Cartografias Urbanas, Revista Do Peta4

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    CARTOGRAFIAS URBANAS: mtodo de explorao territorial

    Eduardo Rocha [email protected]

    Resumo

    Este texto busca dar pistas aos jovens cartgrafos que vm se arriscando nessa nova

    metodologia chamada cartografia urbana, buscando narrar e dar pistas sobre alguns

    caminhos e tticas dessa tcnica de explorao territorial. A cartografia urbana como

    uma forma exploratria das sensaes, dos sentimentos e dos desejos que fluem e

    escorrem na cidade contempornea. J como procedimentos metodolgicos, podemos

    desenhar, fotografar, filmar, escrever, conviver a cartografia cria seus prprios

    movimentos, seus prprios desvios. A cartografia um projeto que pede passagem, que

    fala, que sente, que se emociona. Um mapa do presente, como um conjunto de

    fragmentos, em eterno movimento. Uma das tarefas do cartgrafo trazer tona

    acontecimentos que, em outras formas de anlise urbana, no so considerados. o

    campinho de futebol, o cachorro de rua, os camels, as bicicletas, as conversas, os

    personagens, os eventos so micro polticas. A cartografia projeto de arquitetura,

    projeto de pensamento. um mtodo que se prope a potencializar o pensamento. Fazer

    o pensamento pensar.

    Palavras-chave: cartografias urbanas; filosofia da diferena; urbanismo.

    Alunos de Projeto Arquitetnico e Planejamento Urbano (projeto 9),cartografando a cidade de Santa Vitria do Palmar, na Faculdade de

    Arquitetura e Urbanismo (FAUrb), da Universidade Federal de Pelotas. Fonte:Edu Rocha, Pelotas, 2007.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    1 Cartografias

    Olho o mapa da cidade. Como quem examinasse. A anatomia de

    um corpo... que nem se fosse o meu corpo! (Mrio Quintana).

    Atualmente, a cidade tem se convertido num territrio1 onde se expressa

    materialmente a crise existencial do ser humano. Territrio de desestabilizao

    mental, social, meio ambiental, uma verdadeira crise eco-lgica2.

    A chamada fase ps-industrial do desenvolvimento econmico tem induzido

    uma instaurao do capitalismo em todos os nveis imaginveis. O

    desenvolvimento acelerado das novas tecnologias da informao tem

    contribudo para uma expanso da rede global que, em muitos casos, temabduzido do espao urbano as coordenadas exclusivamente temporais.

    A nova sociedade virtual e as grandes intervenes urbanas se fundamentam

    sobre um desdobrar que tem perdido totalmente sua finalidade humana, e a

    cidade somente progride materialmente. Por outro lado, seu tecido social se

    desintegra em guerrilhas urbanas, discriminaes e segregaes, manipuladas

    politicamente pelos meios de comunicao.

    evidente que a vida cotidiana tem sofrido profundamente com essas trocas.

    Questes, como a crise da vida associativa e domstica, na padronizao da

    cultura e dos comportamentos, tm conseqncias diretas sobre os tempos e

    os espaos que nos desdobramos.

    Devemos estabelecer uma relao entre vida cotidiana e suas diversas

    expresses na cidade, mas antes necessrio clarear a que nos referimos

    quando falamos de cotidiano. Segundo autores como Henri Lefebvre, Michel de

    Certau, Edward Soja ou Margaret Crawford, a vida cotidiana representa o

    espao da experincia vivida. O cotidiano no tudo, inicialmente podemos

    pensar em algo vago, implicando em velocidades e freqncias da vida diria:

    1 Territrio segundo a filosofia de Deleuze, por certo compreende a idia de espao, mas no consiste na delimitao objetiva somente de um lugar geogrfico. O

    valor do territrio tambm existencial, ele circunscreve, para cada um, o campo do familiar e do vinculante, marca as distncias em relao a outrem e protege do

    caos. O territrio distribui um fora e um dentro. O territrio uma zona de experincia.

    2 No sentido defino por Flix Guattari, em que a crise ecolgica no meramente uma crise do meio ambiental, mas tambm, o social e o mental participam

    ativamente dela, no solo desaparecen las especies, sino tambin las palabras, las frases, los gestos de la solidaridad humana. In: GUATTARI, F. (1990). Las tres

    ecologas. Valencia, Editorial Pre-Textos.

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    O que queremos dizer quando falamos em cartografias? Em um primeiro

    momento, podemos dizer que so apenas mapas, ou seja, desenhos em duas

    dimenses trabalhados digitalmente, impressos em papel ou observados na

    tela de um computador. apenas a representao de uma poro do espao,

    de um lugar, seja ele geogrfico ou conceitual, j que existem meios territoriais

    em ambos os casos.

    Cartografia3 mapa. Para os gegrafos, comunicao e anlise. Por

    conseqncia, cartografia pressupe comunicao. um elemento de

    comunicao. uma comunicao visual. No s visual, como imagtica,

    flmica, sonora, ou dos sentidos, das sensaes. De localizar e sentir o mundo.

    Cartografia no apenas um meio de comunicao, mas tambm um desenho.

    Cartografia topografia, fotografia, psicologia; ela , portanto, todos esses

    elementos utilizados para comunicar algo. Por conseguinte, a comunicao

    algo que permeia todo o processo cartogrfico.

    Como forma de comunicao, a cartografia apresenta distores da realidade,

    mas toda a mensagem uma mensagem distorcida da realidade, nenhuma

    isenta. Toda ela poltica. O que precisamos, saber qual a poltica denossa cartografia, quais as minhas escolhas, meus caminhos e meus dejetos.

    Todos ns usamos mapas de alguma forma, nem que sejam mapas mentais,

    aqueles que se conformam na medida em que nos localizamos em

    determinado territrio. Ler mapas pressupe um esforo mental, pressupe

    experincia. Um mapa s adquire significado, quando o sujeito se prope a

    trabalhar, estudar e decifrar os seus signos.

    Leitor e autor do mapa so sujeitos ativos na comunicao cartogrfica, devemlutar para isso. preciso, na montagem ou leitura de um mapa, estar

    espreita, reparar, espiar, reinventar e, de alguma forma, sentir a vida que passa

    por ali.

    3 Representao grfica, em geral uma superfcie plana e numa determinada escala, com a representao de acidentes fsicos e culturais da superfcie da Terra, ou

    de um planeta ou satlite. As posies dos acidentes devem ser precisas, de acordo, geralmente, com um sistema de coordenadas. Serve igualmente para denominar

    parte ou toda a superfcie da esfera celeste (OLIVEIRA, 1980: 233).

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    A cartografia, h algum tempo, tem sido de grande interesse para os militares e

    num contexto to fluido e conflitivo como o atual seu interesse crescente.

    uma espcie de domnio do espao e do tempo, do tempo real, do

    entretempo4. Cartograficamente do mesmo modo em que os espaos se

    ampliam e se aprofundam extraordinariamente, a escala temporal tambm se

    espicha, abarcando tambm a possibilidade e a incluso das utopias. Hoje,

    mais que nunca, acabamos por nos perguntar no somente, Quem somos?,

    mas tambm, Onde estamos?.

    A partir dessas constataes, podemos nos questionar sobre os interesses que

    levariam um arquiteto e urbanista a se aproximar de uma metodologia

    cartogrfica?

    2 Cartografias sociais

    As primeiras aproximaes cartogrficas advindas da geografia procuravam

    mostrar um mapa da cidade com uma srie de cones e smbolos, referindo-se

    aos conflitos relativos ao espao urbano, mas ainda de uma forma pouco

    expressiva, parecendo mapas escolares, com smbolos de atividadescotidianas, quase clichs5.

    Michel de Certau, em A inveno do cotidiano, afirma que a inveno vem se

    consagrando sobre todas as prticas do espao, nos modos de freqentar um

    lugar6, e seu interesse principal decifrar a lgica desta produo secundria,

    definida como as formas de usar e praticar o espao urbano, produzido

    oficialmente pelo mercado, pelo planejamento, pelos meios, etc. Seria como

    mapear a vida, as condies de vida e a constituio espacial em que resultam.

    4 Para Gilles Deleuze esse entretempo pode ser chamado de Aion, uma oposio ao tempo Chronos. Segundo Aion, apenas o passado e o futuro insistem ou

    subsistem no tempo. Em lugar de um presente que reabilita o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem a cada instante o presente, que o subdividem

    ao infinito em passado e futuro, em ambos os sentidos ao mesmo tempo. Ou melhor, o instante sem espessura e sem extenso que subdivide cada presente em

    passado e futuro, em lugar de presentes vastos e espessos que compreendem, uns em relao aos outros, o futuro e o passado. In: DELEUZE, G. (2000). Lgica

    do sentido. So Paulo, Perspectiva.

    5 Clich, lugar-comum, chavo, banalidade repetida com freqncia. Gilles Deleuze, afirma que o clich uma imagem sensrio-motora da coisa, ou seja, uma

    imagem fundada em princpios de ao e reao, e que ns no percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que

    estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interessa em perceber, devido a nossos interesses econmicos, nossas crenas ideolgicas, nossas

    exigncias psicolgicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichs in: DELEUZE, G. (1990). A Imagem-Tempo. So Paulo: Braziliense, 1990.

    6 DE CERTAU, M. (1996). La invencin de lo cotidiano 1. Ls artes del hacer. Mxico, Universidad Iberoamericana.

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    um bloco assimtrico, uma evoluo a paralela, npcias sempre

    'fora' e 'entre'" (DELEUZE e PARNET, 1998: 35).

    Paisagens psicossociais tambm so cartografveis. A cartografia urbana,

    nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o desmanchamento

    de certos mundos sua perda de sentido e a formao de outros: mundos

    que se criam para expressar afectos9 contemporneos, em relao aos quais

    os universos vigentes tornaram-se obsoletos. uma lgica rizomtica10.

    tarefa do cartgrafo dar lngua para afetos que pedem passagem, dele se

    espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e

    que, atento s linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem

    elementos possveis para a composio das cartografias que se fazem

    necessrias. Para Suely Rolnick: O cartgrafo antes de tudo um

    antropfago11.

    A prtica de um cartgrafo diz respeito, fundamentalmente, s estratgias das

    formaes do desejo no campo social. O que importa que ele esteja atento s

    estratgias do desejo em qualquer fenmeno da existncia humana que se

    prope perscrutar: desde os movimentos sociais, formalizados ou no, as

    mutaes da sensibilidade coletiva, a violncia, a delinqncia.

    Do mesmo modo, pouco importa as referncias tericas do cartgrafo. O que

    importa que, para ele, teoria sempre cartografia e, sendo assim, ela se

    faz juntamente com as paisagens cuja formao ele acompanha. Para isso, o

    cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia. No tem o menor

    racismo de freqncia, linguagem ou estilo. Tudo o que der lngua para os

    movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matria de expresso ecriar sentido, para ele bem-vindo. Todas as entradas so boas, desde que as

    sadas sejam mltiplas. Por isso, o cartgrafo serve-se de fontes variadas,

    incluindo fontes no s escritas e nem s tericas. Seus operadores

    9 Para Gilles Deleuze, no h perceptos sem afectos. Os afectos so os devires, so devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as foras.

    So potncias. In: BOUTANG, P. (1989). O Abecedrio de Gilles Deleuze. Paris, ditions Montparnasse, (transcrio de entrevista).

    10 Para Gilles Deleuze e Flix Guattari a definio de rizoma baseia-se em seis princpios: a conexo, a heterogeneidade, a multiplicidade, a ruptura com o

    significante, a cartografia e o desenho. In: DELEZE, G. e GUATTARI, F. (1997). Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. V.1. So Paulo, Ed. 34.

    11 ROLNICK, S. (2006). Cartografia sentimental: transformaes contemporneas do desejo. Porto Alegre, UFRGS.

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    conceituais podem surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um

    tratado de filosofia.

    O cartgrafo-arquiteto um verdadeiro antropfago: vive de expropriar, se

    apropriar, devorar e desovar, transvalorar. Est sempre buscando

    elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este o critrio de suas

    escolhas: descobrir matrias de expresso misturadas a outras, que

    composies de linguagem favorecem a passagem das intensidades que

    percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Alis,

    "entender", para o cartgrafo, no tem nada a ver com explicar e muito menos

    com revelar. Para ele, no h nada em cima-cus da transcendncia nem

    embaixo-brumas da essncia. O que h em cima, embaixo e por todos os lados

    so intensidades buscando expresso. O que ele quer mergulhar na

    geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua

    travessia: pontes de linguagem.

    Isso nos permite fazer mais duas observaes: o problema, para o cartgrafo,

    no o do falso-ou-verdadeiro, nem o do terico-ou-emprico, mas sim o do

    vitalizante-ou-destrutivo, ativo-ou-reativo. O que ele quer participar, embarcar

    na constituio de territrios existenciais, constituio de realidade.

    Implicitamente, bvio que, pelo menos em seus momentos mais felizes, ele

    no teme o movimento. Deixa seu corpo vibrar todas as freqncias possveis

    e fica inventando posies a partir das quais essas vibraes encontrem sons,

    canais de passagem, carona para a existencializao. Ele aceita a vida e se

    entrega de corpo-e-lngua.

    Para Ignasi de Sol-Morales, segundo Montaner e Prez (2003), Gilles

    Deleuze era um arquiteto, um arquiteto que se interessava pela multiplicidade

    dos pontos de vista, o entendimento dessa estrutura dobrada12 e a vontade de

    conhecer como desdobr-la. Pensamento em pensamento.

    12 DELEUZE, G. (2005). A dobra: Leibniz e o barroco. So Paulo, Papirus.

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    Sol-Morales13 d toda a importncia ao predomnio crescente das redes, das

    interconexes, dos fluxos energticos e das cartografias subjetivas, e abre o

    campo para uma arquitetura transparente em direes que divergem do

    compromisso da modernidade. Constri-se, assim, uma teoria de arquitetura

    liquida14 e fracas, que no se prope a substituir meramente o sombrio com

    elementos arquitetnicos transparentes, mas sim por elementos arquitetnicos

    que condicionem o espao arquitetnico, desde a iluminao e a temperatura

    at o seu mobilirio.

    Para Foucault, estas tticas tm sido inventadas, organizadas, a partir de

    condies locais e de urgncias concretas. Se tem realizado passo a passo,

    antes que a estratgia se solidifique em amplos conjuntos coerentes.15

    preciso pensar e agir de forma multidisciplinar, relacionando-se com outras

    disciplinas, como forma de no engessar ou fechar os olhares cartogrficos.

    Dessa forma, no estamos falando apenas de minorias na cidade, tribos

    urbanas, bandos, etc., mas tambm de cada segmento capaz de ser lido

    (polticos, trabalhadores, crianas, mulheres, etc.), um territrio atravessado,

    desviado e deformado por todas essas sociedades, secretas ou no,

    impossvel identific-las, porque quando se capturam j esto transformadas.

    So sujeitos ps-modernos16, descentrados, so mltiplas identidades.

    4 Cartografias urbanas

    Podemos reconhecer historicamente os principais paradigmas metodolgicos

    da modernidade e da ps-modernidade quanto s distintas vises que vm

    existindo sobre a cidade e suas lgicas de interveno, em dois grandesmomentos recentes: o primeiro sobre as concepes ideolgicas associadas

    13 Sol-Morales utiliza a palavra topografar, no lugar de cartografar ou mapificar, referindo-se mais a representao da base de um mapa. A base topogrfica

    inclui as idias filosficas e o pensamento vigente, pode-se dizer que a cartografia seria uma complementao das representaes tradicionais (linhas de transporte,

    construes, etc.). Sol-Morales foi um dos tericos da arquitetura e urbanismo que, por sua formao em arquitetura e filosofia, deu incio as cartografias

    multidisciplinares.

    14 BAUMAN, Z. (2007). Vida lquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

    15 FOUCAULT, M. (1980). El ojo del poder. Entrevista com Michel Foucault. In: BENTHAM, J.: El Panptico. Barcelona, Ed. La Piqueta.

    16 HALL, S.(1997). A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A.

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    ao discurso do movimento moderno sobre a arquitetura e a cidade durante a

    primeira metade do sculo XX. Este paradigma se funda sobre a concepo

    racional-funcionalista da cidade, reducionista e sistemtica. Sua base

    ideolgica se constri basicamente a partir de trs aspectos: o acelerado

    desenvolvimento da cidade industrial e as grandes migraes do campo para a

    cidade; a influncia das vanguardas histricas da arte tais como o futurismo,

    cubismo, purismo e o suprematismo; e a necessidade de fazer uma limpeza

    geral nos costumes gerados pela vida urbana dos sculos XVII e XIX, que

    impediam a real eficcia do sistema produtivo da cidade e seus crescentes

    fluxos econmicos e sociais.

    O segundo perodo surgiu pelos anos 50 ( produto, entre outros, da aplicao

    do modelo urbano anteriormente citado), a chamada crise do projeto moderno,

    acontecida devido a uma serie de reaes crticas s concepes ideolgicas e

    espaciais do urbanismo moderno para a qual a experincia urbana de seus

    habitantes e da rua se resumia a parmetros objetivos e cientficos. Entre as

    correntes crticas, podemos citar os situacionistas17, Jane Jacobs, Henri

    Lefebvre, Archigram, etc. Movimentos esses que faziam duras crticas

    (reivindicando a diversidade das ruas e as questes polticas envolvidas)

    atravs da teoria do projeto ou de um modelo urbano qualificado, impositivo e

    autoritrio.

    evidente que o paradigma racional-funcionalista da cidade reconhece as

    prticas urbanas e suas anlises, mas s sabe reduzi-las a rgidos parmetros

    funcionais, utilizando como principal instrumento o zoneamento18.

    Por outro lado, o que se prope aqui, como cartografia urbana, um

    complemento a essas teorias e surge como uma crtica ao urbanismo moderno

    dos anos 70, uma aproximao experimental das anlises da realidade

    urbana, dos acontecimentos seria o poder soberano e a vida nua de Giorgio

    17 O situacionistas, nascem em Londres no ano de 1957, referindo-se a um Marx despojado de seus comentrios e explicaes, a anarquia acabando por

    reinventar certas formulas surrealistas, transportadas para um contexto sociopoltico. Recusando qualquer formulao ideolgica, o movimento procurou ilustrar,

    atravs de certas situaes, a alienao da sociedade contempornea.

    18 Como os propostos por Kevin Lynch e outros. Ver mais em: LYNCH, K. A imagem da cidade. So Paulo, Martins Fontes.

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    Agamben19 e tem como referentes metodolgicos as seguintes linhas de

    pensamento:

    A filosofia da diferena20 e o ps-estruturalismo, em especial proposto

    por Gilles Deleuze, Flix Guattari, Michel Foucault, Jacques Derrida e

    Michel de Certau.

    Anlises situacionistas propostas por Guy Deborb e os Situacionistas.

    A anlise polemolgica21 das prticas proposta por Michel de Certau.

    Os processos levados a cabo por artistas visuais, imersos no chamado

    giro etnogrfico das artes (Hal Foster), tais como Gordon Matta-Clark,

    Vito Acconci, Krzysztof Wodiczko,,Rakowitz, etc.

    Diversos campos das artes visuais, a etnografia e os estudos culturais,

    as ferramentas visuais a partir da fotografia e das imagens flmicas22.

    Os estudos sobre representao como ferramenta de concepo

    espacial proposta pelo arquiteto Stan Allen23.

    uma espcie de micro anlise do ambiente urbano. A anlise tradicional

    estruturalista nasce no campo da lingstica, e tem sido criticada por seureducionismo e sua historicidade. A anlise ps-estruturalista, proposta na

    cartografia urbana, prope uma aproximao que no trabalha a partir de

    modelos preestabelecidos (dedutivos) ou de casos definidos (indutivos): um

    pensamento que se confronta com foras exteriores em lugar de recorrer a

    19 AGAMBEN, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, UFMG.

    20 A Filosofia da diferena busca dar voz diferena para instaurar novos ngulos e perspectivas do real, uma nova imagem do pensamento (Gilles Deleuze).

    21 Polemologia o estudo da guerra considerado como fenmeno sociolgico (do grego polemos, guerra + logos, estudo). Tem como mote de discusso a

    polmica, o debate e a controvrsia.

    22 No mundo da arte moderna, a representao da experincia cotidiana surge com fora a partir dos anos 20 com as correntes dadastas e posteriormente com a

    arte conceitual. Atualmente formatos como o vdeo-arte, o cinema e a fotografia tem se concentrado em capturar a realidade cotidiana, a expressa-la. A idia

    utilizar tcnicas de representao que buscam capturar o real, a experincia, passando por uma espcie de desaprendizagem, de desfazer juzos e valores, talvez at

    mesmo de desrepresentar das cargas conceituais contidas nas mesmas.

    23 Stan Allen se utiliza de projees axonomtricas em oposio a projees perspectivadas. Enquanto a perspectiva centra toda a realidade em um ponto de fuga,

    a axonometria desenha um espao infinito mediante a projeo de linhas paralelas. Allen analisa amplamente estas diferenas, a partir de referencias suprematistas

    como as de El Lisstzky. Na axonometria no existe ponde de fuga fixo. Nascida de tcnicas industriais e cientificas, a axonometria na arquitetura mapea uma

    estranha condio visual, dinmica e j no esttica como o ponto de fuga. In: DE STEFANI, P. (s/data). Practicas Cotidianas: algunos instrumentos para un

    estudio acerca de las ltimas transformaciones de la vida urbana. (no publicado).

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    uma forma interior24. Diante disso, colocamos em dvida os juzos, as

    identidades, os reducionismos e as casualidades.

    Sendo assim, a cartografia no se configura como um mtodo tradicional, uma

    maneira de proceder que no se procede, sem antes modificar sua prpria

    natureza. Esse um dos principais instrumentos que constituem a cartografia

    urbana. Como um mtodo do anti-mtodo vem a se metodologizar como um

    mtodo. Um mtodo dinmico, constitudo de infinitas linhas que se cruzam, de

    dobras, desdobras, de territrios, desterritrios e reterritrios.

    possvel construir mapas que nos falem de muitas cidades no visveis, que

    convivem com as nossas cidades, mapas que nos falem da vida cotidiana em

    que vivemos, dos caminhos, dos eventos urbanos, daquilo que no s

    esttico, que no est cheio, do simultneo, do hbrido, do que pode estar

    margem, do que no central, de tudo que est soterrado, abandonado nos

    lugares fsicos e espaciais nas cidades em que vivemos?

    Nos ltimos anos, tm emergido reflexes, como as de Rem Koolhaas e

    Stefano Boeri, sobre como se comporta a contemporaneidade na cidade. Como

    diz Boeri (KOOLHAAS, 2000), entre a homogeneizao estabelecida pelamundializao e as especificidades locais tm surgido uma situao urbana

    comum, evidente nas cidades latino-americanas, que vem modificando a

    concepo tradicional de cidade25. Uma situao que nasce da alterao

    relacional entre o espao urbano e seus indivduos, resulta numa dinmica das

    cidades. Essa dinmica diferente em cada cidade ou lugar. uma dinmica

    fragmentada.

    Emerge dessa problemtica atual e contempornea uma estratgia deobservao territorial, capaz de complementar e enriquecer as que

    conhecemos habitualmente. O desafio criar nossas prprias dobras

    24 DELEZE, G. e GUATTARI, F. (1997). Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo, Ed. 34.

    25 Podemos destacar que a cartografia urbana a que nos referimos nasce na Espanha e Europa (ver em: http://cartografiaurbana.blogspot.com,

    http://www.aparienciapublica.orge http://www.territorios.org), vindo para a Amrica do Sul e Estados Unidos. Na Amrica do Sul podemos destacar trabalhos de

    cunho cartogrfico no Chile e Uruguai (ver em: http://cartografiaurbana.blogspot.com e http://www.aparienciapublica.org), e algumas experincias recentes no

    Brasil (ver em: http://cartografiasdoprojeto.blogspot.com, http://www.arquiteturasdoabandono.org, http://projetosantavitoria.blogspot.com e

    http://www.territorios.org).

    http://cartografiaurbana.blogspot.com/http://www.aparienciapublica.org/http://www.territorios.org/http://cartografiaurbana.blogspot.com/http://www.aparienciapublica.org/http://cartografiasdoprojeto.blogspot.com/http://www.arquiteturasdoabandono.org/http://projetosantavitoria.blogspot.com/http://www.territorios.org/http://www.territorios.org/http://projetosantavitoria.blogspot.com/http://www.arquiteturasdoabandono.org/http://cartografiasdoprojeto.blogspot.com/http://www.aparienciapublica.org/http://cartografiaurbana.blogspot.com/http://www.territorios.org/http://www.aparienciapublica.org/http://cartografiaurbana.blogspot.com/
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    conceituais emergentes em outros contextos, em outras margens disciplinares

    ou envolvidas em outros tempos.

    A perspectiva contempornea que se busca a de experimentar um lugar, com

    olhares laterais, pelas frestas, que tendem a diminuir a distncia entre o

    observador e o observado, habilitando, assim, uma espcie de mediao

    subjetiva e circunstancial durante a aproximao ao territrio cartografado.

    Olhares que indagam as correspondncias entre espao e sociedade, que

    busquem cdigos dessas dinmicas cotidianas, que realizem uma releitura da

    paisagem, muito alm de seu valor fsico, mas como um rico e complexo

    processo de transversalidades e transies.

    Olhares que resultem capazes de apresentar um quadro de multiplicidades,

    que coloquem em cheque a arrogncia de um paradigma tradicional, como o

    nico capaz de realizar aproximaes para o conhecimento e a projetao das

    cidades.

    Alguns pontos so de suma importncia para a compreenso do que pode se

    nomear como uma cartografia urbana26:

    Cartografia passa a ser entendida como um mapa vivido, no qual o

    territrio no est representado como um substrato mineral contnuo,

    nem estvel, mas sim como inter-relaes de configuraes mltiplas,

    reversveis, que acabam por no compartilhar de um mesmo quadro

    temporal (KOOLHAAS, 2000).

    Cartografia uma metodologia experimental, em cuja essncia no est

    a validao ou a reprovao de uma situao, mas sim a possibilidade

    de fazer visvel o no visvel, de habilitar outros possveis cenrios,

    buscando estruturas de vnculos latentes, em dimenses nem sempre

    questionadas pelas cartografias habituais, como o no estvel, o frgil, o

    simultneo, o multidimensional, o no central, o no formal, o no pleno,

    26 ROUX, M. (2005). Cartografias urbanas. Montevidu, FArq, (projeto de pesquisa).

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    o que aparece segregado, aquilo, s vezes, soterrado, o abandonado

    que tambm cidade e que reclama, grita, aproximaes.

    Cartografia como mapa aberto, conectvel em todas as suas

    dimenses, desmontvel, altervel, susceptvel de receber

    constantemente modificaes (DELEUZE e GUATTARI, 1997).

    Cartografia capaz de habilitar a fresta, o rasgo, especular outras

    plataformas. Capaz de desapontar certezas, trocando o lugar de onde se

    formulam as perguntas, entendendo que descrever de outra maneira a

    realidade comear a antecip-la, a imagin-la, a projet-la.

    Cartografia capaz de gerar chaves interpretativas para ler os vestgiosda cultura e da sociedade no espao urbano. Chaves de leitura

    geoculturais para reconhecer as novas narrativas urbanas das cidades

    contemporneas. Estratgias que operam nas margens dos campos

    disciplinares e abertos contaminao conceitual. Tticas escorregadias

    que escapam as leituras economicistas e planificadoras da cidade

    oficial.

    Um trabalho de cunho cartogrfico aposta em novas janelas de

    observao e desenho que habilitem assumir uma cidade e suas

    condies urbanas e territoriais a partir das condies do ambiente.

    Esse ambiente visto como uma sobreposio de condies: fsicas,

    sociais, econmicas, culturais, histricas, ecolgicas, climticas, entre

    outras. Cada uma das eventuais condies reconhece curvas

    diferenciais em cada poro de urbanidade.

    Questionar essas dimenses dos ambientes da cidade supe desmembrar os

    modos em que ela se conforma, permitindo a construo de relivies27, e do que

    frgil e vulnervel, das misturas e mutaes, dos tempos e velocidades, do

    singular, do cinza, do acessvel e do segregado, das densidades acumuladas,

    do informal, do central e do perifrico, do pblico e do privado. O resultado so

    27 Relive, do ingls, quer dizer reviver, voltar a vida, recordar trazer a lembrana.

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    categorias que no so estanques em nossa contemporaneidade urbana.

    Fluem.

    5 Cartografias urbanas, e agora?

    A cartografia urbana busca descobrir essa outra cidade, a cidade complexidade

    e contradio28, a cidade fragmento, a cidade collagede Colin Rowe e Fred

    Koetter 29. So cidades dentro de cidades e assim por diante.

    A cartografia urbana um mtodo que se faz para cada caso, cada grupo,

    cada tempo e cada lugar. Podemos registrar essa cartografia urbana atravs

    de desenhos, fotografias, filmes, cadernos de campo, exerccios artsticos,

    sons, etc. quaisquer formas de expresso que possibilitem avanar no

    exerccio do pensar.

    A cartografia urbana ou mapa da realidade no devem ser entendidos, em seu

    sentido literal, como a representao grfica e bidimensional do espao fsico.

    A cartografia, por certo, compreende mais que isso, ou seja, ela um modo de

    ao sobre a realidade, um modo prximo a uma ttica. A cartografia urbana

    um mapa que prope o enfrentamento com o real, despojando-se com as

    mediaes a partir de modelos preconcebidos. Destroem-se clichs.

    Deleuze e Guattari enfatizam que a diferena entre o desenhar de um mapa e

    uma cartografia: que o desenho do mapa sempre reproduz algo que por

    ao, toma os modelos e os sistemas institucionais como se fossem a

    realidade e os sobrepe sobre a cidade, adaptando-os. A cartografia, por outro

    lado, no funciona por regras exteriores ou situaes30, sem desinteressar-se

    pelos modelos teis de sempre. A cartografia no se adapta a esses modelos,

    mas sim os deforma continuamente para dar voz a essas manifestaes

    minoritrias.

    28 VENTURI, R. (2004). Complexidade e Contradio em Arquitetura. So Paulo, Martins Fontes.

    29 ROWE, C., KOETTER, F (1978). Ciudad Collage. Barcelona, Editorial Gustavo Gili.

    30 DELEZE, G. e GUATTARI, F. (1997). Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. So Paulo, Ed. 34.

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    impossvel mapear ou cartografar todas as prticas, sensaes e

    sentimentos da vida urbana cotidiana da cidade, mas possvel dar voz

    aquelas que pedem passagem. Nosso mapa rico de caminhadas, campinhos

    de futebol, cachorros de rua, camels, bicicletas, conversas, personagens,

    eventos, acontecimentos e lotadas de micropolticas. Desvios de sentido,

    transformaes segundo outras lgicas. Todas essas experincias

    potencializam nosso pensar e so passveis de transformaes mediante

    operaes concretas: planificaes urbanas.

    Nesse momento, tenho a impresso, talvez errnea, de que existe um grande

    entusiasmo em quem investiga e produz estes novos meios de expresso e, ao

    mesmo tempo, h um certo desinteresse dos grupos que se beneficiam do que

    produzido. Digo isso baseado em minhas experincias cartogrficas e

    acredito ser essa uma questo a ser resolvida, o quanto antes.

    Estou convencido, porm, de que a paixo desses exploradores urbanos no

    est infundada, porque sabemos que estas tecnologias guardam

    potencialidades, futuros poderes para aqueles que as dominam, ou melhor,

    para aqueles que se deixam afectar por elas.

    Finalmente, esta proposta de cartografia urbana orientada a incentivar a

    produo de novos instrumentos de concepo espacial, cada cartografia

    urbana uma cartografia que se utiliza de tticas diferentes, com isto

    queremos dizer que possvel introduzir modificaes substantivas nos

    processos de projeto e, at mesmo, no projeto. Vamos potencializar o

    pensamento de projeto de arquitetura e urbanismo, vamos fazer o pensamento

    pensar.

    6 Referncias Bibliogrficas

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