “Minha filha, isso vai passar, você vai se acostumar, eu não vou lhe levar para o interior, primeiro você não dá para trabalhar no serviço pesado, você não vai dar conta de fazer uma farinha, de fazer uma roça, isso não vai ser serviço para você, então você precisa estudar, você vai se acostumar” (Professora Rosiete – 2002).
Ao socializar o vivido, a professora migrante deixou escapar que o modo
de tratamento de seus padrinhos com ela moldou o seu comportamento, ainda
hoje refletido na interação com o meio social: “não tinha lazer, não saía, não
deixavam, só se fosse com eles. Então, minha vida se resumia a ir à igreja, à
escola e passar aos domingos na casa da irmã mais velha de minha madrinha,
nem televisão era permitido assistir”.
Rosiete considerou que a falta de autonomia para as relações sociais,
tornou-a uma pessoa tímida e de poucas relações de amizade, mas lhe
proporcionou maior dedicação aos estudos e contribuiu para superar as
dificuldades de aprendizagens. A timidez foi superada no exercício da docência,
mas a relação de amizade é bem selecionada, assim como a participação na
dinâmica social.
Histórias como a dessa professora migrante também foram vivenciadas
por Jurema e Fátima ao saírem ainda criança das casas de seus pais. Jurema,
incentivada pelo pai, foi morar com a avó materna para iniciar o processo de
escolarização, visto que perto de sua casa não havia escola e o desejo do pai era
alfabetizar a filha mais velha para ela conduzir a alfabetização dos 5 irmãos. Nas
suas narrativas, a comandante trouxe com muita emoção e orgulho a presença
paterna na sua vida, ela foi fundamental para toda a trajetória estudantil e
97
religiosa, as histórias de vida são fortemente marcadas pelos ensinamentos
recebido do pai, Pedro Castro Pacheco.
A professora migrante narrou com muita emoção e vivacidade os tempos
de migração ainda na infância, o que ajuda a compreender que “os narradores
são capazes de reconstruir suas atitudes passadas mesmo quando não mais
coincidem com as suas atuais” (PORTELLI, 1997, p. 34).
Porém apenas com nove anos, não sabia como me defender, sentia-me muito frágil diante das coisas que as pessoas me falavam, não tinha argumento, comunicava-me apenas através do olhar. Puxa! Que bom se eu pudesse falar de coisas boas, porém penso que eu não tive infância, porque com apenas 8 anos ao sair da casa de meu pai, confrontei-me com uma dura realidade, totalmente diferente da qual eu vivenciava, pois na minha casa eu não era obrigada a fazer serviços domésticos, não lavava uma colher, o que tive que fazer na casa de minha avó. Então, isso para mim foi um afronto, foi um castigo, foi algo extremamente crucial para uma criança de apenas aquela idade (Professora Jurema – 2013).
Jurema desde muito cedo, longe da proteção dos pais, experimentou as
primeiras funções do “papel” da mulher como futura dona de casa, de acordo com
os princípios da avó. Isso lhe era visto como uma humilhação e muito questionava
tal situação, acreditava que seu direito de criança deveria ser garantido, aquelas
funções seriam para os adultos, estava ali para estudar. Entretanto, sua história
não terminou por aí, a primeira experiência de afastamento da família, foi o
passaporte para outros trânsitos.
No outro ano, 1970, os meus padrinhos incentivaram o papai para que eu fosse morar com eles, na cidade de Breves, a fim de que eu continuasse e concluísse os meus estudos. Foi então que eu fui morar com meus padrinhos Hermógenes e Nazaré, morei com eles para estudar desde os 9 anos até os 11 anos, 3 anos consecutivos. No outro ano, eu não fui estudar, papai não deixou estudar porque ele disse que eu já estava ficando moça e se preocupava muito com a gente, achava que poderia acontecer alguma coisa comigo, sei lá, quem sabe se eu me envolvesse com um homem, por exemplo. Assim, só estudei até 1973 quando conclui a 4ª série primária que, para a realidade daquela época, era como se fosse o 2º Grau, pois naquela região não havia ninguém com aquela escolaridade, e o papai dizia que isso era o suficiente para alguém de família pobre, dizia que com aquela escolaridade, tinha capacidade de “desemburrar” meus irmãos (Professora Jurema – 2014).
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Ao migrar para a cidade de Breves foi morar com seus padrinhos para
continuar seus estudos. O aflorar de uma fresta para o conhecimento
possivelmente submergiu o destino de ser uma “boa dona de casa”.
Do período de três anos de residência com seus padrinhos, Jurema
relembrou muitas histórias e outras preferiu deixar guardadas na caixa de
memórias: “algumas coisas tristes eu lembro que passei, minha madrinha me
proibia de olhar na janela e perguntava se eu já era bebelô. Quando me sentava
no sofá da sala, porque a sala para ela, era lugar de bebelô”. Contou que ajudava
a empregada nos afazeres da casa e não lhe era permitido comer o mesmo
alimento que era oferecido aos filhos de seus padrinhos.
Segundo Maluf (1995, p. 31) a “reconstrução do passado, a relembrança
se serve de inúmeros pontos de referência, de campos de significados, porque o
fundamento da recordação é dado por um ‘sentimento de realidade’ que se
origina em contingências existenciais”. As histórias de vida das professoras
migrantes são marcadas por “pontos de referência” construídos em interações
com muitos daqueles que atravessaram as suas trajetórias. Tais referenciais
despontam aspectos do sinuoso movimento de reconstrução de suas identidades,
conformada pelos muitos tempos e fase da vida.
Já Fátima vivenciou o primeiro processo de migração junto com sua
família, quando, com oito anos de idade, saiu do Ceará e veio espalhar suas
raízes em solo paraense e de lá guardou algumas reminiscências da infância
vivida no tempo da seca, como: as brincadeiras na fazenda, na beira do rio, das
várias gravidezes de sua mãe e das dificuldades de seu pai para “criar a família
lá”. Partiram num pau de arara e, ao chegarem ao Pará, a vida seguiu novas
viagens.
Ao revisitar o percurso migratório e lembrar das dificuldades que viveu
para estudar, a comandante refez o passado com o olhar e a interpretação do
presente, quando enfatizou “aquela carência, não tinha pré-escola”. É possível
que naquele momento vivido, em função da tenra idade, não tenha percebido a
ausência da escola em sua vida, mas hoje compreende a importância da
instituição para o desenvolvimento das habilidades cognitivas da criança, além de
reconhecer que é dever do Estado oferecer Educação Infantil para todas as
crianças.
99
No diálogo com essa professora migrante, apreendo que sua história,
apesar de acontecer em espaço e tempo diferente das histórias de Rosiete e
Jurema, apresenta traços comuns: sair da companhia dos pais para ir morar com
os padrinhos; e ser tratada como doméstica ou babá sem direito à renumeração
salarial. Tais retratos ligam-se a tantas outras histórias vividas em territórios
amazônicos, conformando uma rede de meninas que deixam o interior na
promessa de alcançar uma vida melhor na capital, algumas conseguem driblar a
realidade experiencial, como aconteceu com as professoras migrantes, outras
guardam marcas da triste situação.
Fátima foi morar em Igarapé-Açu com a professora Iracema, sua
madrinha, lá assumiu os cuidados dos filhos desta e abandonou seu tempo de
brincar. “Por umas situações que aconteceram lá, então, eu fui para uma outra
casa, foi que eu terminei a 5ª e 6ª séries”. A fala e a performance deixaram
observar que existia uma relação de profunda hierarquia entre afilhada e
madrinha. A seletividade da memória compartilhada não permitiu que outras
situações ocorridas fossem reveladas pela comandante. Ela apenas insinuou,
mas talvez por um desejo de preservar a intimidade, deixou no labirinto da
memória tais enredos. Sobre esse tipo de reação, Nobre (2009) explica
O silêncio, as reticências, as omissões, as repetições, a pressa em falar, os gestos, enfim, todos os sinais devem ser vistos como a construção do narrador de sua própria identidade e a forma como traduz e redimensiona as relações entre o “eu” passado e o “eu” presente (NOBRE, 2009, p. 23).
Cada moradia oferecida ao migrante é uma nova esperança que nasce
para concretizar o sonho. A comandante deixou a casa da madrinha e logo
encontrou outra família que lhe ofereceu abrigo e seu sonho reapareceu como um
raio de luz. Que sonho era esse? Acreditar que seria possível, através dos
estudos, ter uma história diferente da sua mãe, porém, como ela relatou “a
história era a mesma” em cada lugar que chegava para morar.
Essa mulher me mandava sempre ir embora da casa dela, essas coisas que acontecem, mas eu não ia, eu aguentava muita coisa porque eu queria estudar. Nesse dia ela me mandou ir embora, meu irmão estava lá, ele disse: “Maria, vamos embora”. Eu disse: “vamos embora para casa”. Nesse período, quando eu cheguei em casa a minha mãe tinha um monte de filho, a minha mãe teve 18 filhos no total, eu via aquilo e dizia: “meu Deus do céu!”, a
100
gente morava lá no Curi. Eu dizia: “meu Deus do céu!”. Olhava e dizia: “meu Deus do céu! o que vai acontecer comigo, vou ter um monte de filho e vou ficar como minha mãe cheia de filho”. Eu já tinha vindo de Belém, não tinha como voltar mais para lá. Como que eu ia voltar? Então, eu ficava triste (Professora Fátima – 2014).
A situação da mãe de Fátima era refletida como espelho de um possível
futuro e isso lhe entristecia. Ao mesmo tempo lhe serviu de motivação para
buscar soluções para fugir do iminente destino. Acreditava que os estudos
poderiam ajudar a construir uma nova história, diferente a de sua mãe. Depois do
retorno para a família e o encontro com o indesejável, as inquietações foram
constantes “meu Deus do céu!”, meu Deus do céu!...”, e o peso da
responsabilidade aumentava, ela voltou sem concluir seus estudos. O que
aconteceu e os motivos que levaram ao retorno ficou para si, ou talvez a memória
não fez questão de lembrar.
Neste conflito, a professora migrante não estava sozinha, era no colo da
mãe que nascia a esperança de ter outra oportunidade de retorno para prosseguir
os estudos. Certo dia, chegou uma família em sua casa e lhe fez o convite, ela
com o aceite da mãe, partiu, desta vez mais determinada a vencer qualquer
situação para oferecer aos pais uma vida digna, conforme comungou: “eu tinha
que fazer alguma coisa”. Nesta residência, ela ficou até concluir o 2ª Grau e
migrar para Melgaço.
A “escuta sensível” pegou embalo em outras narrativas de iniciáticos
deslocamentos. Dilma contou que seus avós exerciam atividades da roça, viviam
em Colares em uma residência muito simples. O trabalho na roça, na maioria das
vezes, era o suficiente para garantir apenas uma refeição ao dia e sua avó
priorizava o jantar. Durante o dia, a fome era enganada com pequenos lanches.
Dilma desde muito cedo sentia vontade de ajudar seus avós, pois nunca
lhe negaram o amor que deveria ser dado por seus pais, todavia compreendia
que só seria possível se conseguisse estudar para ter uma profissão. Com os
desejos traçados, a comandante contou a história da sua primeira migração
Com a criação que tive pelos meus avós eu permaneci até os 14 anos morando em Colares e estudava também em Colares, mas nesse período a educação ali era até a 4ª série, não tinha um grau maior, por isso teríamos que nos deslocar para as cidades de Castanhal, Vigia ou, então, Belém para continuar os estudos.
101
Nesse período, eu convivi com uma família, eu brincava muito com os filhos de uma senhora [...] muito amigo da minha família e acabamos tendo uma amizade muito grande, uma amizade construída na idade de 13 e 14 anos, nossas idades eram parecidas. Eu sempre falei que eu gostaria de continuar a estudar, eu tinha esse objetivo de continuar os meus estudos, mas a minha família não tinha condições financeira de me colocar para fazer a continuidade desse estudo. Então, com essa família eu achava que teria condições de vir, justamente com a idade de 14 anos eu vim para Belém morar com essa família (Professora Dilma – 2014).
Dilma selecionou com maior precisão uma história individual, a do tempo
de infância. Com a voz calma, rememorou sem muito detalhar a relação com os
pais, chegou a mencionar, brevemente, que era uma relação distante, portanto,
sua referência familiar eram os avós.
Ela compreendia que se ficasse em Colares não teria oportunidade de
concluir os estudos e também sabia que a migração era difícil, pelo fato de a
família não ter condições financeira para garantir sua permanência em outro
lugar, por isso ficava arquitetando meios para continuar os estudos. Uma coisa
tinha certeza “que não tinha como eu ficar em Colares, eu queria o meu objetivo
que era o meu estudo”.
Pela amizade, Dilma conquistou a confiança de um casal e foi morar
longe da “rocha-mãe” e realizar o desejo de estudar. Falou que a experiência da
vivência com a família que migrou foi muito boa, a senhora era professora e o
senhor tenente e delegado da cidade de Colares. O modo de ser e o lugar social
que ocupavam fizeram com que tivesse o apoio necessário para estudar. Ganha
destaque nessa convivência, o fato de receber o mesmo tratamento em relação
aos filhos do casal. Um sentimento que guarda com carinho de sua trajetória
migrante e formação inicial.
Depois de três anos morando com a família de amigos dos avós e bem
mais entrosada na capital, a comandante decidiu mudar de colégio e também de
residência, passou a morar com um casal de tios. Assim comunicou:
Depois desses três anos, eu fui morar com a minha família mesmo, um casal de tios que eu tinha, morava na Mundurucus e como o Colégio Augusto Meira fica próximo da Mundurucus, então eles me acolheram, eu já estava com uma idade mais madura. No Augusto Meira eu estudei um ano e não deu certo, porque eu tinha muito serviço na casa da minha tia com o meu tio, Eu tinha que ajudar muito, por isso eu acabei não fazendo uma disciplina
102
que era educação física, eu teria que sair de casa no horário de pique de serviço, não era legal e a minha tia cobrava muito. Assim, para eu não escutar tanta cobrança eu acabava dizendo que não tinha educação física. O que aconteceu? No final, eu acabei ficando reprovada, na época não existia dependência, ficava reprovado mesmo. Com isso eu comecei a perceber que não estava dando certo (Professora Dilma – 2014).
A mudança de Dilma para a casa dos tios, não foi bem-sucedida, o
trabalho doméstico e as exigências da tia causaram-lhe um ano de atraso na
escola. Percebeu que aquele preço a ser pago era muito caro e seu objetivo não
estava sendo alcançado. Em função disso, depois de inúmeras indagações e a
permissão dos avós, mudou para a casa de uma prima. Foi nesta casa que a
futura professora ganhou a autonomia, concluiu o 2º Grau, começou a trabalhar
no comércio e iniciou um novo curso, o Magistério.
Na composição de um repertório de experiências migrantes e de
formação inicial, as comandantes da viagem apresentaram complexas memórias
dos primeiros deslocamentos e interpretaram, à luz do tempo presente, esforços e
dificuldades nas travessias entre a “rocha-mãe” e a terra hospedeira. Pelos
sentidos que atribuem aos tempos do vivido, apreendo um forte apego aos laços
familiares; o exercício do trabalho sem renumeração salarial; tratamento
inferiorizado (com exceção de uma temporada narrada por Dilma); limites às
práticas sociais e ao espaço da moradia; além de relações conflituosas e
silenciamentos de outros tantos momentos que a seletividade da memória e a
ética da pesquisa não permitiram publicizar.
Mesmo na dor do distanciamento e no enfrentamento da nova realidade,
as professoras migrantes já traziam consigo uma centelha de força, por isso
insistiram, investiram e persistiram na batalha por urdir uma outra trajetória de
vida para si; agiram com coragem e estratégias para driblar limites impostos por
sua condição de gênero, etária, social e, possivelmente, étnica. Em última
instância, a travessia era o início de uma busca, construção e encontro de si. Para
isso, contudo, as sagas migratórias precisaram continuar e novos embarques
faziam-se necessários.
103
2.4. Memórias da Terra Hospedeira: encontros e sentidos
O deslocamento da “rocha-mãe” para uma terra não-familiar, seja qual for
a motivação, sempre vai provocar sensações de encantamento ou
desencantamento no encontro com o outro e com o lugar. A esse respeito Nobre
(2009, p. 105), comenta que
O migrante, quando chega ao lugar determinado, não está carregado somente de seus pertences materiais, mas apresenta, além de sua história de vida uma carga de valores morais e culturais, suas esperanças e vontades, estabelecendo então uma relação de troca.
Nas bagagens dos migrantes viajam equipamentos materiais e dimensões
ou capitais simbólicos, socioculturais, todos são significativos para negociações e
adaptações às novas relações que serão vividas e para a realização dos projetos
que foram traçados para serem materializados naquele lugar.
Nos rastros desse pensamento, a representação do lugar para o que
chega é assim descrita por Tanus (2002, p. 80).
Para alguns, os espaços são locais de passagem, andarilhos sempre. Para outros, ainda o espaço de sobrevivência, onde procuram se integrar ao novo cotidiano a ser vivido e sorvido, muitas vezes, com voracidade. São presos ao encantamento do desconhecido. De qualquer forma, as mudanças propiciam mutações na visão de mundo, fecham, mas também abrem horizontes. Nada fica igual e, no mesmo movimento, modificam-se, sobretudo, as pessoas.
Reflexões de Tanus (2002) motivam problematizar: O que pensam as
professoras migrantes sobre Melgaço? Ali é um lugar de passagem para elas? Ou
lugar de uma longa parada, porque há três décadas aportaram nesse município?
Será um espaço somente de sobrevivência? Ou foram presas ao encantamento
do desconhecido? Que relações estabeleceram com o lugar? Esses
questionamentos foram respondidos pelas próprias comandantes no transcorrer
de suas narrativas.
Como já foi dito, Melgaço foi um “acidente de terreno” que, na década de
1980, Wilma, Dilma, Rosiete e Fátima vieram pela primeira vez plantar em si a
104
semente do Magistério. Jurema quando chegou já havia exercido a profissão e
veio para assumir a Secretaria de Educação.
Wilma, depois de experimentar o trabalho doméstico em várias casas de
família e concluir o 3º ano do curso de Magistério em Belém, migrou para Melgaço
com a finalidade de viver a docência. Ao puxar os fios da memória, narrou
lembranças significativas daquele tempo.
Vim embora para Melgaço, isso aconteceu em 1982. [...]. A população só estudava até a 4ª série primária, todos os professores vinham de Belém dar aula aqui, às vezes, tinha aquela que ficava quatro anos ou, então, conseguia construir sua família, casava com alguém e aqui ficava, ou voltava, ia embora para Belém, vinha um outro grupo, passava quatro anos, vinha outro grupo, ou passava dois anos, um ano, vinha outro grupo, os professores todos eram de fora (Professora Wilma – 2014).
Wilma continuou, acalmou seu tom de voz e falou, paulatinamente, como
se estivesse refletindo a respeito de sua expectativa em deixar a Capital do
Estado e construir residência em Melgaço. Os trabalhos da memória exigiam,
naquele momento, serenidade. Bosi faz-se esclarecedora quando comenta que “a
memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente
e penetrante, oculta e invasora” (BOSI, 2003, p. 36). Neste sentido, talvez como
uma invasora a sua caixinha de memórias, pus-me a ouvi-la atentamente.
A minha expectativa era de melhorar meu salário, ajudar mais a minha mãe, o meu filho que ficou para eu poder mandar as coisas para ele, dinheiro para ele (emocionada) e eu queria mais para a minha vida, eu não queria ficar só naquilo, mas no primeiro momento foi melhorar o meu salário, a minha condição de vida, eu queria dar uma vida melhor para meu filho, ajudar a minha mãe, era essa a minha expectativa. Eu queria também que me tratassem como professora, eu tinha um orgulho de ver chamarem “professora Wilma”, eu comecei a criar essa nova identidade, por onde eu passava diziam: “olha essa aqui é a professora Wilma” (Professora Wilma – 2014).
Concluído o curso de Magistério, a comandante aceitou o convite feito
pelo juiz e deslocou-se para assumir a profissão escolhida: “ser professora”. Para
ela não seria apenas uma aventura, mas o desejo de mudar de vida e se
estabilizar profissionalmente para ajudar a mãe e o filho. No percurso da viagem,
Wilma viveu muitas emoções e pediu-me permissão para relatar.
105
Posso relatar a minha viagem? Eu vim embora, peguei um barco que era enorme, quando chegamos na baía das Araras pregou, passamos uns três dias, quando conseguimos chegar em Melgaço depois de uns cinco dias, desci na baía, passei para um outro barco, então eu chorei, “o que eu vim fazer para cá?” Quando entrei na comunidade tão pequeninha que eu imaginava um Marajó brilhante, bonito que eu ouvia falar, eu me decepcionei no primeiro momento. No primeiro momento veio eu, a Dilma, a Graça e a Isabel, eu comecei a chorar e a Graça disse: “Wilma não fica triste, não volta, vamos enfrentar, eu fui levando, entrei na comunidade e fui pegando o gosto, descobri a minha verdadeira vocação que era ser professora (Professora Wilma – 2014).
“Eu me decepcionei no primeiro momento” com a viagem, com o lugar,
mas “fui descobrir a minha verdadeira vocação”. O tempo foi o senhor do destino,
pois fez Wilma se acostumar com a dinâmica de uma vida cotidiana no “Marajó
das Florestas”. O choro na chegada pode ter sido gerado por um misto de
sensações, seja pela insegurança de habitar em um lugar cuja representação a
priori se desfez, tanto por seu tamanho, quanto pelo difícil acesso da época, seja
pela alegria e esperança de ter uma vida profissional com perspectiva econômica.
O depoimento da professora migrante permite dialogar com Castoriadis
quando assinala que um acontecimento só é traumático porque é vivido como tal
pelo indivíduo (CASTORIADIS, 1982, p. 163). Assim, percebo como cada uma
delas sentiu e viveu a viagem, o que para Wilma se tornou um medo em virtude
do acontecimento com o barco e talvez por ser sua primeira experiência em
transporte típico da região marajoara; para Rosiete o estranho se traduziu em
emoção, prazer. O percurso e a paisagem foram elementos que lhe inspiraram
reflexões capazes de preencher lembranças vividas, amenizando as saudades no
presente.
Cheguei aqui no dia 11 de agosto de 1983, num período em que Portel estava em festa, não lembro no momento a santa que estavam festejando. E nessa viagem eu vim com a professora Graça Alves que já trabalhava no município, já conhecia Melgaço, chegando aqui a lancha foi nos buscar, já que nós tínhamos que descer no meio do rio, aqui no meio da baía. Mas essa viagem para cá, eu vou falar um pouquinho, ela foi gostosa, prazerosa, porque fiquei observando muito, senti saudades sim, do que eu deixei para traz, mas foi uma saudade que não deu para chorar, que não deu para se desesperar, porque eu achei a viagem maravilhosa, nunca havia andado de navio ou de barco, um barco de maior porte. Havia andado de canoa de pequeno porte, porque muitas viagens eu fazia para Belém antes de viver em Belém, eu
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vinha de canoa com meu pai, eu vim muitas vezes de canoa pesqueira com meu pai. Então eu já conhecia um pouquinho dessa experiência, mas de navio, de barco de maior porte não, foi muito interessante aquela grande quantidade de verde que ficava em cima do mar. Achei lindo e fiquei maravilhada, e também comecei a observar essas moradias, porque para lá para o meu lugar, Colares, especialmente Itajurá, eu praticamente não saía, só ia na cidade, e nas outras comunidades (Professora Rosiete – 2002).
Por essa perspectiva, é possível pensar a viagem das comandantes não
apenas por um percurso linear e programado a ser seguido, mas uma transição
cheia de improvisos e significações que ganham dinamicidade a partir do que é
vivido e imaginado por cada uma delas. Igualmente, os sentidos que as
impulsionaram a migrarem para Melgaço.
É possível dizer que na narração de Rosiete “o passado não só vem à
tona das águas presentes, misturando com as percepções imediatas, como
também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocupando o espaço todo da
consciência” (BOSI, 2003, p. 36).
Em 1983, início mais ou menos do ano, eu ainda estava trabalhando na Marmobrás, foi quando nos reencontramos, eu e Dilma, e mais uma vez lançou-me o convite para vir trabalhar em Melgaço. Nesse período, já estava exercendo o cargo de diretora da Escola Bertoldo Nunes e me falava das experiências daqui, das pessoas, dos passeios que elas faziam de barco, das amizades que tinham, do apoio da prefeitura. De todas as coisas que me falou fiquei encantada. Ela até brincou comigo: “Rosiete, vamos para lá, quem sabe tu não vais conhecer um fazendeiro também e tal”. Eu disse: É mesmo! E respondeu: Vais ver que tem muita fazenda e vais gostar muito! Eu disse: É verdade? Depois falou-me que aqui a prefeitura também cedia casa, dava uma ajuda de custo e tinha uma funcionária que fazia os trabalhos na residência dos professores (Professora Rosiete – 2002).
Os motivos que fizeram Rosiete migrar para Melgaço articulam-se ao
posicionamento de Demartini (2010) acerca do movimento de deslocar-se de um
lugar para o outro, ampliando, inclusive, perspectivas analíticas apontadas pela
autora. Se a migração não pode ser analisada como uma dinâmica forçada, a
única saída para a sobrevivência, mas como um projeto de vida, a realização de
um sonho, o desejo de desvelar o estranho e viver novas aventuras, na
experiência da comandante ele aparece como uma provocação para o casamento
com um fazendeiro marajoara, rico e poderoso.
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A necessidade de conseguir um emprego melhor, ganhar estabilidade
funcional e tornar-se uma profissional formada e reconhecida, entretanto, foi que
falou mais alto no sim de Rose ao recuperar em sua narração, as expectativas
com a nova profissão.
As expectativas foram tremendas, quando acordei estava na baía de Melgaço. O que me chamou muita atenção em minha chegada foi que a baía estava coberta de mururé, um vegetal típico da região em tempos de maré grande, mas também o que me aguardava [...]. Quanto à docência, a minha preocupação era se eu iria dar conta de ensinar os conteúdos propostos para a 4ª série. Como seriam esses jovens? Como eu iria me relacionar com eles? Eles iriam me obedecer? Pois a ideia de ser professora era ter uma boa idade, apesar de ter 25 anos eu aparentava ser bem jovem. Outra coisa que me preocupava era se os alunos perceberiam se eu estava segura daquilo que explicava. Então, o professor ainda estava impregnado de comportamentos autoritários, que o aluno lhe devia obediência, de uma relação distante – era o chamado manejo de classe – fazer o aluno ficar no seu lugar. Além de que eu estava me sentido muito importante, professora aqui era muito respeitada pela comunidade e chamava muita atenção, principalmente por ser de outro lugar (Professora Rosiete – 2014).
As preocupações de Rosiete, acerca das representações que moradores
e alunos de Melgaço teriam sobre sua pessoa, revelam que buscar um novo lugar
para morar e um novo trabalho é ir “em busca de si mesmo”. A conquistar da
estabilidade profissional mostra-se, então, como um encontrar-se consigo na vida
e na profissão.
Analiso que as interrogações feitas pela professora migrante, de acordo
com Teixeira (2002, p. 12-13), “procura compreender como o migrante representa
a sua realidade e como recompõe a identidade abalada a cada mudança, já que
ele anda com a raiz na mão”. Portanto, esses questionamentos significam um
olhar no presente sobre a sua aceitação e permanência no município.
Dilma, assim como Wilma, Rosiete e Jurema, também já trabalhava
quando se deslocou para Melgaço. Diferente de sua prima, Dilma instaura os
sentidos do deslocamento como desígnios do destino, a inquietações de ordem
transcendental ou a uma espécie de chamado porque ali encontraria um grande
amor com quem viveria os momentos mais especiais de sua vida, mesmo sem
desconsiderar o aspecto financeiro. Dilma narrou e interpretou sentidos da
experiência migratória com sorriso no rosto.
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Quando ela mostrou o contracheque dela que eu vi, eu me admirei e perguntei: “você é de Melgaço?” E ela disse: “sim” e ela contou a história dela. Era uma professora que já estava com três anos no município, mas que estava pedindo transferência para Belém, porque a família dela era da capital. Outros professores também, na faixa de quatro ou cinco anos que moravam em Melgaço, estavam vindo transferido e ela, inclusive, me falou que nesse período a escola iria ficar sem professor, ainda falou das condições que Melgaço oferecia. Eram condições que no momento me chamaram a atenção, despertaram o meu interesse. Então, parece assim que [...], não sei, na hora deu um click, eu gostei da proposta. Ela falando para mim, eu gostei. Ela disse: “você é professora?” Eu disse: “sou, mas não sigo a profissão [...]” (Professora Dilma – 2014).
Foi num dia de trabalho, em um encontro casual onde tudo aconteceu.
Dilma, ao preencher o castrado da cliente, descobriu que era professora em
Melgaço, ficou surpresa, porque em sua adolescência havia conhecido o
município, na época que morava com o casal, amigos dos avós. As histórias
contadas por ela despertaram na comandante o desejo de retornar àquele lugar,
como relatou: foi uma espécie de click, não tinha explicação.
Dilma mostrou-se interessada, o apoio da prefeitura era tentador e a
possibilidade de ter um emprego pelo Estado foi irresistível. Por intermediação da
professora que a convidou, ela entrou em contato com o prefeito e “com um mês
estava chegando em minhas mãos já a passagem e a portaria do Estado, tudo
para que eu viajasse para Melgaço, foi isso que aconteceu”. A atitude de Dilma
causou espanto em sua família, pois, não acreditava que iria largar o emprego,
deixar Belém e ir morar no Marajó. Mas era uma experiência que ela queria viver
e com alegria no olhar me disse:
Olha Ilca, eu acho que é o destino (risos). Não sei por que motivo, foi uma questão de desafio, de querer voltar também, de querer voltar lá, eu não sei, alguma coisa me dizia que eu teria que voltar, talvez porque eu já conhecida, foi um lugar também acolhedor e era pequenininho na época, bem pequenininho e foi minha vontade, despertou o interesse, financeiramente também, só o fato de ser colocado, por exemplo, você vai para um lugar trabalhar, vai ter uma casa para morar, vai ter uma pessoa para fazer a sua alimentação, irá para viver apenas para trabalhar no seu serviço. Então, você tem outras pessoas, vai morar em comunidade, vai conviver com outras pessoas, eu acredito que as coisas foram se encaixando, e também o destino, porque eu saí quarta-feira de Belém e cheguei numa quinta-feira em Melgaço, na sexta-feira eu conheci o meu futuro esposo é, impressionante, sexta-feira a gente se conheceu, no sábado a gente começou a
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namorar e com ele vivi mais de 30 anos (Professora Dilma – 2014).
Lembro-me dos relatos cheios de detalhes que a comandante fez do seu
encontro com Melgaço e com o futuro esposo. Parecia pintar um retrato da
realidade vivida, recompondo paisagens, personagens e significações. Nesse
quadro, sintonizo-me a Maluf (1995, p. 70), quando reflete que “ao relembrar, o
indivíduo memorizador constrói paisagens e imagens que são verdadeiros
campos de significado para o lembrado. A memória não pode ser entendida,
então, como revelação”, mas como uma interpretação de lembranças.
Já Jurema foi uma professora migrante que, diferente das demais
professoras migrantes, já havia vivenciado a experiência docente antes de fazer o
deslocamento para Melgaço, assim como também não veio para exercer as
atividades docentes, mas para assumir cargo de confiança na gestão municipal.
Na socialização de sua história de vida, Jurema expressou as motivações
que a fizeram deixar seu município e migrar para o município vizinho.
O meu padrinho Hermógenes ganhou para prefeito em Melgaço. O que me levou mais foi pensar no meu salário, eu penso que se eu não tivesse uma proposta boa eu teria ficado em Breves e ia lutar por uma vaga, mas como eu tive uma proposta maior, eu ganhava seis mil cruzeiros velhos e passei a ganhar quarenta e cinco mil cruzeiros velhos. O meu salário me elevou e eu, nessa época, visava muito status social, de professora municipal eu ia ser secretária municipal de educação. Haviam me explicado que lá a secretária viajava muito pelo interior, fazia supervisão nas escolas, e isso era uma coisa que eu tinha muito sonho de fazer, e se realizou. Eu via aquela professora Nazaré Oliveira, quando ela fazia supervisão na escola que eu trabalhava, chegava lá, queria o ponto que a gente assinava, eu via aquele trabalho e eu ficava com inveja, eu tinha vontade de fazer esse trabalho, e incrível como as coisas foram se encaminhando, veio a proposta e eu fui para Melgaço. Eu penso que foi o salário que me incentivou muito mais a ir para Melgaço, porque eu pensava nas condições de vida do meu pai e da minha família (Professora Jurema – 2014).
O convite do padrinho de Jurema para assumir no município um cargo de
confiança, aumentou-lhe o desejo em galgar degraus mais alto da profissão, por
exemplo, ser chefa, ter status social e ganhar um bom salário. Assim, na
eminência de rescindir o contrato por Breves, arrumou as malas e embarcou com
toda a família para fazer residência em Melgaço. Consigo caminhava a certeza de
melhorar as condições de vida dos pais e dos irmãos, por naquele momento
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estava vivendo uma crise financeira por causa do tratamento de saúde de um de
seus irmãos. Nesse viés de compreensão, Nobre (2009, p. 34) é esclarecedora:
“O trabalho confere ao professor um determinado status, proveniente dos direitos
e obrigações que lhe são socialmente impostos, tanto dentro da organização
social, e que se fundem profundamente na constituição de sua identidade”.
No tocante aos diálogos com as professoras migrantes, percebi que
Fátima foi a única a migrar para Melgaço sem nenhuma expectativa ou indicativo
para o exercício da docência ou qualquer outra atividade ligada ao Magistério. A
migração lhe trouxe para exercer a profissão de babá. O convite foi feito por uma
amiga enfermeira que era de Belém, mas prestava serviço no município, estava
grávida, assim como Fátima e, conhecendo as dificuldades que ela estava
vivendo para conseguir emprego, fez-lhe a proposta. Com um sorriso meio tímido,
a comandante desvelou suas memórias:
Na verdade, quando eu vim com ela eu não tinha muitas expectativas, até porque eu não conhecia Melgaço, eu pensava que eu iria passar um tempo depois voltava para Belém. Eu não conhecia Melgaço. Quando ela me convidou para vim para cá eu vim só para cuidar da filha dela e da minha, eu não pensava em ficar aqui, eu não pensava em ser professora aqui, eu só pensava em cuidar da filha dela e da minha até crescer e eu não sei. Eu não pensava muito o que iria acontecer depois, e foi acontecendo ao acaso na minha vida. A Dilma me viu, eu não sei como souberam que eu tinha o Magistério, eu acho que foi a Irene que falou para alguém, daí a Dilma pegou o meu documento e levou, não foi planejado de dizer eu vou lá, eu nem sabia que precisavam de professor, como era a situação aqui em Melgaço, isso aconteceu mesmo por acaso (Professora Fátima – 2014).
Migrar para Melgaço foi questão de necessidade financeira, para a
comandante, pois esperava um bebê e sem perspectiva de trabalho na capital,
precisou tomar outas atitudes para ter condições de oferecer o mínimo de conforto
a sua filha que chegava. O contrato de professora pelo Estado foi a realização de
um sonho e a oportunidade de escrever uma nova história de vida.
Na escuta atenta das histórias de vida de cada professora migrante,
visualizo tratar-se de uma teia de histórias distintas e relacionais. A migração para
Melgaço numa visão ampla, surge pela busca do trabalho, mas nos detalhes das
falas outros fatores motivadores para a travessia emergem. Por esses meandros,
vale ter em vista que “a história de cada um é um mergulho que, impulsionado
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pela superfície social, vai em busca das profundezas, do labirinto imaginário.
Labirinto que, simbolicamente, conduz à Terra Prometida, pois não é outro o mito
que move o migrante” (TEIXEIRA, 2002, p. 14).
Melgaço foi a “Terra Prometida” para as professoras migrantes
alinhavarem suas histórias com a educação. Ali, elas se encontraram e viveram
intensamente uma multifacetada relação. Nos enredos da memória, Wilma
expressou:
A turma que veio comigo realmente abraçou Melgaço. Só foi embora a Graça e a Isabel, o resto ficou aqui, às vezes, eu fico conversando com a Rose, “Rose, eu acho que a gente nunca vai embora daqui”. Um dia desse ela estava com uma conversa que ela ia fazer um concurso para Cametá e se ela passasse ela ia embora, eu disse: “tu vais nada” (risos) (Professora Wilma – 2014).
Diante de muitas situações vividas e sentidas, projetos traçados e nem
sempre realizados na “rocha-mãe” foram vieses propulsores que fizeram as
professoras migrantes embarcarem com o desejo de realizá-los em terra
estrangeira. Mesmo chegando em diferentes momentos, o encontro entre as
comandantes aconteceu na casa, que ficou conhecida como a casa dos
professores, espaço de sociabilidade, tensões e negociações. Com exceção de
Jurema que não compartilhou essa experiência, por ter migrado com a família,
alugou residência particular, todas as outras teceram a parte inicial de sua
trajetória em Melgaço nesse habitat. A esse respeito, Wilma contou:
Nós morávamos todas só em uma casa, dividíamos tudo tanto profissionalmente quanto a parte sentimental a gente era companheira realmente, se uma estava passando por dificuldade todas nós ajudávamos. A relação social de todas nós era de amizade, porque todas nós estávamos fora da nossa família, era de você se comprometer com a causa da outra, de ter a coragem de falar, mas ao mesmo momento pedir desculpa e não ficar remoendo coisas ruins. A minha relação social com as colegas era boa, quando eu morei na casa, praticamente mais de oito ou nove professoras. Cada uma tem um modo de pensar, mas eu fui uma pessoa que sempre prestei a atenção e respeitei os outros, isso eu tenho, essa facilidade de abertura, de diálogo e de respeito pelo outro. Então, a relação social que eu desenvolvi com essas pessoas que trabalharam nesse tempo foi de irmã, de companheirismo (Professora Wilma – 2002).
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Na interpretação da comandante morar na casa, dividir o mesmo espaço
lhe serviu de aprendizagem para viver em comunidade. Saber compartilhar o
material e o sentimental, saber dialogar e escutar foram atitudes fundamentais
para manter um ambiente mais familiar, pois todas estavam na mesma condição
de estrangeira e a casa foi a possibilidade de construir uma nova família.
Sobre a partilha do mesmo espaço de moradia entre os imigrantes, Sayad
(1998, p. 90) pronuncia-se:
Dividir o mesmo espaço, a mesma moradia e, por conseguinte e de forma mais ampla, as mesmas condições de vida, acaba sendo uma forma de perpetuar, a existência dos imigrantes, um modo de ser (imigrante) característico de um certo estado da imigração, ou seja, uma certa representação que os imigrantes têm solidariamente de si mesmos.
Esse tipo de relação estabelecida na casa dos professores, pela ótica de
Wilma, também dialoga com o posicionamento de Tanus (2002) por considerar
que o migrante busca constantemente na terra não-familiar recriar uma nova
relação com as pessoas como estratégias de substituir “os elos perdidos do
afeto”, tornar o encontro menos resistente e mais afetuoso.
A professora migrante prosseguiu a rememoração dos tempos de
convivência na casa dos professores ao assinalar:
Aqui eu vivi muitos momentos felizes, dentro dessa casa. O meu crescimento educacional e cultural aconteceu aqui, quando eu morava, por exemplo, eu fiz Estudos Adicionais, passei no vestibular morando dentro dessa casa, engravidei da minha filha Viviana, que me acompanhou no período todinho da Universidade, convivi com muitas colegas que tenho saudade, como a Luíza, a Lúcia, a Graça que foi embora, a Edina, muitas pessoas que deram um trabalho significativo para Melgaço, foram embora, foram em busca de outros horizontes (Professora Wilma – 2002).
Para Wilma, a moradia compartilhada contribuiu além da relação de
amizade para o seu desenvolvimento profissional, cultural, social e afetivo.
Comungar dessa experiência, levou Dilma a considerar que a principal
contribuição foi dividir com as colegas as dificuldades do ofício e juntas buscarem
superação através da troca de experiências. Relembrou, por exemplo, que na
época não havia no município profissionais de equipe pedagógica nas escolas e a
113
prática do planejamento coletivo acabava acontecendo na residência. Dilma
enfatizou:
Na casa dos professores nós nos reuníamos para discutir o que estava acontecendo, como trabalhar, como fazer, e mesmo nós não tendo aquela ajuda que se tem hoje dos profissionais da educação, nós procurávamos trabalhar em conjunto, sempre passando de uma para outra. Essa ajuda foi muito importante para que os desafios fossem realmente superados, mas não foi fácil iniciar uma carreira sem experiência nenhuma com a sala de aula onde você encontra várias diversidades para trabalhar (Professora Dilma – 2014).
Emerge do depoimento da comandante a intensa troca de experiências
vividas por cada professora migrante em sua sala de aula. A residência assume
também a função social de ser o território da partilha, da reflexão e das novas
expectativas a serem enfrentadas na prática docente. Nesse sentido, Sayad
(1998) esclarece que a questão da moradia como “habitação-alojamento” do
migrante reforça o sentimento de solidariedade e de proximidade social. Rosiete,
integrante da casa dos professores, socializou muitas histórias vividas com as
companheiras.
Nessa residência moravam médicos, enfermeiros, professores, dentistas, todos viviam nesta casa. Eu já tinha também um pouco dessa experiência de morar com colegas e já estava com os meus 25 anos, pelo menos eu já estava vivendo essa experiência de dividir aluguel com algumas companheiras. E eu sempre fui uma pessoa muito calma, eu ouvia muito as pessoas, acabava nunca revidando o que elas me diziam, sempre ficava ouvindo, não discutia. Na maioria das vezes, quando alguma coisa me ofendia, na verdade, eu acabava chorando e não me defendia (Professora Rosiete – 2002).
Nas rememorações da comandante vem à tona outros tempos de
experiências de viver em moradia compartilhada. Tais tempos contribuíram para
ela saber compreender determinadas situações conturbadas, todavia percebeu
que as resoluções encontradas eram a omissão, o silêncio, o choro, tornando-se
uma pessoa passiva na relação. Relembrou que não eram apenas as professoras
as residentes da casa, outros profissionais também dividiam o espaço, portanto,
era uma casa de migrantes.
A professora migrante registrou os momentos de sociabilidades entre os
moradores da casa:
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Nós conversávamos de tudo aqui: em namorados, das paqueras, dos alunos, do meu aluno que aprendeu mais, um aluno que está voltando, nós falávamos das dificuldades, da direção, do prefeito, principalmente, que era o senhor Hermógenes, ele nos chamava muito a atenção, ele era muito brincalhão, às vezes ele chegava na porta da residência, e tinha que nos dizer uma piada, ele ficava horas, minutos conversando conosco. Então, de tudo nós falávamos (Professora Rosiete – 2002).
Na análise das narrações, a casa é compreendida como território de
encontro para avaliar, planejar tanto as atividades docentes como as ações da
gestão escolar e municipal, socializar os romances, o lazer e desenvolver
brincadeiras de entretenimento. Nesta relação, não é apaziguado as questões
conflituosas. Sobre isso Rosiete comentou:
Aqui em Melgaço existia uma competição digamos, quem chegou primeiro sempre tinha prioridade de quem chegou depois, era parecido calouro, sofria algumas penalidades, algumas punições para aprender para poder ir se adaptando e isso aconteceu comigo, algumas colegas que já estavam mais tempo se achavam donas do espaço A, do espaço B e eu sempre fazendo concessões, achando que elas tinham razões. Mas o meu trabalho, minha experiência de professora, leitura e o convívio fez eu aprender que você tem que ceder as coisas, mas tem que olhar que você também tem direito, e eu fui aprendendo a conviver com isso, aprendendo a falar. Eu sempre fui uma pessoa muito tímida, uma pessoa que ouvia muito, chorava, ficava me lamentando e fui vendo que não podia viver desse jeito. Isso foi fazendo eu ir aprendendo a viver, conviver e fazer as pessoas também me respeitarem. Eu fui me impondo em muitas questões, fui vendo esse relacionamento, eu não devia me comportar como eu me comportava em Belém, não que eu fosse assanhada, não é nesse sentido, mas tudo para mim eu achava que era fácil, que podia ser desse jeito, de chegar, conversar e comentar algo, hum! eu fui ver que não era bem assim, que eu não poderia estar envolvida em fofocas, em confusões, eu fui me policiando. Eu tinha um bom relacionamento com as professoras, não me lembro que tenha ficado de mal com alguma, não me lembro que tenha brigado, pelo contrário, nós vivíamos realmente num grupo, num coletivo trabalhando em prol da comunidade (Professora Rosiete – 2002).
Quando a comandante falou da competição entre as moradoras da casa
pelo espaço A e B, aquela que chegou primeiro e aquela que chegou depois,
pode ser compreendido a partir de Campos (2011) por considerar o espaço
geográfico e de sociabilidade como espaço de fronteira humana, e aqui enfatizo
como fronteira de relação. A demarcação da residência, significa, nesse enredo,
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fronteira de resistência por atitudes de preconceito, discriminação, rejeição e,
como bem disse a Rosiete, pelas penalidades.
A professora migrante buscou conciliar os contrários por meio do trabalho,
da experiência e da leitura do contexto com a finalidade de também exigir o
reconhecimento de seus direitos de moradora: “eu fui aprendendo que você tem
que ceder as coisas, mas tem que olhar que você tem direito. E eu fui aprendendo
a conviver com isso e aprendendo a falar”.
A convivência entre as professoras migrantes tece uma rede social por
meio de diferentes atitudes que ultrapassam a solidariedade e alcançam
experiências de relações ambíguas, tensas e de exploração dos próprios
conterrâneos entre si, podendo produzir “divisão e conflito étnico” (ASSIS, 2007,
p. 752-753). No depoimento de Rosiete ficou evidente a questão da rejeição inicial
entre o grupo de professoras migrantes na luta pelo melhor espaço na casa.
Nesse percurso de convivência entre as professoras migrantes, no
contexto da moradia, as memórias de Fátima ampliam visões. Sendo a última das
quatros a fazer residência na casa dos professores, ela interpretou como
aconteceu o processo de transição com a expressão facial e o tom de voz ora
cabisbaixa, ora sorridente, como querendo dizer “sofri, mas venci”.
Eu trabalhava com 100 horas. Naquele tempo quem trabalhava como serviço prestado passava de 3 a 4 meses para receber, era muita dificuldade. Eu tinha a minha filha para criar, eu morei um tempo na casa da Naza do Herculano, a Cris ficava jogada por lá. Naquele tempo ela começou a ir para a pré-escola. Era muito difícil eu trabalhar e cuidar dela, eu não tinha como pagar alguém para cuidar dela, então eu levei a Cris para a casa da minha mãe para ficar lá até melhorar a situação, porque eu não recebia, ela tinha 1 ano e pouco, só que ela adoeceu quase morre para lá, eu tive que ir buscar, só que nesse período eu fui morar na casa dos professores, lá na frente. Ali tinha a Célia Rosa, a Sebastiana, o Luiz, que também era professor, a Luiza, a Graçona, moravam todos lá, mas lá eu não podia morar porque eu tinha criança, então foi uma regra que foi quebrada porque a Cris andava atrás de todo mundo por lá, a Graça cuidou dela um tempão, levava para o pré. A Cris ficava o dia todo na pré-escola e eu trabalhava (Professora Fátima – 2014).
“Sentir o pertencimento é mais do que um desejo é uma necessidade
para aqueles que se deslocam” (NOBRE, 2009, p.115). Morar na casa dos
professores para Fátima foi sentir-se pertencente àquela comunidade e acolhida
116
pelo grupo. Antes disso, era uma migrante sem teto, morou com Irene, depois
com Naza, tinha um destino incerto e duvidoso. A migração era o seu endereço, a
sua permanência.
Para compor o grupo foi preciso fazer conciliação, tinha uma filha e na
casa não podia morar criança. Com o apoio de umas e a resistência de outras o
jogo de articulação foi feito entre o individual e o coletivo, a instabilidade e a
estabilidade, a mudança e a permanência. Nessa partida, a regra foi quebrada
para melhorar a situação estrutural de Fátima no município.
Ao fazer parte do grupo, a comandante narrou como foi estabelecido o
convívio:
Olha era muito boa a minha relação com as professoras, quando eu comecei a conhecer as meninas, a Luiza a gente saía bastante, conversava, no caso teve algumas que ficaram mais tempo, a Luiza, a Graça. A Graça, meu Deus, me ajudava muito! Ela cuidava da minha filha, ficava com ela, a própria Célia Rosa, ela era a mais rabugenta (risos), não gostava de criança, mas a Cris, às vezes, andava atrás dela. A gente vivia naquela casa lá, eu não podia sair eu tinha que trabalhar e cuidar da Cris, tinha que acontecer isso, e outros professores não ficavam muito tempo, não permaneciam. A Dilma, quando eu vim para cá, já tinha a casa dela, foi boa a relação. De quem eu fui amiga mesma foi da Rose e da Wilma, tanto é que hoje a Rose para mim é como se fosse uma irmã que eu não tive, a maior relação disso tudo é a Rose, a Dilma também, hoje a gente é muito mais próxima, mas mais é a Rose. A Wilma também casou, mas depois, a gente fazia trabalhos juntas, estudava, às vezes ela ajudava até financeiramente mesmo, mas a Rose para mim, tudo que eu precisar, até dinheiro se eu estiver aperreada ela diz: “Fátima, eu te ajudo”; às vezes ela fica até com raiva porque algumas coisas eu não falo e ela diz: “Fátima, tu não sabes, eu te ajudo”. E de tudo isso ficou. Depois eu conheci o Ivan, fui morar com ele, a Rose também casou com o Mauro e todo mundo casou, a casa lá acabou (Professora Fátima – 2014).
Ter um endereço e estar com o grupo eram o apoio que Fátima precisava
para se estabelecer na terra hospedeira. Ela relembrou com muita emoção a
ajuda incondicional de algumas companheiras no cuidado com a filha, e também
do forte laço de amizade construído com algumas delas que considera como irmã,
“de tudo isso ficou” a amizade, a confiança, o respeito. As comandantes formaram
famílias, construíram as próprias moradias, a casa dos professores passou a
funcionar como órgão da prefeitura e as professoras migrantes assumiram
identidade melgacense, espalharam em rizomas e fizeram-se moradoras do lugar.
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Imagem nº 16: Divisão de Atendimento Escolar, antiga Residência dos Professores.
Fonte: Arquivo da Pesquisa – setembro de 2015.
Sayad (2000, p. 11) “afirma que o imigrante [...] só deixa de sê-lo quando
não é assim denominado e, consequentemente, quando ele próprio assim não
mais se denomina, não mais se percebe como tal”. Segundo Demartini a ideia de
ser migrante está para além do “deslocamento” ou de “trânsito” para relembrar
Sayad. Para esse segundo autor, ser migrante é um estado de aceitação ou
negação. Faz parte da subjetividade, da forma como cada um se denomina.
2.5. (Des)encontros e Sociabilidades
Eu percebia que a maioria das pessoas da comunidade recepcionavam as professoras muito bem, eu me sentia extremamente importante ao chegar aqui, coisa que nunca tinha acontecido na minha vida. A professora era muito respeitada, era vista como uma pessoa muito íntegra, tinha que ter um comportamento exemplar, não podia sair do trilho, professora era realmente vista como gente importante nesta comunidade. Quando eu cheguei, observei todas essas situações, o respeito dos pais, a confiança que tinham no nosso trabalho, eles depositavam os seus filhos nas nossas mãos, nós erámos as responsáveis pelos seus filhos (Professora Rosiete – 2014). Para pertencer a grupos é preciso sofrer diferentes processos. [...]. O migrante se equilibra sobre o fio da navalha. Fechando-se será para sempre estrangeiro. Abrindo-se, incorpora-se as tribos e poderá tornar-se, de certa forma, “poderoso”, ser uma força na
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comunidade, estabelecer alianças com pessoas da região, nativos da cidade (TANUS, 2002, p. 81).
Estranhamento, diferença, medo, desafio, aceitação, negação são
sentimentos e reações que podem ser vividas por aqueles que chegam. É
preciso, no entanto, considerar os que estão ali, o que pensam e sentem desses
que chegam? Como encaram a nova realidade? Abrem-se para o diálogo ou
fecham-se em seus grupos de pertença? A migração não pode ser explicada
somente como a saída da “rocha-mãe”, para além da troca de lugar, ela é
carregada de significados, de simbologias na dupla relação que se estabelece
migrante e morador do lugar. Se junto do migrante vem suas trajetórias de vida,
expressas no modo de ser e estar no mundo, o morador também se fez a partir de
outros códigos culturais. A relação produz, então, um território intersticial de
muitas faces e sentidos.
Por essa compreensão, as chegadas das professoras migrantes em
Melgaço foram marcadas por (des)encontros, confrontos e trocas de experiências
culturais, de concepções e de posições sociais. Rosiete em suas lembranças
sobre a chegada e a recepção da comunidade, exemplifica o posicionamento de
Tanus (2002), por trazer duas experiências vividas na chegada: o reconhecimento
pelo status social da profissão e a rejeição dos moradores por não aceitarem as
formas de sociabilidades adotadas.
Na ótica de Demartini (2010, p. 72) o preconceito faz-se presente entre os
que chegam e os que estão, vive-se uma reciprocidade de atitudes e
posicionamentos.
[...] os preconceitos são construídos e existem tanto por parte dos grupos que compõem a sociedade receptora, como dos imigrantes com relação a estes; – os preconceitos/discriminações contra imigrantes não parecem atingir igualmente todos de um mesmo grupo/origem; parecem ser elementos diferenciadores: o capital econômico, o capital educacional e cultural, as redes de apoio, os laços estabelecidos com as elites locais, as relações mantidas com os países de origem entre outros aspectos.
Ao observar a compreensão da autora sobre preconceitos/discriminações,
não considero, nesse ato, a existência de vítima nem vilã, ambos são sujeitos da
mesma história. A diferença emerge nas práticas daquele que chega por estar
119
fora do seu espaço, mas de acordo com seu “capital” a relação será de
resistência ou de aceitação.
Prefiro falar de choque cultural e de estranhamento estabelecidos nas
relações. Evito fazer uso dos termos preconceito e descriminação. Isso não deixa
de considerar que os migrantes “para pertencerem a grupos é preciso sofrer
diferentes processos [...] se equilibra sobre o fio da navalha”, ter “comportamento
exemplar, não podia sair do trilho”.
Demartini (2010) defende a ideia de que os migrantes são recepcionados
de acordo com o “capital” representativo pela sociedade que os recebem. A
aceitação e as relações estabelecidas são diferenciadas, conforme se visualiza
nas narrativas das professoras migrantes em torno da acolhida e do controle.
O professor aqui em Melgaço era visto como aquela pessoa muito importante dentro da comunidade, era muito visado, olhado, tudo dele era observado, o seu próprio comportamento. Você era uma pessoa de extrema importância, não só pela comunidade, como pelos alunos, como até pelo próprio poder político, o poder municipal, eles davam muita importância, existia, eu pensava, um certo respeito por esse profissional no município. Vários alunos aqui estavam muito felizes, porque eles tinham uma professora nova, uma professora que chegou no município, era um momento de felicidade para eles. “Ah, minha professora veio de Belém, ela é nova, não é mais as professoras que estão aqui, nós vamos estudar com outra professora e tal”. E eu cheguei me apresentei, falei sim que não era professora, que não tinha experiência, mais que eu estava ali para contribuir com eles, para ajudá-los (Professora Rosiete – 2014).
Na visão de Rosiete, a recepção da comunidade e da gestão municipal foi
de extrema importância para situar-se no contexto social local e sentir-se mais
segura na profissão que estava iniciando. De acordo com sua fala, compreendo
que o diploma não importava para os pais e alunos, mas a identidade profissional
e social que ela demonstrava. Ser professora e ter vindo de Belém, na ótica da
comunidade, assegurava confiança e respeito.
Ciente de seu papel, Rosiete sempre procurou expressar aos pais o
compromisso com o trabalho. Isso acabou por alcançar a esfera privada dos
sentimentos, criando laços fraternais. Ela lembrou que não existia água na
torneira das casas, então tomava banho na casa de uma senhora que tinha poço,
a qual lhe tratava com muito carinho. “Íamos na casa de uma vizinha, ela me dava
café, ela mandava eu esperar que ela ia puxar água, porque eu não conseguia
120
acertar. Na minha comunidade nós não precisávamos disso, era no rio tirando
água normal”.
Determinadas práticas culturais do lugar não faziam parte do metier de
Wilma, Dilma, Rosiete e Fátima, principalmente, por viverem a vários anos na
capital do Estado. Puxar água de poço, por exemplo, não estava na dinâmica de
seu cotidiano, apesar de parecer uma prática simples, requeria habilidade na
jogada do balde e concentração mental. Quem detinha esse saber, tratava a
questão de modo prático, mas para a comandante estava diante de uma nova e
difícil aprendizagem.
As expressões de carinho, cuidado e respeito que algumas pessoas da
comunidade demonstravam a Rose, enobrecia sua pessoa, isso “nunca havia
acontecido em sua vida”. A força dos laços traçados fez com que, as amizades
construídas com algumas famílias ainda permaneçam nos dias atuais.
Eu sempre vou ali para a Iracema, durmo por lá, almoço com eles, a família da dona Pia, até esqueci de citar, foi uma das famílias que me acolheu, olha a Maria Castor, o seu Pacheco eram pessoas que me tratavam como uma filha, sempre tivemos uma boa relação, eram duas famílias que quando cheguei aqui sempre me aproximei. A Maria Castor, ela tem muitas histórias para contar, e a família da Iracema, da Jurema, a gente conseguiu se chegar, sempre estávamos juntas, me recebiam muito bem, nooossa! Quando chegava lá, era uma importância chegar na casa deles e, até hoje, a gente tem essa proximidade (Professora Rosiete – 2014).
As relações de amizade da professora migrante com algumas famílias
alcançaram a esfera íntima, permitindo com que compartilhasse com elas
situações tanto do trabalho como da vida privada. Contudo, vale destacar, que a
comunidade tinha uma concepção clássica de professora, principalmente,
referente ao comportamento. Isso ficou visível em sua fala, quando narrou que o
professor “era muito visado, era muito olhado, tudo dele era observado”, e quando
elas não seguiam os perfis tido como “aceitáveis”, eram avaliadas pelo olhar.
Dilma também compartilhou das concepções de Rosiete, referente à
recepção da comunidade
A cidade era tão pequena, tão humilde, as pessoas tratavam a gente como se nós fossemos, sei lá, um artista que vai chegar, uma coisa assim muito diferente, aquele amor acolhedor, aquela coisa, vem um para cá conversar com você, um mandava açaí,
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um mandava camarão, trazia peixe, um amor maravilhoso. Eu acho que era porque era tão pequenininho ali, todo mundo se conhecia, então, só o fato de ver aquele entusiasmo das pessoas, aquele carinho, isso também me cativou muito. [...] professora que vai de Belém, nooossa! Parece que vai fazer milagres! Os pais queriam que nós, as professoras de fora, ficassem com os filhos deles, tanto é que os de lá tinham sempre essa polêmica, como se santo de casa não fisse milagre (Professora Dilma – 2014).
Dilma leu a acolhida das professoras migrantes pela comunidade na
perspectiva do lugar, “a cidade era tão pequena, tão humilde”, requisito para fazer
uma boa recepção, talvez se fosse uma cidade grande, de poder econômico
elevado, as comandantes, na sua compreensão, não teriam a mesma acolhida.
Elas recebiam presentes, companhias para contar e ouvir as narrativas do
lugar e das professoras migrantes. Essas expressões da comunidade cativaram e
motivaram Dilma a estabelecer uma relação recíproca, isso foi possível pelas vias
do trabalho docente e da participação nos movimentos e eventos organizados
pela sociedade civil e governamental.
No enredo da acolhida das professoras migrantes pela comunidade
melgacense, Fátima posicionou-se:
Olha, como eu não vim para ser professora, mas tinha as outras professoras, eu vejo que eles aceitavam muito bem, até porque não tinha essas pessoas aqui, tanto é que eles falavam: “olha chegou a professora tal, fulano de tal” e aceitavam muito bem, o que não acontece muito hoje (risos), como já tem muito professor, tem a concorrência, então naquele período dava-se graças à Deus quando chegava um professor novo para trabalhar na escola, porque havia esta falta. Eu me lembro que eu fui muito bem recebida, muito bem acolhida, as pessoas já tinham me visto antes de ser professora, me chamavam de irmã da Irene; “olha tu és irmã da Irene”. Eu estava grávida mais minha barriga não aparecia muito, depois comecei os trabalhos, eu penso que é a minha própria maneira de ser, de viver, eu acho que hoje as pessoas me respeitam bastante, as coisas vão acontecendo (Professora Fátima – 2014).
A professora migrante ao ser incentivada a falar da recepção dada pela
comunidade, no primeiro momento, não se colocou como tal, trouxe
rememorações referente à chegada das colegas e só depois adentrou sua
experiência quando assumiu a docência no município e seu bom relacionamento
com a comunidade. Para ela, a aceitação é explicada pelo tempo, pela carência
deste profissional na década de 1980.
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O depoimento traçou ainda um paralelo entre a recepção das
comandantes que chegaram na década de 1980 e os professores que chegam a
partir dos últimos anos. A carência de profissionais para o exercício do Magistério
em tempos passados fazia a comunidade local recepcioná-lo com carinho,
respeito e admiração. Atualmente, como a profissão professor tornou-se um cargo
de competição entre os de dentro, que ainda não estão empregados, e os de fora,
que chegam para trabalhar na docência, os olhares do local modificaram-se.
Ao compartilhar a concepção de uma relação baseada em clima de
amizade e confiança, Jurema, em um dos relatos, trouxe a experiência que viveu
quando chegou no município.
O ser professora, na década de 1980, em Melgaço, era realmente um status social elevado, uma profissão de valor, porque todos os cursos que iam para Melgaço, as demandas sociais que solicitavam eram as questões sociais mais ampliadas. O que é que pediam ao prefeito? “Nós precisamos do levantamento dos professores que tenham o Magistério para fazer tal curso”. Isso nos engrandecia, a gente se sentia valorizada, respeitada, porque nós também íamos para Belém fazer cursos. Eu cheguei a fazer várias formações de pré-escola, também fiz um curso de Adicionais em Letras, eu e todas as colegas, depois fizemos outros cursos de alfabetização de 1ª e 2ª séries (Professora Jurema – 2014).
A comandante ao relembrar a recepção da comunidade com as
professoras migrantes, privilegiou os aspectos da gestão pública, mais
especificamente procurando mostrar o incentivo recebido acerca da formação
continuada por parte do governo estadual. A respeito do apoio à formação na
década de 1980, as demais colegas também partilharam da mesma opinião de
Jurema. Elas participavam de programas e encontros de formação realizados em
Breves e Belém, com a logística custeada pela prefeitura de Melgaço.
Outra questão de referência na narrativa de Jurema, vista como se fosse
um prêmio pelo reconhecimento da profissão, foi o fato de, na época, serem
procuradas pela equipe gestora do município para ajudarem nas organizações
das programações da prefeitura, como: datas comemorativas, eventos cívicos,
acolhida de políticos na cidade, festivais, entre outras.
Na perspectiva de Jurema, Rosiete e Wilma tais atitudes caracterizavam-
se como respeito, valorização e status social, e “isso nos engrandecia”. Participar
123
das programações do governo municipal era uma ação considerada motivacional,
de engrandecimento, era estar próximo do governo.
De acordo com Nobre (2009, p. 27), “as lembranças impulsionam a vida.
Lembrar é tempo de trabalho, de somar o já conhecido com o que se vai
conhecer”. Seguindo essa interpretação, Jurema enfatizou sua relação de
convivência no trabalho, quando chegou para assumir a Secretaria Municipal de
Educação.
Quando cheguei a Melgaço, fui convidada e nomeada pelo prefeito Hermógenes Furtado dos Santos como Secretária Municipal de Educação. Na prefeitura fui apresentada pelo prefeito aos outros Secretários: Maria Alice (finanças), Melgacino (administração), Benevenuto (agricultura) e aos outros funcionários, lembro que fui bem recebida, mas os meus grandes amigos eram Célia Rosa e Melgacino. Com eles conversávamos muito, nos entendíamos muito bem, talvez “falássemos a mesma língua”. Em relação às colegas, a Célia Rosa era a minha melhor amiga, porque trabalhávamos juntas. Ela havia sido Secretária de Educação no mandato anterior. Percebi que algumas colegas, como a Y e a Z, talvez por desconhecimento da lei ficaram com um certo ciúme do cargo que antes era da amiga Célia Rosa. Eu entendo, claro, porque elas gostariam que estivesse nas mãos da Célia Rosa. Graça, Wilma, Dilma, Célia moravam na república das professoras. Eu era desconhecida para elas, além do mais, era do espaço rural de Breves, mas com o tempo e a nossa vocação de educadoras, fomos nos aproximando e nos entendendo porque a missão era árdua e nos aproximava cada dia. Depois foram chegando outras professoras, como Rosiete, Fátima, Luiza, Socorro Mendonça (Professora Jurema – 2014).
Quando a comandante chegou em Melgaço sua primeira relação de
amizade foi com a equipe gestora do município. Considerou um acolhimento bom
e amigável, principalmente, com Melgacino e a Célia Rosa, “talvez falássemos a
mesma língua”. Melgacino era filho nato de Melgaço até no nome, homem sábio e
muito educado; Célia Rosa era uma professora de Língua Portuguesa, migrante e
anteriormente havia assumido a Secretaria de Educação. Portanto, nessa relação
Jurema teria muito a aprender sobre o lugar e o novo cargo.
É importante enfatizar que essa relação estabelecida com a professora
Célia Rosa não foi a mesma vivida com as outras. Em suas lembranças e
representações do passado, sentimentos de indiferença e descrédito por parte de
algumas professoras migrantes foram visíveis. A narrativa apontou que as
124
relações entre elas nem sempre eram amigáveis, existiam os grupos, os
interesses, as disputas de poder.
Se as professoras migrantes entre si alinhavaram laços de amizade e
reciprocidade, a teia das relações também se fez nos conflitos e indiferenças. Tais
ambiguidades esquadrinharam-se nas interações e (des)encontros estabelecidos
com a comunidade melgacense.
Era uma recepção de descrédito, porque gostávamos muito de ir para as festas e eles falavam muito da gente. Ir tomar banho no trapiche, ficar na frente da casa conversando, receber visitas de pessoas, para os moradores antigo, aquilo não era certo. Contudo, depois foram se acostumando. O professor tinha que dar o bom exemplo. Qual é o bom exemplo? Será por que a gente era professora não tinha que sair na rua, não tinha que conversar com ninguém, não tinha que ir para a festa, não tinha que beber uma cervejinha? No primeiro momento foi muito cruel. E quando a gente começou a namorar com o povo da comunidade, aí que o negócio deu. “Ah, elas vieram para cá”, a gente era mais velha e eles mais novos, “elas vieram para cá para fazer isso com os nossos filhos”. Hoje fomos formando família, tá aí. Mas éramos respeitadas, sentíamos isso. Onde a gente chegava eles nos tratavam muito bem. Diziam: “Ah! É a professora fulana de tal”. A gente era anunciada quando chegava nas festas, “Ah! Chegaram as professoras de Melgaço” (Professora Wilma – 2014).
A comandante recompôs o cenário das vivências com a comunidade, na
primeira década da chegada, em seus choques e conflitos culturais. As
interações, todavia, foram modificando a guerra de imaginários ali em encontros.
Se no primeiro contato “foi cruel”, neste também se viu o respeito e o
reconhecimento. Assim, as professoras migrantes foram costurando seus
encontros e confrontos com a comunidade, tanto em suas atitudes públicas,
quanto particulares.
Lá (casa dos professores) era só mulheres que viviam. Tu já pensaste, mais de 10 mulheres morando dentro da casa, cada uma querendo namorar ao mesmo tempo, tinha que se espalhar pelos muros da cidade, pelo cais de arrimo. E isso a população comentava demais, porque isso não é moral para uma professora, dela estar se agarrando aqui fora, qual a moral que ela vai dar para os alunos amanhã na sala de aula (Professora Wilma – 2014).
A narrativa insere-se no terreno da cultura como espaço de conflitos e
negociações (HALL, 2003a). Para as comandantes que vinham de outros
125
territórios urbanos, nos quais as atitudes não provocavam espanto ou não eram
visíveis aos olhos daqueles que as conheciam, a posição da sociedade local
frente as práticas socioculturais adotadas as assustou. A luta pela independência
pessoal autorizava essas professoras migrantes a acreditarem que na terra
hospedeira seus modos de ser e viver estavam isentos de questionamentos.
Portanto, namorar, passear, festejar, tomar banho no trapiche, estar na
frente da casa, conversar, tomar cerveja para elas não significava ferir a
integridade das famílias melgacenses, mas no olhar daqueles que foram
formadas por outros princípios, as comandantes estavam ferindo os padrões da
comunidade, o que implicava em falta de ética, respeito e moralidade. Por essa
concepção não teriam respaldo para assumirem a sala de aula.
Rosiete complementou a narração de Wilma ao enfatizar as restrições na
vida social e as atitudes de denúncia e proibição ao viverem suas particularidades
e privacidades da maneira que acreditavam ser correta. Ela contou, ora com risos,
ora com olhar de decepção, as histórias vividas ao chegar em Melgaço
Tinha algumas famílias e alguns outros que não concordavam, tratavam as professoras de uma forma pejorativa, principalmente, aquelas em que as professoras namoravam seus filhos, não aceitavam (risos), tratavam com palavras que não era agradável. Agora só um detalhe, como eu falei, a gente tinha que andar no trilho, o professor sempre tinha que dar um bom exemplo, logo foi o que eu percebi, a comunidade era bastante conservadora nesse sentido. Eu ainda era jovem, os rapazes se aproximavam queriam conversar e eu conversava, depois eu comecei a abrir meus olhos e minhas colegas começaram a alertar: “Ah, Rose! não pode ser assim, já pensam que estas namorando, começam dizer que é galinha, que é isso, que é aquilo”. Eu já tinha um comportamento mais maduro, mais reservado, então fui ficando mais reservada ainda. Tinha esse lado que você não podia fugir da raia, tinha que ter um excelente comportamento para dar esse exemplo para a comunidade continuar te respeitando também (Professora Rosiete – 2014).
A comandante evidenciou em nossos diálogos que, muitas vezes, foram
julgadas e tratadas de forma desonrosa, porque, na concepção de algumas
famílias, a postura de uma professora em sala de aula deveria ser a mesma em
outros espaços da cidade. Esse tipo de atitude lhe deixava muito triste, tinha
certeza não ser o que pensavam a seu respeito. Então, resolveu tornar-se mais
126
reservadas em suas relações de amizade e na maneira de se divertir para garantir
o respeito e a confiança da comunidade.
No movimento de rememorar as práticas culturais experienciadas, as
professoras migrantes se expuseram ao prazer e ao sofrimento das vivências
(TEIXEIRA, 2002). Com isso, para alcançar aceitação local, precisaram refazer
suas concepções em ação intersticial com os códigos da terra hospedeira,
adotando um novo sentido para sua existência. Rosiete precisou, de certa forma,
ressignificar alguns de seus princípios sem perder o olhar crítico para perceber os
limites da comunidade referente à visão do ser professor.
Já Dilma visualiza a situação do (des)encontro e confronto por um olhar
conciliador. Ela reconheceu que foram formadas por culturas, modos de ser e
viver diferenciados, e isso influenciava fortemente no processo relacional.
Considerou, no entanto, que era necessário fazer concessões para evitar maiores
conflitos e retribuir todo carinho e respeito que a comunidade lhes dispensava.
Desta forma, posicionou-se:
Nós tínhamos que ter muito cuidado, porque éramos todas solteiras. A comunidade era carente, mas exigia de nós e sabíamos que tínhamos que nos comportar bem, até em nosso modo de vestir. Nós vivíamos em comunidade e tudo isso conversávamos, até mesmo porque quando eu cheguei em Melgaço já encontrei duas pessoas na casa, era a professora Wilma, que é de Marudá e já está se aposentando, e a professora Maria das Graças, essa professora era uma pessoa muito religiosa, solteira, mas era uma pessoa mais madura e nós éramos jovem, não com a cabeça muito centrada, mas ela era uma pessoa como se fosse a mãezona da casa. Assim, ela comandava todas, ela dizia logo: “olha tal coisa, cuidado com isso, cuidado com aquilo, interior é assim”. Ela já vinha de uma experiência, já havia morado em Breves, e como ela era a mais velha, nós sempre procuramos escutá-la, pois sabíamos nossos limites até onde poderíamos ir. A comunidade era pequena e qualquer coisinha poderia virar problema. Então, nós tínhamos que ter esse cuidado. Deus livre! não podia fazer tal coisa, e nós tínhamos que saber que éramos professoras. Portanto, precisávamos saber como nos conduzir, como nos comportar, porque a comunidade trazia esse carinho para nós. Tínhamos que saber retribuir esse carinho à comunidade [...] era uma coisa muito, muito legal da comunidade o modo como nos tratava (Professora Dilma – 2014).
A concepção de Dilma permite dialogar com Sayad (1998) quando analisa
que a vida do migrante é, muitas vezes, silenciada e renegada. Todavia o próprio
127
migrante, em dadas situações, atribui a si a culpa do seu estado de ser e de
“todas as suas desgraças”. Mesmo reconhecendo seus direitos de cidadão, “evita
dizê-lo em voz alta”.
O silêncio dispensa-os de entrar num combate ao mesmo tempo injusto e incerto: injusto porque todos têm consciência (o pai, sobretudo) de que aqueles que lutam são também, acima de tudo, vítimas; incerto porque para um trata-se de um combate “impossível”, um combate “contra si”, e para o outro um combate de “retaguarda” (SAYAD, 1998, p. 224).
Na fala do autor e nos depoimentos das comandantes ficou perceptível
que o sofrimento maior com o choque cultural e o estranhamento está naquele
que chega, implicando em dados momentos no ato de silenciar ou mudar de
atitudes para não provocar uma luta considerada perdida, pois ao seu encontro
terá sempre um grupo para combater seu posicionamento, intencionando garantir
a permanência da hegemonia no lugar.
No caso do contato das professoras migrantes com a comunidade,
percebo uma relação negociada, apesar das renúncias por ambas as partes,
conseguiram estabelecer uma convivência de respeito, mesmo nas diferenças de
formação, princípios e visões de mundo. Lechner (2009, p. 96) avalia a chegada
do migrante, da seguinte perspectiva:
É sabido como, uma vez chegados ao país de acolhimento, após a odisseia das partidas e das viagens, os migrantes perfazem percursos marcados por experiências de incompreensão, desigualdade, injustiça, exploração no trabalho, exclusão, racismo.
Frente a tais posicionamentos, no entanto, não se pode pensar o migrante
como um ser passivo, ele busca o confronto e utiliza suas estratégias de luta para
garantir a permanência e a aceitação do grupo. Para exemplificar, as
comandantes viveram situações delicadas e conflituosas tanto com a comunidade
quando chegaram, quanto com o governo municipal, na década de 199025, mas
garantiram, por meio de suas artimanhas e estratégias, meios de diálogo e
negociação com ambos.
25 A despeito de citar questões conflituosas ocorridas entre as professoras migrantes e o governo municipal na década de 1990, tratarei melhor o assunto no quarto percurso “Entre o pessoal e o profissional: (Re)construção de identidade”.
128
Nobre (2009, p. 113-114), quando trata das estratégias de conquistas,
menciona que:
[...] mesmo frente às fragilidades impostas pela migração, o respeito à diversidade faça parte de sua prática, uma vez que cabe também ao professor o desafio da inclusão, de si e dos outros, o que exige então a busca de novos itinerários, espaço e tempos de aprendizagem adaptados à diversidade.
A conquista das professoras migrantes em Melgaço com base nos relatos
de suas histórias de vida aconteceu por meio do envolvimento no trabalho com a
comunidade. Foi a competência no exercício da profissão que contribuiu para a
conquista do respeito, da admiração, da aceitação e, desta forma, da
permanência.
Tal afirmação foi rememorada e contada por Wilma como se fosse um
desejo de divulgar a superação dos limites encontrados na chegada. Para
apreender as dimensões da narração da comandante, Lechner (2012, p. 18)
analisa que o migrante ao “contar a sua vida é mais do que reviver o passado, é
também e sobretudo o ponto de partida para organizar o presente e planejar o
futuro despindo a pele de antigas identidades e opressões”. Wilma falou com
muita autoridade que conseguiram influenciar na construção de um novo olhar da
comunidade acerca do ser professor.
Nós fomos construindo esse processo de discriminação, que o professor é aquele da sala de aula, que não tem uma vida social. Nós construímos esse processo aqui dentro de Melgaço e foi produzido em cima de muita difamação. Hoje a gente é livre para fazer as nossas coisas dentro da sociedade que não implicam na nossa vida particular. Antes era difamatório, mas nós não ligávamos muito para isso, por exemplo, se eles vissem as professoras bebendo uma cervejinha, aquilo era uma desonra para os alunos e para os pais. Então, quando nós chegamos, nós éramos vistas desse jeito, mas nós construímos um processo de respeito, que hoje nós somos respeitadas, depois que eles passaram a nos conhecer, a ver realmente o nosso trabalho, eles passaram a nos valorizar, mas nós sofremos muita discriminação (Professora Wilma – 2002).
A partir do novo olhar da comunidade, as professoras migrantes
passaram a ser compreendidas como pessoa e a vida particular tornou-se um ato
de privacidade, deixando de ser uma questão de coletividade como antes.
129
Os depoimentos das comandantes, trouxeram questões do (des)encontro
e confronto em relação aos diferentes posicionamentos e atitudes da
comunidade, porém é importante pensar que foram participantes dos conflitos e
das mudanças ocorridas tanto na terra não-familiar quanto nas suas próprias
vidas. Nos variados aspectos das relações, não se pode considerar a
comunidade como vilã, mas é importante perceber que Wilma também sentiu e
viveu situações que não condiziam com a realidade cotidiana, aquilo que ela
sempre acreditou como correto estava sendo exposto de forma totalmente
oposta. Isso feria seus princípios, isso começou a entrar em conflitos, usando
estratégias de resguardo e preservação dos seus ensinamentos.
É preciso considerar, entretanto, que se tratavam de tempos de intensas
aprendizagens para as comandantes. Aprenderam com a migração, com suas
histórias e as do lugar. Recontar narrativas de vida, sem dúvida, foi um encontro
com o passado que as levou a refletir sobre o tempo de permanência no
município, pois 2015 é o ano em que começam a fechar o ciclo da docência.
Depois desse tempo dedicado a profissão professor, o que as professoras
migrantes planejam em sua trajetória? Permanecerão em Melgaço? Retornarão à
“rocha-mãe”? Ou ficarão para sempre em trânsito, novamente em busca de si?
2.6. Rizomas do Retorno
Cheguei aqui, meu filho era jovem demais, agora olha quantos anos eu estou, tenho até bisneto, eu fiz uma outra família aqui em Melgaço, nunca pensei que ia ficar, porque a minha ideia não era ficar muito tempo não, mas eu fui ficando, fui ficando. A minha ideia era ficar só uns quatros anos e depois ir embora, eu pensava em voltar e fazer carreira em Belém, eu pensei: “eu vou trabalhar lá e como eu vou ganhar um salário e vou ter ajuda da prefeitura, vou poder ajuntar um dinheiro e retornar, mas eu fui ficando Ilca e estou até hoje. Aqui eu aprendi muitas coisas e o que sou eu devo a Melgaço (Professora Wilma – 2014). Por não conseguir sempre pôr em conformidade o direito e o fato, a imigração condena-se a engendrar uma situação que parece destiná-la a uma dupla contradição: não se sabe mais se se trata de um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente ou, ao contrário, se se trata de um estado mais duradouro mas se gosta de viver com um intenso sentimento de provisoriedade (SAYAD, 1998, p. 45).
130
Wilma, Dilma, Rosiete e Fátima aceitaram o convite para exercer a
docência em Melgaço, mas em seus projetos estava o desejo do retorno para
fazer carreira em Belém. Melgaço, no primeiro momento seria o lugar para
adquirir experiência e estabilidade e percorrerem outros rumos, no entanto, a rota
da viagem não seguiu novos percursos, as comandantes iniciaram e estão
concluindo a viagem ancoradas no primeiro porto de embarque da profissão. Com
Jurema não foi possível perceber tal interesse, pois em seus horizontes de
expectativas não pensa em retornar. É possível que o fato de ter partido do
espaço rural brevense para o espaço urbano melgacense e ali construiu um modo
de viver em diálogo com a dinâmica citadina, justifique o não desejo de voltar a
morar na terra de origem.
Fico a questionar. Como será a permanência das comandantes depois
que amarrarem o barco da profissão? Sayad (1998) assevera que o migrante é
um ser provisório, seja na permanência com o lugar, seja no sentimento de estar
sempre com o desejo de migrar. E as professoras migrantes ainda estariam em
estado de provisoriedade?
A experiência do migrante com os lugares em que habita seja boa ou
sofrida produz comparações do presente com o passado frente ao futuro. Nessa
teia, as interrogações e incomodações vibram pulsantes na vida do migrante,
porque o futuro é uma incógnita, assim como a chegada e o retorno.
Wilma contou alguns dos fatores que lhe motivou a permanecer em
Melgaço e outros que lhe fez pensar como seria seu retorno a territórios de seu
primeiro percurso.
Eu sou muito agarrada com meus netos, principalmente, os três. Eles vivem por aqui, e o meu filho, apesar de todos os percalços, os erros, as coisas difíceis que passamos, mas é ele e eu, somos só nós dois. Mas aqui em Melgaço é diferente da terra que eu nasci (emocionada). É por isso que o profeta na sua terra não tem valor, lá eu sou totalmente desconhecida, aqui não. Lá, às vezes, algumas pessoas falam: “oi Wilma”! Mas eu também [...], passam algumas pessoas que não sei quem é, não tenho referência, só tenho da minha família e de algumas pessoas antigas que eu vivi na época, porque eu vou lá só pelas férias. A minha irmã que morava em Belém se mudou para lá e agora eles ficam me perturbando para eu ir embora. Os meus três irmãos moram lá, mas eu não sei Ilca, ainda não está decidido, ao mesmo tempo eu olho para a minha casa que eu construí com
131
tanto sacrifício para eu construir tudo de novo, não sei se tenho pique para isso (Professora Wilma – 2014).
A dúvida é um sentimento inerente à condição humana. Na experiência
do migrante se manifesta com maior intensidade, porque está sempre a avaliar
se vale a pena continuar na terra onde fez escala ou se já é hora de partir para
um outro lugar ou retornar para seu primeiro ponto de moradia. Morar em
Melgaço para a comandante faz parte de uma das alegrias de sua existência.
Apesar de ter uma família pequena, possui muitos amigos e conhecidos, o que
permite vislumbrar a construção de consistentes laços de amizades e referências
capazes de situá-la e acreditar em seu pertencimento.
Além do parentesco e das teias de amizades urdidas, Wilma refletiu
sobre o lá e o cá. No cá possui bens materiais com os quais construiu fortes
identificações ao longo dos anos de trabalho. Por esse aspecto avalia não saber
se tem “pique” para recomeçar ou reconstruir a vida em outro lugar. Nesses
meandros da memória, acrescentou: “fui desprovida de tanta coisa e eu tive
oportunidade. A minha casa em Marudá é velha, a melhor eu fiz aqui, podem até
dizer: “égua26, a professora Wilma tem essa casa velha aqui”, eu devia ter
investido lá, hoje eu me arrependo”.
O migrante caminha em duplo sentimento. A identificação com o novo
lugar não aniquila o sentimento de pertencimento com sua “rocha-mãe”. Na
experiência da comandante, apesar do desejo de mesmo pós-aposentadoria
continuar sendo a “professora Wilma”, do apego aos netos, aos bens materiais,
do amor que declarou por Melgaço, não perdeu as referências do lugar que a
criou. Sabe, contudo, que sua história não será a mesma naquela terra de
partida. Nessa perspectiva, Fazito (2010) é esclarecedor:
O retorno não é apenas um retorno ao espaço físico, mas essencialmente o retorno ao espaço social transfigurado por eventos vitais e, consequentemente, uma impossibilidade concreta, pois não se retorna àquela mesma estrutura de coisas e eventos que se vivia no passado e depois se “abandonou” (FAZITO 2010, p. 90).
“No turbilhão das ‘idas e vindas’ entre os dois sistemas de referência,
acontece que no fim das contas todos – ‘mudaram’ e que, segundo as 26 É uma expressão paraense que muda de significado dependendo do contexto. Por exemplo, pode representar surpresa, espanto, raiva, felicidade.
132
circunstâncias, todos foram, ora ‘assim...’, ora ‘assado...’” (SAYAD, 1998, p. 230).
Os que saíram carregam consigo toda a sua formação humana e os fios que
foram compondo na formação de suas identidades. Sem perder de vista os dois
sistemas de referência, o da “rocha-mãe” e o da outra terra, o drama do encontro
daquele que retorna é sempre maior do que o daquele que ficou.
Nesta analítica, Demartini (2010) enfatiza que a “discriminação” com o
migrante pode acontecer tanto no lugar que ele chega quanto no lugar que ele sai
e depois retorna.
É interessante observar essa dimensão que acompanha os deslocamentos: de certa forma, há uma discriminação contra o imigrante que sai, assim como contra o imigrante que chega em novo contexto, por parte da população local; mas há também contra aquele que retorna, principalmente com poucos recursos ou com dificuldades (e o imigrante sabe disso, ele quer voltar só quando está em boas condições), mesmo não se considerando muitas vezes um “outro”. Além disso o imigrante nem sempre percebe o contexto discriminador em que se insere, assumindo como naturais as discriminações e preconceitos existentes (DEMARTINI, 2010, p. 71 e 72).
O migrante desde seu primeiro deslocamento vive em conexão com seus
“sistemas de referências”, pois faz parte da formação humana selecionar das
relações com os lugares e com os seus pares o que considera melhor para a vida
no contexto temporal e geográfico em inserção.
Na fala de Wilma ficou subjacente que ela não se sente preparada para o
retorno, pois não tem em Marudá uma casa digna para fazer a sua moradia. Tal
carência a faz preocupar-se com a avaliação da comunidade local acerca de sua
posição social e situação econômica. Retornar e fazer residência em uma casa
“velha”, seria como se o trabalho em terra distante não tivesse contribuído para
seu bem-estar social em sua terra, isso representaria para a comunidade o seu
fracasso.
Nessas condições, o retorno, a priori, não apareceu como uma
necessidade para esta vida. Para melhor entender a comandante explicou sua
posição sobre o retorno
Voltar para a minha terra natal? Um tempo eu pensei em ir embora, foi quando fiquei doente mesmo, e eu disse: “será que vou morrer? Então, pensei: “eu vou vender a minha casa, eu tenho uma casinha velha lá, vou ajeitar minha casinha velha e
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vou acabar meus dias de vida lá” (risos), porque a minha filha é sepultada lá e eu quero ser enterrada no lado dela e fiquei com essa ideia na cabeça, mas agora não está mais, não vou não, acho que não vou morrer tão cedo, mas eu vou lá na minha terra, eu gosto de ficar lá. Mas por enquanto não estou pretendendo voltar, a não ser que eu fique muito doente que a minha irmã cuida de mim, eu não tenho uma filha, só um filho e homem não cuida, a minha família aqui são os meus netos. Eu acho que vou morrer por aqui, mas se eu morrer aqui, eu já falei para minha família, eu quero ser enterrada em Marudá perto do túmulo da minha filha, porque essa filha ela foi planejada, sonhada, a Viviana foi assim, isso minha família já sabe, mas morar lá, eu fico pensando, eu gosto dessa tranquilidade aqui, eu gosto da minha casa, eu gosto das pessoas de Melgaço, eu me identifico (Professora Wilma – 2014).
Nas indecisões da vida estão embutidas decisões e certezas. No
planejamento de Wilma, o retorno para Marudá só acontecerá se ficar muito
doente ou, então, para ser enterrada ao lado de sua amada filha, depois que fizer
sua passagem desta vida. O amor à terra de origem não é negado, apenas as
condições materiais terrenas e o sistema de valores que orientam a vida moderna
impossibilitam o retorno em dias atuais. Todavia, a “rocha-mãe”, em suas
decisões, ganha valoração transcendental, pois deseja fazer residência eterna ao
lado de sua única filha que a deixou muito jovem por causa de um câncer no
cérebro.
Em Sayad (1998) cada retorno é considerado ao migrante um momento
de “crise”, de “drama” é o encontro com o seu passado, um “mergulho nas fontes”
que sofreu com a reação do tempo. Nesse contexto, ele também se modifica com
as experiências do trânsito, as lembranças, entretanto, não são dissolvidas pelo
tempo e o encontro desperta as dores das feridas que outrora foram vividas.
Wilma em seu íntimo, mesmo afirmando o retorno após o fechamento de
sua existência terrena, não negligenciou o desejo de realizá-lo ainda em vida para
compartilhar com as irmãs outras alegrias, mas a crise do retorno e o encontro
com o passado talvez não lhe permita, pois se mostrou arrependida e
decepcionada por não ter construído em sua terra de origem uma moradia à
altura da posição social alcançada na terra hospedeira.
O posicionamento desta professora migrante me fez relembrar de um
texto de Ying Chen trabalhado por Hanciou (2009) que explica justamente os
sentimentos da sua condição de exilada e, no caso da professora migrante, o
134
tempo de separação de sua terra. Ela dizia “o além é essa estrela infinitamente
longínqua, cuja luz vem apenas acariciar o rosto do viajante. Viro-me então para
trás, mas não vejo mais minhas marcas, com rapidez misturadas pelos turbilhões
do tempo”.
Na tessitura da cartografia, a temática do retorno emergiu na narrativa de
Dilma em momento de muitas emoções, porque mexeu com amores divididos e
(in)certezas para realizar uma partida permanente. Entre sorrisos e lágrimas,
compartilhou posições.
Já estou retornando (risos), falar isso para mim, Deus o livre! Hoje, meus avós já são falecidos, tenho mãe falecida, pai falecido, mas tenho meus irmãos, tios, primos, minha família está em Colares, e estou terminando, graças à Deus, minha casa, um local para ficar. Então é minha vontade retornar, até porque quando meu esposo estava vivo, eu dizia que ele nunca queria sair de Melgaço. Hoje eu me sinto melgacense, com certeza, mas não me desperta um motivo forte para continuar em Melgaço, gosto demais de Melgaço, nooossa! Melgaço para mim foi o que eu vivi, foi a minha vida praticamente, lá eu construí família, tive filhos, hoje já tenho uma neta que acabou de chegar. Eu vivi toda a minha vida ali, minha felicidade ali foi intensa, fui sempre uma pessoa feliz, graças à Deus! Construí minha vida em cima de uma união muito grande (chora), muito forte, posso dizer, eu vivi em Melgaço, ainda vivo, curtir Melgaço jovem, fiquei adulta, depois fui casada. Então a gente viveu uma vida muito boa, não uma vida de riqueza, mas o que a gente ganhou a gente conseguiu viver e está vivendo até hoje, levando a vida do jeito que foi possível. Melgaço para mim é uma terra que jamais vou esquecer e jamais abandonarei. Não, não vou de jeito nenhum, acredito que vou estar sempre em Melgaço, Colares e Belém, mas preciso retornar a Colares. Até me emociono falando de Melgaço e Colares (chora), praticamente, estou dividida, mas estou retornando à Colares e pretendo viver mais em Colares, a partir do momento em que eu me aposentar vou viver mais ali. Claro, que em Melgaço eu sempre estarei, eu digo para o pessoal, o dia que eu me aposentar pelo município eu não quero ficar aquela velhinha fazendo crochê, nem crochê eu aprendi. Posso fazer qualquer coisa para trabalhar na educação, posso estar em Colares, mas quero estar sempre contribuindo com a educação de Melgaço (risos) (Professora Dilma – 2014).
O retorno está constantemente presente na vida dessa professora
migrante, primeiro para a “rocha-mãe”, depois para a terra que de um “acidente
de terreno” lhe fez viver intensamente momentos felizes. A vida em trânsito para
ela não pode ser entendida como destino, mas uma opção. O desejo aventureiro
não se desvincula dos lugares de referência. No caso de Dilma, Colares, Melgaço
135
e Belém são referenciais no planejamento que traça em sua trajetória, após a
conquista da aposentadoria.
Sayad (1998) acredita que o migrante se encontra dividido em suas
“representações contraditórias” por uma necessidade de manter o pertencimento
aos dois lugares, nem que isso lhe faça acreditar na possibilidade de “ignorar a si
mesmo” enquanto ser provisório.
Dilma na sua narração declarou grande amor à cidade de Colares,
lembro-me quando mencionei a respeito das lembranças do lugar, ela com muito
orgulho apresentou um livro que havia comprado sobre a história daquele
município, e ainda acrescentou que guardou muitas fotografias do tempo de
infância naquela terra.
O amor à “rocha-mãe” e a perspectiva de experienciar o retorno têm uma
representação simbólica caracterizada em suas moradias. Diferente de Wilma,
Dilma possui em Melgaço uma residência de madeira que aparenta muito tempo
de uso, já em Colares, onde tive a oportunidade de ir e conhecer, é uma casa
nova, feita de alvenaria e bem estruturada. Como dois de seus três filhos
migraram para Belém com o objetivo de estudar, também precisou alugar uma
residência para ali acolhê-los. Desse modo, a partilha do sentimento de pertencer
a um lugar, incorpora os três municípios mencionados.
A convivência nos três lugares que referenciam sua existência, pode ser
entendida como esforço de um enraizar-se e deslocar-se ao mesmo tempo.
Parece haver uma marca pessoal nesses espaços forjados na relação presença-
ausência. Nesse caso, Dilma torna-se migrante na sua própria terra, pois mesmo
sem reconhecer perdeu alguns referentes de Colares que encontra em Melgaço
ou Belém. Assim, sua vida está envolvida em múltiplos lugares visíveis e “entre-
lugares” simbólicos (BHABHA, 2003).
O posicionamento dividido da professora migrante, concatena-se à
narrativa de Ying Chen, trabalhada por Hanciou (2009, p. 137).
Encontro-me no meio do caminho entre meu ponto de partida e meu além, meu destino quebrado em pedaços. Sou e não sou. Vivo daqui para frente na memória e na esperança. Minha alma corre entre dois amantes que tomam cada um uma parte de mim. Conto a mim mesma, mentiras sinceras, e aos outros também, para não abandoná-los e não ser por eles abandonada. Não saberia viver sem uma coisa ou outra.
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Enquanto Dilma vivencia intensamente a paixão e a incompletude entre
três amantes para estar lá e cá, Fátima não expressou desejo de voltar a viver no
Ceará, a terra de sua infância, mas pretende retornar para reencontrar-se com os
muitos parentes que ali deixou.
Eu nunca fui desde que eu vim com 8 anos do Ceará, eu nunca retornei lá, por questão mesmo financeira, porque eu nunca me organizei para ir, sempre quem ia era a minha mãe, ela até falou que agora está indo. Hoje está mais fácil, não é mais como era. Então lá para o Ceará eu não tenho mais vontade de voltar, eu tenho vontade de ir ficar com a minha mãe, mas não para morar, vou cuidar dela um pouco, depois [...], porque os meus filhos moram em Belém. Então eu penso em morar um tempo com eles, depois para cá, não sei, acho que isso a gente não pode prever, só em pensamento, a gente planeja uma coisa, mas Deus, às vezes, coloca outra coisa em nossa vida. Eu jamais pensei que ficaria aqui a minha vida toda e estou aqui, moro há 28 anos e aqui estou. Mas para lá, tenho vontade de passear, mas voltar mesmo para morar, se eu pudesse voltar a morar a onde mora a minha mãe eu voltaria com certeza, em Aurora do Pará, eles moram lá, perto de Mãe do Rio, mora só ela com o meu pai, tem meu irmão que mora próximo, mas ele tem a família dele e ela reclama, porque não tem quem vai em Aurora com ela ou receber o dinheiro dela, ela está doente, ela não pode viajar sozinha, porque ela é diabética e essas coisas (Professora Fátima – 2014).
Em nossa trajetória de vida a intensidade do vínculo com os lugares
depende da revitalização que realizamos. No caso de Fátima, os laços com o
Ceará de sua infância se revelam quebrados, por isso não pensa em voltar a
residir ali. Já em Aurora do Pará, onde mora sua genitora, idosa e adoentada, e
município que sempre visita nas férias, está em seu horizonte de expectativas
para passar maiores temporadas, após concluir o ciclo da profissão professor.
Nesse circuito, apesar de já possuir um apartamento em Belém, onde residem
seus dois filhos, é Melgaço o principal lugar que pretende continuar habitando.
Fátima, emocionada, contou que sua história com Melgaço tem uma
simbologia movida por um amor eterno e seus laços nunca serão cortados,
porque parte dela já está fixada ao lugar. Relatou:
A gente é muito bem acolhida aqui na cidade de Melgaço, eu já me sinto melgacense, inclusive, eu já tenho um título de cidadã melgacense que foi dado pela câmara. Eu digo que foi o lugar que eu morei mais tempo, foi aqui em Melgaço, devido ao meu trabalho, a família que eu constituí, tenho casa aqui. Então mesmo que eu vá de vez enquanto passar dias em outra cidade como
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Belém, eu sempre vou voltar para cá, até porque eu tenho a minha filha que foi enterrada aqui. Assim, a gente nunca vai poder se desvincular de Melgaço, eu digo sempre, às vezes, eu fico pensando, eu acho interessante eu vim para cá por causa da minha filha, por causa da Cristiane, e vou ficar aqui por causa dela, é uma coisa que eu não consigo entender (Professora Fátima – 2014).
Fátima em sua narração não se define mais como uma migrante,
considera-se melgacense e sente-se bem acolhida pelo lugar e seus moradores.
Em todos os lugares que já passou, Melgaço foi o principal ponto de chegada e de
ressignificação da vida, porque ali exercitou o início da docência, consolidou-se
profissionalmente, constituiu uma família, adquiriu bens materiais e fortalecimento
espiritual.
A comandante parte da concepção de que na sua vida tudo se realiza,
segundo a vontade de Deus. Acrescentou que não costuma planejar muito a vida,
mas as coisas vão acontecendo e vai dando certo, sem muita explicação. Segura
na fé, depois da aposentadoria deseja seguir uma missão, cuidar por um tempo
da mãe e, posteriormente, ficar um pouco com o casal de filhos que reside em
Belém.
Depois de idas e vindas, estará sempre em Melgaço, por que “nunca vai
poder se desvincular” do lugar, disse: “as vezes eu fico pensando, eu acho
interessante eu vim para cá por causa da minha filha, por causa da Cristiane27, e
vou ficar aqui por causa dela, é uma coisa que eu não consigo entender”.
A permanência de Fátima em Melgaço está para além das relações
sociais ou bens materiais, mas por um ato de amor maternal que a conecta à filha
que partiu para outro plano. Elas viveram intensamente todos os processos da
migração, seja da carência material à bonança, da solidão à coletividade, do
descredito ao reconhecimento, portanto, ficar é manter o elo do amor e da
companhia. Em escala comparativa, Wilma e Fátima estão imbrincadas a Marudá
e a Melgaço, respectivamente, por laços maternais que não se desfizeram com a
partida de suas filhas.
Rosiete e Jurema, assim como Fátima também explicaram seus motivos
para permanecerem em Melgaço depois da aposentadoria. Rosiete falou:
27 Quando Fátima migrou para Melgaço estava gravida de Cristiane, sua primeira filha. Com 17 anos, a jovem sofreu um naufrágio em 21 de maio de 2004 e morreu. Seu sepultamento foi realizado na cidade de Melgaço.
138
Ir morar na minha terra eu não pretendo, eu penso em estar lá, passear, passar as férias, ficar um pouco com meus irmãos, porque meus pais já faleceram, só tenho alguns irmãos que moram nesse nosso lugar que é um interior do município de Colares. Apesar de ser uma terra que eu tenho muito carinho, eu pretendo ficar ali no máximo um mês, dois meses, mas, ficar definitiva, não. Em Melgaço eu ainda tenho algumas raízes, tenho minhas filhas, tenho uma filha que faz faculdade em Breves, mora lá, pretende se formar em Serviço Social para o ano, se Deus quiser! Ela já me disse: “mamãe, eu pretendo fazer concurso de preferência para Melgaço, eu pretendo morar lá”. Eu penso que eu vou estar sempre aqui, até porque eu não pretendo parar meu trabalho docente, vou continuar trabalhando no município, pretendo me preparar melhor, ler mais e quem sabe meter a cara no mestrado. Melgaço me deu todas essas oportunidades e eu acredito que eu ainda tenho essa oportunidade aqui. Eu não pretendo voltar para ficar definitivamente na minha terra, amo, gosto muito, lá está minhas origens, mas Melgaço é o meu espaço de crescimento. Assim, pretendo ficar por aqui. Tenho casa no meu interior, tem a casa da mamãe que ainda está lá e ainda não consegui cuidar; tem do outro lado da pista um terreno muito grande que é do meu pai, não tenho casa na cidade. Eu gosto de ir para lá, porque lá a gente conversa, acha graça e lá eu participo com eles o fazer a farinha, comer o peixe assado. Quando eu vou para Itajurá, eu não fico com essa preocupação de trabalho, porque eu estando aqui eu fico com preocupação, a minha filha diz: “mamãe, a senhora não sai da escola”, eu digo “calma, eu ainda estou nessa função, quando não estiver mais, então, é outra coisa” (Professora Rosiete – 2014).
A comandante apresentou alguns motivos para não fazer o retorno
definitivo a sua terra, primeiro por acreditar que Melgaço é um lugar de
oportunidades, de crescimento e de realização profissional. Portanto, sente-se
feliz profissionalmente, bem acolhida pelas pessoas do lugar e acredita que muito
ainda tem para fazer e conquistar no município.
Suas filhas por serem melgacenses os elos à terra estrangeira que se fez
familiar reforçam-se. Os laços ganham maior reforço com o fato de uma de suas
filhas já estar casada com um jovem do município, que mesmo habitando em
Breves, sente-se profundamente de Melgaço.
Rosiete aposentou-se pela esfera estadual, mas continua em atividade na
esfera municipal. A condição profissional somada aos muitos elos e sentidos que
construiu com Melgaço fazem com que o desejo de continuar trabalhando na
educação pelo município e investir na formação acadêmica esteja em alta. Ela
acredita que esses sonhos só serão realizados se permanecer neste município.
Desta forma, o retorno não emerge no momento como uma necessidade.
139
A decisão de permanecer em Melgaço não significa que a comandante
perdeu a referência das origens, pelo contrário, a sua terra é um espaço de
liberdade, de sociabilidade com a vida cotidiana tradicional familiar. Todas às
vezes que tem a oportunidade de visitar Itajurá, o lugarejo natal, sente despir-se
da identidade pessoal e profissional urbana. Vive ali os saberes locais, a
simplicidade do lugar sem preocupação da vida regrada de Melgaço.
A posição de Rosiete ao comparar a sua vida nos dois espaços, leva-me
a estabelecer diálogo com Mota (2008, p. 312)
O deslocamento para a terra estrangeira fica ancorado na terra natal: afinal de contas, enquanto o imigrante não se sente pertencente ao novo país, ele precisa resguardar seu pertencimento ao seu povo de origem. Manifestações de identidade nacional constituem-se, assim, em um marco de identidade coletiva que passa a ser recriada, re-imaginada, reinventada e incorporada à construção de um novo cotidiano marcado pela ambigüidade da vida entre-lugares.
Como foi possível perceber nas narrativas de Rosiete, semelhante as das
demais professoras migrantes, o entrosamento com o espaço melgacense não
rompeu definitivamente o cordão umbilical com a “rocha-mãe”. Por isso, em
épocas de férias e outras ocasiões especiais, Wilma, Dilma, Rose e Fátima
sempre estiverem em contato com o lugar, familiares e conhecidos. Já Jurema
não mencionou ter retornado ao seu lugar de origem, propriedade que ficava no
rio Tajapuru, no interior de Breves, depois que migrou no início de 1983. Por ser a
cidade de Breves, capital polo da região e lugar onde realizou o primeiro grau e o
curso normal, ali sempre esteve em contato para realizar diferentes
compromissos.
Eu sou brevense, me sinto mesmo de veia, tenho Breves nas minhas veias, nasci lá, sou do Tajapuru, mas hoje, por exemplo, eu não penso em voltar para minha cidade natal. Eu sempre vou lá, inclusive, todo mês a gente vai lá para receber nossos vencimentos do Estado, pois em Melgaço não tem caixa eletrônico do Banpará, vou lá também para visitar os meus parentes. Eu quero ir para passear, eu quero ir para o interior de casa, lá para o rio Jair. Eu já convidei o José Osvaldo, vamos pegar um barco, a gente vai na semana santa para lá. Quero ir para viajar, conhecer o pessoal de lá, levar os nossos filhos para o pessoal conhecer, quero buscar memórias. Eu tenho parentes hoje em Macapá. Eu penso em ir para conversar. Eu estive agora com a minha madrinha de crisma, ela tem 84 anos. E eu estive com ela, foi uma
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grande felicidade ter me encontrado com ela, a gente se abraçou, ninguém chorou, mas foi uma felicidade muito grande mesmo. Ela está bastante forte. Eu fui visitando também as casas dos meus parentes, porque é assim, eu tenho muita saudade dos meus entes, dos meus parentes de sangue. Eu venho dessa cultura do papai, e naquela época que a gente morava no interior, os primos irmãos, nós éramos primos irmãos. A gente tem essa relação muito próxima, porque éramos perto um do outro. O papai tapava igarapé juntos com os outros (Professora Jurema – 2014).
O pertencimento de Jurema aos saberes herdados na convivência familiar
no rio Tajapuru, onde nasceu e viveu a infância; no rio Jaí, onde passou alguns
anos com a família; ou em vilas, nas quais exerceu a docência no espaço rural do
município de Breves, facilmente vem à tona em suas narrativas. Não por acaso, a
comandante é uma pessoa muito envolvida com a cultura, a arte e a natureza
marajoara. Em nossos diálogos sobre o tempo de infância, trouxe muitas
referências de sua família, em especial, de seu pai, a respeito das vivências com
a criação de animais, plantio de hortas e pomar, festas religiosas e contação de
histórias.
Essas referências foram constituindo suas histórias, as formas de se
expressar e de se relacionar. O interesse em revisitar os laços com esse passado,
reencontrando-se com pessoas e lugares, parece ser ao mesmo tempo para
“matar a saudade” como também avaliar o que fez de sua vida nessas três
últimas décadas.
Jurema apesar de demonstrar amor por Breves, falou o porquê de
continuar morando em Melgaço, mesmo depois de fechar o ciclo docente. “O meu
lugar é onde eu já tenho casa, porque o meu marido também é de lá, os meus
filhos, todos, são melgacenses. Eu não pretendo voltar para minha cidade de
origem, vou só para passear e conversar com os meus parentes” (Professora
Jurema – 2014).
A decisão de ficar na terra hospedeira é explicada por Jurema por ser o
lugar de sua realização pessoal, familiar, profissional, política e religiosa. O
retorno não se manifesta como uma necessidade em sua vida. Jurema e Fátima
foram as únicas comandantes a não construir residência nos locais de origens,
mas adquiriram outra em Belém, as quais servem de apoio aos filhos que estão
em processo de formação acadêmica.
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Sayad (2000) fundamenta que o ciclo da migração se fecha com o retorno
à origem, o que representa simbolicamente a circularidade da migração. A partir
desta concepção, posso concluir que as professoras migrantes ainda não
fecharam os seus ciclos migrantes e, possivelmente, não farão esse percurso de
180 graus comuns na análise de Sayad. Cada uma, de seu modo, expressa o
sentido dado à trajetória mediada pelas convivências com Melgaço.
O poder simbólico do retorno nasce exatamente dessa impossibilidade prática de não se poder retornar, de fato, para o mesmo “estado de coisas” que se deixou ao emigrar. Portanto, os deslocamentos não são operados apenas no espaço físico, mas sobretudo num campo de relações sociais que organiza o princípio estruturante espacial. Isto é, os deslocamentos refundam os “territórios” e suas geografias pela inserção no campo social de novos sujeitos e relações sociais (FAZITO, 2010, p. 91).
Assim, diante das narrativas socializadas pelas comandantes, referentes
ao processo migratório e sua inconclusão, vejo que elas pertencem a mais de um
lugar, porque suas raízes não se fixaram em apenas um solo, elas foram se
expandindo como um rizoma em cada lugar por onde andaram. Para estes
lugares levaram e trouxeram códigos e referentes culturais e simbólicos,
construíram novos relacionamentos sociais. Melgaço, como um território mediador
desse processo, tornou-se conexão entre os muitos contatos que estabeleceram
com o mundo.
Os sentimentos refletidos nas falas de cada uma das comandantes de
nossa viagem é que elas não vivem o trauma da migração. Tudo o que
compartilharam em/com Melgaço foram aceitos ora como desafios, ora como
prêmios. A esse respeito Fátima é conclusiva: “tudo que vivi de ruim foi superado
pelas coisas boas que conquistei”.
Devo considerar, porém, que elas vivem intensamente o (des)encontro
consigo mesmo, quando expressam sentimentos de apego aos lugares de
referências de suas vidas. Ying Chen analisada por Hanciou (2009, p. 138) é,
então, emblemática na composição desse retrato de uma vida migrante ou exilar:
Vejo-os no espelho deformador da minha memória e da minha imaginação. Não sei muito bem onde está meu verdadeiro solo e qual a minha verdadeira língua. O passado e o futuro se confundem. Desse fato minhas origens se parecem multiplicadas, refeitas, não encontráveis. Tudo se tornou além. Minha estrela se
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parece uma raiz que poderia ser a minha, mas que não consigo alcançar com a ponta dos dedos. Flutuo assim sobre um mar onde de nenhum lado consigo ver a margem. Graças a essa solidão, o eu perde a sua importância; e repentinamente, paradoxalmente, não estou só.
Portanto, Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima são mulheres que não
temeram o embarque, foram ousadas em romper os preconceitos e os medos de
viver o diferente, a transformação de si. Muitas vezes chorar ou sorrir, revelar-se
ou ocultar-se foram formas de não perder a agência de seus destinos. Em
sintonia com Araújo (2014, p. 308), posso dizer que esse movimento migratório
em busca da profissionalização promoverá “não apenas uma ascensão
econômica, mas, e principalmente, uma ascensão moral”. Isso será melhor
acompanhado no próximo percurso – o da formação docente.
143
TERCEIRO PERCURSO:
TRAMAS NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES
Escrever é, pois, um ato de desnudar-se e esta é a intenção [...]: possibilitar aos professores/professoras uma reflexão sobre o sentido e a pertinência da escrita como prática de formação, auto-formação e transformação de si (SOUZA e MIGNOT, 2008c, p. 16).
144
3.1. Primeiras palavras
As orientações dos autores norteiam a construção deste percurso,
incentivando a prática do desnudar-se pelo exercício da escrita acerca da
formação docente na trajetória das professoras migrantes. Nos relatos das
histórias de vida, a temática da formação inicial e continuada emerge em
aspectos gerais e específicos. Para essa tessitura, Passeggi et al (2011, p.371)
ajudam-me a compreender que
não se trata de encontrar nas escritas de si uma “verdade” preexistente ao ato de biografar, mas de estudar como os indivíduos dão forma às suas experiências e sentido ao que antes não tinha, como constroem a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados, mediante os processos de biografização.
Souza (2006b) acredita que ouvir as vozes de professores sobre o
processo de formação, seja individual ou coletiva, ajuda a atribuir sentido às suas
experiências docentes. O registro e a socialização das histórias de vida ampliam o
conhecimento dos professores acerca do percurso de sua formação. Passeggi et
al (2011) também consideram que “escrever e interpretar” algo que foi relevante
para a formação do ser, torna-se também um momento do processo formativo,
pois novos olhares e ações serão feitas e refeitas, como bem visualizei nas
muitas narrativas das comandantes desta investigação. Inspirada, então, nesse
entendimento, encaminho o leme da viagem para essa direção.
Antes de adentrar especificamente nas histórias das professoras
migrantes sobre a formação, resumidamente, vou situar como se estruturou as
políticas de formação de professores no Brasil, trazendo referências de pesquisa
e as discussões nas Leis 5.692/71 e 9394/96.
Saviani (2009, p. 144) elenca os principais períodos da formação de
professores no Brasil ao longo dos dois últimos séculos.
1. Ensaios intermitentes de formação de professores (1827-1890). Esse período se inicia com o dispositivo da Lei das Escolas de Primeiras Letras, que obrigava os professores a se instruir no método do ensino mútuo, às próprias expensas; estende-se até 1890, quando prevalece o modelo das Escolas Normais;
145
2. Estabelecimento e expansão do padrão da Escolas Normais (1890-1932), cujo marco inicial é a reforma paulista da Escola Normal tendo como anexo a escola-modelo; 3. Organização dos Institutos de Educação (1932-1939), cujos marcos são as reformas de Anísio Teixeira no Distrito Federal, em 1932, e de Fernando de Azevedo em São Paulo, em 1933; 4. Organização e implantação dos Cursos de Pedagogia e de Licenciatura e consolidação do modelo das Escolas Normais (1939-1971);
5. Substituição da Escola Normal pela Habilitação Específica de Magistério (1971-1996);
6. Advento dos Institutos Superiores de Educação, Escolas Normais Superiores e o novo perfil do Curso de Pedagogia (1996-2006).
O levantamento não confirma que a história da formação de professores
no Brasil tenha iniciado nesse período histórico. É preciso reconhecer que antes
do império já existiam instituições que trabalhavam, de certo modo, a formação
dos professores, os períodos citados, contudo, foram os significativos para a
história da educação do país e contemplam o recorte histórico da pesquisa.
Em conexão com as últimas décadas, as Leis de Diretrizes e Bases de
Educação asseguravam a formação para o exercício da docência. A Lei 5.692/71
determinava:
Como formação mínima para o exercício do magistério: a) no ensino de 1º grau, da 1ª à 4ª séries, habilitação específica de 2º grau, realizada no mínimo em três séries; b) no ensino de 1º grau, da 1ª à 8ª séries, habilitação específica de grau superior, representada por licenciatura de curta duração; c) em todo o ensino de 1º e 2º graus, habilitação específica de nível superior, correspondente à licenciatura plena. Estudos adicionais de um ano, realizados em instituições de ensino superior, poderiam qualificar os habilitados em 2º grau ao exercício do magistério até a 6ª série (TANURI, 2000, p. 81).
Quando as professoras migraram para Melgaço e iniciaram o trabalho na
docência, a Lei 5692/71 ainda estava em vigência. Assim, o processo de
formação vivenciado seguiu tais normatizações. Com exceção de Rosiete, todas
as outras já possuíam o curso de Magistério. À medida que o município exigiu a
ampliação da oferta do antigo 1º Grau, as comandantes precisaram investir em
146
sua formação, prática que estava em sintonia com as exigências da lei. A atual
9394/96, por exemplo, no Art. 62 prevê que:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do Magistério na Educação Infantil e nas quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
Mesmo a lei exigindo a formação em nível superior para atuar na
educação básica, flexibilizou para o nível médio em cursos normais a formação
mínima. Isso permitiu que a atuação de profissionais somente com este nível de
ensino ficasse por muito tempo em exercício, principalmente, nos Estados que
apresentavam carência em políticas de formação, como é o caso do Pará.
Embora a LDB tenha firmado nas disposições transitórias um prazo de apenas
dez anos para fazer o ajuste, a realidade mostrou outros dados.
Em 2002, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores são promulgadas e, nos anos subsequentes, as Diretrizes Curriculares para cada curso de licenciatura passam a ser aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação. Mesmo com ajustes parciais em razão das novas diretrizes, verifica-se nas licenciaturas dos professores especialistas a prevalência da histórica ideia de oferecimento de formação com foco na área disciplinar específica, com pequeno espaço para a formação pedagógica. Adentramos o século XXI em uma condição de formação de professores nas áreas disciplinares em que, mesmo com as orientações mais integradoras quanto à relação “formação disciplinar/formação para a docência”, na prática ainda se verifica a prevalência do modelo consagrado no início do século XX para essas licenciaturas (GATTI, 2010, p. 1357).
Gatti (2010) parte do princípio de que os avanços voltados para o
currículo dos cursos de licenciaturas foram limitados para contemplar a formação
pedagógica, consequentemente, postulando um vácuo no exercício da prática
docente.
Pensar a formação de professores em um contexto mais global para
atender as três dimensões de desenvolvimento sugerida por Nóvoa (1992), tais
como: o pessoal, o profissional e o organizacional, ainda são desafios para os
currículos de formação, cabendo aqui outras reflexões.
147
Frente ao que a última LDB prevê a quem compete a formação de
professores, percebi uma certa mobilização, tanto de governos quanto de
instituições de ensino superior em criar estratégias para possibilitar ao professor a
formação exigida por lei.
Nesse contexto, visualizo várias políticas de formação implantadas pelo
governo Estadual e Federal como, por exemplo, o Plano Nacional de Formação
de Professores (PARFOR), além de convênios de governos municipais com
instituições públicas de Ensino Superior, conforme discuti no primeiro percurso, e
ainda a expansão excessiva de instituições privadas espalhadas pelo interior dos
Estados.
No âmbito da Universidade da Amazônia (UNAMA), a partir de 2000, foi criado o Programa Especial de Interiorização das Licenciaturas, para atender à demanda já referida anteriormente e com o objetivo de contribuir para o fortalecimento do processo de formação de professores no Estado do Pará, em consonância com a missão institucional de promover a educação para o desenvolvimento da Amazônia, bem como incentivar a melhoria do bem-estar das comunidades regionais. No período de 2000 a 2002, o Programa atendeu um total de 1009 (mil e nove) alunos/docentes oriundos de 27 municípios do Sul e Sudeste do Pará, distribuídos em 20 turmas, sendo 12 (doze) turmas no Curso de Licenciatura em Pedagogia, 04 (quatro) no Curso de Licenciatura em Matemática e 04 (quatro) no Curso de Licenciatura em Letras - Habilitação em Inglês e Português. Os alunos concluíram os respectivos cursos em novembro de 2002 (CUNHA et al, 2011, p. 35-36).
Mesmo com essa expansão da esfera privada e pública na oferta da
formação de professores, afirmo que as exigências e complexidades da educação
escolarizada no contexto contemporâneo reflete, diretamente, no
desenvolvimento da prática pedagógica do professor, pois exige um novo
repensar no perfil de formação para não cair na repetição e reiterar “modelos”
antigos da formação.
3.2. Escolha pela Docência e Significados da Profissão
Dialogar com Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima foi permitir a elas a
escrita de suas histórias de vida na docência a partir da narrativa oral. A cada
rememoração de suas trajetórias e vivências na profissão foi possível rever,
148
avaliar e pensar novas estratégias de contínua criação e formação docente. A arte
da escuta na pesquisa permitiu, tornar conhecido a escolha da profissão e os
significados construídos para seguir os longos anos em atividade docente.
Cinco mulheres e cinco histórias escritas por diferentes enredos, mas
seguindo a mesma direção, a docência, a base da formação dos professores.
Para conhecer essas histórias, as próprias comandantes apresentam, por meio
das Histórias de Vidas, como foram se fazendo enquanto mulheres e educadoras,
analisadas à luz dos marinheiros desse percurso.
Wilma explicou como conseguiu uma vaga para o curso de Magistério, no
final da década de 1970 e início da década de 1980.
Quando eu concluí o 1° Grau, eu pensei em desistir. Nesse período foi o primeiro ano em Belém que surgiu o teste de seleção para entrar nas escolas de 2° Grau como eram chamadas. Eu pensei muito para escolher uma profissão. Depois eu disse: “eu vou ser professora, vou estudar no IEP”. Naquele período, o teste de seleção era realmente como se fosse um vestibular. Eu fiquei preocupada, será que eu vou conseguir passar? Mas eu fui, fiz a inscrição. No dia da prova, estava muito nervosa, mas consegui ser aprovada. Aquilo para mim foi uma vitória! Aquela menina que nasceu na beira da praia, eu disse: “puxa! eu estou aqui, aqui eu vou continuar” (Professora Wilma – 2014).
Para Wilma escolher a docência como profissão foi uma questão pessoal.
Ninguém de sua família já havia exercido o cargo de professor, nem mesmo
existia relação mais próxima com essa profissão antes de sua escolha.
Submeter-se ao teste de seleção e ser aprovada foi para ela um mérito, a
superação de seus desafios, medos e dificuldades que trazia consigo. Primeiro,
por considerar-se menos preparada aos demais candidatos, já que vinha de uma
vida praiana. Segundo, por tardiamente retornar aos estudos. Tais fatores,
representavam desvantagem àqueles que tiveram a oportunidade de viver a
formação na capital do Estado.
Fazer o curso de Magistério e tornar-se professora não era, inicialmente,
o principal desejo da comandante. Com emoção revelou:
Eu botei o meu pé no portão e fui para dentro da escola Normal. A partir daquele momento eu disse: “a minha vida vai mudar aqui, por enquanto vou ficar trabalhando na casa de alguém, mas sei que vou mudar”. Eu lembro até hoje quando foi no primeiro dia de
149
aula, a professora perguntou porque a gente tinha escolhido essa profissão. Eu disse que não tinha escolhido não, eu queria ser advogada, eu não queria ser professora, mas como era aquilo que apareceu para mim, eu fui para lá, foi onde eu consegui ser aprovada. Depois eu aprendi a gostar, mas a expectativa mesmo foi de melhorar não só o meu salário, mas eu como ser humano, eu queria provar para mim, não era para mostrar aos outros, mas para mim que eu tinha capacidade, não era por ter sido uma pessoa pobre e ter saído de lá que seria inferior (Professora Wilma – 2014).
Segundo o depoimento de Wilma, a entrada no Magistério foi condição
para deixar a vida de empregada doméstica e viver uma profissão que fosse mais
valorizada e contribuísse para mudar a sua própria condição humana. A
esperança na formação era conseguir um trabalho e com um salário melhor
contribuir na economia familiar. Assim, o desejo de ser advogada foi se tornando
mais distante de sua realidade e o envolvimento com a docência ganhando novos
significados.
Sonhar com uma profissão e a vida traçar outra foi o que também
aconteceu com Rosiete. Ela contou que, por muito tempo, carregou consigo o
desejo de ser médica ou uma outra profissão na área da saúde, o Magistério era
o avesso de seus desejos profissionais.
Cursei Técnico em Laboratório, havia vários cursos, Administração, Magistério, mas eu não quis fazer o Magistério, eu não queria estudar Magistério. Meus pais, especialmente minha mãe, queriam muito que eu fosse professora, eu não queria de jeito nenhum, não conseguiria porque observava os professores, o trabalho que eles tinham com os alunos. Eu dizia: “não mamãe, nem pensar, não quero fazer Magistério, eu não quero ser professora”. Cursei os três anos e complementei com mais um ano de estágio no Rui Barbosa. Então foram quatro anos que passei fazendo o curso que havia escolhido. Quando conclui o curso de Técnico em Laboratório foi o momento mais feliz da minha vida e até hoje guardo com muito carinho fotos que retratam esse momento, pois me sentia uma pessoa muito importante, mesmo não tendo o meu próprio espaço e emprego, sentia-me uma pessoa muito feliz, por essa conquista (Professora Rosiete – 2014).
Com um brilho no olhar e um quê de empolgação a comandante falou da
formação de Técnica em Laboratório. Acrescentou que, mesmo ciente da falta de
oportunidade para praticar a profissão, se sentia realizada e feliz por ter concluído
o curso.
150
Ao ouvi-la cuidadosamente, a impressão é que o desejo de exercer uma
profissão na área da saúde ainda está reservado dentro de si, mesmo que não
venha se tornar realidade. De fato, nunca praticou a profissão de formação.
O Magistério chegou em sua vida com um convite de sua prima Dilma
Corrêa que, contrariando seu próprio, realizou o sonho de sua mãe. Desse modo,
Rose aceitou o desafio e como leiga começou as atividades docentes. Para ela o
exercício do Magistério chegou primeiro que a formação. Afirmou:
Quando eu cheguei em Melgaço eu já tinha o Ensino Médio, mas não era Magistério. Eu fui convidada para trabalhar aqui, o município era muito carente nesse sentido e o Estado abria mão, necessariamente, não precisava ter o curso de Magistério para trabalhar pela dificuldade de se ter este profissional no município. Eu achei boa a proposta, enfim, a noção que eu tinha de trabalhar como professora era dos meus professores. Como eu olhava meus professores, via que era muito complexo, percebia a dificuldade que tinham com os alunos, principalmente, aqueles bastantes desinteressados, tanto é que minha mãe queria muito que fizesse o Magistério e eu dizia: “não, não quero ser professora, não quero ser professora” (Professora Rosiete – 2014).
Na década de 1980, o Estado do Pará iniciava, no interior, a política de
formação de professores em Ensino Médio para atuar na Educação Básica, por
meio do SOME. Para minimizar a carência de professores, a esfera estadual
contratava profissionais de outras áreas e, posteriormente, oferecia a formação
em Magistério para qualificá-la. Rosiete foi exemplo desta estratégia utilizada pela
SEDUC.
De acordo com as narrativas, o Magistério foi aceito pela professora
migrante, não como uma realização pessoal, pois as suas referências da
docência não lhe motivavam o desejo de segui-la. O envolvimento de Rose com a
profissão docente lhe acompanhou desde a infância, a casa dos pais era espaço
de sala de aula e a dinâmica do cotidiano escolar por ela observada lhe
distanciava do querer ser professora. Por outro lado, despertava em sua mãe o
desejo de formar a filha nesta profissão.
Ao narrar suas lembranças de infância e associar o fazer-se docente, a
comandante recordou o tempo de aluna na sua própria casa. Afirmou, com
apropriação, que as observações feitas não lhes motivavam para o exercício da
prática de sala de aula e o experienciar da relação professor-aluno.
151
No entanto, foi a partir da prática docente e da formação no curso de
Magistério que descobriu a vontade e o gosto pela arte de ensinaraprender.28
A minha vida profissional vai mudando, tomando outros rumos, e eu consigo me formar professora em nível de 1ª a 4ª séries. E também ganhava aqui na escola como professora leiga por não ter a formação. E essa formação de professora de 1ª a 4ª séries vai ajudar a mudar a minha vida, eu percebi de fato, concretizei que eu tinha que ser professora. Pronto, adorei, gostei muito mesmo de trabalhar como professora, tanto é que até hoje estou na função (Professora Rosiete – 2014).
A conquista da formação inicial, a identificação com a profissão e a
melhoria da condição salarial foram decisivas para a professora migrante definir-
se pela docência. Os direitos garantidos na política pública de valorização
profissional trazem engastados outras funções: motivação para o trabalho;
participação política, social e educacional; luta por valorização e qualidade na
educação, assim como contra a exclusão social; melhoria na relação escolar,
social e comunitária. Essas funções são construídas a partir do envolvimento com
a profissão e com a formação inicial e continuada, como enfatizou Rosiete.
Já Dilma fez seu primeiro curso em outra área para depois decidir fazer o
Magistério e exercer a docência.
Terminei o Científico e percebi que não era a formação que eu queria. Então, resolvi justamente fazer o curso de Magistério na escola Normal. Nesse período, eu já estava trabalhando no comércio de vendas de confecção, eu rodei praticamente o comércio, só passava um ano, depois eu passei para material de eletrodomésticos, trabalhava na Radiolux. Nesse tempo, eu achei melhor iniciar o Magistério na escola Normal, foi quando eu tive oportunidade, trabalhava o dia e à noite saía do meu serviço para estudar. Fiz os três anos de Magistério, mas também ainda não tinha vocação, no momento não surgia esse amor pelo Magistério. Depois que eu terminei o curso surgiu, justamente, a chance de ir para Melgaço (Professora Dilma – 2014).
Depois de concluir o curso Científico e começar a trabalhar no comércio
de Belém, apesar de gostar do trabalho, Dilma percebeu que não estava contente
com a formação e sentiu a necessidade de fazer um outro curso, já que o trabalho
não o impossibilitava. Assim escolheu o Magistério por opção.
28 A escrita das palavras ensinaraprender juntas é intencional por considerar que este é um processo imbricado, quando se ensina se aprende simultaneamente.
152
Eu nunca fui aquela pessoa de dizer assim: “eu nasci com uma vocação”. Não lembro de ter essa ideia. No momento era assim, eu gostava sempre de desafios e de experimentar as coisas. Quando eu comecei a trabalhar no comércio eu era solteira. Financeiramente o que eu ganhava sempre dava, tinha responsabilidade sim com a minha família de ajudar, eu sempre ajudei. Escolher ser professora, o Magistério eu acredito que foi porque eu achava bonito, foi uma questão de admiração, chamava-me atenção a profissão. Eu sempre queria fazer, a gente passava pela frente da escola e eu dizia: “eu acho que vou fazer o curso do Magistério”, mas nada que fosse, eu vou porque eu pretendo seguir, entendeu? Foi mais questão de instinto mesmo de querer ver como é, de querer saber como é (Professora Dilma – 2014).
O ensino normal surgiu, segundo a comandante, por curiosidade e não
por desejo de exercer a profissão. O uniforme, a estrutura do colégio, o grupo de
alunos chamavam a atenção e despertavam o interesse de cursar para entender
como se desenvolvia o processo educacional e organizacional do curso.
Fazer o Magistério, a princípio, era apenas para ter mais uma formação
no currículo, pois se considerava contente com o trabalho que realizava e com o
salário que ganhava no comércio. A mudança ocorreu quando conheceu uma
professora que trabalhava em Melgaço, recebeu o convite para exercer o
Magistério no município e soube das vantagens garantidas pela gestão pública
local.
Wilma, Rosiete e Dilma tinham outros sonhos para a profissão e já
exerciam outras atividades antes de decidir viver o Magistério. Segundo suas
narrativas, foi a prática e os cursos de formação que possibilitaram permanecer e
gostar da profissão. Para esse feito, é desmitificado a questão “para ser professor
é preciso ter vocação”. A formação, a experiência e a competência são requisitos
fundamentais à construção da profissão professor.
Já para Jurema e Fátima a escolha da docência registrou outras histórias
por elas reveladas. Jurema detalhadamente explicou como adentrou para o
Magistério.
Quando eu estava com 17 anos, foi na época em que o Carlos Estácio ganhou para prefeito de Breves, a minha tia Mariquinha (Maria Pacheco Rodrigues), muito querida por nós, tinha implantado uma escola na casa dela e, naquela época, não tinha professor para assumir, tinha funcionado em 1976 e em 1977 não tinha professor por que a professora tinha se mudado. Então, o prefeito precisava de professora para trabalhar, foi aí que a minha
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tia procurou por lá, como diz o ditado “com luz de candeia” e não achava um profissional com uma escolaridade mais alta. A única que existia por lá era eu, tinha concluído a 4ª série, mas eu não tinha idade, tinha apenas 17 anos. Como o Carlos Estácio foi um grande amigo do papai, este havia trabalhado com ele na campanha, então o prefeito disse: “Como só falta um ano para ela completar a idade, contratarei a Dona Piedade como professora e Jurema irá dar aulas”. No outro ano, quando eu completasse 18 anos tiraria o meu documento e passaria para meu nome, e foi isso que se fez. Então a partir daí foi o ano de 1977 com 17 anos, quando comecei a ajudar o papai financeiramente (Professora Jurema –2014).
No depoimento da comandante ficou visível que a entrada para a
docência não foi uma escolha nem uma decisão própria e individual, foi uma
decisão familiar, coletiva e política. A carência de professor no lugar e a iniciativa
da família com o apoio do governo municipal de Breves contribuíram para que
Jurema fosse contratada, mesmo sem idade adequada e qualificação profissional.
Ao dialogar com a comandante a respeito dos interesses por outra
profissão, ela comunicou que na época não pensava em profissão, tinha cursado
até a 4ª série e vivia no interior sem despertar em si qualquer desejo profissional.
Na verdade, eu não escolhi ser professora, eu não sei se meu caminho foi traçado, eu acredito muito na espiritualidade, por isso eu busco muito a Deus, isso é uma coisa que a gente não tem resposta. Eu não escolhi minha profissão, ela veio por um processo, porque o meu pai disse: “minha filha eu vou mandar te educar para ti desemburrar teus irmãos”, ele falava muito isso. Ele lidava e conversava com muita gente, com pessoas de conhecimento. Então, eu acredito que ele começava a entender no diálogo, na conversa, que a educação era o grande caminho para se chegar ao desenvolvimento. O meu pai começou a perceber isso (Professora Jurema – 2014).
Para Jurema ser professora foi uma escolha divina – sem explicação e
sem resposta – assim ela acredita. Começou por uma missão dada pelo pai para
“desemburrar os irmãos”. Não escolheu a profissão, mas depois que passou a
viver a relação professor-aluno, investiu na formação porque aproveitou as
oportunidades da Secretaria Municipal de Educação de Breves.
Diferente das demais comandantes, Jurema iniciou a docência tendo
cursado somente as séries iniciais do antigo 1º Grau e sua formação foi
acontecendo na dinâmica da profissão.
154
Comecei a trabalhar lá na Escola João da Matta, a primeira escola onde eu trabalhei, no rio Macacos, município de Breves. E nesse mesmo ano, quando eu terminei o ano letivo, o Secretário de Educação, que naquela época era o senhor Márcio Furtado dos Santos, enviou uma carta para mim e todos os professores leigos, que não tinham completado ainda o 1° Grau, que eu fosse fazer o curso de capacitação em Breves, no período de dois anos: 5ª e 6ª (1ª etapa) e 7ª à 8ª (2ª etapa). E foi assim que eu concluí o 1º Grau (Professora Jurema – 2014).
A comandante concluiu por etapa o 1º Grau e, posteriormente, avançou
para o 2º Grau na mesma dinâmica de organização funcional.
Quando foi no final do ano o Carlos Estácio já conseguiu o curso de formação de professores em Magistério em nível 2º Grau, para Breves. A nossa turma foi pioneira no curso de Magistério em Breves, formamos em 1982. Então quer dizer, eu não pedi, mas eu já gostei, a partir das primeiras disciplinas que nós estudamos, adorei, passei a gostar do tema. Eu já gostava de dar aula, adorava, fui me identificando, não sei se foi o meu futuro, se a minha vida já estava planejada, estruturada, eu não sei, mas eu só sei que foi assim o processo e até hoje eu sou professora. A escolha pela minha profissão eu avalio como excelente, porque foi a profissão de professora que me deu o status social que hoje eu tenho, como eu já falei se eu não tivesse estudado eu não era nada na vida, quem sabe já não estivesse viva. Foi a profissão de professora que me fez conhecer outros mundos e realidades vividas cultural e socialmente (Professora Jurema – 2014).
O curso de Magistério foi a base para Jurema compreender o ofício da
docência e a importância da formação para o desenvolvimento da prática
pedagógica, pois, como referendou, já existia em si o gostar de dar aula, mas era
necessário o saber-fazer.
Nesse entendimento, Imbernón (2002, p. 60) afirma que o conhecimento
pedagógico especializado, como a formação científica, cultural, psicopedagógica
e pessoal são bases fundamentais a serem desenvolvidas na formação inicial do
futuro professor, para “assumir a tarefa educativa em toda a sua complexidade,
atuando reflexivamente com flexibilidade e o rigor necessário”.
Na ótica da professora migrante, a profissão docente representou uma
mudança em sua vida, mudou o senso crítico, poder de decisão, interesse pelos
estudos. Essas questões vieram acompanhadas pelo reconhecimento, status
social e condição econômica da família.
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Já para Fátima o desejo pela profissão lhe acompanhou desde a infância,
estava dentro de si o querer ser professora e foi para realizar esse sonho que
migrou, de seu interior, para Belém pela segunda vez. Ela conta:
Um dia, tinha um pessoal que morava perto dessa casa que eu morava antes, eram vizinhos, apareceram em casa para pedir a mãe, eu falo a mãe, para eu ir morar com eles, ajudar a mãe deles na casa e estudar, de novo a mãe prontamente deixou, o pai não queria deixar, mas eu queria ir, então eu fui e terminei a 8ª série. Nessa última casa que eu fui morar todo mundo era professor, tinha a Irene que era enfermeira, todo mundo estudava e começaram a me incentivar. Então eu estudei, conclui a 8ª série na Jarbas Passarinho, sem recuperação graças à Deus! Depois fui estudar no IEP, eu já queria ser professora, eu já estava sabendo o que eu queria ser, devido toda aquela situação que eu vivia na casa dos outros. Eu achava que tinha que ter uma vida melhor para mim e para ajudar a minha família, ajudar a minha mãe. Naquela época, para estudar no IEP tinha que fazer uma prova e tinha que tirar 5 para passar e fazer formação de professor, fui fazer a prova e passei, graças à Deus! Fiquei estudando. Foi lá no IEP que eu me formei, me tornei professora, fiz o Magistério, terminei em 1985 (Professora Fátima – 2014).
A escolha da profissão docente para Fátima foi o inverso das demais
comandantes. Em nossos diálogos sempre mencionou que, desde criança,
pensava em ser professora. Até as brincadeiras de infância encenavam a sala de
aula.
A realização do sonho fez Fátima viver e enfrentar diversas situações
problemas tais como: a migração, a ausência da família, a moradia com pessoas
estranhas, a falta de adaptação e o apoio para estudar, a exploração do trabalho
doméstico e, principalmente, a falta de recursos financeiros para se manter e,
posteriormente, as dificuldades para exercer a profissão. Assim, ela narra sua
vida após terminar o curso:
Quando foi minha colação no IEP eu já estava grávida, só que ninguém sabia, eu estava com dois ou três meses. Eu colei grau, já era professora, tinha o diploma e tudo mais e eu tinha a ilusão de arranjar um trabalho, pois já sabia que estava grávida, então queria arranjar um trabalho, porque não queria contar a minha mãe nem para o pessoal que eu morava, porque era difícil, Deus os livre! Eu aparecer grávida, meu Deus! Andei com o diploma debaixo do braço nas escolas em Belém, mas quem disse que eu consegui alguma coisa. Olha só o meu pensamento, estava formada iria arranjar um trabalho e criar o meu filho, esse era meu pensamento. Triste ilusão, mana, não consegui nada, claro, eu
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não tinha ninguém que me indicasse, não tinha conhecimento de nada, querendo só eu resolver as coisas, como é que eu iria conseguir trabalho, ainda mais porque eu estava grávida, como é que iam me dar um emprego (Professora Fátima – 2014).
Em 1985, Fátima já estava formada e grávida, o que a levou a viver a
dura realidade brasileira. Na época, a falta de mercado de trabalho para os jovens
recém-formados. Depois da decepção era a vez de falar a sua situação à família e
resolver o que iria fazer para criar seu bebê.
Ultrapassado esse momento de dificuldades, ela recebeu o convite de
uma amiga para morar em Melgaço, aceitou e encontrou no município a
oportunidade de exercer a profissão. A experiência docente a levou a viver outros
desafios e histórias que conformam sua trajetória humana.
Frente as motivações da escolha pela docência, surge a necessidade de
apresentar os significados do ser professora, os sonhos vividos ou abandonados
ao longo dos percursos da docência. É preciso não olvidar que toda rememoração
é revestida de significações em filtragens do presente, bem como reinterpretações
expressam subjetividades e posicionamentos interconectados à formação
humana e profissional do pesquisador. Portanto, a narração e a escrita
comunicam:
Resistir:
Sonhar? Recuperar idéias anuladas: esperança
solto fio horizonte
livre traçar As mãos empunham lápis
Sobre papeis tão finos ressentidos
desarmados por enredos armaduras urdiduras:
o bordado pode? o avesso tem?
outra história há? Registro.
Traço. Teias eu desfaço?
(Nilma Gonçalves Lacerda, 2004)
As narrativas das comandantes apresentaram muitos traços presentes no
enredo desta poesia, mas também revelaram o trabalho fundido à própria vida.
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Expressões como: “até hoje sou professora”, “me identifiquei com a profissão”,
“era meu sonho desde criança”, “eu nasci para ser professora” e “talvez não
estivesse mais nem viva”, foram registradas por elas e significam forte teias de
relações pessoal e profissional que contam seus fortes vínculos com a docência.
Essas relações, contudo, não se fazem num viver romantizado. Elas são
entrelaçadas por desafios, conflitos, queixas, frustações, superações, realizações
e comigo foram socializadas.
Essa experiência com as professoras migrantes associa ao
posicionamento de Hissa (2013, p. 17), sobre a arte da investigação científica
partilhada.
A pesquisa é compartilhamento, ainda que isso nem sempre se dê a ver [...]. Aprende-se, ao fazer, com o outro. O primeiro passo: aprender a ouvir. O último: não há o fim das coisas. [...] A pesquisa é o movimento que deveremos fazer na direção da construção da consciência de ignorâncias nossas.
Ao ouvir as narrativas das comandantes, vejo que o trabalho docente
exercido por elas aparece como uma necessidade humana, política, social e
cultural, por entender-se que a profissão não se resume as atividades do espaço
da sala de aula, mas como uma possibilidade de transformação tanto na vida das
comandantes quanto na dinâmica da comunidade. Essa compreensão é expressa
em suas vozes.
Um imenso prazer, uma imensa alegria que tenho e pode ser que não tenha falado, foi que esses longos anos que eu trabalhei na Tancredo Neves, tem pessoas que fluíram na sua profissão, conseguiram crescer, prosperaram estudando, um exemplo é você, eu fico muitas vezes me lembrando de você, fico me lembrando de nossas reuniões pedagógicas, quantas vezes ficavas calada, tímida, quem sabe até diante de minha experiência e hoje estás aqui me entrevistando para o seu mestrado que está concluindo, o qual eu parabenizo muito. Vejo também todos os outros colegas professores que estão atuando na Tancredo Neves, a professora Cilene, Cileide, Marilene, Elias e outros colegas. Então, isso para mim, é prazeroso, é uma grande alegria, colegas professores, meus ex-alunos que até hoje me ligam, “professora, estou precisando que a senhora me oriente sobre isso” (Professora Rosiete – 2014).
Rosiete destacou o prazer de ter contribuído com a formação acadêmica
de seus ex-alunos. Hoje, alguns deles já são colegas de profissão. Junto disso,
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a comandante acrescentou a relevância social de seu trabalho para a promoção
e o desenvolvimento profissional da sociedade, principalmente, na área da
educação. Esses pontos de referências selecionados na narrativa, tem o
propósito de destacar o lado positivo da profissão, o que representou para ela a
dimensão simbólica do ser professora. A interpretação da comandante remete a
Fontana (2003) ao referendar que
Não se analisa o vivido sem referências, [...]. Não se analisa, não se interpreta o vivido sem um objetivo, sem um para quê, sem um para quem. Alguém interpreta mediado por vozes outras, múltiplas... As referências e os objetivos configuram-se nas relações sociais (FONTANA, 2003, p. 144).
O ser professora para Rosiete vem como uma realização pessoal no
contexto social vivido. Saber que seu trabalho rendeu “bons” resultados e poder
visibilizá-los transcende o exercício cotidiano da profissão e passa pela
compreensão da competência do saber ser e fazer-se profissional. Wilma
também seguiu a mesma dimensão interpretativa de Rosiete ao comunicar sobre
sonhos pessoais interrompidos e realizações profissionais.
O único sonho que eu abandonei, foi que eu não criei o meu filho, ele ficava na mão da minha mãe, quando ele veio morar comigo já tinha 17 anos, foi a única coisa. Meus sonhos não foram todos realizados, eu ainda tenho muita coisa na vida para fazer, aqui ou em outro lugar, mas sou uma mulher realizada, não plenamente, falta muita coisa, mas na educação eu sou realizada pelos frutos que eu já dei aqui nesta cidade. Porém, é uma construção invisível, às vezes, até a mudança de comportamento, de atitude, o ensino, a educação não aparece logo, vem com o tempo, agora já está aparecendo. Nesse sentido de educar eu sou realizada, porque tanta gente que passou por minhas mãos, que eu alfabetizei na pré-escola já me deram aula hoje, são pós-graduadas. Como profissional, sou muito feliz, uma mulher privilegiada dentro da educação, não tem nenhuma escola, não tem nada com meu nome aqui, mas sou privilegiada pelo reconhecimento das pessoas, pela referência que sou, não só eu, como as outras professoras a Dilma, a Rose, a Fatima, a Jurema, nós somos referências, eu me sinto referência (Professora Wilma – 2014).
Migrar para a formação e, posteriormente, para a docência ou
acompanhar o crescimento do filho mais velho, foi para ela escolhas delicadas e
que ainda refletem em sua vida, como falou a poeta: “as mãos empunham o
lápis sobre papeis tão finos”.
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Ser mulher realizada, “não plenamente”, também se justificou por um
passado que deixou e ainda reflete no seu presente. Ser professora para a
comandante traduz um sentimento complexo, por trazer realizações
significativas e reconhecimento da comunidade, mas exigiu renúncias na vida
pessoal, o que provoca, nas reminiscências do presente, certas decepções,
quando avalia que a valorização profissional passa pela falta de sensibilidade
política.
Jurema, por sua vez, registrou um tempo de frustração e de superação na
carreira e na formação profissional é o que revela o excerto a seguir:
Lá na minha escola, quando eu fiz o concurso público eu fiquei em 4º lugar, eu perdi a minha cadeira para uma ex-aluna, foi uma dor para mim, sofri muito, uma dor tão grande que eu chorava dia e noite, rezava. Eu tinha lutado por um espaço na educação e por uma aposentadoria com nível superior, mas não ia chegar, então eu fiquei muito triste rezava muito e já estava desesperançosa, [...], foi uma decepção muito grande para mim, a partir daí eu comecei a me tornar mais humilde. Eu era e me sentia dona da cadeira da Língua Portuguesa e eu perdi para a minha aluna. Então, eu comecei a pensar que a gente deve ser humilde e não deve se achar a tal, porque teve um certo momento na minha vida que eu pisei muito de sapato alto, eu me sentia muito maior do que verdadeiramente eu era, mas depois foram acontecendo coisas comigo e eu fui aprendendo e procurando me tornar essa pessoa mais humilde (Professora Jurema – 2014).
Ao refletir a respeito de sua postura profissional, a comandante
compreendeu que as situações vividas na profissão ajudam a rever sua formação
pessoal e profissional na relação com o outro. Nessa perspectiva, Souza (2008d,
p. 95) acrescenta “o ato de lembrar e narrar possibilita ao ator reconstruir
experiências, refletir sobre dispositivos formativos e criar espaço para uma
compreensão da sua própria prática”.
Fazer o concurso e não garantir a cadeira considerada “sua” e ser
ocupada por uma ex-aluna, naquela situação não significou uma realização do ser
professora, pelo contrário traduziu-se em decepções na vida profissional.
Jurema avaliou como negativo continuar exercendo a profissão na sua
área e não estar como professora concursada em nível superior. Para ela
representava uma estagnação na carreira docente, pois precisava estabilizar-se,
profissionalmente, para garantir os direitos de uma aposentadoria que fizesse jus
a sua formação acadêmica.
160
A representação do ser professora em Fátima ganhou sentidos que
transitam entre a luta por um sonho e o convívio com iniciais frustrações pela
desvalorização salarial do profissional de educação.
As frustrações começaram pelo início, porque quando temos aquele sonho de ser professora, sabemos que há a desvalorização salarial, mas nem pensamos nisso. Eu não sei, na verdade, como já falei, era uma coisa que estava dentro de mim, eu queria ser professora e não avaliava (Professora Fátima – 2014).
Nas narrativas recompostas, as comandantes expressaram muitas
reflexões acerca do ser professora, umas mais harmoniosas, outras mais
conflitantes, umas causavam confortos, outras inquietações, mas todas
canalizavam para o mesmo destino com orgulho: a profissão professor. Nestes
quadros da memória compartilhada, Souza (2006a, p. 93-94) compreende que
“um acontecimento não tem, necessariamente, a mesma dimensão existencial
para os mesmos sujeitos, cada um experiencia o que vive a partir de suas
representações concretas e simbólicas”, conectando-se na diferença e na
confluência dos destinos.
As representações e significações do ato de pensar, sentir e viver a
docência em toda sua complexidade e “boniteza” foram fundamentais para buscar
traçados e perceber como as professoras migrantes deram formas e sentidos
para a escolha e o exercício da profissão. A partir dessa compreensão, a
cartografia segue viagem rio adentro, desbravando sinais dos percursos da
formação docente.
3.3. Nos Trânsitos da Formação
Compreendo que a formação não se limita e nem se esbarra no espaço instituído e tido como legítimo para tal, seja nos cursos de magistério ou nas faculdades e/ ou universidades através das licenciaturas. [...] acontece no decurso da vida (SOUZA, 2006a, p. 91). Uma coisa que me motiva muito na verdade é o que eu leio, o que eu assisto, porque quando a gente assiste as coisas, acompanha a gente percebe que nós professores temos que estar sempre atualizados, então eu digo: “Meu Deus! Eu preciso acompanhar o desenvolvimento do tempo”. Quando eu fiz o Magistério, eu parei, veio o casamento, os filhos e, naquela época, não havia vestibular
161
na minha região. Eu parei, fiquei dez anos sem estudar. Terminei o Magistério em 1982 e quando eu fiz o vestibular foi em 1992, fiz para História, não fui aprovada, mas também não era a minha área, eu acho que se eu tivesse passado seria uma péssima professora de História (Professora Jurema – 2014).
Os processos de formação não se limitaram à conformação de um tempo
e espaço pré-determinado, eles acontecem no “decurso da vida”, conforme
sintonizam assertiva de Souza (2006a) e narrativa de Jurema (2014). A luta pela
qualificação profissional parece assemelhar-se à incessante experiência
migratória.
A formação nessa ótica, segundo Dominicé (1988, p.146) “é atravessado
por múltiplos processos relacionais” entendida, como política, ideológica, social e
pedagógica, assim como relacional, já que os sujeitos se inter-relacionam com
suas alteridades, lugares e novos saberes. Nesse contexto a formação não é
neutra, visa interesses e negociações governamental, institucional, local e
pessoal.
Imagem nº 18: Pisadas na formação.
Fonte: Arquivo da pesquisa - setembro de 2015.
Quando sigo as orientações de Nóvoa (1988) que se fundamentou em
Freire (1987, p. 68), percebo que a escuta das trajetórias das professoras
migrantes acerca da experiência de formação inicial e continuada deixam ver que
162
“ninguém forma ninguém” e que “a formação é inevitavelmente um trabalho de
reflexão sobre os percursos de vida” (NÓVOA, 1988, p.116).
As professoras migrantes, dinamicamente, experienciaram a itinerância
da formação para garantir a formalidade da política educacional, suprir a
necessidade de aquisição de conhecimentos e ainda pela carência de programas
ou projetos de formação no próprio município. Rosiete, por exemplo, relembrou
um desses processos vivenciados.
Quando eu cheguei em 1983, eu tive muita sorte, eu fui trabalhar com a 1ª série e aconteceu um fato muito importante nessa minha carreira é que o Governo Estadual estava capacitando professores. Tinha curso para formar professores de 1ª a 4ª séries e também Adicionais. Então, no mês de julho já estavam iniciando essas turmas e a diretora me inscreveu para fazer Estudos Adicionais junto com as outras colegas que já tinham Magistério. Eu fui na embarcada e quando chegamos a Belém eu fui para o Colégio Moderno e chegando lá fui barrada, porque eu não tinha Magistério, por isso me transferiram para Marituba para fazer o Magistério em nível de 1ª a 4ª séries. Eu não pensei duas vezes, fui embora para Marituba e as colegas ficaram fazendo o Adicionais no Colégio Moderno. Aí sim, comecei a ter um conhecimento básico desse outro lado. Voltei em janeiro para novamente estudar e com certeza o meu trabalho foi melhorando, os meus recursos didáticos, minhas técnicas, minha metodologia, eu fui conseguindo perceber a própria forma de como tratar esses alunos na sala de aula, no sentido que eles não dispersassem, não se tornassem tão irrequietos. Mas, na verdade, a minha relação professor-aluno não conseguiu mudar, continuou sendo uma relação ditatorial, daquela relação que você tem que impressionar, botar firme, botar quente para os alunos não bagunçarem entre aspas e essa prática na verdade só vai mudar com a Universidade. Mas eu acredito que eu não era uma pessoa tão severa em sala de aula, eu penso que não (Professora Rosiete – 2014).
A narrativa dessa professora migrante reconstituiu enunciados da
trajetória trilhada para realizar a formação inicial e se autoavaliou quanto aos
resultados na prática pedagógica. Foi a partir do curso de Magistério que
começou a adquirir conhecimentos pedagógicos básicos que deram
sustentabilidade às atividades desenvolvidas no cotidiano escolar. Se as
mudanças se manifestaram, as continuidades ainda persistiram, exigindo o galgar
de outros níveis na formação profissional. No movimento da memória emergem
metodologias, técnicas de ensino e esforços da comandante para superar-se: “eu
de fato aprendi e me interessava para querer cada vez ser melhor e ensinar
163
melhor o meu aluno”. O desejo de aprender é por ela atribuído pelas dificuldades
de aprendizagens que sentiu em algumas disciplinas quando era aluna e este
referencial fez compreender as condições de aprendizagens de seus alunos,
impulsionando a buscar por qualificar a prática docente.
Rose fez o curso de Magistério e as demais professoras migrantes,
Wilma, Dilma, Jurema e Fátima fizeram a formação em Estudos Adicionais29. Nas
suas narrativas trouxeram os percursos que oportunizaram e motivaram a viverem
a experiência docente com maior segurança e desenvoltura, vejo isto quando
explica:
Muitas coisas aconteceram, o meu padrinho era aquela pessoa que dava muito apoio à educação. Quando tinha curso em Belém ele nos levava para fazer e fazia questão de nos deixar no encontro, até participava da abertura do curso, era uma satisfação para ele. Eu participei de um encontro da Pré-escola em Belém lá no Centro de Treinamento e Recursos Humanos (CTRH). Quando foi em 1984 veio para Melgaço, para escola do Estado, um comunicado que haveria um curso de Adicionais em Belém e tinha vaga para Língua Portuguesa e Estudos Sociais. Eu fiz para Língua Portuguesa (Professora Jurema – 2014).
As lembranças da comandante remetem-se ao governo de 1983-198830,
por apoiar e incentivar a formação continuada das professoras. Faz-se necessário
considerar que este apoio revelava os interesses políticos da gestão municipal:
formar professores para cumprir as exigências da Lei 5692/71 e as necessidades
de consolidar o ensino de 5ª a 8ª séries em Melgaço.
Dentre os cursos de formação, os Estudos Adicionais especializaram as
professoras migrantes a trabalharem por área de conhecimento e cada uma
escolheu a que tinha maior afinidade: Jurema cursou Língua Portuguesa; Wilma,
Estudos Sociais; Dilma, Matemática; e Fátima, Ciências Naturais. Posteriormente,
estes cursos foram escolhidos por elas para galgarem o ensino superior.
Fátima explicitou os sentidos da formação para a sua vida profissional.
A minha formação foi acontecendo aos poucos por pura necessidade, já que eu estava trabalhando com ciências era a pura necessidade dessa formação, só os livros já não me
29 Estudos Adicionais era uma exigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - 5.692/71. 30 Nas memórias das comandantes, referente a esse governo, aparecem de elogios, pelo incentivo e apoio que atribuía à educação do município.
164
aguentavam mais, então eu fiz Adicionais e apesar de ser só de 5ª a 6ª séries, mas eu lecionava até a 8ª série, justamente a 8ª série que eu fiquei reprovada porque eu tinha dificuldade na parte da Química (Professora Fátima – 2014).
A complexidade na arte de educar e as especificidades da disciplina
provocaram em Fátima o interesse e a busca pela formação. A profissão lhe
exigia cotidianamente conhecimento e inovação na prática pedagógica e os livros
didáticos não eram capazes de lhe oferecer. Assim, a cada dificuldade vivida
novos desafios eram acionados para superá-las e desenvolver-se
profissionalmente.
Imbernón (2002) considera que o desenvolvimento profissional do
professor pode tornar-se uma motivação para qualificar a prática docente.
Contribuem, nesse processo, os cursos de formação inicial e continuada, a
promoção salarial, o clima no ambiente de trabalho, dentre outros dispositivos que
são inerentes à profissão docente.
Nessa perspectiva, o autor propõe uma formação de caráter inovador que
além da competência pedagógica visa a formação de si, abrindo espaço para a
participação, a reflexão e a convivência com as incertezas e as transformações.
As narrativas feitas pelas professoras migrantes permitiram apreender
dificuldades, superações e reflexões acerca dos processos de formação. Souza e
Carneiro (2010, p. 224) corroboram e ampliam a compreensão quando apontam
que o exercício da narrativa possibilita a “recriação de memórias afetivas e
sensíveis e um espaço de reflexão sobre sua formação pessoal e profissional”.
Após os Estudos Adicionais, as comandantes foram mergulhando em
novas formações concomitante à experiência docente. Wilma, Rosiete e Jurema
realizaram o nível superior pelo projeto de interiorização da UFPA, Campus de
Soure no Marajó; Dilma e Fátima pela parceria da SEDUC com as instituições de
nível superior, também no Campus de Soure, sendo que Dilma foi pela UFPA e
Fátima pela UEPA. Wilma orgulhosamente falou desse momento de formação:
Eu fiz o primeiro vestibular da UFPA pela interiorização, eu fui da primeira turma, nós lá da casa prestamos e a maioria passou e nós fomos cursar em Soure, eu fui fazer História juntamente com a professora Rose (Professora Wilma – 2014).
165
A professora migrante enfatizou com bastante clareza o prazer de fazer
parte do projeto inicial da UFPA, mas também não deixou de falar de suas
dificuldades e limitações para acompanhar, inicialmente, a proposta do seu curso
de Licenciatura Plena e Bacharelado em História.
Quando eu comecei a estudar novas teorias, novas práticas, a fazer os trabalhos na Universidade, eu senti tanta dificuldade, que eu não conseguia sai do nada, os meus primeiros trabalhos individuais foram uma negação, porque a minha visão de mundo era restrita, eu não colocava o que eu pensava para fora, eu queria apenas decorar, porque eu tinha decorado ao longo dos tempos. Mas no segundo ano do curso, eu já consegui captar, outras metodologias e já consegui passar para o papel a minha visão de mundo que eu estava adquirindo e descobrindo na Universidade (Professora Wilma – 2014).
As novas metodologias de ensino foram os maiores desafios que Wilma
precisou enfrentar na formação universitária. Tais desafios, posso dizer,
superaram as condições estruturais e logísticas para fazer o curso, pois
novamente precisou migrar para realizar a formação. A nova dinâmica de ensino
em interação na universidade motivou o rompimento das velhas estruturas de
aprendizagens, tidas como corretas, “eu tinha decorado ao longo dos tempos”.
Os saberes adquiridos no Magistério refletiam a estrutura curricular de um
dado momento histórico. A política educacional que orientava a formação de
professores ainda não havia se libertado dos ranços do velho regime civil militar,
pois o regime democrático havia renascido nos dois últimos anos. Como se viu,
Wilma experimentou na pele a crise de paradigmas que se orientava, de um lado,
pela repetição e reprodução do conhecimento e, de outro lado, pela construção,
problematização e análise crítica.
Rose, também aluna da turma pioneira de História no Projeto de
Interiorização da UFPA no Marajó, expressou-se:
A minha vinda para Melgaço foi tão boa que mudou significativamente. Eu concluí o 2º Grau em Magistério e logo em seguida em 1987, houve a 1ª turma do Projeto Interiorização da UFPA, quer dizer, nós éramos cobaias desse projeto, nos inscrevemos. Eu fiquei na dúvida; “o que eu vou fazer? História, Geografia, Pedagogia?” Não queria fazer nenhuma dessas áreas, mas era o que tinha. Eu disse: “eu vou fazer”. Eu ainda estava com aquela vontade de fazer para o lado da Medicina, mas como já estava na área de Magistério, eu disse: “é uma dessas que eu vou fazer”. Eu conversava com a professora Wilma, ela falou:
166
“vamos fazer História, Rosiete”. Eu disse: “está bom, vamos ver o que é História”. Nós fizemos e fomos aprovadas para estudar em Soure (Professora Rosiete – 2014).
Para a comandante o curso de História foi um diferencial em sua vida,
transformou-se em uma profissional politizada, crítica, questionadora, defensora
da justiça e da cidadania. Os conhecimentos adquiridos no ensino superior
fizeram Rosiete ultrapassar o espaço da sala de aula, passando a interagir com
as questões sociais, políticas e econômicas locais em interações com contextos
mais amplos. Tornou-se uma profissional respeitada, porque nas participações
nos movimentos sociais em Melgaço sempre se posicionou em defesa da escuta
popular e dos direitos humanos. As atitudes adotadas lhes fizeram sentir-se útil,
feliz e importante na sua comunidade. Afirmou: “transformou de uma vez a minha
vida”.
As marcas da formação têm muitas vezes nomes e histórias. Na trajetória
dessa professora migrante isso é visível: “conheci um professor muito humano,
amigo, incentivador, mas de um rigor incomparável, ele foi meu inspirador”. A
presença do professor Paulo Watrin, do Departamento de História da UFPA, é,
segundo Rosiete e também Wilma, decisivo em suas vidas. A competência
histórica e pedagógica, aliada ao humanismo, encantaram e contribuíram para
que as comandantes mudassem sua forma de ser, pensar e agir. O encantamento
pelas leituras discutidas, sugeridas, não apenas por Watrin como também por
outros mestres, fizeram a vida pessoal e profissional transformar-se.
A alegria provocada pela conquista dos novos saberes imbricava-se aos
esforços para estudar. A esse respeito, Rose relatou.
Nós fomos cursar a Universidade com muito esforço, com muito esmero, com muita luta, porque nós tínhamos que ir daqui de Melgaço para Belém e depois para Soure. Nesse tempo, não se tinha ajuda do governo municipal, muito menos do Estadual, mas fomos com muito sacrifício, por exemplo, eu ganhava ainda como leiga. Você deve imaginar o quanto eu ganhava naquela época e muitas companheiras nossas de Soure, elas mesmos diziam para nós: “vocês são umas verdadeiras heroínas, porque se fosse eu já havia desistido”. Nós levávamos daqui algumas meninas para tomarem conta de nossas filhas, porque a Vilar também havia tido uma filha no mês de maio, a Viviana, são poucos meses de diferença para Mayara. E nós tínhamos que levar mamadeira, papeiro, leite, eram tanta das sacolas que nós levávamos que era uma loucura, meu Deus! (Professora Rosiete – 2014).
167
Os cursos aconteciam no período das férias. Cada etapa, uma mudança
era feita literalmente na vida das professoras migrantes, sem exceção, as cinco
viveram o processo da migração na formação. Além da socialização e troca de
conhecimentos, essas comandantes, inúmeras vezes, dividiram alugueis de casa,
babás, alimentos e as dificuldades de fazer um curso distante do seu lugar, de
sua família e ainda em tempos de precários meios de comunicação e transporte.
Muitas histórias foram contadas sobre os trânsitos da formação, dentre elas,
Jurema trouxe uma delas à luz de sua interpretação.
Fui para Soure passei dificuldades, engravidei do meu 5º filho que agora passou em Medicina na UFPA, eu tive quase na universidade esse menino, mas eu continuei na persistência, fiz apenas duas disciplinas, fiquei devendo outras, mas aconteceu que a maioria da turma ficou reprovada em Latim II e ela foi reofertada na outra etapa e eu pude fazer com a turma, mas fiquei devendo mais uma disciplina e fui pagar em Abaetetuba e foi mais uma dificuldade. Então, são coisas que vem para nos desafiar, mas eu acho gostoso, a pessoa passa por dificuldades e depois supera (Professora Jurema – 2014).
Os relatos das comandantes trouxeram exemplos de persistência pessoal
para conquistar a qualificação profissional, chegando a comprometer o bem-estar
pessoal e familiar, especialmente dos filhos. A interrelação entre vida pessoal,
familiar e profissional fez ver também na experiência de Rosiete.
Eu fiz uma pós-graduação quando eu passei a trabalhar pelo município, em 2001, o secretário de educação era o professor Agenor Sarraf. Nós organizamos um grupo e fomos fazer a especialização em Belo Horizonte, foi a primeira vez que eu saí do Pará, eu fiquei maravilhada, para mim BH era outro país, impressionante, fiquei encantada, só que eu não conseguí concluir o curso, vieram as filhas comecei a ter dificuldades, cheguei ao final, mas não fiz o trabalho de conclusão. Eu fazia História Contemporânea (Professora Rosiete – 2014).
As escolhas que fazemos em nossa trajetória dizem muito do momento
vivido. Se a professora migrante não concluiu o curso de Especialização em
História Contemporânea na PUC-MG foi porque, naquele momento, optou por
cuidar das filhas. Depois teve a oportunidade de cursar outra na área de Gestão
Escolar UNAMA.
Sobre “nós e a profissão” como uma relação intimamente interligada é
exemplificada nas narrativas da comandante. Fazer pós-graduação ou cuidar da
168
vida familiar foi uma decisão que precisou tomar, pois, naquele momento, era
preciso avaliar o mais urgente e importante a ser feito.
Em Nóvoa (1992), a formação é um olhar sobre a vida e a profissão, já
Moita (1992, p. 114) acrescenta que “essa construção de si próprio é um processo
de formação”. Por isso, “ compreender como cada um si formou é encontrar as
relações entre as pluralidades que atravessam a vida”.
Falar da formação foi para Rosiete novamente o despertar do desejo de
fazer o mestrado que ficou por um tempo guardado, para envolver-se em outras
prioridades ou “pluralidades” da vida. Outras experiências de formação foram
desveladas nas rememorações das comandantes e com elas foram interagindo e
promovendo um repensar sobre a formação.
Wilma contou como conduziu esse percurso na pós-graduação. Ela
procurou mostrar que o empenho e a vontade de avançar no desenvolvimento da
formação profissional ultrapassava suas condições financeira e familiar, precisou
guardar dinheiro e contar com a ajuda da família para cuidar da filha enquanto
fazia outras travessias.
A comandante cursou uma pós-graduação, lato-sensu, na PUC-Minas.
Para ela significou um passo importantíssimo em sua vida, por adquirir formação
fora do Pará, socializar experiências educacionais vividas no Marajó e por “abrir
as portas” para outras pessoas irem viver a formação em outros espaços, como
foi o caso de Rosiete e Jurema, que também fizeram o mesmo percurso,
atravessaram fronteiras para fazer especialização no Programa de Pós-
Graduação Lato-Sensu (PREPES) da PUC-MG.
“Eu não era nem curiosa, era a necessidade de conhecimento, porque
uma pessoa que fica parada, estagnada não consegue oferecer nada para
ninguém”. Desta forma Wilma se pronunciou ao falar do seu processo de
formação e ainda continuou:
Quando eu fui ser diretora da escola, eu já tinha só a pós-graduação em História do Brasil. Comecei a senti a necessidade da parte da Pedagogia, comecei a ler alguns livros para poder assumir, como eu ia organizar uma reunião, como ia dizer para o professor “tu estás errado nesse sentido”. Devido, o grande número de diretores fora da área da Pedagogia, estava cheio no Estado do Pará, o governo promoveu um curso para todos os diretores e vices para se capacitarem. Hoje, Ilca, a gente vê muito pouco isso. Então, eu fui fazer na Universidade da Amazônia
169
(UNAMA), Gestão Escolar, foram dois anos, saíamos daqui todos os meses para participar dos encontros, foi muito bom, eu com a Rosiete (Professora Wilma – 2014).
A comandante evidenciou que não tem medo do desconhecido e gosta de
viver o desafio, mas jamais aceita qualquer proposta de trabalho se não tem
conhecimento para assumi-lo com competência. Viver a gestão escolar foi um
convite para embarcar em novas leituras desconhecidas de seu metier, superar
dificuldades e melhor compreender as dinâmicas e burocracias que permeiam o
contexto de uma instituição escolar. Nessa função, Wilma era “leiga”, legalmente
não teria formação para desempenhá-la, mas justificou que havia carência de
profissionais qualificados para assumir o cargo. O curso de Gestão Escolar
tornou-se, então, necessário para habilitar os diretores ao exercício da função.
A experiência docente forma, mas também exige formar-se
permanentemente, uma vez que a vida é dinâmica em todas as suas dimensões.
Por isso, faz-se necessário, acompanhar e dominar o desenvolvimento do
conhecimento e fazer dele um aprendizado e uma reflexão tanto para a profissão
quanto para a vida. Wilma trouxe uma sábia interpretação sobre a busca da
formação e a construção do conhecimento.
Hoje estou estagnada, mas vou voltar a voar (voz pesada), enquanto eu viver é isso aí (choro preso). Esses cursos que fiz, eu levava muito a sério, isso me deu profundo conhecimento, muitos conhecimentos que hoje me serve mesmo, serviu para a vida, mudança de comportamento, mudança de conhecimento, de estrutura de vida, de perceber o mundo de uma outra forma, porque cada curso que tu fazes tu vais descobrindo novos horizontes, novas possibilidades que você pode contribuir dentro de uma comunidade e, acima de tudo, tu ser humilde no teu conhecimento. O que é essa humildade? Não é deixar subir para a cabeça, não é se mostrar, mas você saber se mostrar no momento exato e necessário (Professora Wilma – 2014).
A formação deve ser entendida como uma possibilidade de despertar o
professor à capacidade de questionar, permanentemente, suas aprendizagens e
contribuir para o desenvolvimento do eu pessoal e profissional. De acordo com a
concepção interpretativa da comandante, a cada curso feito foram novas
aprendizagens adquiridas e ações repensadas que serviram de base para a
mudança de sua vida.
170
André (2009) argumenta que a formação promove uma reflexão-crítica e o
desenvolvimento do pensamento autônomo capazes de fazer emergir atitudes de
autoformação. Ela capacita o professor a desempenhar ações próprias e
inovadoras, tanto na prática docente quanto na formação. Desta forma, o ato de
formar-se emancipa e (re)constrói a própria identidade profissional.
Assim como Wilma, Rose também fez a Especialização em Gestão
Escolar e socializou sua avaliação a respeito das aprendizagens e experiências
adquiridas no curso.
O Estado ofereceu uma capacitação e em seguida uma especialização. A capacitação foi toda voltada para o lado burocrático, administrativo, prestação de contas. Já a especialização focalizou a parte de gestão, essa para mim foi o máximo. Eram professores excelentes, nós trabalhávamos muitas metodologias, a relação social, atividades que desenvolvam o coletivo e fui me encantando. Foi uma das melhores, além das teorias, das práticas, dos encontros, das trocas de experiências, a mudança que me proporcionou de como gerenciar, administrar uma escola e, principalmente, o coletivo. Diante de tudo isso é o coletivo que vem nos trazer todo o tempero, toda a organização e todo o desenvolvimento do nosso trabalho. A relação humana também, você precisa ter uma relação humanizadora na escola, porque se não tiver não fica tanto tempo numa gestão e ainda não consegue desenvolver um bom trabalho, você pode até encontrar outras dificuldades no trabalho, mas com a humanização superamos (Professora Rosiete – 2014).
Com muita segurança, a comandante enfatizou que de todos os
conhecimentos apreendidos no curso de Gestão Escolar o mais significante foi ter
reconhecido a importância da relação humanizadora para a promoção do trabalho
coletivo. Pautada em sua experiência, acrescento: de nada adianta ter
competência se não se estabelece uma relação humana que proporcione a
motivação do trabalho com o outro em uma instituição escolar. Eis um desafio no
currículo dos cursos de formação!
Acredito que três elementos são fundamentais nessas experiências de
formação: competência, ética e humanidade. Competência para agir com rigor e
sabedoria; ética para administrar com justiça e dignidade os direitos do cidadão e
humanidade para compreender e respeitar as especificidades das pessoas e do
lugar.
171
O alcance dos cursos de especialização na trajetória de formação das
professoras migrantes atingiu práticas, valores e atitudes. Jurema contou um
pouco das muitas vivências em torno do assunto.
Eu fiz uma especialização e percebi que melhorei muito em sala de aula, era Métodos e Técnicas de Ensino, acontecia no período de uma semana de três em três meses. Quando eu já estava terminando as disciplinas, comecei a fazer outra especialização na PUC-Minas, nesta eu fui ampliar muito meu conhecimento sobre a linguística textual. Então, eu passei a casar métodos e técnicas da Língua Portuguesa com as práticas da leitura, produção de texto. Ficou mais fácil para ensinar a língua e eu passei a gostar mais da minha área. Eu sempre disse, cada vez mais que eu lia e leio, mais saberes acumulava. Comecei a criar uma frase que sempre digo: “tudo que diz respeito à língua me interessa”. Hoje eu falo a linguagem: “tudo que diz respeito à linguagem me interessa”, porque eu faço o mestrado em Arte (Professora Jurema – 2014).
Ao compartilhar aspectos da trajetória de formação, Jurema mostrou ser
uma pessoa inquieta pela busca do conhecimento. Assinalou que sempre teve o
irmão caçula como inspirador e motivador de suas realizações acadêmicas.
Dentre as especializações cursadas, avaliou que Métodos e Técnicas de Ensino
foi importantíssima para repensar a relação professor-aluno. “Eu passei a me ver
melhor, me conhecer melhor”.
A comandante considerou a disciplina Relação Pedagógica fundamental
para avaliar e transformar suas atitudes na interação com os alunos. “Eu não
tinha um olhar mais agradável de sorrir, eu era uma professora um pouco mais
dura, eu acho, não sei como meus alunos me viam”. De acordo com Caeiro
(2009, p. 68)
A formação consiste em proporcionar a outros seres humanos meios que lhes permitam estruturar a sua experiência, com o fim de ampliar continuamente o conhecimento, a crença racional, a compreensão, a autonomia, a autenticidade e o sentido da própria situação no passado, no presente e no futuro. Por isso, formar é transformar, ou, antes, formar é levar a querer (trans)formar-se.
Depois da última pós-graduação lato sensu, Jurema decidiu que só faria
outro curso se fosse o mestrado, por já estar quase para solicitar a aposentadoria.
A dificuldade para galgar esse novo grau estava na falta de familiaridade com a
língua estrangeria. Em suas palavras: “eu me condeno, eu dormi no ponto, era
172
para eu ter estudado a língua estrangeira, porque as minhas colegas que
cursaram comigo Letras, muitas continuaram, eu não fui adiante”.
Em 2013, um dia o irmão caçula lhe ligou e desafiou: “mana, por que tu
não fazes o mestrado em Arte. Jurema respondeu: “ah, mano, eu acho que eu já
vou me aposentar”. O desafio, no entanto, a deixou mais uma vez inquieta e
decidiu se preparar para o processo seletivo, pois acreditou que poderia se
aposentar com a gratificação de mestra. A comandante, então, realizou todas as
fases e obteve êxito. Assim, entre 2013 a 2015 cursou o mestrado no Programa
de Pós-Graduação em Artes na UFPA, defendendo em junho de 2015 a
dissertação “Arte da Voz e do Corpo: poéticas de narradores urbanos (Melgaço-
PA) com o conceito excelente.
A realização do mestrado foi um momento de variadas superações para
Jurema, tanto na trajetória de estudo, porque era uma área que tinha pouco
contato, quanto na atuação profissional, porque mesmo sendo professora de
Língua Portuguesa ensinava Artes para completar carga horária e não possuía
qualificação profissional na área.
Na plêiade de experiências construídas pelas professoras migrantes,
Fátima deixou ver que a formação foi um processo que ia acontecendo para suprir
as necessidades da profissão. Formou-se em Magistério porque era um desejo,
depois foi se envolvendo na área específica do conhecimento que mais se
identificava. Ela elucida aspectos importantes da trajetória:
Eu comecei no Fundamental apareceu a necessidade e eu fui para o Médio, fiz uma especialização em Ciências pela UFPA, no Campus de Breves, no final eu fiz o meu memorial, nele eu falo da minha formação até o momento que fiz aquela especialização em Métodos e Técnicas de Ensino pela UNIVERSO. Então é isso, eu estou querendo me aposentar, tenho que organizar os meus documentos, não que eu esteja cansada, mas eu acho que já deu o que tinha que dá, na verdade (risos). Trabalhar eu gosto, ser professora eu gosto, apesar das dificuldades e dos problemas que enfrentamos (Professora Fátima – 2014).
Fátima concluiu a graduação em Ciências Naturais e mergulhou na
prática docente com turmas de 5ª a 8ª séries e Ensino Médio. Nesse momento, o
ensino foi se tornando mais exigente, os alunos mais informados e o contexto
escolar mais complexo. Para acompanhar essa dinâmica, sentiu a necessidade
de ir além das formações continuadas que participava como oficinas, seminários,
173
palestras, especialmente ofertadas pela Secretaria Municipal de Educação.
Alcançar a especialização em sua área passou a ser uma necessidade para
acompanhar o momento de aprendizagem de seus alunos, oferecendo-lhes maior
segurança e qualidade na transmissão, produção do conhecimento.
Morgado (2011) considera que, para além do domínio do conhecimento
científico, o professor precisa conhecer a relação do processo educativo, a
cultura, a escola e sua função no mundo. Com isso, poderá compreende os
sentidos da aprendizagem, as especificidades de cada aluno e o contexto em que
se faz professor.
Dilma, por sua vez, reconstituiu as vivências nos cursos de formação com
sorriso nos lábios pelos resultados alcançados.
Depois que me formei, vim para Melgaço e consegui o meu objetivo de ser professora de Matemática. Através da profissão, tive a possibilidade de participar de vários cursos de formação, tanto que hoje também sou formadora de outros colegas que estão em sala de aula. Não só agora, como anteriormente, já trabalhei com vários tipos de formação e me sinto bem em poder ajudar os colegas, porque é uma troca de experiências cada vez que estou em uma sala de aula, dando curso de formação, eu estou aprendendo. Eu fico pensando, como eu podia imaginar que há 10 ou 15 anos atrás eu pudesse trabalhar com criança muda ou cega, a primeira coisa que iria dizer que eu nunca ia trabalhar, porque eu jamais tinha experiência. Eu não sabia trabalhar com uma criança e, hoje, no curso de formação eu vejo que é tão fácil trabalhar. Tudo isso daí, onde foi que eu adquiri? Nos cursos de formação (Professora Dilma – 2014).
A comandante ganhou referência na comunidade escolar como “boa”
professora de Matemática, sua competência, maneira de conduzir o ensino e a
relação com os alunos faziam as aulas serem mais prazerosas e produtivas. Para
quem é de Melgaço e foi aluno ou teve filhos que estudaram com ela sabem do
que estou falando, mas como todo profissional, também viveu limites e
dificuldades nas teias relacionais do “ensinaraprender”.
Nos últimos anos, essa professora migrante vem conduzindo a formação
de professores do 1º ao 5º ano da rede municipal de educação, na área de
Matemática, por meio do Pró-letramento em Matemática e, posteriormente, pelo
Pacto pela Educação. Dilma relembrou essas experiências como uma “linda”
atividade que viveu na docência, por ter adquirido muitas aprendizagens, tanto
174
com os professores, quanto pelas leituras realizadas para fazer a formação. No
veio da recomposição do vivido, é possível dizer que
A memória e a história de cada sujeito revelam “experiências formadoras” empreendidas nos tempos e espaços de convivência, seja na família, na escola, nas rodas simbólicas de brincadeiras e nas mais diferentes convivências na itinerância da vida (SOUZA, 2006a, p. 113).
Ao dialogar com as interpretações das comandantes visualizo que elas
viveram o processo de formação profissional em constante transição, pois saíram
de espaços rurais e foram para espaços urbanos fazer a primeira formação em
Magistério. Formaram-se e para exercer a docência migraram até a “cidade-
floresta” Melgaço e, no percurso da profissão, para continuar a formação
deslocaram-se para outros lugares como Soure, Belém, Breves, Belo Horizonte.
Posso dizer, então, que se fizeram mulheres-professoras em trânsito da
formação.
3.4. Múltiplas Teias na Vida das Comandantes
Cheguei a Melgaço sem nenhuma experiência pedagógica e didática. A diretora me falou de todo o trabalho, explicando-me como devia organizá-lo. Assim tentei conciliar a orientação e a experiência de estudante, lembrando como é que era, como um professor se portava em uma sala de aula, como mais ou menos ele dava aula, eu imaginei que pudesse dar conta (Professora Rosiete – 2014). Cada um de nós aprendeu a ver a figura do professor dotada de grande autoridade em sala de aula: sempre foi ele quem autorizou ou proibiu desde uma simples ida ao banheiro, uma nova organização espacial das carteiras, até a aprovação ou retenção de um aluno em uma série (ARCHANGELO, 2011, p. 142).
Ao analisar as narrativas das professoras migrantes sobre a profissão
docente foi possível apreender o cotidiano das práticas docentes no início de
carreira e pós formação acadêmica, como também as relações estabelecidas no
contexto da sala de aula e no exercício de outras funções por elas assumidas.
Rosiete semelhante à Fátima, ao relembrar o início de sua carreira,
referendou que sua prática se assegurou no modo de ser dos seus professores,
175
por não ter feito o Magistério, inicialmente, a ausência de conhecimentos
pedagógicos básicos influenciou a busca dessas referências.
A narrativa da comandante entrecruza-se ao posicionamento de Ribeiro e
Souza (2011) ao fundamentarem que as experiências adquiridas no processo da
formação docente, tornam-se referência por longo tempo na vida profissional,
influenciando diretamente no modo de ser e estar professor.
Ao internalizar certas posturas e meios para conduzir o processo de
ensinaraprender e a relação pedagógica, o futuro professor, em determinados
momentos, acaba reproduzindo ou recriando discursos na prática docente.
Para melhor acompanhar esses percursos das comandantes, recorro a
Souza (2006a, p. 45) por orientar que “as relações entre história de vida,
desenvolvimento pessoal e profissional, saberes da docência e caracterização do
trabalho docente, reafirmam a necessidade de atentarmos para uma escuta
sensível da voz dos professores”.
A partir da compreensão desta escuta, procuro, na tessitura da escrita,
valorizar as interpretações, sem a intenção de fazer juízo de valores do que é
“certo” ou “errado” no desenvolvimento da prática docente, mas ciente de que
elas foram formadas numa base tecnicista, sob as orientações da Lei 5692/71 em
escola e projeto de formação do Estado.
Nesse processo, pus-me a ouvi-las. Wilma relatou o início de sua
experiência como alfabetizadora.
Ao chegar no município de Melgaço em 1982, assumi na escola Bertoldo Nunes uma turma de 1ª a 4ª séries. A minha prática enquanto professora naquela época era apenas o que eu tinha recebido na educação bancária. Ao assumir esta série, fui observar que eu tinha que crescer muito para dar um bom resultado. A minha metodologia nesse período era bastante tradicional, era aquela metodologia do B + A = BA, da repetição, mas, por incrível, que pareça eu consegui ter sucesso com essa metodologia tradicional de botar o aluno para estudar, memorizar no quadro toda a família silábica, depois passar para as palavras todo aquele processo, primeiro o alfabeto, depois a família silábica, depois as palavras. As deficiências eram muitas, mas como uma educadora que sou, sempre fui buscando o melhor, eu procurei ler livros, a fazer um plano de aula que viesse combater algumas deficiências minhas e da própria realidade, eu fui aprimorando. Por exemplo, o professor ele tem que nascer, entendeu? Eu tenho essa ideia, não sei se alguém concorda, o professor ele já nasce com aquela aptidão e vai acumulando o
176
conhecimento para desenvolver essa aptidão melhor, então eu nasci para ser professora (Professora Wilma – 2014).
A concepção do ser professora e o início da prática pedagógica da
comandante identifica em qual estrutura ideológica e política ela foi formada,
apesar de revelar-se extremamente politizada em suas atitudes, mas quanto à
profissão de professora apresentou uma visão tida como “restrita” por acreditar
que para exercê-la é preciso ter “dom” e desta forma desconsidera a
complexidade da profissão.
A prática pedagógica por ser uma construção humana situada em tempo
e espaço determinados, ganhou avaliação positiva na narrativa de Wilma. De
acordo com sua posição, para aquele tempo obteve “bons” resultados na
alfabetização das crianças com o método de B+A=BA, mas reavaliou esse
método a partir da entrada no curso superior e, em suas rememorações,
considerou como um método tradicional.
As novas descobertas provocaram-lhe a revisão de suas práticas por
perceber que o ensino não é reprodução e conhecimento um dado pronto. Ambos
são instrumentos que devem contribuir para um novo pensamento e visão de
mundo do aluno, para ele ter a capacidade de saber se posicionar e interagir no
seu meio social.
“Eu lembro que quando chegamos da universidade (risos) nós mudamos
a proposta de dar aula que, até então, ninguém puxava pela capacidade de
expressão dos alunos para escreverem o que pensavam”. A nova metodologia
não foi fácil de ser aplicada, houve resistência dos alunos. Eles partiam do
princípio de que as professoras estavam “inventando histórias”, muitos
questionamentos e comentários transitavam pelos corredores da escola. O
exercício cotidiano, entretanto, ganhou credibilidade e os alunos foram
reformulando seu modo de estudar e produzir conhecimentos.
Nesse contexto de mudanças, Wilma contou uma das experiências
adotadas pela equipe de professores da escola.
Na Escola Tancredo Neves, buscamos uma nova metodologia de ensino e nela descobrimos as habilidades dos alunos, não só aquelas de leitura e de escrita. Por exemplo, nos eventos da Semana do Folclore, descobrimos habilidades de representar peças teatrais, de criar, de falar, de se expressar e, até, de relacionamento com outro colega de outras turmas. Então, os
177
eventos, principalmente, os culturais, trouxe para dentro da Escola Tancredo Neves, um crescimento muito grande a vivência do aluno em todos os aspectos. Ele consegue repassar para nós a sua sensibilidade, quando está apresentando, quando está criando, está recriando. A escola criou esse espaço de apresentação, de criação, de recriação. Isso foi um processo construído com os professores, a partir desse momento, nós engajamos a comunidade dentro desse movimento (Professora Wilma – 2014).
As comandantes com os outros professores da escola criaram
importantes projetos e eventos socioeducativos e socioculturais31 que
mobilizavam toda a comunidade escolar. Os principais foram: Semana do
Folclore, Semana de Artes e Semana do Meio Ambiente e ainda participava de
outros eventos desenvolvidos pelas escolas municipais. O maior destes era a
Feira Cultural, organizada pela Escola Getúlio Vargas.
As atividades de culminância dos projetos constituíam-se em belíssimas
formas de expressão da linguagem e da cultura como estratégias de denunciar,
reivindicar, informar e socializar problemas sociais, saberes culturais e
experiências educacionais.
André (2009) enfatiza que é necessário articular a formação docente com
os projetos da escola por considerar que as atividades coletivas contribuem para
a emancipação do professor e a democratização do processo de ensinaraprender,
além de promover mudanças significativas na pessoa do professor, no espaço
escolar e em toda sua estrutura organizacional.
Rose sem timidez, em passagens significativas de sua história de vida,
revelou experiências que antecedem as mudanças promovidas na dinâmica do
ensino-aprendizagem narradas por Wilma.
Só o fato de estar ali na frente daqueles adolescentes em 1983, ir para o quadro, as minhas letras ainda saiam sem nível, umas subiam outras desciam, por não ter essa experiência do quadro. Esse momento foi fantástico de saber que eu ia ser professora, que eu estava ali na frente de várias pessoas e que eu iria, com certeza, dar conta. Mas gente eu tentei, mas um dia eles me fizeram chorar, porque eles eram demais, tinha umas garotas [...], não lembro porque motivo me fizeram chorar, conversavam muito
31 Em 2014 a informação é que a escola já não desenvolve os projetos e eventos anualmente, mas
faz alternância nas realizações. O evento que retornou com mais dinamicidade em suas apresentações foi o desfile do dia 07 de setembro que, por alguns anos, havia sido substituído pelos jogos internos.
178
na sala de aula, brincavam e eu não tinha esse manejo de fazer uma criatividade de como fazer calá-los (Professora Rosiete – 2014).
O início da docência foi para a professora migrante um misto de
acontecimentos e emoções e, consequentemente, promoveu a criação de um
imaginário do ser professora e do ser aluno. Saber que tinha uma profissão, era
referência no espaço da sala de aula e tinha uma importante função de educar
uma classe, causava-lhe empolgação, apreensão e inseguração, já que se
deparava com situações que jamais pensou em presenciar na relação com os
alunos.
Archangelo (2011) comenta que o professor de forma inconsciente cria
uma imagem do aluno e quando este lhe desestabiliza torna-se uma ameaça a
sua moral.
O professor no plano inconsciente, recusa-se a enxergar o aluno que não corresponda as imagens idealizadas que tem dele; imagens, diga-se, alimentada tanto social quanto internamente. Ao mesmo tempo, recusa-se assumir um papel em que não atue segundo suas fantasias criadas, ressalte-se, para responder a demandas sociais, preencher lacunas afetivas e permitir a construção de uma ideia de Eu (ARCHANGELO, 2011, p. 144).
“Eu tentei, mas eles me fizeram chorar”, “não tinha como fazer calá-los”.
As expressões marcam o “modelo” de aluno que se idealizava. Aluno calado,
quieto, sem problemas e obediente às normas da escola e da professora. Distante
da idealização, a comandante sentia-se “incapaz” de pedagogicamente criar um
clima de negociações no espaço da sala de aula.
Para Archangelo (2011) a escola mais do que nunca é um espaço de
tensão e o professor que se faz nesse espaço, na maioria das vezes, não sabe
lidar com essas tensões e acaba por se assegurar em princípios punitivos para
conciliar as situações vividas.
No ano seguinte, Rosiete viveu nova experiência, não mais com
adolescentes, mas com crianças e outra história rememorou:
Eu trabalhei com essa 1ª série o ano todo, consegui alfabetizar vários alunos, porque, na verdade as primeiras séries eram nua e crua, no sentido que elas não haviam passado por uma pré-escola, iam direto para escola. Elas tinham esse conhecimento de casa, do seu dia-a-dia. Então foi muito bom trabalhar com a 1ª
179
série, foi a minha primeira experiência de alfabetização, percebi que eu dei conta e comecei a dizer algo: “realmente, eu sei trabalhar, eu consigo ser professora, eu estou conseguindo”, só o fato de você pensar que conseguiu alfabetizar alunos, que ele foi aprovado para a 2ª série, isso é muito gratificante para quem não conhecia, não tinha essas técnicas do Magistério como se direcionar (Professora Rosiete – 2014).
Trabalhar com uma turma de 1ª série foi para a comandante a melhor
experiência em início de carreira, por conseguir alfabetizar vários alunos e sentir
que, verdadeiramente, fazia-se professora com domínio do ato pedagógico. A
comandante avaliou como positivo o fato de os alunos serem crianças e estarem
em início de alfabetização, não apenas dos códigos linguísticos, mas,
especialmente, dos códigos culturais da vida. Assim, poderia conduzi-los à sua
maneira de ser professora, o que lhe traria segurança emocional e profissional.
Outro fator considerável foi a confiança transmitida pelos pais acerca de
seu trabalho, atitude que motivava a planejar e preocupar-se com o que ensinar,
como ensinar e para quem ensinar. Rosiete, assim compartilhou: “Os conteúdos
ensinados vinham diretamente da Secretaria de Educação, existia um programa,
daquele programa nos baseávamos para trabalhar esses conteúdos com os
alunos, para copiar tudo o que vinha de Belém”.
A professora migrante tinha o contexto escolar (a turma), os conteúdos,
mas não tinha formação de base do Magistério para, minimamente, garantir a
reelaboração desses conteúdos às especificidades da turma. Essa lacuna
metodológica, segundo ela, exigiu-lhe buscar novas experiências com as demais
professoras e a envolver-se em estudos para apreender conhecimentos e melhor
desenvolver os saberes escolares com os alunos.
Atualmente, Rosiete ainda reconhece limitações e dificuldades em lidar
com a dinamicidade e complexidade do ensinaraprender em tempos midiáticos.
Passo novamente a palavra.
Eu penso, pode até ser engraçado, mas um dos limites foi eu nunca me adaptar a trabalhar com as tecnologias, eu sempre fiquei admirando meus colegas que trabalhavam com o data-show, com o notebook. Gente! Enquanto eles estavam nisso, eu trabalhava com o retroprojetor, os colegas sempre riam de mim, sempre estavam achando graça de mim, eu sempre estava atrasada na tecnologia. Penso que um dos limites, dos desafios de não poder fazer um bom trabalho foi eu não saber usar com eficiência a tecnologia. Até hoje, eu lido mais com a parte
180
pedagógica, a parte administrativa, mas a parte burocrática de ir lá no computador fazer os ofícios, encaminhar um e-mail, entrar em contato com o MEC, olhar os programas. Eu vejo, eu acompanho junto com meus colegas, mas o vice-diretor ele está sempre a frente deste trabalho com o secretário, eu colaboro, eu ajudo, mas são sempre eles que estão a frente. Isso eu perdi o foco, o interesse, isso para mim até hoje eu vejo que é um problema, um desafio, é o meu limite mesmo (Professora Rosiete – 2014).
Para a comandante não ter avançado nos conhecimentos tecnológicos foi
comprometedor ao seu desempenho no trabalho docente e administrativo.
Acredita que a utilização dos recursos tecnológicos como suporte contribuiria para
melhor desenvolver com eficiência suas funções.
A construção deste saber profissional, não despertou na comandante
nenhum interesse em apreendê-lo, entretanto é preciso compreender que o saber
docente deve considerar um conjunto de conhecimento científico e metodológico
para dinamicamente organizar as situações educacionais concretas sem perder o
foco principal da aprendizagem (MORGADO, 2011).
As dificuldades nos exercícios iniciais da profissão estiveram presentes
na trajetória da maioria das professoras migrantes. Sobre essas experiências,
Dilma narrou:
Quando eu saí de Belém, eu tinha uma prima que era professora, mas já estava em Macapá. Então, antes de viajar, eu comecei a entrar em contato com ela, ver os livros, ela começou a me orientar que eu poderia ir nas editoras conseguir os livros e eu comecei a ir atrás, realmente, a gente conseguia. Por isso, eu já saí de Belém com algum material, alguma coisa em mente de como iria trabalhar, já não fui tão vazia, já fui planejada. Cheguei, comecei a verificar o que era, como era a primeira expectativa de sala de aula, o que era necessário, como era a turma, mas parece que mesmo sem experiência eu sempre tive jeito com criança, sempre tive aquele carinho de trabalhar com criança. Agora claro, como te digo, era muito diferente de hoje, porque mudou completamente. Antigamente, era no tradicional, hoje, não, a educação está totalmente mudada de uma forma que a gente consegue que as crianças aprendam, mas a gente conseguiu chegar e aos poucos ir trabalhando, vendo as dificuldades de cada um, como poderia estar enfrentando isso, procurando trabalhar com a família (Professora Dilma – 2014).
Na narrativa de Dilma, o planejamento apareceu como uma das suas
principais preocupações antes mesmo de conhecer e assumir as turmas. Buscou
orientação com a prima que era professora, conseguiu alguns livros, fez um
181
planejamento prévio de suas aulas e tinha “um jeito com criança”. A princípio,
teoricamente, já tinha uma base de como começar.
Ao viver o espaço da sala de aula, todavia, encontrou os limites de sua
formação e muitas carências organizacional e pedagógica da instituição. Essas
questões provocaram algumas dificuldades, como: a não experiência da prática
pedagógica impossibilitava flexibilizar o planejamento; a inexistência de uma
equipe técnica pedagógica para acompanhar, orientar e ajudar a conduzir o
processo educacional, o que lhe responsabilizava a criar estratégias de
superação. No fragmento a seguir a comandante ressalva:
No início da minha docência era difícil, a gente sabe que não é fácil ir para uma sala de aula sem ter uma experiência, agora não ficou tão difícil, porque você acaba fazendo o trabalho com amor. Quando você chega e ver que crianças e pessoas precisam de você, então, se gosta, acaba se envolvendo de uma tal forma que vai atrás para conversar com as pessoas que já passaram por lá. Foi isso que aconteceu, eu procurei me segurar nas pessoas que já estavam no município que eram professores, como trabalhar? Como fazer? Para completar, quando nós chegamos até a diretora tinha vindo embora, não tinha coordenação, não tinha vice direção, era quase só a diretora e os professores com os outros funcionários. Tudo isso a gente não tinha, só que logo no início o que acontecia, o prefeito era uma pessoa muito envolvida com educação na época, qualquer curso de formação que aparecia ele fazia tudo para os professores participarem, não importava se fosse uma semana, se fosse um mês, o importante era que todo mundo tinha que participar. Eu acredito que melhorou, porque logo no início nós tivemos um curso de formação em Breves, nós passamos uns 15 dias fazendo esse curso de formação e iniciamos em março as aulas, eu cheguei em janeiro, fevereiro fizemos o curso e organizamos tudo para começar (Professora Dilma – 2014).
A superação das dificuldades pedagógicas foi atribuída pela comandante
ao amor à profissão. Ao deparar-se com a carência de profissionais qualificados
para auxiliar na formação continuada dos professores e ainda a necessidade da
comunidade em avançar no desenvolvimento educacional, decidiu adotar a
profissão e arranjar estratégias para suprir as lacunas da formação inicial.
Mas não deixou de registrar que o governo municipal se esforçava em
custear e apoiar os cursos de formação das comandantes, os quais foram
avaliados por elas como o “carro chefe” para desempenharem, com mais
182
segurança, a prática docente, no início da carreira. As recordações sobre a
experiência profissional inicial foram refletidas por Fátima:
Voltando à história da disciplina de Ciências, a Dilma me deu umas turmas de Ciências para eu trabalhar e eu pegava os livros estudava, tinha o conteúdo programático, mas era daquela forma bem carente mesmo, bem precária. Na verdade, começamos a trabalhar da maneira que fomos formadas, hoje eu entendo que é da maneira que nos formamos que queremos trabalhar. Claro! Quando estamos estudando não prevemos as situações que podem acontecer e que são vários tipos de situações (Professora Fátima – 2014).
Pela ausência de professor licenciado para trabalhar com a disciplina de
Ciências nas turmas de 5ª a 8ª séries que estavam sendo constituídas, Fátima
resolveu embarcar nesse desafio, depois de um convite da gestora da escola.
Tinha consciência dos seus limites, mas se esforçou para ampliar a sua formação.
A despeito disso, afirmou que a bagagem intelectual adquirida era insuficiente às
aprendizagens necessárias.
Os conhecimentos científicos da disciplina e os procedimentos
metodológicos foram ampliados a partir do curso de Ciências Naturais, porém
outros fatores surgem e, sob o olhar da comandante, criam barreiras na
organização e execução de uma aula mais significativa para o aluno. Dentre estes
entraves, enfatizou o mais preocupante na sua concepção e atuação.
Hoje uma coisa que eu me preocupo muito, eu trabalho com Biologia e com Ciências, eu sei que ainda falta muito, uma coisa que eu sempre quis fazer mais não consigo fazer, talvez pela falta de tempo é a relação teoria e prática, eu sei que é um vácuo que fica do meu trabalho eu tenho consciência. Todo ano eu digo que vou fazer, mas talvez pela falta de material, pela falta de apoio, pela falta também de tempo não faço, talvez quando eu sair do Tancredo e ficar só na Getúlio eu consiga melhorar essa situação, isso é uma coisa que eu ainda quero fazer, mas mesmo assim o que estou trabalhando na Biologia eu tento que eles saibam fazer relação com a vida como, por exemplo, a questão da DST, outras doenças, a própria questão do ambiente, do equilíbrio, que eles vejam uma relação com a vida que não seja uma coisa só para ti estudar para fazer prova, eu sempre falo isso para eles, uma das preocupações minha é essa. Eu vejo que toda disciplina dá para fazer essa relação, mas muitos professores não fazem, poucos professores fazem essa relação. Então eu me preocupo nisso, saber que meu aluno colocou aquilo que aprendeu na vida dele, eu acho isso muito interessante, porque eu não tive isso na minha formação no fundamental, nem no
183
Magistério, eu não sei se eu não conseguia relacionar ou se o professor não fazia mesmo (Professora Fátima – 2014).
Relacionar o conteúdo com a vida e sondar seus significados emergem
como limites e desafios na trajetória docente de Fátima. A articulação, apesar de
ser necessária, para o desenvolvimento da vida do aluno e para o sentido da
escola não se materializa porque a desvalorização profissional força o professor a
trabalhar com carga horária extrapolada, não lhe sobrando tempo para planejar e
organizar melhor suas aulas.
A posição da comandante faz pensar que a sociedade a cada instante
está sendo reinventada e tudo é preciso ter sentido à ação humana, caso
contrário torna-se desinteressante e insignificante para o aluno. De certo, o aluno
só valoriza aquilo que considera essencial à vida e a escola é uma das
promotoras, junto com outras instâncias, para socializar o saber técnico e o saber-
viver em sociedade.
O conhecimento cientifico, os conceitos, os saberes, as inovações
metodológicas são experiências da formação e da prática educativa que
influenciam no modo de pensar, sentir e agir na relação com o ensino, “ação-
reflexão-ação”, e com as pessoas. Corrobora com esse entendimento quando
Cunha et al (2011, p. 37-38) compreendem que:
No que se referem aos saberes docentes, entendemos que o professor é um profissional que detém saberes de variados matizes sobre a educação e tem como função principal educar crianças, jovens e adultos. Por isso, o ‘saber profissional’, que orienta a atividade do professor, insere-se na multiplicidade própria do trabalho dos profissionais que atuam em diferentes situações e que, portanto, precisam agir de forma diferenciada, mobilizando diferentes teorias, metodologias, habilidades. Dessa forma, o ‘saber profissional’ dos professores, para nós, é constituído não por um ‘saber específico’, mas por vários ‘saberes’ de diferentes matizes, de diferentes origens, aí incluídos, também, o ‘saber-fazer’ e o saber da experiência.
As comandantes rememoraram múltiplos processos relacionais que
viveram na docência e em outros cargos que foram assumindo na educação do
município. Essas interações, exemplificam, situações e atitudes tomadas a partir
de experiências apreendidas na ação-reflexão-ação. Rosiete, revelou como era a
184
relação professor-aluno no início da década de 1980, logo que assumiu a
docência.
A relação professor-aluno era uma relação de professor aqui na frente e os alunos lá nas carteiras, não existia uma relação de diálogo, uma relação de afetividade, uma relação de carinho mesmo não existia (Professora Rosiete – 2014).
A relação de distanciamento era entendida pela comandante como uma
estratégia para garantir o respeito à sua autoridade. Por ser jovem e ter uma
turma de adolescentes que, a qualquer momento poderia fazê-la perder o controle
da classe, orientava-se por ordens e monólogos. Esta posição começou a ser
questionada a partir da formação em nível superior.
A partir da universidade é que vou ter uma nova visão da relação professor-aluno, que vai mudar, mas mesmo assim, por exemplo, as crianças que eu trabalhava em nível de 1ª série, elas me adoravam, todas queriam tocar na minha mão, me segurar, andar rodeadas de mim, porque eu dava essa atenção para esses alunos, não era carinho de abraçar, mas dava atenção. Então, pelo menos aqui, eu percebo que existia uma certa relação de afetividade, mas também existia essa relação de você dizer: “fica calado, presta atenção”, de muitas vezes amedrontar as crianças. Por outro lado, o professor era oprimido em relação à direção da escola, por exemplo, eu já cheguei em Melgaço, já não peguei esse tipo de direção muito severa com os professores [...] (Professora Rosiete – 2014).
Ficou evidente na narrativa da professora migrante um desabafo de
denúncia e de cumplicidade a respeito das atitudes vividas no ambiente escolar.
Se ela mantinha uma atitude de distanciamento com os alunos, por outro lado, a
direção da escola não estabelecia uma relação de diálogo, sociabilidade e
coletividade com as professoras. As posições eram definidas com distinção,
revelando um espaço escolar construído com base em hierarquias e poderes
assimétricos.
Nessa ótica de Rosiete o processo de superação foi acontecendo muito
lentamente. Quando assumiu uma turma de 1ª série, as crianças tomavam a
iniciativa de aproximação, eram mais meigas e obedientes, todavia não se
envolvia afetivamente para não perder a “autoridade”. “Depois eu quis endurecer
tratar o aluno com mão de ferro, mas passei a fazer a universidade e vi que não
era assim”. “A afetividade sabemos é essencial à constituição dos seres
185
humanos, porque está intimamente relacionada à subjetividade a ser produzida e
reproduzida” (MONTEIRO, 2002, p. 254).
Nesses meandros da memória da relação professor-aluno, Jurema
relembrou tempos de angústias.
Eu era uma professora de Língua Portuguesa que trabalhava muito de forma tradicional, eu lembro que muitos alunos me antipatizavam. Logo que assumi não, eu assumi uma turma da professora Célia Rosa, uma professora considerada caxias por alguns alunos e, por isso, a detestavam, mas outros gostavam muito dela, porque ela era uma professora boa, ensinava muito bem, deixou marcas na escola Tancredo Neves. Ela era uma professora exigente e eu já era mais flexível, então aquela turma passou a gostar muito de mim. Eu não sei, mas eu acho que deveria entrevistar meus alunos, têm uns que me antipatizavam, devo ter deixado marcas até hoje, principalmente, naquele assunto de sintaxe que é um assunto bem difícil, mas a Ilca está aqui ela pode falar disso (risos), era um assunto tão difícil. Eu acho que deixei marcas negativas, eu percebia que tinha alguns alunos que me odiavam, mas eles diziam: “não professora, a gente não lhe odeia a gente odeia a disciplina”. Mas eu me sentia um pouco odiada, inferiorizada, em alguns momentos chorava em casa (Professora Jurema – 2014).
De acordo com a narrativa da comandante, os conteúdos de ensino
influenciam a relação professor-aluno. Parece haver uma transferência da
complexidade do conteúdo para representação do professor. Outras questões,
entretanto, fazem parte do processo e algumas são focalizadas em sua narrativa
como a relação mais amigável e um planejamento mais flexível no início da
docência, depois a experiência conflituosa ao assumir outras turmas e a
complexidade dos conteúdos, o que causou perda de interesse e falta de
motivação dos alunos e sentimentos de inferioridade na professora migrante.
As múltiplas relações entre professor-aluno fazem parte do convívio da
sala de aula, mas para ser promotora de produção de saberes, depende muito do
clima criado pelo professor. Empatia, capacidade de dialogar, refletir e discutir o
nível de compreensão do conhecimento, do relacionamento e depois de criar elos
de possibilidades para desenvolver sociabilidades no contexto escolar.
No centro da discussão sobre a relação professor-aluno, Wilma reforçou a
concepção que Rosiete e Jurema já haviam referendado em seus depoimentos.
A relação professor e aluno era aquela relação distante, mesmo com crianças, mas tinha que ter aquele respeito, o professor
186
estava aqui, o aluno estava ali. Então essa relação era fria, apesar da gente, às vezes, ter carinho pelo aluno, mas era sempre essa relação, o professor era o senhor detentor do saber, ele tinha que saber tudo e o aluno apenas tinha que receber o que o professor repassava, não tinha troca de experiências, era o que eu repassava para o aluno e não o que o aluno queria me repassar. Era nesse sentido a educação quando eu cheguei (Professora Wilma – 2014).
As experiências não foram diferentes entre as professoras migrantes.
Elas viveram os extremos das relações que, embora complexas, foram
fundamentais para a maturidade da formação e da experiência profissional. A
figura do professor como detentor do conhecimento, a princípio, assumida por
elas representava padrões e valores da sociedade em que foram formadas e na
qual desenvolviam a profissão.
O relacionamento professor-aluno é uma construção dinâmica. O
professor tem a responsabilidade de promover o diálogo com as diversas
situações que aparecem no cotidiano da sala de aula. Como mediador de
aprendizagens e suas descobertas, precisa ajudar o aluno a construir
conhecimentos e se tornar um ser pensante, atuante e crítico. Para isso
acontecer é necessário também que a escola seja um espaço que promova a
liberdade e a autonomia.
Na cartografia das professoras migrantes, Dilma, Wilma e Rosiete tiveram
a experiência de ser professora e diretora da Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Médio Pres. Tancredo de Almeida Neves. Sobre os tempos de
gestora, Dilma narrou que sua nomeação se deu de maneira rápida. Assim, sem
experiência, procurou valorizar as pessoas que compreendiam a engrenagem
administrativa da escola, assim como precisou vir a Belém conhecer os órgãos
que a instituição escolar precisava dialogar cotidianamente.
Eu confesso que tive dificuldade de trabalhar com professores, tivemos muitas desavenças por falta de experiência, porque, na época, eu pensava assim, era como se eu fosse a dona das coisas, a minha escola, eu sou a diretora, sou eu que mando. Hoje é totalmente diferente, existe uma democracia na sala de aula, na escola, existe conversa, cada pessoa procura ajudar, trabalhar na união. Naquela época, direção é direção, professor é professor, parece que a direção estaria sempre acima de todos, e gerou alguns problemas na questão de gestão. Mesmo assim, eu permaneci um tempo na direção, de 1982 a 1990, quando eu fui para a sala de aula na condição de professora. Eu tive esse
187
entrave, mas fui levando e aos poucos aprendendo. Eu acredito que todo os dias aprendemos com as pessoas, é uma troca de experiências, tanto em sala de aula como na gestão. Numa escola sempre você tem que aprender a cada dia que passa (Professora Dilma – 2014).
A comandante ainda em início de docência aceitou o desafio de ser
gestora escolar e foi viver uma outra história na área da educação. Para ela
gestar recursos pessoais, orçamentários, administrativos, pedagógicos e
conhecer os tramites legais e órgãos responsáveis da educação no Pará, saberes
que não estavam envolvidos nos conhecimentos adquiridos no curso da formação
em Magistério, mas estavam no rol das responsabilidades assumidas para
desenvolver bem a gestão e com qualidade.
Apesar das lutas em prol da democratização da escola pública ter
intensificado na década de 1980, este novo “modelo” de pensar e fazer a gestão
estava distante da realidade melgacense. A direção gerenciava a escola de modo
verticalizado, sem diálogo entre os agentes do processo de ensino-aprendizagem
e do cotidiano escolar.
Wilma também viveu essa experiência, porém, em um tempo mais tarde.
Sobre essa questão resolveu compartilhar algumas histórias.
Eu era considerada durona, mas eu abri um processo democrático dentro da escola Tancredo Neves, foi criado a eleição para o horário que até hoje vigora, a cor da farda, os minutos de tolerância para os professores e para os alunos entrarem, o Conselho Escolar funcionava, era ativo, era tudo democrático, houve o conselho de classe, os alunos votavam e tudo era na votação, eu levava para votação, eles faziam o processo democrático e eu dizia: “vocês votaram e está copiado aqui e vai ser assim, não venham modificar”. Tinha algumas coisas que nós tínhamos abertura, por exemplo, eu falar para o professor: “você está errado por isso e por aquilo” e ele também tinha a liberdade de falar para mim, “você está pecando nisso”. Muitas vezes o Agenor e o Hélio falavam para mim, eu escutava e depois me defendia, acontecia esse processo e quando terminava ninguém estava de mal. Consegui aquentar um processo onde a politicagem não passou para dentro da Escola Tancredo Neves, não deixava, a única coisa que passava era se o candidato quisesse expor o plano de trabalho dele estava aberto, mas dizer que ele ia entrar e dizer: “você vai votar em mim”, mas quando, nós erámos livre, ninguém pressionava a gente, eu não deixei que isso acontecesse, mas para isso eu passei por tantas coisas, até apanhar aqui eu apanhei, por causa desse tipo de coisa, só que no momento que essa pessoa veio para me bater, o padre José Antônio com Aldolino me defenderam, não deixaram, eles eram
188
molequinhos, rapazolas, foi para não colocar a politicagem na década de 1990 para dentro da escola. Não permiti e tinha apoio dos professores, nós falávamos a mesma língua (Professora Wilma – 2014).
A comandante apresentou duas experiências na gestão, uma interna e
outra externa, mas ambas entrelaçadas no contexto escolar. A partir das
exigências e necessidades de se implantar uma gestão democrática para melhor
organizar, compartilhar e fazer a educação, a Escola Estadual de Ens. Fund. e
Médio Pres. Tancredo de Almeida Neves também foi avançando nessa política.
Wilma estava na frente, mas como mencionou existia uma equipe de professores
que cobravam e participavam ativamente do processo e envolviam os alunos a se
mobilizarem. Essa cultura de participação e do trabalho coletivo na escola ganhou
referência nas outras escolas do município.
A prática, porém, incomodava os governos municipais, especialmente os
da década de 1990, por serem contrários ao estilo de gestão que se pensava. A
exemplo, dos embates políticos entre governo e escola, Wilma, na condição de
diretora, chegou a ser “agredida” por pessoas do poder local.
Nesse tempo, não houve negociação, a história da educação se fez em
conflitos e resistências, primeiro porque o governo municipal queria intervir
diretamente na gestão escolar, utilizando a politicagem nas decisões e a equipe
docente, pela trajetória de formação política, não compartilhou com essa
orientação.
O certo é que a escola viveu tempo de carência material, porque,
segundo as professoras migrantes, o possível lhe era negado, mas o coletivo
persistiu e assistiu a decadência do governo municipal.
Dentre inúmeras histórias de conflitos vividos entre a gestão de 1993 a
1996, principalmente, com Wilma, trago uma que marcou a personalidade dessa
mulher e profissional. Assim, narrou os impasses vividos na gestão:
No tempo do governo do Oni veio o Projeto Gavião e eu era professora, porque era a única que tinha o nível superior e o projeto aceitava, fui dar aula de Geografia e História, só funcionou uma etapa desse projeto, quando ele descobriu que eu era professora, não deu mais alimentação para os professores e quando eles foram cobrar, foram presos. Então, chega o Xarles e me diz: “professora, tem seis de nossos colegas que estão presos, porque foram cobrar do Oni a comida, mandaram prender
189
eles e o que a senhora vai fazer por nós?”. Às vezes, eu nem queria, mas eu ia, então eu disse: “eu não posso fazer nada, mas vamos lá, vamos ver”. Eu fui na frente e lá vem todo mundo atrás, mais de setenta professores que estavam por aqui, eu acho. Nós fomos para a delegacia, quando chegamos lá eu fui para a frente e disse: “eu não aceito isso com os professores”. O Ruy era o soldado, era novinho tinha chegado para cá, eu enfrentei o Ruy e disse: “nós vamos ficar aqui dentro desse salão e daqui nós não sairemos enquanto tu não saltar os professores”. O cabo Amilton veio: “que bagunça é essa?”, “Bagunça não, enquanto os professores não saírem daqui eu não saio e nem eles. Perguntei para os outros professores: “vocês vão arredar o pé? Não, então eu também não arredo”. Veio o secretário de administração e disse: “ela é uma subversiva essa mulher, ela é do PT, prende ela”. E o pessoal falou: “se prender ela vai ter que prender todos nós”. Eu via muita força naquele povo, eles estavam sofrendo, mas não ficavam calados e muitos deles, hoje, estão aqui trabalhando e desenvolvendo essa comunidade (Professora Wilma – 2014).
O exemplo desta relação é resultado de muitas outras vividas em
diferentes tempos históricos do município. A comandante, por ser uma
profissional que não se limitava ao espaço de sala de aula, acabava assumindo a
causa da educação em todo seu contexto e isso a tornava visível aos olhos dos
governantes e de toda a comunidade.
A visibilidade do envolvimento e da voz ativa de Wilma, repassava
confiança aos professores e muitos buscavam apoio em sua pessoa para
resolver situações de “perseguições” políticas, principalmente, na década de
1990, e por isso ela também foi, inúmeras vezes, ameaçada, como bem enfatizou
em sua narrativa.
De acordo com Monteiro (2002), as narrações sobre as experiências
pessoal e profissional contribuem para refletir e avaliar os percursos da formação,
como ela foi se configurando dentro do contexto relacional e também perceber
como o processo identitário está instável a modificações.
Para aprofundar a temática da (re)construção das identidades docentes,
entre o pessoal e o profissional, embarco nessa nova rota, trazendo experiências
das histórias de vida das comandantes que marcaram suas trajetórias na
docência e ajudaram a crescer na profissão e na vida, assim como na
(re)construção de suas identidades e subjetividades.
190
QUARTO PERCURSO:
ENTRE O PESSOAL E O PROFISSIONAL:
(Re)construção de identidade
Não há [...] identidade sem alteridade. As identidades, como as alteridades, variam historicamente e dependem de seu contexto de definição (DUBAR, 2009, p. 14).
191
4.1. Primeiras Palavras
Trazer para o debate a questão da (re)construção da identidade das
professoras migrantes não foi tarefa fácil, o desafio estava para além do que
imaginava ser, pois a partir da convivência dialógica com os marinheiros, comecei
a perceber a complexidade que seria adentrar neste campo por tratar-se de um
debate bastante complexo, intenso e polêmico.
O encontro com os marinheiros e as narrativas das comandantes, no
entanto, permitiram-me traçar percursos para esta reflexão ao recuperar
concepções de identidade numa perspectiva mais dinâmica e transitória articulada
ao processo cultural, político, social e profissional.
Dentro dessa concepção, o percurso procurou analisar trajetórias
pessoais e profissionais construídas pelas professoras migrantes nas relações
estabelecidas entre si, com alunos, comunidade e gestão pública municipal, no
sentido de compreender o processo de (re)construção de identidades das
docentes em contextos melgacense.
Assim, é importante estreitar diálogo com Dubar (2009) para discutir
caminhos trilhados por Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima na conformação
de sua vida profissional, sempre imbricada a outras vivências sociais, por
considerar a identidade um processo de tensão consigo e com o outro na relação
com o social.
Dubar (2009) ao descartar a concepção estável de permanência idêntica
nas trajetórias humanas, compreende identidade como resultado do movimento
de socialização entre o “eu” e o “outro”. “A identidade é a diferença” que
especifica a singularidade de cada um, mas é também “o pertencimento comum”
estabelecido com o coletivo. Portanto, a construção da identidade está pautada
num dado momento histórico coletivo ou individual (DUBAR, 2009, p. 14). A
identidade pessoal é imbricada com a identidade profissional. Elas se fazem e
refazem a partir do olhar e do reconhecimento do outro sobre si ou de si sobre o
outro.
A partir desse pressuposto, compreendo que identidade e alteridade se
completam, todas as ações pessoais interagem a partir da ação do outro. A
existência da ação do “eu” só é permitida na relação com o “outro”, seja ela
192
baseada no conflito com divergência de posicionamento ou no diálogo com a
valorização das diferenças. Por esse viés, identidade profissional está sempre em
mutação e o trabalho é uma das condições e fontes na constituição dessa
identidade.
Outra importante conceituação de identidade para o percurso dessa
cartografia está referendada em Ciampa (1998) que entende identidade como
uma metamorfose, um movimento complexo capaz de se articular e interagir
dentro de um determinado contexto histórico político e social.
Falo como psicólogo social que define identidade humana como metamorfose [...] e processo permanente de formação e transformação do sujeito humano, que se dá dentro de condições materiais e históricas dadas. Esta é a questão central da psicologia social, de meu ponto de vista (CIAMPA, 1998, p. 88).
Acerca do posicionamento sobre identidade humana como metamorfose,
o autor ainda acrescenta:
Para clarificar esta concepção de identidade. Como processo que articula a subjetividade e a objetividade, ela é metamorfose constitutiva do sujeito, localizando-o no mundo, dando-se sempre como relação, tanto sincrônica como diacrônica. Evidentemente, não se trata aqui de metamorfose como processo natural (como a da borboleta), mas de processo histórico e social, que se dá fundamentalmente como produção de sentido — o que é próprio do agir comunicativo (CIAMPA, 1998, p. 92-93).
Para o autor é entendido como uma construção dinâmica, provisória
sujeita à formação e transformação. Ainda neste contexto, Faria e Souza (2011)
analisam que a conceituação de “Ciampa (1987) ocupa-se da identidade
enquanto conjunto das personagens que atuam em um processo de tensão
permanente com os papéis sociais pré-estabelecidos e se transformam, ainda
que, algumas vezes, a aparência seja de não mudança” (FARIA e SOUZA, 2011,
p. 41-42).
Burnier et al. (2007) também aborda acerca da “identidade humana como
construção a um só tempo individual e coletiva, associada ao processo de
intervenção dos indivíduos sobre si mesmos e a diversos fatores externos, entre
eles as visões de mundo construídas socialmente, de acordo com a cultura em
que vivem” (BURNIER et al 2007 apud DUBAR, 1997).
193
Entre as evidências rastreadas nas narrativas das professoras migrantes,
emergiu a questão da (re)construção de suas identidades pessoal e profissional.
Nóvoa (1992) torna-se importante para aprofundar o debate porque aborda a
dimensão do conflito, da complexidade vivencial e do tempo necessário para
observações, revisões e mudanças.
A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas de conflitos, é um espaço de construção de maneira de ser e de estar na profissão. A construção da identidade passa sempre por um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional (Dimond, 1991). É um processo que necessita de tempo. Um tempo para refazer identidades, para acomodar inovações, para assimilar mudanças (NÓVOA, 1992, p.16).
É possível concatenar a concepção de identidade dos autores com a vida
das professoras migrantes em Melgaço, as quais em diversas situações
precisaram assumir novos modos de ser para viver o desafio de estar em terra
não-familiar. Nos depoimentos, a seguir, fica perceptível que foi na vivência da
profissão, nas relações com o “outro” e com o lugar, como espaço de lutas e
conflitos que reconstruíram suas identidades pessoal e profissional.
No que concerne aos saberes que professores adquirem e constroem em
exercícios de formação continuada, Monteiro et al. (2005, p. 185) em pesquisa
desenvolvida por intermédio do “Projeto Sócio Educacional Integrado – PROSEI”
apresentam importante exemplo de mudança na identidade docente. Este grupo
de pesquisadores da UEPA, ao explorar um universo de 25 professores de Belém
em formação continuada, aponta que com essas vivências acadêmicas e
profissionais transformações significativas ocorrem “na forma de pensar, sentir e
agir das comandantes, trabalhados de forma contextualizada para atender aos
desafios atuais, oriundos do saber, saber-ser e do saber-fazer reconstruídos no
processo formativo”.
Nesta perspectiva, Monteiro (2002, p. 82) já havia definido sua concepção
de identidade ao afirmar que
A concepção de identidade significa para mim manifestações que revelam o pensar, o sentir e o agir do ser humano construído e reconstruído em um processo permanente de relações de poder que precisa ser partilhado para gerar sentidos e significados, no
194
encontro das culturas vivenciadas e que passam a nos singularizar e pluralizar.
O posicionamento da autora afirma que a identidade se faz nas interações
relacionais do ser humano, primeiramente, em um processo de interiorização, do
eu para si, mas que, posteriormente, é necessário ser expresso e socializado para
ganhar relevância e reconhecimento pessoal e social no meio que está inserido.
Nesta mesma pegada, sigo posicionamento de Souza (2006a, p. 169).
A identidade profissional demarca-se como um processo constante e contínuo, articula-se a diferentes tempos e espaços, implica-se com as experiências e aprendizagens construídas ao longo da vida e perpassa ao tempo de formação inicial e de aprendizagem institucionalizada da profissão. A identidade docente também reflete as intenções e deliberações políticas e socioistóricas forjadas nas políticas de formação, como forma de controle e de organização das mudanças educativas em seus diferentes tempos e espaços.
A relação do trabalho com o outro e o social foi vivida intensamente pelas
professoras migrantes, às vezes em um “processo de tensão permanente entre o
individual e o social”. Em certas situações, segundo suas narrativas, para garantir
a qualidade do trabalho educacional no município, era necessário partirem para o
enfrentamento de ideias e de posicionamentos, principalmente com a esfera
política. Esse tipo de atitude não era bem visto pelo poder local e causava
ameaça à permanência no lugar.
Tais experiências, sejam de conflitos, negociações ou reconhecimento
festivo, foram fundamentais para renascer sonhos, utopias e desejos de fazer o
diferente pelo município que as acolheu. Desta forma, fica evidente que a
identidade profissional das professoras migrantes foi construída na diversidade e
nas relações de alteridade, no (des)encontro e confronto com o outro.
A constituição da identidade docente, também é entendida no intercâmbio
do professor com seu espaço de atuação, na maneira como ele se envolve com a
profissão, com seus colegas e com os alunos. A relação seja harmoniosa ou
conflituosa implica no processo identitário tanto pessoal quanto profissional.
De acordo com Abrahão (2004a), os professores elaboram
representações acerca “da atividade docente que compreende: o capital de
conhecimentos – saber fazer e saber ser; as condições do exercício da prática
195
docente; as condições do exercício da prática, pertinência cultural e social da
prática pedagógica; estatuto profissional e prestígio social da profissão docente”
(ABRAHÃO, 2004a, p. 207). Tais aspectos são elementos fundamentais nas
reflexões elaboradas pelos professores sobre si na relação com o trabalho.
Para melhor conhecer a (re)construção de identidades das comandantes
dessa viagem, trago para o debate relatos e interpretações de experiências por
elas vivenciadas que foram fundamentais no entendimento das travessias.
4.2. Autoidentificação e interpretação de si
Em cada momento, é impossível expressar a totalidade de mim; posso falar por mim, agir por mim, mas sempre estou sendo o representante de mim mesmo. O mesmo pode ser dito do outro frente ao qual compareço (e que comparece frente a mim) (CIAMPA, 1996, p. 171). Percebi que eu não era mais uma jovem que vivia sonhando com uma vida de quem morava nos centros urbanos, as minhas utopias, agora eram realidades, pé firme no chão, outras vidas “pequenas” dependiam de mim (Professora Rosiete – 2014).
Autoidentificar-se pode parecer uma interpretação fácil de ser realizada,
quando não é feita com precisão, contudo se uma pessoa é solicitada a fazê-la,
na maioria das vezes, encontra dificuldade de expressar-se ou interpretar-se.
De acordo com Ciampa (1996), a expressão de mim nunca é feita por
completo, pois o que acontece é sempre uma representação das relações
refletidas nas identidades. Com isso, cada momento da vida, embora, ele seja
uma totalidade, é parte dele que se manifesta, assim, “estou sendo o
representante de mim mesmo”.
A representação de mim, da qual fala o autor, expressa na reflexão de
Rosiete ao compreender que a sua chegada em Melgaço lhe atribuía uma outra
representação pessoal e junto dela o compromisso e a responsabilidade de
assegura-la na comunidade que lhe recebeu.
O exercício de autoidentificar-se foi vivido pelas professoras migrantes
nos encontros que tivemos para narrarem suas histórias de vida. A experiência de
socializar-se foi bastante significativa para o processo de ação-reflexão-formação
da vida tanto delas quanto minha.
196
Quando provoquei a pensarem a respeito de si, primeiramente
responderam com reações diversas, espanto, dúvida, insegurança, pausa e, até
mesmo, com questionamento. Depois, cada uma, cuidadosamente, selecionou e
apresentou o que desejava publicizar a respeito de suas identidades.
As atitudes das professoras migrantes lembraram-me Portelli (2010)
quando se posiciona a respeito da relação do pesquisador com o narrador, pois
considera que, entre ambos, há sempre um ponto de interrogação.
A ideia de que existe um “observado” e um “observador” é uma ilusão positivista: durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o narrador olha para ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso a partir dessas percepções (PORTELLI, 2010, p. 20).
Ao conversar com Wilma, Dilma, Rose, Jurema e Fátima, uma vez ou
outra, pausavam para questionar-me: É isso que você quer? Estou respondendo
certo? Posso falar sobre isso? Ou então, não sei se o que vou falar vai te
interessar. Percebia que em determinados assuntos havia muita prudência no
discurso a ser socializado, principalmente, quando se tangenciavam questões
íntimas, na maioria das vezes, procuravam divulgar referências mais positivas,
outras eram brevemente sinalizadas, todavia, estrategicamente, captadas ou pelo
menos (re)interpretadas.
Ao posicionarem-se, contudo, não traziam a identidade como uma
construção isolada e estática, mas conectada a um contexto relacional de
significados pessoais e públicos, como a família e o trabalho, sendo que, nessa
relação, elas eram as autoras principais no enredo das histórias narradas.
Wilma ao falar de si, fez de maneira bem metafórica ao comparar-se
como uma águia. Assim identificou-se:
A Wilma Vilar. Eu sou uma águia, me sinto como uma águia. A águia voa e caça anos e anos, quando se sente cansada procura um buraco, uma montanha e se recolhe para se transformar. Hoje eu sou essa águia, estou recolhida, estou mudando e essa mudança é através de sofrimento, de dores, mas eu vou voltar a voar (voz calma), vai ser um voo muito bonito, não com aquela intensidade do passado. O meu olhar é um olhar de águia, nada escapa ao meu redor. A águia é a ave mais perfeita, ela se refaz, quando está querendo se desestruturar ela se recolhe e se refaz. Eu já me refiz várias vezes, vários momentos, já perdi as contas de quantas vezes mudei essas penas, mudei essas garras, que
197
mudei esses bicos e vou continuar mudando, vou continuar com esse olhar enxergando além do que posso ver, através da minha imaginação, ensinando o outro a pensar, ensinando o outro a se posicionar no mundo. Então, se eu não conseguir, por exemplo, com minha família, mas eu consegui com a família do outro. Enquanto, eu tiver um fiozinho que possa respirar, vou continuar me recolhendo e me refazendo. As decepções da vida não me derrubam, elas me derrubam por um tempo, mas depois elas vão. Eu me comparo com uma águia, porque quando eu abraço uma causa eu dou voo profundo, eu voo muito longe, eu não tenho medo do espaço que estou, não tenho medo das dificuldades, não tenho medo do que vai acontecer comigo, eu quero voar (fica calada). Eu já voei por tantos lugares, por Melgaço, dei tantos voos, já consegui tantas coisas com esses voos. Essa águia ela vai se refazer, agora claro, eu já tenho 62 anos Ilca, eu não me considero velha, mas o meu voo não vai ser como uma jovem de 20, de 30 anos, tem que ter limites, mas vou continuar voando, continuar batendo minhas asas, não tenho medo do desconhecido. Uma águia vai para o desconhecido, ela quer suprir sua fome, a sua necessidade, e eu vou suprir a minha necessidade, mas vou suprir não pisando em cima de ninguém, não destruindo ninguém, só construindo, tudo o que sou hoje eu construí em cima da minha lealdade, da minha fidelidade (Professora Wilma – 2014).
A comandante foi tomada de emoção ao falar de si e trazer à tona a sua
relação com o passado, o presente e olhar em direção para o futuro, pois ao
comparar-se com uma águia, rememora momentos intensos, dificuldades e
superações enfrentadas em sua vida pessoal e profissional. Tais vivências foram
significativas para a (re)construção de suas identidades. A análise interpretativa
da professora migrante exemplifica a tese de Ciampa (1996, p. 128) quando
enfatiza: “identidade é metamorfose. E metamorfose é vida”.
Em 2014, Wilma já se encontrava afastada das atividades docentes para
aguardar o processo de aposentadoria do município, porém, segundo suas
narrativas, a garantia desse direito se fez com enfrentamento perante ela e o
secretário municipal de educação. A despeito dos esforços, até meados de 2015,
ela ainda não havia conquistado a aposentadoria, porque o Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) informou que a prefeitura municipal não repassou a
contribuição obrigatória.
Em vários momentos da rememoração ficou visível a necessidade da
comandante de ter alguém para compartilhar suas histórias, principalmente, a
mais recente, o processo de aposentadoria. Num texto oral confidencial e
projetivo, a professora migrante falou com muito autonomia a respeito dos
198
desafios vividos para conseguir seu afastamento do trabalho, assim como
apontou a incapacidade das gestões municipais em administrar a vida funcional
dos servidores.
Imagem nº 20: Professora Raimunda Wilma Corrêa Vilar Brasil.
Fonte: Arquivo da pesquisa - julho de 2015.
Garantir a aposentadoria sem recorrer à questão judicial é fundamental
para Wilma sentir-se valorizada enquanto profissional e, de maneira digna, fechar
o ciclo de uma vida de trabalho na docência. O descaso do poder público, no
entanto, tem lhe causado angústia, decepção e, até mesmo, situações
conflituosas com outros agentes do poder municipal.
De acordo com a concepção de identidade em Dubar (2009, p. 195), a
vida de Wilma diante do processo tumultuado da aposentadoria, pode ter lhe
provocado um recolhimento do eu, “o enfraquecimento do ego e o
desmoronamento da auto-estima”, ao limitar, alongar o processo de
aposentadoria e criar uma mudança subjetiva, portanto, uma crise de identidade.
199
Outro ponto a considerar em sua exposição é a vontade imensa de
continuar prestando serviços à educação, mesmo que isso venha acontecer por
outros trâmites, por exemplo, via contrato, prestação de serviços. Ela afirmou em
vários momentos o desejo de fazer valer seus direitos de profissional e, depois de
aposentada, continuar à disposição do município para prosseguir o tempo de vida
ativa nas atividades docentes, pois considerou-se em perfeitas condições físicas e
psicológicas para o exercício profissional.
A decisão da professora migrante me levou a pensar que a “construção
da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição
dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas”
(CUCHÉ, 2002, p. 182).
A vontade de permanecer em atividades docentes pode ser analisado a
partir de Ciampa (1996) ao trazer a “personagem” como uma reprodução da
identidade. Por exemplo, Wilma demonstrou-se preocupada com sua vida após a
aposentadoria, pois não pretende perder a personagem de “professora Wilma”.
Então sua estratégia é permanecer na profissão, mesmo que por outro vínculo
empregatício. Com Ciampa (1996, p. 139), posso dizer que “o indivíduo deixa de
ser verbo para se tornar substantivo; ou melhor, na realidade continua verbo, mas
o verbo substantivar-se...”.
Na densidade da narrativa interpretativa dessa professora migrante, cabe
dialogar ainda com Nobre (2009, p. 32) ao refletir que
o processo identitário é permeado pela maneira com que cada ser humano se apropria do sentido de sua história pessoal e profissional. Por esse motivo a identidade é um lugar de conflitos e de lutas, de aceitações e de negações, de existir sempre, de apresentar vários personagens que compõem a identidade de cada um.
Escolher a águia como uma representação do eu, não foi para a
comandante um mero acaso, nem de forma aleatória, essa escolha é a
simbologia de uma trajetória de luta, conflitos e negociações da mulher-professora
em favor da educação municipal, do equilíbrio e bem-estar familiar e do encontrar-
se permanentemente consigo mesma.
Ao seguir o percurso da autoidentificação, Rosiete narrou e interpretou a
experiência de si de maneira reflexiva.
200
Eu não conseguiria responder com exatidão quem sou eu. Pois sempre queremos que o outro nos diga quem somos nós, uma vez que é muito complexo nos definirmos, porém eu fico conjecturando sobre minha vida, me perguntando quem sou eu? Que mulher eu sou? Que profissional me tornei? De que forma minhas crenças influenciam em minha história? Em minhas atitudes? Enfim, são tantos os questionamentos que eu concluo meus pensamentos com muitas dúvidas a respeito de minha pessoa. Mas posso dizer com convicção que ao me distanciar da minha vida urbanocêntrica e passar a viver em um mundo mais rural, apesar de ter nascido no meio rural, mas não vivi minha juventude e vida adulta neste meio, local onde nasci. Vim viver em Melgaço aos 25 anos de idade, sem experiência de como as pessoas nas cidades menores pensavam o comportamento humano de um professor ou professora, porque agora eu não seria uma pessoa anônima, eu seria uma pessoa pública. E essa nova mudança de vida me fez ver, viver e tomar outras atitudes que, até então, não havia pensado. Como, por exemplo: professor é um exemplo na comunidade; outro, saber se posicionar diante dos problemas, agir com cautela, paciência, cooperar, participar, compreender, refletir, lutar por meus direitos, conhecer como funciona os mecanismos políticos que estão mais perto de você e, acima de tudo, respeitar e fazer-se respeitar. Tudo isso e mais conquistei nesta comunidade, mas não foi de uma hora para outra, foi com muitas lágrimas, algumas vezes com vontade de desistir, saudades da família anterior, dos amigos, dos passeios ao comércio, tudo aquilo que as cidades grandes oferecem. Então, essa condição de vida me fez ser uma mulher mais adulta que eu não conhecia. Conheci e descobri a grande responsabilidade que pairava sobre mim, que eu não era mais simplesmente Rosiete e sim a professora Rosiete, aos poucos fui me dando conta que as minhas relações sociais mudaram, passei a conviver com outras pessoas, mais experientes com ideias seguras, com comportamentos cheios de “tabus” ou religiosos muitos diferentes dos meus em certas maneiras de pensar, que muitos estavam de comum acordo com a comunidade que, por opção de trabalho, escolhera para viver. Aos poucos fui me fechando, adaptando a nova realidade que estava vivendo, mas tudo isso não foi para o “mal”, foi para o “bem”, pois hoje me vejo como uma mãe que soube educar suas três lindas mulheres, sem preconceitos, como uma pessoa que não é rancorosa, vingativa, que possua magoa no coração ou que se esconda para dizer o que pensa. Sou decidida, amo o que faço de montão, enfrento os problemas com atitudes, sou uma mãe que com certeza consegui ensinar valores às minhas três lindas mulheres que elas podem questionar ou não. Acredito que sou uma profissional que foi em busca do conhecimento para ampliar seus horizontes, saberes e aprendizados. Mas considero também, que sou um mistério, como diz a música de Zé Vicente “Todas as coisas são mistérios”, nessa complexa teia da vida (Professora Rosiete – 2014).
A vinda de Rosiete para Melgaço marcou o início de um novo estilo de
vida e novas maneiras de viver no lugar. Ela percebeu que o tempo, o espaço e a
201
vida eram regidos por uma nova dinâmica cultural. Travessias feitas para a
mudança, relações estabelecidas com o outro e desafios da profissão foram
significativos para repensar suas concepções de existência.
Ficou evidente em sua narrativa o quanto se deixou representar pela
profissão, sua preocupação focou-se no olhar da comunidade sobre si. Adensa o
olhar de si, o fato de que a relação com o grupo social foi reconstruindo seu
posicionamento e sua maneira de ser e encarar a vida em terra distante.
As mudanças desestabilizam a concepção que temos de “nossas
identidades pessoais, abalando a ideia de que temos de nós próprios como
sujeitos integrados”, passamos a operar nas ações cotidianas como sujeitos
descentrados (HALL, 2003b, p. 9).
Imagem nº 21: Professora Rosiete Corrêa Siqueira.
Fonte: Arquivo da pesquisa - setembro de 2015.
A (re)construção da identidade vivida continuamente por Rosiete em
Melgaço, está concatenada ao que Caeiro (2009, p. 62), semelhante a Dubar
(2000), analisou sobre esse processo:
202
A construção de identidade consiste em dar um significado consistente e coerente à própria existência, integrando as suas experiências passadas e presentes, com o objectivo de dar um sentido ao futuro. Trata-se de uma incessante definição de si próprio: o que/quem sou, o que quero fazer/ser, qual o meu papel no mundo e quais os meus projectos futuros, processo nem sempre pacífico e causador, por vezes, de muitas crises e angústias existenciais.
A professora migrante quando se deparou com uma realidade totalmente
avessa do seu lugar de referência, ciente da necessidade de construir sua vida e
trajetória profissional, ressignificou princípios pessoais com base na cultura do
lugar de acolhida.
O ato de ressignificar não foi uma decisão espontânea e sem impacto
para a vida da professora migrante, como bem afirmam os autores. Ele é um
processo causador de muitas dores e, até mesmo, crises existenciais, portanto,
de identidade. De acordo com Hall (2003b) essas crises podem ser interpretadas
como resultado de acontecimentos mais amplos, os quais desestabilizam quadros
de referências pessoais. Rosiete apontou tal situação em várias passagens de
suas narrações ao referendar que suas conquistas foram construídas com muitas
lágrimas, seja por causa da família ausente e da rotina no lugar deixado ou por
dificuldades de apreender, a princípio, os modos de vida na terra hospedeira.
Diante desta reflexão, é possível dizer que a (re)construção da identidade
da professora migrante foi uma questão de negociação e adaptação do próprio eu
com um eu em metamorfose, o qual, na ótica de Ciampa (1996), não acontece em
um único tempo e espaço, mas numa realidade em movimento e em
transformação permanente.
Nesse percurso cartográfico, procuro construir condições para que Dilma
também possa falar de si, mediada pela interpretação da mulher-mãe e da
mulher-professora. Com sorriso no rosto considerou:
Quem é a Dilma? Meu Deus do Céu! Bem, eu sou uma pessoa simples. Acredito que nunca fui uma pessoa extravagante de querer ser, não. Eu sempre fui aquilo que sou, nunca mudei meu modo de ser, sempre fui professora, sempre serei professora, estou na coordenação dos cursos que nós fazemos, nunca procuro me colocar acima das pessoas, não. Sou mãe muito apegada aos filhos, super protetora, agora avó de uma gata (risos) que está mandando na casa, chegou para colocar ordem, estou me sentindo realizada, nooossa!!! Parece que ela veio preencher
203
(chora) um vazio. Eu digo que ela veio preencher os nossos corações, depois dessa perda que nós tivemos, eu acho que ela veio no momento certo, na data certa, está aqui com a gente e para nós está sendo maravilhoso. Eu pedi tanto à Deus que me desse essa oportunidade, eu nunca poderia imaginar que iria tomar conta da minha neta, então, hoje estou aqui muito feliz graças à Deus! Agora, claro, não é por causa dela que vou deixar meu trabalho, vou retornar a Melgaço continuar com minhas atividades até quando for possível sair a aposentadoria. Eu me considero essa pessoa feliz, com certeza, muito feliz pelos filhos maravilhosos que tenho, que Deus me deu. Não tive problema com filho por falta de orientação, de domínio, graças à Deus! Eu dou muito valor à família, quero estar perto, cuidando da roupa de um, vendo a roupa de outro, sempre fui e me considero essa mãezona. Essa professora, também não é a tal que conhece tudo, não, de jeito nenhum, estou sempre pronta a aprender com as pessoas e é isso (Professora Dilma – 2014). Imagem: nº 22: Professora Maria Dilma Corrêa.
Fonte: Arquivo da pesquisa - setembro de 2015.
Diferente de Rosiete, Dilma centralizou sua narrativa num tempo atual,
todavia é uma identificação (re)construída ao longo da vida. Focar no presente
talvez tenha sido uma estratégia para esconder um tempo de sofrimento, a pouco
tempo essa comandante viveu a perda do esposo e também ganhou a primeira
neta, o que lhe deixou emocionalmente afetada. O conjunto de sentimentos que
afloraram no ato da narrativa, com destaque para os fortes instantes quando falou
204
de si, carregou-os de emoção e supervalorização dos vínculos consanguíneos de
uma maternidade vivida com cuidado, zelo e dedicação.
A autoidentificação da professora migrante fez remeter-me a escritos que
analisam a identidade como um campo de batalha.
A essência da identidade constrói-se em referência aos vínculos que conectam as pessoas umas às outras e considerando-se esses vínculos estáveis. O habitat da identidade é o campo de batalha: ela só se apresenta no tumulto. Não se pode evitar sua ambivalência: ela é uma luta contra a dissolução e a fragmentação, uma intenção de devorar e uma recusa a ser devorado. Essa batalha a um só tempo une e divide, suas intenções de inclusão e segregação misturam-se e complementam-se (FARIAS e SOUZA, 2011, p. 37).
Se as identidades são construídas nos “vínculos que conectam as
pessoas umas às outras”, na experiência de Dilma esses laços apareceram com
mais frequência atrelados às dimensões familiares e profissionais, o que provocou
um certo conflito e negociação. Ao sentir-se dividida aos dois lugares de
referência, a afetividade se afirma tanto pela família quanto pelo trabalho.
Em Melgaço, a comandante consolidou no meio social uma identidade
profissional que mesmo depois da aposentadoria, ficará na memória das pessoas,
“a professora Dilma” e já em Colares será somente Dilma, porém não faz parte de
seu campo de suas intenções perder essa referência identitária, tanto que várias
vezes legitimou isso em sua fala. Em contrapartida, dois de seus três filhos já
moram em Belém e seus familiares são de Colares, daí compreende-se os
conflitos internos vivenciados por ela em torno dos novos territórios de moradia.
Frente a tal situação, Dilma está totalmente envolvida num campo de
batalha e negociação permanente tanto com aquele que deixou na “rocha-mãe”
quanto com aquele que ficará na terra acolhedora. Esse é um processo que
perpassa pela (re)construção da identidade da professora migrante.
Em Nobre (2009) uma outra questão fundamental na constituição da
identidade dos professores migrantes está no ato de rememorar, pois este é um
processo que os leva ao encontro com reminiscências32 de suas origens, mesmo
32 Para Thomson (1997, p. 57), “reminiscências são passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório a nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes”.
205
que isso aconteça de maneira involuntária e possibilite aos professores momentos
de reflexão e de (re)construção ou reafirmação de suas identidades.
Thomson (1997, p. 57), estudioso da relação memória e identidade, é
esclarecedor quando escreve:
O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos quando narramos uma história (...) identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais. Assim, podemos dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências; quem acreditamos que somos no momento e o que queremos ser afetam o que julgamos ter sido.
Pelo percurso de convivência com as professoras migrantes e ciente da
dinamicidade e jogos da memória na interface com a identidade, coloco-me a
escuta de Jurema e mergulho com ela na construção de um retrato de si.
Imagem: nº 23: Professora Jurema do Socorro Pacheco Viegas. Fonte: Arquivo da pesquisa – maio de 2015.
Não é muito fácil a gente se descrever, porque falar de nós, às vezes, é preciso colocar o nosso espírito de guerreira para fora. Como é que sou? Eu sou uma pessoa bastante dinâmica, muito comunicativa, consigo me relacionar com todas as pessoas de qualquer nível social, criança, adolescente, jovem, adulto. Eu não tenho dificuldade nenhuma de me acomodar em qualquer cantinho. Qualquer lugar que chego, faço logo amizade com as
206
pessoas, eu tenho facilidade para isso. Tem um poder de liderança muito grande na Jurema. A Jurema é essa pessoa que fala com todo mundo, inclusive ela é muito prolixa, às vezes, até ela tem que colocar um pouco de freio na língua, mas é porque ela veio dessa cultura de tradição oral, tinha um pai que conversava muito e também gostava muito da leitura. Ela é uma pessoa apaixonada pela leitura, pela linguagem de forma geral, tanto que hoje ela faz mestrado em arte [já concluído] porque é apaixonada por linguagem. A Jurema gosta de buscar algo diferente, ela diz que não gosta de ser xerox, de ser cópia, entendeu? Quer ser ela mesma, muitas vezes as pessoas querem que ela seja outra. Ela diz para si mesmo: “eu quero ser eu mesma, eu não quero ser A nem B nem C, eu quero ser assim como eu sou e me amo do jeito que sou”. Então a Jurema se ama do jeito que ela é, entendeu? A Jurema é mais retraída, às vezes, não fala porque não quer ofender o outro, mas eu acho que isso é errado, só que tem que chegar de maneira educada, de maneira que ela não vai ferir, então muitas vezes, como ela não tem essa palavra para dizer, ela cala, mas ela não gosta de ofender as pessoas com palavras. Ela é muito religiosa, muito católica, tem uma devoção muito grande com a Nossa Senhora. É uma pessoa apaixonada pela vida, pela arte, pela cultura, pela questão social. Ela tem uma visão muito ampliada da sociedade, essa questão provoca muito ela, cutuca muito, ela fica agoniada, ela não consegue estar parada, só que, às vezes, ela se atrapalha, entendeu? Ela tem um espírito de luta muito profundo, tem muitos sonhos. Acho que a Jurema é essa pessoa que está sempre de bem com a vida, é muito sensível, chorona, emotiva, por qualquer coisa ela chora, mas depois que chora, passou o choro, ergue a cabeça. Quando cai em uma queda, depois ela se ergue e continua, ela é uma pessoa cheia de esperança na vida e acredita que as coisas vão mudar, ela vai conseguir chegar nesse degrau que pretende chegar (Professora Jurema – 2014).
A professora migrante iniciou a narração aparentemente confusa e
insegura. Ela chegou a afirmar e depois negou a dificuldade de se autoidentificar,
assim como começou falando de si e depois direcionou a narração como se
estivesse falando de uma outra pessoa. Percebi ser um recurso semântico e, ao
mesmo tempo, uma estratégia de libertar-se de si para poder melhor avaliar sua
persona e falar sobre ela.
Passada a tensão e o conflito de si, dominou a fala, empoderou-se e
assumiu postura professoral. Com os recursos da narrativa pareceu pintar cena
como se estivesse dando uma aula explicativa, na qual se apresentava, apontava
suas qualidades e seus desejos de dominar seus “erros”. De acordo com Ciampa
(1996), vê-se que a autoidentificação da professora migrante apareceu “cortada e
207
costurada” ao tentar buscar além do aparente para mostrar as suas várias
personagens.
Na narrativa, Jurema privilegiou enunciar questões pessoais sem
conectar as profissionais e familiares, mas mencionou uma identidade “herdada”,
por exemplo, o gostar de linguagem, ser comunicativa e de fazer amizade com
facilidade. Essas características ela apontou como “adquirida” de seu pai.
Prefiro, de todo modo, seguir as orientações de Rodrigues e Cavalcanti
(2010, p. 225) quando assinalam:
Em vez de falar sobre identidades herdadas ou adquiridas, melhor seria, para ficarmos mais próximos da realidade de um mundo globalizado, falar de identificação, uma atividade incessante, sempre incompleta, infindável, e que não se fecha, na qual estamos todos engajados, por necessidade ou escolha.
Ao compreender que o discurso de uma pessoa é a revelação da sua
própria identidade, (re)construída na relação com o outro e consigo, Lechner
(2009, p. 94) chama atenção a respeito da subjetividade na formação da vida
humana
As vidas humanas não são nunca versões puras de determinações exteriores aos sujeitos: os contextos interiores, subjectivos, também condicionam as formas de vida. Esta interioridade não se confunde com a psicologia individual nem deve ser entendida de forma psicologizante. Antes traduz a síntese operada entre singular-plural, individual-colectivo na vida de cada um. Tal evidência, claro está, é mais facilmente aceito quando as sociedades são capazes de pensar as interioridades como um processo dinâmico, activo e não meramente passivo. Ou, dito de outro modo, quando as subjectividades são capazes de falar por si.
Ao analisar o posicionamento da autora e a autoidentificação de Jurema,
entendo que a relação de Jurema consigo e o meio social são reflexos de sua
singularidade que a integra e também diferencia do(a)s demais, através dos seus
desejos, sentimentos, emoções, sonhos e percepção da vida.
No roteiro da viagem cartográfica, Fátima seguiu a dinâmica da
autoidentificação, narrando que
é muito difícil definir quem somos nós, pois sempre se espera que alguém fale algo sobre nós, do nosso trabalho, do nosso caráter, de nossa personalidade. Quando nós mesmo falamos de nós, parece ser pretensão, mas enfim temos que emitir uma opinião
208
sobre cada um de nós. Mas, quem é a cidadã, professora, esposa, mãe, Maria de Fátima Rodrigues Alves? Sou uma pessoa que nasceu de classe popular em Santana do Acarau, município de Fortaleza, Ceará, e desde os oito anos de idade moro no Pará. Já morei em vários lugares como: Igarapé Açu, Curi, Km 32, Belém e agora em Melgaço. Sou uma pessoa que desde cedo resolvi seguir a carreira docente e, desde então, com muita luta comecei a buscar tal objetivo, porque queria ter uma vida diferente daquela que vivia com meus pais. Acreditando que a educação começa na família e aqui destaco a minha mãe como minha maior incentivadora, posso afirmar com toda a certeza é uma mãe brilhante, com seus ensinamentos; posso dizer que sou uma pessoa equilibrada no sentido de estar sempre com os pés no chão, forte e decidida. Minha filha Cristiane dizia que eu era a sua estrela guia, porque era forte e batalhadora. Sou mãe de dois filhos que amo muito Ian e Iara e que faço o possível para eles serem pessoas do bem que saibam enfrentar as dificuldades da vida sem medo e serem vencedores. Tenho muita fé e acredito que há sempre uma esperança para que as coisas mudem para melhor, é claro. Sou católica e, por isso, minha fé me leva ao longe e sou uma pessoa solidária, porque consigo me colocar no lugar do outro e imaginar o sofrimento dele como se fosse meu. Na medida do possível, ajudo as pessoas, os meus irmãos que vivem as margens da sociedade, por isso, além de ser professora, trabalho na minha igreja, na catequese, na pastoral da criança, dentre outras pastorais e serviços. Não tolero injustiça. Sou uma professora comprometida com meu trabalho, apesar da desvalorização de nossa profissão, mas mesmo assim, gosto do que faço, porque adoro meus alunos, gosto de ser reconhecida pelo menos por eles e saber que faço parte da história de vida de todos aqueles que continuam seus estudos ou mesmo daqueles que pararam de estudar e, mesmo assim, saber que contribuir positivamente em sua vida. Por me preocupar com a juventude de maneira geral, também trabalho na igreja católica, sou catequista de crisma e também sou líder da pastoral da criança que é uma pastoral que trabalha com as famílias carentes. Portanto, sou bastante ativa em minha comunidade não sou de muita badalação social, sou simples e vivo de acordo com minha convicção, valores e tento mostrar isso no meio em que vivo na escola, na igreja, ou seja, na comunidade em que vivo atualmente (Professora Fátima – 2014).
De acordo com Souza (2006a), o olhar sobre si provoca aproximação,
mas também causa estranhamento à singularidade do eu, pois a reflexão sobre a
ação individual ou coletiva nem sempre é encarada de maneira confortável e
tranquila pela pessoa que está se autoidentificando, como foi o caso de Fátima,
antes de refletir sobre si afirmou o quanto é difícil exercitar tal atitude.
Fátima em sua interpretação, resumidamente, apresentou um pouco de si
em cada segmento social envolvida, como mãe, filha, professora, religiosa e,
209
neste contexto, colocou o seu papel social e de cidadã que vem realizando ao
longo da vida, elucidou com orgulho os seus posicionamentos e funções frente as
causas sociais, profissionais e pessoais.
Imagem: nº 24: Professora Maria de Fátima Rodrigues Alves. Fonte: Arquivo da pesquisa - setembro de 2015.
Além dessas questões, a comandante evocou que desde muito cedo
aprendeu a construir em si o sentido da vida, a ter seus desejos e sonhos
definidos, os quais foram reconstruídos e aperfeiçoados, permanentemente, de
acordo com seu envolvimento no meio social e no querer e exigir de si e do seu
contexto.
De acordo com Timm (2010) é pertinente analisar as memórias
detalhadamente para compreender o que o narrador deseja expressar. Desse
modo, deve-se estar atento ao que se pergunta e ao que ele gostaria de ser
perguntado.
Sob esta orientação, observei que as professoras migrantes, com
exceção de Wilma, ao socializarem suas concepções identitárias também se
autoquestionaram sobre suas identidades. Tal questionamento pode ser
210
compreendido por duas dimensões: primeira, um processo de autorreflexão da
vida; segunda, insegurança em firmar ao grupo social as reais concepções de
vida.
Essas dimensões permitiram pensar o tempo histórico, o papel social e o
lugar de onde as comandantes falavam, além de compreender a identidade
pessoal e profissional de cada uma como um processo intrinsecamente
imbricado. A partir dessas referências, tornou perceptível que as concepções de
vida socializadas em nossos diálogos estavam associadas à própria relação delas
consigo e com o social.
4.3. Afetos e desejos: outros vínculos identitários
Ao chegarem a Melgaço, na década de 1980, uma outra dimensão da
vida passaram a conhecer e viver, distante do que lhes eram no habitual: um novo
padrão de comportamento lhes fora exigido; dividiram o mesmo espaço, tanto no
exercício da profissão, quanto na moradia; estabeleceram parceria com a gestão
municipal, assim como também viveram momentos conflituosos, envolveram-se
em variados segmentos sociais e religiosos, criaram laços de amizade com
muitas famílias e constituíram as suas próprias famílias.
Os vínculos relacionais possibilitaram maior sociabilidade na troca de
experiências e saberes, avaliação e planejamento da prática educativa e da vida
em si, contribuindo de maneira significativa para (re)construção de suas
identidades pessoal e profissional.
Ao examinar a riqueza das narrativas acerca das identidades pessoais
das professoras migrantes, resolvi trazer para o embarque desta viagem, outras
temáticas que emergiram nas convivências entre-vistas, por necessidade ou
própria opção em socializá-las. São elas: relações afetivas, desejos e realizações
pessoais e familiares e atitudes que marcam suas identidades.
Wilma, por exemplo, surpreendeu-me quando se propôs a falar de suas
relações amorosas e do desejo de construir um novo relacionamento. A minha
surpresa não foi por pensar a vida da professora migrante dedicada somente ao
trabalho, pois sei que estabeleceu relações de sociabilidade e afetividade, mas
211
por conhecê-la como uma mulher que investiu, intensamente, na profissão, sem
muito expor e socializar sua vida pessoal amorosa. Assim publicizou:
Um dos voos que eu tenho que fazer Ilca, porque, ninguém é uma ilha, eu ainda penso ter um parceiro para eu envelhecer junto com ele, estou separada do meu marido, mas ainda penso em ter um parceiro, agora claro e evidente, eu vou ter que saber escolher. Os parceiros que eu tive, claro, é uma convivência, eu sou virginiana, eu sou uma mulher muito perfeccionista, mas eu já aprendi que nenhum ser humano é perfeito. Quando eu escolher um companheiro para mim eu não sei se vai ser para o resto da vida, mas eu quero ter alguém para conversar, trocar ideias. Estou separada do meu esposo, não sei se volto ou se vou me divorciar, porque na vida ninguém pode prever nada, estou pensando, mas eu quero me realizar, viver com uma pessoa que me trate bem, que me entenda, porque, tu não precisas só de conhecimento, tu precisas ter essa parte individual que é o teu eu (Professora Wilma – 2014).
Wilma foi mãe de um casal de filhos e sua filha mais nova faleceu com 17
anos em 2007. Hoje, 2015, a professora migrante mora sozinha em sua
residência, vez ou outra seu filho e netos vão lhe visitar, entretanto, a maior parte
do tempo está em sua íntima relação de ser. No encontro de si mesma, sentiu a
necessidade de voltar a dividir momentos da existência ao lado de um
companheiro e viver um relacionamento saudável.
A necessidade de uma nova relação afetiva na vida da comandante
emerge como horizonte de possibilidades para construir uma nova identidade que
seja capaz de motivar a sua autoestima para sentir-se confiante e retornar com
mais frequência aos espaços de sociabilidades em Melgaço. Com isso, aflora um
desejo de redefinir a vida, depois de conquistar a aposentadoria.
O poderoso enunciado utilizado de que “ninguém é uma ilha”, aponta para
o campo intersubjetivo e psicossocial de que os seres humanos precisam estar
interconectados uns aos outros, nas mais diferentes relações que constroem,
principalmente a amorosa. Esta máxima deixa perceber que nós não somos
totalmente independentes, especialmente em nossos sentimentos, pois
necessitamos do contato com o outro para viver em sociabilidade. Na expressão,
“tu precisas ter essa parte individual que é o teu eu”, o individual referido não
significa isolamento e solidão, é um individual tecido por relações afetivas e
matrimoniais.
212
A análise interpretativa da relação do eu com o outro como processo de
constituição da identidade, reflete no que Ciampa (1996, p. 59) chama a atenção
quando diz que “a identidade do outro reflete na minha e a minha na dele”.
Nesse fazer cartográfico pontilhado por sinuosas e complexas memórias,
Jurema revelou suas realizações familiares, os sonhos que pretende viver ao lado
de seu esposo e na vida profissional, depois da aposentadoria.
Na minha família eu me sinto uma pessoa realizada, graças à Deus! Casei com um homem que eu fui construindo. Não somos uma família sem defeito, já tivemos muitas discussões. Eu tenho um colega que diz que minha família é muito matriarcal, mas eu fui colocando meu marido no eixo, na igreja, meus filhos todos estudam e se formaram. É uma coisa muito divina que não é meu, eu não tenho essa capacidade. Ela é uma graça recebida de Deus, eu não teria essa capacidade se não fosse dada do alto. Mas, Deus te dá uma luz e tu consegues teus objetivos, porque tive muita ajuda dos meus irmãos, do meu pai, da minha mãe, eles me ajudaram quando estava fazendo a graduação em Soure. Então, eu consegui e todos os meus filhos que já casaram, só casaram depois que se formaram [...]. Uma coisa que eu sempre falo, eu não quero me aposentar para ficar estática em casa ou só curtindo e viajando. Eu pretendo ao terminar o mestrado, me aposentar, tenho idade para isso, já trabalhei bastante no Estado, o suficiente. Vou me aposentar, quero logo no início viajar com o meu marido, duas cidades que eu pretendo conhecer é Fortaleza e Rio de Janeiro, não conheço e no Brasil são cidades de destaque. Eu quero conhecer a praia de Iracema, Copacabana, o Cristo Redentor, mas eu quero conhecer com meu marido, ir com ele, entendeu? Porque o meu momento também agora é estar com o marido. Mas, eu não quero parar de dar aula, porque já que eu fui buscando conhecimento, ele não pode estar estático, tem que ser socializado, porque seria um egoísmo da minha parte, buscar tanta informação, para quê? Para morrer comigo? (Professora Jurema – 2014).
O enredo narrativo construído pela professora migrante estruturou-se em
firmes pilares que canalizam suas energias vitais para a busca da felicidade
familiar. Criar, formar e casar os filhos foi, em sua ótica e crença, uma conquista
que ultrapassaram conhecimentos humanos, um feito divino, pois como já se
observou em outras narrativas, ela é católica, igual as demais comandantes.
Assim, a dimensão religiosa aparece como um dos nortes explicativos para as
conquistas alcançadas.
Merece destaque, ainda, em outra passagem da narrativa de Jurema,
mas esclarecedor desse que segue em análise, a liderança que orientou sua
213
existência antes e depois do casamento. O fato de ser filha primogênita que
recebeu do pai a incumbência de alfabetizar os irmãos e, a partir daí, conduzir os
destinos da vida de toda a família fez dela essa mulher-referência. Tal aspecto
ajuda a entender porque narrou com tanta segurança e clareza a ideia de que
construiu seu esposo. Expõe, nestes quadros, a responsabilidade que levou
adiante em sua existência de educar não somente os filhos, mas, inclusive, o
próprio esposo dentro dos princípios que julgava melhores para viver bem e,
consequentemente, receber reconhecimento da sociedade onde habita.
Jurema falou com orgulho da realização de muitos sonhos, mas ainda tem
dois que deseja realizá-los depois da aposentadoria. O primeiro é viajar e
conhecer capitais nacionais ao lado do esposo para melhor aproveitar a vida a
dois numa outra fase da vida; e o segundo é não sair definitivamente da sala de
aula, por ter concluído o mestrado pretende compartilhar os novos conhecimentos
adquiridos numa atitude de expandir-se e renovar-se em socialização.
Monteiro (2002) em contato com Castells (1999) caracterizam que a
identidade é uma construção em movimento, Nesses quadros, a vida é uma
dinamicidade e, o processo de (re)construção de identidade é autoformativo, por
provocar no ator um olhar positivo da “constituição humana”.
A concepção dos autores está em sintonia com o que Jurema
externalizou, alcançando a esfera dos desejos e sonhos em renovação. Por isso,
novos projetos e novas ações são planejadas de acordo com a dinamicidade e os
caminhos percorridos pela vida. Se a identidade não é estática e nem permanente
é porque a vivência a movimenta e a ressignifica continuamente, tal como foi
visualizado em sua narrativa.
Portelli (1997a;1997b; 2001) em muitos de seus textos sobre o trabalho
do pesquisador que produz academicamente com base em narrativas orais,
chama a atenção para o fato de que, no ato da entrevista, é preciso estar atento
não apenas para o roteiro que esboçamos, mas também para o roteiro que
nossos interlocutores constroem e desejam socializar. Orientada por esta lição, no
compartilhar com Fátima, seguimos pela intimidade do início de seu
relacionamento com o esposo, quando ou muito descontraidamente e sorriso nos
lábios as histórias selecionadas.
214
Depois que eu comecei a trabalhar como professora, logo depois, eu arranjei família, apareceu o Ivan na minha vida, já tinha a Cris e as irmãs dele já começaram a cuidar dela, não sei, mas na minha vida as coisas vão acontecendo, parece que não é aquilo que estava planejado, mas vai acontecendo e vai dando certo, a gente passa por várias situações mais no final dá certo. Então as irmãs do Ivan começaram a pegar a Cris a levar para lá, cuidar da Cris e aquilo já me deixava em situação mais folgada (risos), às vezes, eu penso que era o comodismo que me deixava ficar naquilo, aquilo estava bom para mim, eu deixava. Eu constituí família, depois fiquei grávida do Ian e eu continuei trabalhando, já que eu gostava e tinha trabalho, eu fui organizando a minha vida com ele (Professora Fátima – 2014).
Quando a comandante falou de suas histórias de vida, “vai acontecendo e
vai dando certo” e na crença de que Deus determinou os seus planos e nada
aconteceu sem a vontade Divina, veio-me à memória a música, “Deixa a vida me
levar”, de Zeca Pagodinho. Vejamos:
Eu já passei por quase tudo nessa vida
Em matéria de guarida Espero ainda a minha vez
Confesso que sou de origem pobre Mas meu coração é nobre Foi assim que Deus me fez
E deixa a vida me levar (vida leva eu!) Deixa a vida me levar (vida leva eu!) Deixa a vida me levar (vida leva eu!)
Sou feliz e agradeço Por tudo que Deus me deu
Só posso levantar as mãos pro céu Agradecer e ser fiel
Ao destino que Deus me deu Se não tenho tudo que preciso
Com o que tenho, vivo De mansinho lá vou eu
Se a coisa não sai do jeito que eu quero Também não me desespero
O negócio é deixar rolar E aos trancos e barrancos, lá vou eu!
E sou feliz e agradeço Por tudo que Deus me deu
A referência feita da história de Fátima com a música de Zeca Pagodinho
não se associa à passividade, falta de atitude e de compromisso com a vida, nem
entendo que a música queira transmitir exatamente isso, mas retrata muito do que
viveu, por exemplo, trouxe em sua narrativa que é de família pobre, começou a
215
trabalhar desde a infância, batalhou muito para conseguir se formar e,
posteriormente, para adquirir emprego, além de ter sido mãe solteira e migrante.
Na atualidade, essas referências não são encaradas de forma tão
pejorativa ou preconceituosa, apesar de ainda existirem. A vida e o mundo já
estão sem fronteiras, as pessoas burlam as ditas normas constituídas pela
sociedade, criam estratégias constroem e transformam suas identidades de
acordo com o que acreditam. Nas décadas de 1970 e 1980, tais atitudes também
existiam, mas com restrições, pois as pessoas eram vistas e tinham olhar de
estranhamento, principalmente, com migrantes e mães solteiras.
No entanto, é importante lembrar que a professora migrante não
apresentou nenhum problema em falar das dificuldades vividas em tempos
passados. Para ela, os resultados de suas experiências são interpretados como
positivas, portanto, como diz a música “deixa a vida me levar, vida leva eu, sou
feliz e agradeço por tudo que Deus me deu”, significa superação e projeção de
novas perspectivas na caminhada humana.
Depois de passada a maré das dificuldades mais críticas na convivência
em terra distante da comandante e já com emprego assegurado, a ajuda das
cunhadas no cuidar da filha, resolveu estabilizar o enlace matrimonial e
recomeçar novos projetos de vida.
As vivências de Fátima permitiram refletir com Monteiro (2002, p. 76), ao
comunicar que “os saberes mudam com o tempo, nos propiciam crescer e aos
‘indivíduos-sujeitos’ que nos rodeiam e ajudam a constituir nossas identidades e
subjetividades”. Tal colocação, retratou muito bem a mudança na vida da
comandante, pois se antes tinha postura de acomodação aquilo que lhe trazia
conforto, hoje, isso é uma ação refletida e ressignificada.
Dilma seguiu esse enredo de interpretação ao falar de suas conquistas,
depois da migração para Melgaço e fez uma análise comparativa da vida nos dois
lugares de referência, Colares e Melgaço. Ela, então, afirmou:
Ver a necessidade que a gente passava lá (Colares), praticamente, a gente ia para a escola, levava alguma coisinha para merendar, ia para a roça e quando vinha da roça era direto para a escola, só ia comer mesmo era à noite que a gente já ia fazer uma alimentação melhor. Então, a gente passou necessidade, talvez por essa necessidade que levou que a gente procurasse meios melhores para continuar os estudos, hoje,
216
graças à Deus, eu digo para meus filhos, o que eu consegui, Melgaço me proporcionou isso (chora) para que eu trabalhasse e desse condições para cada um dos meus filhos procurar a sua formação, o Junior formou-se em Matemática, é professor, o Thiago já formou-se em Sistema de Telecomunicações e já está trabalhando, Renatinha está terminando Fisioterapia na UFPA, então, quer dizer o que a gente conquistou lá (Melgaço) valeu a pena. Eles não sofreram nenhum pingo do que a gente sofreu quando estava nessa fase de estudante, com certeza não, mas porque a gente penou para conseguir isso, a gente conseguiu dar uma vida melhor, uma formação melhor para eles e hoje, graças à Deus, eu já tenho os dois trabalhando que já ajudam aqui com a gente, falta só ela, mas já está terminando para o ano termina e, com certeza, as coisas vão se encaminhar (Professora Dilma – 2014).
A professora migrante relembrou os tempos de dificuldades vivenciados
na infância, quando morava em Colares junto de seus avós. Rememorar o
passado lhe remeteu à avaliações e vivências no/do tempo presente, as
mudanças que fez em sua vida para melhor cuidar e criar seus filhos.
Nobre (2009), em estudos a respeito da história de vida, compreende que
as narrativas de experiências são tentativas de reconstruir acontecimentos que se
vivenciou e ainda desvelar as aprendizagens dessas experiências para a vida,
seja nos grupos sociais, profissionais ou familiares. Tais fatos e rememorações
são significativas para a (re)construção de identidades do narrador.
Segundo Dilma, foram as dificuldades da infância que lhes motivaram a
procurar novas perspectivas de vida, mesmo que isso viessem acontecer em
terras distante da “rocha-mãe”. Seus relatos se apresentavam ora com nostalgia,
pelas necessidades dos tempos passados, ora com alegria e orgulho, por ter
superado as necessidades e ter proporcionado aos filhos melhores condições de
vida material, formação humana e profissional.
A vinda a Melgaço é considerada, para ela, como decisiva, porque além
de assegurar a estabilidade profissional e familiar, através de seu trabalho
garantiu a criação e formação profissional de cada um dos filhos, os quais já
podem conduzir, profissionalmente, suas trajetórias.
Rosiete também refletiu a respeito da vida familiar em vários momentos
de nossos diálogos. Uma passagem que considerei significativa e representou
muito sua identidade pessoal foi quando confessou:
217
Tem algo que me atrapalha muito, que eu detesto, que eu não suporto, que eu odeio, pode ser uma coisa boa, mas eu detesto esse meu lado sentimental de achar que eu não vou da conta de fazer isso, que minhas palavras não vão sair, que eu não vou conseguir fazer. Eu tenho muito esse lado que eu não suporto, que eu detesto. Vocês já perceberam que eu estou sempre emocionada, que eu sempre estou chorando. Nesse momento agora, até não estou chorando, percebi que eu consegui ser firme para falar dessa minha vida (Professora Rosiete – 2002).
A professora migrante relembrou que desde a infância, sempre foi muito
tímida e vergonhosa. As apresentações feitas em público eram muito dramáticas,
chorava e não conseguia falar. Essa condição ela nunca aceitou, por representar,
em determinadas situações, fragilidade, medo e insegurança.
Quando Rosiete chegou a Melgaço e assumiu a profissão docente, o
desafio de vencer a timidez só aumentou, primeiro precisou enfrentar a sala de
aula, o público nas reuniões e apresentações comemorativas, depois controlar o
próprio medo e encontrar estratégias de superar seus desafios.
Lembro-me em certos momentos que presenciei algumas falas dessa
comandante em público, ela não conseguia segurar o microfone para se
pronunciar, isso lhe causava angustia e sentia vergonha dos outros em relação a
si mesma, por considerar que essa postura não estava à altura de sua profissão e
da sua pessoa. Sobre essa tensão do eu pessoal com o eu social, Dubar (2009,
p. 198) reflete:
Essas crises são identitárias porque perturbam auto-imagem, a auto-estima, a própria definição que a pessoa dava “de si para si mesma” [...]. Ela faz sofrer em toda a parte, é estafante de levar, impossível de suportar. Ela faz ruminar, esmiuçar, repetir interiormente: “Não me aguento mais”.
A escritura de Dubar (2009) permite reafirmar que os posicionamentos de
Rosiete como angústia, resistência e insegurança, provocaram uma crise de
identidade e para superá-la foi preciso questionar a si mesma. Tal atitude era
feita, constantemente, pela comandante e, ao longo do tempo, começou a inibir e
controlar seus limites e desafios.
Segundo Alarcão (2004, p. 9), a história de vida visibiliza a existência da
pessoa e possibilita as suas interpretações. “Revela-nos o que aconteceu e o que
dos acontecimentos se reteve. Dá visibilidade à personagem da pessoa em foco,
manifesta os seus anseios, as suas realizações. Mas, também as suas
218
frustrações”. Em 2014, nos diálogos que construímos já foi possível perceber a
superação das características que apresentou no ano de 2002 quando foi
entrevistada por Sarraf-Pacheco.
Souza e Soares (2008b, p. 198) também referendam a importância das
histórias de vida para melhor compreender a formação e a valorização de si, pois
[...] é crucial entender que, por meio das histórias de vida, contribui-se efetivamente para as formações no plano individual, propiciando o exercício da auto-reflexão e conduzindo à compreensão e à análise da conduta pessoal, da valorização de si mesmo como pessoal e profissional, dentre outras questões fundamentais (SOUZA e SOARES, 2008b, p. 198).
No desejo de valorizar as histórias de vida das professoras migrantes,
segui com o olhar (re)interpretativo e suas vozes para melhor apreender e fisgar
em suas histórias flashes que as represente e apresente as (re)construções de
suas identidades.
Wilma, ao comunicar histórias vividas em vários cargos assumidos no
município, deixou-se revelar em suas reminiscências.
Eu assumi cargos importantes que tinha a oportunidade de desviar muito dinheiro, mas isso nunca passou pela minha cabeça, nunca, nunca e sinto que muitas pessoas não me convidam para ter um cargo de confiança, porque eles sabem que não vai rolar corrupção. A única pessoa que me convidou foi o finado Gilberto, quando ele morreu eu continuei na gestão do Cassimiro e, muitas vezes, eu fui com ele e falei: “olhe seu Cassimiro, isso não está certo e não vou assinar por isso, e se o senhor quiser o senhor dá um jeito por aí”. Nunca ele abriu a boca para me oferecer nada, eu estava satisfeita com o meu salário, Ilca. Agora nós professores não somos bem pagos para o trabalho que a gente faz, sim que dentro do limite que tu estás acostumada a viver, dá para viver, mas a gente tem que buscar mais para receber um bom salário e viver bem, Ilca. Não dá mais para você viver puxando, se arrastando como se fosse fantasma arrastando os grilhões da escravidão. O governo não olha, não valoriza o professor, apesar da Dilma dar esse piso salarial, mas isso é indigno para nós, tu tens que passar o dia fora da tua casa, desconta INSS, desconta imposto de renda e quando tu precisas para te aposentar não repassaram o INSS, estão repassando agora. Já pensou tu não ter direito naquilo que tu descontaste? Eu levo a minha vida assim, não sei se estou fora do padrão da vida contemporânea, mas me sinto bem e não estou arrependida de nada na minha vida, tudo que eu fiz não tenho arrependimento de dizer. Poderia estar melhor? Poderia, mas estou satisfeita. Não estou com o salário que ganho, mas da forma como estou vivendo, por exemplo, hoje eu não trabalho nem por um decreto, porque eu quero ser
219
respeitada, quando eu me aposentar eu trabalho, Ilca, eu vou trabalhar em algum lugar, porque eu sei que aposentado pode trabalhar, pode ser serviço prestado, agora eu me sinto indignada de ir para uma sala de aula, se eu batalhei tanto pelos meus direitos, trabalhei, nunca faltei, sempre cheguei antes do horário para dar minha aula. Agora eu vou morrer numa sala de aula? Não é minha culpa se eles estão todos errados, eles é que deem o jeito deles (Professora Wilma – 2014).
A comandante enfaticamente falou de suas concepções de vida e
formação política ao rememorar certas atitudes dos governos municipais que
considerava injusta, não somente a ela, mas, principalmente, aos profissionais de
educação. A identidade docente apareceu num processo contínuo de identificação
representada em cada situação envolvida e socializada.
Por exemplo, ao relatar sua gestão na educação municipal, mostrou
princípios éticos, os quais são fundamentais na gestão dos recursos públicos,
assim como na experiência do exercício profissional. A profissão docente lhe fez
enxergar e viver não apenas o lado da boniteza, mas a falta de valorização com os
profissionais de educação, isso contribuiu para adquirir uma visão crítica a respeito
dos direitos do professor e aprender estratégias para conquistá-los, como bem
mencionou a respeito do processo de sua aposentadoria municipal.
Wilma acrescentou que é feliz do seu jeito, mesmo se a considerarem fora
dos padrões da sociedade. A diferença ao outro apresenta a sua singularidade, ao
mesmo tempo em que faz a representação de um todo, caracteriza, uma
identidade refletida e interligada aos contextos e aos grupos sociais a que
pertence.
Falo isso porque, segundo as narrativas socializadas e meu convívio com
a professora migrante, inúmeras vezes, ela esteve no front do enfrentamento com
alguns gestores políticos, em busca de melhores condições de trabalho para
garantir a qualidade na educação do município. Marca sua trajetória um fato muito
comentado no município de Melgaço na gestão de 1993 a 1996.
Rosiete, também, refletiu sobre si ao falar das posturas adaptadas quando
estava na gestão da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio
Pres.Tancredo de Almeida Neves.
Ilca, nem que você não queira, não tem como ser professora, gestora da escola sem dar bom exemplo, porque você pode até demonstrar dentro do teu trabalho, mas se não tem fora, vai ser
220
sempre olhada [...]. Você ver que os alunos não me desafiam. Égua, é uma coisa muito legal que eu vejo até hoje! Se eu tiver de falar alguma coisa, eu chego e digo, se eles tiverem de me falar eles dizem, mas eles nunca me jogaram nada na cara de dizer: “a senhora é isso, a senhora é aquilo”. Eu sempre evitei festa, beber, eu não sou disso, eu sempre tive esse comportamento mesmo, fui criada assim, não é que eu queira ser. Eu procuro sempre está zelando por isso, não tem como viver uma vida dupla, eu sou isso aqui. Eu sempre digo para eles, o provérbio: “faça o que eu digo e não faça o que eu faço”, não existe isso, isso é totalmente errado (Professora Rosiete – 2014).
Neste ano de 2015, Rosiete aguarda aposentadoria do Estado e já se
encontra afastada de suas atividades, mas continua em exercício pelo município.
Isso lhe provocou viver um tempo de ansiedade e curiosidade, no sentido de
compreender como será sua rotina depois da aposentadoria.
Ao falar de si, a professora migrante transmitiu uma identidade
(re)construída a partir do seu olhar para a sua profissão docente, isso foi
perceptível em todos os nossos diálogos, pois fazia questão de apresentar uma
boa imagem tanto na vida pessoal quanto profissional. Ainda afirmou que essa
preocupação foi construída desde o momento da chegada no município, por
perceber que lhe era exigida um modelo de comportamento.
Desde, então, Rosiete evidenciou que sempre primou em manter seu
compromisso com a profissão e o zelo por sua imagem perante a sociedade, nem
que para isso precisasse renunciar relações de sociabilidade mais pública, por
acreditar que a vida de sala de aula deve ser a mesma fora dela.
O processo de (re)construção de identidade da comandante pode ser
compreendido a partir da concepção de Monteiro (2002, p. 90) ao enfatizar que
Essa identidade construída e reconstruída pela diferença, na cultura que habitamos, pelos significados por nós atribuídos no processo de representação, envolve práticas de significação, sistemas simbólicos que nos posicionam como sujeitos em diferentes contextos de práticas sociais.
Na concepção dessa professora migrante, ela precisava investir na sua
diferença, primeiro por ser professora, depois por adquirir e fazer-se respeitada
pelo outro. A diferença significava visibilizar seu posicionamento, tanto no espaço
escolar, quanto no contexto social.
221
As atitudes adotadas aparecem como estratégia utilizada para sentir-se
aceita e reconhecida no meio social, tanto que revelou ser uma pessoa de
destaque na sociedade ao perceber o carinho e a valorização dos moradores de
Melgaço, enquanto pessoa e profissional.
Monteiro (2002, p. 90) referenda ser “imprescindível ainda reconhecer que
a identidade precisa estar em íntima relação com a diferença, porque é o que nos
distingue do ‘outro’”, mas alerta que essa diferença pode enfocar dois ângulos,
um negativo, o da exclusão e, outro positivo, o da aceitação. No caso de Rosiete,
a diferença foi adquirida como um ato positivo tanto na perspectiva do olhar sobre
o outro como do olhar do outro sobre ela.
Segundo a comandante foi a profissão que transformou sua maneira de
ser e Jurema atribuiu essa transformação à formação acadêmica. Assim
socializou
A minha luta, toda minha experiência e atitude eu adquiri no Magistério. O Magistério me fez ser assim. Vou para Melgaço faço meu trabalho, levo esse espírito de revolucionária, de mudança, mas não tinha experiência que era um trabalho político, então eu estava galgando, e as pessoas diziam: “tu podes ser candidata, é um grande nome para ser candidata”. Depois de um tempo fui descobrindo, porque passei seis anos na secretaria como secretária, fui amadurecendo e foi despertando em mim um espírito político. Ali comecei a pensar e fui me preparando para ser candidata a vereadora, mas o meu sogro se desentendeu com meu padrinho e, nesse momento, eu optei pela família e reneguei um sonho, camuflei. Eu comecei a perceber e ver na minha frente uma desunião, uma briga. Eu ia brigar com muita gente, quem sabe até com meu marido e podíamos nos separar, isso não era bom para mim como família, como pessoa, como alguém da igreja, que vive uma religião católica, acho que depois eu ia me sentir frustrada, eu acho que eu não ia me senti bem. Tem muita gente que abandona a família para outros projetos, depois eu acho que se frustra, eu acho que não é feliz. Então eu me sinto uma pessoa feliz hoje (Professora Jurema – 2014).
Em nossos diálogos, a professora migrante rememorou com exatidão os
tempos do magistério. Um tempo de relações, de amizades, de aprendizagens, de
profissionalização, de utopias, de revolução e de envolvimento nas Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs), nas campanhas políticas, nos movimentos culturais e
na escola.
Jurema acumulou experiências quantitativas que foram se transformando
em mudanças qualitativas (CIAMPA, 1996). Por exemplo, libertou-se da timidez e
222
tornou-se uma mulher mais falante e dinâmica, num profundo exercício de
construção positiva na representação de si.
A despeito do envolvimento em práticas de teor mais político, a prudência
fez evitar conflitos. Com isso, recolheu-se e investiu em desejos coletivos em
busca de uma felicidade pessoal-familiar, ou quem sabe, procurou preservar e
realizar um desejo coletivo-familiar.
Nas pegadas do olhar sobre si, Fátima enfatizou ações desenvolvidas
com jovens da comunidade.
A gente fica triste quando vê que muitos jovens estão perdendo a sua vida, vamos dizer assim, por conta do tráfico de droga, de estupro, sei que a gente é apenas uma gota d’água no oceano, mas que pode fazer a diferença. Alguns alunos da crisma falam: - professora eu quero que a senhora seja a minha madrinha. Outro dia na minha sala, uma aluna falou: - professora, eu quero ser igual a senhora. Eu disse: - por quê? Eles pensam que a gente não tem problema, uma pessoa que não tem defeitos. Uma vez, alguém falou para mim: - eu confio muito na senhora, mas no dia que a senhora me decepcionar, eu não sei o que vou fazer. Eu disse: - pense que sou um ser humano e todo ser humano erra. Por que eu disse isso? Porque algumas vezes na minha vida eu já confiei tanto nas pessoas e me decepcionei. Não era aquilo que eu via, eu vi o outro lado da pessoa. Então, fui me conscientizando. Quando a pessoa errou, eu me decepcionei. Depois eu voltei, não, todo mundo erra, todo mundo um dia erra. Eu respondi para essa pessoa: - não me julgue, pense apenas que eu sou um ser humano. Eu consigo levar essa vida, faço tudo para não errar tanto. A maneira que eu acho que é certo de viver, tanto para mim, quanto para o outro. Então de uma certa maneira eu vejo que alguns jovens gostariam de ser como eu sou, talvez pelo que eu aparento ser, problemas todo mundo tem, isso me faz ser feliz, puxa! Saber que alguém falou: “professora eu vou fazer ciências por causa da senhora”. Eu digo, não sei se a pessoa gosta de mim ou da disciplina, mas alguma coisa tem de bom (Professora Fátima –2014).
Fátima relatou suas experiências em trabalhos desenvolvidos com jovens
tanto na escola quanto na igreja, através de projetos com diversas temáticas
como drogas, gravidez precoce, DSTs, além de outros voltados à religião católica.
Ela ainda acrescentou que suas ações são insuficientes para os grandes
problemas sociais existentes na comunidade, mas apresenta sua parcela de
colaboração.
Em outro ângulo, apesar de atender a uma pequena demanda dos jovens,
considerou sua ação significativa, principalmente, para aqueles que não
223
encontram na família orientação para a vida. De acordo com sua interpretação,
esse trabalho permite-a ser referência na vida de muitos jovens.
No que tange ao modo de ser, a comandante se denominou uma pessoa
reservada. Ela tenta viver com base em princípios que acredita serem corretos,
mas reconheceu que a vida é uma dinâmica e ninguém está isento de qualquer
transformação. Como focalizou Caeiro (2009, p. 64)
No final de contas, cada um de nós poderia ter sido qualquer outro. Cada um de nós é uma virtualidade que poderia ter-se actualizado em outro tempo, em outro lugar, em outra cultura. Analogamente, cada outro é uma virtualidade de mim, que eu mesmo não concretizei: mas é um eu em estado potencial, é um aspecto de minha manifestação plena. Desse modo, cada um de nós contém em si a humanidade inteira.
Saber que o desejo do outro é de a representar, para Fátima significou
ser aceita e admirada por sua postura de ser e viver, o que engrandece a alta
estima e motiva a dedicar-se diariamente às responsabilidades profissionais,
sociais e familiares, baseada em concepções que adotou como nortes para viver.
Assim, como as demais professoras migrantes, Dilma trouxe a
representação de si em uma experiência quando estava na frente da coordenação
do Pacto pela Educação, no município. Ela relatou essa experiência, revelando
surpresa ao deparar-se com as histórias da educação municipal.
Eu estou vivendo uma experiência de conhecer realmente o município através do Pacto pela Educação, ir nas escolas e ver as necessidades, conviver e conversar com as crianças, ver onde eles moram, ver como eles vivem, o sacrifício que eles fazem para chegar, quanto tempo eles passam para chegar numa sala de aula e percebo ainda, Ilca, que falta tanta coisa para ser feita naquele município, nooossa! Existia uma escola que quando eu cheguei as crianças estavam tomando água diretamente do rio, fiquei demais triste, como pode? Estamos em 2014 e como é que uma criança está tirando a água do rio para beber em uma escola? Outras crianças para fazerem suas necessidades tinham que ir no mato por dentro d’água, isso tudo eu coloquei no relatório. Quando eu retornei não encontrei mais aquelas crianças bebendo água do rio, porque, já tinha filtro, já encontrei as pessoas fazendo um local para as crianças fazerem suas necessidades, mas, eu sei que ainda existem escolas que não tem as mínimas condições para a criança ficar quatro horas em sala de aula. Cheguei a ver professores que mesmo com toda formação e orientação que está sendo dada, estão sem motivação nenhuma, a escola crua. Isso para gente que já está tanto tempo trabalhando pela educação, sempre pensando no melhor, uma
224
educação de qualidade, isso choca. Eu jamais pensava que, nessa época, isso ainda estava existindo no município, a gente sabe que o município é muito grande, mas eu acreditava que os nossos governantes já deveriam ter uma atenção muito maior e melhor com essas crianças, porque, Ilca, é o seguinte: como podemos querer uma educação de qualidade se nós não estamos dando uma qualidade de vida para nossos alunos? Então é isso que me choca, como é que uma criança sai de sua casa 5h00 para chegar na sua escola às 8h00 da manhã. Ali chega e nem água tem para beber. Então, eu penso que nossos governantes precisam tomar um rumo melhor, um compromisso melhor e o governo federal e estadual precisam puxar para si também a responsabilidade. Essa experiência está marcando realmente a minha vida de todos esses anos que estou vivendo em Melgaço (Professora Dilma – 2014).
Ao rememorar as visitas feitas no espaço ribeirinho melgacense, Dilma
fez aflorar posicionamento político e crítico intercalado às condições físicas para
oferecer educação no município. Sair de seu espaço de trabalho para conhecer o
outro lado da educação da terra hospedeira foi para ela uma experiência singular
dentre tantos anos de vivência em Melgaço. O deparar-se com a realidade “nua e
crua” mexeu com sua sensibilidade humana, bem como lhe ajudou a rever
princípios formados e refazer identidades construídas.
As incomodações a situações sociais e os conflitos internos que fizeram
as professoras migrantes sentirem-se incapaz de promover a mudança na
realidade local, especialmente no que concerne a problemas estruturais da
educação municipal, implicaram diretamente no repensar não apenas da história
do lugar, mas na própria dinâmica de fazer e refazer de si e das posições que
precisa adotar no presente.
Esses fatores foram pertinentes e marcantes na vida de Dilma, por
exemplo, por gerar nela um novo olhar a fatos tidos como superados na
atualidade. A postura vem acompanhada de uma nova ação, antes não refletida,
quando solicita à gestão municipal melhores condições estruturais à educação
ribeirinha.
Algumas narrativas das professoras migrantes possibilitaram embarcar no
contexto da identidade. Com isso, ficou perceptível que a identidade não é dada e
nem permanente, mas (re)construída num contexto de conflitos e incertezas.
Portanto, um processo metamorfósico que, segundo Ciampa (1998), se constrói
na e pela atividade.
225
4.4. (Re)construção de Identidades em novos espaços
As identidades profissionais são maneiras socialmente reconhecidas, de os indivíduos se identificarem uns aos outros no campo do trabalho e do emprego (DUBAR, 2009, p. 118). Eu sendo moradora e professora em Melgaço mudou muito a questão do conhecimento, a estruturação da minha vida, a relação social com as pessoas, o respeito que as pessoas tem por mim e eu por elas. A pessoa só é respeitada a partir do momento em que respeita o outro, se não respeita não é respeitada, então isso mudou. Eu vejo que muita gente tem consideração por mim, eu não tenho inimigo aqui. A minha condição econômica mudou muito, e também como ser humano. Aqui eu casei, tive uma filha, ela viveu aqui em Melgaço: mudou tanta coisa na minha vida e só mudou para melhor. A mulher que eu sou hoje, da que eu cheguei eu devo a Melgaço, seria hipocrisia da minha parte dizer que não devo, porque quantas vezes essa prefeitura me licenciou para fazer meus cursos, quantas vezes o Estado me licenciou para fazer cursos, que me possibilitaram conhecimento? Eu devo para o cidadão melgacense, mas também já retribui muitas coisas que o cidadão melgacense me deu, mas quero continuar retribuindo muito mais. Eu participo ativamente da política quando eu acho que devo participar, eu não me escondo atrás de ninguém, até isso mudou, a questão de ir para o enfrentamento, de ir para o palanque, de ir para a rua, de ir para uma reunião e falar, antes de vim para cá isso não acontecia, eu pensava até que eu era tímida Ilca. Então, isso mudou em Melgaço, foi construído aqui, não é maravilhoso (Professora Wilma – 2014).
Neste tópico do percurso, trago reflexões que fizemos com as
comandantes acerca da (re)construção de identidades a partir da chegada em
terra acolhedora, Melgaço e, principalmente, nos envolvimentos na profissão
docente.
As discussões que apresento trazem para o centro das reflexões, o
imbricamento das relações profissionais que vão constituindo a compósita e
movente tessitura de representação de si e (re)construção das identidades, como
prefiro me referir.
As teias dessas interações são interpretadas pelas próprias professoras
migrantes ao rememorarem suas experiências em comunidade, na negociação
com o poder político local e no exercício da profissão docente. Como asseverou
Dubar (2009) são maneiras socialmente de si conhecer e se relacionar com o
outro e com o contexto inserido.
226
Nessa perspectiva, dialogo com Lechner (2009) para seguir o percurso
desta escrita por compreender que as professoras migrantes também são
coautoras das interpretações de suas narrativas, como processo de estruturação
e (re)significação das experiências de vida que representam uma concepção de
si.
Dadas as condições para que elas se construam como autoras de si,
Wilma rememorou as mudanças em sua vida depois que decidiu partir para
exercer a profissão docente. O encontro com o lugar possibilitou a ela “ser
moradora, professora, esposa e mãe pela segunda vez”, assim como trouxe-lhe
um novo patamar de vida acadêmico e financeiro. A mudança mais marcante a
ser considerada foi na relação consigo e com o outro, contigua às concepções
políticas e de vida construídas, aperfeiçoadas e adotadas. Assim, confirmou:
No decorrer desse período que estou aqui em Melgaço, eu aprendi muito com a comunidade, aprendi vários valores que eu já tinha, mas eu aperfeiçoei. Esses valores até hoje é que me fazem cada vez mais ter o espírito para continuar essa luta por esta educação (Professora Wilma – 2014).
As aprendizagens adquiridas junto a comunidade fazem relacionar a
trajetória da professora migrante ao posicionamento de Dubar (2009) em torno da
construção da identidade profissional, que se faz associada ao envolvimento da
pessoa consigo e com os fatores externos. Isso foi perceptível na narrativa, um
envolvimento intenso a partir do contexto social e da referência cultural do lugar.
Portanto, a identidade, nesta percepção, assume caráter mutante na relação com
a formação pessoal e o trabalho. Ela nunca é um processo isolado, mas
confeccionado numa totalidade de experiências sociais.
Sigo o viés desta compreensão e da valorização da identidade pessoal e
profissional cuja significação se manifesta no momento de socialização de
experiências vividas. Com isso, é possível dizer que “a imagem que o professor
constrói de si mesmo e perante a sociedade faz parte do processo constitutivo de
sua identidade profissional. Esse processo está em constante transformação,
reconstruindo-se ao longo da vida, de acordo com suas experiências sociais e
individuais” (BURNIER et al., 2007, p. 347).
Pimenta (2002, p. 19), ao discutir a temática da identidade profissional do
professor, também afirmou que sua construção se configura numa rede de
227
relações e significações sociais que condensam defesa e revisão das visões de
mundo, valores, tradições, comportamentos e sentimentos. Tal identidade
elabora-se também “pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor,
confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de suas representações, de
seus saberes, de suas angustias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser
professor”.
Nessa rota de viagem, partilho as narrativas de Fátima ao direcionar olhar
a motivações para o trabalho e aos valores que ela carrega em sua história de
vida.
Hoje, eu digo que eu trabalho, Ilca, eu gosto de trabalhar e tenho dois filhos e a minha mãe que eu preciso ajudá-los até quando eu puder. Eu sei que a nossa profissão é desvalorizada, que a gente não ganha o que deveria ganhar, a gente trabalha pra caramba, trabalha aqui (escola), trabalha em casa, por exemplo, hoje é feriado, mas a gente tem prova para corrigir, tem prova para formular é tudo isso, mas é uma coisa que a gente faz porque gosta, a gente não está se corrompendo com isso, a gente consegue dormir tranquilo (risos), consegue colocar nossa cabeça no travesseiro com nossas dívidas, mas é nossa, a gente sabe que vai pagar, a gente não está roubando ninguém, a gente sabe que tem uma vida limpa, digamos assim (Professora Fátima – 2014).
A professora migrante mergulhou sua interpretação, especialmente, no
gosto pela profissão docente, apesar de criticar as políticas de valorização do
profissional, por considerar que o tempo do trabalho não se resume ao espaço
escolar nem é o tempo do relógio. Ele alcança outros tempos como o do estudo,
do planejamento e das diversas reuniões, traduzindo uma espécie de dupla
jornada na vida docente. A despeito dos esforços redobrados, Fátima afirma ser
uma profissional realizada por atuar numa área que valoriza e desenvolve os
princípios ético e moral do cidadão.
Outro significado dado à profissão atribuiu ao fato de ela garantir o
sustento dos filhos e da mãe, isso consiste em assimilar que o gostar de trabalhar
não se resume somente pelo prazer, mas também por necessidade de assegurar
um padrão social e econômico equivalente à sociedade em que está inserida,
assim como uma identidade profissional relevante ao seu status social.
Para estabelecer diálogo com Fátima, recorri à Abrahão (2006) ao
considerar o processo de (re)construção de identidade profissional.
228
A identidade profissional de professores é uma elaboração que perpassa a vida profissional em diferentes e sucessivas fases, desde a opção pela profissão, passando pela formação inicial e, de resto, por todo a trajetória profissional do professor, construindo-se com base nas experiências, nas opções, nas práticas, nas continuidades e descontinuidades, tanto no que diz respeito às representações, como no que se refere ao trabalho concreto (ABRAHÃO, 2006, p. 192).
A perspectiva da comandante ao falar da relação com o trabalho,
sintoniza-se com Abrahão por reafirmar que a identidade profissional envolve todo
o contexto de formação, experiência, (des)encontro, confronto, representação e
significação a ela atribuído. Nas teias desse entendimento, Jurema desvelou as
aprendizagens adquiridas no decorrer da vida profissional, com destaque para a
postura que devemos adotar na convivialidade com as pessoas que interagimos
em nosso cotidiano.
Ilca, eu já aprendi muito, o mundo dá muitas voltas, não adianta se digladiar com as pessoas, ficar com ódio e guardar rancor, porque o mundo faz muitas voltas. Hoje eu posso brigar contigo e amanhã posso precisar de ti. Então, adiantou eu estar brigando? Eu já aprendi muito com isso, tem que saber dialogar, tem que criticar e falar na cara da pessoa como eu estou te falando, falar tudo. Eu sou uma pessoa assim, eu falo tudo o que tenho que falar, se eu estiver com raiva, mas depois passa a minha raiva (Professora Jurema – 2014).
A narrativa de Jurema veio como um desabafo a situações vividas no
passado. Segundo outros depoimentos, ela sofreu “perseguições” por políticos do
município33, chegando até a ser demitida do cargo que exercia, mas também
focou a narrativa como uma defesa a gestão municipal 2013 a 2016.
Jurema foi enfática na expressão e no tom de voz ao se referir as
pessoas que criticavam a gestão para terceiros e se colocou como exemplo a ser
seguido por tais pessoas, assim afirmou: “tem que criticar e falar na cara da
pessoa como eu estou te falando, falar tudo”.
33 Depois que a professora fez a leitura de nossos diálogos, solicitou para não ser publicado os conflitos que vivenciou com um gestor municipal de Melgaço. Portanto, seguindo os princípios ético da pesquisa com a História de Vida, acatei o pedido da entrevistada. Certamente não se pode esquecer que estamos diante de um processo de “composição de memórias”, conforme brilhantemente discute Alistair Thomson (1997, p. 56). Sobre o conceito assinala o autor: “compomos nossas reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente”. Construímos, nessa trama da memória, “um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes (THOMSON, 1997, p. 57).
229
A reflexão permite dialogar com Chizzotti (2008) ao destacar o trabalho de
pesquisa com a memória.
A memória é, [...] uma reconstrução do passado, calcada no fluxo de emoções e vivências, é desse modo, cambiante de acordo com o momento atual, sofrendo transformações e flutuações constantes. Seu uso em pesquisa não significa a descrição do acontecimento, mas a sua subjetividade do relato pode revelar muito dos anseios e lutas não visíveis (CHIZZOTTI, 2008, p.106- 107).
A comandante experienciou os dois lados da gestão pública: exerceu
tanto cargos de confiança como chefa do setor de educação, secretaria de
educação, coordenadora de projetos e, na gestão em curso, esposa do vice-
prefeito, exerce cargo de técnica em educação da rede municipal e professora na
rede estadual.
Neste sentido, a reconstituição do passado esteve atravessada pelos
sentidos que atribuiu no presente ao vivido. A memória, nesses quadros, desvelou
aquilo que Jurema considerou importante naquele contexto. O discurso veio
carregado dos significados que ela desejou revelar. Na condição de pesquisadora
e seguindo orientações de Chizzotti (2008) não poderia apenas descrever os
acontecimentos narrados, mas tentei compreender as subjetividades das
memórias não desveladas.
De acordo com Burnier et al (2007) é neste contexto que “o indivíduo
constrói sua identidade profissional, criando representações sobre si mesmo e
suas funções, interligadas à sua história de vida, formação e profissionalização
(BURNIER et al, 2007, p. 348).
Durante os percursos dessa viagem, ficou conhecido os envolvimentos
das professoras migrantes em variados cargos na área educacional, social e
religiosa. Jurema e Wilma foram secretárias municipais de educação; Dilma,
Wilma e Rosiete, diretoras da única escola estadual existente na cidade; Jurema,
Rosiete e Fátima, coordenadoras pedagógicas da secretaria municipal de
educação; Dilma e Jurema assumiram a presidência de Conselhos Municipais,
Dilma Coordenadora da única pré-escola da cidade. Além disso, elas foram
lideranças em Sindicatos de Educação e fundadoras do Conselho Municipal da
Mulher, membras do Conselho Municipal de Educação, coordenadoras de
230
Conselhos Escolares. Enfim, as professoras migrantes compartilharam suas
energias vitais em diferentes campos sociais em Melgaço.
Imagem: nº 25: Homenagem às fundadoras do Conselho Municipal da Mulher.
Fonte: Arquivo do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher – 2011.
No espaço religioso, Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima adentraram
e participaram nas pastorais e movimentos da Igreja Católica. Todas são católicas
e, a partir do encontro com a cidade de Melgaço, tornaram-se devotas de São
Miguel Arcanjo, o padroeiro do município. Wilma já foi presidente da festividade e
as outras já assumiram cargos importantes dentro da igreja, como: pastoral do
dízimo, carcerária, da criança, familiar, da catequese, da juventude, da liturgia e
ainda como membros da coordenação da festividade.
No processo interpretativo da história de vida que a envolve, focalizando a
dinâmica cultural e religiosa da cidade, Rosiete recordou a década de 1980,
quando começou a participar dos festejos de São Miguel Arcanjo.
Esse período era tão importante e ao, mesmo tempo, prazeroso, divertido e nós não perdíamos uma noitada da festividade, porque era o momento que íamos nos divertir, íamos dançar e conhecer outras pessoas. Quando chegávamos: “Ah! São as professoras, olha a mesa das professoras, são as doutoras”. Sabe o que é você chegar no salão e ter aquele tchan, das pessoas se voltarem para você e de estar chamando a atenção, era assim que éramos olhadas e cada noite era uma roupa diferente. Corria o bingo, corria música para se dançar, não era proibido a dança, a cerveja, e isso era prazeroso. Conversámos com os amigos, e também a
231
vontade de querer ganhar alguma coisa no bingo, era muito bom e muito diferente mesmo. No meu olhar, no passado era muito melhor, tinha mais encanto, e era demais para nós (Professora Rosiete – 2002).
Para as professoras migrantes, viver momentos de sociabilidades ao
chegarem a Melgaço foi fundamental por sentirem as formas de entretenimento e
lazer do lugar, permitido, e estabelecer laços de afetividade com o outro, o lugar e
entre si. Conhecer novos espaços, pessoas, maneiras de se relacionarem,
fazerem e viverem a cultura local, foi, para todas elas, tempos de troca de
saberes, de olhares, de amizades e de reinterpretação da vida.
Portanto, conhecer e dar-se a conhecer em suas múltiplas dimensões da
vida foi alicerce para elas construírem a tessitura do fio condutor que possibilitou
a superação das tensões e estranhamentos, como a contextualização da
profissão docente naquele lugar.
Monteiro (2002) considerou que o desenvolvimento da identidade e da
subjetividade se confirmam dentro do compromisso político e ético do trabalho,
mas também como um movimento dinâmico e integrado em diversos e múltiplos
espaços de sociabilidades, os quais contribuem para inúmeras aprendizagens,
sentimentos e valores da vida.
Como as demais comandantes, Fátima também relatou suas experiências
na igreja católica:
Eu sou católica, minha mãe é católica, mas eu não ia para a igreja, não tinha os trabalhos que tenho na igreja. Hoje, eu acabei me dedicando também a isso, tanto que, quando o pessoal (equipe técnica) faz o planejamento com aula dia de sábado eu digo: “gente eu não tenho uma vida só na escola, eu tenho uma vida na igreja também”. Às vezes, estou envolvida em muitas atividades que acabo não dando conta de fazer tudo o que estou envolvida, mas como falta gente, eu acabo fazendo, então eu me envolvi muito na igreja, nas pastorais, a maioria das pessoas me conhecem da igreja. Eu já diminuí um pouco de atividades da igreja, já trabalhei na pastoral da criança, na pastoral da família, que está sempre se desfazendo. Às vezes quando é para distribuir cestas básicas as pessoas nos procuram, é gratificante, saber que as pessoas te reconhecem pelo teu trabalho, e, na própria escola, é um trabalho que nos ajuda, não que seja de garantir poderes não é isso, mas é valorizado pelos próprios alunos. É claro que não agradamos todo mundo, a gregos e troianos, mas é muito gratificante isso, tu falar as coisas na hora que tu tens que falar, como falar, mas tu também consegues a amizade daquelas pessoas e dos próprios alunos (Professora Fátima – 2014).
232
Estar inserida nas ações da igreja, ajudar os seres humanos seja na
questão social ou espiritual é uma realização pessoal na ótica da professora
migrante, pois junto do desejo de contribuir com os projetos da igreja, vem o
reconhecimento, o carinho e a amizade da comunidade pelo trabalho
desenvolvido. Na interpretação dela, esse gesto de valorização pessoal é
significativo para a motivação da autoestima e ressignificação de seu papel
religioso, social e profissional e, portanto, para a transformação de suas
identidades.
Dentro deste contexto de relações e sociabilidades, apresento uma
narrativa de Wilma, que exemplificou uma de suas participações nos movimentos
sociais da comunidade.
Eu sempre fui ativa na igreja, no sindicato, na associação de pais, no conselho da mulher. Eu e a Jurema nós fomos as primeiras a levantar o conselho da mulher, às vezes, eu tomo determinadas posições e só depois que vou pensar no que falei, por exemplo, na primeira semana da mulher, eu precisava muito fazer um discurso, porque aqui os maridos batiam muito nas mulheres, de vez em quando a gente encontrava uma mulher de olho roxo e ainda encontra, não parou, mas as mulheres eram muito maltratadas. A Jurema dizia: “vamos Wilma, vamos levantar e tu vais falar alguma coisa”, eu dizia: “Jurema, pelo amor de Deus, me tira dessa”, mas eu disse “eu vou”, fomos discursar e tudo e eu comecei: “denuncie seu marido se ele lhe bater, denuncie, você não é filha dele, denuncie, se você estiver na cozinha (risos), trabalhando com panelas, dê com panela nele, porque você não é filha dele”. Menina, depois que eu fui ver o discurso que eu tinha feito, mas eu estava empolgada (Professora Wilma – 2014).
A narrativa traduz olhares das experiências vividas em diferentes
contextos da sociedade melgacense. Muitos acontecimentos, representativos no
imaginário de vida dessa professora migrante, contribuíram para a mudança de
concepções e atitudes, seja na vida pessoal, social ou profissional.
Reflexão acerca da (re)construção das identidades na interação dos
diferentes contextos, desenvolvida por Monteiro (2002, p. 84), é elucidativa:
Entendo que a interação social de ser humano, além de desenvolver-se como um processo de construção individual e coletiva, visa favorecer as disposições políticas e éticas, pautando-se por interesses, valores e poderes a serem desafiados ou não, quando se direcionam a finalidades como nos encorajar a criar e recriar o contexto, tornando-nos ao mesmo tempo produto e produtor da sociedade, com base em princípios pelos quais o
233
ser humano passa a ser considerado o foco principal de transformação.
Com base na compreensão da pesquisadora e nas interpretações das
comandantes, analiso a (re)construção das identidades profissionais para além do
contexto da sala de aula, pois as interações sociais tecidas nos ambientes não
escolares, sejam em situações individuais ou coletivas, foram relevantes para
tomadas de decisões e ações em diferentes escalas da existência.
Rodrigues (2013, p. 207), em pesquisa de doutoramento sobre
professoras aposentadas em comunidades rurais do Pará, constatou que
um processo não apenas de adesão ao trabalho, proposto pela escola na qual ela também atuava como docente, mas de adesão a partir da relação que estabelecia entre vida escolar e vida comunitária. E nesse ponto, a aposentada também tem autoconsciência do seu naqueles territórios da cultura.
As afirmações das identidades docentes na experiência das professoras
migrantes são resultados de embates e negociações pela afirmação pessoal
como mulheres-cidadãs e professoras da educação pública. Para melhor
compreender essas vivências, destaco as chegadas cheias de muitas surpresas e
desafios na trajetória migrantes construída em Melgaço.
Existia o respeito e o carinho pelas professoras migrantes que
desembarcaram com bagagens, medos e sonhos, porém no encontro lhes eram
estabelecidos padrões a serem seguidos, como já foi enfocado no segundo
percurso.
Sobre esse entendimento, Wilma sorriu e disse: “não sei se posso falar,
mas vou falar”.
Ele dizia: “ah! As professoras não têm moral para os alunos”. A população dizia o seguinte: o governador arranjou um bocado de prostituta e jogou dentro da cidade de Melgaço. Falava isso, porque a gente namorava, a gente dançava, é isso não era comportamento de professora, mas depois eles foram se acostumando e começaram a nos respeitar. Hoje a sociedade tem uma visão diferente da gente, no fundo não era isso, porque naquela época o professor era aquela pessoa moralista que estava acima de tudo, então não poderia fazer nada dentro da comunidade a não ser dar sua aula (Professora Wilma – 2014).
Entre o modo como pensavam e viviam as suas identidades, fruto de uma
reflexão construída sobre si mesma e a concepção elaborada pela comunidade,
234
conflitos de ideias e saberes foram experimentados pelas professoras migrantes
nos primeiros anos de suas estadas em Melgaço, como anunciou Wilma. Posso
dizer que aconteceu um choque de realidades entre elas e sociedade local,
provocando situações constrangedoras e conflituosas.
Relembrar no presente a experiência passada permite à comandante
avaliações diferentes sobre a identidade dos moradores e a suas identidades.
Não se pode olvidar que a postura adotada pela comunidade está em sintonia
com a própria concepção do ser professor nos idos da década de 1980, num
momento em que o país e a política educacional, por sua vez, estavam tentando
se libertar do longo regime civil-militar, instalado desde 1964. Nesse sentido, há
uma profunda conexão entre as representações identitárias construídas pelo
sistema educacional e pela comunidade local sobre o ser professor.
É preciso não perder de vista, todavia, que Dilma, Wilma, Rosiete, Jurema
e Fátima mesmo sendo formadas e orientadas a exercerem uma determinada
identidade docente com base nas normas educacionais vigentes, trilharam
experiências distintas. Assim, de acordo com sua cosmovisão pessoal, reforçaram
ou flexibilizaram tais padrões como professoras. Não por acaso, ainda hoje é
comum se ouvir na cidade atitudes diferentes por elas adotadas no modo de
ensinar.
Burnier et al. (2007) compreende os princípios e posturas docentes como
elementos da subjetividade, traçados pelas experiências vividas “ao longo de
suas vidas, pelos discursos, pelas instituições e grupos aos quais tiveram acesso,
participantes também da construção dos significados que esses docentes irão
conferir às suas experiências em geral e à docência em particular” (BURNIER et
al, 2007, p. 348).
Sarraf-Pacheco (2006) ao dialogar com narrativas de algumas dessas
professoras melgacenses, procurou contextualizar significados dessa identidade
profissional em meados dos anos 1980 a partir do olhar dos moradores locais.
Quem chegava à/na condição de professora, no início da década de 1980, em Melgaço, era ser visto com outros olhos pela comunidade. Esperava-se dessas profissionais não apenas o desenvolvimento de um bom trabalho com os alunos, mas também que se tornassem exemplo de um comportamento social aos padrões do povoado. Transgredir tais padrões era motivo de escândalo (SARRAF-PACHECO, 2006, p. 144).
235
A interação no novo espaço, a convivência com novos saberes,
experiências pessoal e profissional, contribuíram para as professoras migrantes
ampliarem suas visões de mundo, de sociedade e conhecerem os seus próprios
limites e desafios em terra não-familiar. Diante das narrativas socializadas, o
processo de mudanças em suas vidas, do mesmo modo como as práticas
cotidianas do lugar foram sendo ressignificadas de acordo com as negociações
viáveis para a boa convivência.
Nesta representação de relações entre o migrante e o lugar de chegada,
Tanus (2002) enfatizou que “o migrante, desenraizado, replanta-se, participando
de uma memória convividas com contemporâneos na experiência” (TANUS, 2002,
p. 238).
A possibilidade de construção das relações entre os migrantes e os
diferentes amplia-se se vier acompanhada de interesses e de abertura pelas
partes envolvidas. Nessa rota relacional, Lechner (2009, p. 95-96) argumentou:
Quando acontece, transforma os sujeitos, tornando-os mais conscientes do seu potencial, do seu poder, do seu papel na colectividade. Nos contextos de diversidade cultural, como são os de migração, este tipo de encontro mais autêntico constrói pontes em falta e cria permeabilidades onde normalmente domina o conflito e a discriminação.
Nas narrativas das professoras migrantes, percebi a não aceitabilidade da
comunidade local frente às suas posturas pessoais em ambientes não escolares.
Nas memórias reconstruídas via narrativas escritas e orais, visibilizei que muitos
momentos de diversões e sociabilidades vividas gestaram situações contraditórias
na relação delas com a comunidade. Se os moradores as respeitavam como
profissional, por outro lado as criticavam enquanto pessoa.
Dentro dessa estrutura interacional novas concepções foram assimiladas
ou construídas dentro da dinâmica das práticas docente. Simultaneamente, a
identidade profissional foi sendo urdida pelo ato da ação-reflexão em permeáveis
teias relacionais, para retornar a Lechner.
Faria e Souza (2011, p. 36) em comunicação com Dubar (1997) também
retomam a questão dos contatos como meios estratégicos de (re)construção de
identidade e aqui o foco central é, a profissão docente em contexto marajoara. Na
visão desses autores, a concepção da identidade está no processo de
236
socialização e no cruzamento relacional, o que permite dizer que “a identidade
para si não se separa da identidade para o outro”.
As professoras migrantes ao mesmo tempo em que reavaliaram
concepções da cultura local construídas sobre si, forçaram os melgacenses a
modificarem-se a partir da contribuição que foram deixando à história da
educação. Nessa relacionalidade, uma convivência intercultural (FLEURI, 2003a;
2003b; GARCÍA CANCLINI, 2009; CANDAU, 2012) foi estabelecida. Dois
universos culturais se encontraram, inicialmente se estranharam e, em seguida,
pelas linhas da negociação, modificaram-se.
Na ótica de Fleuri (2003b, p. 16-17), nos mais diversos movimentos
sociais e educacionais o esforço por construir convivências democráticas emerge
como tentativa para se elaborar “referenciais epistemológicos pertinentes”, com o
objetivo de “superar tanto a atitude de medo quanto a de indiferente tolerância
ante o ‘outro’ [...]. Trata-se, na realidade, de um novo ponto de vista baseado no
respeito à diferença, que se concretiza no reconhecimento da paridade de
direitos”. Para García Canclini (2009, p. 17), a experiência intercultural reconstitui
encontros entre diferentes em “relações de negociação, conflito e empréstimo
recíprocos”. Já em Candau (2012, p. 245), “a interculturalidade fortalece a
construção de identidades dinâmicas, abertas e plurais, assim como questiona
uma visão essencializada de sua constituição”.
Demartini (2010, p. 50) repensa o deslocamento do imigrante como
revisão de suas relações.
Acreditamos que refletir sobre como os sujeitos imigrantes representam suas experiências de deslocamento e como são visualizados pelas sociedades nas quais se inserem permite que possamos pensar nas complexas relações que se estabelecem entre os mesmos, implicando ao mesmo tempo em acolhimento e rejeição, conflitos e discriminações.
Como analisou Sarraf-Pacheco (2006), as contradições experimentadas
no dia-a-dia produziram não apenas situações de angústia, tristeza, mas também
de amadurecimento e organização para delimitar e construir territórios e direitos
entre si e frente aos outros.
As “experiências sociais e individuais” que as professoras migrantes
viveram no município revelam situações delicadas e conflituosas, mas também
237
relações de fortes teias de amizade e respeito com os moradores da cidade.
Constituíram-se como personagens de sua própria história.
Nesse sentido, a (re)construção da identidade profissional das
comandantes foi acontecendo em movimento dinâmico e complexo. A experiência
vivencial em espaço e tempo determinados as despertou para a necessidade de
aprender a lidar com conflitos e diferenças entre si, com o outro e com o lugar.
Dilma falou um pouco dessa experiência relacional, dentro da
comunidade escolar, como resultado positivo conquistado ao longo da profissão
docente.
Eu acredito que foi uma relação muito boa, até hoje eu sinto, porque eu saí do Estado, estou aposentada, mas sempre encontro alunos que dizem: “professora quando a senhora volta para dar aula para nós? Por que a senhora me abandonou?”. Eles não entendem que tem um período que a gente tem que sair mesmo. Quando nós estávamos em uma reunião na escola, dia de apresentação dos professores para os pais, a direção disse: “olha, nós vamos chamando e vocês vão se apresentando”, estávamos todos os professores, ela disse: “professora Maria Dilma, vai trabalhar com as turmas dos pequenininhos do 5º e 6º ano”, eu percebi no semblante das pessoas aquela alegria. Isso nos conforta, porque isso a gente construiu, construímos uma história, uma amizade muito grande com alunos, com os próprios professores, com a direção. A gente, graças à Deus, sempre procurou trabalhar com dedicação, mas claro, que no decorrer do tempo a gente tem, Ilca, as nossas desavenças, cada um pensa diferente do outro, uns não estão acostumados a receber ordem, então, isso também dói, mas a gente vai levando. Eu tenho certeza que eu construí um laço muito grande, seja com aluno, seja com pai de aluno, seja com colegas professores. Então, eu acredito que esse laço foi muito bom, bom demais, não tem Ilca esse negócio na escola de dizer, eu não falo com fulano ou não me dou bem (Professora Dilma – 2014).
A interpretação feita pela professora migrante demonstrou a mudança de
posicionamento da comunidade melgacense em relação as posturas de seu grupo
profissional, fato esse, segundo as narrativas, garantido a partir da representação
do trabalho por elas desenvolvido. Tal entendimento vem reafirmar que a
identidade profissional não acontece fora de contexto. Essa percepção,
entretanto, elucidou-se a partir do meu envolvimento com as histórias de vida das
professoras migrantes. Ao participar do diálogo, ouvir suas histórias, transcrevê-
las, (re)lê-las e reinterpretá-las, pude acompanhar mais de perto sentidos que
elas atribuíam às formações trocadas entre elas e o lugar.
238
Nesse sentido, Souza e Soares (2008b, p. 193) assinalam que
Por meio de histórias de vida, é possível redescobrir caminhos percorridos, cenários e fatos vivenciados por uma determinada pessoa, em atuação, quer pessoal, quer profissional. As histórias de vida são sempre uma construção da qual participa o investigador, não sendo possível resgatar a memória e reelaborar as identidades individuais e de grupos em um contexto social específico.
Ao navegar pelas escritas da História de Vida, apreendo que os
acontecimentos compartilhados são recriados, avaliados, relidos à luz de olhares
e expectativas do presente. Por isso, estamos diante da “experiência da releitura”
nas linhas do entendimento de Bosi (1999, p. 59).
A experiência da releitura é apenas um exemplo, entre muitos, da dificuldade, senão da impossibilidade, de reviver o passado tal e qual; impossibilidade que todo sujeito que lembra tem em comum com o historiador. Para este também se coloca a meta ideal de refazer, no discurso presente, acontecimentos pretéritos, o que, a rigor, exigiria se tirassem dos túmulos todos os que agiram ou testemunharam os fatos a serem evocados. Posto o limite fatal que o tempo impõe ao historiador, não lhe resta senão reconstruir, no que lhe for possível, a fisionomia dos acontecimentos. Nesse esforço exercer um papel condicionante todo o conjunto de noções presentes que, involuntariamente, nos obriga a avaliar (logo, a alterar) o conteúdo das memórias.
É possível dizer que todas as professoras migrantes reconstruíram pela
voz do presente cenas vividas no passado. A respeito da formação de sua
identidade docente, Fátima, numa espécie de memória-avaliação, logo recriação,
socializou desejos e desafios para adentrar no espaço da educação.
Passamos na rua e somos reconhecidas como professoras. A gente tem aquele respeito por ser professora. Então a situação é essa, eu me formei para isso, estudei para ser professora, fiz o curso de Magistério [...]. A questão de como eu vim para Melgaço, foi por necessidade também, porque eu penso assim, se eu não estivesse engravidado, iria ficar tentando trabalho em Belém, mesmo tendo que ficar naquela casa que eu estava daquela família, alguma coisa ia ter que acontecer na minha vida (Professora Fátima – 2014).
Identificar-se como professora e assumir essa identidade profissional é
uma atitude bastante presente na narrativa de Fátima. Mencionou que sempre
239
sonhou em exercer o ofício e batalhou muito para sua concretização, apesar de
não ser realizado no local onde desejava.
Trabalhar, ser reconhecida e respeitada pelos alunos e comunidade,
assumiram valor simbólico importantíssimo para ela, pois representou superação
dos desafios que viveu, antes de se estruturar profissionalmente em Melgaço. A
despeito das dificuldades, a construção da identidade profissional emerge como
um mérito partilhado com o grupo e com o meio social de convivência.
Nesse percurso de estudo sobre identidade, Penin (2008) assegura que a
experiência de uma profissão compartilhada no cotidiano com pares e outras
pessoas interfere de maneira vigorosa no desenvolvimento da própria identidade.
Correlacionado a essa compreensão, está apontamentos de Dubar (2009) quando
enfatiza que “as identidades profissionais são maneiras socialmente
reconhecidas, de os indivíduos se identificarem uns aos outros no campo do
trabalho e do emprego” (DUBAR, 2009, p.117-118).
Fátima ao migrar para Melgaço e encontrar-se com a profissão de seus
sonhos deu importante salto em sua vida: muitas aprendizagens construídas e
melhorias nos modos de ser e viver foram alcançadas. Tais conquistas permitem
dizer que ela construiu sua identidade profissional em interação, superação de
conflitos e negociações necessárias ao bom relacionamento com suas
alteridades.
Nos enunciados de Dubar (2009), a identidade é concebida no processo
de socialização do eu com o outro, no trabalho ou no espaço social. O olhar
avaliativo do outro possibilita reflexão de si e da ação que está sendo
desenvolvida. A identidade de si e do outro interconectam-se pelo olhar e sentir
em relações estabelecidas.
A respeito desse entendimento, Rosiete relembrou o tempo de sua
chegada e os conflitos que viveu em Melgaço ao dividir o mesmo espaço de
moradia com outros profissionais que lá residiam.
Tinha algo que eu senti quando eu cheguei para cá, eu não sabia que as pessoas se incomodavam tanto com a vida dos próprios professores, eu não sabia que nesta comunidade não se podia ter a amizade de um rapaz, se você namorasse, paquerasse ou mesmo que conversasse já estaria namorando e fazendo outras coisas. Aqui chorei muitas vezes, fui excluída por chegar depois, fui chamada a atenção e não podia atar minha rede onde eu
240
gostaria, porque tinha seus donos, chorei bastante por ser discriminada. Entre muitas coisas, eu nunca havia sido chamada, por exemplo, de galinha, de puta, eu senti demais com isso, eu nunca tinha escutado essas palavras na minha vida, com sinceridade, nunca havia passado por isso e, de repente, eu levei um choque com tudo isso. Aqui dentro dessa casa, eu descobri que tinha que lutar pelos meus direitos, Então, comecei a aumentar o meu tom de voz, a dizer que eu também fazia parte dessa casa e tinha um lugar aqui, e comecei a mim impor. Eu sempre costumo dizer que em Melgaço, foi que eu vim descobrir o sentido maior da vida, como por exemplo, a questão social, política, de viver em grupo, de viver numa comunidade, de respeitar o direito dos outros, dos outros respeitarem os meus direitos. Aqui vim saber lutar. Compreendi que não podia só ouvir das pessoas e chorar, as pessoas vinham me diziam as coisas que eu nem praticava, eu ficava pasma diante daquilo até achando que eu fazia, e chorava muito por isso, sofria muito. Então, fui mostrando para as companheiras que a vida não era bem assim, que elas também teriam que me respeitar, que eu tinha desejos, tinha vontades, que não era só as vontades delas que prevaleciam. Um dia eu fui atar a minha rede na sala e uma colega disse para mim: “pode tirar essa sua rede daqui, que aqui não é lugar de atar rede”. Mas, ela atava a dela lá. “Se você não tirar eu vou pegar sua rede e vou jogar na rua”. Então eu enfrentei pela primeira vez e disse: “Jogue. Tire a minha rede e jogue, se você tem o direito de atar sua rede aqui, se a sua rede não está atada, eu posso atar a minha também, não é pelo fato de você viver mais tempo aqui, que é a dona da casa, que é a dona da residência, nós vivemos em grupo aqui, nós vivemos em comunidade” (Professora Rosiete – 2002).
Depois das expectativas iniciais em decidir partir para Melgaço e viver a
experiência migratória na condição de docente, Rose enfrentou e precisou
superar a dificuldade de adaptação na casa dos professores. O espaço de
convivialidade se fez entre sociabilidades, hierarquias e tensões. Para superar os
problemas cotidianos na vivência com seus pares, a nova moradora precisou
mudar de postura e problematizar o poder de mando das colegas que habitavam
a mais tempo a residência dos professores. No aprofundamento da narrativa,
socializou:
Mas eu fui percebendo como era a vida, fui descobrindo, fui começando a falar, fui me defendendo e fui mostrando que eu também não podia viver diante do que a comunidade queria, eu era jovem, solteira, por exemplo, namorar, paquerar, porque que eu não podia fazer isso? Podia sim, então eu fiz isso. Eu tinha algo de bom que atraia muito os rapazes, tinha uma certa atração, não estou sendo convencida, mas é uma verdade, eu paquerei muito ao chegar em Melgaço, não muito com os rapazes de Melgaço, mas com outros rapazes de outros municípios, paquerei
241
até com gringo, não fui para a Europa porque eu não quis, mas foram momentos fascinantes. Então, as coisas mudaram, a relação de amizade dentro da casa foi mudando e nós passamos a ser mais unidas, saíamos juntas para a festa, nos divertíamos, dançávamos, conversávamos, riamos, se tornou uma vida maravilhosa. Conflitos existiam? Existiam sim os conflitos. Existiam desentendimentos? Existiam. Isso acontece nos grupos, mas nós sabíamos como melhorar essa relação, isso foi o que nós fomos aprendendo juntas (Professora Rosiete – 2002).
As professoras migrantes, na relação com a dinâmica cultural e social do
lugar, precisaram ressignificar ou adotar duas atitudes: autonomia e determinação
nas suas ações, pois cada situação presenciada exigia delas resolução ou nova
postura frente à convivência coletiva. As soluções encontradas revelaram-se no
diálogo, tolerância, respeito e carinho sem eliminação total dos conflitos
iminentes, mas sempre adotando posições que reestabelecessem a harmonia no
grupo. Obviamente, as afinidades eram distintas, não por acaso, a mais antiga
amizade construída na casa entre Wilma e Rosiete parece ser de conhecimento
público. Nesse enlace, é válido lembrar que a identidade, de acordo com
Thomson (1997), é tecida por uma polifonia de relações e representações
elaboradas por distintos sujeitos. O eu em processo de construção identitária se
faz na convivência com o outro e nos discursos que ele e o outro elaboram de si.
Dubar (1997) assevera que construções de identidades profissionais na
contemporaneidade estão antenadas às correlações entre o processo relacional
do espaço profissional e a trajetória biográfica dos profissionais, pois esse
movimento engloba em um só tempo: experiências e intervenções individuais e
coletivas, internas e externas, concretas e simbólicas, mediadas pelo tempo e
pelo lugar onde os sujeitos as constroem.
Entre os exemplos de momentos de lutas coletivas das professoras
migrantes, trago três narrações de Wilma que evidenciam os embates políticos
com alguns dos governos municipais para garantir condições de trabalho,
qualidade no ensino e permanência na profissão ou função exercida.
As duas primeiras narrativas, situaram o modelo de gestão do município
de Melgaço, no final da década de 1980 e meados da década de 1990. A intenção
é mostrar os envolvimentos das comanantes nas lutas políticas contra as posturas
e atitudes de governos municipais, como o descaso com a política educacional. A
primeira referiu-se a gestão de 1989 a 1992.
242
No governo do Sr. Taveira, nesse período, no município à luz ainda era muito deficiente, e nós estávamos a dois meses que um dia tinha aula e outro não tinha. Os professores organizaram uma grande passeata dentro desse município, que obrigou o prefeito a comprar um motor exclusivo para a escola. Mas depois veio uma repressão muito grande em cima dos professores e nós pagamos um preço muito alto, mas continuamos firmes aqui, então só a partir do segundo ano de governo que ele passou a nos respeitar, não deixou de nos perseguir, ele não esquecia, porque foram todos os alunos e uma boa parcela dos pais nós conseguimos movimentar (Professora Wilma – 2014).
Visualizo, nessa narrativa, a ousadia e a coragem das professoras
migrantes em organizar e mobilizar a comunidade escolar para reivindicar
melhores condições para a educação básica da cidade de Melgaço que
enfrentava o descaso das autoridades estaduais e municipais com o trabalho
docente e a formação discente. A realização da passeata era a última estratégia
que o grupo de professores possuía para publicizar à sociedade local os
problemas enfrentados pela política educacional melgacense, demonstrar às
autoridades municipais que conheciam seus direitos, possuíam fortes armas para
alcançá-los e reafirmar seu compromisso e responsabilidade profissional com o
processo de ensino-aprendizagem a mais de uma década.
A formação política fez perceber que o poder político local usaria suas
armas para sufocar a reação popular por elas comandadas. A experiência
comungada faz lembrar argumento de Hall (2003a) sobre o espaço cultural das
vivências como lugar conflituoso. Assim, é possível dizer que a política
educacional se constrói
[...] nas linhas complexas da resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que transformam o campo da cultura (educacional) em uma espécie de campo de batalhar permanentes, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas (HALL, 2003a, p. 255).
Se a gestão pública utilizou os aparatos do poder para afetar profissional
e pessoalmente as professoras migrantes, forçando algumas delas a deixarem
Melgaço, a experiência bem-sucedida com o apoio maciço da comunidade local
criou uma representação positiva do quanto o movimento educacional
encabeçado por elas era politicamente forte em suas reivindicações, o que exigiu
das autoridades maior zelo e responsabilidade com a educação municipal.
243
Os enfrentamentos políticos, as vitórias provisórias, as perseguições e o
reconhecimento do corpo discente e seus genitores tiveram impacto direito nas
redefinições identitárias das professoras migrantes no correr da década de 1990.
Tanus (2002) considera que os migrantes criam suas estratégias pautadas em
referenciais passados para garantir no presente aceitação e permanência no
espaço que lhe é estranho e diferente. Desta forma, planejar para o futuro
credibilidade e estabilidade profissional, se esta foi ou não a intenção das
professoras migrantes, o certo é que (re)criaram para si e para o outro uma
concepção de identidade responsável e comprometida com o ser professor.
Nesse contexto, Burnier et al (2007, p. 34) fundamenta que
a imagem que o professor constrói de si mesmo e perante a sociedade faz parte do processo constitutivo de sua identidade profissional. Esse processo está em constante transformação, reconstruindo-se ao longo da vida, de acordo com suas experiências sociais e individuais.
No percurso dos movimentos de lutas, outro conflito relembrado foi na
gestão de 1993 a 1996. A comandante rememorou os fatos vividos com o olhar
melancólico, mas bastante firme na voz. Sua atitude, ao narrar suas memórias,
lembra Bosi (2003, p. 52) que diz “o papel da consciência é ligar como fio da
memória as apreensões instantâneas do real. A memória contrai numa intuição
única passado-presente em momentos da duração”. Assim, com o olhar do
presente, ela refletiu o passado recomposto.
O governo do Oni tirou tudo, só o que ele não conseguiu tirar foi nossa dignidade. Nós lutamos muito contra ele, só ficou sobrevivendo aqui em Melgaço a escola estadual, ele teve que nos engolir, única coisa que funcionava era a escola estadual que o resto pelo interior foi tudo detonado. O governo do Oni foi uma decadência total, o pior governo da história de Melgaço, as escolas fecharam [...] outra dificuldade quando o Oni era prefeito e o Bira era presidente da Assembleia Legislativa, eles me tiraram da direção, mas o Gervásio Bandeira era vice-presidente da Assembleia Legislativa e ele gostava muito do meu trabalho. Então quando ele soube, mandou um fax para o seu Alberto que eu tinha saído da direção e que com três dias depois o Oni iria trazer a diretora para assumi a direção. O seu Alberto foi um protetor para mim, ele trouxe e disse: “olha, professora a senhora saiu da direção, mas amanhã o Gervásio Bandeira prometeu para a senhora, ele ligou para mim, que vai falar com o Jader Barbalho para ele fazer uma nova portaria para a senhora reassumir a direção, ele vai passar por fax, mas fique na sua, fique calada, eu
244
vou mandar para a senhora ou então eu venho deixar aqui”. Eu disse: “seu Alberto eu vou sair da direção, eu não quero mais ficar, é muita perseguição”. Ele respondeu: “não professora, a senhora vai ficar”. Com dois dias depois chegou a portaria me reintegrando no cargo e quando a Erizan chegou com a diretora para assumir, foi uma dificuldade, um desafio, eu já estava com a nova portaria. O Oni estava com foguete para soltar. Então, quando ela chegou os alunos se rebelaram e gritaram, gritaram que não queriam, a Jurema estava na frente desta rebelião que aconteceu na escola (risos). Eu disse: “Jesus! O que eu faço?” Mandei ela entrar, a Erizan disse: “olha, eu vim trazer aqui a nova diretora”. Eu disse: “querida se você tiver uma outra portaria você assume, se você não tiver eu ainda continuo, volta e diz para quem te mandou trazer uma outra portaria”, e eu fiquei na direção. Eu ainda fui muito gentil, levei aquela que seria diretora à minha casa, dei um copo de água, porque abandonaram a mulher aqui, tu já pensaste, ela bebeu a água e depois foi embora (Professora Wilma – 2014).
As experiências tecidas nos embates políticos naquela gestão dos
primeiros anos da década de 1990 foram mais conflituosas e tensas para as
professoras migrantes. Elas eram vistas como ameaças por não compactuarem
com o tipo de gestão adotada, principalmente, com atitudes de repressão e
desrespeito aos munícipes. Por isso, denunciavam e não temiam o risco de
enfrentar o debate, a força do governo e seu grupo político.
As perdas e tentativas de ameaças profissionais, conforme já se viu no
primeiro enfrentamento, repetiram-se. Nesta segunda “guerra cultural”, o gestor
municipal acreditou que destituir a comandante do cargo de direção da escola
simbolicamente revelaria seu poder político na esfera estadual. O desfecho da
história acabou por surpreender, porque, possivelmente, o prefeito não
imaginasse que a rede de relações das professoras o derrotaria na cena final.
De acordo com Nobre (2009), a identidade do professor migrante integra
traços e peculiaridades do grupo da terra adotiva. Diria que, na experiência das
comandantes, a comunidade escolar vestiu-se dos seus modos de ser, pensar e
agir, saindo em defesa do direito de escolher quem deveria ser a gestora escolar.
Desse modo, há um movimento de reconstrução recíproco entre a identidade das
docentes e dos discentes que, nos limites e possibilidades do “ser e do agir” em
coletividade, batalharam em busca do bem social que julgavam melhor.
As gestões e cassações do prefeito e depois de seu vice, que culminaram
com a queima do prédio da prefeitura, câmara, junta militar e correios,
245
influenciaram profundamente não apenas a identidade de Wilma, Dilma, Rose,
Jurema e Fátima e dos moradores, mas da própria cidade que assumiu novas
posturas acerca da importância do voto e dos direitos políticos.
Contraditoriamente, conforme analisa Sarraf-Pacheco (2006), a cidade precisou
ser simbolicamente destruída para que fossem instaladas novas instituições
públicas e consolidasse sua identidade de “cidade-floresta”.
As lutas, contudo, não cessaram. No início de 2013, depois que o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou o
relatório, conforme já foi assinalado, em percursos anteriores, um grupo de
moradores, conseguiu realizar reunião na Câmara Municipal com prefeito, vice e
vereadores. Desta vez sem fazer parte deste grupo, as professoras migrantes
estavam na cena política. O excerto de Wilma revela o lugar e o sentido da
participação.
Fui numa reunião na câmara, antes eu falava muito dos governantes e não tinha medo, pegava o microfone e dizia: “o senhor tem que fazer isso e aquilo”. Eu e a Rose éramos muito de questionar, não de difamar, não tínhamos medo de falar, colocando as coisas que pensávamos, por exemplo, “o senhor está errado por isso, por isso”. Sempre a gente fazia isso, a gente era a voz do povo, teve um tempo que eu era a voz do povo aqui em Melgaço. Então, fui para esta reunião na câmara, lá estavam fazendo várias denúncias de várias pessoas, eu vi que aquelas pessoas estavam fazendo aquilo que eu fiz no passado, entendeu? Eu chorei, me emocionei, e disse: “meu Deus! Foram meus alunos, passaram pelas minhas mãos, estão aí, lutando, não têm medo de dizer as coisas. Obrigado Senhor! Eu colaborei para isso”. A Rose é minha amiga de longas datas, eu falei: “Rosiete, mana, peguei na mão dela, tu estás vendo isso aí, isso é resquício nooosso! Nós contribuímos para essa formação crítica”. Ela disse: “é Vilar, realmente”. Sabe, hoje eu fico despreocupada, são pessoas que estão aí lutando, do modo deles, mas estão lutando, não precisa mais da Wilma Vilar, da Rosiete Siqueira, da Jurema Pacheco, da Fátima Rodrigues, da Dilma Corrêa (Professora Wilma – 2014).
Cheia de emoção e orgulho, Wilma recuperou a cena vivida como
resultado positivo do seu trabalho e de suas colegas para a comunidade. A
reunião aconteceu em 2014, logo depois da divulgação do IDHM e no período em
que a comandante estava entrando no processo de aposentadoria pelo município.
Então, naquele momento alguém falou: “quero ver se a Wilma vai falar do
prefeito”. Mas, como era de se esperar, ela retrucou: “meu querido, eu não
246
preciso mais falar, tem alguém que está falando por mim. Tu não estás
escutando?”.
Assistir a sociedade civil organizada na câmara dos vereadores para
cobrar da gestão municipal seus direitos sociais, representada pela posição firme
e convincente dos ex-alunos, que se revelaram dotados de consciência crítica,
visão política e conhecedores da legislação brasileira, significou para essa
guerreira comandante uma das maiores conquistas. Ali, Wilma viu que o duro
trabalho que as professoras migrantes desenvolveram em três décadas para
consolidar a educação básica em Melgaço, colhia seus frutos.
A realização profissional na experiência das professoras migrantes atingiu
a dimensão pessoal. Isso faz retornar a Nóvoa (1992) por defender o
imbrincamento do pessoal com o profissional, o qual vai dando forma à
identidade, dentro do diálogo com o contexto inserido. Assim, acrescenta que
o processo identitário passa pela capacidade de exercermos com autonomia a nossa atividade, pelo sentimento de que controlamos o nosso trabalho. A maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino (NÓVOA,1992, p. 17).
Para Wilma, os posicionamentos daqueles ex-alunos eram reflexos da
atuação permanente em sala de aulas e nos movimentos sociais. Hoje,
reconhece-se como uma “águia” recolhida para trocar suas garras.
O diálogo com as histórias de vida das professoras migrantes reafirmou
as orientações dos marinheiros desta escrita para quem as (re)construções de
identidades pessoais e profissionais não se constituem fora da interação do
indivíduo com o seu contexto sociocultural e político. Assim, não se pode resumir
o vivido a uma construção do passado, porque seria perder o curso da história.
A identidade humana é urdida entre fatores internos e externos. Além da
relação cultural e social vivida cotidianamente, a própria conjuntura política é
decisiva na formação humana. Os alinhavos sempre inconclusos da identidade
refletem ou simbolizam essa construção múltipla, diversa e contínua, vividas entre
sociabilidade, negociação, conflito e superação em discursos e práticas sociais,
que o indivíduo está direto ou indiretamente envolvido. Nas reflexões de Faria e
Souza (2011, p. 42), a “identidade como síntese de uma tensão dialética jamais
findável”, portanto ela segue em permanente movência, reflexão e (re)construção.
247
REMEMORAÇÕES DA VIAGEM:
Desembarque
Os depoimentos que ouvi estão povoados de coisas perdidas que se daria tudo para encontrar quando nos abandonam, sumindo em fundos insondáveis de armários ou nas fendas do assoalho, e nos deixam à sua procura pelo resto da vida (BOSI, 2003, p. 29). Em processos vividos, narrados e escritos, fomos aprendendo a ‘ser professora’ e percebendo nossos espaçostempos de ação e liberdade, tanto quanto os limites que encontramos e que precisamos incluir nas nossas ações ou que devemos superar (ALVES, 2008, p. 137).
248
O desejo e o desafio para se realizar o desembarque com segurança
marcam a história das travessias. Nesta viagem que me propus a enfrentar,
confesso, cheia de muitas emoções, tomada por mim desde as primeiras leituras
das narrativas até o último desembarque, um tempo de intensa formação
intelectual, humana, espiritual.
Sinto realizar, nesse momento, um desembarque com sensação de
partida, pois muitos rios ficaram por ser visitados. Todavia acredito que o
sentimento de realização se efetiva, porque esforcei-me ao máximo para cumprir
o compromisso firmado com as professoras migrantes, com a Universidade do
Estado do Pará (UEPA), na pessoa de minha orientadora, com o Estado do Pará,
com o município de Melgaço, com minha família e comigo mesma.
Nesse percurso inúmeras vezes me vi sorrindo, gargalhando,
lacrimejando com as histórias que ouvia, lia, transcrevia e vibrava para que as
comandantes dessa viagem fossem vitoriosas. A relação com elas estendeu-se
para além da estrutura “sujeito-objeto”, foi uma interação de muitos feitos, vivi
encontros cheios de alegrias e cada um com novas descobertas, com intensas
aprendizagens e com estreitos laços de amizade. O encantamento, contudo,
seguiu em simbiose com a luta pelo rigor, compromisso e ética na escrita do texto
dissertativo.
A intenção não foi afirmar o que as professoras migrantes viveram ou
deixaram de viver na profissão docente em terra não-familiar nem tomar as
narrativas como verdades ou idealizações, mas trazer para serem analisadas,
questionadas e referenciadas como experiências de vida de professoras que
construíram histórias em outros espaços e puderam reconstituí-las no presente,
revendo ou refazendo sentidos do passado.
Nos diálogos com Wilma, Dilma, Rosiete, Jurema e Fátima fui
surpreendida com as riquezas dos depoimentos e a certeza de que minhas
análises não conseguiram explorar os muitos significados da experiência
socialmente compartilhada. Contento-me, no entanto, com a perspectiva de que a
inesgotabilidade do relato oral ou escrito fará com que as evidências do vivido
possam ser reinterpretadas de outros modos e formas de abordagens
teóricometodológicos.
249
A construção dos diálogos com professoras migrantes foi se urdindo à
medida em que permitiam a escuta de suas histórias. Com Fátima o espaço foi
fundamental para sentir-se segura em publicizar suas memórias. Em alguns
momentos, sem a gravação de voz, partilhou detalhes que foram silenciados na
escrita, porque eram íntimas demais.
Dilma e Rosiete selecionaram cuidadosamente o que pretenderam
socializar. A preocupação com a imagem de si que lutaram por construir, desde
quando chegaram a Melgaço, orientou o diálogo. Já Wilma e Jurema mostraram-
se bastante à vontade para falar de suas vivências e seus posicionamentos, com
ressalva, Jurema que depois de um encontro, ligou solicitando a não utilização de
uma determinada narrativa que apresentava conflitos com uma das gestões
municipal e explicou o motivo. Ela foi a única que formalmente pediu restrição na
publicação das narrativas. Nestes quadros, a história de vida é ponteada por
seleções, avaliações e construções nos trabalhos da memória.
Os encontros com essas professoras migrantes possibilitaram desvendar
seus baús de memórias e deixar falar de suas experiências, expectativas,
interesses e necessidades específicas, as quais dizem muito do processo de
formação e (re)construção de suas identidades e da história da educação do
município.
A organização estrutural dessa escrita foi pensada por mim, mas
costurada pelas narrativas das comandantes, a partir delas os percursos foram
assumindo seus mapas e trazendo para dentro deles os seus enredos, uma
construção, eminentemente, coletiva elaborada pelas vozes da viagem.
Ao começar a dialogar com as comandantes e sensibilizar sentidos para
suas histórias de migração e profissão fui redescobrindo em mim um ser também
migrante. Antes disso, não havia parado para refletir minha condição transitória.
Meus rizomas presos tão fortemente a Melgaço não permitiam visualizar a
migração como uma prática de vida. Nasci no interior do município de Breves,
migrei para Melgaço e em 2015 fiz cinco anos de residência em Belém. Meus
sentimentos de afeto a esses lugares se confundem, não sei de fato qual é meu
principal pertencimento. Na verdade, minha estrela migrante me faz amante
temporal dos territórios de vivência e passagem.
250
A convivência e partilha com as professoras migrantes permitiram muitas
aprendizagens e reflexões, entre elas o repensar da formação, o papel social da
profissão e a contribuição desse processo para a (re)construção de minha
identidade pessoal e profissional.
Um fato que marcou muito a minha vida enquanto mãe e profissional na
viagem realizada com as professoras migrantes, foi quando Fátima narrou uma
história de sua experiência profissional e associei a relação que vivi com minha
filha. Uma aluna dessa comandante não acompanhava o desenvolvimento da
turma, mas mostrava competência de aprendizagem para o nível da série, a mãe
muito preocupada com o crescimento da filha, recomendou-a que reprovasse
para não sentir dificuldades nas séries posteriores. A professora migrante
contrariou o pedido da mãe por acreditar na capacidade da aluna de superar-se e
não permitiu que fosse reprovada. Assim, uniu-se à criança no compromisso de
ajudá-la em seu crescimento. Sobre o assunto, enfaticamente concluiu ao dizer
que essa aluna era hoje uma assistente social.
A história mexeu muito comigo, porque minha filha no 2º ano do Ensino
Fundamental começou a apresentar dificuldades na aprendizagem e, depois de
alguns diagnósticos, iniciou vários acompanhamentos clínicos. Neste ano de 2015
cursa o 4º ano e vem se superando. Nesse enredo, todas às vezes que lembro da
atitude de Fátima em defesa da aluna, vejo-a como se também estivesse lutando
por minha filha. A emoção demora-se em mim e preciso de um tempo para me
recompor. Este é um exemplo, dentre outros, dos muitos sentimentos que nos
une como profissionais e amigas.
A experiência migrante atravessa a história de todas as comandantes
desde a infância. Precisaram, ainda em tenra idade, deixar a família
consanguínea para viver com parentes, padrinhos, amigos e conhecidos. Entre os
desafios enfrentados e que precisaram vencer, além de morar em outras
residências, as memórias narradas por Wilma, Dilma, Rose, Jurema e Fátima
permitem destacar: o trabalho em troca de moradia; o tempo da infância ou
juventude em troca de afazeres domésticos; saudades da “rocha-mãe” e da
família e os (des)encontros, sociabilidades e ultrapassar outras situações vividas
em Melgaço, sem desconsiderar limites e superações da comunidade referente à
visão do ser professora no passado e no presente.
251
As Histórias de Vida das comandantes evidenciaram que a cidade exigia
uma visão clássica da profissão professor, principalmente, em questão de
comportamentos e relações de sociabilidades em espaços não escolares. As
professoras migrantes, por sua vez, consideravam que as atitudes praticadas não
feriam os princípios morais da comunidade. Por outro lado, sentiam-se bem
acolhida e respeitadas enquanto profissionais, pois participavam das
programações políticas, sociais, religiosas e culturais organizadas pela gestão
pública ou pela comunidade local.
Os conflitos políticos, principalmente, na década de 1990, marcaram
fortemente o pertencimento ao lugar. A defesa realizada pelo bem-estar do
município não surgiu em troca de cargos ou usufruto de status social, mas como
uma estratégia para preservar o trabalho que há uma década estavam
construindo na educação. Não lutar era aceitar o desfazer das práticas de ensino-
aprendizagem por políticos pouco comprometidos com o desenvolvimento local.
Deste modo, posso dizer que a partir do entrelaçamento responsável das
professoras migrantes com a profissão e com outras atividades desenvolvidas
para além da prática docente, foram fundamentais para a conquista do respeito e
da aceitação enquanto pessoa, assim como também foram modificando na
comunidade determinadas conceitos pré-estabelecidos.
As histórias de vida não foram construídas somente por desafios e
decepções, muitos sonhos e conquistas elas alcançaram. A partir do encontro
com a cidade marajoara, por exemplo, fizeram-se professoras; garantiram
formação e estabilidade profissional; construíram família; ganharam relevância na
comunidade; envolveram-se em diferentes espaços educacionais, sociais,
religiosos, culturais e políticos; estruturaram a vida financeira e criaram teias de
afeto com o lugar e com as pessoas.
Nenhuma comandante enfatizou arrependimento pela travessia, todas
mostraram-se contentes e agradecidas pela opção da migração. Apenas, Dilma
pretende retornar às suas origens para viver perto dos familiares; Wilma só depois
de sua passagem ao outro plano de nossa existência; Rosiete, Jurema e Fátima
desejam passeios em pequenas temporadas. De certo modo, todas vivem em
trânsitos e apegos aos amantes e sentem-se perdidas nos entre-lugares.
252
A interação das professoras migrantes com a comunidade foi, então,
alinhavada por inúmeras representações e envolvimentos com a terra hospedeira.
Afetaram e foram afetadas pelas relações pessoais, profissionais, sociais e
políticas. Esparramaram-se, criaram laços afetuosos, provocaram conflitos,
amenizaram dores e viveram dissabores. Hoje, suas histórias com Melgaço
refletem sentimentos de pertencimento e gratidão pelo que construíram e
receberam da comunidade.
As razões que explicam os sentidos da migração para Melgaço, narrados
pelas comandantes, apresentam semelhanças e diferenças. O desejo de mudar
de vida seguiu com o embarque. A motivação inicial foi o trabalho com o intuito de
garantir a estabilidade profissional e ajudar financeiramente a família que ficou na
“rocha-mãe”. Depois outras razões afloraram em suas lembranças. Wilma
expressou a vontade de mudar a sua própria condição humana; Dilma sentia-se
motivada por um desígnio do destino: encontrar o amor de sua vida; Rosiete
vislumbrou outros horizontes e “quem sabe” a conquista de um bom casamento;
Jurema enxergou a possibilidade de ascender profissionalmente e conquistar
status social; e Fátima, sem expectativa profissional, apresentou apenas a
necessidade de dar o conforto ao bebê que esperava.
Os percursos da viagem conectaram-se a exigências da experiência
profissional e expectativas para galgarem novos degraus na formação continuada.
Se inicialmente, com exceção de Rosiete, as professoras migrantes chegaram
com o curso de Magistério, foi na experiência docente que realizaram o curso de
Adicionais, de graduação e pós-graduação.
A escolha pela docência apresentou-se de diferentes formas na vida de
cada uma das professoras migrantes. Fátima assinalou ter sido uma escolha de
infância; Jurema um destino ou um designo de Deus; Wilma um dom que foi
descoberto na profissão e para Dilma e Rosiete uma perspectiva de vida. Nessa
construção profissional, nenhuma considerou ter herdado uma herança familiar,
não enfatizaram se antes delas, já haviam professores nas redes de parentela.
No exercício da profissão muitos limites e avanços foram experimentados.
As professoras migrantes viveram a formação inicial e continuada em diferentes
espaços Breves, Belém, Soure, Marituba, Melgaço e Belo Horizonte, experiências
dos permanentes trânsitos em vida. Nos percursos, além do encontro com o novo,
253
o aprendizado e as expectativas, também experienciaram os desafios da
formação e do transitar na companhia dos filhos e dos pertences para uma
moradia periódica e provisória.
O início da docência foi marcado por fortes situações, especialmente pela
relação professor-aluno e gestão escolar de extrema verticalidade e metodologias
de ensino que valorizavam a repetição. Esses limites foram sendo superados a
partir do envolvimento na formação e na reflexão cotidiana da prática pedagógica.
As bordaduras do mapa da navegação realizada poderiam ter trilhado
pelo percurso da coautoria. Nesse sentido, não somente eu estaria defendendo o
texto dissertativo, mas junto comigo as cinco professoras migrantes. Mesmo sem
utilizar esse dispositivo, compreendo que o trabalho se fez polifônica, intertextual
e interculturamente. Muitas são as vozes, assim como os enredos e encontros
culturais que atravessaram a escrita da dissertação.
Por ser formada em História, Wilma, por exemplo, mostrou ciência da
complexidade de se trabalhar com a História de Vida como campo de
investigação. É de conhecimento acadêmico que o uso dessa metodologia
começou a aparecer no cenário brasileiro a partir da década de 1990, com mais
intensidade, como estratégia de dar visibilidade e valorizar histórias e
subjetividades de grupos excluídos da escrita acadêmica. Na contramão da
negação das trajetórias das chamadas minorias, que são na verdade, a grande
maioria, a História de Vida vem permitindo outras escutas e ângulos de
abordagem da realidade social, contribuindo significativamente para ampliar,
diversificar e valorizar os protagonistas da história.
Para Rosiete ser uma das cinco comandantes do percurso foi uma
homenagem pessoal e profissional, representou reconhecimento por completar o
ciclo da carreira no Magistério. Os esforços dedicados à história da educação de
Melgaço são reconhecidos nos quatro roteiros do município – Anapu, Campinas,
Tajapuru e Laguna – e, especialmente, na cidade. Junto desse empreendimento,
como foi possível acompanhar, Rosiete preocupou-se com sua autoimagem, pois
sempre expressou receios de perder a credibilidade na comunidade.
O reconhecimento traz implícito o medo do esquecimento. Para que sua
história na docência não habitasse o esquecimento, a professora migrante parece
ter caminhado no fio da navalha. A experiência de participar da pesquisa, então,
254
alia-se ao seu projeto pessoal, daí o sentimento do envaidecer-se e levantar sua
autoestima em tempo de aposentadoria. A escrita de sua história de vida vem
para motivar um outro tempo que se inicia.
Participar da viagem pelo mundo das professoras migrantes, ou melhor,
revisitar o próprio território por onde se fez como pessoa, mulher, profissional foi
para Fátima renovar utopias, alimentar a esperança de um mundo melhor e
acreditar, mais uma vez, que a educação é capaz de transformar o mundo,
mesmo em tempos de desencantos. Essa professora migrante ao refletir sobre
suas ações na minha formação, por ter sido sua aluna em tempos passados,
ajuda ver que a relembrança permite revisitar vivências compartilhadas e avaliar
percursos trilhados.
No coro de vozes, Jurema ao trazer seu olhar para avaliar os percursos
visitados, enfatizou a necessidade de enfrentar e desmitificar ideias
preconceituosas sobre o migrante, especialmente como sujeito que não tem
compromisso com a terra não-familiar. Revelar outras histórias da migração pelo
viés das professoras migrantes permite vislumbrar o multifacetado campo de
significações que ela constrói.
Se ao longo da pesquisa de campo coloquei-me a escuta das histórias de
vida das professoras migrantes, nos enredos por elas produzidos ora ou outra eu
me tornava também personagem nos entremeios das trajetórias. Outro motivo
destacado por Jurema acerca de sua participação na pesquisa trouxe-me para a
cena do discurso, pois quando o centro da análise são memórias pessoais inter-
relacionamos conhecimento do outro e de nós mesmos no desenvolvimento do
trabalho acadêmico.
Na saída do barco para a ponte, aproprio-me dos enunciados evocados
por Dilma. A travessia só foi possível porque se fez com disponibilidade,
interesse, gratidão, amizade, reciprocidade, desejos e felicitações. Coloco-me,
então, para o diálogo acadêmico sincero, responsável e possíveis de novas
experiências de formação e autoformação.
255
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APÊNDICES
ROTEIRO PARA O DIÁLOGO COM AS PROFESSORAS MIGRANTES DIA DA ENTREVISTA ____/____/2014 LOCAL______________ IDENTIFICAÇÃO a) Nome da professora; b) Data de nascimento; c) Lugar onde nasceu; d) Ano da migração; e) Área de formação; f) Tempo de trabalho na esfera estadual; g) Tempo de trabalho na esfera municipal; h) Situação profissional atual. MIGRAÇÃO a) Razões da migração para o município de Melgaço; b) Expectativas a respeito da experiência docente construída em terra não-familiar; c) Recepção ou não da comunidade; d) Interesse ou não em retornar à terra natal. Motivos; e) Visão sobre Melgaço entre o passado e o presente. FORMAÇÃO/DOCÊNCIA a) Motivos para a escolha da docência; b) Formação acadêmica inicial para exercer a profissão docente; c) Caminhos trilhados para a formação continuada; d) Limites, desafios e dificuldades enfrentados no exercício do Magistério; e) Em tempos atuais, como avalia as escolhas da formação e da docência; f) Realizações ou abandono de sonhos significativos na vida pessoal e profissional. IDENTIDADE a) Experiências vividas em Melgaço consideradas significativas na vida pessoal e profissional; 2. Relações sociais construídas entre si, com alunos e comunidade em geral; 3. Mudanças na vida como moradora e professora de Melgaço; 4. Visões sobre si.