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BH/UFC R T I G O CARTOGRAFIA DO BANDIDO SOCIAL: O ACASO E A NECESSIDADE* U m conjunto de ver- sões compõe uma fotografia dos canga- ceiros, e em especial de Lampião, vistos pelos membros da sociedade ser- taneja, em particular, e brasileira, em geral. Teste- munhas de fatos e atores de sua transmissão oral e DANIEL LINS" A expressão paradig- mática bandido social RESUMO evoca, notadamente, cava- lheiros generosos e des- confiados que de suas montanhas praticam uma justiça expeditiva que atrai a adulação dos pobres e dos oprimidos. Com efei- to, o bandido social, com- preendido sob este ângulo mítico, nos conduz, apa- rentemente, mais para o universo literário do escri- tor turco Kemal Yashar (961) e à sua trilogia do bandido heróico Memed O Magro, personagem legendário agindo nas montanhas da Turquia, que para as terras semi- áridas do sertão, "Pátria dos Cangaceiros". Por razões de ordem metodológica, tra- çaremos aqui, num primeiro tempo, os pon- tos fundamentais do clássico estudo de Hobsbawn e do arquétipo, por ele proposto, do bandido social, inseridos nas nossas pró- prias reflexões e conclusões, resultado de lon- gos anos de pesquisa sobre o cangaço (Lins, 1993, 1995, 1997). Antes de tudo, não se deve negligen- ciar a parte do imaginário presente como uma tatuagem em toda trajetória do bandido, do salteador, ou do confiscado r de liberda- de, todos os segmentos sociais confundidos: coronéis ou poder patrirnonial, bandido so- cial ou herói camponês, bandos clânicos ou profissionais do gatilho. Nesse sentido, cabe Este ensaio propõe uma análise do "bandido social" levando em conta tanto a elaboração e os estudos clássicos de Hobsbawn sobre o tema como minhas próprias pesquisas e propostas teóricas trabalhadas ao longo dos anos. Trata-se, de fato, de revisitar o paradigma do "bandido social" inserindo-o na realida- de histórica e imaginária do Cangaço construida, muitas vezes, sob o signo da devoção, da admira- ção, da intolerância, do espanto e do "racismo de inteligência". escrita, os camponeses en- trevistados deixam emergir uma imagem de Lampião e dos cangaceiros, imagem com mil aspectos, às ve- zes, difícil de ser compre- endida na sua totalidade. Todavia, um estudo aprofundado da obra de Eric Hobsbawn (972) leva-me a afir- mar que os traços que compõem seu bandi- do canõnico podem gerar uma contradição entre dois níveis de realidade: por um lado, a emergência dos "primitivos da revolta", inseridos nas condições sociais de seu tem- po, e por outro, a intriga que dá forma à vida de todos esses bandidos, o movimento do destino heróico em si mesmo. Resta sa- ber se tanto um como o outro modelo po- dem também ser considerados "rnoriol iticos''? •• Doutor em Sociologia e Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará. • O texto que se segue serviu de base para uma série de conferências sob o mesmo título proferidas na Uni- versidade de Berkeley, Califórnia, em 16, 17 e 18 de abril de 1996. (Blanc e Fabre, 1982: 110). Ora, se Lampião é, de fato, um herói popular, é possível, entretanto, afirmar que ele é um bandido social? Podemos primeiro, a partir de uma análise sociohistórica, e a se- guir, da memória oral, outorgar a Lampião o estatuto de bandido social? LINS, DANIEL. CARTOGRAFIA DO BANDIDO SOCIAL: O ACASO E A NECESSIDADE. P. 169 A 179 169

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BH/UFC

R T I G O

CARTOGRAFIA DO BANDIDO SOCIAL:O ACASO E A NECESSIDADE*

Um conjunto de ver-sões compõe umafotografia dos canga-

ceiros, e em especial deLampião, vistos pelosmembros da sociedade ser-taneja, em particular, ebrasileira, em geral. Teste-munhas de fatos e atoresde sua transmissão oral e

DANIEL LINS" A expressão paradig-mática bandido social

RESUMOevoca, notadamente, cava-lheiros generosos e des-confiados que de suasmontanhas praticam umajustiça expeditiva que atraia adulação dos pobres edos oprimidos. Com efei-to, o bandido social, com-preendido sob este ângulomítico, nos conduz, apa-rentemente, mais para ouniverso literário do escri-tor turco Kemal Yashar(961) e à sua trilogia dobandido heróico Memed O

Magro, personagem legendário agindo nasmontanhas da Turquia, que para as terras semi-áridas do sertão, "Pátria dos Cangaceiros".

Por razões de ordem metodológica, tra-çaremos aqui, num primeiro tempo, os pon-tos fundamentais do clássico estudo deHobsbawn e do arquétipo, por ele proposto,do bandido social, inseridos nas nossas pró-prias reflexões e conclusões, resultado de lon-gos anos de pesquisa sobre o cangaço (Lins,1993, 1995, 1997).

Antes de tudo, não se deve negligen-ciar a parte do imaginário presente comouma tatuagem em toda trajetória do bandido,do salteador, ou do confiscado r de liberda-de, todos os segmentos sociais confundidos:coronéis ou poder patrirnonial, bandido so-cial ou herói camponês, bandos clânicos ouprofissionais do gatilho. Nesse sentido, cabe

Este ensaio propõe uma análise do "bandido social"levando em conta tanto a elaboração e os estudosclássicos de Hobsbawn sobre o tema como minhaspróprias pesquisas e propostas teóricas trabalhadasao longo dos anos. Trata-se, de fato, de revisitar oparadigma do "bandido social" inserindo-o na realida-de histórica e imaginária do Cangaço construida,muitas vezes, sob o signo da devoção, da admira-ção, da intolerância, do espanto e do "racismo deinteligência".

escrita, os camponeses en-trevistados deixam emergiruma imagem de Lampiãoe dos cangaceiros, imagemcom mil aspectos, às ve-zes, difícil de ser compre-endida na sua totalidade.

Todavia, um estudo aprofundado daobra de Eric Hobsbawn (972) leva-me a afir-mar que os traços que compõem seu bandi-do canõnico podem gerar uma contradiçãoentre dois níveis de realidade: por um lado,a emergência dos "primitivos da revolta",inseridos nas condições sociais de seu tem-po, e por outro, a intriga que dá forma àvida de todos esses bandidos, o movimentodo destino heróico em si mesmo. Resta sa-ber se tanto um como o outro modelo po-dem também ser considerados "rnoriol iticos''?

•• Doutor em Sociologia e Professor do Programa dePós-Graduação em Ciências Sociais, da UniversidadeFederal do Ceará.

• O texto que se segue serviu de base para uma sériede conferências sob o mesmo título proferidas na Uni-versidade de Berkeley, Califórnia, em 16, 17 e 18 deabril de 1996.

(Blanc e Fabre, 1982: 110).Ora, se Lampião é, de fato, um herói

popular, é possível, entretanto, afirmar queele é um bandido social? Podemos primeiro,a partir de uma análise sociohistórica, e a se-guir, da memória oral, outorgar a Lampião oestatuto de bandido social?

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ao pesquisador do imaginário - historiador,sociólogo ou antropólogo - não perder devista o axioma fundamental do objetopesquisado sob pena de se deixar dominarpor uma escrita epidérmica, por um sociolo-gia da miserabilidade, ou por uma histórialinear permeada pela cultura da vingança oupelo racismo de inteligência, racismo de clas-se. Historicamente, o bandido social é o sal-teador de bom coração, presente em múltiplassociedades rurais, sobre o qual proponhonove variantes que definem os traços essen-ciais do bandido social, à luz do estudo rigo-roso de Hobsbawn, que leva em conta apolissemia infinita do personagem, sua in-venção política e social calcada na constru-ção histórico-imaginária:

1 - O salteador de bom coração não é,de início, um criminoso. Ele começa suacarrreira de fora-da-lei como resposta, pri-meiro, a uma injustiça da qual é vítima; esegundo, porque perseguido pelas autorida-des, por um ato que cometeu, consideradopela Justiça como criminoso, mas negadocomo delito ou crime pela comunidade quenão o considera como tal, pois a objetivida-de que conduz ao vere dito é da ordem darazão e esta, historicamente, segundo o ima-ginário social, sempre trabalhou para o po-der, para o mais forte. O Direito, guiado pelalógica de um logos dominador, é muitas ve-zes o direito do mais forte, o direito de punir.

2 - Ele corrige os erros.3 - Rouba os ricos para dar aos pobres.4 - Ele só mata em caso de legítima

defesa, ou para exercer uma justa vingança,sob a lógica implacável da cultura da honra.

5 - Quando sobrevive, ele retoma aoseu território - vila, fazenda, montanha, re-gião - e torna-se um cidadão honrado e ummembro respeitado da comunidade. Geralmen-te, ele não deixa nunca mais sua comunidade.

6 - A comunidade o admira, o ajuda e oapóia.

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7 - O bandido social morre invariável eunicamente por traição. Ele é sempre vítimade um traidor.

8 - Inserido na comunidade da qual, ví-tima de uma injustiça, o bandido se afastoutemporariamente, ele conta com o respeito ea fidelidade radical de todos e nenhum deseus membros se voltará contra ele, o denun-ciará ou facilitará o trabalho das autoridades,da polícia, dos capangas ou pistoleiros a ser-viço dos coronéis ou do poder clãnico epatrimonial.

9 - Ele é, no plano simbólico e imaginá-rio, invisível e invulnerável. Ele não é o ini-migo do rei ou do imperador, mas apenas dosopressores locais: nobreza, clero, potentados,e outros mandarins CHobsbawn, 1972: 36-37).

Ao traçar o retrato canônico do bandidosocial, Hobsbawn não questiona, de maneirasistemática, a natureza dos dados que analisa.Historiador, ele desconfia da História dos his-toriadores, transformada, muitas vezes, numaespécie de narração dos vencedores nutridapela discriminação ou pela nostalgia de umaordem regulada sob o signo do chicote numclima beirando a anomia social. Hobsbawn,privilegia as biografias, os romances, os la-mentos dos menestréis, cantados nas feiras,mercados, cidadelas medievais ou nos aglo-merados de excluídos e desalentados do mun-do moderno, herdeiros pobres da revoluçãoindustrial do século XIX. Ele deixa de lado osdocumentos das polícias ou do judiciário, querdizer, os arquivos do Poder. Ao investir no ima-ginário, ele refaz, à sua maneira, a história,reinventa arquivos, e elabora, como um arque-ólogo, uma história nascida das cinzas da cen-sura, simbolizada, quase sempre, pela HistóriaOficial, transformada, muitas vezes, na históriados ressentidos: poder patrimonial, direita in-culta, liberais que militam contra a ética e pelamoral positivista ou, ainda, esquerda, quasesempre oriunda das elites intelectuais, víti-mas de uma "consciência infeliz"!

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Como em outros exemplos de diferen-tes bandidos dos quais Hobsbawn se servepara construir seu modelo de bandido social,o autor não reivindica que os dados e infor-mações sobre Lampião, por exemplo,correspondam a imagens verídicas do perso-nagem histórico. Ele escolhe livremente, e àsvezes deliberadamente, entre os mitos, as fon-tes supostas verdadeiras, mas seu relato temorigem, em particular, nas lendas ou no ima-ginário, este real-próximo que se rebela con-tra a verdade-longínqua do historiador ou doantropólogo urbanos.

Tudo indica que a opção de Hobsbawn- estudar os mitos, enveredar pelo imaginá-rio, desconfiar da história linear - correspondeao fato de que as "verdades" sobre Lampiao,por exemplo, e sobre os cangaceiros em geralsão elas mesmas imaginais, quer dizer, feno-menais, resultado de uma história extraordiná-ria, fantástica, mas não isenta de preconceitos,medos infantis e pobreza metodológica. es-se contexto, Hobsbawn se aproxima de PaulVeyne, segundo o qual não temos uma falsaidéia das coisas; é a verdade das coisas que,através dos séculos, se constituiu radicalmen-te: ..Houve um tempo em que poetas ou his-toriadores fabulavam, com todas as peças,dinastias reais, com o nome de cada potenta-do e sua árvore genealógíca: não eram, con-tudo, falsificadores nem tampouco de má-fé;eles seguiam o método então usado para che-gar às verdades.» (Veyne, 1983: 11-12).

Para Paul Veyne ..as verdades são emsi imaginações; é que a imaginação está des-de sempre no poder; ela e não a realidadenem a razão, nem o longo trabalho do nega-tivo», o que leva o autor a concluir que «oshomens não encontram a verdade; eles a fa-zem, como constroem sua história- (ibid.).

Em síntese, a grande contribuição deHobsbawn, em relação à história dos canga-ceiros brasileiros, e notadamente de Larnpiao,foi transformar esses "heróis negativos" ou

"heróis salteadores" em pesonagens históri-cos, percebendo-os e compreendendo-os porintermédio da lenda e do olhar "simplório"dos poetas, cordelistas e camponeses mer-gulhados, quase "sempre, numa subjetivida-de criativa que busca, na compreensão do"herói negativo" o sentido e não a significa-ção, o não-dito e não o discurso linear dosintérpretes oficiais, o espírito e não apenasos corpos demoníacos de bandidos, aindaadolescente, ou no caso dos cangaceiros dobando de Lampião, ainda crianças.

Durante quase vinte anos de pesquisasobre o cangaço e, particularmente, sobre Lam-pião, pude perceber, à maneira de Hobsbawn,a importância de ir além do Texto Brasileiro,espécie de Doxa Oficial ou de censura declasse, que relegou ao esquecimento ou à"microhistória" acontecimentos maiores comoa Guerra de Canudos, Caldeirão, o Cangaço,etc., confinando-os no que Castoriadis (979)chamou de "lutas implícitas", consideradas pelaHistória Oficial como "acontecimentos meno-res", a-históricos ou insignificantes. Lá onde,segundo a Doxa, existiriam apenas "profetasfracassados", "analfabetos dementes erevoltosos" ou "vulgares bandidos", descobri-mos "santos", "profetas revolucionários", "prín-cipes" ou "reis" com olhar de crianças,crianças-bandidas ou banidas.

Hobsbawn atribuiu, com razão, a essespersonagens, classificados oficialmente comoatores menores das "lutas implícitas", um lu-gar no Panteão da imaginação instituída, e doimaginário oficial histórico, incluindo na suaescrita narrativa atores de todas as classes so-ciais, políticas e religiosas confundidas. odiscurso sobre o Cangaço, por exemplo, sal-vo exceções, as elites - esquerdas, liberaisou direitas - se encontram, muitas vezes, nomesmo terreno: o preconceito e a discrimina-ção os une quando se trata de interpretar oindizivel, a diferença impensável, represen-tado pela "cultura do pobre" (Hoggart, 1970).

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o fenômeno do banditismo social inte-gra o que Hosbsbawn chamou de "movimen-to social primitivo". Embora constituindo umamanifestação social do mundo contemporâ-neo, esse fenômeno apresenta característicassemelhantes àquelas surgidas na Antiguidadee na Idade Média. Trata-se, de fato, de umaforma de rebelião primitiva que emerge porocasião de modificaçôes bruscas nas socieda-des rurais orientadas por um sistema de valo-res "tradicionais" e cuja organização social éde tipo tribal ou familiar. Essas sociedadesagrárias "tradicionais" estão inseridas no sis-tema econômico baseado numa estrutura rígi-da de classes e sobre a propriedade fundiárianas quais os ricos e os pobres, proprietários enão proprietários, constituem categorias soci-ais antagônicas. O termo tradicional é aquiutilizado com o objetivo de caracterizar umaformação específica cuja relações sociais in-ternas e os valores que as orientam são deter-minados por uma estrutura econômica que nãoé, ainda, predominantemente capitalista.

Esses movimentos emergem nas regi-ões onde perduram as formas de produçãopré-capitalistas e onde a organização socialestá impregnada de valores tradicionais. Essefenômeno é típico do mundo rural pré-capi-talista em crise no qual a sociedade familiarentra em desagregação. Na verdade, é estasituação que confere às manifestações do fe-nômeno caracrterísticas semelhantes, indepen-dentemente da época e das regiões onde elasurge. Nesse sentido, o movimento dos can-gaceiros, na fase rápida e efêrnera de bandi-tismo social, representado por Antonio Silvino,"o bom cangaceiro", e a seguir pelos mingua-dos anos de cangaço de honra e de vingançado jovem Virgulino Ferreira, o futuro Lam-pião, emerge no sertão, no começo deste sé-culo, e coincide com o período de expansãoda agricultura capitalista na exportação de al-godão e a intensificação da criação de gado(Uns, 1993).

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TOPONOMIA E MEMÓRIA: PARA ALEM DAS APARÊNCIAS

As regiões de difícil acesso, como asmontanhas, as florestas, os planaltos virgens,as regiões inóspitas - sertão, caatinga - são,por razões táticas, propícias ao desenvolvimen-to do banditismo rural ou "primitivo". O totalconhecimento pelos "revoltosos", salteadoresou "místicos loucos", da região onde nasceramou vivem ainda, facilita a ação dos rebeldes.Seus adversários, "forasteiros", vindos de fora,são quase sempre desavantajados. O banditismonão seria, nesse caso, uma revanche contra oEstado brasileiro, apenas estabelecido e aindafragilizado? Fernand Braudel observa que elese aloja nas zonas frágeis nas montanhas ondeuma tropa não pode sequer agir com força.Entretanto, não é a situação geográfica per se,mas a posição da economia regional na rela-ção com a dinâmica do sistema econômico glo-bal que vai explicar a formação de bandosnessas regiões. Na verdade, em razão das ca-racterísticas climáticas e de seu solo, essas re-giões se encontram, geralmente, na periferiade um sistema nacional, funcionando como umafonte de acumulação primitiva de capital paraesse sistema. A pauperização que advém doprocesso da expropriação das terras, ou da uti-lização limitada da mão-de-obra, no caso daseconomias pastorais, em períodos de crise, sãoextremamente favoráveis ao desenvolvimentodesse tipo de rebelião. Acrescente-se o fatode que os pequenos comércios (bodegas,mercearias), os jovens sem-terra, os meeirosopõem sua precariedade à prosperidade dossenhores.

Entretanto, a toponomia que cobre comsua rede fechada os espaços, as regiões culti-vadas ou povoadas, áridas ou exploradaserradamente reenviam, com efeito, à propri-edade, aos seus limites, às brigas e às lutasou as guerras de clãs que elas provocam. Daía importância de controlar perfeitamente, porexemplo, a geografia do cangaço, maneira

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igualmente de perceber o sentido e a memó-ria desses lugares:

Tudo os lembra, não existe monte,barranco, floresta, fonte ou gruta que nãoestejam ligadas a algumas de suas memo-ráveis aventuras ou sucessos, ou que nãoos tenham servido de coito; todos os luga-res secretos serviram como esconderijo paraseus encontros de negócios ou estratégicos; .não existe uma só capelinba no campoonde não tenham deixado cartas de amea-ças e esperado o dinheiro dos resgates (Levi,1977:156).

Este belo texto de Carlo Levi sobre osbandidos de Gabliano, na Itália, correspondeperfeitamente à memória dos lugares na longatrajetória dos cangaceiros. O sertão é, com efei-to, assombrado por Lampião, que não só mar-cou a paisagem mas deu uma origem a muitosconflitos familiares, sociais e políticos. Aspec-tos geográficos ou ecológicos, tensão social,defesa da honra e ferocidade individual, o pe-rigo, diz Braudel, "é de restringir a um dessesaspectos o imenso e complexo problema» dobanditismo social ou rural» 0947: 153).

Em regra geral, esses movimentos sãomarcados nos seus primórdios por reaçõesindividuais que se transformam em ação deum grupo minoritário vinculado à populaçãolocal. Essas reações acontecem, freqüente-mente, fora dos períodos de passagem para ocapitalismo agrário, ou em um momento his-tórico determinado no qual as formascapitalistas de produção generalizam-se e in-tensificam-se (Costa, 1975).

O banditismo social surge também emsituações de dominação social como formade dissidência à ordem estabelecida ou deresistência contra a opressão estrangeira, comofoi o caso da Argélia (Oussedik, 1989: 19).

Esse tipo de rebelião social desapare-ce, contudo, nas estruturas agrárias, claramente

definidas como capitalistas, em razão de umdesenvolvimento das forças produtivas e deum sistema de comunicações e administraçãopública eficazes que impedem ou dificultam,em geral, a emergência de rebeliões inseridasno modelo hobsbawniano de banditismo so-cial. Entretanto, é no processo de transforma-ção das relações sociais e de trabalho que seforma uma consciência política da populaçãodominada, dotada de um grande conhecimen-to de seus interesses e instrumentos de luta eque se exprime, necessariamente, sob a formade protestação social, com múltiplas variantes.

O banditismo rural pode ser considera-do, sobretudo, como um fenômeno social li-gado ao destino rural. É aí que os bandosvão, na sua grande maioria, ser recrutados:"A formação de bandos depende do apoiodos camponeses que consideram, muitas ve-zes, os bandidos como um instrumento decompensação das desigualdades materiais esociais, à maneira de Robin Hood- (Geremek,1988: 110).

De fato, é toda uma estrutura social, re-ligiosa e política que devemos interrogar noque se refere às diversas origens e começosdo bandismo rural. É necessário, pois, fugirde todo pensamento unitário, binário oudualista, evitando, assim, cair num deterrni-nismo simplificador que confunde bandidocom banditismo, crime com criminoso, e queprocura a causa e o efeito ao invés de tentarperceber os efeitos da causa. Além das se-melhanças muito gerais, as estruturas sociais,os mecanismos de margínalização, suas estra-tégias de repressão, os códigos e práticas po-líticos impõem sua marca específica. Querocom isso alertar para o fato de que os ho-mens não são apenas os filhos de seus pais,mas "os produtos de instituições fundadas so-bre o estado de ciências mecânicas na épocaem que nasceram e onde cresceram. São es-sas coisas que fazem de cada um de nós oque somos" (Butler, apud Deleuze, 1956: 47).

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BANDIDO SOCIAL: ROMÂNTICO, PASSADISTA OU

REVOLUCIONÁRIO?

Ao contrário dos movimentos sociais es-pecíficos de sociedades capitalistas nas quais oconflito de classe é mais definido e os objetivospolíticos mais explícitos, como, por exemplo, omovimento operário, o banditismo rural nãoapresenta um projeto de sociedade nova, masse volta para o passado, com o objetivo de res-tabelecer a antiga "sociedade tradicional". A ori-gem do banditismo rural está profundamentevinculada às lutas pelo poder entre as grandesfamílias das sociedades agrárias. Nesse modelode sociedade, a economia e o poder políticosão controlados por estas famílias, fortementecentralizadas na pessoa de um chefe patriarcal,o grande proprietário fundiário. o caso espe-cífico do Brasil, notadamente do nordeste, oprestígio social dos grandes latifundiários é de-terminado não só pela extensão de suas propri-edades, mas também pelo número de pessoasdependentes, conhecidas sob o nome de agre-gados. Assim, o controle da política local é im-portante tanto para garantir a supremacia da lutapela posse da terra, como para manipular osmecanismos jurídico-institucionais decisivos à ar-bitragem dos conflitos.

A luta pela posse da terra torna-se maisintensa nos períodos de passagem para umaorganização mais rentável da produção, quan-do a terra começa a ser utilizada de uma ma-neira mais racional. Esta nova organizaçãotende a determinar o fenômeno clássico dodesaparecimento progressivo dos pequenosproprietários; isso pode ser observado no ser-tão quando a expansão da economia do algo-dão e do gado leva a ocupar as terras maisférteis destinadas antes à agricultura de sub-sistência a que se dedicavam os pequenosproprietários, agricultores, meeiros e traba-lhadores sazonais.

_ o sertão, esse processo provoca o em-pobrecimento das famílias que perdem suas

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terras. Como sublinhamos, uma maioria debandidos é originária dessas famílias. Essa si-tuação não é, porém, uma característica únicado sertão, pois a história do banditismo apon-ta numerosos exemplos, fora do Brasil, debandos que emergem em circunstâncias se-melhantes às nossas: Juan Buksh, em Java,na Indonésia, 1850; Eleodoro Benel Luloeta,no Peru, no começo do século; Malas Patas eUnas Largas, no século XVIII, na Andaluzia,Espanha; Oumeri, o bandido social com for-tes marcas políticas e revolucionárias, "vindoda montanha", atua na Cabília, Argélia, em1940.

O camponês que se torna bandido pa-rece incapaz, por razões diversas, de formu-lar uma crítica à estrutura social existente. Omovimento do banditismo é, por outro lado,integrado por pessoas, em geral, analfabetasou semi-analfabetas, que só se exprimem porintermédio de uma linguagem própria dife-rente da das elites urbanas, e que não conse-guem formular suas aspirações em terrenopoliticamente claro. Esta constatação levouBakunine, na sua idealização do bandido-he-rói, a afirmar que o bandido social ou rural é"o revolucionário único e original, um revolu-cionário sem frases bizarras, sem retórica cul-tivada, irreconciliável, infatigável e indomável,um revolucionário popular e social, político eindependente de todo Estado» Capud Zugasti,1982: 23).

Sociologicamente, entretanto, os bandi-dos sociais parecem presos ou dependentesde um babitus lingüístico que é, segundoBourdieu, o produto de condições sociais, daípor que eles não têm as palavras para dizerlá onde é preciso falar e quando dizer, afir-mar, reivindicar tornam-se necessários. Da faltada palavra à entrada na violência, é um pas-so: a violência não está, de fato, implicita-mente inseri da na crise de palavras? A palavragarante a consciência da alteridade: ora, semoutrem, todo processo de civilização está com-

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prometido. Mas o babitus lingüística não é «asimples produção de discurso, mas produçõesadaptadas a uma 'situação', a um mercado oua um campo" (Bourdieu, 1981: 121).

Evidentemente, os cangaceiros não pos-suíam um mercado lingüístíco, as volantes tam-bém não e, na maioria das vezes, os grandesproprietários, ricos em capital econômico,padeciam de uma carência radical de capitallingüístico e cultural. Embora os cangaceirosnão detivessem um capitallingüístico rico, elescodificavam, entretanto, sua linguagem. Utili-zavam quase sempre uma expressão e umvocabulário próprios, incompreensíveis paraos leigos e para as autoridades. A elite brasi-leira, por exemplo, sempre zombou de Lam-pião, pois, ao ser confrontado com personagensimportantes, quando das tratações políticas,como em ]uazeiro, em 1927, ele "perde seusmeios", seu capital simbólico declina, seupequeno capital lingüístico entra em colapso,confunde-se no emaranhado de conchaves,estruturad os numa língua "estrangeira",marcada por um capital político construidosegundo interesses da época, permeado pelosagrado (padre Cícero Rornão) e pelo profa-no: o poder político e suas mazelas firmadascom Deus e com o Diabo!

Entretanto, a despeito do estatuto de ban-dido semi-analfabeto, refém de sua históriapessoal, de seu babitus, que é, à maneira dosescolásticos, sua "propriedade", seu único "ca-pital", Lampião cuidou bem de sua imagem"literária" e romântica ..Ele alimenta os campossimbólicos, consciente ou inconscientemente.Assim, malgrado sua "falta de gênio" de escri-tor, e ausência quase total de capitallingüístico,ele investe em seu capital simbólico, constru-indo à sua maneira, uma estética romântica numamescla de ecologia e beleza, de poesia e vio-lência, de sonhos dourados e pesadelosimagéticos. Ele passa os últimos anos de suavida, ninado pela paixão de uma "bela" - Ma-ria Bonita -, a se enfeitar, a cuidar de sua apa-

rência, a enfrentar as câmaras, as máquinasfotográficas, pois sabe que a imagem que eledava a ver só tinha como referencial a si mes-mo. De imagens em imagens, Lampião, apesarde sua pobreza lingüística e cultural, tomava-se, paradoxalmente, a citação que circulava deboca em boca estruturando-se no imagináriosocial como uma referência, uma espécie dedâimon - gênio do bem e do mal. Diferente-mente da escrita, o autor da citação não tinhanome ... Na falta de citação literária, ele se im-punha na lembrança de todos substituindo comondas oníricas dirigidas à multidão a palavra, otexto literário ou a escrita "faltante". Ao de-sempenhar seu próprio papel, ao se auto-en-cenar, Lampião se perpetuava através datransposição e produção desenfreada de ima~gens e símbolos gerados pela estética da vio-lência, misto de gestos heróicos, amor àsmassas, ideal ecológico (sobretudo nas ima-gens de Benjamin Abrãao) e baralhamento doscódigos (DaMatta, 1979).

INDIVIDUALISMO OU SINGULARIDADE MÚLTIPLA?

Em um primeiro tempo, pois, o bandi-do reage individualmente, a seguir ele assu-me o papel de vingador ou de justiceiro,protetor da comunidade indefesa, denuncia-dor da situação de pobreza e de opressão naqual os camponeses se encontram. Mas é so-bretudo pela sua insubmissão, real ou simbó-lica, à miséria e à humilhação que o bandidose distingue dos outros membros de sua co-munidade. Sua revolta é um "exemplo" paraa população rural, na medida em que ele con-segue provar que a justiça é possível e «quenão é necessário para os pobres serem hu-mildes, impotentes e resígnados-, mas ao con-trário, como ele, cada um pode se rebelarcontra o destino social legitimado pelo con-formismo de uns e a heteronomia de outros.(Hobsbawn, ibid.. 51).

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Nesse sentido, o bandido representa sim-bolicamente o potencial de luta da comunida-de, e é por isso que, embora não constituindouma real ameaça para o sistema, ele é seve-ramente punido e perseguido sem tréguas.Esse ator que tem uma vida fulgurante, por-que geralmente breve, efêmera, não deveapenas ilustrar esta qualidade que Hobsbawnatribui ao bandido "individual": a liberdadepossível é demonstrada pela ação fora da leido cangaceiro - bandido social ou salteador"primitivo" - diante dos camponeses subju-gados, mas é igualmente o valor simbólico doexcesso, do gasto gratuito, do consumoexarcebado que o bandido faz sua regra. Existe,evidentemente, uma diferença de naturezaentre a revolta vinculada à miséria e a fome,e "uma revolta do orgulho e do necrotério"marcada pela cultura da violência ou pela vi-olência dos desesperados (Veyne, 1987:9).

Entretanto, visto que um homem é umindivíduo, as revoltas, frutos de uma anomiasocial que engendra uma crise generalizadade solidariedade, ou de injustiças, morais ousociais, comportam também aspectos de sub-jetividade atestados, por exemplo, pelo movi-mento operário francês do século XIX, marcadopela defesa da "dignidade operária". Sabemosque esta "fome de dignidade" comportava tam-bém o dever, para o operário, de ..crescer eminstrução e em moralidade- (Veyne: ibidem).

Diversos exemplos, que vão no mesmosentido, trespassam a história do Brasil e repre-sentam uma rica monografia com diversas ca-racterísticas e geografia variada. Do Norte aoSul do País, movimentos eclodiram nos quaispodemos constatar as aspirações, no começo, éverdade, à justiça, mas que tinham, à medida desua evolução, reivindicado, explícita ou impli-citamente, o direito à existência, à autonomia eà significação, e isto malgrado o discurso redu-tor, puramente "material", ancorado noeconornicisrno limitado do começo do século:

Eles se revoltam porque têm fome!

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A violência pertence de fato a nossopatrimônio cultural. Querer explicá-Ia unica-mente pelos seus aspectos morais ou ideoló-gicos, ecônomicos ou psicológicos não dá àviolência um sentido social, pois, a "vitirni-zação" corre o risco de caricaturar a análise eproduzir efeitos perversos e contraditórios.

BANDIDO RURAL: O MESMO E O OUTRO

o meeiro que abandona a terra do "Se-nhor", e que, por causa de um "acidente davida" e "pela força do destino", torna-se ban-dido, pode também ser sensível aos papéis dejusticeiro e de bandido político que são muitasvezes atribuídos, por camponeses e testemu-nhas sertanejos, aos personagens dos canga-ceiros, e querer por outro "acabar" com asinjustiças sociais, etc. Ora, o bandido não pre-cisa possuir as características pessoais que di-zem ser as suas; o importante é o tipo de"história" que se conta a seu respeito. Às ve-zes, o chefe se distingue de seu bando: seeste é composto por homens "vulgares" e vio-lentos, o chefe não perde sua honoribilidadedurante sua vida de fora-da-lei. Tudo dependeda construção imagética que o outro faz dele.O que ele é importa, às vezes, muito pouco.O imaginário se encarrega de fazer do mesmoum outro imaginal, fenomenal, inclusive por-que a verdade nunca interessou a ninguém:Caxias "herói verdadeiro" foi relegado não ape-nas ao esquecimento, mas sofre um processoradical de amnésia coletiva. A verdade heróicaé também, muitas vezes, uma invenção do ima-ginário enganador, uma produção ideológica.

É claro que além dessas reações querefletem as estruturas ideológicas mais pro-fundas - a história mostrou como muitas ve-zes foras-da-lei se juntaram a movimentos derevoltas ou a grupos revolucionários, um pou-co em todo mundo. Assim, durante a campa-nha de libertação de Garibaldi, na Itália, de

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1861 a 1865, unidades de guerilheiros foramformadas por camponeses e constituídas igual-mente por bandidos. O mesmo aconteceucom Pancho Villa durante a Revolução mexi-cana. Em 1855, um "certo" José Astudillo foifuzilado em Arcos da Frontera, acusado depertencer a associações secretas subversivas.

a Itália, Giuliano pôs suas armas a serviçodos massacradores de "comunistas ateus" demaneira tão espontânea que ele foi conside-rado o campeão do separatismo siciliano. Em1927, Lampião, convidado pelo padre CíceroRornão - aceitou, sem jamais entrar em ação-lutar contra a Coluna Prestes. Em Cabília, nofinal de 1940, Oumeri e Hadj Ali Areski com-bateram os traficantes do mercado negro comotambém os agentes das forças francesas naArgélia "colonizada", ou melhor ocupada, en-tão, pela França. Resistiram com eficácia aoinimigo (os franceses) bem armados e organi-zados: -Ourneri foi um anti-colonialista (. ..)Ele deixou para as gerações futuras um exem-plo rico em ensinamentos (. ..) que devia con-duzir um povo a conseguir sua independênciaao preço de mil ações heróicas.» (Moral 1974;Quieros, 1974).

Ao ser questionado: -Corno fazer parasalvar a China?-, o jovem Mao Tsé-toung res-pondeu: "É preciso imitar os heróis de LiangShan P'o», quer dizer os bandidos-guerilheirosdo célebre romance chinês A beira d'água(Schram, 1966: 43). Tudo leva a crer que até1929 a grande maioria dos soldados que inte-grava o Exército Vermelho, de Mao, era com-posta por "elementos desclassificados", ou seja-soldados, bandidos, ladrões, mendigos e pros-titutas» (Hobsbawn, ibid.. 105).

Cabe, contudo, observar que se obanditismo social ou rural pode tornar-se re-belião ou colabora, num momento dado, comcausas revolucionárias, não podemosconsiderá-lo verdadeiramente como o equi-valente da revolta ou da luta de classes. Comoobservou Bronislaw Geremek, exímio estudi-

oso da questão, nas "estruturas essenciais, eledecorre de processos próprios à marginalidadesocial e encontra suas raízes, como na maio-ria de seus processos, na patologia social. Naprática e na lenda, ele ameaça não só os ricosmas também as classes populares, não ape-nas os poderosos e os fortes mas também osfracos» (Geremek, ibid.. 110).

Entretanto, o meeiro ou o trabalhadorrural que se torna cangaceiro, por exemplo,representa uma reação individualista de suaprópria condição de desesperado. Ele nãopensa efetivamente na possibilidade de mu-dar a estrutura da sociedade. Alguns campo-neses, porém, em certos casos, ao tornarem-secangaceiros - penso em Antonio Silvino, oexemplo típico do "bom cangaceiro" brasilei-ro - queriam partilhar a terra com os campo-neses pobres e defendiam uma vida humanae digna para todos. De fato, o cangaceiro noNordeste é, às vezes, comparado com o mes-sias, e seu bando, com uma confraria. Evi-dentemente o caráter limitado da organizaçãointerna dos bandos, que eram incapazes deformular um modelo de sociedade futura, nãopermite esperar desse movimento reper-curssões imediatas de tipo revolucionária. Sualuta consiste em corrigir os erros e as injusti-ças da sociedade tradicional sem por isso pôrem questão a situação da pobreza e da opres-são dominante no meio rural. O que o bandi-do procura de fato restaurar é a justiça ou "oscostumes de amanho" quer dizer "uma certaforma de honestidade numa sociedade opres-siva. Ele pune os erros. Ele não procura pro-mover uma sociedade fundada sobre aliberdade e a legalidade» (Hobsbawn, ibid.).

A carreira de um bandido social começasempre por um incidente sem muita gravida-de em si, mas suficiente para fazer dele umfora-da-lei aos olhos das autoridades ou torná-10, às vezes, um personagem heróico, um ban-dido autóctone e herói juvenil, segundo oimaginário da população (Lins, 1998: 191-199).

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É importante, entretanto, sublinhar quea particularidade do banditismo rural é sus-tentada pela encenação de uma representa-ção do mundo social estratificado , muitasvezes, em um imaginário positivo que traduz,embora simbolicamente, a revanche dos po-bres contra os ricos. Esse imaginário social,nutrido por um conjunto de relações simbóli-cas e de referências concretas, faz com que obandido, herói e guerreiro torne-se no seupróprio país reconhecido e célebre, pois eleencarna a injustiça original. O ponto de parti-da é, pois, uma injustiça da qual o bandido évítima; sua força consiste, portanto, em socia-lizar sua situação de vítima colocando a co-munidade, objetiva e subjetivamente, em seufavor. Ele torna-se, assim, o lugar da inscriçãocoletiva de uma violência radical cristalizadanuma denegação que demanda reparação:-Minha avó afirmava que tudo o que se diziaa respeito de Lampião era boato e que eletinha sido um bom filho, boa criança, antesde tornar-se o que fizeram com ele ..... (Ioãode Trinta, camponês, Serra Talhada, 1988).

O que o diferencia do criminoso co-mum é sua relação com a comunidade com aqual ele se identifica, enquanto que o bandi-do comum não guarda laços profundos com apopulação e constitui, de fato, um corpo es-trangeiro para a comunidade. O bandido so-cial é percebido pela população como umherói, um justiceiro, aquele que age em nomedos que não podem expressar seus sofrimen-tos. Para os camponeses, ancorados num ima-ginário positivo, pouco importam as razõesreais que o levaram ao banditismo. Os crimesque a ele foram atribuídos não são considera-dos como tal pela comunidade, pois tais cri-mes não vão de encontro aos modelos moraisestabelecidos pelo código ético da sociedadetradicional. O fato de se opor à tirania dospoderosos, embora muitas vezes simbolica-mente, é suficiente para fazer do bandido so-cial uma vítima e um herói (Lins, 1997, 1998).

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O culto ao cangaceiro pode ser expli-cado também pela compensação viva do fra-casso da massa, mesmo se em todos os casosde figura, trata-se de uma luta entre David eGolias. A coragem, a rebelião, a vingança e ahonra são valores positivos segundo seu có-digo. Os sertanejos continuam a exigir de cadaum a submissão e o respeito absoluto às leistácitas que regem a vida da sociedade. Nãose negocia a honorabilidade, com ela não exis-te comércio possível, "é preferível a honra napobreza que a desonra na opulência .., dizemos velhos sertanejos.

De fato, a ação reparadora do bandidoé aceita pelos sertanejos como sua própriaação. Esta comunhão é alimentada pelo ro-mance e pela literatura de cordel carregadasde emoção e transmitindo uma linguagem sim-bólica que fere e regenera, numa passagemdo universo imaginário para o cotidiano, ouvice-versa, imbuídos, quase sempre, de umacarga de devoção incondicional.

Na verdade, o bandido obedece a umanorma e sua conduta é considerada e interio-rizada pelos camponeses como justa. Impostaao bandido-herói, direta ou indiretamente pelacomunidade, esta norma pode operar, de fato,como um valor não apenas estético, mas tam-bém moral, deontológico e ético. Dito isto, ocangaceiro ou o bandido rural, para grande sur-presa dos românticos contestadores, se apre-senta, pelas suas ações esvaziadas de conteúdoideológico, como um conservador, decepcio-nando àqueles que procuram nele um perfil deum revolucionário precoce ou de um bandidosocial na verdadeira acepção do termo.

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