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Carvalho - Epistemologia das Ciências da Educação

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Adalberto Dias de Carvalho

EPISTEMOLOGIA DAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

3.a edição refundida

Edições Afrontamento 1996

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Título: Epistemologia das Ciências da Educação Autor: Adalberto Dias de Carvalho © 1996, A. Dias de Carvalho e Edições Afrontamento

Edição: Edições Afrontamento / R. Costa Cabral, 859 / Porto N.° de edição: 583 Gravura da capa: Fragmento de quadro de Peter Tillberg (1972) Colecçao: Biblioteca das Ciências do Homem / Sociologia, Epistemologia / 7 ISBN: 972-36-0407-8 Depósito legal: 100967/96

Impressão e acabamento: Rainho & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira

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Ao Prof. J. Ferreira Gomes

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PREFACIO

A obra que Adalberto Dias de Carvalho agora publica sobre a epistemologia das ciências da educação é o fruto de toda uma inves­tigação de que tive a oportunidade de ser testemunha, por vezes próxima, por vezes longínqua. Foi uma identidade de preocupações que me fez encontrar o autor em 1981. Desejava ele, então, conhecer por dentro a investigação francesa, tendo em vista a realização de um trabalho sobre o estatuto e o papel da filosofia no seio das disciplinas cujo objectivo se estende, entre outros domínios, ao da educação. Nessa época, o nosso grupo de trabalho, cujo eixo de pesquisa se define fun-damentalmente pelas relaçõesentre a personalização e as mudanças sociais, estava vivamente preocupado com_ o abandono da pedagogia em proveito das ciências da educação. Aquela, integrando os contributos da filosofia e das ciências positivas (biologia, psicologia, sociologia, etc), conferia unidade e identidade à investigação educacional. Cons­tatávamos que com as ciências da educação, pelo contrário, a inves­tigação se dispersava por sectores mutuamente isolados, se desenvolvia segundo dinâmicas epistemológicas diferentes, e se limitava a descrições mais ou menos explicativas sem nunca se prolongar em ciências da acção educativa. Quando Adalberto Dias de Carvalho começou a relacionar-se connosco, os nossos trabalhos debruçavam-se sobre a possível especificidade e as características de um sistema epistemológico que permitisse enquadrar a investigação e avaliar os conhecimentos respeitantes ao domínio educativo. Ele integrou-se na nossa equipa, onde, durante um ano, desempenhou um papel particularmente activo, papel de que são expressão várias das suas publicações citadas no decurso deste livro. Uma tal colaboração, que, sem dúvida, o ajudou a

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precisar a sua sistematização, enriqueceu consideravelmente o nosso grupo. Eis a razão porque ela continua ainda, e sempre, tão frutuosa.

A presente obra, consagrada à epistemologia das ciências da educação, aparece como uma autêntica síntese onde se entrelaçam, numa construção sólida e ricamente urdida, a cultura do autor — que é vasta -, os ensinamentos de que beneficiou no intercâmbio de idéias com os nossos colegas portugueses, e os materiais que a sua perma­nência em França lhe permitiu recolher._A problemática sobre a qual se constrói o desenvolvimento testemunha„um esJor£o_çonstgjaí£^42axa realizara unidade da epistemologia e daaxiologia. Não lhe basta, com efeito, interrogar-se sobre a origem, a estrutura, os métodos e a validade do que sabemos ou proclamamos em matéria de educação: o autor quer extrair daí o sentido na sua relação com os valores e com a pessoa humana. Ao^jitjuar^g^JUosofiano centro da suaj>esgiúsa^rej>ortgrse quase que incessantemente ji estes problemas de sentido. Tudo se enraíza na filosofia, tudo aí regressa depois das tentativas mais ou menos infelizes que muitos fizeram para dela se afastarem, pois, para se renunciar à filosofia tem de se renunciar ao homem. Estas tentativas, e as ilusões de que elas procederam ou que elas mesmas engendraram, são aqui analisadas com rigor e objectividade: a autonomização das ciências humanas, com a miragem fisicalista que numa primeira fase as guiou, a sua extensão ao domínio educativo e a ilusão de uma perspectiva estritamente científica dos problemas que aí se levantam, a difusão que se segue, a perda de identidade que daí resulta, a aspiração a uma reunificação que a crise provoca, tudo isso surge metodicamente examinado.

Se a constituição de uma ciência específica da educação pode ser considerada, ela deverá integrar no seu objecto e na sua problemática própria todas as contribuições cujo objecto são os problemas da edu­cação. Eis que a filosofia se revela aqui como uma componente essencial. Numa época como a contemporânea em que são os próprios fundamentos da nossa civilização que são postos em causa, o autor empenha-se ao máximo em mostrar a importância desta componente para uma renovação educacional. Sem a filosofia, permanecem impenetráveis os grandes problemas que lhe compete, senão resolver, pelo menos eluci-

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dar: os princípios e os fins, os modelos, a directividade e a liberdade, os valores, as relações entre a tradição e a inovação, a dialéctica da ruptura e da continuidade, o sentido da existência e do devir, o projecto... Poder-se-ia considerar este o ponto culminante da obra; pelo nosso lado, vemos aí sobretudo uma nova partida. Mais exactamente, os problemas surgem de novo pois com a filosofia é a pessoa humana que emerge, pessoa que, nesta obra, está sempre presente emfiligrana. Não será indiscrição revelar-se que o autor tem actualmente como tema das suas investigações «a pessoa como modelo dos projectos educativos». Neste livro chega mesmo afazer algumas referências aos processos de personalização cujo estudo começou já a empreender. Adalberto Dias de Carvalho foi autor de duas importantes comunicações por altura dos nossos colóquios anuais: numa, em 1985, precisamente sobre a noção de pessoa, propõe «um outro olhar filosófico e educativo»; numa outra, em 1986, confronta os conceitos de projecto e de utopia pedagógica.

Estes trabalhos preliminares fazem crescer a nossa impaciência. Entretanto, antes de se comprometer na questão de fundo que vai certamente suscitar uma interrogação filosófica permanente deformas múltiplas, Adalberto Dias de Carvalho tinha de se pronunciar sobre a epistemologia das ciências da educação e, em particular, sobre o estatuto da filosofia da educação. É agora uma obra feita e bem feita.

Que o autor seja felicitado pela maneira como a fez. Pelo nosso lado, agradecemos-lhe todos os contributos que o seu livro traz.

Louis Not

Professor Emérito da Universidade de Toulouse-le Mirail

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INTRODUÇÃO À 3." EDIÇÃO

As questões epistemológicas clássicas levantadas sobre as ciências da educação remetem invariavelmente para a confrontação do seu estatuto com o das ciências tradicionais enfermadas pelos cânones experimenta-listas e quantitativistas. Trata-se, no fundo, de problemáticas decorrentes de uma epistemologia, ela mesma, indexada ao paradigma positivista.

Nas ciências da educação - numas mais do que noutras - inven­tariam-se, então, as fragilidades - os desvios - que uns consideram superáveis, outros incontornáveis e estigmatizantes, outros, ainda, bem--vindos apesar de inultrapassáveis. Tudo sempre, porém, no espaço de uma reconhecida marginalidade científica que, como se vê, ora é repudiada, ora é saudada no seu próprio efeito transgressor.

Esta situação conduz invariavelmente a uma interrogação central que nunca deixa de ser retomada: assiste-se à confirmação da decadência do projecto que as ciências da educação em si representam ou verifica--se apenas que elas enfrentam um inevitável confronto com a sua igualmente inevitável imaturidade? Dentro de que medida é que a persistência de uma indefinição estatutária está implícita na especifici­dade destas ciências ou, mesmo que tal não seja sustentável, até onde ficarão elas indelevelmente condicionadas pela crise - conjuntural? -que actualmente as influencia?

Mas, hoje em dia, a tendência é para o abandono de um certo formalismo epistemológico assente na coerência de axiomáticas e de discursos para, sobretudo, se avaliar o processo percorrido pela inves­tigação educacional em função de critérios éticos ou pragmáticos. De alguma maneira, assiste-se a um retrocesso dos estritos juízos epistemológicos em favor de abordagens de validação de pendor fun-

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djmentalmente filosófico e cientifico mas em que predomina, de um modo ou de outro, a perspectiva antropológica. Mais do que a verifi­cação tradicional da verdade ou, pelo menos, para além dela, perscruta--se a intencionalidade condicionadora dos actos e a utilidade destes. A este propósito, Michel Tozzi identifica o jogo, muitas vezes tumultuoso e contraditório, entre uma lógica epistemológica, uma lógica pragmá­tica e uma lógica axiológica. A primeira, Vernetendo para_iüanos do conhecimento, a segunda, da eficácia e a terceira, do sentido e dos valores.

Parece-nos que aquela que é referenciada como uma lógica epistemológica faz sobretudo parte da fase narcísica das ciências da educação em que estas, com a preocupação de seautolegitirnarem np seio da comunidade científica, procuraram velar principalmente pelo cumprimento dos requisitos impostos para o seu reconhecimento pelas elites do saber e do poder. Tudo isto na convicção de que, uma vez conquistado o estatuto científico, haveria todas as condições para se partir à conquista de uma realidade educativa descodificada e domes-ticada pelo conhecimento de uma educação entretanto convertida em objecto de estudo. Tudo isto, portanto, ainda no quadro de uma ideolo­gia da dominação através do saber.

Assiste-se, porém, no espaço do mundo contemporâneo, ao desve-lamento de algumas rupturas decisivas relativamente aos fundamentos da razão científica clássica, as quais inviabilizaram os paradigmas de referência tradicionais e, com eles, os principais modelos constitutivos das ciências da educação. Reportamo-nos, muito concretamente, aos modelos onto-antropológicos da natureza, da razão, da produção e do sujeito tal como foram inventariados por J. B. Paturet no estudo de sua autoria incluído no trabalho UAnnée de Ia Recherche en Sciences de l'Éducation/1995. A sua crise acarretou o definhamento de uma natureza humana assediada pelo poder tecnológico, o colapso de uma razão tida enquanto fundamento da concepção de um sujeito livre e autônomo e o abandono da idéia de um homem autocriador de si e da sua própria história. Ao mesmo tempo, põe-se em causa a desresponsabilização do sujeito como produto de forças inconscientes. É, afinal, a decadência do racionalismo e do optimismo que, desde as Luzes, alimentava todas as teleologias da aventura humana, a qual dá lugar aos jogos da incerteza e da imprevisibilidade com que se defrontam as intencionalidades dos

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sujeitos. De sujeitos renovados que reassumem a responsabilidade das suas decisões perante os outros quer estes se situem nos horizontes do espaço, quer apareçam, ou possam aparecer, na linha do tempo. Sobre as ilusões e, sobretudo, sobre as contradições do estruturocentrismo, vemos instalar-se o interaccionismo que, cada vez mais, vai valorizar os processos da representação e da intencionalidade no âmbito de con­textos e de situações que consagram, na sua objectividade, os projectos e as culturas dos sujeitos envolvidos.

A partir daqui colocam-se algumas questões decisivas e que têm a ver com a definição das funções das ciências da educação, nomeada­mente, em relação aos referenciais da compreensão/explicação do real e da decisão/acção sobre o mesmo. Cada um deles tende a esgotar-se em si próprio sendo assim difícil encontrarem-se as pontes que poderão unir as preocupações e objectivos específicos que os particularizam. Importará, por exemplo, saber dentro de que medida é que a capacidade de distanciamento do concreto implicada no acto do conhecimento serve ou não a percepção da complexidade das interacções nos momentos da prática e também o contrário, ou seja, dentro de que medida o compro­metimento na acção constitui um estímulo, uma crítica e uma orientação para a pesquisa. Ajnvestigação-acção apresenta-se, neste debate^ como uma proposta conciliadora e superadora das persistentes oposições entre a teoria e a prática, a explicação e a compreensão, não sendo ainda, porém, evidente a sua afirmação enquanto metodologia científica coe­rente e conseqüente, talvez mesmo em função da multirreferencialidade da sua lógica interna, a qual oscila, na sua fluidez, entre os parâmetros ideológicos e os pragmáticos e axiológicos.

Consciente da especificidade da investigação educacional, exclamou prudentemente G. de Landsheere: «Uma ciência pura, a educação não o será nunca, pois a complexidade humana escapa ao determinismo»! Todavia, logo de seguida adverte também que tal não poderá justificar um abandono ao acaso da inspiração, ao bom senso ou à tradição. Extremo tão criticável quanto o outro, de pendor positivista, que, em última análise e em conseqüência das suas preocupações centrais de explicação e previsão, levará à subalternização das finalidades, das intenções e das motivações que constituem a própria identidade humana. Ora é exactamente por aqui que irrompem as pesquisas herme­nêuticas e ideográficas.

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É neste contexto também que a pedagogia reaparece no panorama educacional contemporâneo com uma importância acrescida e, com ela, a revitalização de uma matriz axiológica. Só que no actual espaço epistémico esta lógica não se pode impor, sem mais, às duas outras enunciadas por Tozzi. Tem antes de com elas dialogar e, através delas, exercer o seu protagonismo. Por outras palavras, não se trata de impor um quadro normativo como acontecia com a pedagogia tradicional de pendor moral, mas não se trata mais também de, dentro de uma abstracta coerência epistemológica, erguer uma pedagogia científica com o sacrifício artificial da questão dos valores. Não se trata ainda de, sob o peso das exigências de uma acção definida por critérios exclusivos de rendibilidade dos processos de ensino-aprendizagem e de utilidade social dos comportamentos, se proclamar a emergência de determinadas tecnologias educativas e até de uma pedotecnia como o pretendia, por exemplo, Raymond Buyse.

Nos nossos dias reconhece-se, por razões de sobrevivência que se antecipam a quaisquer outras, a absoluta necessidade de se desenvol­ver uma solidariedade pragmática que, a todos os níveis, garanta a (co)existência enquanto condição da convivência e da solidariedade. E assim que a dimensão ética da pedagogia, a eticidade pedagógica, exige o conhecimento e o reconhecimento do outro - humano, social, cul­tural, temporal e natural - no acto da essencial partilha do usufruto da existência e do sentido da vida, inclusive por razões de cariz individual. Esta é, de alguma maneira, a ego-ecocidade de que falam alguns autores.

Mas, ao mesmo tempo que a educação escolar se abre à pedagogia enquanto esta, perante os relativos fracassos das ciências da educação, é sustentáculo da coerência do discurso e da acção, eis que, num registo algo diferente, profundamente dominado pelas regras do consumismo comunicacional, se desenvolve, segundo os termos de Jacky Beillerot, achamadapedagogiadocedasociedadepedagógica global. Curiosamente aqui odiálogo da pedagogia faz-se não com as ciências da educação em particular mas com as ciências sociais e humanas em geral, acabando aquela por freqüentemente se confrontar com as práticas do marketing em particular e de tecnocomunicação em geral. Assim, a informação -e não tanto a comunicação - lida com os seus destinatários muito mais enquanto objectos de uma acção modeladora do que como sujeitos autônomos capazes de iniciativas próprias. Isto, pese embora a cir-

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cunstância de algumas das actuais correntes do marketing advogarem precisamente a valorização prioritária das apetências e das motivações originais dos sujeitos em função das quais propõem que sejam concebidos os produtos e não o inverso. Simplesmente, a perspectiva do consumo e do seu incremento continua a ser a orientadora das decisões que pre­sidem à definição das estratégias de intervenção. Por outras palavras, o ser humano é delineado como sujeito apenas enquanto tal potência e melhor suporta programas de produção e campanhas de promoção cujo fim último não é tanto o homem, entendido como ser a desenvolver por si mesmo, mas, antes de mais, enquanto ele e os seus projectos podem ser utilizados para a consumação de objectivos que, à partida, o condicionam e ultrapassam. Isto é, a pedagogia é reduzida à sua dimen­são de metodologia e de tecnologia da acção ficando, portanto, despo­jada de finalidades e princípios educativos, entretanto substituídos por objectivos de mercado.

Estes aspectos têm de ser tidos em conta pela comunidade cientí­fica na medida em que, apesar dos eventuais desvirtuamentos de uma intencionalidade pedagógica autêntica que os deveria caracterizar e que sucintamente identificámos, a verdade é que, no seu todo, o espaço cultural e social de referência daqueles projectos representa hoje em dia, tendencialmente, um cenário educativo por excelência mas que permanece ignorado pelas ciências da educação. Para além de razões de ordem institucional, importa constatar que esta situação é de alguma maneira uma herança de quadros epistémicos anteriores em que a ordem científica reinante impôs a delimitação do objecto da investi­gação dentro dos parâmetros escolares onde as variáveis se tornavam mais facilmente controláveis e manipuláveis. Trata-se, no fundo, de um fenômeno algo semelhante àquele que levou os antropólogos a circunscreverem as suas pesquisas a ilhas do Pacífico por pensarem que aí encontravam autênticos laboratórios culturais - civilizações primitivas, sem história e fechadas - limitados pelas águas imensas do oceano.

No caso concreto da educação, começou, quando muito, a admitir-se o papel subsidiário da sociedade global, da escola paralela, mas sem se lhe reconhecer em termos práticos uma identidade e uma autêntica personalidade educativa. Daí que o terreno tenha ficado amplamente disponível para as ciências sociais e humanas, para as ciências da

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comunicação, para apraxis política e para o senso comum em geral. Tal quando a escola, mais do que abrir-se ao meio, perde mesmo histo­ricamente a centralidade formadora que detinha.

No nosso entendimento, é precisamente aqui que as ciências da educação enfrentam em toda a linha o desafio das suas próprias limitações e contradições.

Em primeiro lugar, olhadas elas mesmas como ciências da comu­nicação, do comportamento ou da planificação, conforme a educação é reduzida a uma ou outra destas perspectivas, eis que a sua premência e especificidade ficam rapidamente à mercê das próprias flutuações da natureza do seu objecto. Quando se passa para o campo alargado da sociedade educativa, então, o terreno da investigação educacional é de imediato retomado pelas ciências sociais e humanas e ainda por tecno­logias da acção publicitária ou propagandística apoiadas em estudos científicos conduzidos pelas primeiras, muitas vezes independentemente das suas aplicações subsequentes.

O já referido desnorteamento com que se deparam as ciências da educação diante do alargamento e até deslocamento do seu tradicional objecto de estudo deixa-as ficar sem um horizonte objectual estável e facilmente reconhecível que, de um modo algo artificial, elas haviam tentado impor a si mesmas como resultado dos paradigmas de cienti-ficidade adoptados. Torna-se patente a vulnerabilidade do seu vínculo institucional - caucionador dos seus pressupostos epistemológicos -bem como a dificuldade em assumir-se numa efectiva transversalidade interdisciplinar. Quanto ao primeiro ponto, recorde-se que foram as instâncias universitárias as grandes responsáveis pela definição da peculiaridade objectual - e metodológica - das ciências da educação. Verifica-se agora que essa estrutura não resistiu ao assédio das dinâmi­cas sociais e culturais. Por seu turno, as propaladas inter e transdis-ciplinaridade destas ciências, quando confrontadas com a reinvestida totalizante de disciplinas matriciais, como a sociologia e a psicologia, experimentam grandes dificuldades em alcançar uma horizontalidade dialógica de estatutos ficando assim ameaçadas de ver diluir a sua organização interna. Sente-se exactamente a falta de uma unidade objectual suficientemente polarizadora e aglutinadora.

Por último, torna-se impossível continuar a iludir a problemática daj~elação das c i ê n d a ^ ^ e ^ c a ç ã o c o m o senso comum, sobretudo

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quando conjugamos criticamente o declínio dos projectos de cientifici-dade objectivista com o recuo das ideologias. Na realidade, os primeiros acabaram por revelar uma incomoda familiaridade com estas quando se torna patente que, em ambos os casos, subsiste o princípio de um optimismo militante em relação ao futuro e à evolução que, longe de ser objectivo, é resultado das grandes narrativas que enformam, de uma só vez, os mitos do progresso e as escatologias.

No caso concreto das ciências sociais, tal como nos elucida Boutinet, o optimismo que herdaram da razão triunfante das ciências da natureza tê-las-á levado a pensarem poder engendrar ortopraxias através das próprias ortodoxias. Todavia, a realidade mostra-se renitente a estes processos de domesticação do real pondo a claro que as conexões entre a teoria e a prática não se submetem nunca a uma mera lógica da aplicação. Isso verifica-se quer a nível da organização e funcionamento das sociedades quer na perspectiva da sua evolução e, portanto, do seu futuro que escapa aos sistemas de previsão e planificação. Por fim, a crise das ideologias leva ao reforço do seu papel legitimador a posteriori em prejuízo da sua capacidade para conduzirem as acções por mediação das condutas militantes.

Porém, quando Feyerabend, no livro Contra o Método, critica Feigl por extremar a distinção entre um contexto de descoberta e um contexto de justificação ou quando, já no terreno da educação, M. Bernard assi­nala a existência de uma circularidade entre discursos que enunciam e que justificam as práticas e entre práticas de aplicação e de legitimação das teorias, significa isto que não se torna mais possível insistir na idéia de uma não recorrência entre a razão científica e o real concreto, entre a ciência e o senso comum. Sem prejuízo de se salvaguardarem as especificidades de vários tipos de conhecimento e saber, recusa-se, isso sim, a idéia de uma razão intangível e transcendental enquanto sus-tentáculo da universalidade e da necessidade da ciência que, por si mesma, eliminaria o problema da origem de valor e do valor da origem.

O trabalho genealógico de Bernard revela-se particularmente interessante a este propósito na obra Critique des Fondements de VEducation permitindo-lhe atestar que, em educação, a racionalidade lógica é, no fundo, sempre uma reformulação da racionalidade axiológica, construindo aquela um_sistgma dedutivo em que o fun-damento acaba por se confundir com os princípios. Assim, em todo o

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acto educativo está presente o jogo entre uma axiologia explícita e uma axiologia implícita que inviabiliza a idéia da possibilidade de um fundamento positivo ou neutro.

Neste contexto, Hameline destaca em UÉducation, ces Images et son Propôs a denúncia que Reboul faz da inumanidade do projecto cientificista em educação enquanto este pretende «tocar no homem sem se deixar tocar por ele» e, deste modo, anular o papel determinante do imaginário individual e colectivo. Haverá sempre, com efeito, uma teleologia nos propósitos educativos que faz com que sejam inextricá-veis os patamares da circularidade que unem a intencionalidade e p conhecimento de causa, o cálculo interpretativo - incerto - e o cálculo previsional - matematizável. Assim, o propósito sobre a educação - ao mesmo tempo que o propósito de educar - oscila entre o previsível e o verosimil, entre a dialéctica e a retórica, onde a fragilidade conceptual coexistecom o vigor dialéctico dos debates educativos fortemente identificados como debates de opinião em que cada asserção mantém um inquebrantável laço com o seu contrário. Mais ainda, estes debates assentam em lugares comuns fortemente marcados, como tais, pela fixidez e redundância dos truísmos e pela convicção de evidências que remetem para convenções que permanecem informuladas. Logo, ganha a maior pertinência a transposição que Hameline faz das palavras que André Rey formulou a propósito da psicologia: toda a ciência da educação está condenada a ser «a ciência do que todo o mundo conhece».

Curiosamente e apesar das dificuldades de reconhecimento que a comunidade científica educacional enfrenta junto da comunidade educativa em geral, acabaram por ser grandes as expectativas criadas em torno dos benefícios que aquela poderia trazer a esta nos mais diversos domínios desde a gestão escolar às metodologias de ensino. As ciências da educação, pelo seu lado, alimentam em algumas das suas frentes de intervenção ambições prescritivo-normativas na convicção de que do saber decorre o saber-fazer. Ajrática passaria a assentar, deste modo, num conhecimento objectivo tributário da capacidade pré-via de distanciamento reflexivo e analítico dos investigadores relati­vamente a essa mesma prática. Isto enquanto a elite dos práticos reivindica a prerrogativa da teorização da sua própria acção com base no seu saber empírico ou, talvez melhor, nas teorias contidas nas suas práticas. Surgem assim as praxiologias pedagógicas por vezes em

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ruptura frontal com as pedagogias científicas de perfil nomotético e experimental.

Retomando a distinção feita por J. Ardoino entre investigação sobre educação e investigação em educação, diremos que têm de ser substancialmente diferentes as expectativas e as exigências em torno da primeira relativamente à segunda. Com efeito, das pesquisas feitas, por exemplo, no âmbito da sociologia ou da história não há que espe­rar indicações directamente úteis para a acção educativa enquanto que da parte nomeadamente dos estudos na área do currículo é legítimo que se exijam resultados importantes para a planificação educativa e para a avaliação. Isto é, nestes ramos disciplinares é correcto que a utilidade para a prática constitua um critério de validação. Porém, a extensão indiscriminada deste critério a estudos sobre a origem da escola contemporânea ou sobre os contextos culturais das popula­ções escolares, entre outros, revelar-se-á já inoportuna e até mesmo descabida.

E em todas as circunstâncias decisivo que, sem se cair na euforia do praticismo, se reconheça que compete ao prático, no conhecimento dos dados disponibilizados pelas ciências da educação, em cuja produção ele poderá aliás ser um dos protagonistas - precisamente na investiga­ção em educação prosseguida eventualmente pela via da investigação--acção - , interpretar o particularismo de cada situação e mobilizar para ela, de umaTorma explícita ou implícita, as competências necessárias. Mas não se pode igualmente de modo algum conferir-lhe o direito de, em função do que fica exposto, ser o juiz absoluto dos processos e dos resultados da investigação científica. Daí redundaria, entre outros efeitos, um afunilamento empobrecedor da multirreferencialidade da sua lógica construtiva.

A teoria da organização curricular apresenta-se, de facto, como um barómetro para aferir o que se passa neste terreno: quando se procura situar preferencialmente no espaço da comunidade dos investigadores -em troca de reconhecimento científico - , manipulando uma teia transdisciplinar de dados designadamente da psicologia, da sociologia e da filosofia da educação, distancia-se da didáctica e perde aceitação junto dos profissionais da educação; quando, pelo contrário, se tenta assumir como a ciência da acção educativa é de imediato olhada como uma apropriação simplista do senso comum característico de um certo

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saber escolar que pretende ser reconhecido precisamente como um saber alternativo à ciência.

Na verdade, a transdisciplinaridade em educação é, com freqüên­cia, produto de impulsos externos a qualquer epistemologia científica, sendo sobretudo um efeito da inércia, da tradição ou da militância peda­gógica voluntarista que se pretende inovadora. Importante será que passe mais coerentemente a ser motivada por uma pedagogia refle­xiva carregada, de uma só vez, de intencionalidade educativa e de capa­cidade crítica. Assim, a convergência e a unidade complexa dos vários enfoques disciplinares, mais do que o resultado de uma aglutinação a posteriori de perspectivas e de preocupações diversas, passará a constituir o próprio impulso da pesquisa e da acção educativas. Coerentemente organizadas e desenvolvidas em torno de uma identidade de base sufi­cientemente esclarecida.

Sejam quais forem as disciplinas em que se desdobra a investiga­ção educacional, admitindo-se mesmo que a lógica da distribuição disciplinar das pesquisas possa ser superada, com vantagem, por uma sistematização em função de problemáticas e de objectivos de estudo e de acção, afigura-se sempre imprescindível uma fundamentação identitária e um direccionamento específico das várias vias de indagação. Caso contrário, a uma diluição da plataforma epistemológica de refe­rência corresponderá obrigatoriamente uma desagregação do sentido. Em termos de conhecimento, de eficácia e de valores. A revisibilidade dos enunciados, inerente ao debate pedagógico, bem como a necessária conflitualidade das respectivas práticas não obsta a que se reconheça e se fomente a natureza peculiar das teorias e dos actos educativos. Exige-a antes de mais. Diante das outras ciências humanas, perante o senso comum.

Este é, em síntese, o grande desafio que a investigação educacional continua a enfrentar. É por ele que passam todos os impasses e todas as dificuldades. E também todas as suas potencialidades.

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INTRODUÇÃO A 1." EDIÇÃO

«Aqui, debaixo do tampo de musgo, é talvez o único local da minha toca onde actualmente me posso pôr a escutar horas afio sem nada ouvir. Uma total remodelação na minha toca; o que antes era um local de perigo transformou-se num local tranqüilo, enquanto a "praça-forte"foi atirada para a confusão do mundo e de todos os seus perigos. Pior ainda, mesmo aqui não existe, na realidade, a paz, aqui nada mudou; silencioso ou gritante, o perigo continua emboscado, como dantes, por cima do musgo, mas eu deixei de o sentir, o meu espírito está demasiado ocupado com o assobio que se ouve nas minhas paredes».

Franz Kafka, A Toca

A emergência das ciências da educação, depois de num primeiro momento ter sido olhada com tolerância ou indiferença pela comunidade científica instituída, começa hoje em dia a provocar reacções quer de adesão incondicional quer de recusa frontal. Os professores e demais intervenientes na prática educativa, esses, acompanhando a evolução das exigências que cada vez mais se colocam relativamente à sua for­mação e à sua actividade, interrogam tais ciências em busca das informa­ções e do apoio de que carecem. Raramente com êxito. Nalguns casos, é verdade, porque se lhes pede o que elas nunca poderão dar. Noutros, é igualmente verdade, porque as ciências da educação, ou melhor, porque os jgus próprios investigadores, perdidos (acomodados?) na corrente (na torrente?) das ciências humanas, desconhecem realmente a natureza e os contornos epistemológicos das problemáticas que estudam.

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Se a história das ciências da educação remete, de forma irrecusá­vel, para a das ciências humanas, resta apurar dentro de que medida e com que estatuto aquelas permanecem dentro destas. Ao falarmos neste contexto, por exemplo, de uma psicologia da educação, sentimos que começamos a pisar terreno pouco seguro. Senão vejamos. Por um lado, ela parece nada mais ser do que uma aplicação ou uma espe­cialização de uma ciência mais geral; por outro, ao designá-la como ciência da educação, imprimimos-lhe, sem dúvida, uma idéia de auto­nomia e de especificidade que dificilmente se compadece com a subalter-nidade em relação a um tronco fundamental que transparece da óptica anterior.

Para melhor se compreender o sentido desta dualidade estatutá­ria, forçoso será inseri-la no próprio percurso histórico-epistemológico das jovens ciências da educação. Fazendo-o, verificar-se-á o seguinte: numa primeira fase, estas nada mais representam de facto do que um dos aproveitamentos possíveis dos contributos das várias ciências sociais e humanas, contributos esses que, podendo ser aglutinados em volta de questões educativas, não lhes diziam, porém, em primeira instância, directamente respeito. Quando muito, num ou noutro detalhe, preo­cupações mais gerais ou simplesmente externas socorriam-se destas áreas enquanto campos possíveis de experimentação ou, precisamente, de aplicação de perspectivas que, entretanto, extravasavam as expecta­tivas aí geradas, ressalvados os casos em que estas expectativas eram, elas mesmas, pré-determinadas (sucedeu isto, em proporções não desprezíveis, com o behaviorismo).

É assim freqüente que, nomeadamente psicólogos e sociólogos, como tais, se dediquem, em momentos diversos do seu trabalho, às questões educacionais, o que, se se revestiu - e se reveste ainda - de aspectos francamente positivos para a abordagem das componentes com-portamentais e sociais da educação, não deixou também de concorrer para que se instalasse, no plano epistemológico, uma evidente confusão que, todavia, deslizou e se instalou na rotina.

Mas os problemas não desaparecem por isso. É que - podemos dizê-lo sinteticamente - esses problemas derivam

da existência de um arranjo interdisciplinar nas ciências da educação cuja coesão tende a ser assegurada mais pelas directrizes hegemônicas e tendencialmente redutoras de uma dada ciência humana (anteriore,

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porjsso, originariamente externa) do que pelo (sub)objecto - a educação - precariamente visado.

Em Durkheim, a redução da pedagogia à sociologia, ou pelo menos o estabelecimento de uma inquebrantável filiação daquela nesta, jus­tificava (com base nas tarefas primordiais por ele reservadas para os estudos sociológicos) o percurso linear que levava de uma à outra, decorrendo os pressupostos educacionais dos pressupostos sociológi­cos. «Eu considero, com efeito - escreveu Durkheim - , como o próprio postulado de toda a especulação pedagógica que a educação é coisa iminentemente social, tanto pelas suas origens como pelas suas funções, e que, como conseqüência, a pedagogia depende da sociologia mais estreitamente do que de qualquer outra ciência» (Education et Sociologie, p. 92).

Piaget, por seu turno, reconhece as repercussões, devidamente limitadas, da sua investigação em psicologia genética para a pedagogia e para a educação, o que, em princípio, se reveste de toda a legitimidade e é profundamente realista. Mas levantamos já as mais sérias dúvidas quando assistimos à importação maciça e submissa, por parte de secto-res identificados como estando ligados à investigação educacional, dos seus conceitos e das suas conclusões. De facto, Piaget fala de uma «pedagogia fundada sobre a psicologia» em Ou Va VEducation mas, no seu caso concreto, não lhe cabe a responsabilidade do fenômeno referido. Repare-se nestas palavras que são suas: «Eu não tenho opinião no campo da pedagogia. O problema da educação interessa-me vivamente, porque tenho a impressão de que há imensa coisa a transformar e a reformar, mas penso que o papel do psicólogo é fornecer os dados que o pedagogo pode utilizar, e não pôr-se no lugar do educador, ou dar-lhe conselhos. É ao pedagogo que compete ver como é que pode utilizar aquilo que lhe é oferecido» (Conversas comJean Piaget, p. 202, s.p.n.).

Não pode deixar de impressionar e, consequentemente, de convidar à reflexão, a circunstância de acabar por ser um psicólogo quem faz esta advertência: talvez isso se fique a dever ao facto de o «pedagogo» (entendido como aquele que centraliza dados, recolhe informações e investiga em função da educação em si mesma, ou que assim deveria proceder), receoso de ser acusado - ao tomar iniciativas - de uma recaída na especulação filosófica e, por isso, de se tornar um invete­rado receptor dos produtos científicos alheios, aguardar indicações que,

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de fora, lhe sejam fornecidas. Até as que respeitam à sua (relativa) autonomia!

A expressão «ciências da educação» é, desta forma, ambígua: emprestando à investigação educacional um aparente estatuto de cien-tificidade amadurecido e próprio, encobre a fragilidade central de que essas ciências enfermam ao conservarem-se como especializações de cada uma das ciências humanas definidas prévia e independentemente da sua intervenção restrita (e, eventualmente, restringente) no estudo dos fenômenos educativos. E paradigmática, neste contexto, a defini­ção que nos dá da psicologia da educação um autor como Donald R. Green: «A Psicologia Educacional só difere de outros critérios próprios da ciência da Psicologia em virtude de se concentrar nas condições, variáveis e comportamentos correntemente associados à educação» {Psicologia da Educação, p. 9, s.p.n.).

Fica-nos, assim, a dúvida de as ciências da educação terem conse­guido ultrapassar o estado de ciências latentes ou de protociências, estado este intimamente subsidiário de formulações arcaicas, como as de Durkheim, anteriores à sua institucionalização, quer a nível adminis­trativo quer no da nomenclatura científica (')• Quer dizer: os limites implícitos na fase de gestação ou de esboço histórico das ciências da educação sobrepor-se-iam ainda à evolução mais recente da investigação educativa, fenômeno que a terminologia usada oculta de alguma maneira.

Mas a verdade é que, dentro destes parâmetros, nenhum obstáculo cerceia ou poderá alimentar polêmica sobre a inclusão da área delineada pelas ciências da educação na das ciências sociais e humanas. Trata-se até de uma redundância. Talvez por isso mesmo é que, durante muito tempo, quase nunca se sentiu a necessidade de se levantar aqui grandes interrogações. Todavia, será que esta situação, porventura satisfatória para as ciências humanas constituídas, serve as aspirações das teorias da educação? Permitirá ela a sua existência dentro de contornos epistemológicos adequados e, sobretudo, fecundos?

(') As «ciências da educação», a partir do ano de 1967, passaram a constar, como tais, dos programas de estudo das universidades francesas. Sobre a evolução da sua situação institucional em Portugal cf. o estudo de J. Ferreira Gomes, «Apontamentos para a História da Formação Psicopedagógica dos Professores do Ensino Secundário», in Dez Estudos Pedagógicos, pp. 251-286.

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Sendo indesmentível que, num primeiro momento, a imposição das ciências da educação, mesmo feridas pela inconsistência assinalada, rasgou horizontes novos e decisivos para a investigação educativa, resta apurar que preço pagam elas actualmente, e portanto a educação enquanto tal, pela persistência de coordenadas epistemológicas que, de detona-doras de uma importante revolução, passaram a amarras bloqueadoras de potenciais transformações e de avanços efectivos.

Pensamos que, de facto, o quadro existente não corresponde à evolução que, apesar de tudo, entretanto, ocorreu.

Repare-se, por acréscimo, no seguinte: se a extensão da psicologia, da sociologia, da história, etc, à educação é, dentro das condições referidas, formalmente possível sem evidentes e imediatas distorções ou complicações de maior para as ciências humanas constituídas, o mesmo não se passará com uma disciplina como a filosofia da educação. É que, como veremos melhor mais à frente, custará muito incluir a filosofia nessas ciências - necessariamente como ciência fundamental -para depois a aplicar à educação. Nem sequer uma precedência dessa natureza é, de maneira não polêmica, histórica ou epistemologicamente constatável no interior das ciências humanas. É comummente admitida, isso sim, uma precedência histórica da filosofia mas no sentido de que esta foi dando lugar às várias ciências (humanas) particulares «graças a um duplo processo de delimitação dos problemas e de elaboração de mélodos objeclivos», o que conduz precisamente à negação da filo­sofia como «modo de conhecimento» ou como «saber», isto é, como ciência (J. Piaget, «Les Deux Problèmes Principaux de 1'Epistémologie des Sciences de 1'Homme», in Logique et Connaissance Scientifique, p. 1118).

A saída poderia residir, então, somente na exclusão pura e simples da filosofia da educação, evitando-se assim dificuldades que se erguem desde a altura em que a consagremos como uma ciência da educação estribada na dependência epistemológica estrita já exposta. Porém, pelo nosso lado, achamos que essa atitude, para além de radicar em precon­ceitos próprios do cientismo e de reflectir o descrédito em que caiu a metafísica tradicional, deixa entrever uma das conseqüências inevitá­veis e indesejáveis do prolongamento do sincretismo estatutário das ciências da educação. É que o objecto da investigação educacional exige a intervenção filosófica sob pena de sé descaracterizar, criando-

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-se um fosso - e não apenas um certo e natural desajuste - gntrejts propostas teóricas e as expectativas geradas no seio dos processos educativos, bem como umperigoso esvaziamento do sentido destes, sobretudo para os seusprotagonistas. Uma das conseqüências possíveis deste gênero de procedimento - que trará consigo a tentativa de impor aos processos em causa malhas demasiado apertadas e que serão uma projecção da adopção de critérios de cientificidade ideologicamente restritos e restritivos - poderá ser, talvez um pouco paradoxalmente, o alastrar da desconfiança relativamente aos discursos científicos sobre a educação que sempre paira de algum modo, designadamente entre os agentes da sua prática.

Irrompendo, em determinadas fases do desenvolvimento dos pro­cessos educativos, os desencontros entre as convicções reducionistas (e a respectiva cadeia de métodos e de técnicas) e o que chamaremos para já, por comodidade, projectos pedagógico-filosóficos alternativos (even­tualmente desagregados mas sempre detentores de um iminente poten­cial desagregador frente à força hegemônica que contêm aquelas con­vicções), despertam as linhas de fractura por onde brotam as interpre­tações parcialmente descodificadoras do logro em que se caiu. Nessa altura, a tendência poderá ser a de inverter - sem mais - a marcha da implantação dos enquadramentos e das perspectivas educacionais cien­tíficas em nome de valores ou de normas que acabam por surgir como baluartes de uma «dignidade» e de uma «liberdade» - ou até apenas de convenções - ameaçadas.

Tanto num caso como noutro, estamos diante de ideologias redu-toras: primeiramente, por o discurso filosófico implícito ter sido amor­daçado e subvertido sob a capa da neutralidade, depois, por ele ser usado como uma arma que ameaça generalizar o ataque contra o universo científico. Segundo a natureza das suas gêneses, diremos que umas são ideologias científicas e que as outras são ideologias filosóficas estritas. Ambas têm em comum, todavia, o facto de quererem externalizar a filosofia ao desenraizá-la do âmbito das construções científicas, quer quando fomentam a ilusão do seu aniquilamento quer quando a querem edificar à revelia daquelas.

Deste modo e no seguimento do que ficou dito, temos que apro­fundar, antes de mais, o tema global do estatuto das ciências sociais e humanas. Com efeito, as dificuldades experimentadas, mormente pela

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filosofia da educação, prendem-se muito de perto com o tipo de modelo de cientificidade veiculado por um número significativo de corren­tes das ciências humanas. Convirá, assim, apurar a sua origem, o seu alcance e a sua legitimidade. Não esqueçamos que as ciências da educa­ção se delinearam e se apresentam ainda (independentemente das crí­ticas que podemos e devemos formular a um tal propósito) como pro­longamentos das ciências humanas ditas fundamentais, pelo que a sua emergência mergulha na própria história destas ciências, participando, de uma maneira ou de outra, nas suas hesitações, nas suas contradições e nos seus êxitos.

O estudo da natureza da filosofia da educação, para além de sugerir um certo número de interrogações à filosofia em si mesma, levantará algumas questões relativas às ciências da educação enquanto tais e a algo que, para nós, assumirá especial importância: o lugar actual destas nas ciências humanas e a necessidade de unia eventual reorganização do quadro dos diversos grupos disciplinares que as compõem. Estamos convictos, inclusive, de que um cuidadoso alargamento das vias propor­cionadas pelo esclarecimento designadamente da problemática da filo­sofia da educação carreará valiosos elementos para a exploração e revisão dos horizontes epistemológicos inerentes aos modelos de cien-tificidade das ciências sociais e humanas. Para tal concorrerá igualmente, como veremos em momento oportuno, a evolução recente da episte-mologia das ciências da natureza, depois de um período de deslumbra­mento geral e indiscriminado perante concepções entretanto ultrapassadas pela própria prática científica. Procederemos, aliás, a um breve estudo das origens desse deslumbramento de forma a desmontarmos a teia em que se prendem as linhas mestras de idéias feitas que, através das ciências sociais e humanas constituídas, atingiram as ciências da edu­cação em formação.

Há que tentar demolir a sedutora fixação em determinados modelos físicalistas de cientificidade, entretanto carentes de legitimidade, prin­cipalmente após as aturadas críticas da epistemologia pós-bachelar-diana. Modelos esses que, além de descabidos, são retrógrados.

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CAPITULO I

NAS ENCRUZILHADAS DAS CDZNCIAS HUMANAS

Piaget diz-nos que «os conflitos entre as ciências e certas filosofias datam somente do século XIX, numa época em que algumas filosofias sonharam com um poder especulativo que permitiria abranger a própria natureza (com Hegel na sua Naturphilosophié) e em que, reciproca­mente, alguns cientistas pretendiam tirar do seu saber positivo metafísicas cientistas - abandonando a tradução literal, nós próprios preferimos designá-las por «cientificistas» - (como o materialismo dogmático) e provocavam assim reacções no sentido de sistemas destinados a proteger os valores morais contra estas usurpações consideradas como ilegítimas» (Epistemologie des Sciences de 1'Homme, p. 88).

O esquema destas duas extrapolações é o mesmo - trata-se, com efeito, de um fenômeno (ideológico) de expansionismo - e decorre de uma sobrevalorização, ora dos aspectos qualitativos ora dos aspectos quantitativos do conhecimento, com a dignificação latente ou manifesta, respectivamente, da introspecção ou da verificação experimental, da apreensão imediata ou mediata dos fenômenos e das suas conexões. Acaba por ser também a questão das relações entre as ciências sociais e humanas e as ciências da natureza que está em causa e, por seu inter­médio, a da situação da filosofia no seio de cada um destes dois grandes grupos disciplinares.

A este propósito, é curioso realçar desde já que, se as ciências humanas se esforçam freqüentemente por eliminar dos seus procedi­mentos qualquer vestígio dos métodos filosóficos na mira de assegurarem uma dignidade científica - classificando, por isso, como «sobrevivên-cias ideológicas» as atitudes de natureza filosófica, convictas de que serão progressivamente capazes de delas se desembaraçarem - , elas

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próprias são, por seu turno, repetidamente acusadas de mais não serem do que ideologias filosóficas subsidiárias de ideologias científicas deri­vadas, por sua vez, da própria lógica das generalizações filosóficas.

Muitos dos teorizadores das chamadas ciências da natureza não vislumbram a possibilidade de existência de construções científicas para além dos limites metodológicos institucionalizados pelos modelos verificacionistas e quantitativistas que escolheram e que orientam as suas pesquisas ('). Assim, excluem o apelo a qualquer tipo de procedi­mentos que não respeitem escrupulosamente as exigências e os critérios que deles emanam. Tudo quanto se mantenha avesso aos requisitos de tais modelos é invariavelmente atirado, de maneira depreciativa, para o rol das reflexões e das divagações especulativas. Aos investigadores das ciências sociais têm restado duas alternativas que se caracterizam. respectivamente, pela importação em bloco dos referidos modelos -com o conseqüente empobrecimento da configuração e compreensão dos seus objectos de estudo - e pela tentativa de se inaugurar um horizonte inédito de cientificidade, o que, para além de ser temerá­rio, pode abrir as brechas por onde se expandam novas versões das metafísicas tradicionais em busca de uma consagração como vias de con/7gdmen^concorrenciais_ou^até_preferenciais ao albergarem^ um conceito/referencial de homem cimentado no corpo histórico do legado humanista da cultura ocidental. Conceito que, todavia, conforme nos revelam as incursões arqueológicas de Michel Foucault, suscita grandes e complexas perplexidades, as quais, longe de sanarem as questões de teor epistemológico em causa, as renovam com inesperada profundidade.

Importará, por isso, recordar as suas teses complementares onde se afirma que o «homem é uma descoberta tardia» e que se «o humanismo

(') «De facto, a tão usada expressão "Ciências Humanas" representa a tentativa de atingir como objectivo final para este campo teórico um estatuto similar ao das Ciências da Natureza. Estas, na sua universalidade, no seu rigor metódico, na sua nomenclatura firme, propõem-se como modelo a todo o Saber que queira situar-se na idade da Razão. A estafada acusação "ideológica" parece recair com particular vigor no âmbito da Filosofia, das Letras e Ciências Humanas, que se vêem obrigadas a bater ciclicamente no peito e gritar "mea culpa", por não terem ainda realizado a olímpica neutralidade das "Ciências" de primeira grandeza, cidadãs vitalícias dum pacífico Continente que ninguém se atreve a contestar» (L. Duarte Malho, "Ciências Humanas. O Ano Zero - Sobre a Idéia duma Filosofia Antropológica", in Cadernos de Ciências Sociais, n.° 1, p. 48).

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do renascimento, o racionalismo dos clássicos, puderam dar um lugar privilegiado aos humanos na ordem do mundo, não puderam pensar o homem» (Les Mots et les Choses, p. 329). Com efeito, Foucault sus­tenta que a consciência epistemológica do homem como tal é estranha à episteme clássica: não há nesta um domínio em que o homem apareça demarcado como ser cujo objectivo seja «o de conhecer a natureza, e a si mesmo por conseqüência como ser natural» (idem, p. 321). Somente «quãnHo a história natural se toma biológica, quando a análise das riquezas se toma economia, quando sobretudo a reflexão sobre a lin­guagem se toma filologia e se apaga este discurso clássico onde o ser e a representação encontravam o seu lugar comum, então, no movimento profundo duma tal mutação arqueológica, o homem aparece com a sua posição ambígua de um objecto para um saber e de sujeito que conhece» (idem, p. 323).

Assim, o assomo do homem, enquanto sujeito situado num lugar que é privilegiado e ordenador, é acompanhado pela descoberta da sua finitude objectiva em função do trabalho, da vida e da linguagem. Trata-se de uma finitude que é pensada a partir de si mesma, numa referência interminável a ela mesma, e não no interior do pensamento do infinito. Todavia, este quadro epistemológico alimentou a tentação (metafísica) de remeter para o homem e para a sua experiência o campo transcendental deixado vago pela «expulsão» da divindade, convertendo--o no fundamento e na origem desesperadamente ambicionada. Mas eis que a finitude que lhe foi assinalada, a sua permanente relação com o impensado - que concretamente a psicanálise pôs a descoberto - e a interminável distância duma origem continuamente dissolvida no passado histórico ameaçam e inviabilizam mesmo o que se exige deste homem, condenam-no ao seu desaparecimento...» (cf. idem, pp. 396-397).

O que nos nossos dias está em causa é o conceito de «Homem» entendido como sujeito-substância-consciência e que, por isso, se distinguiria de tudo o mais, detendo, em conformidade, assinaláveis privilégios: «A investigação contemporânea - escreveu J. M. Benoist -liberta da antropoteologia e do seu cortejo ideológico, pode assim assumir-se como uma Semiótica: semiótica do inconsciente com Lacan, semiótica dos códigos de parentesco e dos corpos míticos com Lévi--Strauss, semiótica das relações e das contradições com o marxismo de Althusser, semiótica da literatura com Barthes e Genette, semiótica do

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arquivo e do documento histórico de que a arqueologia foucaultiana constitui o discurso do método» {La Révolution Structurale, p. 16).

De facto, Foucault aprofunda a crítica ao tema duma «natureza humana» socorrendo-se, para o efeito, da acção desmistificadora da etnologia e da psicanálise, dessas duas «contraciências», que emprestam às ciências humanas alguns dos seus conceitos e dos seus métodos de decifração sem caírem, pelo contrário, na tentação de delimitarem, dentro duma pretensa especificidade - no sentido de uma irredutibi-lidade e de uma universalidade - , o «conceito geral de homem». AL «racionalidade» e a «objectividade» da etnologia e da psicanálise dis­solvem a positividade do homem para apresentarem as «positividades» que, marginando-o e condicionando-o, limitam o saber acerca dele. A etnologia «definiria como sistema dos inconscientes culturais o conjunto das estruturas formais que tornam significantes os discursos míticos, dão a sua coerência e necessidade às regras que regem as necessidades, fundam dum modo diverso do que na natureza, doutra maneira que nas puras funções biológicas, as normas da vida». A psicanálise, por seu turno, alcança a dimensão de uma etnologia, «não pela instauração de uma "psicologia cultural", não pela explicação sociológica de fenômenos manifestados ao nível dos indivíduos, mas pela descoberta de que o inconsciente, ele também, possui - ou antes que ele é-, ele próprio, uma certa estrutura formal» {idem, p. 391). «Encarregando-se da tarefa - diz ainda Foucault - de fazer falax_atrayés__da consciência o discurso úo inconsciente, a psicanálise avança na direcção desta região fundamen­tal onde estão em jogo as relações da representação e da finitude. A lingüística, a terceira "contraciência", alojaria a sua experiência nestas regiões iluminadas e perigosas onde o saber do homem estabelece, sob as formas do inconsciente e da historicidade, a sua relação com o que as torna possíveis. As três põem em risco, "expondo-o", aquilo mesmo que permitiu ao homem ser conhecido. Assim se tece, sob os nossos olhos, o destino do homem, mas tece-se às avessas; nesses estranhos fusos, ele é reconduzido às formas do seu nascimento, à pátria que o tornou possível. Mas, dado que a lingüística não fala mais do homem em si mesmo, tal como a psicanálise ou a etnologia, não é esta uma maneira de o conduzir ao seu fim?» {idem, pp. 392-393). Desfeito o suporte da «natureza humana», não se desfaz, com ele, o derradeiro «fundamento» da reflexão filosófica?

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Porém, o que está em causa, insistimos, é uma determinada idéia do homem que a mentalidade pós-renascentista esboçou, que o mecanicismo consagrou, e que os séculos XIX e XX. mergulhados em sinuosas contradições, colocaram no centro da episteme contem­porânea.

Para Rousseau, tudo quanto existia tinha como fim servir o homem, para Montesquieu «a verdadeira lei da humanidade é a razão humana», em Kant, a universalidade e a necessidade eram atribuídas aos dados da experiência pela razão cognoscente. Progressivamente, o papel inter­ventor e decisivo da divindade vai-se esbatendo em favor do do homem. isto dentro de um processo que, apesar de lento e não uniforme, é bem vincado e com características de continuidade. E a velha ideologia que negava a tudo quanto não proviesse directamente de Deus a caracterís­tica de se situar verdadeiramente na ordem do ser que entra em declínio, dando entrada à razão do sujeito transcendental onde as idéias se com­binam numa ordem de inteligibilidade. «A razão - como escreveu R. Blanché - não é mais um reflexo, é um centro» {La Science Actuelle et le Rationalisme, p. 6).

«Desde Descartes que pensamos contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, conquistá-la. O cristianismo é a religião de um homem cuja morte natural escapa ao destino comum das criaturas vivas; o humanismo é a filosofia de um homem cuja vida sobrenatural escapa a esse destino: homem que é sujeito num mundo de objectos e soberano num mundo de sujeitos» (E. Morin, O Paradigma Perdido, p. 15). Com efeito, a crença na «excepcionalidade» do homem - tal como dela nos dá conta a curta passagem acima transcrita - , inerente ao ^ f e , filosofema da «natureza humana», só vai ser abalada com a etnologia, c^y ^o^ com a psicanálise, com a lingüística - com o estruturalismo - e ainda 4 "^ ,J"-com a biologia molecular. No caso específico do estruturalismo, assis- ^ ^ _ / ° timos, a par de uma preocupação em não se cair na desorganização a que um empirismo poderia levar, a um projecto de expulsão do sujeito metafísico ou transcendental, sujeito universal e abstracto, caracterís­tico, afinal, de uma razão etnocêntrica.

É que - como disse Sartre - «se se persistir em chamar sujeito a uma espécie de "eu" substancial, ou a uma categoria central, sempre mais ou menos dada, a partir da qual se desenvolveria a reflexão, então há muito que o sujeito está morto» (Estruturalismo - Antologia de Textos

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t i .

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Filosóficos, p. 133). É que - acrescentamos nós - se se persiste na exigência mais ou menos explícita deste pressuposto para a filosofia, então há muito que a filosofia está morta. Através da dialéctica, Sartre procurou ultrapassar estas dificuldades: para ele, a filosofia era sobretudo um esforço de um homem totalizado mas também totalizador na ânsia de apreender o sentido da totalização, isto é, a filosofia era a actividade de um homem inserido no movimento histórico, mas capaz de pensar as superações em que ele se engendra. Todavia, o esforço (reconhecido) do existencialismo sartriano de crítica ao essencialismo estático do humanismo clássico não o livra dos mesmos ataques que a filosofia tradicional. Assim, J. M. Benoist escreveu que o «anthropos» existen­cialista, mesmo desembaraçado da sua referência a uma natureza humana, permanecia um «"anthropos" arrogante que se tomava pela origem única da significação» (op. cit., p. 11).

Quer dizer, se é inegável que o esforço de crítica do existencialismo de Sartre relativamente à ilusão do eu transcendental e substancial, de forma a assegurar a «transparência» de uma consciência liberta de qualquer estrutura egológica, contribui decisivamente para o desmoro­nar do subjectivismo idealista, é também ainda um facto que a idéia de «condição humana» que ele veicula impõe (universaliza) uma determinada condição - uma situação histórica e socialmente limitada - e sobrevaloriza (diviniza) o homem que nela se situa. O existen­cialismo identificando-se como um humanismo, aliás, dificilmente escaparia ao círculo do antropoteocentrismo que a premissa homem--sujeito-consciência define, moderna e contemporaneamente, desde Descartes.

O cogito cartesiano mantém-se como o cerne do idealismo, como um ponto de referência obrigatório mesmo quando, desde Kant até Husserl ou Sartre, ele é criticado ou redefinido. É assim um dado adquirido que o idealismo cartesiano contribuiu largamente para a instauração de uma metafísica do sujeito cuja influência nos nossos dias não pode ser minimizada. E é para esta metafísica do sujeito, enquanto substância espiritual e enquanto consciência, que tem de remeter-se a metafísica como busca do fundamento da certeza racional. A afirmação damaterialidade geométrj&L-diLjnatureza, condição necessária para a validação da física pós-galilaica, teorizada por Descartes, fortaleceu a tese da insularidade do sujeito humano, detentor de uma mto-sistência

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única. Sujeito que conhece directamente pelas representações, pelo recurso ao substrato transcendental subiectivo, e ainda pela explicitação dos conteúdos empíricos.

Ao longo da história das vicissitudes que sofre a evolução da noção de sujeito, há urr\a_çonstante que convém realçar: o sujeito assume uma função constituinte - quer ela seja divina, psicológica ou transcendental - que lhe garante uma posição de dominação e de autocracia. «A res extensa cartesiana é o fenômeno absoluto do Espírito infinito, que podemos, nós homens, "representar" em nós graças às nossas idéias "garantidas" de geometria e de mecânica»; em Berkeley, «a natureza é o percipi de uma percepção habitada pela acção divina produtora»; em Hume, «o universo do físico aparece como o resultado de uma elaboração secundária obtida a partir dos fenômenos sensíveis imanentes e dos seus laços habituais. A filosofia crítica, para justificar esta elaboração secundária sem recorrer de novo à metafísica do Deus conhecido, teve de identificar os objectos espácio-temporais do mundo com as representações do sujeito humano (R. Chambon, Le Monde comme Perception et Réalité, p. 61).

E verdade que a autonomização da investigação científica permitiu, neste ponto muito concreto, que se sacudisse a tutela exercida por este conceito de sujeito. Mas, paralelamente, a filosofia tornava-se a sua fiel e orgulhosa depositária: o sujeito constituinte é o sujeito que faz a filosofia pelo que esta se reivindica como o discurso da verdade que aquelecontém, projecta, imprime ou descobre. Daqui ao dogmatismo é obviamente um passo, ou nem isso...

Para nós, não é este o destino da filosofia, que seria, aliás, um des­tino trágico! Num certo sentido a «relação de interiorização» entre a filosofia e as ciências terminou: as ciências não exprimem mais, de uma maneira localizada, «a contextura e a verdade do discurso verdadei­ramente fundamentador» (J. T. Desanti, La Philosophie Silencieuse, p. 8). Essa filosofia terminou mas, com ela, não terminou a filosofia. A «relação de interiorização» entre a filosofia e as ciências, essa, tem de ser reexplorada, revolucionada, pois, contrariamente ao que se pode­ria pensar, é precisamente aí que reside uma das vias mais riças de transformação da filosofia (e das ciências) que nem a metafísica tra­dicional nem os movimentos neopositivistas souberam ou puderam aproveitar.

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No caso concreto da epistemologia das ciências sociais e humanas, esta corre o risco de, ignorando as necessidades da prática da investiga­ção concreta, obrigá-la a percorrer pistas que a priori se lhe impõem. Sendo concomitantemente um posto avançado de algumas das versões da ideologia empirista ou um derradeiro pilar do racionalismo idealista, ela corre ainda um outro risco, que é o de ficar dramaticamente arredada da evolução dessas ciências. Entre a objectividade e a tendência para o objectivismo (imposição da verdade universal e eterna do facto científico a partir do esquecimento do papel construtor que nele tem o sujeito) e a subjectividade que se encaminha para o subjectivismo (predominância radical do papel do sujeito), emergem as dificuldades e as contradições das ciências sociais e os cenários em que se geram as acusações recíprocas sob os anátemas das ideologias científicas e filosóficas.

Diante da renovação dos parâmetros do saber, os sistemas tradicio­nais da filosofia experimentam grandes dificuldades no confronto com o espírito científico que, principalmente a partir de meados do século XIX, ganha uma importância e um prestígio crescentes. As ciências hurna-nas aparecem amiúde, nestas circunstâncias, como o último baluarte de uma filosofia que não consegue reconverter-se e que delas se serve para assegurar uma sobrevivência ameaçada. Aceitamos, neste caso, a idéia de que há uma incapacidade da filosofia em encontrar uma resposta credível frente às solicitações decorrentes da nova episteme: de facto, com um tal procedimento, ela estará mais perto da asfixia do que da ruptura, pois procurando subsistir dentro das suas funções históricas, torna-se um obstáculo a eliminar porque, para além de fazer disper­sar esforços, bloqueia (em vez de criticamente ajudar) a renovação de técnicas e de métodos que terão de intersectar os recortes dos novos campos objectuais. A recuperação que a filosofia faz das ciências huma­nas, quando tal acontece, não ocorre geralmente de um modo global e explícito: esta recuperação centra-se antes na reafirmação do valor das suas disciplinas tradicionais, designadamente da antropologia e da onto­logia, ora como artífices (especialmente dotadas) dos objectos das ciên­cias humanas, ora como retaguardas fundamentadoras e, por esta via, monopolizadoras das abordagens dos conteúdos essenciais desses objec­tos. Convém igualmente lembrar aqui que a identificação das ciências humanas com os discursos filosóficos procede também, com freqüên­cia, dos seus opositores e insinua-se enlão, sobretudo, através de uma

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assimilação de caracter pejorativo que, sendo possibilitada pelas cir­cunstâncias acabadas de referir, não se apoia, porém, em análises exaustivas.

Assentemos, pois, que as ciências sociais e humanas extravasam pelo conjunto dos seus métodos e pelas particularizações dos seus objectos a dimensão filosófica, o que são condições que permitem a sua classificação como ciências, sem, contudo, por isso, ser pacífica a idéia de que poderão repudiar a filosofia, em si mesma, enquanto entrave interno ou externo à sua própria constituição e ao seu desenvolvi­mento. ___^ .. ,_

A «física social» de J\. Comteje o «coisismo» devTJurkhejíyi (2) PodÊOLJigl-arMítados como Hõ~fs"marcos primordiais que inauguram decididamente uma tendência reducionista, sobretudo pelas sugestões que veicularam e que propiciaram desenvolvimentos posteriores nesse sentido, isto para além de algumas das suas posições de princípio. Entre os referidos desenvolvimentos, considere-se nomeadamente o que coloca como exigência central, para uma cientificidade das ciências humanas, a neutralidade (filosófica e, por inerência, ideológica) do sujeito inves­tigador apostado em descobrir as leis que explicam o comportamento dos objectos do seu estudo.

Conhecemos os argumentos que procuram rebater as interpretações que fazem do pensamento de A. Comte um pensamento reducionista no seu todo. O mesmo sucede com Durkheim. No caso do primeiro, chamam eles a atenção para o relativismo da sua ciência sociológica (que não exclui a premissa da cumulatividade do saber), o qual se liga ao reconhecimento da precedência epistemológica das teorias sobre os

(2) O «coisismo» de Durkheim, sociólogo que se inspira largamente em Comte, tal como ele o define na 2." edição de Les Règles de Ia Méthode Sociologique, em 1901 («Est chose tout objet de connaissance qui n'est pas naturellement compenétrable à 1'intelligence» e que, portanto, tem de ser estudado através de observações e de experimentações), admitida toda a demarcação que ele se obstina em fazer relativamente às acusações de materialismo que, a este propósito, lhe foram lançadas, é, de facto, uma evidente excrescência do modelo de «objectividade» reinante nas ciências físicas: a externaiização do conceito de «consciência colectiva» em relação ao de «consciências individuais» de forma a traçar para aquela consciência os limites típicos de um objecto sociológico, ditada pelo ideal de encontrar para a sociologia uma auto-suficiência explicativa, constitui um exemplo pertinente disso.

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factos assim como para a sua rejeição da idéia de uma absoluta exterioridade ontológica dos objectos da sociologia em relação ao sujeito que os estuda. Não tem aqui cabimento aprofundar, por si mesmos, os termos da polêmica em que esta argumentação se insere. Limitamo--nos a afirmar, independentemente de quaisquer preocupações ditadas por uma análise interna da evolução e da coerência do pensamento de Comte, que os primeiros esboços da sua sociologia, traçados no quadro do que ele designou por «física social», fomentaram o surgimento de uma tradição cientificista caracterizada pela importação, para o seio das ciências sociais, do modelo epistemológico dominante nas ciências físicas.

Os tópicos da «física social» (apresentados, entre outros, por P. Arnaud no seu livro Sociologie de Comte, pp. 7-29) que, a nosso ver, mais directamente suscitaram o irromper da referida tradição são os seguintes:

- O estudo dos fenômenos sociais deve ser feito «dentro do mesmo espírito» do dos fenômenos astronômicos, físicos, químicos ou fisiológicos.

- As dificuldades com que se defronta a «física social» para obter o estatuto científico são sensivelmente as mesmas que, ao longo da sua história, encontraram as outras ciências que, entretanto, já alcançaram a fase da maturidade expressa designadamente pelo recuo da intervenção da imaginação e da especulação.

- Na «física social», tal como nas outras ciências, g especia­lista deve conservar uma estrita neutralidade relativamente aos fenômenos que está a observar, afastando «toda a idéia absoluta de bem e de mal».

Estamos conscientes de que, ao pormos em relevo somente estes três aspectos, procedemos a üm afunilamento da mensagem comtiana, mesmo ao nível das formulações iniciais da «física social», mas é um facto que, para muitos dos seus seguidores, eles constituíram o essencial dessa mensagem e ponto de partida para uma atitude de submissão diante do modelo objectivista das ciências naturais, entretanto sucessi­vamente alijado dos seus comprometimentos metafísicos mais evidentes. Por outro lado, se é verdade que Comte imprime uma certa originalidade

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aos fenômenos abordados pela «física social» através da tônica globalista e totalizante da noção de «sistema», o que lhe serve para tornar esses fenômenos irredutíveis a elementos isolados mesmo quando, por ques­tões de método, se passa do geral ao particular, que preço terá de pagar a sociologia por ser colocada no topo do sistema geral das ciências? Relacionando esta promoção da sociologia com os aspectos atrás real­çados, como será possível deixar de admitir uma estreita continui­dade metodológica que percorra todas as ciências? «A sociologia - diz--nos J. Herman - coroa o sistema geral das ciências, o que implica uma continuidade na perspectiva e nos métodos, da física à sociologia. Entretanto, cada disciplina usufrui duma autonomia relativamente às outras, autonomia que brota da sua especificidade ontológica, do seu domínio de realidade. A sociologia, ciência dos factos mais complexos, utiliza todas as leis das outras ciências que ela pressupõe e deve, por acréscimo, encontrar as suas próprias leis. Existe um desvio cientifi-cista do positivismo que erige a sociologia em «rainha das ciências humanas» (Les Langages de Ia Sociologie, p. 25).

Quer dizer, é possível ou é compreensível uma leitura das teo-rizações de A. Comte em que se não vislumbre propriamente uma ruptura lógica ou epistemológica entre a sociologia e as demais ciências (inclusive, as da natureza) mesmo quando se reconhece que aquela «deve encontrar as suas próprias leis», para além das que são comuns às outras disciplinas: descendo-se no sistema das ciências, o mesmo ocorre com todas as outras, salvaguardadas que sejam as referências e a extensão dessas redimensionações consoante o lugar ocupado por cada uma delas na hierarquia do sistema (refira-se que esta hierarquia é estabelecida ao abrigo do princípio de que uma complexidade crescente e uma generalidade decrescente percorrem o corpo das ciências posi­tivas). Poderemos até dizer que a sociologia, estando numa posição de cúpula, pressupõe, tanto ao nível dos seus métodos como do seu objecto, todas as ciências naturais que implicitamente engloba. Esta situação fará dela, antes de mais, uma ciência natural.

A interpretação que G. Gusdorf faz desta faceta do pensamento comtiano não é, na nossa opinião, inteiramente satisfatória. Trazemo-la aqui por ser bem representativa de toda uma linha de comentadores que não aceitam que, por qualquer forma, se envolva o nome do pioneiro do positivismo com o reducionismo fisicalista. É que libertando as pri-

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meiras formulações das ciências sociais deste comprometimento, mais facilmente este poderá ser considerado como um desvio. Para Gusdorf, em Comte, «a mais exacta das ciências na sua ordem torna-se inexacta quando a aplicamos à ordem superior». Isto porque «a epistemolo-gia procede por saltos; em cada nível do real emergem propriedades novas». Assim, «a sociologia permanece como irredutível a todas as disciplinas que a precederam: ela repõe em jogo todas as indicações anteriores num espírito radicalmente novo» (Introduction aux Sciences Humaines, p. 352).

É bem claro que, no sistema de Comte, uma ciência só pode ser exacta quando intervém no nível que lhe é próprio e não no superior. Mas tal não autoriza que se diga ou se insinue que cada nova ciência, em si mesma mais complexa que a anterior, a exclua. Da «irredutibili-dade», por exemplo, da sociologia às outras ciências não se pode dedu­zir que haja um corte entre aquela e estas. Ora, é um pouco isto o que faz Gusdorf confundindo, talvez, o conceito de «salto epistemológico» com o de «ruptura epistemológica». Ainda segundo este autor, homens como Cl. Bernard reagiram frontalmente ao «fanatismo da exactidão físico-química» e à «usurpação» nomeadamente da biologia também pelas ciências físico-químicas, sendo, por isso, apontados como «emi­nentes representantes» do «positivismo autêntico» contra a «degradação do autêntico positivismo metodológico definido por Comte». Mas, eis que esta «.degradação» é, todavia, reconhecida como «um dos factos dominantes da epistemologia do século XIX» (idem, pp. 353-355), o que vai perfeitamente ao encontro da nossa idéia de que o positivismo se assume fortemente como um reducionismo. Assim, serão arbitrárias, em termos de história das ciências sociais e humanas, as posições que, em nome da restituição do autêntico sentido da mensagem do discurso de A. Comte, menosprezam o impacto deste fenômeno bem como as condições que lhe deram lugar. E, sem dúvida, sintomático que se tenham privilegiado as linhas de continuidade entre as ciências naturais e as ciências humanas nascentes (que, pelo nosso lado, ao contrário do que eventualmente possa parecer, não negamos liminarmente por si mesmas) em detrimento da configuração de um modelo autônomo. Queremos aqui chamar a atenção para este dado, sobretudo pela impor­tância de que ele se reveste, evitando o seu esquecimento pela valoriza­ção excessiva, retroactiva e generalizante que é actualmente feita das

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reinterpretações das obras de alguns dos precursores do movimento positivista - o que, aliás, não deixa também de ser significativo.

Isto não impede, porém, que aceitemos a idéia de que o positivismo de Comte, assim como a tradição positivista em geral, acaba por ser sede de uma evolução tendencial marcada pela passagem de uma «epis-temologia determinista e unificada» para uma outra em que essas duas características se vão progressivamente esbatendo. Originaram-se assim concepções de teor relativista - definidas por oposição à ciência abso­luta tradicional ancorada num determinismo metafísico prévio - que, fazendo ressurgir um humanismo renovado, têm necessidade de apelar para um nível superior da indagação científica (aqui, o sociológico) onde, a par da consagração de muitos dos contributos da ciência gali-laico-cartesiana (filtrados por aspectos da crítica kantiana), se rebatem os desvios espiritualistas que ela proporcionou. Estes desvios atiravam as reflexões sobre o sujeito humano ou para o campo das reflexões marginais relativamente a toda a metodologia científica ou para um plano em que ele emerge de um universo próprio da ciência físico-ma-temática, portanto, tanto num caso como noutro, sem alcançar os contor­nos imprescindíveis para uma aborHãgem científica própria, o mesmo é dizer, sem justificar a implantação de novos domínios para a ciência. Abre-se, desta maneira, caminho para uma «epistemologia ramificada», de molde a encontrar-se, nomeadamente, o espaço exigido pela sociolo­gia. Neste momento, pela impulsão de uma espécie de retorno episte-mológico, inaugura-se uma reperspectivação de toda a actividade do conhecimento a partir de uma precedência que é encontrada nas estruturas sociais (terreno de uma sociologia do conhecimento, de uma teoria sociológica do conhecimento) e que é um dos pontos do que Piaget chamará «círculo latente da classificação das ciências de A. Comte».

Prescruta-se, assim, que no positivismo despontam também as bases de uma atitude anti-reducionista, o que, contudo, não anula o que antes ficou dito.

Uma constante no legado comtiano, qualquer que seja o aspecto valorizado: a desconfiança na metafísica. Com efeito, quer quando a sociologia surge com funções de síntese racional e universal, quase que substituindo aquela, quer quando essa mesma sociologia, ao detectar nos fenômenos sociais uma ordem racional e artificial, apela para um diálogo com uma filosofia dos valores, a metafísica tradicional é rejeitada.

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Çom esta rejeição, inicia-se a penosa e contraditória marcha da filoso­fia contemporânea e das suas relações com as ciências: crucial para a implantação e desenvolvimento destas, não deixará, todavia, de se tomar a origem - nem sempre esclarecida - de irredutibilidades que anquilosaram muita da filosofia posterior, que atiraram as ciências naturais para uma inebriante e ideológica noção de progresso e que remeteram as ciências humanas para intermináveis querelas episte-mológicas, a reboque dos dois processos anteriores.

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CAPITULO II

APOGEU E QUEDA DO OBJECTIVISMO CIENTÍFICO

A objectividade das ciências naturais, entendida como a capacidade destas para captarem as regularidades do funcionamento da natureza e para expressarem as suas leis de uma forma cada vez mais rigorosa e inequívoca, pelo recurso nomeadamente às matemáticas, constituiu e constitui ainda um dos mais importantes «valores» da tradição científica moderna e contemporânea. Pano de fundo das ideologias do progresso, mito do senso-comum erguido por ratificadores critérios de eficácia, este conceito conseguiu projectar-se até aos nossos dias através de dis­cursos que exigem e reivindicam a categoria de cientificidade exacta-mente por o proporem ou o pressuporem. O apuramento da linguagem científica, o refinamento das técnicas e a sistematização dos métodos foram os factores que, enraizados na herança realista, facilitaram o seu advento, o seu êxito e o seu reforço.

Desta objectividade ao objectivismo foi um passo. Digamos mesmo que o objectivismo é a ideologia da objectividade. Vejamos, então, com um certo pormenor, como foi possível operar-se esta transmutação e em que contexto é legítimo assinalá-la. Convém esclarecer a situação porque, se os métodos, as técnicas e a linguagem científicas contribuíram para tal, não bastam para a sua explicação, podendo até, dentro de naturais redimensionamentos, estar ao serviço de perspectivas científicas bem diferentes da do objectivismo.

Este, conforme dissemos, terá de ser inserido na tradição realista. A objectividade que está em causa será assim uma objectividade objectivista realista. Mas de que «realismo» estamos a falar? Do rea­lismo cartesiano e do que dele foi captado pelo materialismo naturalista.

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Logo, poderíamos falar de uma objectividade objectivista realista materialista naturalista. Todavia, uma pergunta se impõe: até que ponto se poderia alongar esta expressão? Talvez indefinidamente! Cada termo que se introduza implica, de imediato, pelo menos um outro. O bom--senso aconselha-nos a que fiquemos por aqui, principalmente ao termos conseguido balizar, ainda que de um modo excessivamente formal, o nosso campo de análise. Análise esta que visará, antes de mais, uma problematização das questões em detrimento de descrições ou de inven-tariações exaustivas.

Vamos começar pelo fim, ou seja, pelo materialismo naturalista. Apesar de Descartes estar longe de poder ser etiquetado como mate­rialista, o facto é que, a _p_artir_d_a ua doutrina do bi-substancialismo (estrutura de base encontrada para validar, dentro do quadro da meta­física, o determinismo mecanicista e o racionalismo idealista), se abriu caminho para o materialismo científico ou naturalista do século XVIII. Pouco nos interessa determo-nos aqui em considerações históricas a este propósito e muito menos exprimir juízos de valor sobre a importância que as posições de autores como d'Holbach ou Diderot tiveram, na sua época, para a evolução do pensamento científico e filosófico. O que nos preocupa é realçar a existência de uma tradição que com eles se inaugura e cujo peso, apesar de sucessivas depurações, continua a não poder ser subestimado a nível ideológico.

É muito difícil traçar os contornos do que, talvez um pouco arbi­trariamente, se apelida de materialismo naturalista. Mas poderemos dizer que ele abrange todas as perspectivas que, recusando os desvios monistas do espiritualismo metafísico, apontam como ser de natureza o da res extensa. A natureza material adquire, portanto, um primado ontológico e, simultaneamente, polariza as démarches metodoló­gicas.

A óptica realista, esta sim partilhada pelo próprio Descartes, afirma a existência de um mundo material exterior ao sujeito (por acrés­cimo, dentro da visão racionalista, cognoscível enquanto tal). Assim, eis que, se este realismo não implica o materialismo naturalista, implica com certeza o objectivismo. Subjacente ao objectivismo, aparece o «postulado da objectividade», o qual nega que os objectos a desco­brir pela investigação científica sejam providos de qualquer projecto interno. São antes assistidos pelo providencialismo, idéia que o mate-

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rialismo naturalista rejeita, não sem ter de fazer face a enormes difi­culdades (')•

Em Descartes, a defesa de uma identidade entre o formalmente demonstrado e o materialmente percebido salvaguarda a postura realista metafisicamente fundamentada. É que Descartes, descortinando a fra­gilidade dos pressupostos racionalistas do realismo da nova ciência, encaminha as suas conclusões e a sua crítica de maneira a reencontrar e a validar a absoluta necessidade de fundamentação metafísica de um real somente apreensível por um conhecimento racional. As dificulda­des de comunicação entre as duas substâncias - a res cogitans e a res extensa - apontam para um papel central da representação, sem nunca se cair (e este aspecto não pode ser ignorado ou subalternizado) num idealismo imaterialista como o de Berkeley. Descartes, conhecedor da situação e das tendências evolutivas da ciência sua contemporânea, embora coloque as teses realistas na dependência de um idealismo subjectivista prévio, exige sempre deste que remeta para uma matéria real, exterior e cognoscível. A_jnatureza_é_inteligfvel pela actividade hipotético-dedutiva da ciência porque a metafísica lhe conferiu uma verdade ontológica que ela, por si mesma, veria escapar-se-lhe.

Mas, apesar dos preconceitos das filosofias da representação, o trabalho científico não deixa de aprofundar (no sentido de prolongar) a percepção comum, mergulhando, pela utilização de técnicas, de ins­trumentos e de métodos considerados como adequados, nas regiões

(') «Vista na sua função de exploração do universo sensível, a ciência apresenta--se, portanto, por direito e com toda a boa fé, como filosoficamente neutra, desprovida de "prejuízos" relativamente ao que vai estudar. Simplesmente, esta face neutra não é a única. A actividade exploradora segue normalmente a par, de uma maneira mais ou menos acentuada conforme as épocas, os domínios de pesquisa, as obras e os investi­gadores, com o "postulado da objectividade" que apresenta a natureza a descobrir como um conjunto "de objectos que não contém qualquer projecto" (segundo a expressão de J. Monod)» (R. Chambon, Le Monde comme Perception et Realité, p. 69).

«O naturalismo materialista e mecanicista que se forma desde o século XVIII, à margem das conentes filosóficas principais mas em ligação com os primeiros grandes sucessos das ciências positivas, procede de um contra-senso fundamental. Escapa-se-lhe que se o ser do universo material é o da res extensa, as teses intrinsecamente ligadas, da autonomia fechada do sujeito na sua vida consciente individual e da constituição (divina, transcendental ou psicológica) do espaço tempo e da materialidade universal, são inevi­táveis. A definição objectivista da realidade física implica a metafísica da representação com todas as suas conseqüências» (idem, p. 62).

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escondidas do real que escapam às possibilidades e às necessidades do conhecimento quotidiano. Não teríamos, deste modo, duas realidades -a do senso-comum e a da ciência - , teríamos antes dois níveis do conhecimento, de descoberta, de uma mesma realidade Ojpostulado da_objectividade, tal como o definimos, traduz e sanciona assim as cojiviçjções jlo^ejiso^comum^ Talvez por isso é que ele ascendeu a dogma do conhecimento científico. Neste contexto, Bernard d'Espagnat chama-lhe «postulado da objectividade forte», contrapondo-o ao «postulado da objectividade fraca»: aquele é o princípio segundo o qual «as afirmações e definições às quais uma ciência atribui o epíteto de objectivas devem todas ser traduzidas (ou pelo menos traduzíveis) em termos de objectividade forte», isto é, de uma objectividade que, não dependendo manifestamente de uma «refe­rência essencial à comunidade dos observadores humanos» (como sucede com a «objectividade fraca» que se apoia, sobretudo, na exigên­cia de um acordo intersubjectivo), é tributária do realismo físico; assim, ela deve dar conta de uma realidade que é independente das nossas percepções sensoriais (A Ia Recherche du Réel, pp 54-56). Mesmo que seja através das representações (2).

(2) De facto, a filosofia cartesiana é uma filosofia da representação. R. Chambon, autor em quem nos temos vindo a apoiar largamente, define, em relação com este tema, as três proposições que, na sua opinião, comandam a interpretação clássica da percep­ção própria da metafísica da representação que «continua a reger os pensamentos que se formam sobre as relações da ciência e da percepção». Ei-las:

«1 .a - O sujeito, mais ou menos nitidamente identificado com a consciência, é um ser fechado no interior do qual residem os fenômenos ou representações.

2." - A percepção é percepção sensível exclusivamente; a relação com o mundo é uma relação ocasional.

3." - A realidade verdadeiramente exterior é situada por "instinto" ou graças a um acto de fé, e conhecida somente por meio de pensamentos» (op. cil., p. 48).

De um lado, temos o sujeito-consciência, do outro, a realidade exterior sem dimensão anímica interna (por oposição ao aristotelismo); as relações gnoseológicas directas entre estes dois pólos, para além de serem ocasionais, são depreciadas em favor das representações intelectuais. Esta «metafísica da representação» é a metafísica da tradição científica moderna, ainda que obscurecida, nalguns dos seus contornos, pela ideologia objectivista e sujeita a sucessivas reelaborações. «Através destas diferentes posições doutrinais - estão aqui em causa, designadamente, as posições de Galileu, Descartes, Newton e Kant -, a mesma evidência se impõe sempre: é absurdo conceber como existente por si uma natureza inanimada na qual tudo, "na" coisa como "no"

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O conhecimento científico é entendido como um aprofundamento progressivo, encontrando-se a sua verdade na sua objectividade. Quando o senso-comum falha na interpretação da realidade é porque perma­nece em níveis superficiais de conhecimento e porque, por precipitação derivada da necessidade de dar respostas a problemas práticos, não ade-qua convenientemente as suas idéias à realidade que o transcende. A ver­dade está na objectividade, o mesmo é dizer, na apreensão das essên­cias e das relações mais profundas dos objectos que é permitida por um paralelismo entre a racionalidade da natureza e a racionalidade do homem. A matemática assume-se como expressão desta racionalidade, como meio de comunicação ajustado, porque repercute e percorre as relações que se querem exprimir inequivocamente.

A tendência na ciência moderna foi, cada vez mais, para não se dissociar o plano da verdade - imutável e pré-estabelecida - do da explicação científica. O resultado traduz-se na absolutizaçãorrgçfrjroça da objectividade dos resultados da indagação científica e da própria objec­tividade da verdade: o primeiro aspecto corresponde exactamente à crença na imutabilidade dos princípios da realidade captados, o segundo, em estreita conexão com o anterior, provém da aceitação da idéia de que a verdade, residindo no mundo objectivo (ou estando nele projec-tada), desde que encontrada, é, para a ciência, universal e eterna.

Com Descartes, assistimos a uma curiosa tentativa - algo con­ciliadora - de, apesar da distinção entre a «ordem da metafísica» e a «ordem da ciência», aquela não asfixiar o discurso desta. Pelo contrário, mau grado o seu idealismo e a sua metafísica do sujeito, Descartes funda o realismo da ciência (e o seu objectivismo) na metafísica que a instala no plano do ser: confere-lhe, como já o dissemos, uma verdade ontológica que, à partida, ela não possuía (como escreveu W. Coolsaet, «o ideal da objectividade dá a prioridade à busca dos fundamentos»). Além disso, acaba por validar de uma forma categórica a tarefa de explicação do mundo empreendida pela ciência ao admitir, bem de acordo com as exigências da física matemática, que «as leis da natureza

universo, é exterior a tudo. O sujeito, de essência oposta, centro independente e autár-cico de existência, não pode deixar de ver numa tal natureza, de uma vez só, a terra pro­metida do conhecimento dominador, e o puro produto de funções subjectivas constituin­tes: divinas, ou transcendentais, ou psicológicas» (idem, p. 62).

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são as mesmas que as do pensamento, porque ambas são projecções de uma Razão absoluta» (J. Ullmo, La Pensée Scientifique Moderne, p. 253). A razão humana, imagem da razão divina, aplica-se necessariamente ao mundo, apreendendo-o progressivamente. Daqui o facto de o objecti-vismo científico estar intimamente ligado à concepção de um progresso cumulativo da ciência levado a cabo por um Homem incessantemente glorificado. Em 1814, escrevia o matemático, astrônomo e físico francês Laplace: «Uma inteligência que, num dado instante, conhecesse todas as forças de que a natureza está animada e a situação respectiva dos seres que a compõem, se além disso ela fosse suficientemente vasta para submeter estes dados à Análise, incluiria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os do átomo mais ínfimo: nada seria para ela incerto e o futuro, como o passado, estaria presente nos seus olhos (...) Todos os seus esforços (do espírito humano), na pesquisa da verdade, tendem a aproximá-lo sem cessar da inteligência que acabámos de conceber, mas de quem ficará sempre infinitamente afastado. Esta tendência própria da espécie humana é o que a torna superior aos animais, e os seus progressos deste gênero distinguem as nações e os séculos, e fazem a sua verdadeira glória» (Essai Philo-sophique sur les Probabilités, p. 8).

Um outro cientista francês já da primeira metade do nosso século, Paul Langevin, aliás crítico acérrimo do «caracter sobre-humano e quase inumano do ideal assim proposto à Ciência» por Laplace, bem como do modelo determinista mecanicista herdado da física dos séculos XVII e XVIII e do caracter estático e apriorista da Razão das Luzes, não deixa, todavia, de defender que «o poder da ciência para conhecer o real como é» constitui, de facto, «a lição que se extrai de maneira par­ticularmente surpreendente de todos os progressos realizados pela Física moderna e de todos os que as investigações actualmente em curso já anunciam». Ou ainda: «Assistimos a um momento particularmente importante dessa coisa que é a nossa razão. Ela hão é dada a priori, não possui os quadros rígidos que antigamente se julgava poder impor-se--lhe. Reflectindo cada vez melhor o mundo exterior, essa razão evolui, penetra progressivamente essa realidade que conhecemos e dominamos cada vez melhor» («A Física Moderna e o Determinismo», in Pensamento e Acção, pp. 101-102, s.p.n.). Quer dizer: apesar de grande defensor de um novo determinismo que realizaria «a síntese do sujeito e do objecto»

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(o que, à partida, o demarcaria do objectivismo tradicional), Langevin não deixa de propor uma interpretação da teoria e da prática científi­cas que é profundamente realista e da qual decorre a sua objectividade. «Os filósofos idealistas e os físicos que partilhavam as suas convic­ções, como Eddington, Jeans, Jordan, Dirac e outros, afirmaram que os progressos recentesjdj^ísica provam que não existe um mundo real independente do pensamento» (...) Quer se devessem a físicos ou a filósofos, essas teses apresentavam-se com tal precipitação que os seus autores foram levados a formular previsões que não tardaram a receber os mais categóricos desmentidos» (idem, p. 88). Isto é, a sua obsessão em esconjurar o idealismo condu-lo, através de um empolamento mordaz do erro científico - cuja positividade e cujas virtualidades ignora - , a paradoxalmente desprezar as virtualidades da dialéctica sujeito-objecto. Hostil à atitude «contemplativa» da ciência, à qual esta ficaria conde­nada dentro dos cânones do determinismo absoluto do mecanicismo, esta posição não o impede também, curiosamente, de vislumbrar na razão científica um reflexo cada vez mais perfeito do mundo físico. Mais ainda, para ele, tal como para Descartes, o conhecimento visa o domínio da natureza pelo homem: trata-se de um conhecimento pro­gressivo, eivado de um grande optimismo que se afirma mesmo sem o recurso à imagem do «espírito superior e omnisciente» de que fala Laplace.

Não sendo propriamente possível isolar o corpo único de uma ortodoxia objectivista ou identificar um credo objectivista, interessou--nos apenas detectar aspectos diferentemente aglutinados para ir reconstituindo aqueles que, na nossa perspectiva, poderão ser consi­derados como os mais importantes postulados do objectivismo cientí­fico. Eis a conclusão a que, entretanto, podemos chegar: o objecti­vismo, enquanto reriuçionismo realista e determinista da actividade científica (que encontrou no materiajismo naturalista uma das suas versões, simultaneamente, mais coerentes e mais inconsistentes) _e enquanto teoria do conhecimento, estipula que existe um progresso cumulativo no conhecimento científico pela descoberta de uma adequaçãocada vez mais perfeita dasrepresentações à realidade exte-rior. A razão capta esta realidade permitindo uma intervenção do homem sobre ela sempre de acordo com as leis imutáveis que a regem. A objectividade científica dá-nos conta de uma verdade que é absoluta porque o seu ser não depende, em última instância, da apreensão

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gnoseológica (neutra), não se altera nem se constrói com ela. A verdade científica é relativa, apenas, porque não representa a totalidade da reali­dade a que se refere - apresenta-nos só uma parte dessa totalidade -mas de que progressiva e idealmente se vai apoderando. Contudo, ela é absoluta porque representa, em si mesma, uma conquista irreversível a que outras se acrescentarão, nunca para a destruírem mas sempre para, a ela se juntando, se sobreporem.

Nesta altura, temos já delineado diante de nós um modelo de cientificidade das ciências naturais cujo interesse seria fundamentalmente histórico se, pelo menos no tocante ao assunto que aqui nos interessa em primeira mão, ou seja, às questões que se prendem com uma epistemologia das ciências sociais e humanas (de que derivam, por sua vez, muitos dos problemas epistemológicos das ciências da educação), ele não permanecesse como um importante ponto de referência. Mais importante ainda quando assistimos a uma sua cristalização (de extensão diversa) como conseqüência, ou como meio, de uma vontade de con­sagrar, para o domínio representado pelas investigações dos fenômenos sociais e humanos, um estatuto científico.

Tentaremos agora apreender os meandros desta situação, bem como demonstrar a sua presente inoportunidade recorrendo, para isso, à história recente das ciências humanas e, muito especialmente, a das próprias ciências naturais. Após este estudo, estaremos finalmente em condições de desembocar no cerne de uma epistemologia das ciências de educação.

Assim, parece-nos ser urnfacto que no século XIX e mesmo no século XX houve a tendência pala reter o modelo científico anterior, sobretudo sempre que se tratou de enaltecer as virtudes do conhecimento cjejitifiraj^aj2tej5_s^ delinear os rumos de novas áreas de investigação como aconteceu com as^ciências sociais e humanas. Mas isto, de facto, não só quando ele era entusiasticamente adoptado, mas também quando ele era, aqui ou acolá, mais ou menos rejeitado como inadequado. O que se passava era que a dicotomia espírito/realidade material - assim como o paralelismo que lhe era adjacente - permitia afirmar, sobre o princípio da adequado rei et intellectus, a existência de uma verdade objectiva a ser descoberta. Verdade esta que era anterior e absoluta. Esta maneira de ver, enquanto ideologia do conhecimento científico, perpetua esquemas gradual e

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efectivamente ultrapassados pela história das ciências. A sua intervenção (também ela efectiva) não pode, contudo, ser ignorada sob pena de não se apreender o substrato de muitos dos debates epistemológicos em torno da constituição das ciências humanas, o que nos preocupa sobre­maneira.

A outra perspectiva que condiciona o nosso posicionamento é a que brota da análise retrospectiva da evolução entretanto sofrida pelo modelo em causa, noatçadamente das transformações de que ele foi alvo com a crítica'kantiana./Com efeito, a partir desta crítica, torna--se mais correcto fafàr~4e-t?ónexão entre pensamento e real, em vez de paralelismo, pois atenua-se a heterogeneidade essencial entre espírito e realidade material pela emergência necessária das estruturas trans­cendentais através das quais se conhece essa realidade. E de facto este idealismo transcendental, e não o de Descartes, que a filosofia apre­senta ao século XIX. Porém, repare-se que aquilo que separa os dois filósofos é sobretudo o fundamento encontrado para o necessitarismo das leis científicas: enquanto que, no sistema cartesiano, ele reside directamente na razão divina que, além disso, assegura o paralelismo entre as leis do pensamento e as da natureza (e, portanto, a sua adequação gnoseológica), com a experiência fenomenal kantiana são as condições a priori desta - as estruturas transcendentais do sujeito humano - que impõem aos objectos as leis da razão de acordo com as próprias estruturas do conhecimento científico.

Como afirma J. Ullmo, «subsiste no criticismo kantiano uma fixi-dez atribuída ao espírito, com as suas formas e as suas categorias dadas eternamente, que acarretava para a natureza a obrigação de se subordinar a este quadro imutável: e o absoluto da verdade permanecia o apanágio deste quadro a priori, espaço euclidiano ou regras lógicas. Assim, a filosofia crítica, ainda que dando um passo considerável para explicar a adequado, reconhecendo o contributo necessário do intellectus à "res", não chegava ao entendimento da perfeita reciprocidade da sua edificação mútua» {op. cit., p. 198). A existência de uma dialéctica sujeito-objecto continua a ser ignorada.

Com efeito, primitivamente, afirmou-se sem rodeios a existência de um mundo exterior funcionando segundo leis rígidas independentes do sujeito que progressivamente as descobre. O cepticismo empirista de D. Hume e o transcendentalismo kantiano introduziram inequívocas

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reservas relativamente à óptica cartesiana. O primeiro, apresentando aquilo que vulgarmente se considera como sendo o real como o conjunto de objectos que imprimem nos nossos sentidos impressões constantes e coerentes; o segundo, vincando a importância do papel das formas a priori da sensibilidade e das categorias do entendimento. Mas repare-se que, no caso de Kant, quando este autor procura superar os excessos metafísicos e empiristas, fá-lo reabrindo o espaço ideológico fundamen­tal da ciência sua contemporânea que era o que se definia, através do rigor da linguagem matemática, pela universalidade e pela fecundidade cognoscitiva dos juizes científicos que logicamente transcendem o sujeito investigador. A restrição da realidade com que lida a ciência à realidade ^J^SÍI^I^SÈJSEÍBJ^I^SISS^ESL}^ recuo da metafísica^jriagjniais para libertar a ciência de um parceirojncómodo do que para reprimir o seu objectivismo. A dimensão transcendental, em última análise, embora abra pistas inesperadas, desloca, mas não rejeita, a independência do real científico e não fere o necessitarismo das suas leis: não condena afinal, no essencial, o paradigma de cientificidade dominante que os séculos XIX e XX herdarão de uma maneira ou de outra. Se assim não fosse, seria completamente impossível perceber o choque epistemoló-gico causado pelo advento dos princípios da física atômica e, com ele, a razão de ser da «crise da física contemporânea» (3).

O Sinteticamente, são os seguintes os principais pontos em que a microfísica questiona a física clássica:

- Princípio da causalidade. O princípio da causalidade «supunha que os fenômenos naturais formavam um conjunto contínuo, o estado dum sistema num dado momento estando ligado ao estado que o segue imediatamente. O domínio macroscópico satisfazia esta condição: ele conformar-se-ia com o princípio natura nonfacit saltus, e nada aí se oporia, portanto, a uma concepção rigorosamente causai. Pelo contrário, o domínio microscópico testemunha um comportamento completamente diferente: o princípio de que a natureza não procede por saltos nunca se aplica nele; mais ainda, o seu traço característico é o de se transformar apenas por saltos bruscos» (A. March, La Physique Moderne et ses Théories, p. 236). A previsão só tem lugar dentro de uma causalidade estatística.

- Conceito de objectividade. «Nem a posição nem a velocidade são produzidas pelo electrão, enquanto factor independente da observação, elas serão criadas à primeira tentativa pela observação. Eis o que Heisenberg exprimia dizendo que "o fim da investigação não é mais o conhecimento do átomo e dos seus movimentos 'em si', o mesmo é dizer sem nenhuma ligação à problemática experimental"; encontrámo-nos, à partida, no centro da confrontação entre a Natureza e o Homem; eis porque a divisão

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Assim, é bom não escamotear o significado do movimento de des­confiança que efectivamente atinge o determinismo estrito e que se estende à própria macrofísica. É designadamente a concepção de lei que se transforma pelo abandono claro das seqüelas que a sua pretendida origem teológica tinha deixado: tanto no preconceito de que ela possuía uma «perfeição intrínseca que se manifestava pela simplicidade da sua fórmula matemática» como no de que cada lei tinha uma «individuali­dade como quando ela exprimia uma "ordenação particular" do Legisla­dor supremo». R. Blanché mostra-nos ainda que, na segunda metade do século XIX, se criam condições para a admissão, na física, de leis do tipo estatístico que até então, por oposição às leis estritas, serviam para demarcar a natureza das ciências sociais da das ciências físicas (La Science Actuelle et le Rationalisme, pp. 61-62). A lei torna-se (ou tende a tornar-se) convencional e aproximada e não absoluta e simples: na natureza tudo é complexo e o cientista mais não faz do que, a partir de deflniçjõe^(arè/írórzaí)_que figuram numa lei - que nãojpode ser separada, portanto, dejtodo_.ujm conjunto teónc^jgm_qug_se integra - , tentar dar conta, por uma ^oxjmjiçãojcó^?í/í^^ natureza. Mas, conjugando-se estes dados epistemológicos com os que acima enunciamos a propósito da microfísica, repare-se no que ocorre de fundamentalmente novo na história das ciências da natureza: é que, passando o real físico a ser entendido como «o que é efectivamente perceptível pelos procedimentos da física», o aproximacionalismo científico não admite mais que se creia, como na física clássica, que se

corrente em objecto e sujeito, mundo interior e mundo exterior, é origem de tantas dificuldades» (idem, p. 199). A necessária iluminação do objecto a observar e a utilização de instrumentos de medida que interferem no comportamento desse mesmo objecto impedem qualquer dicotomia sujeito-objecto - «não é, portanto, a Natureza objectiva, mas muito mais a Natureza na sua relação com o observador que constitui o objecto do estudo da física» (idem, p. 168).

Apesar de não haver uniformidade de pontos de vista acerca do alcance destas conclusões, não existindo um consenso nomeadamente quanto à interpretação de Heisenberg (um dos representantes da chamada Escola de Copenhaga) que chegou a postular o princípio do indeterminismo para a física quântica (Einstein considerava precipitada esta conclusão, pois nada garantia que o futuro a não contrariasse; Meyerson, em oposição extrema, falava de uma «essência abenante» da física quântica), o facto é que, a partir de agora, o anacronismo e o dogmatismo são ameaças que não deixam de pesar decididamente sobre os defensores do modelo de cientificidade tradicional.

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tenda para uma coincidência ideal com um objecto exterior; a natureza do conhecimento científico é definida pela aceitação positiva do que outrora se considerava como uma limitação, como uma imperfeição do conhecimento, progressivamente superável.

Esta crise do conhecimento científico prende-se ainda com a con­figuração do axiomatismo. Anunciado primeiramente pela formulação das geometrias não-euclidianas, ele expande-se, passo a passo, a todas as ciências, desde a física à biologia. «Os teoremas - diz-nos Blanché - deixam de ter uma verdade separada e por assim dizer atomizada: a sua verdade é a sua integração no sistema, e é por isso que teoremas incompatíveis entre si podem ser igualmente verdadeiros, desde que se integrem em sistemas diferentes. No que se refere aos sistemas propria­mente ditos, já não se põe em relação a eles o problema do serem verdadeiros ou falsos, a não ser no sentido lógico da coerência ou da contradição interna. Os princípios que os governam são simples hipó­teses, na acepção matemática deste termo: são apenas formulados, e não afirmados, não são duvidosos, como as conjecturas do físico, mas situam-se para além do verdadeiro e do falso, como uma decisão ou uma convenção» (A Axiomática, p. 15).

Com efeito, no início do século passado, era corrente distinguir-se um axioma dum postulado, caractèrizando-se o primeiro como uma «verdade evidente e necessária por ela mesma», fundamento de toda uma dedução posterior, e o segundo como uma hipótese não evidente. Q que estas novas geometrias_fazem é, a partir de outras hipóteses diferentes da do «postuladode Euclides», negarem axiomas tidos, en-quanto tal, como evidentes. O que assim acontece é que, confundindo--se o estatuto dos postulados e o dos axiomas (porque, afinal, todos são susceptíveis de revisão), só restam sistemas de hipóteses subordinados ao critério da consistência interna: «A verdade incondicional deduzida da evidência dá lugar à verdade condicional de um sistema hipotético--dedutivo» - conclui J. Ullmo (op. cit., p. 210).

Tanto a microfísica como a física relativista (a física do ínfimo e a física do imenso) estão especialmente vocacionadas (ainda que não exclusivamente), dado o seu caracter abstracto - que a física clássica perdeu na precisa medida em que os seus conceitos entraram no concreto das nossas acepções correntes - , para receberem um tratamento axio-mático e até uma formalização axiomática. Ambas «estão para além da

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nossa capacidade de representação concreta». O critério da evidência, nestas circunstâncias, perde cada vez mais terreno, torna-se mesmo inaplicável. O mesmo acontece com a idéia de que as matemáticas atingem uma verdade absoluta e necessária aplicável aos objectos da experiência. Não mais foi possível «crer em qualquer harmonia pré--estabelecida entre um conteúdo unívoco da Razão humana e a exte-rioridade fenomenal» (J. Ullmo, op. cit., p. 212).

O racionalismo arquitectónico ruiu já perante um outro tipo de racionalismo, aquele que Bachelard apelidou de racionalismo polê­mico, sendo agora a actividade científica efectivamente uma actividade construtora da qual resulta um objecto que rompe com os objectos do senso-comum, com o realismo gnoseológico-metafísico, com o rea­lismo empírico, com o idealismo transcendental. A noção de paradigma assume, neste novo contexto, uma enorme fecundidade não só como instrumento de análise da história e da sociologia das ciências mas também - e esta faceta é que nos parece ser a mais decisiva - como pressuposto epistemológico que, em aliança com o axiomatismo. deve, -estar conscientemente presente no interior do próprio discurso cien- *'& tífico. V

Um paradigma, segundo Kuhn, é - por intermédio das teorias que /„. ele representa - um «elemento constituinte da actividade de invés- ^ ^ tigação» e, igualmente, um «elemento constitutivo da natureza», isto é, representa também uma certa «visão do mundo» (La Structure des Révolutions Scientifiques, pp. 61-68 e 136-163) (4). Para M. Bunge,

(4) Como é sabido, T. Kuhn aborda nesta obra (título original: The Structure of Scientific Révolutions), de um ponto de vista histórico e sociológico, as questões ligadas à definição e ao modo de funcionamento do que designa por «paradigmas», a que se ligam duas outras noções: a de «ciência normal» e a de «enigma».

Diz-nos ele textualmente: - A expressão «ciência normal» «designa a investigação firmemente suportada por

uma ou várias descobertas científicas passadas, descobertas que um determinado grupo científico considera como suficientes para fornecer o ponto de partida para outros trabalhos» (p. 25).

- «A Física de Aristóteles, o Almagesta de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton, a Electricidade de Franklin, a Química de Lavoiser e a Geologia de Lyell todos estes livros e ainda alguns outros serviram durante muito tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos de pesquisa para gerações sucessivas de investigadores. Se podiam desempenhar este papel, é porque tinham em comum duas

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«axiomatizar uma teoria consiste em organizar a lista dos seus principais conceitos e dos seus principais enunciados, de maneira tal que se possa fazer derivar os outros conceitos e os outros enunciados da teoria destas idéias principais». Mas acrescenta o mesmo autor que «o estatuto de conceito primitivo e o de axioma não têm nada de absoluto e dependem do contexto» (Philosophie de Ia Physique, p. 168), afinal, do paradigma instituído - dentro de uma tradição de «ciência normal» - ou de um paradigma entre outros providos de uma actualidade concorrente - num período de «revolução científica». Há assim que ter em consideração, no mínimo, que existemjjres supostos ^quer se queiraquer_não)_do conhecimento científico, os quais não são nunca exclusivamente oriundos OÇÍíLdjas„£(ê«c/m:^maí£^lógjca ejnatem^caj)jiejn_das ciências empíricas. Há, dj^sjgnadamemejprejisujpost^ djve_rso_s a ue . interferindo (conjuntamente com os outros) no estabe-

características essenciais: as suas descobertas eram suficientemente notáveis para subtraírem um grupo coerente de adeptos a outras formas de actividade cientifica concorrentes; por outro lado, abriam perspectivas suficientemente vastas para fornecer a este novo grupo de investigadores todos os tipos de problemas a resolver.

As descobertas que têm em comum estas duas características, designá-las-ei de agora em diante por paradigmas, termo que tem laços estreitos com o de ciência normal» (pp. 25-26).

- «Não basta que um problema tenha uma solução certa para que o possamos etiquetar como enigma. Ele deve também obedecer a regras limitando por um lado a natureza das soluções aceitáveis, e por outro as etapas que permitam chegar a elas» (p. 25).

A ciência é, assim, uma investigação subordinada a um conjunto de regras sufi­cientemente bem delimitado, regras estas que usufruem de um prestígio anteriormente adquirido pelo êxito da sua utilização nos processos que conduziram a descobertas tornadas paradigmáticas e que foram capazes de atrair e congregar um importante núcleo de cientistas, o qual, progressivamente, estabelece os problemas a investigar de acordo com as expectativas geradas e os métodos de trabalho disponíveis.

Um paradigma ergue-se, pois, como referência de uma determinada tradição científica de «ciência normal», ao marcar o surgimento de um campo de investigação caracterizado por uma coerência interna. Esta coerência instaura-se a diferentes níveis -teórico, metodológico, instrumental e conceptual - e traduz-se por uma linguagem própria que impede o acesso de todos os não iniciados às questões que são debatidas no seio da respectiva comunidade científica. Tanto as soluções encontradas como os problemas a resolver obedecem, forçosamente, a requisitos entretanto aceites.

Aliás, os factos a estudar não aparecem ao acaso: eles são escolhidos tendo em vista o reforço do paradigma instituído, confirmando-o, precisando-o, e alargando calculadamente as suas margens de intervenção. Tudo o que não possa dar resposta a

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lecjrnento dos paradigmas n u e condicionam as axiomáticas, se repercuteminevitavelnaeriteei^todaaconstrução das teorias científicas. Só por uma questão de método ou de pragmatismo tendente a rentabilizar o trabalho de investigação é que se pode marginalizar, transitoriamente, a importância da sua ocorrência. Nunca para, ultrapassando este nível, projectar tal redução para o de uma exigência inerente a um modelo de cientificidade. Quer dizer, não há neutralidade£Uosj5fica^a£Íência^e resista diante de uma abordagem epistemológica séria que utilize todas as aquisições contemporaneamente disponíveis sobre o processo de formação/construção dos conhecimentos científicos. A história e a sociologia do conhecimento científico (através da noção de «paradigma») e as epistemologias internas das várias disciplinas científicas (com a idéia de «axiomática») conjugam-se neste ponto de forma a autorizarem uma tal conclusão.

este leque de exigências tende a ser considerado como pertencente a uma outra disciplina ou então rejeitado por ser de ordem metafísica. Por isso, Kuhn fala, metaforicamente, de «enigmas» na ciência: na verdade, as questões científicas são formuladas e resolvidas a partir de uma apertada rede de imperativos em vez de serem meramente impostas do exterior, como, com freqüência, se crê.

De facto, o «progresso científico», tão exaltado e admirado, fica a dever-se, sobretudo, a este fenômeno. Poderemos até dizer que a ciência resolve, ou propõe-se resolver, os problemas que levanta enquanto tais - os «enigmas» - ou seja, os que cabem dentro das suas possibilidades de indagação. O surgimento de factos novos assinalará a emergência de um novo paradigma e, com ele, de uma nova tradição científica. As «revoluções científicas» situam-se exactamente nestes pontos de ruptura. Sobre a noção de «paradigma» convirá acrescentar que ela não se reporta à idéia de «descoberta» tal como esta é concebida pelo senso-comum, que vê nela o simples resultado materializado, espectacular e fascinante do trabalho de um cientista mais ou menos isolado. Quando Kuhn dá como exemplo de paradigmas a mecânica quântica, a dinâmica de Newton ou a teoria electro-magnética, o que entra em linha de conta é, como já há pouco destacámos, toda uma ampla teia de componentes que vai desde as vertentes teóricas e metodológicas às conceptuais e instrumentais, as quais se integram em evoluções complexas do processo científico.

Alargado, assim, o esboço daquilo que aqui se entende por descobertas para­digmáticas, começar-se-á a vislumbrar, segundo cremos, a razão de ser da importância que atribuímos à análise desta problemática.

O trabalho historiográfico e sociológico de T. Kuhn, que incide, de modo restrito, sobre a história das ciências físicas, é-nos útil, sobretudo pela conceptualização, de teor epistemológico, que introduz: pretendendo nós, com o máximo de precaução, estendê--lo a outros níveis de reflexão e a outras áreas do conhecimento, não poderemos deixar de reconverter alguns dos elementos por ele adiantados.

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«Não escapamos à filosofia. Não só "todo o homem culto", mas também todo o cientista. Ora esta relação entre a filosofia e a ciência tem um duplo sentido: efeito da filosofia na ciência (conceitos puramente fiIõsoTTc^cõmcTo de "matéria" vão servir de ponto de partida para uma descrição matemática do real), efeito da ciência na filosofia (a relatividade vai obrigar a rever os conceitos de tempo ou de espaço)» (O. Roy, Le

Nouvel Esprit Scientifique de Bachelard, p. 17). Assim, se não há neu­tralidade filosófica da ciência, podemos também acrescentar que não há neutralidade científica da filosofia: há um projecto (complexo e dia-léctico) comum compreendido por vectores diversificados mas nunca incomunicáveis. Esta conclusão acarreta duas outras: qs_obiectos da investigação dasdências naturais não são exteriores ao contexto teórico dessa investigação, quer dizer, não se apresentam como-detentores de um valor realístico inquebrantável; não há, também, mais lugar para

Sintetizemos, para já, as principais perspectivas defendidas: - Rejeição das concepções que projectam, retrospectiva e dogmaticamente, um

determinado conceito de «ciência», desprezando o estudo do «conjunto histórico» duma época e, nele, o que liga os pontos de vista de um homem de ciência aos dos membros do seu grupo.

- Afirmação das «revoluções científicas» enquanto «episódios extraordinários no decurso dos quais se modificam as convicções dos especialistas»; as revoluções científicas revelam ou são conseqüência de uma mudança de paradigma.

- Existe uma anterioridade dos paradigmas relativamente às regras (que dizem o que é o mundo e a ciência) às quais aderem, num dado momento, todos os praticantes de uma mesma especialidade científica. Mas pode haver uma «influência directa dos paradigmas», isto é, os cientistas «podem estar de acordo quanto à identificação de um paradigma sem estarem de acordo ou sem tentarem mesmo estar de acordo sobre uma interpretação ou uma racionalização completa deste. Um paradigma pode portanto guiar as investigações, mesmo se ele se não deixa reduzir a uma interpretação única ou a regras admitidas comummente» (p. 62). Os cientistas, segundo Kuhn, alheiam-se, freqüentemente, da referida «racionalização dos paradigmas» por sentirem que tal não lhes diz respeito: o levantamento e equacionação das regras e hipóteses subjacentes a um paradigma ficará, assim, a cargo de estudos filosóficos e históricos subsequentes: o uso abstracto de conceitos, leis e teorias escapa às preocupações dos cientistas que se inclinam, de preferência, para a prospecção das suas aplicações (cf. pp. 64-66). Há, contudo, a este propósito, uma ressalva que importa destacar: «(...) Quando os cientistas não estão de acordo sobre os problemas fundamentais do seu domínio, a pesquisa das regras assume uma função que não possui habitualmente» (p. 67).

- A aquisição de um paradigma representa um sinal de maturidade para um dado domínio científico, mas pode haver investigação científica sem que haja um paradigma.

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uma fixidez ou uma imutabilidade de quaisquer estruturas transcen­dentais.

Estão deste modo seriamente questionados os meandros dos preconceitos da objectividade científica que, alimentados no seio das ciências naturais, se expandiram enquanto ideologia do conhecimento científico. Falta-nos atacar, todavia, uma questão que lhes está inti­mamente associada e que é a da verificação dos enunciados científicos. Para isso, abordaremos com certo detalhe algumas das posições do movimento neopositivista que dedicou a esta problemática, como é sabido, particular atenção.

De facto, as duas teses que mais largamente contribuíram para o impacto do neopositivismo foram as da crítica à metafísica e da defesa do «princípi|g*f-fa^erifica'bilidade» (uma implicando a outra), ambas sugeridaspoY^Wittgenstein, cpmo reconhece Carnap na sua Intellectual

- A «emergência» de um paradigma faz desaparecer as escolas anteriores, atira os que o não aceitam para o isolamento. Com freqüência, estes ficam ligados aos sectores da filosofia que haviam dado origem às novas ciências.

- Embora Kuhn associe muitas vezes o conceito de «paradigma» ao de «modelo», é evidente a preocupação em se evitarem as cargas negativas deste último e até as confusões em que a utilização do primeiro pode desembocar dada a significação que lhe é conentemente atribuída: «Segundo o uso habitual, um paradigma é um modelo ou um esquema aceite» que funciona de maneira a permitir que qualquer dos exemplos que o reproduz o possa substituir; ora, na actividade científica serão raros os casos em que um paradigma pode ser reproduzido. O paradigma torna-se «um conceito que se destina a ser estruturado e precisado em condições novas ou mais estritas» (cf. p. 39).

- O esoterismo invade os textos e as técnicas dos especialistas que, assim, deixam de ser acessíveis aos leigos. Esta situação provoca, por um lado, uma resistência às mudanças de paradigma, por outro revela-se como um «indicador sensível para assinalar as anomalias e conduzir eventualmente a uma mudança de paradigma» (p. 86).

- Se, num dos diferentes grupos que investigam sob a influência de um mesmo paradigma, se produz uma alteração importante na sua aplicação, a mudança verificada pode afectar revolueionariamente apenas os membros implicados na subespecialidade em causa. Mas pode também assistir-se à importação de um paradigma de um ramo científico para outro.

- Um paradigma é, simultaneamente, um elemento constituinte da actividade de investigação veículo de uma determinada teoria científica - e um elemento constitutivo da natureza - enquanto é tributário de uma certa «visão do mundo». Há, desta maneira, não só uma incomensurabilidade e uma incompatibilidade entre teorias separadas por uma mudança de paradigma como também entre os factos estudados: uma revolução científica é o próprio «deslocamento da rede conceptual através da qual os homens de ciência vêem o mundo» (p. 127).

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Autobiography. Uma metafísica acusada de lidar com pseudo-enunciados }y desprovidos de conteúdo cognitivo e de formular pseudo-questões como,

j y por exemplo, «o mundo exterior é real?» e nem sempre muito claramente • ^ delimitada. Uma metafísica identificada com a filosofia tradicional que

V se quer eliminar como actividade de conhecimento por escapar aos limites de aplicação do princípio da verificabilidade: «O ponto de vista de que estes enunciados a estas questões (da metafísica) não são cognitivos foi baseado no princípio da verificabilidade de Wittgenstein. Este princípio diz, em pjimeiro lugar, que o sentido de uma frase é dado pelas condições da sua verificação e, em segundo lugar, que um eriun-ciado_éj3royido de sentiHõ~sè~e~só se for veríficávêTrb que querçfízer, se_ houver circunstâncias possíveis, não necessariamente actuais, as quais, _se ororTéTêTiiT^JãBêTecerão definitivamente a verdade do enun-

j ciado» (R. Carnap, op. cit., p. 45). ~ Eis, entretanto, segundo Kolakowski, as principais regras do

\,-,">

0 K Í ( 1 a / - Regra do fenomenalismo: contrariamente às pretensões da

.'Ç- neopositivismo:

i i metafísica tradicional, não há_diferença entre essência e fenômeno, quer

dizer, nada há que esteja oculto por detrás das manifestações da reali­dade;.

( 2 a , / Regra do nominalismo: nenhum saber, formulado em termos gerais,xtem equivalentes diferentes dos objectos concretos singulares;

( 3a j- os juízos de valor e os enunciados normativos são desprovidos de qualquer valor cognitivo (esta regra decorre da primeira).

f 4a / Há uma unidade fundamental da ciência: as diferenças qualitativas entre as várias ciências atestam apenas a imaturidade de algumas delas (cf. La Philosophie Positiviste, pp. 11-19).

A condenação dos sistemas tradicionais da metafísica, feita na óptica de um cientismo fisicalista, está bem patente neste conjunto de regras que não sendo exaustivo não deixa, contudo, de sintetizar com oportunidade a mensagem nuclear do movimento neopositivista. Assinale-se que a referida condenação da metafísica se prende com o projecto de combate_a_todas_as formas de irracionalismo, isto é, com a recusa de enunciados que escapem a um controlo através de meios acessíveis a todos. Os juízos da metafísica sobre o «mundo enquanto totalidade», precisamente esses, não se submetem a um processo de

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refutação. Logo, a filosofia analítica atribui à filosofia a tarefa bem modesta de, com os métodos da lógica, se limitar à análise da linguagem - quer corrente quer cientifica - , precisando conceitos e polêmicas, de molde a tomar cientificamente inteligíveis todas as questões existen-tes. A filosofia não pode, em nenhuma circunstância, substituir a ciência, pelo contrário, ela deve servi-la com essa análise lógica das propriedades sintácticas e semânticas da linguagem.

A filosofia, que Russell considerou que deveria «dar conta do mundo da ciência e da vida diária», a quem Schlick negou o direito de ser «um corpo de doutrina» para, em contrapartida, lhe dar o estatuto de uma «actividade» capaz de aclarar as proposições científicas e que Carnap, na mesma linha, critica por, enquanto doutrina, representar apenas a certain feeling or attitude toward the world in a theoretical disguise, é vista, nas interpretações mais vulgarizadas do enfoque neo-positivista, exactamente como algo mais ou menos neutral, a quem se entrega a missão de evitar o comprometimento ideológico-metafísico da ciência. Uma filosofia que é uma «lâmina brilhante e afiada» apos­tada em combater as «crenças irracionais».

A exigência de verificabilidade das proposições científicas, que teve, entre outras conseqüências, a da rejeição dos juízos sintéticos a priori, é perfeitamente compreensível dentro do contexto apresentado. Com efeito, toda e qualquer proposição que não possa ser verificada passa a ser considerada como enfermando dg_uma implícita carência de sentido e atirada para o rol das irracionalidades. Daí, o círculo do neopositivismo: «sentido é verificabilidade e verificabilidade é sentido», sendo o sentido das proposições determinado, em última instância, pelo dado (o qual só pode ser conhecido pela observação e pela experiência imediata). Mas eis que esta convicção não se revela isenta de proble­mas: o empirismo extremo que a percorre não consegue dar conta, por exemplo, do confronto de teorias que se sucedem ao longo da história e até numa mesma época. Além disso, como transitar das proposições particulares para as universais que, na sua grande maioria, não são verificáveis dentro dos apertados cânones que lhes são impostos? E assim que a «coerência lógica do sistema» passa progressivamente a definir o critério de aceitação de uma teoria.

A idéia da existência de um rock bottom of knowledge, de um conhecimento dos dados imediatos, chegou mesmo a permitir a afirma-

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ção da possibilidade de uma verificação definitiva para uma frase pro­vida de sentido. Todavia, atendendo ao caracter hipotético das teorias físicas, esta posição foi sempre olhada com uma certa desconfiança. O optimismo verificacionista veio a ser refreado, inclusive, pelos seus próprios defensores, como foi o caso de Schlick ao precisar que «verifica-bilidade quer dizer possibilidade lógica de verificação» a qual precede a verificação empírica sempre contingente, e de Carnap ao falar de «grau de confirmação» ou de «probabilidade lógica» em relação com a distinção estabelecida entre uma «linguagem teórica» (the theoretical lan-guage) e uma «linguagem de observação» (the observation language), ou seja, entre uma linguagem teórica da rede de conceitos e uma lin­guagem que se admite estar completamente compreendida. Tudo isto é acompanhado da tentativa de se estabelecerem regras de correspon­dência que autorizem a derivação de termos teóricos para a linguagem de observação, o que conduz à determinação do caracter incompleto desta correspondência e, por conseqüência, à detecção do facto de que as grandes transformações nas ciências contemporâneas se operam dentro do quadro de uma possibilidade de referência a entidades inobserváveis.

Entretanto, tanto Carnap como Neurath vieram a defender, apesar de tudo, o desenvolvimento urgente de uma atitude e de uma linguagem fisicalistas, dadas as vantagens de uma intersubjectividade que lhes é inerente e «o facto de os eventos descritos nesta linguagem serem, em princípio, observáveis por todos os que a usam». Mais ainda, defende--se a unidade da ciência através de uma comprehensive unified science fundamentada nas constatações de que <dudo^)_£uej)con^éjjjna_£arte da natureza, isto é, do mundo físico» e de que «toda a linguagem que envolve o conhecimento pode ser construída numa base fisicalista» (R. Carnap, op. cit., pp. 50-53)

As conseqüências destas considerações para o estatuto das ciências sociais e humanas são muito importantes porque dão lugar a inter­pretações que, sobranceiramente, vêem as dificuldades destas ciências como meros sinais de falta de maturidade. Influenciam-se assim traba­lhos que, conforme as propostas de Neurath, se debruçam, por exemplo, sobre os comportamentos humanos somente na mira de estabelecerem, em termos mensuráveis, as dependências entre esses comportamentos e as situações em que ocorrem. Tudo o que se ligue, directa ou indirecta-mente, à problemática dos valores (as intenções, as aspirações do homem,

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etc.) é depreciado dentro dos cânones científicos. O reducionismo fisi-calista opera, obviamente, um estrangulamento no campo de interven­ção das ciências humanas. Paradoxalmente, justifica o ressurgimento da metafísica. Como nos diz Kolakowski, a posição menos radical do positivismo surgiria apenas como «uma secreção natural da vida cientí­fica» procurando demarcar-se da teologia, da religião, etc; a mais radical surge já como «uma tentativa de confirmar a autarcia da ciência», eliminando tudo o que, não podendo ser convenientemente expresso, é objecto de inquietação. Utiliza-se o princípio da verificação para reduzir ao silêncio as lutas ideológicas, os conflitos sociais, a morte, os conflitos de valores: é «uma concepção de vida deliberadamente amputada» (op. cit~p. 238).

Para encerrarmos o preseffieícapítulo, traremos aqui, muito bre­vemente, a perspectiva de íL Popper, pois ela fornece-nos o quadro que aglutina as críticas que fizemos~à4déblogia do objectivismo científico e às diferentes formulações que ela conheceu.

De facto, Popper demarca-se do que ele designa por «teorias do conhecimento do senso-comum» (Conocimento Objectivo, pp. 41-86), ou seja, das interpretações idealistas e subjectivistas (bem como das empiristas e positivistas) que, não se apercebendo do caracter conjec-tural das teorias científicas, buscam e admitem critérios de certeza baseados nas experiências directas ou na imediatez e na clareza dos dados fornecidos pelos sentidos.

Na realidade, nada impede que se tomem as experiências obser-vacionais como plataformas provisórias. Mas, por si, isso não obriga a nenhum compromisso com a verdade ou com a certeza. Procedendo assim, ainda segundo Popper, não estamos a desqualificar essas expe­riências enquanto «processos de decifração assombrosamente excelentes dos sinais que nos chegam do meio», o que estamos é a negar que devam «ser elevadas à categoria de ponto de partida, como se fossem uma garantia de verdade», o que dispensaria, afinal, a actividade crítica inerente ao processo de investigação. Por acréscimo, as^teorias do senso-comum, identificando a procura do conhecimento com a procura da certeza, traem a natureza conjectural do conhecimento científico, em que não há certezas absolutas. A redução, por parte destas teorias, do conhecimento objectivo ao conhecimento demonstravel elimina, pura e simplesmente, o conhecimento conjectural predominante, por exemplo,

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na física e na biologia, e que o nosso autor insere no «mundo dos conteúdos lógicos».

Critérios de verdade, tais como a clareza e a distinção em Descar­tes ou as fontes do conhecimento, repousam invariavelmente na idéia de que «é a pureza da origem o que garantirá a libertação do erro e, portanto, a pureza do conteúdo». A adequação da representação ao objecto depende sempre, em última instância^da intuição obiectivante, do caracter imediato da apreensão de um objecto por e para um sujeito. A objectividade do conhecimento científico assenta no postulado objectivista da capacidade de apreensão originária de um sujeito único: situação aparentemente paradoxal que faz com que o objectivismo científico, isto é, a crença na coincidência da verdade com o objecto, decorra do subjectivismo, isto é, da crença num sujeito que usufrui de um estatuto ontológico e gnoseológico privilegiado.

É nisto que crê o realismo do senso-comum; é isto que as teorias do conhecimento do senso-comum píêtsndem impor à epistemologia da ciência. Mas, como insiste K. Popper, ]as teorias científicas são sempre «conjecturas audazes e engènjjosavseguidas de intentosj-igorosos de asTefutar».

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CAPITULO III

CIÊNCIAS HUMANAS: A INDECISÃO DE UM ESTATUTO OU O ESTATUTO DA INDECISÃO

A íntima relação entre os objectos das ciências humanas, que se vão esboçando, e o sujeito que os estuda, a questão da inerência dos valores às nossas acções, as ameaças, para a liberdade dos seres huma­nos, de um alastramento indiscriminado do determinismo, eis alguns argumentos bem conhecidos que, no essencial, estâo^gojületrás das correntes que acabarão, designad^mente^por opor adexplicaç^carac­terística das ciências físicas ^(compreensão^omo via de conhecimento própria daquelas que eram, para DiTtnêy, as «ciências do espírito».

O conceito de compreensão abrange um modo de conhecimento que, sendo intuitivo e sintético, proporciona a apreensão global do sentido de um objecto enquanto totalidade irredutível aos elementos separados pelo conhecimento analítico e discursivo que caracteriza a explicação, isto independentemente de reintegrações posteriores que esta opere. «Explicamos a natureza, compreendemos o psiquismo», era esta a célebre fórmula de W. Dilthey. Com efeito, a explicação e a com­preensão, como atitudes epistemológicas diversificadas, correspon­diam a um dualismo Natureza/Espírito que, através delas, caucionava a divisão em «ciências da natureza» e em «ciências do espírito». Entre­tanto, Dilthey fala de um «método analítico» para a psicologia com­preensiva, o que aparentemente está em contradição com as definições apresentadas. Mas trata-se aqui mais de um desajuste de forma do que de conteúdo, já que a «análise compreensiva» diz respeito sempre aos elementos de um todo através das relações que os unem, pois a vida psíquica é «uma unidade primitiva e fundamental» e não um composto de elementos resultante de uma síntese enquanto processo de construção de um todo.

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Os factos humanos, entendidos como comportamentos sociais e culturais intencionais - na perspectiva, por exemplo, da psicologia cognitivista ou da hermenêutica da sociologia compreensiva, respec­tivamente de J. Baechler e de Z. Bauman - , constituem o terreno próprio das atitudes compreensivas. Em íntima ligação com esta preo­cupação pela salvaguarda do sentido dos «factos humanos», aparece uma outra vertente dos métodos compreensivos e que é a que tem a ver com uma clara subalternidade para que são atiradas as pesquisas sobre as conexões causais que se apoiam no pressuposto da repetibilidade dos fenômenos (subordinados a leis), pressuposto este que, na sua plenitude. não se coadunaria com a reivindicada singularidade de tais factos.

A defesa da compreensão enquanto modo de conhecimento espe­cífico das ciências humanas - «ciências expressivas» que buscam e interpretam a presença e a intervenção do homem onde quer que elas surjam, contrapondo-se às «ciências objectivas (as ciências da natu­reza) que aspiram a determinar a materialidade dos factos - foi desen­volvida, como já vimos, sobretudo porDiltheyJcf. Introduction à VEtude des Sciences Humaines) precisamente/contra Com te (e S. Mill) que, na sua óptica, não tinha em devida conta a originalidade da dimen­são humana. A par disso, este mesmo autor procura demarcar-se dos excessos que eram apanágio das várias correntes que, no seu tempo, se defrontavam: recusa, de uma só vez, a filosofia que, remando contra a maré, pretendia atingir o absoluto, bem como as concepções daque­les que, apoiados no «progresso histórico», julgavam poder formular a verdade última sobre o homem, ficando, afinal, ela mesma fora da historicidade da existência humana.

Mas as tomadas de posição de Dilthey em prol da compreensão como método de apreensão gnoseológica próprio da actividade das «ciências do espírito», nomeadamente da psicologia e da história, são simultaneamente apostas numa filosofia que é autosnose e hermenêutica histórica, numa filosofia que parte do conhecimento do que está mais próximo (nós próprios) para o que está mais afastado (o conhecimento dos outros), numa filosofia que é ciência do espírito e filosofia da vida. Esta filosofia da «experiência total», da «realidade inteira e completa», ambicionava ser uma superação da metafísica que afirmava a existência de princípios absolutos e que negava a relatividade histórica das filo­sofias. Assim, ela cai dentro do que se convencionou chamar histori-

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cismo. Historicismo que é, para Foucault, «uma maneira de fazer valer por ela mesma a perpétua relação crítica que se move entre a História e as ciências humanas», onde «o conhecimento positivo do homem é limitado pela positividade histórica do sujeito que conhece». Desta forma, «o momento da finitude é dissolvido no jogo de uma relatividade à qual não é possível esçapare=que vale ela própria como um absoluto». «Ser finito - acrescentaToucault/- seria muito simplesmente ser abran­gido pelas leis de uma perspectiva que permite ao mesmo tempo uma certa apreensão - do tipo da percepção ou da compreensão - e impede que esta seja jamais intelecção universal e definitiva. Todo o conheci­mento se enraíza numa vida, numa sociedade, numa linguagem que têm uma história; e nesta mesma história ele encontra o elemento que lhe permite comunicar com outras formas de vida, outros tipos de sociedade, outras significações: é por isso que o historicismo implica sempre uma certa filosofia ou pelo menos uma certa metodologia da compreensão viva» (Les Mots et les Choses, p. 384, s.p.n.)

Consciente, tal como Dilthey, dos ataques que Comte havia feito à metafísica tradicional, Bergson assume-os e encontra para a metafísica uma saída algo inesperada, se não nos dermos conta de todo o caminho que antes tinha sido já trilhado: há um conhecimento metafísico dentro da medida em que se apoie, ele também, na experiência (idéia de uma metafísica positiva). Mas que «experiência» está aqui em causa? Preci­samente a experiência interior - Dilthey falava também de «experiência vivida» (Erlebnis) - dada pela intuição. O Espírito, objecto desta metafísica, não se pode sujeitar às abordagens características das ciências da matéria, pois elas distorcem necessariamente a durée real, contínua e profunda, da vida interior. Bergson tem em mente os trabalhos de psicologia dos associacionistas e o atomismo de Taine que, dentro da sua óptica, desprezavam a pura mobilidade do «eu», sacrificando-a à imobilidade espacial da matéria e ignorando a durée enquanto aventura criadora (La durée est le progrès continu du passe qui ronge 1'avenir et qui gonfle en avançant - L 'Evolution Créatrice, p. 4). A durée identifica--se, inclusive, com a própria liberdade: «Agir livremente é retomar a posse do eu, é recolocar-se na pura durée» (Essai sur les Données Immédiates de Ia Conscience, p. 174). E entronca aqui a inequívoca rejeição que Bergson faz da invasão determinista no território da metafísica do espírito, a qual, a ser aceite, implicava o acolhimento da

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rede dos postulados associacionistas, o mesmo é dizer, da redução dos estados da consciência a átomos da alma submetidos às leis da associação das idéias, tudo isto segundo um modelo tipicamente mecanicista. Ora, «o mecanicismo não tem outro valor que não seja o de uma representação simbólica: ele não poderia ser sustentado contra o testemunho de uma consciência atenta que nos apresenta o dinamismo interno como um facto» (idem, p. 129). Q determinismo mecanicista, consagrado nas ciências físicas - nas ciências da matéria - não poderia ser introduzido, como estamos a ver, no domínio do Espírito pois contrariaria a dimensão de liberdade que lhe é inerente. Paralelamente, esse determinismo traria também consigo uma exigência de repetibilidade das causas dos fenô­menos contra a singularidade dos estados da consciência como momentos de uma historia. «Dizer que as mesmas causas internas produzem os mesmos efeitos, é supor que a mesma causa se pode apresentar por várias vezes no teatro da consciência. Ora, a nossa concepção da durée não aspira a nada menos do que afirmar a impossibilidade para dois estados psicológicos se assemelharem inteiramente, dado que eles

Jy constituem dois momentos de uma história» {idem, p. 150). ^J* Através de tudo quanto está dito, podemos aperceber-nos de que

• o ^ / t ) há em Bergson uma certa exploração, até às últimas conseqüências, de v-' alguns dos aspectos para os quais Dilthey tinha chamado a atenção após

a complexa intervenção positivista. Esta aproximação estre o pensamento de Bergson e o de Dilthey não deve, contudo, impedir que se reconheçam notórias divergências que, entretanto, separam estes dois autores. Gostaríamos de referir sobretudo uma que se reveste de especial impor­tância: com efeito, a pura reflexividade da consciência imediata que veicula a idéia de uma fusão com o objecto e que aparece em muitas das definições que Bergson dá da «intuição», está ausente nas teorizações de Dilthey. Para este filósofo, deverá haver sempre um recurso à media­ção de um «signo sensível» porque, em última instância, só se pode compreender um espírito que se exprime.

No pensador francês, há uma tentativa de recuperação da filosofia metafísica aproveitando-se o terreno privilegiado que é oferecido pela dicotomia ciências do espírito/ciências da natureza ou da matéria (expressão, aliás, de um velho dualismo), encontrando ele férteis argu­mentos nas manifestas insuficiências e confusões reinantes no modo como são conduzidas as indagações nas ciências humanas nascentes.

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Estas optam, freqüentemente, pelo único modelo de cientificidade que, afinal, tinha dado até então suficientes provas de maturidade e que era, obviamente, o utilizado pelas ciências físico-matemáticas. Fugir a este modelo parecia significar a mesma coisa que permanecer naquilo a que Comte tinha sintomaticamente chamado o «estado metafísico».

Ribot, por exemplo, chegou a escrever: «A psicologia experimental apresenta-se como sendo o estudo exclusivo dos fenômenos do espí­rito, conforme o método das ciências naturais e independentemente de toda a hipótese metafísica. Tem um objecto preciso: os factos psíqui­cos, a sua descrição, a sua classificação, a procura das suas leis e das suas condições de existência» (Prefácio ao Traité de Psychologie de G. Dumas, t. I, p. IX, s.p.n.). Esta citação evidencia bem a influência exercida pelos modelos das ciências físicas, a par de uma nítida preo­cupação em se eliminarem todos os compromissos de cariz metafísico, de forma a assegurar o caracter não especulativo das investigações bem como a decorrente neutralidade do psicólogo. Sendo um facto que, apesar destas declarações de intenção, um enorme fosso separa as suas propostas da sua prática - aspecto de que Ribot não deixa de ter consciência - , o que nos interessa, todavia, destacar, uma vez mais, é este projecto de construção das ciências humanas à imagem das ciências da natureza. Projecto que tropeça constantemente nas armadilhas do objectivismo.

Há, deste modo, condições favoráveis para o avanço de uma certa onda de revitalização da filosofia que procura desesperadamente implantar-se (ou reimplantar-se) num campo que parece ser numa boa parte renitente às abordagens científicas instituídas. Até as contradições internas de investigações como as de Ribot apontam nesse sentido. A filosofia (espiritualista) chega mesmo a apresentar-se como sendo a própria «ciência do espírito».

Para Bergson, a intuição «representa a atenção que o espírito presta a ele mesmo. Esta atenção pode ser metodicamente cultivada e desen­volvida. Constituir-se-á assim uma ciência do espírito, uma verdadeira metafísica, que definirá o espírito positivamente em lugar de sim­plesmente lhe negar tudo o que sabemos da matéria» {La Pensée et le Mouvant, p. 85, s.p.n.). Numa outra passagem, escreveu ele ainda: «Não era, aliás, desejável que se começasse pela ciência do espírito: ela não chegou, por ela mesma, à precisão, ao rigor, à preocupação pela

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prova, que se propagaram da geometria à física, à química, à biologia. Contudo, por outro lado, ela não ficou sem sofrer por ter chegado tão tarde. A inteligência humana pôde, com efeito, durante o intervalo, tornar legítimo para a ciência, e investir assim de uma autoridade incontestada, o seu hábito de tudo ver no espaço, de tudo explicar pela matéria» (Durée et Simultaneite, p. 334). Neste contexto, o nosso autor contrapõe à «inteligência analítica», adequada às ciências da matéria, a «intuição filosófica», única capaz de apreender a continuidade do movi­mento do espírito. Isto, não para negar a validade das ciências naturais, mas para lhes restringir a área de acção e de extensão dos seus métodos, nomeadamente dentro da psicologia. Cria, deste modo, as condições imprescindíveis para a defesa de uma destrinça entre o objecto da filosofia e o objecto da ciência, a qual não exclui, muito pelo contrário, o estabelecimento de uma colaboração mútua. Reconhecer-se-á assim, implicitamente, a legitimidade e a especificidade da intervenção filosó­fica, agora aparentemente despida de finalidades hegemônicas: em lugar de um mesmo objecto («o conjunto das coisas») para a ciência e para a filosofia, Bergson propõe a aceitação de obiectos diferentes -_a matéria e o espírito - , respectivamente, para a primeira e para a segunda. A articulação entre a ciência e a filosofa gerar-se-á naturalmente a partir das conexões que existem entre as realidades objectivas com que lidam uma e outra («Os resultados obtidos dos dois lados deverão juntar-se, pois a matéria encontra o espírito». La Pensée et le Mouvant, y. 44).

A fenomenologia husserliana retoma, a seu modo, as reservas que Dilthey tinha levantado diante da intromissão indiscriminada do objec-tivismo naturalista nas ciências do espírito e, assim, Husserl afirma que «se Dilthey tão impressionantemente salientou a impossibilidade de a Psicologia psicofísica servir de «fundamento das ciências morais», ele diria - por seu turno - que a teoria fenomenológica do Ser é a única susceptível de fundamentar umafilosofia do espírito» (A Filosofia como Ciência de Rigor, p. 56). Husserl corrobora, de facto, as posições de Dilthey, mas atacando o seu pendor historicista que faria com que este visse as produções do espírito como resultado de «concepções do mundo» colocadas à mercê do subjectivismo céptico.

Contrariando o naturalismo, Husserl critica o positivismo por, ao querer explicar a actividade espiritual segundo as leis da natureza, ignorar que estas leis, sendo produtos de um discurso cientifico, são

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prioritariamente produções espirituais. Não poderá nunca haver uma ciência objectiva do espírito no sentido em que os positivistas o pre­tendiam: «Estando tudo bem sopesado, eu sou de opinião que nunca houve e nunca haverá ciência objectiva do espírito, doutrina objectiva da psyché, consistindo a objectividade em condenar as psychés, as comunidades pessoais, à inexistência, submetendo-as às formas do espaço e do tempo» («La Crise de l'Humanité Européenne et Ia Phi-losophie», in Revue de Métaphysique et de Morale, 1950, p. 225). Mas Husserl vai mais longe: a própria objectividade das ciências naturais está submetida à «ciência do espírito» e isto pela simples razão de ela ser, afinal, uma produção espiritual, conforme acabámos de ver. Só uma ciência do espírito «se basta absolutamente a si própria: ela toma a forma de uma compreensão de si mesma desenvolvida com coerência e duma compreensão do mundo como obra do espírito. O espírito não é aí espírito na natureza ou ao lado dela, mas esta entra, ela mesma, na esfera do espírito» (idem, p. 256).

A crítica do historicismo apresenta-se em Husserl fundamental­mente como um meio destinado a permitir a emergência dos pressupostos de uma filosofia enquanto «ciência de rigor», distinta da «filosofia ideológica». Esta última, quando se considera científica, tende a impedir o progresso da filosofia legítima, pois, remetendo-se para os dados oferecidos pelas ciências especiais como garantia da sua própria cien-tificidade, não adquire, por isso, nem o método nem «os problemas determinativos dos seus fins» necessários "a configuração de qualquer ciência (A Filosofia como Ciência de Rigor, pp. 56-57). E eis que Husserl acaba por expor manifestamente as suas reservas em relação ao expan-sionismo dos modelos de cientificidade dominantes: «Como nas ciências modernas mais impressionantes, que são as matemáticas e físicas, a parte exteriormente maior dos trabalhos segue os métodos indirectos, somos demasiado inclinados a sobrestimar os métodos indirectos e a depreciar o valor das percepções directas. Mas é precisamente próprio da Filosofia, desde que remonte às suas origens extremas, o seu trabalho cientifico situar-se em esferas de intuição directa, e constitui o maior passo a darjxla nossa época reconhecer-se que a intuição filosófica no sentido autêntico, a percepção fenomenológica do Ser, abre um campo imenso de trabalho e leva a uma ciência que, sem todos os métodos indirectamente simbolizantes e matematizantes, sem o aparelho das

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conclusões e provas, não deixa de chegar a amplas inteleccões das mais rigorosas e decisivas para toda a Filosofia ulterior» (op. cit., p. 73).

Com Husserl, a filosofia - enquanto ciência descritiva das essências da consciência e dos seus actos - torna-se a ciência do espirito por excelência, isto apesar de não ser seu propósito manifesto constituir uma filosofia que concorresse com as ciências, vocacionadas para dar respostas aos anseios práticos do homem, mas antes buscar o fun­damento destas. Para Husserl, como o era igualmente para Bergson, a par de um conhecimento científico há um conhecimento filosófico. Em Bergson, resultando cada um deles de correspondentes dicotomias (espaço - ciência racional/Jí/ree - intuição metafísica); em Husserl, de diferentes níveis de aprofundamento (plano espácio-temporal e plano das essências) no conhecimento de um mesmo objecto. Mas é preciso não esquecer, uma vez mais, que as ciências humanas com que estes autores se deparam são do tipo da psicolo^iq erppirista e associacionista. as quais se submetem amplamente às regras do positivismo naturalista escamoteando, com freqüência, as exigências ditadas pela especifici­dade do seu objecto. Consideramos, assim, ser um facto que o papel fundamentador da filosofia fenomenológica só lhe assentará por direito no que diz respeito às suas relações com as ciências físicas (isto apesar de estas estarem geralmente muito longe de o reconhecerem). No caso das ciências humanas (das «ciências morais ou do espírito»...), não terá suficiente credibilidade um idêntico esquema já que, aqui, a função da filosofia parece ser mais a de as complementar, atendendo às limitações decorrentes do seu objecto espácio-temporal que inviabilizam a apreen­são da consciência como «vivido intencional». No espírito de Husserl -diz-nos Piaget - , nada haveria que levasse a abalar a legitimidade das ciências positivas e ele pensa mesmo reforçar o seu poder fornecendo--lhes um fundamento. A sua convicção parece ser a de que os cientistas recorrem contínua e necessariamente à intuição das essências, mas sem disso se aperceberem: se eles o contestam não é em função da própria investigação científica, mas quando fazem a filosofia da sua ciência e cedem às crenças positivistas ou empiristas. «Pelo contrário, nos terrenos da lógica, da psicologia científica e da história das ciências. Husserl procura menos "fundamentar" do que completar através de disciplinas paralelas^» («L'Epistemologie et ses Variétés», in Logique et Con-naissance Scientifique, p. 34, s.p.n.).

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Piaget, entretanto, alerta ainda para um outro aspecto que se prende mufte^àe-perto com este que temos vindo a referir: é um erro pretender jmpor, como o fez Husserl. uma fronteira fixa entre a filosofia e as ciências. Relativamente à filosofia, o exemplo concreto da psicologia genética mostra-nos como conceitos que não são espácio-temporais se vêm a integrar no campo da indagação científica. Aceitar-se, conforme a crítica husserliana, que os postulados positivistas introduzem impor­tantes lacunas nas perspectivas de abordagem designadamente da psi­cologia não autoriza, por si só, a que se atribuam à filosofia tarefas que, afinal, podem continuar a caber a uma pesquisa científica e experimen­tal que, isso sim, terá inevitavelmente de se renovar. «Com efeito, de duas uma: ou Husserl impôs à psicologia fronteiras demasiado estrei­tas para deixar o campo livre à fenomenologia, ou nós contentámo-nos em escolher fronteiras demasiado largas para aí englobarmos problemas epistemológicos. Mas, nos dois casos, isso quer dizer que se pode estu­dar experimentalmente (e não já apenas pela via fenomenológica de análise da «consciência intencional») o acesso aos conceitos não espá­cio-temporais, e isso é o essencial» («Les Courants de 1'Epistémologie Scientifique Contemporaine», idem, p. 1258).

Como remate de tudo quanto se disse sobre as concepções de Dilthey, de Bergson e de Husserl, pode afirmar-se que, através das vias por eles exploradas, se evolui rapidamente para uma recuperação e para uma legitimação da reflexão filosófica em áreas que, num primeiro momento, a ciência aparentava ter conquistado definitiva e incontes-tavelmente. E isto pelas razões que Piaget aponta: uma vez impostas as características a que deveriam obedecer os objectos das ciências positivas, de modo a prestarem-se aos requisitos da verificação experimental, parece que nada mais resta às ciências do homem, para o serem, do que excluírem, a todo o custo, o que não possa sujeitar-se a um tal tratamento. Ao fim e ao cabo, tanto Bergson como Husserl não põem em causa estas exigências. Se a psicologia científica, nomeadamente, acaba por sair maltratada é porque, a partir da detecção dos bloqueamentos da ideologia que a anima, ambos atribuem tarefas à filosofia que escapa­vam implicitamente aos horizontes dessa mesma ideologia - o posi­tivismo naturalista - e aos seus cânones metodológicos. Talvez um pouco paradoxalmente, da definição do estatuto das ciências positivas brota a justificação da intervenção filosófica, sobretudo no que respeita

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ao estudo do homem, estudo que não se pode deixar encurralar pelo objectivismo naturalista característico de uma antropologia positi­vista. Repare-se, todavia, que se opta deliberadamente por uma aposta na revalorização e na revitalização da filosofia, em detrimento da procura de uma eventual superação, interna à ciência, das limitações encontradas. Assim, a filosofia condena o expansionismo naturalista, mas condena também as ciências ao naturalismo. Em Dilthey, a interdi­ção do determinismo e do causalismo naturalistas, no seio das ciências humanas (e das correspondentes atitudes gnoseológicas) é mais trans­parente - surgindo a proposta de adopção da atitude compreensiva como alternativa a uma unidade metodológica das ciências.

Sobre o fundo de uma antropologia, opera-se a aproximação entre as ciências humanas (ou, pelo menos, entre alguns dos seus níveis) e a filosofia.

Recapitulando, vejamos como e quais as conseqüências que daí advi*f^m.

( Ia-;Dilthey refuta a ilusãojntpl^tnalista da universalidade e da eternidade de um pensamento que se subtraia à historicidade da existência humana e que, designadamente, os sistemas cartesiano e kantiano haviam de alguma forma instituído, de acordo, aliás, com as aspirações da ciên­cia físico-matemática. Esta ilusão penetra profundamente no domínio das ciências humanas. Assim sendo, a necessidade constatada de uma rede epistemológica específica para estas ciências implica uma filosofia que dá conta da determinação do sentido da verdade humana, dentro de uma subordinação das estruturas da razão ao tempo e à história do homem. Eis o primeiro patamar de um compromisso renovado que se estabelece entre a filosofia e as novas ciências. Mas, para se chegar aqui, a par de se destruir um outro compromisso anterior - o que existia entre a filosofia e as ciências naturais, e que ousadamente se expandia em nome da objectividade científica - , abrem-se as portas a um neo--subjectivismo e a um relativismo demolidores. Rickert e Max Weber, por exemplo, aperceberam-se bem deste perigo.

Rickert, como outros neokantianos, chama particularmente a aten­ção para a existência de estruturas formais do conhecimento sem que, todavia, consiga evitar que as mesmas possam ser reperspectivadas à luz de condicionantes históricas. Max Weber, através da sua «sociologia compreensiva» intervém no debate que se desenvolve em volta das

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ciências da natureza (Naturwissenschaften) e das ciências sociais ou da cultura (Kulturwissenschaften), introduzindo a noção de «tipos ideais». Esta noção aparece porque a compreensão da acção social tem de ser feita, segundo ele, pela apreensão do «sentido subjectivamente pensado» dos que a levam por diante. Os «tipos ideais», que não se identificam directamente com a realidade empírica, são sobretudo instrumentos lógicos ao serviço de uma objectividade (relativa) para a sociologia, de forma^aaue esta não caia na pura e simples arbitrariedade.

\ 2 a -yDuas alternativas se desenham: ou, a partir de uma metafísica tradicional, atacar em todas as frentes os desmandos das ciências humanas, ou, admitida a irreversibilidade destas, procurar restabelecer e renovar os direitos de uma inteligibilidade radical e de uma ontolo­gia especulativa. Husserl opta por este caminho, não havendo nunca «abdicação em si mesma da fenomenologia em benefício de uma espe­culação metafísica que, pelo contrário, deveria reconhecer na fenome­nologia a energia clara das suas próprias intenções» (J. Derrida, L'Ecri-ture et Ia Différence, p. 249).

Entretanto, Husserl revela-se muito mais prudente do que Bergson, pois as essências captadas pela intuição filosófica e que asseguram uma base sólida para a verdade não são nele propriamente objectos diferen­tes dos objectos das ciências, elas são antes um nível diferente de um mesmo objecto. Porém, se se tiver em consideração as achegas de qualquer um destes dois autores, será muito difícil, ou até impossível, que as ciências humanas, mesmo que se demarquem à partida de um projecto tipicamente filosófico, não cheguem a ele como única forma de completarem as lacunas derivadas das características dos métodos e dos objectos científicos. A epistemologia piagetiana, por seu turno, vai tentar contemplar as formulações, sobretudo, da fenomenologia, mas

ado-as para o discurso científico. 1 homem, como pressuposto e objecto das ciências humanas,

fastarem-se do modelo das ciências naturais e, assim, da filosofia metafísica clássica dentro da sua tradição intelectualista. Mas o mesmo pressuposto obrigará, concorrentemente, a um outro complexo e con­traditório processo de reaproximação das ciências sociais e humanas da reflexão filosófica. Como escreveu Foucault, as ciências humanas «aparecem no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental simultaneamente como o que é necessário pensar e como o que há a

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saber». Aliás, este mesmo autor acrescenta ainda algo de importante à problemática a que temos estado a aludir, ao falar-nos, a este propósito, duma «dupla e inevitável contestação», ou seja, «a que forma o perpé­tuo debate entre as ciências do homem e as ciências em sentido restrito, tendo as primeiras a pretensão indomável de fundamentar as segundas que, sem cessar, são obrigadas a procurar o seu próprio fundamento, a justificação do seu método e a purificação da sua história, contra o «psicologismo», contra o «sociologismo», contra o «historicismo»; e a que forma o perpétuo debate entre a filosofia que objecta às ciências humanas a ingenuidade através da qual tentam fundamentar-se a elas mesmas, e as ciências humanas que reivindicam como seu objecto próprio o que outrora teria constituído o domínio da filosofia» (op. cit., p. 357). Esta situação epistemicamente constitutiva das ciências huma­nas definiria, em última instância, o seu estatuto. A «complexidade da configuração epistemológica em que elas se encontram colocadas» explicaria ate - em lugar de uma «extrema densidade do seu Objecto» que normalmente é invocada - «a dificuldade das "ciências humanas", a sua precaridade, a sua incerteza como ciências, a sua perigosa fami-liaridade com a filosofia, o seu apoio mal definido sobre outros domínios do saber, o seu caracter sempre segundo e derivado, mas também a sua pretengão ao universal...» (idem, p. 21).

( 4 a 4 A polêmica que gerou o confronto entre, por um lado, a defesa áa^compreensão e da explicação, enquanto atitudes metodológicas distintas e características, respectivamente, das ciências humanas e das ciências da natureza, e, por outro, as propostas reducionistas que apresentam, como modelo único de cientificidade, o das ciências físi­cas ainda não está encerrada. É que, para todos os efeitos, se esta segunda proposta acarreta consigo dificuldades aparentemente insupe­ráveis frente à peculiaridade da investigação das ciências humanas, a primeira não deixa também de encerrar estas dentro de limitações que mesmo sendo, em princípio, legítimas permanecem, contudo, de uma maneira ainda pouco esclarecida, como totalmente estranhas às ciências naturais.

O que se passou até agora foi que, quer quando se impõe o modelo de cientificidade das ciências físicas às sociais e humanas (total ou parcialmente) quer quando se recusa esta exigência como trampolim necessário para a conquista de um estatuto científico para estas, se

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aceita o postulado da objectividade forte como algo que indiscuti­velmente coincide com a natureza dessas ciências físicas. Muitas das dificuldades encontradas pelas epistemologias das ciências humanas são-no, sobretudo, porque se considera que as ciências físicas não par­tilham delas. Paralelamente, todos os assomos de uma interpenetração ou de uma colaboração entre as ciências humanas e a filosofia são inva­riavelmente encarados pelo cientismo como evidentes sinais de fragili­dade destas ciências ou (e) como um derradeiro recurso da metafísica moribunda. E, neste caso, quando se diz da metafísica, acaba por se dizer de toda a filosofia.

Há que valorizar devidamente as novas tendências evolutivas das epistemologias das ciências naturais para _ayaliar o estado actual àp modelo objectivista que, remotamente apoiado e viabilizado pela meta­física, contra ela se vem, todavia, a revoltar.

Reforce-se ainda aqui o aspecto seguinte: tanto nas concepções historicistas de um Dilthey como nas ontologias de um Bergson e de um Husserl, a filosofia não consegue entrosar-se convincentemente na investigação das ciências humanas. Em Dilthey, o relativismo das visões do mundo filosóficas, ainda que difícil de rebater, acaba por surgir como um obstáculo incômodo e indesejável; em Bergson, o objecto da intuição adquire contornos estranhos às exigências de controlo e de verificação próprias da indagação científica; em Husserl, a precedên­cia e a realidade das essências não escapam também a estes mesmos inconvenientes.

Perante o actual panorama das ciências humanas podemos, por último, criticamente adiantar algumas observações fundamentais:

- Ramos disciplinares, resultantes da fusão de áreas de investi­gação vizinhas, mas anteriormente autônomas, multiplicam-se sem cessar;

- O instrumental terminológico e conceptual complexifica-se extraordinariamente dentro de cada ciência inviabilizando a intercomunicação;

- Os campos da indagação objectiva continuam a ser impie-dosamente limitados na ânsia de se assegurar o rigor com a recolha exaustiva de dados da experiência e com o controlo de hipóteses e variáveis através da aplicação de métodos de vali­dação quantitativa;

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- As ideologias perdem progressivamente a legitimidade para assegurar a coerência e a unidade do saber.

Assim, as ciências humanas:

- Tomam-se incapazes de encontrar um sentido global e coerente para a sua produção teórica;

- Pulverizando o homem, a idéia do homem, deixam-no - con­trariamente às expectativas criadas - sem um rumo para a sua existência actual e futura;

- Não promovem uma interdisciplinaridade profícua capaz de assegurar a circulação de conceitos e de problemáticas, bem como a configuração de uma comunidade científica, enquanto tal detentora de uma identidade e de um poder institucional próprios;

- Cavam as interrogações e as oposições em tempo geradoras da sua emergência, transformando-as em fossos que, não permi­tindo o diálogo com a filosofia, não chegam também para caucionar a sua afirmação como ciências de pleno direito (cf. Vários, «Sciences Humaines: Ia Crise», in Magazine Littéraire, n.° 200, pp. 22-89).

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CAPITULO IV

DAS CIÊNCIAS HUMANAS A(S) CIÊNCIA(S) DA EDUCAÇÃO

Como é sabido, Piaget não dedicou nenhuma obra especificamente à epistemologia das ciências da educação, mas a importância dos seus contributos para a epistemologia das ciências humanas tornou-o uma referência obrigatória em qualquer trabalho que com elas, de alguma maneira, se relacione.

Interessa-nos aqui destacar principalmente a classificação que apre­senta das ciências sociais e humanas e a análise a que procede de algumas das correntes epistemológicas fundamentais.

Quanto ao primeiro tópico, o quadro que Piaget propõe comporta quatro grandes grupos: o das ciências nomotéticas, o das ciências his­tóricas, o das ciências jurídicas e o das disciplinas filosóficas (cf. Epistémologie des Sciences de l'Homme, pp. 15-43; «Les Deux Pro-blèmes Principaux de 1'Epistémologie des Sciences de FHomme», in Logique et Connaissance Scientifique, pp. 1114-1119). Apresentamos de seguida, de um modo sumário, o que caracteriza cada um deles.

- Ciências nomotéticas. Caso da sociologia, da antropologia cul­tural, da psicologia, etc, que buscam, nas actividades do homem, leis entendidas como «relações susceptíveis de verdade ou de falsidade quanto à sua adequação ao real». As observações sis­temáticas ou as experimentações, que constituem os seus mé­todos exprimem-se em termos estatísticos. A dificuldade em dissociar as diferentes variáveis em jogo, limitando o alcance dos seus propósitos, não impede, todavia, os seus investiga­dores de verem nos métodos das ciências da natureza um ideal que está sempre presente.

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- Ciências históricas. Têm por objecto «a reconstituição e a interpretação do passado». Apesar de se reconhecer uma ampla complementaridade entre este tipo de ciências e o anterior, tal não deverá, contudo, obstar a que se apreenda a diferença que subsiste entre as orientações de umas e de outras. O propósito do historiador, mesmo quando utiliza todos os dados nomo-téticos, não é o de «abstrair do real as variáveis que convém para o estabelecimento de leis, mas atingir cada processo con­creto em toda a sua complexidade e, consequentemente, na sua originalidade irredutível».

- Ciências jurídicas. Os problemas das normas ocupam aqui o seu espaço: entenda-se por lei um «sistema de obrigações e de atribuições e não uma relação funcional que tenha a ver com a categoria de «verdade». As normas são tributárias de certos valores (quer eles sejam, por exemplo, econômicos ou morais) por elas «codificados sob a forma de obrigações e de atri­buições». Uma precisão terminológica importante - a que se faz entre «normas» e «factos normativos» - marca a distinção subtil, nomeadamente entre a ciência jurídica que se ocupa das «condições da validade normativa» e a sociologia jurídica que se preocupa em «analisar os factos sociais que estão em relação com a constituição e o funcionamento de tais normas».

- Disciplinas filosóficas. Embora coloque este grupo de disci­plinas (onde inclui a moral, a metafísica e a teoria de conhe­cimento em geral) no seio das ciências sociais e humanas, quando tenta esmiuçar as suas principais características Piaget não deixa de enfrentar notórias dificuldades e de cair, até, em implícitas contradições.

Repare-se, para já, no seguinte: apesar de inserir disciplinas filo­sóficas no leque dos vários conjuntos em que metodologicamente divide as ciências humanas, acaba por, de imediato, fazer gorar a curiosidade do leitor ao afirmar, quase sem rodeios, que «importa primeiro de tudo separar delas as ciências particulares que se dissociaram da filosofia». Admite, de seguida, que a filosofia consiste numa «busca de absoluto ou numa análise da totalidade da experiência humana compreendendo--se aí os problemas dos valores», o que faz com que não chegue a haver

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a_ filosofia, mas antes uma multiplicidade de filosofias. Quanto a este último aspecto, estamos em total acordo com Piaget. Porém, o que já nos surpreende é que, tomando como base esta constatação e acabando por pôr em dúvida a existência de um conhecimento ou de um saber filosóficos - dada a ausência de procedimentos de controlo e de verificação - , isso o não tenha impedido de catalogar as disciplinas filosóficas entre as ciências sociais e humanas.

Como é possível sancionar as disciplinas filosóficas como ciências sociais e humanas, ainda que de um modo talvez apenas implícito, não se resolvendo o problema do seu hipotético e difícil estatuto científico e lançando-se mesmo sobre a possibilidade deste estatuto as maiores suspeições? Piaget remeterá a questão para uma «teoria do conhecimento em geral», oposta à «epistemologia das ciências particulares», fugindo, todavia, a primeira ao âmbito das suas preocupações, conforme reco­nhece. Embora se possa aceitar, como princípio, que Piaget se limitou a reproduzir e a organizar o quadro das ciências humanas de acordo com o «estado actual do saber», independentemente do que sobre ele pensava, parece-nos que, dentro desse quadro, foi mais longe do que as próprias pretensões dos filósofos, fazendo-se talvez eco, o que não deixa de ser sintomático, das incertezas e das hesitações não resolvidas dos investigadores dessas mesmas ciências. E aqui oferece-se um fértil campo de reflexão.

Mas tentemos então ver onde poderemos situar as ciências da edu­cação. Sendo comummente definidas como prolongamentos ou como aplicações especiais das diferentes ciências sociais e humanas, elas terão obviamente de se repartir pelos vários grupos considerados, o que, do ponto de vista da educação enquanto possível objecto de uma pes­quisa autônoma, se revelará como manifestamente insatisfatório ou, pelo menos, problemático, se não formos mais além. É que uma coisa será reconhecer e impulsionar a prática interdisciplinar contra a rigidez artificial de fronteiras epistemológicas que conduzem à superespecia-lização, ao empobrecimento e à distorção dos distintos, mas não her­méticos, objectos do conhecimento, ou ainda partir-se de uma íntima colaboração interdisciplinar para a constituição de uma nova ciência cujos contornos progressivamente se estabelecem. Outra será conser­var-se comodamente uma confusão constitutiva que faz com que, de facto, não haja ciências da educação, mas, quando muito, ciências

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sociais e humanas (como a sociologia, a psicologia, etc.) para a educa­ção, restando apurar, mesmo assim, quem define a educação enquanto objecto ou subobjecto de uma pesquisa científica.

A verdade é que, dado o caracter das chamadas ciências da educação - subsidiariamente interdisciplinar dentro da globalidade das ciências humanas constituídas - , não podemos com elas formar um quinto grupo a acrescentar aos que Piaget organizou. Muito menos, colocá-las fora das ciências humanas. Nomotéticas (pelo estudo que fazem das leis de funcionamento dos processos educativos), históricas (quando con­sagram a importância das condicionantes históricas e a originalidade de certas situações educacionais), filosóficas (quando atentam nas questões dos valores dentro dos projectos educativos), jurídicas até (se acei­tarmos que a preocupação com a «condição da validade normativa» afecta directamente a organização dos sistemas educativos), elas, as ciências da educação, permanecem para muitos investigadores, afinal, como uma amálgama de tudo isso e nada mais. Pela nossa parte, acha­mos que esta situação não serve nem está de acordo sequer com tendên­cias fundamentais da investigação educacional contemporânea.

Um outro aspecto importa aqui considerar. Queremos referir-nos à filosofia da educação. Repare-se que o seu aparecimento no leque das ciências da educação cria problemas que, no nosso entender, nunca foram devidamente ponderados. Mas, de facto, eles existem e um dos sintomas de um evidente mal-estar reside nas repetidas (e simultanea­mente fracassadas) tentativas para que se opte pela sua pura e simples exclusão. Vimos já as dificuldades que, de um modo geral, Piaget experimentou ao inserir disciplinas filosóficas no seio das ciências humanas. Porém, vimos também que, apesar disso, ele não conseguiu deixar de o fazer. Por arrastamento, o mesmo se tem passado nas ciên­cias da educação. Todavia, enquanto Piaget equaciona freqüentemente a problemática das disciplinas filosóficas dentro da óptica de que se trata de vestígios, de sobrevivências em vias de desaparecimento e, um tanto ou quanto paradoxalmente, sem estatuto científico, a filosofia da educação aparece, a despeito da inconsistência com que se desen­volvem muitas das suas formulações, como um fenômeno algo ines­perado, mas pleno de vitalidade, ainda que contrarie o processo evolu­tivo do conhecimento científico, isto, claro, quando ele é demagogica-mente interpretado.

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Será que a filosofia da educação acompanhará a «extinção progres­siva» a que estariam condenadas as disciplinas filosóficas das ciências humanas na sua totalidade? Julgamos que não. Primeiro de tudo, porque está longe de ser um dado adquirido que a filosofia, por si mesma, esteja em vias de extinção. Segundo, porque, como já vimos, a evolu­ção recente dos modelos de cientificidade inviabiliza, cada vez mais, a obsessão de que a conquista do estatuto científico implica a recusa de quaisquer parâmetros de teor filosófico. Terceiro, porque dada, ao fim e ao cabo, a inexistência objectiva de filosofias (ou disciplinas suas) como ciências sociais e humanas, não poderá haver uma desagregação interna, paralela ou que, em cadeia, atingisse a filosofia da educação...

Quando muito, a filosofia da educação poderá ser directamente filiada na filosofia, que, à partida, não é uma ciência, passando, então, a estar em causa um outro tipo de questões como, por exemplo, quanto ao caracter metafísico ou não dessa filosofia e quanto à natureza e extensão dessa mesma filiação. Claro que, dentro dessa nova conjec­tura, se começarão igualmente a levantar dúvidas sobre a legitimidade de se continuar a considerar a filosofia da educação como uma ciência da educação. Diga-se de passagem que estas dúvidas não autorizarão nunca a que se dê uma resposta afirmativa à interrogação levantada no início do parágrafo anterior. Elas dizem sobretudo respeito a preocupa­ções dos próprios filósofos e não a epistemologias científicas estritas. A única idéia que se poderá adiantar é a de que os precursores das ciências da educação, ao limitarem-se a fazer delas segregações das ciências humanas consagradas, sem propriamente delinearem uma nova área de cientificidade no que concerne a objecto e métodos, mas enfrentando as solicitações de um campo problematizador com características singula­res, acabaram por desencadear a erupção de múltiplos desajustamentos entre perspectivas de abordagem que, à sua revelia, se insinuaram e o quadro epistemológico disponível. Na filosofia da educação reside, sem dúvida, uma das mais notórias expressões desses desajustamentos: sur­preendentemente, ela aparece com uma estatura a que um puro conti-nuismo ciências da educação-ciências humanas não consegue dar nem apoios nem explicações convincentes.

Curiosamente, foi em muitas das teorizações e das propostas de reforma apostadas na necessidade de cientificação da investigação educa­tiva que se reservou ou se deixou ficar em aberto um lugar - mal escla-

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recido, é verdade - para a filosofia da educação. Não se pode, entretanto, menosprezar o peso negativo de toda uma herança em que se confunde a pedagogia (ou a ciência tradicional de educação) com a filosofa.

Em qualquer dos casos - qualquer que seja a atitude tomada a propósito da questão da filosofia da educação, conforme até aqui foi tratada - , pressente-se que a arrumação das ciências humanas a que Piaget procedeu não consegue dar saída convincente para as perple­xidades suscitadas. Até certo ponto, é compreensível que assim seja atendendo a que as ciências da educação estavam fora do seu espaço de reflexão. Mas, uma vez constatada a sua emergência, embora trêmula e hesitante, não poderemos mais deixar de nos interrogar sobre os seus pressupostos e sobre as suas implicações epistemológicas. E em que contexto? No das ciências sociais e humanas constituídas porque, como vimos, delas não se chegaram a separar no essencial. Fenômeno que, se lhes permitiu um imediato ou implícito acesso aos métodos de inves­tigação existentes (e às suas contradições...), tendencialmente lhes retar­dou também a configuração de um objecto de pesquisa próprio que é igualmente condição para a ocorrência de uma investigação educacional científica. Por isso, não se devem levantar obstáculos a que se questionem de novo e, eventualmente, se redimensionem as ópticas epistemológicas instituídas sobre as várias facetas da problemática das ciências humanas.

Assim, se se refutar e se negar, por exemplo, a filosofia da educação, porquê continuar a falar, então, de disciplinas filosóficas dentro dessas ciências? Onde estão elas? Se, pelo contrário, se reconhece a legitimidade da filosofia da educação, será que, nessas circunstâncias, não há mais fundamento para se permanecer em posições depreciativas sobre a sua natureza científica e o seu alcance? Colocando-a no rol das ciências da educação pareceria que não. Mas o facto é que uma inclusão abrupta entre estas ciências, mais do que uma promoção é uma armadilha, pois, expondo-se a filosofia a toda uma série de ataques que incidem pre­cisamente sobre as suas insuficiências e sobre as suas transgressões ao estatuto científico, despoleta-se e alimenta-se uma ofensiva de maior alcance que põe em causa, por extensão (e por confusão!), a própria legitimidade de intervenção filosófica, qualquer que seja o seu nível e o seu caracter.

Para aprofundar este último aspecto, retomaremos o desenvolvi­mento da conceptualização piagetiana. Logo vemos que a desqualificação

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objectiva da filosofia que nela surge acarreta um conjunto de conse­qüências que concorrem para o reforço da atitude de recusa dos seus possíveis contributos. Com Piaget, somos designadamente obrigados a sobrevalorizar e a circunscrever mesmo o terreno epistemológico ao das chamadas «epistemologias internas ou científicas», atribuindo-se às «epistemologias metacientíficas» e «paracientíficas» («L'Epistémologie et ses Variétés», in Logique et Connaissance Scientifique) um valor sobretudo histórico, o que eqüivaleria, de acordo com o actual estádio de evolução dos conhecimentos científicos, à necessidade e à inevita-bilidade de se colocar a filosofia fora dos circuitos epistemológicos. Com efeito, para Piaget, «metacientíficas» são as epistemologias que resultaram duma reflexão sobre ciências já construídas, ou «inventadas» pelos autores de reflexões subsequentes, de maneira a que se atingisse uma teoria mais geral do conhecimento. As epistemologias de Platão, Descartes e Kant, por exemplo, cabem dentro deste grupo. «Epistemo­logias paracientíficas», como as de Bergson e de Husserl, são definidas como aquelas que se «esforçam por partir de uma crítica sobretudo restritiva da ciência para fundarem, fora das suas fronteiras, um conhe­cimento de forma diferente».

O raciocínio é simples: atendendo ao facto de os trabalhos episte­mológicos que contemporaneamente se revelam como decisivos para as teorias científicas serem os que têm origem no próprio campo destas e de serem elaborados, portanto, pelos próprios cientistas, repercutindo--se nessas mesmas construções teóricas, atendendo ainda a que delas são excluídos os juízos filosóficos por não obedecerem a exigências de controlo e de verificação, nada mais resta do que negar pretensões epistemológicas à filosofia (').

(') Piaget é claro neste ponto: a epistemologia «constituiu, durante muito tempo, um dos ramos essenciais da filosofia, no tempo em que os grandes filósofos eram simultaneamente criadores científicos, como Descartes ou Leibniz, e teóricos do conhecimento: ou ainda em que, sem terem criado novas ciências, tinham aprendido a reflectir em função das próprias ciências, como Platão a partir das matemáticas ou Kant a partir de Newton.

Mas, no estado actual da diferenciação progressiva do saber, eis que as principais novidades epistemológicas nasceram da reflexão dos espíritos científicos sobre as condições do conhecimento nas suas próprias disciplinas e isso sobretudo por ocasião de crises que obrigavam a uma refundição dos princípios e dos métodos» (idem, p. 10).

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A filosofia das ciências, essa, é enraizada por Piaget na tradição filosófica, o que lhe serve de pretexto para precisar o que entende por uma «epistemologia interior às ciências»: é «interna» a epistemologia que, submetendo à análise crítica os conceitos, os métodos ou os prin­cípios utilizados numa determinada ciência, não aspira à construção de uma filosofia, mas antes e apenas a elucidar o valor epistemológico daqueles. Não se tratará, deste modo, de uma reflexão sobre a ciência para se atingirem fins que a ultrapassam, mas de um esforço de clari-ficação e de organização dos fundamentos teóricos - ao serviço do progresso científico - empreendido pelos próprios que os utilizam.

A distinção que Piaget estabelece entre o «sujeito individual» - em que prevalecem a personalidade do indivíduo e a ideologia do grupo de que ele é solidário - e o «sujeito epistémico» - descentrado relativa­mente ao primeiro e que designa «o que há de comum em todos os sujeitos de um mesmo nível de desenvolvimento, independentemente das diferenças individuais» (idem, pp. 14-15) - apoia, com subtileza, toda a separação feita entre a filosofia e o conhecimento científico: «O que é peculiar no conhecimento científico é, portanto, chegar a uma objectividade cada vez mais elevada a um alto grau por um duplo movimento de adequação ao objecto e de descentração do sujeito indi­vidual na direcção do sujeito epistémico» {idem, p. 15). Deste modo, Piaget está em condições de, simultaneamente, explicar e se desem­baraçar de uma objecção que poderia obscurecer os seus pontos de vista: a que realça os conflitos internos que freqüentemente opõem, num cientista, as conclusões dos seus trabalhos científicos e a filosofia de base que ele aceita e quer adoptar. Estamos aqui, segundo a óptica piagetiana, na presença pura e simples de um confronto entre o plano individual e o plano epistémico de um mesmo sujeito, os quais, distin-guindo-se, coexistem. Nada autorizará mesmo que, a partir do facto de um investigador aplicar reflexões filosóficas às questões surgidas no universo científico, daí se conclua que a filosofa continua a ter um papel positivo a desempenhar nas epistemologias científicas. «Neste caso, a epistemologia construída é menos interessante para a ciência» -remata ele lacônica mas convictamente.

Centremo-nos, finalmente, numa outra preocupação de Piaget: a de negar que a diferenciação entre a filosofia e a ciência possa provir de uma oposição entre a natureza dos problemas de uma e de outra. Ela

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residirá antes nos métodos que são empregues. «Um problema de facto ou de dedução não é em si mesmo nem filosófico nem científico e adquire este último caracter na medida em que é bem delimitado (e nomeadamente dissociado das questões de valores vitais) tendo em vista um tratamento que comporta o emprego de métodos que tornam possível uma objectividade suficiente. É por isso que incessantemente acontece que um problema, de início filosófico, possa ser posto em termos científicos» (idem, p. 46). Cumprem-se assim dois objectivos: por um lado, o de travar a marcha às «epistemologias paracientíficas» que, estabelecendo limites rígidos e fixos para a actividade científica, instauravam paralelamente, e com o sabor de uma certa concorrência, um espaço que seria sempre o da filosofia; por outro lado, o de abrir campo para o reconhecimento efectivo de que disciplinas que a filosofia tradicionalmente considerava como suas e que têm uma missão relevante nos estudos epistemológicos (como é o caso da lógica e da epistemologia propriamente dita) não mais lhe pertencem.

Se juntarmos aos aspectos inventariados um outro que é o da des­crença com que, por razões de ordem sócio-ideológica, Piaget olha a possibilidade de reconversão da filosofia e dos filósofos («Por muito inteligente, aberto e dotado de generosidade intelectual que seja um filósofo enquanto indivíduo, ele faz parte de um corpo social consagrado, onde é um membro responsável ao mesmo tempo que um beneficiário»), ficaremos com um quadro satisfatoriamente exaustivo, que pensamos ser tão aproximado quanto possível, acerca do seu posicionamento no que respeita às relações entre a filosofa e as ciências.

Poderemos também dizer que os motivos que explicam as incer­tezas, as vicissitudes e as contradições a propósito da inclusão da filo­sofia no sistema das ciências humanas em geral irrompem igualmente quando se trata de apurar a sua situação no seio das ciências da educação em particular. Isto porque, conforme já o dissemos, se nos limitarmos ao quadro em que estas são comummente apresentadas, isto é, a um quadro em que a investigação educacional se serve, se cantona e se origina unicamente em pesquisas que são geradas a partir de pro­blemáticas suscitadas nas ciências sociais e humanas clássicas - ou que para elas são directamente enviadas - , teremos de aceitar que as críticas que são pertinentes para estas são-no também, por inteiro, para as ciências da educação.

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Assim, a despromoção, dentro da investigação educativa, de toda e qualquer epistemologia filosófica, enquanto esta se pretenda referir ao trabalho científico, mais não será do que uma aplicação lógica e em plena harmonia com a desconfiança com que, logo de início, se olha a sua participação no terreno da teoria e da prática das ciências humanas. Esta despromoção tem como efeito o reforço do descrédito da filosofia porque:

Io - A filosofia, dada a natureza dos seus métodos e de acordo com os parâmetros dentro dos quais Piaget a interroga, não pode colaborar na construção das teorias científicas.

2o - Sendo cientificamente válidas apenas as epistemologias internas, ou seja, as que, brotando do próprio corpo estrito do trabalho científico e elaboradas pelos investigadores, procuram dar respostas às solicitações aí surgidas, torna-se uma conseqüência inevitável a ilegiti­midade de uma epistemologia oriunda de uma reflexão filosófica, nestas circunstâncias, necessariamente externa. Aos sérios recuos que haviam já sido impostos à filosofia nomeadamente nos vectores ético e antro­pológico - remetidos para o campo das ideologias - vem agora acres­centar-se um outro na teoria do conhecimento.

3o - Desprovida da sua vertente epistemológica, a filosofia ficará sem qualquer possibilidade de questionar a amputação infligida, a si mesma e às ciências humanas, na medida em que a sua erradicação progressiva é, ela própria, inerente à cientificidade da investigação destas ciências.

Mas deixemos para já esta questão e regressemos à problemática estrita das ciências da educação.

Como vimos, as ciências da educação representam apenas, à partida, a projecção intradisciplinar de cada uma das ciências humanas já exis­tentes, decorrendo a sua pluridisciplinaridade de uma pluridiscipli-naridade anterior. Assinala G. Mialaret que «é o mesmo que dizer que um historiador da educação deve em primeiro lugar ser historiador, que um economista da educação deve em primeiro lugar ter sido formado segundo os métodos da economia contemporânea...» (As Ciências da Educação, p. 70). Logo, a interdisciplinaridade das ciências da educação, quando existe e se instaura sob a forma de um intercâmbio de informações e de métodos, depende também de uma precedente colaboração nessas

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áreas. Quer dizer, a este nível, a formação dos investigadores da pro­blemática educacional, bem como a organização do seu trabalho, per­manecem num terreno epistemológico que antecede o estudo propria­mente dito dessa problemática. Significa isto que as ciências da educa­ção estão longe de constituírem um novo continente científico, não che­gando sequer a ser um agrupamento a inserir no contexto das ciências humanas. «Assim sendo, o objecto das ciências da educação, na sua dimensão descritiva-explicativa, tem um caracter subordinado, depende das elaborações teóricas das ciências humanas, e, neste sentido, comunga das suas grandezas e misérias, das suas aquisições e ignorâncias, das suas comprovações científicas, das suas intuições e das suas deformações ideológicas» (A. Pérez Gómez, «Ciências Humanas y Ciências de Ia Educación», in Epistemologia y Educación, p. 153).

Paralelamente, o objecto «educação» extravasa cada vez mais o âmbito escolar restrito para se relacionar não só com todas as influên­cias que a sociedade, através das suas estruturas culturais, econômicas e ideológicas, exerce, directa ou indirectamente, sobre os indivíduos (e vice-versa), mas também com a evolução auto-estruturante que sofre cada um desses indivíduos na sua progressão desde o nascimento até à morte. Por outras palavras, assiste-se a um alargamento das dimen­sões sociais (em sentido lato), psicológicas e temporais da educação, o que se deve a um conjunto de três factores que, inter-relacionados em alguns aspectos, nem sempre são, contudo, facilmente compatíveis. Para além dos desenvolvimentos das ciências sociais e humanas, refe-rimo-nos aos movimentos pedagógicos da chamada «Escola Nova» e às doutrinas político-ideológicas que, despontando a partir da revo­lução industrial - e passando pelas duas guerras mundiais - , chegaram até aos nossos dias ainda que através de formas sucessivamente reno­vadas.

Estas doutrinas (com particular destaque para as marxistas) fazem despontar uma polêmica, até agora não definitivamente superada, entre os ideais de uma educação ao serviço da «formação do cidadão» ou da «libertação do homem» que se prolonga no debate que tende a opor a realização do homo humanus à do homo economicus. Esta polêmica arrasta a problemática educacional para limites bem mais amplos do que aqueles que a confinavam aos referenciais pedagógico-didácticos de uma mera aprendizagem ou de uma instrução.

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O estatuto social, político e ideológico da educação, se não é, por si, um facto novo, conhece, porém, uma alteração profunda ao ser considerado e explicado largamente segundo ópticas que, em muito, ultrapassam as simples preocupações pedagógicas. Como se pode ler num estudo da O.C.D.E. publicado em 1970, «haveria a tentação de dizer que a escola deve permanecer fora da política, mas o ensino é uma coisa demasiado importante para ser confiado inteiramente aos espe­cialistas do ensino» (Programmes d'Enseignement à partir de 1980, pp. 11-12). Esta passagem sugere-nos uma outra consideração: o reconhecimento declarado da dimensão política da educação é acom­panhado da tentativa de circunscrever a educação, em si mesma, ao ensino e à escola, isto em termos administrativos e institucionais. Ou seja, ao mesmo tempo que se dilatam as perspectivas de abordagem, insiste-se, de alguma maneira, na compreensão do núcleo do objecto dessa abordagem. Deste modo legitima-se a intervenção política e aumenta-se-lhe a sua eficácia: a confusão entre ensino e educação permite que muito mais facilmente se remetam todas as análises para o campo da fundamentação, da prospecção e da planificação «científicas», as quais assegurarão, assim (sem que se traga ao de cima a problemática das finalidades), a reprodução dos valores políticos e ideológicos pres­supostos (2).

Há, pois, que prudentemente distinguir a identificação, sem mais, da escola (e, dentro dela, do ensino, da aprendizagem ou da instrução) como instituição social, política e ideológica, da educação. Embora o

(2) O reconhecimento da dimensão política da educação escolar pode, todavia, responder, em princípio, a objectivos diametralmente opostos àqueles que expusemos. Estamos concretamente a pensar em M. Lobrot. Como escreveu R. Gilbert, a tese essencial deste autor é a seguinte: «O mundo está neocolonizado; um sistema iníquo, terminando pela divisão da humanidade em classes sociais, consagra os privilégios das classes beneficiadas, outorgando-lhes os direitos às decisões. Emanação deste sistema social, a escola realiza a sua função de reprodução. As tentativas de transformação, nos países socialistas, saldaram-se por malogros, porque se passou da monarquia feudal para o colectivismo, sem preparação psicológica das massas. Unicamente a escola, modificando profundamente a sua estrutura sob o signo da autogestão, pode assegurar esta indispensável transição...» (As Idéias Actuais em Pedagogia, p. 193).

Mas a verdade é que ao ideal educativo auto-gestionário de Lobrot rapidamente se apontou a incapacidade de escapar, logo à partida, a uma assimilação pelo sistema político geral.

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primeiro destes dois planos seja importante para a ratificação do carac­ter amplo do segundo, a sobreposição apressada de um ao outro conduz a deformações consideráveis. Repare-se, todavia, que não havendo uma tal preocupação, o ensino e a escola se convertem facilmente num objecto para um estudo que utilize predominantemente, ou até exclusi­vamente, o pendor descritivo-explicativo das ciências sociais e huma­nas, não só porque esse objecto se apresenta como suficientemente limitado, mas também porque - ao descobrirem-se nele as vertentes que proporcionam o estudo em causa - o mesmo se incorpora, sem apa­rentes dificuldades de maior, nos objectos já constituídos das referidas ciências. Isto, claro, desde que o modelo objectivista seja o modelo eleito.

Nestas circunstâncias, porém, corre-se o risco de as ciências sociais, ao apresentarem-se - dentro de algumas das suas facetas - como ciências da educação, nada mais serem do que instrumentos de projectos polí-tico-ideológicos e não de projectos pedagógicos (relativamente) autô­nomos que, sem deixarem de respeitar a pluridimensionalidade da sua natureza constitutiva, fossem capazes de introduzir no universo cientí­fico o caracter inconcluso, utópico (3) e emancipador do seu objecto--projecto, sem o qual, aliás, não haverá nunca lugar para uma verda­deira colaboração interdisciplinar na investigação educacional.

Entretanto, os movimentos da Escola Nova procuraram reagir à usurpação de que a escola é alvo, sobressaindo, neste contexto, o puerocentrismo, presente em muitas das suas posições. Essa usurpação exprimiu-se designadamente através das técnicas, dos métodos e dos conteúdos adoptados que desventraram a autenticidade das situações pedagógicas e comprometeram seriamente a libertação da criança-aluno. Assim, o «milagre montessoriano» vive sobretudo do respeito que passam a ter as «etapas sensoriais» da evolução da criança e a grande novidade dos métodos de Decroly vem da consagração dos «interesses da criança». O pedagogo belga reforça a importância das situações

(3) Sobre a investigação pedagógica, P. Charaudeau diz-nos textualmente que ela e necessária como utopie de 1'éclatement pois só assim ela «pode agir em profundidade sobre o tecido sócio-humano» («La Recherche Pedagogique: une Activité Possible et Nécessaire», in Revue Française de Pédagogie, n.° 42, p. 25). Utopia que, tal como o diz Paul Goodman, vai encontrar a sua força na realidade do homem e do mundo, não sendo, de forma alguma, um simples sonho.

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vivenciais capazes de dialectizar as relações entre a criança (sujeito) e os valores (objecto) pela organização de um meio escolar susceptível de favorecer o desenvolvimento da criatividade infantil, sem prejuízo da sua inserção na sociedade dos adultos.

Entre outros, dois ataques fundamentais enfrentaram estas pro­postas: o primeiro, o de confinarem as situações educativas às situa­ções escolares (apesar de aprofundarem e alargarem o âmbito destas), o segundo, o de, embora munindo a criança de instrumentos críticos mais aturados, a deixarem ficar, no fundo, desorientada e sem alternati­vas concretas perante a sociedade em que se verá obrigada a viver. É, entretanto, bem verdade que estas reservas assentam freqüentemente em pontos de vista que não são os nossos: ao atacar-se a Escola Nova tem-se amiúde em mente sobretudo o receio de ela ameaçar o papel institucional da escola no seio de uma dada sociedade. As chamadas pedagogias da adaptação (por muitos consideradas como as pedagogias do conformismo), por exemplo, punham a tônica na necessidade de adaptação prioritária às exigências do meio social, tal qual ele existe, pois o que havia que assegurar era o êxito na vida, oferecendo-se aos indivíduos, para isso, «modelos concretos de vida pessoal, numa socie­dade concreta a que a criança pertence ou há-de vir a pertencer» em vez de se valorizar o desenvolvimento do «élan interior» que conduziria esses mesmos indivíduos a becos sem saída, frustrantes e demolidores (B. Suchodolski, A Pedagogia e as Grandes Correntes Filosóficas, pp. 92-93). Concordamos com a forte possibilidade de existência desta frustração (e das suas conseqüências negativas), mas, pelo menos de momento e de acordo com as nossas próprias preocupações, as ilações que daí retiramos são outras.

Para nós, o mais importante é que, apesar de se rasgarem os hori­zontes da actividade escolar, estes continuam a ser - nas propostas a que nos reportamos - demasiado estreitos para que possam albergar a totalidade da actividade educativa, quer quanto à sua extensão quer nomeadamente quanto à natureza filosófica dos seus projectos. Esta actividade ultrapassa decididamente os muros de uma qualquer escola, além dos limites de uma qualquer idade. Paralelamente, os ideais de libertação, por si mesmos, não constituem um projecto educativo se não contiverem à partida finalidades antropológicas, éticas e sociais alter­nativas claramente organizadas. Ora, parece-nos que muitas das for-

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mulações mais ortodoxas da Escola Nova nem sempre tiveram sufi­cientemente em conta este aspecto, o que terá facilitado tanto os seus impasses como a sua rápida assimilação (degeneradora dos seus produ­tos e dos seus métodos).

Mas eis que, dentro destas condicionantes e limitações, algo de francamente inovador despontou e que foi a idéia embrionária da neces­sidade de se construírem projectos (não-conformistas) tipicamente pedagógicos. A falta de uma investigação educacional detentora de um estatuto epistemológico próprio impediu, então, que se explicitasse o que por tal se deveria entender, permitindo-se, inclusive, o avanço importante, mas desenquadrado, das teorias da psicologia científica nascente em detrimento de uma ciência específica da educação. Aliás, era perfeitamente natural que assim acontecesse numa época em que o conceito de ciência da educação era, com freqüência, pejorativamente associado ao de uma pedagogia filosófica tradicional.

Desta maneira, as ciências sociais e humanas passam a dispor de mais um campo de indagação para o qual parece estarem especialmente vocacionadas. Mas este campo, retirado à especulação filosófica e a elas adaptado, desperta a atenção dos políticos e dos ideólogos. Tanto estes como os autores das novas teorias pedagógicas (ainda que por razões que não são as mesmas e que até por vezes se opõem) apoiam--se nas conclusões dessas ciências e reclamam o alastramento da sua intervenção.

É, por seu turno, incontestável que as ciências sociais e humanas vão encontrando na criança e na escola uma interessante área de experimentação, de verificação e de implementação das suas teorias e das suas hipóteses. Destaque-se o estudo dos processos de sociali­zação e de individuação ou individualização, da sociogénese, dos pro­cessos de acomodação e de assimilação, das situações de aprendiza­gem, das relações da escola com a sociedade, do comportamento dos grupos, etc.

A psicologia define a especificidade da infância nas suas diferentes fases; a sociologia descodifica a função social da escola e das ideologias que em volta dela gravitam; a psicanálise descobre as relações entre o comportamento dos homens enquanto adultos face ao seu passado-pre-sente enquanto crianças; a antropologia, a etnologia e a história põem a nu a relatividade dos valores e das culturas. Simultaneamente, os gérmens

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deixados pela Escola Nova fazem cada vez mais com que as funções da escola se não restrinjam às de proporcionar uma instrução ou uma aprendizagem.

Em resumo, se os movimentos de reforma pedagógica, as ciências sociais e as novas doutrinas políticas não chegam a aprofundar a natureza do conceito de educação enquanto objecto de uma pesquisa científica própria, todavia, no meio de múltiplas contradições, acabam por favo­recer a sua configuração. Claro que, depois disso, nenhuma das três frentes referenciadas estará apta a dar o passo em frente pois, como vimos, as motivações e as preocupações de cada uma delas são outras. Tenderão até a contrariá-lo ao substituírem-se ao anunciado - e adiado - discurso científico específico da investigação educacional.

As ciências sociais e humanas existentes tornam-se assim, também, ciências da educação. Mais ainda, importa reconhecê-lo sem precon­ceitos, confirmam, desenvolvem e sugerem mesmo os ideais de ruptura que se vão delineando dentro das correntes pedagógicas mais inova­doras. Com efeito, confirmam muitas das intuições destas e desenvol­vem as suas principais aspirações ao mesmo tempo que levam o espírito científico para uma área em que se associa de uma forma crescente o caracter autoritário e retrógrado dos sistemas pedagógicos tradicionais aos discursos da filosofia que os tinha sustentado. Sendo a «libertação» do ser humano, melhor dizendo, da personalidade da criança, que «per­manece sepultada sob os preconceitos da ordem e da justiça» do adulto, o ideal por excelência da educação nova, é a ciência que fornece os pre­cisos meandros dessa personalidade que se encontra melhor colocada para servir a pedagogia nascente contra as amarras do passado. «A pedagogia - escreveu M. Montessori - não deve ser guiada, como no passado, pelas idéias de alguns filósofos e filantropos» (...). «A pedago­gia deve ressurgir ajudada pela psicologia aplicada à educação, à qual convém rapidamente dar um nome diferente: Psicopedagogia» (For­mação do Homem, p. 20). Dá-se assim um fenômeno particularmente curioso: a ruptura antropológica que a educação nova quer instaurar associa-se de maneira íntima com a ruptura epistemológica que atinge as relações entre a filosofia e as ciências. E a psicologia aparece aqui na linha da frente. Mas, à medida que os reformadores vão explorando e tentando levar à prática os seus objectivos, outras ciências humanas se insinuam. A filosofia, essa, enquanto filosofia geral, é maioritaria-

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mente indesejada; enquanto filosofia da educação - enquanto mais uma ciência da educação - , acabará por ser tolerada pelos epistemólogos e ignorada pelos pedagogos (e pelos filósofos...).

O facto é que, perante as ciências da educação, entretanto consa­gradas ao nível institucional, os especialistas não conseguem deixar de pressentir a fragilidade da sua situação mas não logrando alcançar um acordo sólido sobre o estatuto das ciências que cultivam. M. Debesse, por exemplo, no VI Congresso Internacional das Ciências da Educa­ção, dizia que as ciências da educação não fazem parte das «ciências fundamentais», representando apenas «um domínio particular destas ciências» (a psicologia da educação, nomeadamente, distinguir-se-ia quanto a este aspecto da psicologia genética e da psicologia da criança). As ciências da educação, de acordo ainda com a sua opinião, seriam sempre investigações aplicadas, traduzindo o seu pluralismo a depen­dência em que se encontram relativamente às ciências fundamentais (UApport des Sciences Fondamentales aux Sciences de 1'Educaüon, pp. 75-76). No mesmo congresso, G. Mialaret proclamava que «as Ciên­cias da Educação constituem um conjunto coerente que corresponde a um campo específico da actividade humana e podendo aspirar a uma certa autonomia do mesmo modo que outras disciplinas das Ciências Humanas» (idem, p. 26). O desacordo é evidente...

A primeira posição, a de Debesse, não faz mais do que levar até às derradeiras conseqüências o reconhecimento e a aceitação do carac­ter decorrente da investigação educacional. A segunda, a de Mialaret, embora situando as ciências de educação no quadro epistemológico das ciências humanas, reivindica para elas uma identidade própria. Debesse experimentará grandes dificuldades ao pretender justificar a designação de «ciências» para o que não passaria, afinal, de «aplicações», de «domínios particulares», da psicologia, da sociologia, da biologia, etc. Mialaret, por seu turno, não conseguirá facilmente validar a «autonomia» de um grupo de disciplinas que remetem para um objecto - a educação - que carece de um tratamento que assegure a sua própria autonomia. Confirma-se assim a necessidade premente de se traçarem novos rumos dentro da epistemologia da investigação educativa.

Necessidade a que a organização de quadros ou de tabelas de ciências da educação procura dar uma resposta. Resposta freqüentemente insuficiente, quase sempre demasiado formal. Mas antes de avançarmos

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mais valerá a pena resumirmos aqui alguns dos mais importantes desses quadros.

Um deles é precisamente o de Mialaret (cf. op. cit.) que, assente em três grandes categorias envolventes - a das condições gerais da instituição escolar, a das condições locais da educação e a das condi­ções do próprio acto educativo - , tenta ser coerente com a actual com­plexidade das noções de situação e de facto educativo. Num primeiro grupo da sua classificação, Mialaret inclui as disciplinas que abordam as condições gerais e locais da instituição escolar: a sociologia esco­lar, a demografia escolar, a economia da educação e a educação compa­rada - todas elas ciências que se orientam para o estudo das situações pedagógicas. Num segundo grupo surgem as disciplinas que se preo­cupam com a relação pedagógica e com o acto educativo em si mesmo. Quatro subgrupos são aqui distinguidos:

- O das disciplinas que estudam «as próprias condições do acto educativo», como a fisiologia da educação, a psicologia da edu­cação, a psicossociologia da turma enquanto pequeno grupo e as ciências da comunicação e da criatividade.

- O das ciências da didáctica das várias disciplinas, preocupa­das sobretudo com as questões ligadas aos conteúdos, aos pro­gramas, aos objectivos e, de uma forma geral, aos métodos e técnicas.

- O das ciências e técnicas propriamente ditas. - O das ciências da avaliação.

O terceiro grande grupo de ciências da educação compreende as chamadas ciências «da reflexão e da evolução», nomeadamente a filosofia da educação - preocupada com o problema das finalidades e dos princípios da acção pedagógica - , a história da educação - virada para a história das idéias pedagógicas, das instituições e dos métodos -e a planificação da educação que, em conexão com a teoria dos modelos, visa directamente o futuro.

Mialaret retomará sensivelmente esta mesma classificação no seu livro As ciências da educação onde, com mais minúcia, esclarece os objectivos e âmbitos dos vários grupos disciplinares e de cada uma das ciências em particular (cf. pp. 39-67).

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Neste trabalho, curiosamente, ressalta uma diferença importante: a história da educação passa a ser incluída no grupo das ciências que estudam «as condições gerais e locais da instituição escolar» pre­cisamente através da compreensão da evolução e dos processos de mudança. A sociologia escolar (também designada como sociologia da educação) permite «descobrir a importância e o mecanismo das forças sociais que pesam sobre as situações de educação e as determinam». A demografia da educação, numa perspectiva quantitativista, preocupa--se com as populações escolares - a sua repartição por idades, sexo, grau de ensino, etc. - e a sua relação com os contextos populacionais mais vastos. A economia da educação, a par de situar a escola «entre os factores que actuam sobre a evolução econômica da sociedade», pro­cura igualmente, em colaboração com outras disciplinas, estabelecer correlações entre os processos e produtos educativos e as situações econômicas das diferentes comunidades e indivíduos. A educação comparada «é a parte da teoria da educação que diz respeito à análise e às interpretações - não normativas - das diferentes práticas e políticas em matéria de educação nos diferentes países e diferentes culturas» enriquecida com os contributos da «geografia da educação», segundo a expressão de Debesse. Por seu turno, compete à fisiologia da educação fornecer os elementos necessários para um pleno entendimento da vida e do crescimento da criança e do adolescente em período escolar bem como das condições ambientais exigidas por essa vida e por esse cres­cimento. A psicologia da educação, essa, é constituída pelo «conjunto dos estudos sobre as condutas e os processos (individuais e colectivos) utilizados ou provocados pelos actos e pelas situações de educação». Atendendo à circunstância de que a situação escolar tipo passa quase invariavelmente pela institucionalização de grupos, designadamente da turma, a psicossociologia procura dar a conhecer «todas as leis de funcionamento, de evolução e de estruturação desses grupos». As ciências da comunicação, partindo do princípio de que «não há educação sem comunicação», estudam «as condições de transmissão e de recepção das mensagens». As ciências dos métodos e das técnicas, que um tanto ou quanto confusamente emergem do próprio interior das didácticas específicas e albergam a tecnologia dos audiovisuais, analisam, por exemplo, os métodos magistrais, os não directivos, os métodos de trabalho em grupo, etc.

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As ciências da avaliação, de início genericamente apelidadas de docimologia, dividem-se em docimástica - «técnica dos exames» - e em doxologia - «estudo sistemático do papel que a avaliação desem­penha na educação escolar». Por fim, enquanto a filosofia da educação - sempre segundo a óptica de Mialaret - analisa finalidades, elucida problemas e estabelece princípios, a planificação educativa participa na tomada de decisões políticas pela previsão e planificação de um amplo conjunto de relações entre o ensino e todo o universo social.

Podemos assim verificar que o progressivo, embora difícil, reco­nhecimento da especificidade da educação tem sido acompanhado pela tentativa de esboço de ciências «relativamente autônomas». E dentro de um tal contexto que, em França, se desenvolvem a educação compa­rada, a metodologia, a ciência da avaliação e, cada vez mais, a ciência dos métodos e técnicas de análise e de construção de programas. Ao mesmo tempo, no mundo anglo-saxónico (onde se prefere falar de investigação educacional em vez de ciências da educação e se salva­guarda uma identidade terminológica nem sempre consonante com uma identidade dos respectivos conteúdos) tomam a dianteira os estudos das tendências, dos curricula, da avaliação, das aptidões e atitudes, da administração escolar, da formação de professores, dos métodos de ensino e de aprendizagem, além da educação comparada (cf. Louis Marmoz, «Constitution et Identité des Sciences de 1'Education - II», in Les Sciences de 1'Education, n.° 4, 1982).

Entretanto, Quintana Cabanas (cf. «Pedagogia, Ciências de Ia Edu-cación y Ciências de Ia Educación», in Vários, Estúdios sobre Episte-

mologia y Pedagogia, pp. 75-105), enfrentando directamente a impor­tante questão do lugar e do estatuto da pedagogia no seio das ciências da educação, a par de considerar que aquela não se diluiu nestas, afirma que, sem ser a Ciência da educação, a pedagogia é uma das ciências da educação. Ciência prática e normativa, preocupa-se com a acção de educar, com o acto educativo, enquanto que as outras disciplinas, sendo teorético-descritivas, têm como objecto de estudo o facto educacio­nal constituído pelos próprios fenômenos educacionais, abstendo-se sempre de qualquer intervenção reguladora. As ciências da educação -empírico-descritivas, nomotéticas e teoréticas - procuram responder à questão «o que é a educação?» e são, nomeadamente, a biologia da educação, a psicologia da educação, a antropologia da educação, a filo-

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sofia da educação, a sociologia da educação, a economia da educação e a história da educação. Por sua vez, a pedagogia, a quem interessa a questão «como deve ser a educação» - essencialmente práxica - des­dobra-se no conjunto das ciências pedagógicas. Estas, sendo subdivisões da pedagogia, nunca deixam de pertencer à grande família das ciências da educação em sentido amplo, às quais Quintana Cabanas propõe que globalmente se chame educologia ou ciência da educação. Mas, entre­tanto, as ciências pedagógicas inserem-se em três grandes grupos: o da pedagogia teorética geral - onde cabem a pedagogia fundamental, a teoria da educação, a história da pedagogia, a metodologia pedagógica, a pedagogia prospectiva, etc. - , o da pedagogia teorética especial - que compreende a didáctica geral e especial, a tecnologia educacional, a avaliação educacional, a pedagogia social e diferencial, etc. - e o da pedagogia aplicada - onde se incluem a pedagogia empresarial, a peda­gogia dos meios de comunicação social, etc.

Do exposto, facilmente se concluirá que o autor citado defende uma íntima colaboração entre a pedagogia - e as ciências pedagógicas - e as ciências da educação tomadas em sentido estrito, contrariando deste modo a tendência fortemente expendida para se eliminar(em) a(s) primeira(s) em função das segundas.

Importa ainda considerar aqui uma outra frente onde as ciências da educação se deparam com importantes dificuldades: referimo-nos con-cretamente à problemática da sua competência e eficácia para a resolução de questões próprias das situações, dos factos e dos processos educativos no âmbito de uma reivindicada articulação entre a investigação e a prática. Neste campo vários aspectos têm de ser considerados:

- Algumas ciências da educação - caso da filosofia da educação, da história da educação e mesmo da sociologia da educação ou da análise social da educação - não visam, à partida, uma aplicação imediata dos resultados das suas indagações à prá­tica. Sendo fundamentais para a compreensão desta e para uma intervenção responsável nos mecanismos e direccionamento da sua progressão, não oferecem, todavia, nem instrumentos nem soluções para uma acção do quotidiano que funcione dentro dos limites das expectativas e das exigências conjun­turais.

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- Outras ciências, caso, por exemplo, de uma psicologia da edu­cação onde cada vez mais se entrelaçam e afirmam as psico­logias do desenvolvimento e da aprendizagem, pretendendo usufruir de um papel fundamentador central das práticas edu­cativas, enfrentam dificuldades oriundas quer das limitações do seu actual estádio evolutivo, quer de um implícito estrei­tamento do terreno pedagógico, quer ainda de um certo bloqueio na tradução das suas conceptualizações para as situações edu­cativas concretas.

- De uma forma geral, as exigências ditadas pela utilização do método experimental, e mesmo do método clínico, geram uma prática investigativa construída em contextos que levam a um certo artificialismo objectivo das situações estudadas, isto, sobretudo, pela necessária redução do leque das variáveis con­sideradas.

- Estando-se, em última análise, diante de duas práticas - a investigativa e a da acção educativa concreta - , cada uma delas acaba por funcionar dentro de lógicas em larga medida não coincidentes: a primeira tem freqüentemente como objec­tivo prioritário a produção de saberes; a segunda, enfrentando as solicitações e os impasses gerados nas condições da realidade escolar e extra-escolar, busca sobretudo directrizes pragmáticas e eficazes.

- Se os investigadores, por exigências ditadas pelos próprios métodos de pesquisa, se distanciam calculadamente - e, por vezes, até inadvertidamente - das situações e processos que são objecto do seu estudo, é também verdade que aos vários agentes educativos falta, em termos da sua formação e da sua actuação, uma ligação funcional ao trabalho daqueles.

- A própria linguagem especializada dos discursos das ciências da educação torna-as cada vez mais inacessíveis aos seus potenciais utilizadores.

A superação destas dificuldades não pode residir apenas numa reorganização dos canais de informação de modo a facilitar o acesso constante dos professores aos resultados da investigação no domínio das ciências da educação. Contemporaneamente tem-se consciência de

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que tanto a investigação como a actuação dos professores só poderão progredir se ambas se implicarem plenamente. Implicação que obriga, antes de mais, a que se revejam o estatuto e os objectivos da forma­ção dos docentes. A «investigação-formação», rejeitando liminarmente a idéia de que a formação de um profissional de educação se consegue pela sua adaptação passiva a directrizes e a princípios previamente esta­belecidos, exige coerentemente:

- O diálogo incessante entre os projectos de formação e os pro-jectos educativos;

- A valorização do pressuposto de que não há educação sem auto-educação;

- O comprometimento dos professores nas situações educativas em circunstâncias tais que eles tenham acesso à compreensão da complexidade das mesmas, designadamente através da arti­culação entre as acções pedagógicas e o desenvolvimento de condições experimentais que possibilitem o conhecimento crí­tico dos respectivos mecanismos;

- A validação do processo de elaboração teórica como elemento formador no quadro de uma dialéctica entre o discurso subjec-tivo, que se apoia na experiência concreta do quotidiano, e o discurso científico assente numa problematização objectiva do real (cf. Les Sciences de l'Education, n.° 4, 1986).

Com efeito, porquê não falar decididamente de uma ciência espe­cífica da educação, ou seja, da ciência da educação!

«Apresentou-se o pluralismo das ciências da educação como uma vantagem. É verdade que o pluralismo constitui sempre a melhor defesa contra certas tentações reducionistas. É verdade também que o pluralismo está epistemologicamente fundamentado quando se estudam os proble­mas e as práticas da educação, porque os seres e as coisas de que nos ocupamos então não são redutíveis a um princípio único. Mas se, como foi possível afirmá-lo, este pluralismo significa que cada ciência da educação constitui um domínio particular das ciências fundamentais (biologia, psicologia, etc), e "sublinha a sua dependência em relação às ciências fundamentais", então o pluralismo toma-se pluralidade, diver­sidade e parcelamento, em última instância, dispersão de esforços e do conhecimento» (L. Not, «Sciences ou Science de FEducation», in Une

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Science Spécifique pour VEducation, p. 24). De facto assim é, pelo menos do ponto de vista da investigação educacional: os resultados obtidos pelas ciências humanas em geral, e que interessam à educação, correm o risco de não a servirem cabalmente se não houver uma ciência que os seleccione, os reagrupe e os sintetize, colocando a essas outras ciências questões próprias (para além das que tenta resolver no seu próprio seio) e fornecendo-lhes elementos que transcendam os interesses do seu âmbito naturalmente restrito. Só assim é que estaríamos auto­rizados a falar de uma verdadeira colaboração interdisciplinar.

A ciência da educação, que terá como objecto a educação con­siderada dentro dos seus diferentes níveis - nível institucional, nível dos movimentos pedagógicos e nível dos programas de investigação científica - e como método um «método integrativo» (4), permitirá o tratamento autônomo (relativamente autônomo, entenda-se) da proble­mática educacional. O caracter necessariamente transdisciplinar desta ciência decorre da multidimensionalidade do seu objecto: ela terá de contemplar abordagens diversificadas (de cariz sociológico, psicoló­gico, etc), mas remetendo-as à partida e dialecticamente para as fina­lidades próprias do conceito de educação (revisível) que dinamiza a sua indagação e cuja realização ela mesma visa. Distinga-se assim transdisciplinaridade de interdisciplinaridade e nunca se faça depender aquela da intradisciplinaridade (5)-

(4) «É um método baseado num tratamento de conjunto aplicado a informações recolhidas por uma pesquisa cientifica. Estas provêm do próprio estudo do domínio edu­cacional ou são fornecidas por ciências que estudam domínios em interacção com o pre­cedente (psicologia, sociologia, economia, etc). O tratamento consiste em integrar toda a informação nova no conjunto construído com aquelas de que já dispúnhamos. Esta inte­gração tem por efeito quer completar este conjunto quer transformá-lo, fazendo aparecer novas informações que os dados recolhidos, considerados separadamente, não permitiam prever e que resultam precisamente do facto de os pôr em relação. Estes sistemas novos e de início imprevisíveis constituem emergências que caracterizam os sucessivos níveis do conhecimento relativo à educação». Acrescente-se que se trata de um método reflexivo, sintético, teórico, discursivo, racional e compreensivo (L. Not, «La Méthode Integrative comme Méthode de Ia Science de 1'Education», in op. cit., pp. 51-54).

(5) Fixemos o sentido de alguns conceitos que são outros tantos utensílios epistemo-lógicos, ou seja, os conceitos de multidisciplinaridade, de interdisciplinaridade, de intra­disciplinaridade e de transdisciplinaridade (cf. J. Cardinet e M. Schmutz, «Critères pour un Catalogue des Recherches Pédagogiques», in Paedagogia Europaea, XI, 1976 [1]):

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A ciência da educação não pode apenas ser uma ciência descri­tiva: será também uma ciência normativa em que a componente utó­pica tem um papel central. É que esta ciência lida com um objecto inconcluído, não podendo, por isso, bastar-lhe o conhecimento de um objecto já construído. Se tal acontecesse, ela estaria somente a contribuir para a reprodução dos modelos educativos existentes, par­tindo implicitamente do princípio de que eles eram definitivos. Se, em nome de um qualquer objectivismo científico, se procurarem os fundamentos da normatividade pedagógica veiculada por uma acção educativa apenas na estrutura nomotética do presente, acaba por se cumprir - através do compromisso assim automaticamente assumido - uma função ideológica bem precisa que urge pôr a descoberto, pois o desempenho desta função constituirá, afinal, a prova mais per­tinente da impossibilidade de se conceber uma actividade científica neutra.

- Multidisciplinaridade. Diz-se que há multidisciplinaridade quando, para realizar uma pesquisa determinada, se faz apelo ao contributo de diferentes disciplinas, tratando--se, contudo, de uma colaboração fortemente localizada e limitada quanto ao seu alcance: os interesses próprios de cada uma das disciplinas implicadas não sofrem qualquer alteração, conservando-se uma completa autonomia dos seus métodos bem como dos seus objectos particulares.

- Interdisciplinaridade. Aqui há já uma coordenação mais acentuada que permite a existência de uma intercomunicaçâo efectiva entre os investigadores, o que tem como conseqüência (e como pressuposto) adaptações com caracter de continuidade - e devi­damente planificadas nos métodos das várias disciplinas envolvidas. O objectivo comum torna-se um subobjecto para todas elas.

- Intradisciplinaridade. Identifica as particularizações de que o objecto de uma disciplina pode ser alvo dando origem a uma subdisciplina que, como tal, não chega a deter uma autonomia nem a nível de método nem de objecto. Há uma relação vertical e hierárquica, distinta da horizontalidade que se instaura na multidisciplinaridade, na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade de que falaremos a seguir.

- Transdisciplinaridade. Com os trabalhos transdisciplinares alcança-se já um método comum que procura satisfazer prioritariamente as exigências específicas de um novo objecto. Anuncia-se e realiza-se, no fim de contas, a emergência de uma nova disciplina, de uma nova ciência, sem que isso aniquile os seus diferenciáveis matizes constituintes. Eis o que se passa com a ciência da educação. Com efeito, a ideia de transdisciplinaridade traduz, de uma maneira exacta, a heterogeneidade constitutiva desta ciência em que a multiplicidade das suas vertentes se submete, contudo, à uni­dade complexa do seu objecto. Este não é mais um simples objecto - ou subobjecto -comum, ele é antes o objecto único de uma única ciência.

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A configuração do objecto da ciência da educação dentro dos cânones de um «objectivismo forte» - para além de ser demagógica e de representar um recuo relativamente às tendências gerais da evolu­ção dos discursos científicos contemporâneos - obrigaria a que se eli­minassem as margens de transgressão que continuamente assaltam o conceito que serve de suporte a esse objecto. Em resumo, preterir-se--iam essas mesmas margens de transgressão em favor da prática insti­tuída, indo-se obviamente ao encontro da ideologia que a alimenta e favorecendo-se o ocultamento da transitoriedade social e histórica em que ela foi tecida. Com efeito, «só podemos aspirar a um conhecimento definitivo sobre a essência do objecto educação na medida em que se pressuponha o referido objecto como algo definitivamente configurado, pré-existente, reprodutível» (J. Gimeno Sacristán, «Explicación, Norma y Utopia en Ias Ciências de Ia Educación», in Epistemologia y Educa-ción, p. 161). A cientificação da investigação educacional comportaria, desse modo, custos demasiado elevados: constrangeria e esvaziaria, em última análise, o necessário desenvolvimento das teorias e das práticas educativas.

Podemos dizer que a educação é, num dos seus aspectos funda­mentais, um processo de formação dirigido por determinados quadros de valores que delineiam e emergem do próprio conceito de educação assumido. Mas esta definição é demasiado formal para que, por si só, possa constituir uma base segura para a ciência da educação. Forçoso é que se esclareça o conteúdo desses valores e, concomitantemente, se escolham os meios de acção e os contributos científicos - próprios ou oriundos de outras disciplinas - susceptíveis de favorecer o aprofun­damento e a realização do conceito de educação por que se optou e que progressivamente se torna objecto de uma indagação específica. Ora, na formulação deste «conceito» e deste «objecto» desempenham um papel fulcral as teorias educativas, as quais circunscrevem os campos de análise de acordo com os projectos pedagógicos que encerram. Estas teorias (e estes projectos) são tributárias de sistemas de valores de que dimanam normas, isto é, directrizes que visam a prossecução dos valores em causa. Ter-se-á de encarar agora a provável e até inevitável presença da dimensão ideológica.

A filosofia - aqui a filosofia da educação - , através de uma teoria das ideologias (em cuja edificação participa conjuntamente com as

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ciências humanas - nomeadamente com a sociologia), enfrenta a inter­venção deste vector ideológico, mas nem para passivamente o aceitar nem para proceder propriamente ao estudo do seu funcionamento que, embora interessando-lhe, não lhe compete. Na posse do tecido de referências em que se desenvolve uma determinada visão do mundo, ela procurará organizá-la, pô-la em confronto com outras e explorar o sentido dos seus pressupostos sem se preocupar com a verificabilidade ou com a falsificabilidade positivas das conseqüências destes. Aliás, neste ponto, corroboramos as posições críticas que R. Boudon expri­miu, noutro contexto e com outras intenções, a propósito da divisão estrita que K. Popper estabeleceu entre «teorias científicas» e «teorias metafísicas» apoiando-se, para tal, na possibilidade de que desfrutariam as primeiras de poderem ser infirmadas. Pelo menos no domínio das ciências humanas e muito particularmente no da ciência da educação, essa dicotomia revela-se como desajustada. Nesta ciência, concreta-mente a validação e a aplicação de uma teoria decorre grandemente das convicções dos seus mentores, da coerência interna das suas premissas - bem como da que existia entre estas e os métodos propostos - , das deduções que ela permite e, finalmente, da capacidade dinamizadora e superadora do seu projecto. E eis que esta situação não invalida a priori a sua cientificidade, o que, no caso contrário, seria aliás dramatica­mente imobilizante para a ciência da educação por a obrigar a distanciar--se do pulsar de uma realidade que ela não pode deixar de repercutir na mobilidade e adaptabilidade da sua estrutura epistemológica interna. Acentue-se que, por exemplo, o abandono total ou parcial de uma teoria educativa se gera em grande medida no cadinho das conflitualidades ideológicas que o pluralismo filosófico radicaliza precisamente no âmbito da ciência da educação.

O objecto desta ciência alberga e polariza a tensão dos múltiplos modelos pedagógico-filosóficos em confronto que, através de distintas teorias educativas, se traduzem em outros tantos projectos pedagógicos concorrentes. A «psicologia da educação», a «sociologia da educação», a «história da educação», etc. (socorremo-nos, na falta de designações mais adequadas, da nomenclatura clássica), não são mais aqui «ciências da educação»: elas constituem-se antes como vertentes científicas estritas da ciência da educação em si mesma, pois os estudos por elas empreen­didos contribuem directamente para a construção desta ciência sem

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deixarem de depender largamente do conceito de educação adoptado. Nestas circunstâncias, não haverá até «ciências da educação». Podere­mos, isso sim, falar de ciências auxiliares da ciência da educação e que serão as ciências sociais e humanas em geral enquanto elucidam questões que a esta se colocam ou que externamente a atingem. Diga-se, a pro­pósito, que é bem verdade que alguns dos ramos desenvolvidos pelas próprias ciências humanas se apresentam como especialmente aptos para se instituírem como ciências auxiliares da educação. É o caso, por exemplo, da psicologia genética. Mas desde o momento em que a pro­blemática educativa sirva de ponto central de referência condicionando globalmente a óptica e o curso das análises que se levam por diante, não há mais razão para que se não filiem essas análises na ciência da educação. Este deslocamento epistemológico - subtil e difícil de iden­tificar - não poderá, contudo, significar que ao diálogo e ao intercâm­bio suceda o mutismo recíproco e o bloqueamento. Alcança-se, desta maneira, ao invés, o único plano capaz de implementar a autêntica interdisciplinaridade ciência da educação / ciências auxiliares da ciência da educação / ciências sociais e humanas em geral. Sem o concurso da revisão epistemológica que agora se acaba de propor, o estudo dos fenômenos educativos ficará irremediavelmente condenado ao estatuto de receptor passivo de discursos alheios ainda que, entre si mesmos, interdisciplinares.

Claro que o caracter transdisciplinar da ciência da educação (o qual salvaguarda a multiplicidade dos seus vectores constituintes, multiplicidade essa necessária dada a complexidade e a natureza do objecto em causa (6)) é de difícil aceitação se não se reconhecer, antes,

(6) Mesmo no interior de cada ciência da educação particular acentua-se, princi­palmente nos últimos anos, a complexidade das ópticas de estudo, afirmando-se aquilo a que alguns chamam «a vocação epistemológica das ciências da educação para a transversalidade e a multirreferencialidade». A título de exemplo, refira-se o caso da sociologia da educação que, ao impulsionar abordagens microssociológicas e interaccionistas (do grupo-turma ou da escola), como forma de, entretanto, fugir aos bloqueios introduzidos pelo determinismo sociológico da perspectiva estruturo--funcionalista, se socorre dos contributos, designadamente da etnologia, da psicologia social e da sócio-linguística (cf. Revue Française de Pédagogie, n."s 78 e 80, 1987, respectivamente pp. 73-108 e 69-95). Em alguns casos esboça-se, inclusive, com novo vigor, o horizonte de uma psicossociologia que dê conta do contexto interactivo que

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a legitimidade da presença de uma componente filosófica que lhe dê coesão. Por isso mesmo, preferiu-se freqüentemente optar pela imposição de uma interdisciplinaridade externa que, na aparência, cobria harmo­niosamente a natureza multifacetada das situações educativas sem ter de obrigar a concessões à filosofia. Dentro de um ponto de vista redu-cionista, subserviente perante os modelos de cientificidade que ideo­logicamente as ciências da natureza continuaram a debitar, havia que evitar, a todo o custo, um comprometimento desse gênero por parte das ciências humanas. Mas, contemporaneamente, dadas as profundas transformações epistemológicas ocorridas nos vários continentes do saber científico - as quais já expusemos com um certo desenvolvimento -, atendendo ainda, sobretudo, à própria evolução da investigação edu­cativa, não se vislumbram, a nosso ver, argumentos que justifiquem a não aceitação da emergência de uma ciência específica da educação que incorpore dialecticamente os modelos pedagógico-filosóficos, evitando--se, por conseqüência, o divórcio artificial, bloqueador e dispersivo entre a pesquisa científica e a tumultuosidade dinâmica inerente aos movimentos pedagógicos.

Para concluir, diremos que a ciência da educação se apresentará como mais uma ciência humana inaugurando um novo grupo de que será, de momento, a única representante. É uma ciência humana pelo seu objecto. O «homem» está prioritariamente no âmbito das suas preocupações. Constitui, entretanto, um grupo mais dentro das ciências humanas, tanto pelo caracter original do seu método como pela feição peculiar que, dentro dela, o seu objecto adquire.

percorre as relações entre os conflitos estruturais e os que surgem entre os indivíduos ou dentro deles mesmos.

O mesmo fenômeno ocorre também no domínio das didácticas quando, no seio destas, surge uma colaboração íntima entre os conteúdos disciplinares a que elas dizem respeito e a psicologia.

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CAPITULO V

EM TORNO DO ESTATUTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Havendo da nossa parte um propósito declarado de revalorização da intervenção filosófica, justifica-se que se passe em revista, de uma forma sistematizada, algumas das principais posições sobre o estatuto da filosofia da educação. Posições de que nos demarcamos e relati­vamente às quais o presente trabalho pretende apresentar o esboço de uma alternativa a todos os títulos inadiável.

Distinguiremos quatro atitudes, a que chamaremos, respectivamente, metafísica, filosófico-analítica, histórico-filosófica e cientificista.

1. Atitude metafísica. É a mais antiga de todas elas e parte do pres­suposto de que cabendo à filosofia a intervenção totalizadora e raciona-lizadora das problemáticas existenciais (com todo o cortejo de achegas relativamente às questões ontológicas, cosmológicas e antropológicas), lhe pertence também, dentro de uma natural continuidade, a definição dos princípios e das atitudes educativas. Aqui, a filosofia da educação representaria nada mais nada menos do que a aplicação, a um campo específico e privilegiado, de orientações gerais, de visões do mundo, isto é, de concepções sobre o homem, nas suas relações com a socie­dade, com a história, com a natureza e com Deus. «A filosofia da edu­cação - defende P. Braido - , como qualquer metafísica «regional» (como a psicologia racional, a cosmologia, a teologia natural), não é autônoma e auto-suficiente. Representa apenas uma especificação dentro do âmbito da filosofia» («Principi di Filosofia delFEducazione», in Educare - Sommario di Scienze Pedagogiche, vol. I, p. 17).

Presente ao longo de toda a história da filosofia, esta atitude apa­rece ainda hoje em dia claramente, sobretudo nas reflexões de teóricos

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ligados a confissões religiosas. Assim se poderá falar, por exemplo, de uma filosofia da educação cristã ou, talvez melhor, de uma filosofia cristã da educação. Nestes casos, a filosofia faz-se eco de uma série de valores e de idéias que limitam e devem impulsionar a educação de forma a que o homem reconheça e realize um rumo determinado para a sua existência, o qual se considera ser o único que está de acordo com a sua própria dignidade, dignidade esta previamente estabelecida na sua natureza essencial. Nestas circunstâncias, o dogmatismo torna-se inevitável, até porque, no caso concreto das filosofias da educação de inspiração religiosa, há uma dependência directa relativamente aos dogmas da religião em causa.

Quando a actuação pedagógica era simplesmente assimilada a uma «arte», a sabedoria filosófica de inspiração teológica (philosophia ancilla theologiae) abrangia todas as áreas e níveis dessa mesma actuação, não se criando, deste modo, a necessidade do recurso a quaisquer outros contributos. Esta situação tinha a ver com uma certa redução de toda a problemática educacional a uma exaustiva, atenta e controlada enume­ração de finalidades (ou melhor, de princípios), decorrendo tudo o resto delas mesmas bem como de hábitos consagrados e inquestionáveis. Nos nossos dias, estas filosofias, confrontadas, para além do mais, com o desenvolvimento científico, tendem a colocar-se a meio caminho preci­samente entre a teologia e as ciências. A primeira continua a fornecer--Ihe os dogmas, as segundas, para além do conteúdo concreto das várias áreas curriculares, os métodos e os meios de promoção, análise e con­trolo da evolução dos processos educativos.

Circunscrevendo-nos às relações entre a teologia (da educação) e a filosofia (da educação), passaremos a realçar as posições de dois autores - J. Antônio Tobias e J. Redden - , por nos parecerem suficientemente esclarecedoras. Assim, J. Antônio Tobias, apesar de considerar ambas como «ciências» e como «sabedorias», distingue-as pelo que designa como sendo os seus «objectos formais»: «sob o ponto de vista de Deus, revelado, numa (a teologia); sob o ponto de vista do ente, do conhecido pela luz natural da razão, noutra (a filosofia)». E, logo de seguida, acrescenta: «Tudo o que é abrangido pela Filosofia da Educação também o é pela Teologia da Educação, porque o revelado, como tal, está acima das luzes naturais da razão humana, e, como tal, salta fora das vistas da filosofia da educação, ficando exclusivamente dentro do campo da

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Teologia da Educação» (Filosofia da Educação, p. 72). J. Redden, por seu turno, admite, a par de uma «filosofia natural» - que estuda as coisas da ordem natural por meio da razão natural do homem - , a teologia. Simplesmente, utiliza indiferentemente este último termo e a expressão «filosofia sobrenatural» para designar o estudo das «ver­dades divinamente reveladas», para o qual não é suficiente a «razão natural do homem». Acaba por afirmar que, «rigorosamente falando, só há uma verdadeira filosofia, desde que há apenas uma única fonte de todo o saber, isto é: Deus» (Filosofia da Educação, p. 20).

A propósito do tema das relações entre a teologia, a filosofia e as ciências, não poderíamos deixar de referir a obra de J. Maritain Pour une Philosophie de VEducation, de facto um clássico da filosofia da educa­ção. J. Maritain é, com efeito, um filósofo que, a partir das preocupa­ções ditadas pela sua formação profundamente cristã, dedicou a alguns dos problemas que se levantam à educação contemporânea o melhor da sua atenção. Inspirado no tomismo e guiado pelos ideais do humanismo cristão, denunciou aquela que, segundo ele, é a maior lacuna da educa­ção dos nossos dias: o esquecimento ou o desconhecimento dos «fins», submergidos pela eficiência e pela perfeição dos «meios». «A criança - diz-nos ele com inegável oportunidade - é tão bem testada e obser­vada, as suas necessidades são tão bem detalhadas, a sua psicologia tão claramente esmiuçada, os métodos para lhe tornar tudo fácil em qualquer situação tão aperfeiçoados, que o fim de todos estes benefícios tão apreciáveis corre o risco de ser esquecido ou desconhecido» (p. 19). E qual é afinal para J. Maritain essa finalidade suprema? Nada mais nada menos do que a realização do homem enquanto pessoa de acordo com uma natureza humana que aspira, antes de tudo, à liberdade interior, a qual é espontaneidade, expansão ou autonomia e tem de ser conquis­tada pelo conhecimento e pela sabedoria, pela boa vontade e pelo amor.

Importa agora ver qual a via que, segundo o nosso autor, permite chegar a esta idéia de homem, apontada como finalidade primeira da educação. Ao apelidar tal idéia de «idéia filosófico-religiosa de homem», essa via descortina-se de imediato: trata-se, como parece evidente, da filosofia e, dentro dela, nomeadamente da ontologia, da antropologia e de uma moral pessoal e social apoiadas em concepções religiosas que definem as relações do homem com Deus. Serão, em síntese, as concepções da civilização judaico-greco-cristã.

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Com isto não quer J. Maritain dizer que os contributos da inves­tigação científica sejam desprezíveis. Todavia, a ideia de homem com que a ciência lida, dada a necessidade, em si mesma legítima - por motivos metodológicos - , de ser joeirada pelos procedimentos expe­rimentais, aparece obviamente desprovida de todo o conteúdo ontoló-gico. «A ideia puramente científica de homem é e deve ser uma ideia fenomenalizada, sem referência à realidade última» (p. 20). Ora, assim sendo, se se permanecer neste nível, a educação carece dos seus fun­damentos primeiros e das suas direcções primordiais: ela fica apenas na posse dos meios e dos instrumentos, quando a acção humana precisa de ter um objectivo e um sentido. E é neste momento preciso que a reflexão filosófico-religiosa se revela como imprescindível, se se quiserem colmatar as grandes dificuldades, as graves limitações e as enormes perplexidades que a educação contemporânea enfrenta. É que a ideia filosófico-religiosa de homem, sendo uma ideia onto-lógica, «incide sobre os caracteres essenciais e intrínsecos (apesar de não serem nem visíveis nem tangíveis) e sobre a densidade inteligível deste ser que tem um nome: o homem» (op. cit., p. 20). A ideia filo­sófico-religiosa de homem é, portanto, a única capaz de dar respostas às questões sobre a sua natureza e sobre o seu destino. «Conclui-se assim que a ideia completa, a ideia inteligível de homem, que é pré--requerida à educação, não pode ser senão uma ideia filosófica e reli­giosa de homem. Digo filosófica, porque esta ideia tem por objecto a natureza ou a essência do homem; digo religiosa, por causa do estado existencial da natureza humana relativamente a Deus e por causa dos dons especiais, das provas e da vocação implicadas por este estado» (op. cit., p. 21).

Há assim um vigoroso apelo à reflexão filosófica enquanto media­dora entre a teologia e a ciência, enquanto reflexão capaz de aprofun­dar, de acordo com a natureza filosófica da educação, os fins últimos do homem decorrentes das indicações da teologia. Estes fins constituem o fundamento e a orientação susceptíveis de conferir uma dimensão verdadeiramente educativa - no sentido que já vimos - aos meios e aos instrumentos que a ciência fornece. A filosofia da educação de Mari­tain, tributária da metafísica e da teologia, evitaria, desta maneira, os grandes erros que denuncia, nomeadamente os que se prenderiam com as ambições incontroladas e amputadoras da dignidade humana, contidas,

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por exemplo, no socialismo, no pragmatismo, no intelectualismo e no voluntarismo i

A filosofia da educação de J. Maritain é, afinal, uma filosofia da educação cristã - as grandes finalidades da educação vão ao encontro dos princípios dos Evangelhos - , porque é uma filosofia cristã da educação: a sua finalidade serve sobretudo para veicular as propostas da teologia cristã. Mas o problema maior aqui é que se não pode querer fazer da actividade científica um mero repositório externo de meios cada vez mais aperfeiçoados, ao serviço das finalidades da teologia e da filosofia e, desta maneira, pretender dar-se mostras de um reconhe­cimento efectivo do mérito dessa actividade. Mesmo aceitando-se a validade das críticas endereçadas àqueles que se deixaram invadir e manietar totalmente pelo deslumbramento dos recursos oferecidos pela ciência, não nos parece legítimo que a justiça desse argumento sirva de pretexto para o que acabará por ser uma subtil transferência (ou recuperação) de privilégios.

Esta prioridade da filosofia da educação, derivada da sua plena inclusão numa filosofia geral» prévia e absolutamente abrangente (que tende a inviabilizar o pluralismo filosófico e a idéia de uma filosofia interna), aparece também em P. Braido, pensador já citado antes. Real­çando a dependência e até mesmo a pertença de qualquer filosofia da educação a uma filosofia geral, dentro da qual aquela não será mais do que uma «especificação», Braido identifica os moldes segundo os quais opera a reflexão filosófica com vista à resolução do «problema do significado profundo e autêntico da acção-educação».

Diz-nos ele a este propósito: «Uma resolução inteiramente satis­fatória neste sentido exige, por isso:

a) Uma consideração filosófica e própria, relativa ao quid essencial da educação, aos seus fins e às suas condições, que pode legi­timamente chamar-se "filosofia da educação", em sentido estrito e próprio;

b) E uma "filosofia geral" sistemática, que oferecerá o grande quadro da visão da realidade e da vida (uma metafísica geral, uma antropologia e uma ética individual e social), em que se inspira o problema particular do "homem que educa e que é educado", o "problema pedagógico"» (op cit., p. 16).

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Não contestamos, por si mesmo, o enquadramento de que é alvo uma filosofia da educação por parte de uma filosofia geral. Tal fenô­meno parece-nos até ser, à partida, inevitável. O que nos levanta as mais sérias reservas, isso sim, é a ausência de uma consagração explí­cita de uma dialéctica filosofia(s) da educação-filosofia(s) geral (ou gerais) a par, uma vez mais, do primado que se reivindica para a intervenção filosófica, isto é, da sua precedência pura e simples rela­tivamente aos discursos científicos.

Mais adiante, aliás, P. Braido expõe o conteúdo do que ele classi­fica de «pressupostos teoréticos da filosofia da educação». De entre eles, destacamos nomeadamente o que postula o «conceito filosófico de homem enquanto ser finito» colocado diante de valores éticos abso­lutos, situação que exige a presença de todos os conceitos teológicos ex revelatione - a par da visão natural do homem e da realidade - para que se obtenha uma visão integral da realidade humana e educativa e, por outro lado, o que defende a integração harmoniosa de uma dupla ordem de conhecimentos: por um lado, dos que são carreados pela investigação científica positiva de caracter biológico, psicológico e social; por outro, dos que provêm do conhecimento descritivo e histó­rico. «Integração harmoniosa», subentenda-se, a reboque dos concei­tos filosóficos e teológicos... (cf. op. cit., pp. 17-19).

Antes de terminarmos a caracterização que temos vindo a fazer da «atitude metafísica» de uma filosofia da educação, queremos trazer aqui alguns tópicos mais de uma polêmica que lhe é interna: referimo--nos exactamente à definição das relações (e ao estatuto relativo) da filosofia da educação e da metafísica.

Assim, apesar de Braido, por exemplo, evitar o uso do termo «especialização» a propósito da filosofia da educação, ele classifica-a como uma «metafísica regional» o que, na perspectiva de outros pen­sadores, pode levar a uma distorção indesejável ao ter ela de se dedicar, nestas circunstâncias, ao estudo dos entes particulares como espécies admitindo implicitamente a existência, num nível superior, de uma «metafísica geral» ou de uma «ontologia fundamental» que se ocuparia do ente geral como gênero. G. Alvarez, designadamente, alerta para o facto de a filosofia da educação dever ser antes consagrada como um «tratado especial de metafísica», e nunca como uma «metafísica espe­cial», isto porque a particularização do objecto da metafísica deve ser

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sempre feita através da consideração do aspecto material, conservando--se «a mais estrita generalidade no aspecto formal». Poderá haver uma especialização de tarefas, nunca da disciplina, pelo que a «metafísica da educação» é apenas um capítulo especial da ontologia. «A não ser assim - remata G. Alvarez - a metafísica perderia a sua unidade e ficaria destruída como tal» (Filosofia de Ia Educación, pp. 16-17). Limitamo-nos a acrescentar, pela nossa parte, que a posição deste autor confirma, dentro da coerência das suas ilações, o que já adiantáramos, em jeito de crítica, sobre o caracter subsidiário da filosofia da educação no âmbito de uma óptica metafísica.

Podemos, finalmente, afirmar que uma filosofia metafísica da edu­cação reivindica sobretudo os direitos e as necessidades da reflexão filosófica enquanto situada para além (ou aquém) da objectividade empírica da ciência. Reflexão que procura e indica um sentido para a existência humana e, ao mesmo tempo, o sentido geral do processo educativo. «A ciência ocupa-a: segundo que leis se comporta o homem? A metafísica preocupa-a: que é o homem? Neste segundo caso, aquele que interroga versa sobre os fundamentos e o sentido do ser humano: no primeiro, a pergunta limita-se ao funcionamento do homem» (O. Fullat, Filosofias de Ia Educación, p. 36). Deste modo, a filosofia da educa­ção não pode nunca ser separada da philosophia prima que unifica os diferentes aspectos da realidade, contemplando, simultaneamente, uma unidade e uma pluralidade do real e sendo o fundamento daquilo que é, afinal, uma filosofia moral da educação.

2. Atitude filosófico-analítica. Expandida, predominantemente, entre os pensadores anglo-saxónicos, coloca-se em oposição à tradição metafísica, não reconhecendo, por isso, a pretensão da filosofia em querer dar respostas a questões como as do «significado da existência» ou da «finalidade da vida». Uma das provas que é apontada como indicadora da falência da filosofia clássica é a sua incapacidade histórica para encontrar soluções que possam ser demonstradas ou que resistam às críticas que lhes são dirigidas. A paralela «revisibilidade dos enuncia­dos científicos» ou, ainda, a «especificidade da empresa filosófica» são argumentos que, aqui, não alteram os dados que estão em jogo. É que, se é verdade que os conhecimentos científicos são continuamente cor­rigidos e alterados, é, todavia, também verdade que eles, entretanto, se

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submetem ao confronto entre especialistas e a testes objectivos que nos oferecem as melhores garantias possíveis quanto à sua validade. Enquanto isto, a metafísica, não se coibindo, ao fim e ao cabo, de rei­vindicar para os seus enunciados as prerrogativas das verdades objec-tivas, não se submete, contudo, às mesmas exigências enquanto vira as costas aos fracassos dos seus projectos.

É neste contexto crítico que a filosofia analítica, herdeira do posi­tivismo lógico, restringe as tarefas da filosofia a um esforço de crítica e de clarificação da linguagem, na circunstância, da linguagem educa­tiva. Considera-se, porém, que este papel, apesar de bem mais modesto, não inferioriza a filosofia: liberta-a antes de problemas insolúveis, de questões sem sentido e confere-lhe um estatuto de que todos beneficiam, inclusive os homens de ciência. Ela readquiriria mesmo uma dignidade que uma persistência no modelo tradicional acabaria por comprometer irremediavelmente.

Para além da expressão «análise filosófica» (philosophical analy-sis), duas outras passam a ser vulgarmente utilizadas: «análise lingüís­tica» (linguistic analysis) e «análise dos conceitos» (concept analysis). H. Schofield considera que estas duas últimas não são mais do que formas de assegurar, com mais precisão, a missão da primeira: «Uma estrita interpretação dos termos mostra que a análise lingüística examina enunciados para ver se eles têm algum significado real, enquanto a análise dos conceitos analisa certos termos (palavras) que representam idéias (ou conceitos)» (The Philosophy of Education, p. 12).

Como se pode verificar, o filósofo da educação é convidado a transpor, para o terreno específico da educação, os mesmos métodos que a filosofia analítica usa noutros domínios e que assentam no pressuposto de que, não sendo as palavras mais do que meios para expressar idéias, analisando-as, damos um inestimável contributo para a clarificação destas mesmas idéias: idéias como a de «liberdade», a de «educação compreensiva», a de «autoridade», a de «endoutrinamento» (ou «endoutrinação») e até a própria idéia de «educação». De facto, são análises exaustivas deste tipo que se encontram na grande maioria dos tratados de autores ingleses ou americanos dedicados à filosofia da educação. Elas são aí normalmente justificadas pelo largo uso que têm na linguagem corrente as palavras que exprimem conceitos como os acima referidos, o que acarreta, com freqüência, intrincadas confusões

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de sentido. O mais grave é que estas confusões estão, segundo os mesmos autores, na origem de intermináveis debates que se perdem em discussões estéreis ao não fazerem um apelo prévio à clarificação sis­temática dos conceitos implicados. Muitos deles, sendo slogans polí­ticos, estão imbuídos de uma carga emotiva e ideológica pelo que, se não forem sujeitos a um tratamento analítico, não respeitam, como princípio, as exigências de uma teoria científica. «A maior parte dos lemas e dos slogans dos reformadores da educação - escreveu 0'Connor - são juízos de valor fossilizados: "educação de acordo com a natureza", "educação para a democracia", "igualdade de oportunidades", "educação pelos direitos e deveres do cidadão", e outros ainda. Seria da maior importância que directivas deste tipo não permanecessem como meros slogans. Deviam ser explicitamente formuladas, relacionadas com a prática e reconhecidas pelo que são. Um juízo de valor não diagnosti­cado é uma fonte de confusão intelectual» (An Introduction to the Philosophy of Education, p. 107).

A filosofia da educação não serve mais para fornecer, unilate-ralmente, os princípios ou as bases da educação, ela trabalhará antes sobre propostas já constituídas. A filosofia não será nunca um corpo de conhecimentos ou de saber e muito menos uma ciência superior: ela é uma actividade, uma actividade de crítica e de clarificação. H. L. Elvin, por exemplo, afirma que «a filosofia é uma técnica para pensar, e está especialmente vocacionada para examinar as nossas posições e definir os nossos conceitos» (Education and Contemporary Society, p. 65).

Todavia, uma questão subsiste: mesmo com este estatuto, como legitimar a intervenção da filosofia? Parece-nos que a alternativa encon­trada para a metafísica tradicional se defronta, quanto a este ponto, com novas e sérias dificuldades. É que, ao contrariar as ambições da antiga metafísica, sobretudo por ela, sendo estranha à natureza e ao processo dos procedimentos científicos, querer, apesar disso, imiscuir-se neles, a filosofia analítica, paradoxalmente, não encontra obstáculos para o exercício da sua actividade crítica sem, contudo, participar internamente na construção das teorias científicas por ela visadas. J. Passmore, através de uma interessante imagem, dá-nos conta desta situação: «Há algo mais do que uma insatisfação nesta concepção do filósofo como um jardineiro de ocasião que entra num campo educacional invadido por

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ervas, plantas daninhas e árvores bravias e o deixa limpo e arranjado, aplicando-lhe processos tais como podar, cortar as ervas e aparar as ramagens. E impossível a este simples trabalhador determinar que plantas devem ser cultivadas, que árvores devem ser podadas e que limites devem ser definidos. Só o homem que está habituado a plantar coisas pode tomar decisões neste ponto» (The Philosophy ofTeaching, p. 8).

Não serão, também aqui, os próprios investigadores os únicos que se encontram, de facto, em posição de olhar criticamente os produtos das suas indagações e os elementos que nelas vão sendo incorporados? Como pode o trabalho do filósofo da educação interferir na prática educativa?

A este propósito, queremos adiantar alguns esclarecimentos adi­cionais que obrigam a que se reperspective esta questão.

- A filosofia analítica da educação debruça-se sobre a natureza dos juízos de valor e sobre a lógica da sua justificação; pro­nuncia-se igualmente sobre a validade lógica e sobre a função explicativa das teorias da educação; tenta clarificar ainda os fundamentos das nossas crenças (cf. D. J. 0'Connor, op. cit., pp. 13 e 45).

- A filosofia analítica da educação procura esclarecer os critérios que um professor usa, nomeadamente quando se considera que um determinado modo de ensinar tem êxito (cf. J. Passmore, op. cit., p. 14).

Havendo aqui um evidente empobrecimento do papel da filosofia, não se pode, contudo, negar que se esboça uma saída para as reservas antes sugeridas. A filosofia aparece agora mais como uma actividade que se preocupa com as maneiras de pensar (distinguindo, por exemplo, entre uma linguagem informativa e uma linguagem persuasiva ou expressiva característica dos juízos de valor, evitando-se assim disputas inúteis sobre a confirmação ou refutação destes, que necessariamente se levantam se os mesmos forem catalogados como enunciados de facto). Ela não se interessará, deste modo, em dizer se uma finalidade qualquer apresentada para a educação é, em si mesma, boa ou má. Implicitamente, a filosofia mantém-se alheia relativamente aos procedimentos a adoptar em matéria de ensino.

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A filosofia, partindo de fora da ciência e da sua prática, não che­garia nunca a querer internar-se em nenhuma delas: longe de subverter as exigências específicas dos domínios que interroga, limitar-se-ia a reforçá-las calculada e comedidamente. Ela é realmente, nesta perspec­tiva depurada, uma mera técnica de crítica, de reflexão e de clarificação epistemológicas ao serviço das várias ciências, em referência às quais, aliás, se perfilam os seus diversos ramos - filosofia da física, filosofia da matemática, filosofia da educação, etc. - não admitindo, no caso concreto da educação, que se deduzam políticas educacionais de pre­missas ontológicas.

Este estatuto da filosofia da educação encontra a sua fórmula mais ortodoxa na obra de C. D. Hardie Truth and Fallacy in Educational Theory, publicada em 1942, em plena época de «revolução da filosofia». Aí, defende-se intransigentemente a tese de que os desacordos entre os educadores são prioritariamente «factuais ou verbais ou devidos a alguns conflitos emocionais». A filosofia da educação, essa, é convidada a subordinar-se à orientação mais geral de toda a filosofia analítica e que era a de que lhe incumbia a análise lógica das propriedades sintácticas e semânticas da linguagem, sendo seu objectivo central o estudo das condições de verificação das hipóteses e da legitimidade das conclusões bem como do sentido das expressões empregues.

Mas, como se reconhece na introdução ao livro The Philosophy of Education (organizado e editado por R. S. Peters), os filósofos da educação contemporânea «estão habituados a dizer que os pontos de debate conceptuais podem ser claramente distinguidos dos empíricos; eles contemplam com equanimidade a possibilidade de haver factos morais; alguns deles saúdam até o retorno da metafísica» (p. 2). Constata--se, desta maneira, a existência de sintomas que apontam para uma certa liberalização (ou enfraquecimento) do rigor do projecto inicial.

Ainda pela pena de R. S. Peters, é significativamente ampliado, a nosso ver, o papel da filosofia da educação. Reconhece-se, pelo menos, algo que, tendo estado nela sempre presente, a ortodoxia analí­tica insistiu em escamotear para melhor se demarcar de todo e qualquer vestígio de sobrevivência da mentalidade metafísica. Com efeito, escre­veu este autor que é «possível a um filósofo da educação produzir algum tipo de fundamentos éticos para a educação», exactamente pela análise das finalidades através da qual se encontra o que ele textualmente

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designa por guiding Unes (op. cit., p. 29). Embora, também segundo Peters, ele não possa, enquanto filósofo, pronunciar-se sobre a impor­tância relativa de determinados princípios no que concerne à sua aplica­ção concreta, não deixa certamente de produzir argumentos que servirão para se justificarem esses mesmos princípios, quer dizer, para se mostrar por que razão é que uns são mais indicados do que outros. Assim sendo, apesar de se continuar a não aceitar que o filósofo possa fazer recomen­dações ou indicar finalidades para a educação, admite-se que ele, de facto, intervém ao nível dos seus fundamentos, deixando a outros, toda­via, a responsabilidade das tomadas de decisão. Repare-se, porém, que ele contribui agora para uma clarificação, não só dos critérios de escolha adoptados, mas também das próprias alternativas que estão em jogo. Anulada a precedência ontológico-metafísica dos fundamentos, não se bloqueia, por esse motivo, a sua relação íntima com a reflexão filosófica que, entretanto, se tenta desenvencilhar dos postulados dogmáticos.

A. Montefiore, após realçar uma outra frase de R. S. Peters -«existe em muitos casos uma larga interpenetração entre as formas de compreensão que utilizamos para proceder à triagem dos aspectos específicos dos problemas» - , esclarece igualmente os meandros do presente estádio de evolução da filosofia analítica da educação. «Isto -diz-nos ele, então, a propósito da citada afirmação de Peters - não está muito longe de se reconhecer que as formas de compreensão que se encontram já implicadas na "nossa" tomada de posição filosófica inicial, ou aparentemente inicial, assim como as formas modificadas que podem resultar das análises ulteriores, podem determinar não apenas as nossas análises dos problemas, mas em primeiro lugar a nossa percepção do que nos impressiona como sendo problemático» («La Philosophie de 1'Education», in Critique, n.° 399-400, p. 899). E atente-se bem no teor desta outra conclusão que Montefiore extrai logo de seguida: «Estamos já talvez no caminho que leva de novo a uma filosofia da educação que não se determina como tal senão como um dos momentos da evolução de toda uma filosofia de homem - um momento inseparável da filosofia "geral" que o determina na sua estrutura particular, mas que, por esta mesma inseparabilidade, constitui um aspecto indispensável» {op. cit., pp. 899-900, s.p.n.).

Para melhor se compreenderem as razões desta reformulação levada a cabo por algumas correntes da filosofia analítica da educação, temos

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de considerar uma crítica fundamental de que ela passou a ser alvo: é que se com as suas teorizações iniciais ela se libertava, apesar das ambigüidades em que caiu, dos ataques que foram dirigidos à meta­física da educação - designadamente do de usurpação especulativa de domínios alheios - , mergulhava igualmente num embaraçante e pro­gressivamente incômodo distanciamento em relação aos conteúdos da problemática educativa em si mesma. E voltamos a citar Montefiore: «Uma tal filosofia da educação podia felicitar-se por ser mais rigorosa do que aquela que a tinha precedido, mas, tínhamos de o reconhecer, carecia mais de conteúdo educativo» (op. cit., p. 898).

A filosofia da educação - através da postura analítica - tenta insi­nuar-se como um conjunto de métodos, como um conjunto de técnicas até (importadas, afinal, de outras áreas como a da lingüística ou a da lógica-esta, entretanto, cada vez menos filosófica). Mas as dificuldades, as contradições, a crise que enfrenta, acabam por ser, em derradeira instância, as mesmas que atormentam toda a filosofia que, após a falência da metafísica tradicional diante da nova conjuntura criada pelo conhecimento científico, nele se não consegue reencontrar.

3. Atitude histórico-filosófica. Tem muitos pontos comuns com a «metafísica». De facto, compartilha com esta uma larga soma dos seus pressupostos, designadamente o de que a filosofia tem o direito exclusivo e apriorístico de, pela sua precedência, ditar e impor as finalidades edu­cativas. Todavia, preferimos marcar a não-coincidência entre ambas para evitar que se dessem eventuais e indesejáveis confusões. «Se a nós próprios pusermos questões filosóficas num esforço para resolver problemas filosóficos, então estamos a filosofar. Se perguntarmos a nós próprios que respostas produziram os pensadores do passado quando puseram questões filosóficas a eles mesmos para resolver problemas filosóficos, não estamos a filosofar. Se adoptarmos a segunda alterna­tiva, usamos o que poderia ser chamado abordagem "histórico-filosófica" ao perguntarmos a que conclusão chegaram os filósofos através da história. Só aceitamos aquela resposta que parece adaptar-se às nossas necessidades. Mas, se filosofarmos, temos que nos comprometer, que procurar alcançar uma conclusão por nós próprios. Scheffer diz que não há nada de novo ou de revolucionário nesta distinção, porém ela é demasiadas vezes negligenciada especialmente pelos filósofos da

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educação nas suas obras» (H. Schofield, The Philosophy of Education: an Introduction, p. 11).

Com efeito, no âmbito da tendência que acabámos de isolar, não chega a haver propriamente uma produção de novas idéias filosóficas a partir das quais se proponham directrizes para o campo da educação. Procede-se, isso sim, a uma invocação selectiva dos grandes vultos da história da filosofia - Platão, Rousseau, Kant, etc. - para das suas obras se extraírem os princípios fundamentais e essenciais da teoria e da prática educativas. Ao mesmo tempo, pela inventariação das conexões entre as sucessivas escolas da filosofia e as escolas pedagógicas cor­respondentes, defende-se a necessária indexação destas àquelas.

Tem de se reconhecer igualmente aqui a presença de uma outra tendência mais geral que assolou a filosofia em bloco e que se identifica, principalmente, por uma redução desta à sua própria história.

Dentro da filosofia da educação, esta redução repercute e ilustra a idéia de que há princípios (ou fins) absolutos que deverão orientar o processo educacional: «Os fins últimos da educação - escreveu Mortmer Adler - são os mesmos para todos os homens de todas as épocas e de todos os lugares. São princípios absolutos universais. Isto pode ser pro­vado. Se não pudesse, não haveria filosofia da educação, pois a filoso­fia não existe se não é conhecimento absoluto e universal... absoluto no sentido de que não é relativo às circunstâncias contingentes de tempo e de lugar; universal no sentido de que se refere a essências» (citado por M. Laterza e T. Azeredo Rios, Filosofia da Educação: Fundamentos, p. 311).

Daí o interesse posto no estudo da história da filosofia de forma a trazer ao de cima os tais princípios «absolutos» e «universais». Claro que aqui o que é polêmico é o conjunto de objectivos que anima esse estudo e não a afirmação da quase coincidência da história da filosofia e da história da pedagogia, isto evidentemente se olharmos apenas para o que ocorreu no passado. Diga-se também, de passagem, que o mesmo se verificou com outros tipos de conhecimentos e de práticas. O que já não é pacífico é converter-se, declarada ou implicitamente, essa histó­ria da filosofia (e da pedagogia) - e a leitura que dela se faz - na própria filosofia da educação.

A segunda ordem de razões que alimenta a atitude histórico-filosó-fica é, simplesmente, de natureza institucional: tem a ver com a cir-

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cunstância de, em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos, se constatar que aqueles que se querem especializar em ciências da educa­ção carecem de uma formação filosófica adequada, fundamental para a compreensão de todo o alcance da filosofia da educação. Proliferam assim livros - ou manuais... - que se dedicam à compilação, mais ou menos vulgarizadora, da história da filosofia. Válida, em princípio, esta preocupação, a verdade, todavia, é que ela tem conduzido a um certo afunilamento das perspectivas sobre o estatuto da filosofia da educação.

O livro de G. Kneller, Introdução à Filosofia da Educação, constitui, entre muitos outros, um bom exemplo desse fenômeno. O próprio autor reconhece, aliás, que o método por ele utilizado é «basicamente tradi­cional». Não querendo impor nenhuma das correntes que passa em revista, acaba, contudo, por fazer do seu livro um autêntico catálogo dessas mesmas correntes, competindo ao leitor a escolha daquela por que se sente atraído. «Se o leitor não puder adoptar qualquer dos pontos de vista examinados no presente texto - diz-nos ele - , terá deveras um problema, visto que, no seu conjunto, eles abrangem todo o domínio da Filosofia geral e educacional» (p. 165). A obra em causa defende de facto, sob a sua aparente ingenuidade, uma visão tipicamente retros­pectiva para a filosofia da educação.

Acrescente-se ainda que aquele que é para M. Riestra o «enfoque dedutivo» (') - seguido por alguns dos que lastimam a falta de contri­buição da chamada «filosofia pura» para a solução dos problemas reais do ser humano e que, por isso, analisam sistematicamente as posições filosóficas tradicionais para, depois, assinalarem as suas implicações pedagógicas - cabe, dentro da lógica da nossa arrumação, na atitude

(') «Segundo esta posição - esclarece o autor citado - a função do filósofo da educação reduz-se a duas fases principais. Na primeira, o filósofo da educação deve dedicar-se a analisar sistematicamente as posições filosóficas tradicionais tais como o idealismo, o realismo, o pragmatismo e o existencialismo, entre outras, fazendo finca-pé na metafísica (teoria da realidade), na axiologia (teoria dos valores) e na epistemologia (teoria do conhecimento). A segunda fase deste enfoque consiste em analisar as impli­cações pedagógicas que se deduzem destas diversas posições filosóficas. Por outras palavras, o filósofo da educação limita-se a esboçar sistematicamente como é que o educador, situado em diferentes posições filosóficas, conceberia aspectos e problemas educativos tais como os fins da educação, o currículo, a metodologia de ensino e os processos de aprendizagem» (Fundamentos Filosóficos de Ia Educación, p. 64).

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histórico-filosófica. Porém, não se subordina estritamente a nenhuma das duas variantes acima discriminadas: não se justificando por con­junturas institucionais, não alberga também, necessária e somente, os que acreditam na existência de princípios ou de finalidades absolutas e universais.

Pelo que ficou dito, depreende-se que não é, em si mesma, a importância dada à história da filosofia e da educação que deve, segundo pensamos, causar apreensões e reservas. Elas terão de surgir, isso sim, com os intuitos reducionistas que sobre ela operam.

4. Atitude cientificista. Surgiu com a evolução recente das ciências sociais e humanas, em geral, e das ciências da educação, em particular. Caracteriza-se, fundamentalmente, por uma recusa de toda a intervenção filosófica como condição imprescindível para que se supere o «estado metafísico» e se alcance o estado «positivo» em que o estudo do real deve substituir a argumentação erguida para se defender um ideal. Ao fim e ao cabo, uma larga aproximação pode e deve ser feita entre o cientismo e a filosofia analítica. Nós próprios, aliás, não nos temos escusado a fazê-la noutros contextos. «Aqueles que, em nome do pro­gresso das ciências humanas, recusam a filosofia como ideológica e infracientífica fazem-no em nome de uma epistemologia neopositi-vista» - lembra-nos Avanzini {La Pédagogie au 2(y Siècle, p. 384).

Mas repare-se que há uma certa diferença entre recusar a metafí­sica (é esta que realmente está em causa dado o seu caracter normativo e especulativo) para, em bloco, se eliminar a filosofia — como, na prática, o fez Durkheim ao fazer coincidir a ciência da educação com a sociologia da educação - ou, em vez disso, propor-se um outro tipo de filosofia como alternativa (quer se concorde com esta ou não, quer se ache que tal se trata de uma panaceia ou não). A não ser que estar-se contra a metafísica seja exactamente o mesmo do que estar-se contra toda a filosofia, o que é, pelo menos, discutível.

Porém, a questão da filosofia não pode deixar de se pôr, nos termos em que a colocam R. Levêque e F. Best: «Porquê falar ainda da filo­sofia, e sobretudo de filosofia da educação, quando as ciências humanas parecem poder indicar a orientação e dar os meios da acção de educar?» («Pour une Philosophie de 1'Education», in Traité des Sciences Péda-gogiques, vol. I, p. 83). Isto, segundo os mesmos autores, ao verificarmos

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que «a biologia, a psicologia genética, a psicanálise e a psiquiatria infantil, a sociologia, a história das instituições escolares, são ciências daqui em diante suficientemente seguras para constituir um saber que tenha por objecto a educação. Por outro lado, é relativamente fácil deduzir dos factos científicos e dos resultados avançados pelas ciências humanas uma tecnologia que permita a prática da educação» (idem, p. 83). Veja-se, entretanto, que se admite aqui que as ciências humanas podem, autonomamente, «indicar a orientação» e que, além disso, a educação pode ser um objecto perfeitamente definível por elas mesmas. Nestas condições, a filosofia restringir-se-ia, quando muito, ao papel de uma epistemologia a posteriori com a eventual função de assegurar um saber ordenado num conjunto estruturado e totalizante. Papel inseguro e, à partida, ameaçado: «O lugar que a filosofia da educação pode ter num tratado das ciências pedagógicas parecerá necessariamente ambí­guo: ela acha-se ao mesmo tempo recusada (como reflexão inútil, situada fora dos problemas actuais da educação) e solicitada, talvez apenas implicitamente, como devendo introduzir ordem, coerência, na diversidade dos resultados adquiridos por estas várias ciências parti­culares, forçosamente "regionais" e parcelares» (idem, p. 13).

Ambigüidade, acrescentamos nós, que é meio caminho andado para que se afirme a sua inutilidade: de facto, como aceitar que a filosofia venha a delinear, por exemplo, princípios e finalidades sobre um trabalho já realizado pelas ciências? Não significaria isso que a investigação científica, por ela mesma, se desenrola sem ter, afinal, um sentido? Mas tal hipótese revela-se tanto mais inverosímil quanto as ciências humanas, como vimos, parece não dispensarem a existên­cia de uma orientação para os seus procedimentos, o que é efectiva-mente nuclear quando se lida com um objecto de estudo como é a educação.

A questão inicial acaba por ter de ser reformulada. Em vez de começarmos por nos interrogar sobre o papel que compete à filosofia, devemos antes perguntar: como se constitui o objecto da investigação educacional? Aliás, Levêque e Best acabam também por esboçar os contornos desta reformulação na passagem seguinte: «Com efeito, toda a filosofia se deixa dificilmente reduzir a uma empresa de reflexão crítica e epistemológica sobre o saber da sua época. O projecto filosó­fico de Platão, de Descartes, de Kant ou de Marx situa-se para além da

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epistemologia. Ora, é neste projecto, que ultrapassa a epistemologia, que reside o princípio de uma unidade pelo qual a crítica do saber especializado se toma possível» (idem, p. 85).

Para já, queremos propositadamente deixar em aberto esta pers­pectiva de suporte das dificuldades encontradas no que concerne ao estatuto da filosofia da educação. De momento, limitar-nos-emos a reforçar que o cientismo surge com as conquistas relativamente recen­tes da investigação científica, as quais, apoiadas sobretudo em impor­tantes precisões metodológicas e em aturadas delimitações dos dife­rentes objectos de estudo, acabaram por se traduzir em impressionan­tes demonstrações de eficácia, de auto-suficiência e de progresso. Mais impressionante ainda quando o cientismo escamoteia - enquanto ideo­logia do conhecimento científico - os reais parâmetros desse pro­gresso e ilude o reverso dessa eficácia e dessa pretendida auto-sufi­ciência.

Muitos dos responsáveis políticos, em colaboração - diga-se em abono da verdade - com um bom número de investigadores do domí­nio da educação, corroboram e ampliam as conseqüências da referida ideologia, excluindo sistematicamente a filosofia da educação nomea­damente dos planos de estudo e da formação de professores ou, então, reduzindo-a a um mero adorno. Há assim, na investigação educacio­nal, não uma simples atitude de recepção dos postulados cientificis-tas, mas antes - o que é verdadeiramente grave - um compromisso quanto à promoção dos mesmos, ainda que, para tal, haja que cômoda e precipitadamente recorrer, dentro das ciências humanas, a discursos alheios.

Porém, não será de mais repetir que a filosofia, ou melhor, certas filosofias - as que, persistindo em situar-se para além da ciência, não vêem entraves em lhe ditar limites ou mesmo em lhe impor tarefas, ao mesmo tempo que autocontemplam os seus auto-reivindicados privi­légios - não respondem às renovadas solicitações do contexto episte-mológico contemporâneo em que se desenvolvem os diferentes discur­sos científicos. Assim, a filosofia justifica e sanciona, paradoxalmente, a sua rejeição.

Entretanto, na óptica cientificista, a filosofia da educação, a per­sistir, nada mais é do que uma filosofia residual que o progresso das ciências, naturalmente, eliminará.

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Esta posição é sustentada pela extensão e pela projecção (abusiva e conjugada) de reais sintomas de uma crise persistente que se insta­lou, sobretudo, ao nível das teorizações sobre os estatutos e sobre as relações entre a(s) filosofías(s) e a(s) ciência(s), mais do que no terreno concreto em que se dialectizam e se reformulam atempada e incessan­temente esses estatutos e essas relações.

A consciência de uma insustentável adulteração do estatuto da filo­sofia, que se sucede à constatação do seu desfasamento relativamente à configuração da idoneidade científica da educação, leva muitos dos que actualmente se situam no terreno da filosofia da educação a procurarem actualizar a sua originalidade e a sua identidade.

Pensadores como Charbonnel, Pantillon e Hameline vão proceder, neste contexto, de uma forma ou de outra, a uma renovação do criticismo kantiano. Para o efeito, Charbonnel propõe o delineamento da filosofia da educação como crítica da razão educativa, enquanto Pantillon a pro­clama como totalizadora crítica dos valores e do sentido do humano e Hameline, juntamente com Reboul, a define essencialmente como uma teoria do discurso pedagógico preocupada em desvendar a lógica das metáforas que o percorrem.

Em qualquer dos casos, é notória a preocupação em se salvaguardar a irredutibilidade da intervenção da filosofia da educação sem se lhe atribuir qualquer privilégio no espaço da prescrição dos valores que, muito pelo contrário, se considera incompatível com a sua função imi­nentemente crítica.

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CAPITULO VI

PROJECTOS, OBJECTOS E MODELOS EM EDUCAÇÃO

O objecto da ciência da educação (e não será apenas o da ciência da educação...) é um objecto construído, ou melhor, um objecto em construção. Não será nunca um objecto totalmente delineado, a descobrir ou já descoberto. A expressão objecto-projecto é, assim, a que mais cor-rectamente se adequa à identificação que deve existir entre a dimensão antropossocioteleológica das finalidades e o estatuto epistemológico do objecto, sempre inacabado, da ciência da educação. A formulação deste objecto depende, de facto, fortemente (ainda que não exclusiva­mente) da perspectiva filosófica assumida. E se as finalidades da edu­cação são, por elas mesmas, discutíveis e incessantemente superáveis, um acordo sobre uma eventual univocidade do objecto da ciência espe­cífica da educação é, ele também, impossível fora do formalismo de certos parâmetros. É preciso, isso sim, explicitar a filosofia porventura oculta (implícita) do objecto-projecto bem como a normatividade que lhe é inerente. Alguns autores seriam tentados a catalogar esta interven­ção filosófica como uma intrusão da ideologia. Sem entrarmos aqui nos pormenores desta polêmica, lembramos apenas que, contrariamente à ideologia, a filosofia aspira sempre a esclarecer os seus princípios, situando-se.

Deste modo, ultrapassa-se nomeadamente a questão da cientifi-cidade ou não-cientificidade da filosofia: a filosofia não permanece simplesmente no nível do que é prévio, do que é anterior à construção do discurso científico; ela não fundamenta a priori a ciência, nem con­corre com ela; a filosofia não é mais um saber que, quando muito, se tolera. Em situação de igualdade e de interpenetração dialéctica, ela é um dos contributos que, entre outros, participa na construção da

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ciência da educação sem nunca pretender apropriar-se desta unilateral-mente. Com a transdisciplinaridade, institui-se a mais estrita horizonta-lidade que elimina a razão de ser de quaisquer ambições reducionistas (cf. A. Dias de Carvalho, «L'Apport Philosophique», in Une Science Spécifique pour VEducation?, pp. 131-145).

Nestas circunstâncias, a filosofia não é nunca chamada, também, para preencher a posteriori os vazios que a ciência possa deixar a des­coberto. Ela toma-os em mão dentro da própria prática científica, no interior do discurso científico, fazendo do objecto deste um objecto que é sempre atravessado pelo projecto, não representando jamais o pro-jecto, por sua vez, uma mera ausência de objecto. Uma crítica deste tipo só teria cabimento dentro da ideologia objectivista cuja falência não pode, entretanto, ser iludida.

Falemos, pois, do projecto educativo/versus/da educação como projecto.

Abordar a questão do projecto educativo, numa perspectiva filo­sófica, e sobretudo abordar - de acordo com tudo quanto já afirmámos - a questão das finalidades da educação. Finalidades que se projectam num futuro que se procura construir no presente, a partir dele, ou para além dele: mesmo que se considere o futuro como uma transgressão do presente, ele tem de ser definido em redor das margens deste. De facto, todos os projectos educativos devem visar um futuro mais ou menos longínquo - o que ainda não é mas que se quer que seja ou exista - em função do que são, para nós, os fracassos, os erros, os êxitos - os limi­tes - do presente e do passado. Utilizando uma frase de Braudel, dire­mos que, através do(s) projecto(s), o presente não será realmente mais «esta linha de paragem que todos os séculos, carregados de eternas tra­gédias, vêem diante deles como um obstáculo, mas que - Braudel di-lo também - a esperança dos homens não deixa, desde que há homens, de transpor» {Ecrits sur VHistoire, p. 314).

Um projecto é, assim, sempre portador de referências ao presente, não sendo nunca estranho às suas condicionantes sociais, culturais, históricas e econômicas. Mas, apesar disso (ou por causa disso), o pro­jecto é para o homem a expressão da consciência de um prolongamento espácio-temporal que ele toca, mas que lhe escapa continuamente, que o angustia, mas que lhe fornece também um potencial inesgotável de esperança. Pelo projecto, tentamos de alguma maneira antecipar o

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futuro, colocá-lo na reflexão do (e sobre o) presente, para apreciar as conseqüências prováveis - por acordo ou oposição - dos momentos já vividos ou que vivemos ainda, para esboçar os tópicos de um devir que nunca controlamos totalmente.

O projecto representa e projecta efectivamente a ansiedade do homem diante do desenrolar de um tempo e o alargamento de um espaço que não lhe pertencem inteiramente, mas que nem por isso deixam de o afectar. Decorre daqui a sua vontade de intervenção.

«Sem dúvida, a técnica pedagógica fornece-nos o meio de agir sobre a criança e de controlar a nossa acção, mas ela não diz segundo que ideal é preciso agir. É, portanto, à filosofia que compete atribuir um alvo à educação e coordenar os meios utilizados» (G. Landsheere, Introduction à Ia Recherche en Education, p. 12).

Mas não esqueçamos que se as finalidades (filosóficas) do pro­jecto educativo formam uma parte fundamental do objecto-projecto da investigação educacional, emprestando-lhe uma tônica de ousadia, elas acabam por não o preencher globalmente. As orientações gerais inerentes às finalidades guiam - sem que, por tal razão, se possa falar de hegemonia - , de maneira mais ou menos consciente (mas que se quer cada vez mais consciente), as investigações e as acções educativas; a par disso, coordenam-nas (dentro de uma relação dialéctica com as demais componentes intervenientes). As finalidades percorrem o corpo do projecto educativo emprestando-lhe um sentido dinamizador capaz de fomentar, atrair e conjugar esforços aos quais, de outro modo, faltaria um rumo mobilizador e suficientemente esclarecido ('). Se elas não são realmente o único vector implicado, todavia, diante do esque­cimento a que têm sido votadas, pensamos que nunca correremos o risco de insistir demasiado sobre a sua importância e o seu lugar. Tarefa que, aliás, consideramos difícil. É que as finalidades do projecto edu­cativo, exprimindo bem a inquietação do homem perante os vazios e os

(') É o que, em termos mais gerais, mas com a mesma preocupação, afirma M. Horkheimer ao escrever, com alguma ironia, que «a filosofia seria a memória e a cons­ciência do gênero humano, e por conseqüência ajudaria a impedir que a marcha da humanidade se assemelhasse à dos internados num asilo de dementes que, sem nenhum fim, andam interminavelmente em círculo durante a hora do recreio» (Eclipse de Ia Raison, p. 192). O que não quer dizer que a filosofia possa deliberar, com segurança, sobre «as formas dominantes do futuro».

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limites históricos do presente, assim como e sobretudo uma mescla de uma necessidade de mudança e de um sentimento de incerteza em rela­ção a tudo quanto diga respeito à possibilidade de superação do contexto em que se vive, tendem a adquirir, de imediato, o caracter fluido das ati­tudes expectantes e dos ideais.

Chama-se desde já a atenção para um aspecto que não deve ser menosprezado: o vocabulário pedagógico hesita freqüentemente quanto à utilização precisa dos termos finalidade, fim e alvo (fazemos corres­ponder o termo alvo à palavra francesa but). Tentaremos esclarecer um pouco mais à frente este ponto. Adiante-se, porém, que as finalidades apelam ao estabelecimento de fins e de alvos e que o processo de for­mulação e de realização destes pode acarretar uma redefinição daque­las. Os fins e os alvos revelam-se também insuficientes e incompletos diante da extensão dos propósitos das finalidades. É devido a esta amplitude das finalidades que o seu tratamento científico estrito se torna inviável. Uma das grandes vantagens da ciência da educação é que, com ela, esta situação não degenera numa desqualificação gros­seira dessas finalidades.

No capítulo intitulado «Pour une Philosophie de 1'Éducation», incluído no Traité de Sciences Pédagogiques, R. Levêque e F. Best escreveram: «Entendemos efectivamente que este projecto (educativo) não é nunca definição de um fim preciso, mas orientação, direcção, sentido a dar a uma acção». Os autores citados reforçam a sua posição através de um pequeno texto de Freinet onde se pode ler o seguinte: «Pretender definir antecipadamente, para os alunos, a sociedade na qual quereríamos vê-los viver mais tarde é um non-sens pedagógico e histó­rico, a tal ponto são importantes e determinantes os múltiplos elementos de apreciação que escapam aos pedagogos e que mesmo os sociólogos mais avisados não poderiam prever e precisar» (p. 107). A preocupação explícita de R. Levêque e de Best é a de salvaguardar a liberdade con­siderada como essencial à relação pedagógica. A apresentação prévia de valores surge identificada com a imposição de constrangimentos incompatíveis com a natureza do processo educativo, que não se realizará nunca sob o domínio de quadros axiológicos fixos. Para além do mais, estes quadros visando uma sociedade futura seriam não só impossíveis de estabelecer no presente pela sociologia como seriam também, pelo lado da filosofia, ilegítimos e anacrônicos.

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«O objecto principal da filosofia da educação não é nem uma axiologia, nem a apresentação quase científica das finalidades de uma sociedade particular. Este objecto seria antes o próprio processo da educação, que se trataria de descrever, de compreender, descobrindo-se nele o sentido» (idem, p. 102, s.p.n.). A filosofia da educação acaba por ser, para estes autores, uma fenomenologia que parte para a descoberta dos princípios que tornam possível a relação educativa enquanto tal. Uma filosofia entendida exactamente como uma «análise regressiva e compreensiva do fenômeno da relação educativa».

Aceitamos as reservas que são feitas acerca das finalidades, enquanto estas veiculem propostas de quadros axiológicos a realizar numa socie­dade futura, na medida em que se possam converter em amarras para esse mesmo futuro. De facto, ninguém detém a capacidade de adivinhar a vida das gerações que se nos vão seguir.

Mas reparemos igualmente no seguinte: haverá realmente quem pense que pode haver um projecto pedagógico desprovido de qualquer quadro axiológico? Que alcance terá uma reflexão filosófica que, limi­tando-se escrupulosamente à busca dos «fundamentos da moralidade», postule como princípio da educação, por si só, «o respeito pela liber­dade e por esta razão que é a única capaz de formular leis e deveres»? Se a ciência da educação assegurar a conflitualidade permanente entre projectos educativos diferentes, haverá ainda lugar para que se olhem com desconfiança as finalidades filosóficas de cada um desses mesmos projectos educativos?

Além disso, «a liberdade - diz-nos J. Natanson - é requerida pelo processo da educação, como condição para que o homem possa trans­formar-se ele próprio. Mas - acrescenta ele - esta possibilidade de se transformar é ela mesma a condição para que ele possa ser educado» (L'Enseignement Impossible, p. 17). Convirá esclarecer que esta curta passagem se insere precisamente numa crítica global que Natanson faz às posições de R. Levêque e F. Best.

De facto, a menos que se considere que a liberdade é algo que está já adquirido - o que tem de ser posto em causa - , não se vê muito bem como pode ela ser simplesmente um princípio e não, prioritariamente, uma finalidade. A liberdade, quando muito, é um princípio a realizar; logo, é uma finalidade. A liberdade, enquanto mero princípio da relação educativa, é uma noção demasiado formal para que possa escapar a

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confusos aproveitamentos ideológicos. Na verdade, se pararmos um pouco para perguntar o que é a «liberdade», aperceber-nos-emos, de imediato, que estamos diante de uma noção polissémica que deu azo às mais díspares controvérsias. Para a burguesia do século XVIII, ela foi sinônimo de rejeição do domínio feudal; para Marx, a liberdade torna--se o objectivo do proletariado em luta contra a opressão do liberalismo econômico capitalista; filosoficamente, a liberdade foi livre-arbítrio perante o destino, afirmação feita sobre o determinismo científico; foi ainda, para os existencialistas, o desabrochar criador da pessoa. E poderíamos ir muito mais longe...

Aliás, os exemplos de técnicas «neutras» escolhidos por R. Levê-que e por F. Best - o trabalho segundo as concepções de Freinet e de Makarenko - são concludentes. Independentemente das nossas posi­ções sobre o conteúdo das teorias destes dois pedagogos, o que não é aqui importante, não podemos admitir a afirmação de que as técni­cas por eles utilizadas são neutras. No caso de Freinet, o «trabalho cooperativo» é um trabalho comprometido com determinados objec-tivos e não uma simples techné; isto apesar de algumas das suas decla­rações anti-intelectualistas. O próprio Freinet acaba por escrever: «É para o amanhã imediato que ela (a sociedade) pede à escola para preparar a criança, para os fins imediatos que ela impõe e que podem não ser mais racionais nem mais humanos do que aqueles em nome dos quais o industrial empreende o fabrico em série e o lançamento de um objecto inútil para a Sociedade ou talvez perigoso e nocivo. (...) Razão mais do que suficiente para que os educadores sejam sempre ilumina­dos por uma clara visão do ideal pelo qual são, por vezes, os únicos a sacrificar-se» (L'École Moderne Française, pp. 12-13, s.p.n.). O pro-jecto de Freinet de readaptar a escola à sociedade contemporânea contém o fim (a finalidade implícita) de contribuir para a transformação desta sociedade segundo os ideais, convirá precisar, de um «socialismo prático e militante» (cf. L. Not, Les Pédagogies de Ia Connaissance, p. 123). E onde está a neutralidade de um Makarenko, para quem a escola é explicitamente um «colectivo comprometido» e implicado na construção da sociedade socialista?

Digamos que uma fenomenologia dos princípios, sem mais, corre o risco de, assim, fazer deslizar a filosofia da educação para o plano da mais absoluta inocuidade e incapacidade de esclarecer, sistematizar e

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situar dinamicamente as diferentes motivações ideológicas (traduzindo--as sob a forma de finalidades explícitas) dos projectos educativos em confronto. Mais ainda: uma simples fenomenologia dos princípios ignorará a evolução objectiva desses mesmos princípios que não são assumidos de uma maneira homogênea, de um projecto educativo para outro, consoante, aliás, as finalidades que cada um deles adopta. Não podemos nunca deixar de questionar, por exemplo, o significado que tem para C. Rogers, Neill, Freinet, ou para qualquer outro, o princípio central estabelecido pelos nossos autores de que «para que o progresso de transformação que é a educação seja possível» o ser a educar tem de ser livre. Qualquer um deles o aceitou, sem dúvida. Mas de maneiras tão diferentes que quase seria possível dizer que há tantos princípios sobre a liberdade do ser a educar quantos os pedagogos! Escamoteando este dado, que interesse tem a reflexão filosófica?

A investigação educacional - e, dentro dela, a filosofia - não pode depreciar, seja qual for o pretexto, o papel das finalidades. A conflitua-lidade e a revisibilidade destas impedirá, contudo, todas as veleidades que visem a sua transformação em certezas quanto ao futuro e as ten­tativas de as impor hegemonicamente.

Entretanto, J. Leif define o fim como o que «para a educação e para o ensino é um alvo» e & finalidade como «o caracter da acção que tende para este alvo, para este termo, pela adaptação dos meios apro­priados para os atingir»; o princípio designa, para ele, «uma norma, uma regra de acção extraída de um juízo de valor, constituindo um modelo que visa atingir um fim»; o meio seria o «conjunto, a organização de possibilidades, de disposições, de medidas, método, para atingir um alvo, um objectivo, um fim» (Philosophie de 1'Education, t. 4, pp. 115, 210 e 182).

Esta rede de conceitos, tal como Leif a apresenta, tem a vantagem de trazer uma certa organização. Mas esta organização é corroída por alguma confusão e por conter uma margem importante de convite ao simplismo contra o qual devemos estar advertidos. Vejamos, então, com mais detalhe o que queremos dizer.

Leif, de facto, começa por confundir fim e alvo. Ora, é preciso tentar circunscrever o sentido destes dois termos, pois eles não coinci­dem completamente, não podendo um, de forma alguma, servir para identificar o outro. Se, correntemente, não temos necessidade de operar

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esta distinção, o problema coloca-se, contudo, se se quer precisar o léxico próprio dos conceitos educativos.

A precipitação de Leif é, aliás, relativamente comum. G. de Land-sheere, no Dicüonnaire de VEvaluation et de Ia Recherche en Educa-tion, comete um pouco o mesmo erro, ao caracterizar o fim como «o que é ao mesmo tempo termo e alvo». Mas adianta que «esta palavra parece dever ser reservada aos objectivos supremos» e dá, a título de exemplo, o propósito de «libertar o homem de toda a alienação». Com Leif, define a finalidade como o «caracter do que tende para um alvo, um fim».

Para L. Not, tal como para nós mesmos, os alvos de um projecto educativo são mais precisos e, por isso, mais fáceis de exprimir: «Enquanto que os alvos marcam pontos de chegada específicos e perfeitamente definíveis, os fins indicam de preferência o sentido dentro do qual um processo se efectua» («Le Project Educatif», in Une Science Spécifique pour V Education?, p. 189). Esta distinção vale ainda - pelo modo como é feita - para realçar a presença nos projectos educati­vos, para além de pontos de chegada que, em princípio, são escolhidos para que sejam claramente atingidos, de outras referências mais lon­gínquas que, simultaneamente, coordenam e justificam os alvos. Esta­mos, evidentemente, num terreno extremamente movediço porque se trata do terreno dos objectivos político-ideológicos que não cessam de se relacionar intimamente com o domínio das perspectivas filosóficas. Ch. Hummel, por seu turno, considera que, «contrariamente às finalida­des que pertencem sempre ao mundo das idéias, os objectivos são do domínio da política educativa e visam a solução dos problemas com os quais as sociedades se vêem confrontadas. Cada sistema educativo -acentua ainda - é caracterizado pela relação dialéctica existente entre as suas finalidades e os seus objectivos» (L'Education d'Aujourd'huiface au Monde de Demain, p.15). Por detrás de um evidente desacordo terminológico, reforça-se, todavia, a necessidade de se identificarem níveis vários dentro de um projecto educativo. Com Hummel, salienta--se, a par disso, o seu caracter não estanque, o que é fundamental. Quanto à terminologia usada na passagem que se acabou de transcrever, gostaríamos de esclarecer desde já que, para nós, a palavra objectivos tem um sentido lato: objectivos são, indiferentemente, as finalidades, os fins e os alvos, em princípio, por oposição aos meios, constituídos pelas

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técnicas e pelos métodos. Dizemos «em princípio» porque, em última análise, dentro da dialéctica dos objectivos, os alvos, nomeadamente, podem converter-se, em determinados momentos do processo, em meios relativamente aos fins e às finalidades. De acordo com esta nossa pro­posta, substituiríamos no texto de Hummel - para sermos precisos -a palavra «objectivos» por «alvos», mais adequada para exprimir um objectivo educacional restrito. Ficar-nos-iam igualmente algumas dúvi­das sobre o sentido exacto com que surge o conceito de finalidade, se não considerássemos o seguinte texto do mesmo autor: «As finalidades da educação provêm da reflexão filosófica sobre o homem, sobre a existência humana no seu contexto histórico e sobre os sistemas de relações que ligam o homem à natureza e à sociedade em que ele vive, cria e age. O conceito de finalidade implica que o homem é um ser lan­çado para o futuro, que ele espera melhor» (op. cit., p. 14). Resta apurar a natureza e o alcance das relações entre as finalidades e os fins.

Se as finalidades não aparecem, de uma maneira geral (sistemati­camente), expostas, tal facto fica a dever-se precisamente a uma reacção ao seu caracter filosófico que as torna operacionalmente incômodas. Se somarmos a isto a circunstância de os fins - dado o seu cariz ideológico - surgirem com uma clareza (aparente) e uma capacidade mobilizadora mais evidentes, compreenderemos bem a tentação para as desprezar. Mas a verdade é que, do esclarecimento, da organização e da radicali­zação crítica dos fins - tarefa por excelência - emergem as próprias finalidades. Assim, pode afirmar-se que os fins contêm sempre fina­lidades implícitas. Afirmar-se-ia também que as finalidades são fins explícitos se esta explicitação não acarretasse a procura de uma desvin­culação ideológica que é, afinal, estranha aos fins educativos enquanto tais. Desvinculação que se exprime por um comedido distanciamento relativamente à função prático-social directa dos fins (as finalidades, não o esqueçamos, têm a ver com ideais utópicos de homem, de socie­dade e de mundo - R. Buyse chama-lhes fins transcendentes da edu­cação) e por uma ânsia em expor, com redobrado vigor, as ideologias ao confronto e à possibilidade de superação dos seus princípios. Deste modo, será correcto dizer-se que as finalidades implícitas nos fins só são finalidades em termos potenciais: elas são finalidades, strictu sensu, apenas quando, pela sua explicitação, se radicalizam e transcendem os fins desenvolvendo uma situação de ruptura tendencial. A ideologia

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contida e veiculada pelos fins vê-se obrigada, neste contexto, a pro­ceder a contínuas reformulações em resposta ao incessante questio­namento da reflexão filosófica. Os alvos (de que se pode dar como exemplo o objectivo de aprendizagem de um determinado nível de uma língua estrangeira ou de obtenção de um qualquer diploma) concreti­zam, no seu conjunto, a estratégia dos fins.

No percurso que vai das finalidades aos alvos, passando pelos fins, há uma relação inversamente proporcional entre o grau de com­prometimento prático e o grau de generalidade. É esta situação que permite a Dewey afirmar que «a filosofia da educação não origina nem formula fins». Para ele, a filosofia «ocupa um lugar intermédio ou regulador». Isto porque, através dela, «se examinam os fins e as conseqüências que se alcançam na realidade, à luz de um esquema geral de valores» (La Ciência de Ia Educación, p. 59). Esquema este que, filosoficamente falando, não é assumido acriticamente. «Chega sempre um momento - o da acção - em que o pedagogo-educador transcende o nível da experiência e age, independentemente do que sobre isso ele diga, em função da idéia que tem do homem e da sociedade» - diz-nos J. Boutaud que, desta maneira, acentua a importância indesmentível das condicionantes filosóficas para além de todas as veleidades redu-cionistas. «A pedagogia sem a filosofia da educação que abre perspec­tivas, que se esforça por descobrir o essencial do episódico - conclui depois o mesmo autor com base na constatação anterior - , não pode senão degradar-se como subcultura, retalhar-se em técnicas, em idéias, em slogans: o mesmo é dizer em vulgaridades dogmáticas. Atingir a filosofia com o ostracismo conduziria a fechar os professores e os educadores numa concepção estreita do seu trabalho e a afastá-los de meios suplementares para uma superação do dado» (Querelle d'Ecoles ou Alain, Piaget et les Autres, pp. 132 e 134). Percebe-se agora bem, pensamos, como é que o distanciamento da filosofia serve a dialéctica da investigação educativa, sendo este distanciamento, sobretudo, um esforço de descentração crítica que não ignora nem nega o seu envol­vimento na prática social. Simplesmente, a filosofia - e é este grande salto que ela nos convida a dar - não pactua nem com projectos de reprodução desta prática nem com alternativas obscuras eivadas de dirigismo, elas mesmas, afinal, falhas de alternativas. Não pactua, mas também não lhes vira as costas.

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O caso da experiência de Summerhill serve bem para demonstrar o que pode acontecer com o que sendo, à partida, um projecto educa­tivo, persiste, contudo, numa não explicitação das suas finalidades. Com efeito, a aventura libertária da escola de Summerhill afirma-se pela defesa dos direitos do indivíduo contra todos os sistemas comu­nitários, contra as ameaças à liberdade individual que Neill vê tanto nas sociedades capitalistas como nas comunistas. Assim, diz-nos ele que «é a ideia da não interferência com o crescimento da criança e da não pressão sobre a criança que faz da escola o que ela é» (Libres Enfants de Summerhill, p. 92). Eis, sinteticamente, o fim que Summerhill perseguirá. Fim que, dentro da sua coerência interna, dilui as finalida­des. E os alvos. E dilui-se a si próprio...

«Se, por exemplo, eu tentasse formar uma sociedade na qual os adolescentes fossem livres de viver a sua vida sexual naturalmente, seria condenado, preso até, como corruptor da juventude. Tendo horror aos compromissos, vejo-me, todavia, na obrigação de assumir um a esse respeito e de compreender que o meu destino não é reformar a sociedade, mas trazer a felicidade a um número muito pequeno de crianças» (idem, p. 37).

De alguma maneira, Summerhill torna-se num fim em si e para si mesma. Mas, noutras passagens, Neill não se conforma com limites tão estreitos para o seu projecto e, quando tem setenta e seis anos, pro­clama: «Provavelmente o futuro de Summerhill tem pouca importância. Mas o futuro da ideia de Summerhill é da mais alta importância para a humanidade. As novas gerações devem ter o direito de crescer em liberdade. O dom da liberdade é o dom do amor. E só o amor pode salvar o mundo» (idem, p. 43). Defende ainda a «ausência de confor­mismo, de estagnação, de pessimismo». Apoiando-se muito de perto nestas citações de Neill, M. Hechinger fala do «conceito de Summerhill» como sendo a intenção de mudar a sociedade «pela prática do amor e da compreensão - e pelo respeito total pela liberdade do outro» (Pour ou Contre Summerhill, p. 38).

Não podemos deixar de pressentir que com esta «ideia», que com este «conceito de Summerhill» - uma vez esgotado, dentro do contexto institucional existente, o fim que de início se almejava - , se começa a descortinar a necessidade de se esboçar uma finalidade (pelo menos, uma) que dê corpo e futuro a um projecto educativo que descobre a

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amputação que infligiu a si mesmo. Adormecido nos seus propósitos restritos de combate ao autoritarismo pedagógico, o protoprojecto de Summerhill despertou dramaticamente para uma reflexão filosófica (a qual, aliás, tardou de modo irremediável) que lhe fornecesse o ideal coe­rente e exaustivo de homem e de sociedade onde «o direito de crescer em liberdade» se consumaria. O conceito de Summerhill era, afinal, um conceito de homem que, porém, nunca chegou a ser conhecido pelos seus protagonistas. Desta forma, o esforço dispendido e o trabalho rea­lizado puderam facilmente, sem reacções de maior, ser recuperados pela ideologia dominante, de onde, talvez, nunca tinham chegado a sair.

Retomando as definições de Leif, abordaremos um outro aspecto que é o que tem a ver com a natureza dos modelos e com as relações destes com as finalidades, os fins e os princípios, no âmbito de um projecto educativo.

Na nossa opinião, um princípio não constitui um modelo de um projecto educativo, como se poderia ser levado a crer no seguimento da definição que desse conceito nos dá o referido autor. De facto, um projecto educativo só adquire o seu sentido pleno quando o modelo dos fins (e, indirectamente, o dos alvos) se reporta a um conjunto de finalidades. Os princípios condicionam, sem dúvida, a formulação de todos os níveis de objectivos mas atestando prioritariamente a presença de constrangimentos oriundos da ordem social e moral reinante e instituída. Isto, evidentemente, sem prejuízo de se admitir que aí ocorra uma progressiva penetração dos valores veiculados pelas finalidades. As grandezas relativas de cada uma destas variáveis são, entretanto, bastante oscilantes, dependendo das circunstâncias sociais e históricas gerais e da evolução do próprio processo educativo.

Quando Mialaret distingue três planos nos objectivos da «educação nova» - um primeiro em que «a educação deve antes de tudo adaptar--se à vida de hoje», um segundo em que «ela deve virar-se para o futuro e adoptar uma atitude "prospectiva"» e um terceiro em que «a educação nova deve participar (no sentido de: ser um dos elementos de) na deter­minação e na criação do homem de amanhã» (Education Nouvelle et Monde Moderne, p. 11), fornece-nos algumas pistas de reflexão interes­santes. Importa, todavia, desde já, assinalar que não seria legítimo olhar estes três planos como três outros níveis, entre si incomunicáveis: com efeito, eles mantêm seguramente um espectro de relações recíprocas o

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qual, porém, não impede que se ultrapasse o sincretismo em favor de um recenseamento das componentes que suportam as relações men­cionadas.

Assim, uma educação que contempla a «prospectiva do futuro» e que está implicada na «criação» de um novo homem, não se limitará jamais, de uma maneira estrita, a procurar simplesmente a adaptação do homem - que, deste modo, seria conformista - ao mundo em que vive. Por outro lado, ela não virará forçosamente as costas às estruturas históricas e sociais do presente que, entretanto, albergam os primeiros utensílios da mudança e, claro está, os obstáculos a esta mudança... Este é, aliás, o cadinho em que se desenvolve a dialéctica própria de um projecto educativo cujas finalidades são encontradas, sobretudo, no terceiro nível estabelecido por Mialaret, enquanto que os rins se desta­cam do segundo (a prospectiva visa principalmente a reestruturação dos processos educativos e das sociedades e não a sua desestruturação). O nível da «adaptação à vida de hoje» - que pode atingir graus de impor­tância qualitativa e quantitativamente diferentes, assim como os outros, consoante o caracter reformista ou de crítica radical que assume no seu todo o projecto educativo considerado - é, especialmente, o nível dos princípios. Mas o modelo de um projecto que é um projecto educativo não pode residir neste nível: um modelo educativo (sobre o qual fala­remos à frente mais desenvolvidamente), porque é essencialmente filo­sófico, não se remeterá nunca exclusivamente para o campo da situa­ção dada, o que faria, aliás, com que ele perdesse todo o seu poder de descentração e, por conseqüência, de transgressão do presente.

Os princípios reflectem, antes de mais, o modelo de educação pre-valecente, o que não obsta a que encontremos neles uma aglomera­ção complexa, quase inextricável, de vectores ideológicos e, tendencial-mente, de vectores que repercutem propósitos filosóficos. Não são, isso nunca, o motor de um projecto educativo. Se fizermos dos princípios um modelo condenamos inclusive, de imediato, o referido vector filo­sófico, pois este ficará, em tais circunstâncias, esmagado pela esfera ideológica, perdendo a sua vitalidade. Fazer dos princípios um modelo significa que se está a valorizar demasiado uma atitude estática.

Só com a inquietude filosófica é possível a emergência das propos­tas de transformação que têm de caracterizar (embora devamos admitir variações no seu peso relativo) um projecto educativo. Só com o seu

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contributo é que podem surgir modelos que, contrastando vigorosa e explicitamente com as situações presentes, incitem as pessoas de maneira conseqüente e esclarecida à mudança. Se os princípios fornecem o «modelo», então não será mesmo correcto continuar a falar-se de pro-jecto educativo, pois retiramos-lhe a dimensão do futuro e «educar» não será mais do que submeter os indivíduos às exigências do presente iludindo-os, eventualmente, com os fins debitados por uma prospectiva que se limitará a prolongar o próprio presente. Ora, educar (dentro de um projecto educativo) obriga a que se conheça e a que se faça conhe­cer o presente de modo crítico para construir um futuro que, enquanto futuro, seja diferente e melhor.

Um «projecto» que encontre o seu «modelo» nos princípios, remete--se para uma função que é apenas político-ideológica, ainda que utilize dados científicos para a apresentação dos alvos e para a organização dos respectivos meios e técnicas. A consideração, pela positiva, da intervenção das finalidades altera profundamente o sentido dessa função sem que todavia, por isso, se tenha de deixar de contemplar a presença dos restantes factores em jogo. A passagem de um projecto ideológico a um projecto educativo é, nestes termos, o produto de um alargamento do leque dos factores considerados e não o resultado do aniquilamento de qualquer um deles, o qual seria, entretanto, demagógico. Mas não esqueçamos também que este alargamento não significa que entre um e outro se produza uma relação de continuidade. Assiste-se, pelo contrário, a uma verdadeira ruptura de funções e de estatutos.

G. Avanzini ajuda-nos a melhor compreender os difíceis meandros que se estabelecem entre as idéias de «alargamento dos factores con­siderados» e de «ruptura de funções e de estatutos» entre os projectos ideológicos e os projectos educativos. Da sua obra Introduction aux Sciences de VEducation extraímos as seguintes idéias:

- As finalidades «estão sempre presentes nas condutas educa­tivas e são simultaneamente reguladoras e dinamogénicas» (p. 105).

- O primeiro parâmetro de um acto educativo «é constituído pelo seu sistema de finalidades, o qual está ligado à escolha de uma cultura, de uma filosofia, de uma moral, de uma religião, de um tipo de sociedade, portanto, de uma síntese original de elemen-

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tos cognitivos e de ideologia de que se se propõe provocar a interiorização» (p. 113, s.p.n.).

- Um sistema de finalidades «depende, ao mesmo tempo que o anima, do objectivo de uma instituição educativa ou de uma dada sociedade global» (p. 5).

Temos assim que a iniludível presença das finalidades educati­vas, através de uma actividade «reguladora e dinamogénica», enquanto expressão de uma «síntese original de elementos cognitivos e de ideo­logia», influencia, de uma maneira muito própria, a evolução das insti­tuições e das sociedades, influenciando estas, por sua vez, os contornos que assume aquela presença. Contudo, como se vê, este último condi­cionamento não anula a irrupção do caracter inovador das finalidades. É até necessário para o esboço da dialéctica em que estas estão com­prometidas e onde são somente a face do pólo sintetizador e gerador de novas e sucessivas sínteses. Sem esta dialéctica, não há projectos edu­cativos (2).

(2) Para melhor esclarecer esta problemática, partamos de uma questão polêmica como é a da liberdade individual:

1. Dialéctica da liberdade individual. 1.1. A questão da liberdade individual obriga a que se contemplem três

elementos: o «eu», o «outro» e o «colectivo». 1.2. A possibilidade de expressão é o indicador normalmente utilizado para a

confirmação da existência dessa liberdade. Contudo, só existe liberdade individual se a expressão se pode tornar comunicação.

1.3. Se os três elementos mencionados em 1.1. representam os pressupostos referenciais necessários para a construção da dialéctica de uma actividade livre, isso quer dizer que a eliminação de qualquer deles implica a desac-tivação da dialéctica em causa.

1.4. Como pode ocorrer a hipotética eliminação acima considerada? Preci­samente através da expansão hegemônica de um dos elementos referi­dos: se o «eu» invade o «outro» e (ou) o «colectivo»; se o «outro» invade o «eu» e (ou) o «colectivo»; se o «colectivo» invade o «eu» e (ou) o «outro». De facto, se a expansão destrói a intercomunicação, não há mais lugar para a liberdade individual. Pelo contrário, se há comunicação, há relação e vice-versa.

2. Filosofia e liberdade individual. 2.1. A filosofia é definida aqui pela radicalidade crítica que se apoia na

capacidade e na possibilidade de descentração relativamente às ideologias

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«Por mais elaboradas e supondo que chegaram ao ponto óptimo do seu desenvolvimento, elas (as ciências) - citamos novamente Avan-zini - permanecerão incompetentes para prescrever valores. Por muito indispensáveis que sejam, é de uma carência constitucional que elas sofrem, pois é constitucionalmente também que o debate relativo às finalidades diz respeito à ética e à axiologia» {op. cit., p. 106). Aceita--se, deste modo, que as finalidades prescrevem valores, mais ainda, que esta prescrição é acompanhada de um debate essencialmente filo­sófico de que as ciências estão, à partida, arredadas. Mas na segunda das passagens de Avanzini transcritas mais atrás, falava-se também

bem como relativamente a propostas filosóficas diversas. Só há filosofia se houver expressão e comunicação. E, por isso, conflitualidade.

2.2. A filosofia decorre da liberdade individual e assegura-a. Não pode haver, portanto, uma filosofia oficial do Estado, pois o Estado, aqui identificado com o «colectivo», usaria o seu poder institucional contra os discursos filosóficos divergentes. Não há filosofias colectivas; existem, realmente, ideologias colectivas que, se identificadas como tais, se submeterão ao confronto com as filosofias.

2.3. A ideologia do «colectivo» e a filosofia do «outro» tomam-se referências necessárias para a dinâmica da filosofia do «eu» (claro que, entretanto, as ideologias não deixam de passar pelo «eu» e pelo «outro»). O «fim das ideologias» seria igualmente o «fim das filosofias»: aquelas são a razão de ser externa destas.

Educação e projecto pedagógico. 3.1. Um sistema educativo representa, à partida, uma das vias para a institu­

cionalização de uma ideologia; ele procurará assegurar, assim, a repro­dução dos valores e das normas dominantes.

3.2. O perigo de usurpação da educação pela endoutrinação resulta do que ficou dito no axioma anterior. Com este fenômeno, a destruição da liberdade individual está próxima.

3.3. Os projectos pedagógicos são os que tentam formular e implementar modelos de homem e de sociedade em ruptura com os dominantes. Em educação tem de operar a dialéctica filosofia(s)-ideologia(s).

Conexões entre a problemática da liberdade, o projecto pedagógico e a filosofia da educação.

4.1. Os projectos pedagógicos necessitam de filosofias da educação que sugi­ram ou dêem coerência a propostas alternativas: eles são, em larga medida, subsidiários da filosofia ou encontram-se num dado momento da sua construção.

4.2. Só há educação se houver confronto de projectos, isto é, se houver liberdade de expressão e de comunicação, isto é, se houver conflitualidade filosófica.

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de «interiorização» do conteúdo das finalidades. Será que a prescri­ção de valores coincide com a tarefa da sua interiorização? Pensamos que não.

Esta última tarefa compete fundamentalmente à acção ideológica, pois, pela interiorização, os valores entram na esfera da prática vivida, tendendo, então, para escapar a uma reflexão crítica e radical. Os objec-tivos de interiorização têm mais a ver com os fins e com os alvos assim como com as relações que eles mantêm com os meios. A medida que estes objectivos vão sendo (parcialmente) atingidos, a razão filosófica busca outros horizontes procurando assegurar permanentemente a sua capacidade de descentração múltipla e plural em relação às instituições, quaisquer que estas sejam. A componente científica, encravada entre a ideologia e a filosofia, é solicitada pelos dois lados e por eles percorrida: a ideologia aproveita os instrumentos que ela põe à sua disposição; a filosofia explora e transgride os limites últimos da sua indagação e das suas teorizações. A ciência encontra, através da primeira, a sua justi­ficação e a sua realização práticas; na segunda, o dilatar dos vectores epistemológico e antropológico a que se ligam aqui os domínios da ética e da axiologia. Mas, de facto, tanto o debate e a prescrição de valores como a sua interiorização não cabem dentro da vocação dos discursos científicos estritos, apesar de o estudo dos respectivos processos de funcionamento e desenvolvimento poder dar lugar a objectos próprios da pesquisa científica em si mesma. É o que propõe, por exemplo, H. Janne quando afirma que «a educação constitui necessariamente, aos olhos do sociólogo, um processo de aculturação» (Prefácio à obra Sociologie de VEducation - Textes Fondamentaux, direcção de A. Gras, p. 9), isto é, um processo de interiorização de valores culturais. Um processo a deslindar, nunca um processo a cumprir...

Porem, incorporando nós a reflexão filosófica na ciência da edu­cação, somos obrigados a recolocar algumas questões:

- Quando reconhecemos uma tarefa primordial às finalidades, aceitamos o caracter normativo da investigação e da prática pedagógicas?

- No caso afirmativo, como responder às críticas que aí detecta­rão uma atitude tipicamente ideológica incompatível com as exigências dos procedimentos científicos?

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Conforme tínhamos acabado de ver, há que não confundir, antes de mais, ideologia com filosofia (3): com efeito, o estatuto do quadro axio-lógico de uma filosofia não é assimilável ao do quadro de valores de uma ideologia. Por outro lado, as funções de um e de outro são bem diferentes. Já falamos largamente sobre esta matéria, não valerá a pena repetirmo-nos. O que queremos aqui acentuar é que se não pode pre­cipitadamente usar a prescrição filosófica de valores como sintoma ou como sendo até o mesmo que uma interferência ideológica.

Importa igualmente não esquecer de novo que a vontade, freqüen­temente incontrolada, de fazer aceder a investigação educacional aos parâmetros impostos por um modelo de cientificidade importado, num determinado contexto, das ciências ditas exactas, ao mesmo tempo que o fervor de uma recusa do autoritarismo da pedagogia tradicional, explicam muitas das reservas com que são olhados os posicionamen­tos que, de qualquer maneira, defendem a existência de uma dimen­são axiológica nas teorias e nas práticas educativas. Se é um erro con­fundir-se a prescrição de valores com a procura de imposição dos mesmos, será ainda mais grave pretender-se que a investigação edu­cativa, em nome da «ciência», aspire a erradicar os valores do seu seio. Na nossa opinião, assistir-se-ia, assim, à negação da própria problemá­tica educacional que é sempre, em última instância, uma problemática de valores.

Não podendo a educação ser dissociada dos seus fundamentos culturais e sociais, reproduz o conjunto de valores que aí vigora - é o nível dos princípios ideológicos cujo conteúdo pode ser extrapolado para os fins e, indirectamente, para os alvos; a elaboração dos modelos dos projectos, e consequentemente das condutas educativas, traz con­sigo, por seu turno, um quadro axiológico novo que ultrapassa os limites da prática social vigente, mas que não deixa de ser um quadro

(') «É certo que o grupo humano possui o seu equipamento mental e instrumental, as suas estruturas de funcionamento e o plano estruturante do seu futuro, ele exerce também o ônus das suas determinações, impõe a sua problemática própria. Mas não se poderia confundir o sistema axiológico implicado através do meio histórico e político, portanto portador de ideologia, com os princípios filosóficos que exprime a consciência universal, ainda que a universalidade emane da diversidade e que cada cultura por causa disso dê um testemunho segundo a sua originalidade» (Cl. Charmion, Sciences Humaines et Pédagogie, pp. 17-18).

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de valores. Quer pelo ângulo das ideologias quer pelo da filosofia, a problemática dos valores irrompe sempre.

Como seria, aliás, possível explicar a maioria dos desacordos entre os investigadores da área educacional sem recorrer a esse elemento? Dizendo somente que há aí um desenvolvimento insuficiente da pes­quisa científica? Trata-se de um raciocínio cômodo mas pouco satisfa­tório. Na verdade, os valores implicados nos discursos científicos e que explicam realmente muitas das controvérsias existentes procedem da reflexão filosófica (ou das estruturas ideológicas). Mas tal não significa que esses discursos possam algum dia alhear-se deles. Se, para o trata­mento destas questões, a ciência não é, por si mesma, suficiente é porque, como nos diz Avanzini, ela não é aí competente, enfermando de uma carência que, sendo «constitucional», não é, obviamente, transitória. Há, porém, que reconhecê-la e aceitá-la como carência para se poderem tirar as devidas ilações epistemológicas. Assim, a distinção estabele­cida por H. R. White entre matters offact e matters of preference é--nos particularmente cara, pois esclarece o que se passa no campo das opções pedagógicas: não poderíamos, sem dúvida, compreender uma boa percentagem dos antagonismos que brotam ao nível das teorias pedagógicas sem aceitar que uma teoria é, à partida, o resultado de uma simbiose de factos cientificamente confirmados e de preferências sub-jectivas (cf. H. R. White, Foundations of Education). Paralelamente, como vimos, o objecto da ciência da educação é algo que está sempre em construção, quanto mais não seja em virtude da natureza da própria educação. Pode, inclusive, afirmar-se que não há nunca um único objecto para esta ciência desde que não nos contentemos com os parâ­metros formais do conceito de «educação»: há tantos objectos quantos os projectos que estejam em causa (o que, todavia, não impede que haja comunicação entre eles). Daí que, embora os modelos dos projectos educativos devam respeitar as conquistas de ciências como a psicologia, a sociologia ou a economia, seja impossível e ilegítimo querer evitar-se que, com os mesmos dados científicos, surjam teorias pedagógicas -e perfis axiológicos - quase inconciliáveis. Veja-se este exemplo dos nossos dias: apesar dos contributos da psicologia e da psicanálise, assiste-se ao desenvolvimento de teorias divergentes como o positivismo biológico e o idealismo libertário, que não contestam uma identidade de princípio dos seus fundamentos científicos.

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Concluir-se-á que estas teorias representam sínteses originais das aquisições das diferentes ciências bem como de elementos ideológicos, colocando elas mesmas problemas que se projectam em espiral e que convidam a novas e incessantes indagações. A exterioridade relativa da problemática dos valores não pode constituir, por qualquer forma, um convite ao bloqueamento da colaboração transdisciplinar; deve ser antes um pretexto mais para o seu reforço.

Não basta - insistimos - recusar a normatividade para a eliminar. Esquecê-lo significaria ratificar, de um modo automático, os valores necessariamente subjacentes aos nossos procedimentos e mergulhar, sem consciência disso, no espectro ideológico, criando-se obstáculos inúteis à sua clarificação pelo debate filosófico. Contrariaríamos, então, a natureza da investigação e da prática pedagógicas pois a educação «é sustentada por dois elementos igualmente necessários: de um lado, pelo conjunto de elementos que as ciências pedagógicas nos trazem; do outro, pelos planos de valor que dão à acção da educação a sua finalidade». «Planos de valor que existem já, também, nas próprias ciências pedagógicas» (M. Debesse e G. Mialaret, Introdução ao Traité des Sciences Pédagogiques, pp. 15 e 6-7).

Aprofundemos agora a problemática dos modelos. «O modelo - esclarece Cl. Lévi-Strauss - deve ser construído de

uma maneira tal que o seu funcionamento possa dar conta de todos os factos observados» (Anthropologie Structurale, p. 306). Esta condi­ção é comummente aceite pelos investigadores das ciências sociais e humanas. Tal e qual ou, eventualmente, especificando-se que o modelo deverá dar conta de uma classe de factos observados ou a observar. Isto é, quer se trate de um modelo elaborado para satisfazer a necessidade de explicação de factos já observados quer se trate de um modelo que contemple igualmente observáveis futuros, estes modelos procuram sempre atingir um certo grau de adequação à realidade que se estuda. «Interpretar um modelo é, portanto, em psicologia como em qualquer outra ciência, elucidar as suas condições de congruência, quer dizer, explicar as razões que tornam o modelo adequado (ainda que seja par­cialmente) aos fenômenos observados - e não "projectar" em ligações reais cada uma das ligações ideais (ou simbólicas) do modelo. Vê-se, portanto, se se aceitar seguir-nos até aqui, que a fecundidade heurística de um modelo, mesmo imperfeito, é certa, não apenas pelas razões já

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mencionadas (dedução de hipóteses novas, pesquisa orientada de factos novos para fins de verificação), não apenas porque ele pode fornecer critérios precisos de decisão, mas porque ele coloca o investigador em condições de se pronunciar mais validamente - a favor ou contra, de mais a mais - sobre a estrutura da realidade correspondente» (P. Greco, «Epistemologie de Ia Psychologie», in Logique et Connaissance Scien-tifique, p. 979).

No que diz mais directamente respeito à investigação educacional, assiste-se, desde há alguns anos, às tentativas de construção, nomea­damente, de modelos susceptíveis de permitir uma efectiva tomada em conta do que se passa com as acções de formação. E sobre isso que nos fala J. Berbaum na passagem que, de seguida, transcrevemos. «A partir de um tal modelo, representação de um sistema, dever-se-ia poder procurar a que realidade corresponde cada um dos elementos retidos. Guiando assim o investigador, o modelo deveria permitir-lhe elucidar o seu esquema de referência, de o explicitar. Diz-se que, se há homo-morfismo entre o objecto e a sua representação (relação sobrejectiva), há isomorfismo entre o modelo de referência e esta representação (rela­ção bijectiva)» («Théorie, Modeles d'Analyse et Recherche en Situation Scolaire», in Les Sciences de 1'Education, n.° 4, 1980, p. 185).

Esta citação mostra-nos claramente as componentes que intervém e organizam os procedimentos da investigação em educação - modelo, representação e objecto - , as quais são realidades de diferente natureza - construída, humana e material. Estas várias realidades mantêm, toda­via, entre si, interacções permanentes, responsáveis em larga medida, aliás, pelas dificuldades em se chegar a uma certeza quanto à corres­pondência entre os modelos e a evolução objectiva das acções e dos sistemas com os quais elas estão em relação. Através da pesquisa das correspondências homomórficas, os modelos alimentam a própria pes­quisa da adequação entre as interpretações que se fazem da realidade que nos interessa e a realidade que nos transcende e que se transforma, aproximando-se ou afastando-se das nossas sucessivas elaborações e reelaborações formadas com os conhecimentos disponíveis, sempre precários e também em evolução.

Parece-nos, porém, que estes procedimentos, cuja importância é incontestável, não conduzirão nunca, por si mesmos, à apreensão da globalidade da problemática de um projecto educativo. Com efeito, eles

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não ultrapassam o nível dos fins e dos alvos onde a observação e a confrontação directas são mais fáceis, recorrendo-se, para o efeito, à ajuda dos métodos científicos implantados, isto ainda que à custa de simplificações potencialmente cheias de graves conseqüências. Esta preocupação com a acessibilidade «razoável» à observação está na origem das atitudes que sacrificam a este plano os projectos educati­vos. Os propósitos político-ideológico-científicos desenvolvidos pelos fins e pelos alvos assumem, então, aparentemente, contornos bem deli­mitados e exprimíveis com uma satisfatória aproximação. Têm, por isso, um lugar privilegiado numa prospectiva e numa planificação.

Mas o verdadeiro sentido de um projecto educativo não pode apa­recer sem o concurso das finalidades que, organizadas no seu conjunto, formam o modelo que imprime originalidade a esse projecto (4). Não está agora mais em causa um modelo que seja um instrumento para o estudo das relações entre a interpretação que fazemos do mundo e o mundo tal como ele se apresenta e evolui. O modelo filosófico de um projecto educativo dá forma a um ideal global, coerente e aglutinador e utiliza os vários contributos científicos - os conhecimentos que eles fornecem sobre a estrutura e funcionamento da realidade - para tentar radicalizá--los e transgredi-los a partir dos seus impasses e das suas margens extremas, socorrendo-se também, para isso, das sugestões que dimanam das zonas de fractura dos confrontos ideológicos. Se não há uma coin­cidência (nem sequer aproximada) entre este modelo e o que se passa no universo das relações sociais, culturais e educativas, o facto é que esse não é também o seu objectivo. Todavia, um modelo filosófico não deixa nunca de influenciar o processo de desenvolvimento desse mesmo universo. Eis a sua grande novidade.

Cada formulação de um modelo educativo implica reformula­ções e, até, outras formulações completamente novas, não só porque quando o construímos o fazemos de uma maneira naturalmente incompleta e controversa, mas também porque nos devemos assegurar continuamente de que ele não foi assimilado - pelo menos em parte -pela cultura que visava, o que significaria, nessa altura, que estava a

C) Este projecto torna-se, assim, conforme expressão de A. Bonboir, um «projecto humano finalizado» (cf. «Education, Relation à l'Environnement. Une Problématique», in Les Sciences de l'Education, n.° 2-3, 1980, p. 15)

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perder, dentro de proporções variáveis, a sua imprescindível capacidade de descentração relativamente às coordenadas do momento histórico em causa.

Poderão, apesar de tudo, permanecer dúvidas sobre o estatuto epis-temológico e sobre a legitimidade e interesse de um modelo que, con­forme temos vindo a ver, não busca prioritariamente um ajustamento, ainda que imperfeito, à realidade; do modelo de um projecto que é, afinal, um modelo filosófico.

Na ânsia de clarificar esta questão, faremos, em jeito de síntese, cinco observações nucleares onde resumiremos pontos de vista já explanados.

1. O modelo filosófico de um projecto educativo não ignora, de facto, o mundo concreto da nossa existência.

2. A evolução dos processos e dos sistemas educativos impede, por ela mesma, toda a identificação tout court entre as cons­truções teóricas e a realidade institucional.

3. É preciso que nunca se esqueçam as diferenças funções que desempenham os modelos científicos (restritos) e os modelos filosóficos.

4. Estes dois tipos de modelos não se excluem mutuamente. 5. Assim, apesar da grande importância de que desfrutam os

modelos filosóficos, não se pode, em circunstância alguma, reduzir os projectos educativos a esses modelos.

O conjunto destas cinco observações atesta bem que, mesmo defendendo nós repetidamente para a filosofia uma tarefa de transgres­são, de descentração, de crítica radical, não caímos na apologia de uma metafísica toda-poderosa. Temos recusado sempre o refúgio na transcendência absoluta das proposições filosóficas, seja qual for o pretexto.

A filosofia não é, aliás, um trabalho exclusivo às filósofos pro­fissionais. Ela pode brotar de própria investigação dos cientistas e ser por eles tomada em mãos.

Por outro lado, há que rever o simplismo que envolve a idéia de que a filosofia só interroga e não dá nunca soluções. Em primeiro lugar, é bem verdadeiro o lugar-comum de que uma interrogação bem posta é já uma meia-resposta; em segundo lugar, quando se diz que a filosofia

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não apresenta soluções, diz-se apenas que ela não fornece propostas verificáveis, ou melhor, propostas experimentalmente refutáveis (5). Desta maneira, convém refrear o postulado de que a filosofia é uma mera lista de interrogações, fonte, exclusivamente, de dúvidas e de angústia. A filosofia, isso sim, tenta identificar e explorar os pontos em volta dos quais se geram as polêmicas, o que, para uma epistemologia dos modelos educativos, é importante considerar. Dentro deste espírito, somos forçados a olhar com uma grande dose de desconfiança todas as propostas de uma filosofia entendida como «a teoria geral da educação» (cf. R. Hubert e J. Dewey). Aceitando-se a tese do pluralismo filosófico (vd. Anexo Pluralismo Filosófico: Alcance e Significado de um Princí­pio), será muito difícil conceber-se a existência da filosofia enquanto «teoria geral da educação» e até, apenas, a existência dessa «teoria», seja ela filosófica ou não. Há, aliás, uma ligação estreita entre estes dois aspectos. De facto, a apresentação da filosofia com o estatuto acima referenciado alberga a idéia de uma possível convergência monocórdica no seu seio, assim como nas teorias educativas em si mesmas. Admitimos que não fosse exactamente este o propósito dos autores que assim falaram da filosofia. A expressão usada, contudo, justifica plenamente os nossos receios.

Para sermos precisos, convém relembrar que não há, em sentido estrito, a filosofia; haverá antes filosofias. Do mesmo modo, também não há a teoria geral da educação; há teorias da educação. Umas e outras - implicando-se parcialmente - confrontam-se em permanência não chegando nunca a abarcar a totalidade da problemática educacio­nal. Além disso, reconhecer, no que concerne à filosofia, uma vocação

(5) Como afirma C. Rogers, «qualquer ensaio científico, quer se trate de ciência pura ou aplicada, é realizado com a esperança de atingir um objectivo (ou valor) escolhido subjectivamente pelas pessoas. E importante que essa escolha seja feita explicitamente, pois o valor particular que se procura nunca pode ser avaliado ou demonstrado, confirmado ou negado, pela investigação científica a que deu origem e a que confere significado» (Tornar-se Pessoa, p. 324, s.p.n.). Rogers classifica ainda como um «paradoxo» o facto de «uma escolha pessoal subjectiva, feita pelo homem» desen­cadear «as operações da ciência» «enquanto esta, por sua vez, proclama que não existe nada que se pareça com uma escolha pessoal subjectiva» (idem, p. 322). Na nossa perspectiva, tal «paradoxo» resolver-se-á, na ciência da educação, através da dialéctica filosofia(s)-ciência(s).

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para operar sínteses totalizadoras (globalizadoras?) não legitima um totalitarismo filosófico, em cuja denúncia nos temos exaustivamente empenhado. As sínteses filosóficas são provisórias e destinam-se a ser rebatidas.

Ao construir-se uma teoria educativa, constrói-se, no seu interior, um determinado modelo educativo filosófico que, desta forma, se expõe ao debate e à crítica, condição capital para a evolução dos sistemas e das investigações educacionais.

Para Alain e para Chateau (cf., respectivamente, Propôs surVEdu-cation e La Culture Générale), os modelos, que se encontram nas obras herdadas do passado, contêm a «essência» do humano. A criança, através de um élan que lhe é próprio, reconstrói-os. Segundo L. Not, para estes pedagogos, «a dinâmica não está nem no objecto porque "o que interessa nunca instrui", nem nas necessidades do sujeito, pois todas, mais ou menos, puxam o indivíduo para baixo, nem nas relações do sujeito e do objecto, que fazem com que este seja escolhido pelas qualidades que correspondem às aspirações daquele: não se pode ter aspirações relativamente ao que se ignora. Ela está no desejo de ascen­são, na alegria de fazer sociedade com os modelos e na que ocasionam os processos que se seguem» (Les Pédagogies de Ia Connaissance, p. 46).

Ora, para nós, os modelos educativos são, antes de mais, qualquer coisa que se projecta no futuro e jamais uma simples herança do passado. Em segundo lugar, a responsabilidade quanto à criação dos modelos pertence aos homens e às estruturas do presente ainda que a experiência do passado não seja desprezada. Em terceiro lugar, os modelos educativos não são, em caso algum, modelos fixos, inserindo--se, pelo contrário, num processo que assegura a sua contínua renova­ção. Em quarto lugar, os modelos educativos devem responder às aspi­rações sempre relativas dos sujeitos actuais encontrando precisamente aí um dos motores do seu dinamismo. Em quinto e último lugar, não se esqueça que os modelos educativos são, sobretudo, uma construção teórico-racional.

Como facilmente se depreende, a nossa divergência é profunda. Criticando também modelos como os de Alain e Chateau, Snyders

acrescenta que, com eles, «os modelos se tornam formas de abstenção, de recuo - e não promessas de acção, de inserção eficaz» (Pédagogie

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Progressiste, p. 46). Esta crítica resume o que consideramos como o mais indesejável desvio que pode assaltar os modelos e que é mesmo a própria negação da sua função. Este desvio aparecerá sempre que a formulação dos modelos obedeça, predominantemente, a uma vontade de salvaguardar os valores tradicionais como meio apregoado para corrigir os erros da sociedade em que se vive. Isto, claro, em nome de um reencontro desejado com uma essência humana de que, entretanto, nos afastáramos.

Com efeito, a organização de «modelos» pode corresponder a um desejo de se amarrarem as pessoas e as instituições a um quadro axio-lógico que se quer impor a todo o preço. As pedagogias não-directivas, sobretudo as da «não-directividade negativa», viram o problema (cf. M. Lobrot, «Qu'est-ce que Ia Pédagogie Institutionnelle?», in Anthologie des Pédagogues Français Contemporains, pp. 248-260). Há, de facto, dois obstáculos que se devem opor a um directivismo dos modelos e que são de natureza diferente: um é de ordem científica - não podemos prever com total certeza a evolução de uma sociedade e, dentro dela, das suas exigências, necessidades e aspirações, mormente no domínio da educação; outro, de ordem moral - não temos o direito de querer remeter invariavelmente as pessoas para o mesmo modelo de homem e de sociedade. A própria história, aliás, encarrega-se de desmentir uma tal ambição.

Conforme já o dissemos, aceitamos a idéia de que dos modelos educativos irradiam normas que orientam, segundo determinados valo­res, a investigação e a acção educativas, mas desde que aqueles não se estabeleçam hegemônica e unilateralmente. A reflexão filosófica -com a conflitualidade e o diálogo incessante com os vectores científi­cos que a caracterizam - deve estar na base dos referidos modelos e marcará a distância entre a sua função orientadora, que defendemos, e o seu directivismo, que rejeitamos.

Não é impunemente que se confunde orientação com directivismo dos modelos: as dificuldades encontradas, por exemplo, pelas pedagogias não-directivas, após a fase de combate aos modelos de educação tradi­cionais, decorrem, em larga medida, dos preconceitos oriundos de uma confusão desse teor que levou à criação de um vazio desmobilizante e até colaborante, em vez de alternativas susceptíveis de empolgar, com suficiente segurança, as aspirações à mudança.

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Se o surgimento de modelos educativos se revela, mais cedo ou mais tarde, como necessário, o mesmo não ocorre com o seu directivismo, que é um traço não só acessório como indesejável, resultado de uma deficiente gestação (e desenvolvimento) do próprio modelo provocado por um desrespeito pela dialéctica da sua formação (e do seu funciona­mento).

A dialéctica dos modelos educativos é favorecida especialmente pela filosofia, mas instaura-se em referência a mais dois pólos e que são, como se sabe, o ideológico e o científico.

Cada um deles é, por sua vez, internamente dinâmico, ainda que, muito naturalmente, dentro dos seus limites e objectivos específicos. Há, assim, um movimento que, sendo característico das actividades humanas inovadoras (aqui, as que estão numa correlação íntima com os tecidos sociais, econômicos, culturais e gnoseológicos, nos quais se desenvolvem de uma maneira integrada, mas não pactuante) abrange, naturalmente, os projectos educativos.

O directivismo aparece nos modelos estáticos ou, talvez mais precisamente, nos que se aproximam dos modelos que metodolo-gicamente podemos classificar como tal: de facto, não há modelos estáticos, todos evoluem, todos são históricos. O que, na verdade, se procura, através da ilusão dos modelos atemporais ou absolutos, é a perpetuação de uns tantos valores, a imposição de um travão às mudanças que ameaçam uma determinada ordem, retardando-se, em última instância, as transformações que se anunciam. Mas, na reali­dade, se tudo evolui, os modelos não podem escapar a essa lógica. «A oposição entre uma estática social e uma dinâmica social, freqüen­temente apresentada como fundamental pelos pioneiros da sociolo­gia, foi, de seguida e com toda a justiça, denunciada como artificial e sobretudo perigosa, na medida em que ela tenderia a fazer crer que seria possível existirem sociedades puramente inertes, a sua entrada em movimento sendo por assim dizer aleatória. Ora é bem evidente que o que é próprio de tudo o que é humano é evoluir sem cessar» (J. Cazeneuve, Dix Grandes Notions de Ia Sociologie, p. 135). O que se passa é que, se os modelos não consagram e não reforçam aber­tamente esta situação, apesar do seu desgaste inevitável, eles con­seguem fazer perdurar organizações, visões do mundo e práticas que, entretanto, se revelam como estando desfasadas relativamente

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ao espírito dos desenvolvimentos técnicos, culturais, sociais, e tc , ocorridos (f>).

Quer isto dizer que os modelos podem, ou animar a evolução das sociedades explorando os sentidos últimos da «esperança numa vida melhor», partilhada, em graus diversos e qualitativamente não coinci­dentes, pelos seus membros individuais e colectivos ou, se eles se afastam deste objectivo - perdendo o estatuto de modelos filosóficos - , tornar-se elementos perturbadores da própria evolução. É por isso que negar-se, de uma qualquer maneira, a dialéctica multidimensional dos modelos educativos eqüivale a negar-se a existência da possibilidade de projectos educativos e, com eles, finalmente, da própria educação: com efeito, esta tem de ser sempre cumprida segundo um ideal que mobilize, oriente e estimule as tendências para a mudança, assim como os meios disponíveis ou que se vão criando. Só com o contributo dina-mizador dos modelos educativos filosóficos é que isso pode ser garantido.

Esmiucemos agora um pouco um outro aspecto e que é o que se reporta ao campo restrito da dialéctica das relações entre os modelos filosóficos e os modelos científicos (hesitamos em apelidar estes últi­mos de modelos operacionais).

Se cada projecto educativo tem um só modelo filosófico, haverá, todavia, grandes probabilidades de, no seu seio, coexistirem ou suce­derem-se vários modelos científicos. Mesmo aceitando, formalmente, que um modelo científico é «um sistema de relações entre propriedades

(6) A verdade é que os «modelos educativos» se ressentem ainda, freqüentemente, do peso da herança que, nesse sentido, foi legada pela própria tradição. É desta tradição que nos fala A. Clausse: «Durante os dois milênios que precedem a primeira revolução industrial e o desenvolvimento do capitalismo moderno, à escola, reservada aliás a classes sociais nitidamente minoritárias (de 5% a 10%), fixar-se-a como objectivo a iniciação a "realidades" e a valores considerados como imutáveis e inscritos na própria natureza das coisas. Ela colocará no primeiro plano das suas preocupações a noção de uma verdade que, em todos os domínios, será definitiva porque situada fora das contingências temporais e locais. Ela elaborará programas e porá em acção métodos pedagógicos cuja expressão mais importante e tentacular se afirmará na fórmula do chamado humanismo "clássico". Esta fórmula, que assegura perfeitamente a realização de um ideal de permanência e de intemporalidade, atravessará os séculos e as suas vicis-situdes "acidentais" sem sofrer outras alterações além de adaptações circunstanciais e superficiais» (A Relatividade Educativa - Esboço de uma História e de uma Filosofia da Educação, pp. 36-37).

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seleccionadas, abstractas, conscientemente construído para fins de des­crição, de explicação ou de previsão e que por isso se pode plenamente dominar» (P. Bourdieu, in G. de Landsheere, Dictionnaire de l'Eva-luation et de Ia Recherche en Education), sabemos que ele assumirá tonalidades diversas conforme sirva um procedimento do tipo experi­mental, clínico, comparativo, etc. De facto, a cada uma das vertentes que cientificamente suportam, designadamente, os fins e os alvos e que põem ao seu serviço os respectivos instrumentos técnicos, podem corresponder métodos distintos -eventualmente distintos, aliás, também dentro de cada uma dessas vertentes - que originam confrontos entre os modelos que se vão erguendo. Bastará lembrarmo-nos, por exemplo, do contraste entre as preocupações predominantes na atitude clínica -virada, sobretudo, para a descrição (e para a interpretação) - e na experimental - preferencialmente ao serviço da explicação e da pre­visão. O mesmo ocorrerá se nos debruçarmos sobre o método com­parativo ou ainda sobre o método dialéctico ou sobre a «investigação--acção» (cf. Vários, «Vers une Science Spécifique pour 1'Education», in Psychologie et Education, n.° 2-3, 1981, pp. 128-132).

A multiplicidade dos (sub)métodos que concorrem para a edificação da ciência da educação fomenta a variedade de modelos de cientificidade. Esses métodos, subordinados a preocupações e a pressupostos, à partida, heterogêneos, reforçam a diversidade dos modelos que se destinam à operacionalização dos projectos educativos, sem contudo ameaçarem, por isso, a unidade e a coerência interna de cada um deles.

Por outro lado, a reformulação de um dado modelo científico-ope-racional não destrói, por si só, a globalidade de um projecto, podendo convidar, isso sim, a uma melhor precisão das finalidades desse projecto (e não necessariamente à sua substituição) e a uma revisão das relações que a componente científica, a que o modelo em causa dizia respeito, mantinha com as restantes.

A filosofia não permanece realmente indiferente aos resultados das múltiplas componentes do projecto educativo que se está a construir. Simplesmente, a ela compete-lhe o tratamento da problemática dos valores e, assim, sem o compromisso de a sua reflexão agir enquanto mero efeito das solicitações, das dificuldades ou das demonstrações dos discursos científicos com os quais, apesar disso, intimamente se relaciona.

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Não esqueçamos, todavia, igualmente, que se cada projecto edu­cativo tem um só modelo filosófico, tal não obsta a que haja tantos projectos educativos quantos os modelos filosóficos-educativos existentes, quer sincronicamente quer diacronicamente. Adoptando a premissa que E. Morin propõe para a antropologia contemporânea, diremos que «o princípio da síntese não extingue nunca o princípio do antagonismo. A síntese absoluta seria a morte. Não poderia haver no cosmos uma possibilidade de unidade anuladora dos antagonismos: no plano antropológico, isso significa que não poderia existir uma salvação, um refúgio histórico onde os conflitos essenciais seriam resolvidos. A limitação e a alienação são constitutivas da vida humana. Mas esta mesma dialéctica que nos interdita a salvação introduz-nos à esperança» (Introduction à une Politique de 1'Homme, p. 31).

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CAPITULO VII

NA CONFLUÊNCIA DA EPISTEMOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA,

O DESAFIO DAS PEDAGOGIAS DO PROJECTO

Teoria da educação e projecto educativo são, no nosso entender, duas expressões que veiculam aproximadamente um mesmo conteúdo.

O emprego do termo «teoria» representa a tentativa e a preocupação de trazer para a investigação educacional uma terminologia tipicamente científica. Em Lobrot, a «teoria da educação» substitui a «filosofia da educação» a fim de se marcar o distanciamento relativamente a esta última. Mas a teoria da educação pode corresponder ainda à recusa de outras expressões tais como teoria pedagógica ou doutrina pedagó­gica. Se a primeira destas duas pretende já corrigir os inconvenientes da segunda, não chega, porém, para neutralizar a carga negativa de que, entretanto, enferma para alguns investigadores a própria palavra «pedagogia», pois, para além da identificação directa que corrente­mente se faz entre doutrina e ideologia, há uma outra que passa pela assimilação da pedagogia a filosofia e, por sua vez, desta à ideologia.

O termo «projecto», expandido principalmente pela planificação educativa, torna-se um termo pleno de prestígio na medida em que se implanta a partir dos desejos de eficácia próprios de uma mentalidade tecnocrática que faz o estudo, sobretudo, das questões respeitantes às estruturas organizacionais e administrativas. Para nós, embora não des­prezemos a importância deste estudo, ele afigura-se-nos como insu­ficiente para, por si só, poder dar conta da amplitude do significado da noção de projecto: os «projectos» das planificações educativas perten­cem ao domínio restrito das políticas educativas que, com o auxílio das ciências sociais e humanas em geral, e das ciências da educação em particular (nomeadamente da sociologia da educação), implementam a realização dos fins e, consequentemente, dos alvos educativos. Nestas

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circunstâncias, a exploração de um novo modelo global de homem e de sociedade não é devidamente considerada. As planificações educativas podem responder à necessidade de prossecução prática das teorias da educação mas podem também servir para camuflar os seus limites polí-tico-ideológicos.

Salvaguardadas estas observações críticas, é legitimo afirmar-se que as teorias da educação brotam dos projectos educativos: «Acima do sujeito, para além do objecto imediato, a ciência moderna funda-se sobre o projecto» (G. Bachelard, Le Nouvel Esprit Scientifique, p. 11); uma teoria envolve e é sempre um projecto, um projecto de objecto, um pro­jecto que, «acima do sujeito, para além do objecto», se afirma através de um modelo.

Uma teoria não é o simples resultado das elaborações de um sujeito que dicotomicamente se situe diante de um objecto conhecido ou a conhecer. Uma teoria é, prioritariamente, a própria dialéctica que per­corre o sujeito e o objecto enquanto ultrapassados por um projecto dina­mizado por um modelo histórica e epistemicamente referenciado mas sempre transgressor. Tudo isto faz com que, dentro da ciência da edu­cação, não haja uma teoria da educação única mas antes tantas quantos os projectos em confronto: o objecto da ciência da educação é assim definido não só pela dialéctica de um projecto mas também pelas dia-lécticas dos vários projectos e pela dialéctica dos projectos que lhe dá a unidade complexa e dinâmica.

Estas precisões epistemológicas permitem-nos passar agora, final­mente, para o estabelecimento de uma correlação que se nos afigura como sendo de capital importância e que nos faz mergulhar no domínio antropológico-educativo: o domínio das pedagogias do projecto. Cl. Charmion, por exemplo, fala-nos delas dizendo, a propósito, que «daqui em diante o objecto não se impõe mais, o objecto é o projecto, gerador de um novo objecto no termo do percurso» (Sciences Humaines et Pédagogie, pp. 286-287). Enquanto que na pedagogia tradicional a estrutura do objecto - ocultada por uma «essência» - era imposta pelo professor através do seu discurso, nas modernas pedagogias do projecto - que reagem contra todas as tentativas de imobilização do pensamento - o modelo que outrora se identificava com a pretendida «essência» do objecto é algo que se situa mais no fim do que no princípio. Quer dizer, o modelo constitui-se, não está constituído, como, aliás, nos ensina a

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psicologia genética. Em resumo, as novas pedagogias do projecto afir­mam-se contra o apriorismo (cf. op. cit., pp. 284 e segs.).

Verifica-se, deste modo, uma flagrante convergência entre os pressupostos epistemológicos da ciência da educação e as aspirações destas pedagogias.

Com efeito, o lento mas progressivo declínio das pedagogias dog­máticas acompanha o próprio declínio da metafísica tradicional, o qual, entretanto, se entrelaça com o desenvolvimento da ciência moderna num percurso não isento de intermináveis sinuosidades e contradições. Este fenômeno alastra-se, sobretudo, a partir do século XVIII, aliando--se contemporaneamente à crítica terminal do racionalismo e do huma­nismo clássicos.

No terreno estritamente antropológico, assiste-se, designadamente, ao reconhecimento do tão propalado direito à diferença, isto é, do direito que têm as pessoas como pessoas de seguirem e de construírem - sobre as suas afinidades específicas sócio-bio-psicológicas - caminhos diver­gentes de acordo com os ideais que perfilham. Ao concluir o seu estudo sobre o modelo de Guilford, J. Ferreira Gomes diz expressamente que «se queremos fomentar a criatividade dos alunos temos de superar uma pedagogia exclusivamente convergente, conformista, de "sentido único", e temos de ter a coragem e a lucidez de aceitar e de promover também uma pedagogia da divergência» («A Estrutura da Inteligência e a Cria­tividade - As Investigações de J. P. Guilford», in Dez Estudos Peda­gógicos, p. 40). E assim que as teorias e as práticas educacionais assimilam cada vez mais a noção de projecto enquanto motor das ati­tudes e das relações pedagógicas. De facto, o conceito de projecto -devidamente redimensionado - é o conceito-chave que nos permitirá alcançar a compreensão integral das grandes linhas de força que irrom­pem do mundo contemporâneo: as sociedades sofrem a intervenção generalizada, mas assumida e consciente, de projectos portadores de modelos axiológicos heterodoxos que reivindicam o seu direito a (co)--existir: a vida individual é continuamente - j á o disseram há muito os existencialistas - um projecto de ser, as teorias científicas (e, entre elas, as teorias da educação) são propostas de construção-explicação de objectos-projectos.

Nas concepções essencialistas, a idéia de projecto acaba por não existir, pois aí o «modelo» é sinônimo de «essência», devendo a refle-

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xão e a prática dos homens servir essa essência que, de todo em todo, os transcende. O modelo seria composto, afinal, por princípios e fins impostos, como finalidades (isto enquanto se oculta a natureza ideoló­gica daqueles). Ao mesmo tempo, distorcem-se os traços, passados ou actuais, da actividade humana construtora desses «modelos». Enquanto que os modelos educativos por nós delineados contêm finalidades que representam a insubmissão do homem perante os constrangimentos que o condicionam, os «modelos» rígidos essencialistas recebem do seu fundamento transcendente o direito de planar sobre a história convidando o homem a tornar-se prisioneiro das normas do presente (e do passado).

A noção de projecto, detentora de um duplo sentido epistemoló-gico e antropológico, correlaciona a investigação do objecto-projecto da ciência da educação com as concepções pedagógicas que visam a actividade criadora - individual e social - dos homens como uma acti­vidade de construção de objectos culturais (em sentido amplo) através de projectos. Podemos considerar que, dentro de uma opção essencia-lista ('), se atribui à educação a tarefa de transmitir e fazer descobrir um campo axiológico pré-existente, atemporal e autônomo, desconhecido pelo educando; na lógica desta concepção, a educação contribui para a evolução da cultura, mas marcando o sentido positivo (a príori) desta, enquanto portadora de valores imutáveis, precisamente pelo reforço das ligações que a cultura, como tal, mantém com os conteúdos espirituais de um passado ao qual se acaba por recusar essa dimensão. A educação é, neste caso, o que permite sustentar a Cultura diante das ideologias impregnadas de um caracter transitório e marginal. A educação deverá, então, impedir mesmo o desenvolvimento destas ideologias pela incul-cação dos valores culturais legítimos no pensamento daqueles que se educam (cf. P. Bourdieu, La Distinction - Critique Sociale du Jugement, pp. 94-101).

As pedagogias da existência, por seu turno, não desprezam o papel das ideologias, no que concerne o estabelecimento e a evolução das cul­turas fortemente comprometidas na globalidarde da prática social, reve-lando-se aí a educação como um meio privilegiado para pôr em relação as ideologias (nascentes ou decadentes) com uma cultura em constante

(') Sobre a dicotomia metodológica pedagogias da essência/pedagogias da existência cf. B. Suchodolski, A Pedagogia e as Grandes Correntes Filosóficas.

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transformação. Há, de alguma maneira, uma culturalização das ideolo­gias e uma ideologização das culturas pela interpenetração e incorpora­ção dos elementos de cada uma delas no saber constituído ou a constituir.

Mas se se pode, com relativa facilidade, dar como exemplos da opção essencialista pensadores como Platão, Santo Agostinho, Coménio, etc , e, mais recentemente, as correntes pedagógicas influenciadas pelo personalismo idealista, com as pedagogias da existência as coisas com­plicam-se. É o que se passa com Rousseau, geralmente considerado como o precursor destas pedagogias, mas para quem a educação e a sociabilidade acabam por reenviar a uma «natureza primeira» (2). É o que se passa, de igual modo, com as correntes puerocentristas e não--directivas, prolongamento de um humanismo em que a criança se substitui ao homem adulto e onde se procura, a partir daí, uma expansão do ser da criança naturalmente boa (3).

É verdade que nos movimentos das pedagogias da existência há a afirmação explícita de um novo conjunto de valores contra o quadro axiológico dominante. Contudo, algumas dúvidas surgem aqui: não pode também acontecer o mesmo com as pedagogias da essência? O confronto das pedagogias da existência com os defensores declarados da universalidade e da eternidade dos valores não se deverá apenas, quanto a este aspecto, a circunstâncias conjunturais? As suas propostas, uma vez institucionalizadas, não tenderão rapidamente a adquirir um estatuto normativo substancialista que se oporá a todas as mudanças internamente não previstas?

Historicamente, vimos sucederem-se os princípios oriundos de um nível transcendente, de um nível transcendental (no sentido kantiano) e de um nível social. Invariavelmente, todos pretendem afastar o homem

(2) «Para Rousseau, o homem é a liberdade, e a cultura deve instaurar na sociedade a liberdade civil, equivalente social da liberdade natural do homem. De uma maneira geral, na pedagogia, a educação não muda o homem, ela permite-lhe somente tomar-se o que ele é. A educação é actualização da essência humana» (B. Charlot, La Mystifi-cation Pédagogique, p. 50).

(3) Daí a importância que assumiram os métodos que procuravam não beliscar e, por acréscimo, dar plena expansão à espontaneidade da criança. Mas, como escreveu F. de Bartolomeis, «a escola activa não tem a obrigação de preservar a espontaneidade num estado de pureza. Um tal estado é coisa imaginária como a idade do ouro. A criança vivendo adquire cultura numa forma historicamente determinada» (Introdução à Didáctica da Escola Activa, p. 62).

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dos perigos da alienação, quer dizer, afinal, do seu afastamento em rela­ção à sua verdadeira essência, sucessivamente, de origem divina, huma­na, mas apriorística, e sócio-estrutural: o Homem substituiu Deus e a Sociedade substituiu o Homem. Por outras palavras, procurou-se sempre um fundamento exterior para assegurar a validade dos valores. As dou­trinas pedagógicas, essas, configuram-se como um reflexo desta situação, condenando a educação a ser um instrumento ao serviço da reprodução e da perpetuação dos valores historicamente em mutação mas, em cada época, apresentados e impostos como sendo os únicos. Sem educação, não teria havido mesmo a possibilidade de se afirmar a eternidade dos valores, porque, no máximo, eles desabariam em cada geração...

Impõe-se, face aos impasses encontrados, a utilização de uma nova grelha interpretativa. Passaremos, por isso, a falar de hetero-estruturação, de auto-estruturação e de interestruturação (4). Paralelamente, proce­deremos a uma análise detalhada dos conceitos de cultura, de ideolo­gia e, uma vez mais, do de educação, referindo-os sempre à problemá­tica dos valores. As noções de instituição e de sistema, de produto e de processo serão também nossos instrumentos epistemológicos.

De facto, a educação pode ser vista como um sistema de instituições e como o produto das acções levadas a cabo pelo sistema, remetendo estas noções para uma terceira: a de processo.

Como sistema, ela é o conjunto complexo de regras e de organismos que organizam as actividades dos indivíduos implicados, de uma maneira ou de outra, no fenômeno educativo através das escolas, mas também através das associações culturais ou religiosas, da família e da sociedade em geral (tendo aqui um papel destacado os mass media). Chegamos assim a uma noção alargada da noção de sistema educativo.

Situando-nos no domínio da educação-produto, definida como o conjunto dos resultados da acção do sistema educativo, constata-se que este é avaliado - e, mesmo, julgado - em função desses resultados, gerais ou pessoalmente particularizados. Os primeiros interessarão sobretudo às instâncias governamentais ou a outras de representação colectiva, os segundos, principalmente a cada um dos membros da sociedade envolvidos.

(4) Cf. L. Not, Les Pédagogíes de Ia Connaissance. Aplicaremos aqui esta rede conceptual a um contexto bem mais vasto do que aquele em que é usada na obra citada.

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O processo educativo está presente, quer na sua dimensão psi­cológica quer nos seus aspectos sociológicos, históricos e filosóficos, nos campos contemplados pela divisão metodológica atrás estabelecida. Este processo desenrola-se no espaço e no tempo, segundo determinan­tes de natureza événementielle, conjuntural e estrutural (no sentido que Braudel lhes atribui), que não podem fazer esquecer os projectos que, sem serem independentes destas determinantes, possuem, contudo, uma identidade e um certo grau de autonomia. O processo educativo acaba por ser o desenrolar objectivo de um projecto que se institucionaliza, política e socialmente, mas onde este se não dilui e se transforma. Os produtos exprimem os efeitos de um sistema que evolui num processo. O desenvolvimento de um processo educativo insere-se, assim, num outro mais vasto que é o processo cultural e ideológico. Reencontramos, precisamente aqui, a problemática dos valores.

A cultura é, com efeito, um sistema de idéias e de correntes artís­ticas, filosóficas e científicas de uma sociedade e de uma época; ela é, também, o conjunto dos conhecimentos empíricos de cada um dos diferentes grupos humanos. As obras, os usos e os costumes, que cons­tituem o patrimônio cultural destes grupos, são os produtos de uma cultura. E os indivíduos propriamente ditos? Eles são produtos e pro­dutores de uma dada cultura: produtos enquanto objectos oriundos de uma aculturação - no sentido lato da palavra; produtores enquanto sujeitos particulares com uma personalidade que se exprime e se realiza na originalidade de uma pessoa: para além da sua abertura ao outro, pela qual a pessoa participa nas estruturas e nas representações comuns ao grupo, esta tem a sua unicidade marcada por um «eu» distinto do dos outros; a pessoa encontra a sua unidade pela síntese que se opera entre as duas vertentes referidas (sobre a noção de «pessoa», cf. L. Not, A. Carvalho, N. Galou, A. Hiphaine, J.-P. Lafront, «Propôs d'Etape sur 1'Etude des Indicateurs de Personnalisation», in Psychologie et Edu-cation, n.°3, 1983).

O que acabámos de dizer permite-nos concluir que a acção cul­tural tem, pelo menos, dois sentidos: o sentido da «assimilação» e o sentido da «acomodação» que em cadeia darão lugar - e continuamos a utilizar a terminologia piagetiana - à «adaptação activa». Compreen­demos assim melhor a dinâmica dos processos culturais que contém, no seu desenvolvimento objectivo (desenvolvimento este que obedece a

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um trajecto plurilinear de estruturação-desestruturação-reestruturação), uma interestruturação que vai dos sujeitos individuais ao tecido sócio--económico-ideológico-cultural e vice-versa.

O processo cumpre-se, então, entre as determinantes objectivas e a normatividade construída, transmitida, mas sempre reconstruída (e desconstruída) pelas sociedades circunscritas no espaço e no tempo his­tórico e onde cada indivíduo é um agente. Nas situações de equilíbrio (relativo) de uma sociedade, o seu projecto cultural é o que se apresenta como o único e que visa, porventura, a reestruturação do sistema sem o ameaçar; nas situações de crise de identidade de uma sociedade, quando as desestruturações se impõem, nem na aparência existe um só projecto: coexistem claramente projectos conflituais - com um nível de intervenção idêntico - que buscam a sua implantação. Um destes projectos acabará por dominar os outros e o próprio sistema que, entre­tanto, prevalecia. Surge, deste modo, um novo quadro de referências e um novo sistema (de valores). Há, pois, que considerar, nos processos culturais, a emergência de rupturas, tanto de projectos como de sistemas, o que não quer dizer que não haja certas linhas de continuidade sob as descontinuidades e que asseguram, afinal, os pontos de oposição, por exemplo, de um paradigma relativamente a outro.

A este propósito, lembraremos que ao longo dos últimos séculos se sucederam sistemas culturais que se poderão apelidar de teocêntricos, humanistas, realistas e de pensamento operacional, aos quais corres­pondem, respectivamente, os conceitos de verdade revelada, racional, descoberta e construída (5). Cada um destes sistemas culturais teve o seu sistema educativo: o teocêntrico, um sistema educativo baseado na eloqüência e na autoridade do mestre, intermediário privilegiado entre a verdade revelada transmitida pelos textos sagrados e o aluno ignorante; o humanista, um sistema no qual se pressupõe o respeito por princípios racionais à medida do próprio homem, substituindo-se a autoridade teo­lógica pela razão profana; o realista, um sistema educativo que estimula

(5) Sobre este tema, cf. Cl. Charmion, op. cit., pp. 201-208. G. Lerbet, num inte­ressante artigo intitulado «L'Archéo-Pédagogie - Essai d'Analyse Structuraliste de Ia Genèse du Concept Pédagogique», in Revue Française de Pédagogie, n.° 52, aborda também a evolução dos sistemas e dos modelos educativos, desde os inícios da Idade Média até Montesquieu e Rousseau.

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o aluno a descobrir as leis da natureza, não por «pura» dedução mental, mas por indução feita a partir da observação; finalmente, encontram-se no esquema do pensamento operacional, cujo esboço nos é contem­porâneo, estruturas da acção pedagógica que sobrevalorizam os objec-tivos de expansão da criatividade e de desenvolvimento do espírito crítico e das aptidões para aprender, mais do que a acumulação de dados e de informações. Aqui, põe-se a tônica na relação sujeito--objecto e na actividade construtora do aluno.

Estes sistemas educativos, que vieram à luz do dia em períodos históricos afastados uns dos outros, foram sendo sucessivamente ultra­passados através de confrontos que, todavia, nunca proporcionaram o completo esmigalhamento dos sistemas (e dos projectos) derrotados. Repare-se até que, de alguma maneira, todos eles sobrevivem, na nossa época, com graus de importância diferentes, e, evidentemente, mais ou menos adaptados, de acordo, aliás, com as exigências do sistema dominante. Diga-se, de passagem, que o último que acima enumerámos é ainda e sobretudo um projecto.

Por outro lado, vê-se que, para além das rupturas parciais - Deus/ Homem/Natureza - que distinguem os três primeiros sistemas referidos, eles partilham entre si o postulado da submissão do homem perante uma Verdade fixa e essencial. O autoritarismo encontra aí a sua justifi­cação, pois o professor subsiste como o possuidor dessa Verdade. Desta forma, apesar de os métodos educativos poderem admitir o debate ou a actividade de pesquisa do aluno, este não pode, em última instância, contestar os conhecimentos e as verdades admitidas e, por conseqüência, os valores e as normas que lhes estão subjacentes. A idéia de que a educação existe para apenas fazer aceder os indivíduos à cultura implica que estes a possam enriquecer, nunca negá-la.

Fica por apurar em que medida precisa é que a progressiva insti­tucionalização dos projectos (bem como a sua prévia e, apesar de tudo, inevitável dependência relativamente às instituições) é responsável pelas margens de continuidade destes mesmos projectos. É também impor­tante não esquecer que a retrospectiva histórica - que é a perspectiva em que apoiamos agora as nossas considerações - favorece o estabe­lecimento de continuismos. Mas não se utilizem jamais estas reservas para pôr em causa a necessidade de um projecto educativo ser um projecto de ruptura, pois, ao fazê-lo, estaríamos a confundir planos que

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são distintos: estaríamos a passar precipitadamente da sociologia e da epistemologia da história para a filosofia e para a epistemologia da investigação educacional. Seria, contudo, interessante saber, isso sim, em que medida é que os sistemas a que nos temos estado a reportar foram realmente fruto, dentro de cada uma das suas épocas, de projectos educativos no sentido que nós próprios atribuímos a estes últimos. É um convite que dirigimos aos historiadores da educação...

Não será, porém, prematuro dizer-se, em face dos elementos dispo­níveis, que a educação, enquanto sistema institucionalizado, tem sido vista prioritariamente como meio e garante da perpetuação dos valores culturais: tenta-se impô-los pela sua interiorização e pela sua tradução em comportamentos ajustados, tornando-se aquela um instrumento ao serviço da reprodução de quadros culturais tidos como fundamen­tais (6). Neste contexto, dependendo fortemente os sistemas educativos das instâncias culturais organizadas pelo poder político, são incentivadas as práticas hetero-estruturantes como meio de evitar, por parte desses sistemas, qualquer acção socialmente desestruturante. O sistema edu­cativo acaba por existir para que os indivíduos não consumam desvios (incontrolados) relativamente à única cultura tida como válida. Os pro­dutos da educação serão, simultaneamente, produtos da cultura legítima.

O que se passa, então, com as correntes pedagógicas defensoras da criatividade e do espírito crítico? Poderemos nós dizer, sem mais, que, com elas, a educação altera o seu papel em relação à dimensão político--cultural?

(6) «Reprodução e renovação: a educação pode exercer igualmente bem tanto uma como outra destas funções.

Ela é freqüentemente acusada de imobilismo. Não é seguramente a única instituição sobre a qual se lança este gênero de critica. De facto, uma das suas funções essenciais é uma função de repetição: repetir para cada geração o saber que a geração precedente tinha por sua vez recebido dos seus antepassados. E portanto de acordo com a ordem das coisas que uma das tarefas dos sistemas educativos seja (ou pelo menos tenha sido até aqui) a de transmitir os valores do passado; assim eles são naturalmente levados a constituir-se como sistema fechado no tempo e no espaço, preocupados com a sua própria existência e o seu próprio êxito; assim o seu pendor natural fá-los resvalar para a introspecçâo. Nestas circunstâncias, a educação concorre objectivamente para consolidar as estruturas existentes, para formar indivíduos aptos para viver na sociedade tal qual ela existe. Sob este angulo, e sem dar a este termo um sentido pejorativo, a educação é por natureza conservadora» (E. Faure e outros, Apprende à Etre, p. 66).

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Consideremos, desde já, alguns aspectos.

- A axiomática, a discursividade e o primado das relações estru­turais sobre o substancialismo dos princípios constituem os pontos por onde passa a linha de demarcação entre a «razão arquitectónica» e a «razão polêmica».

- A educação não pode mais ser reduzida à acção escolar, isto apesar do alargamento da escolarização; a «escola paralela» ou «não-formal» é hoje o meio mais poderoso de divulgação de informações e de modelação dos gostos e dos hábitos.

- Não se pode, por fim, esquecer a importância da teorização sobre as origens, o modo de funcionamento e a função das ideologias. As ideologias são, de facto, uma das mais emba-raçantes descobertas epistemológicas, um fantasma sempre presente. Por vezes, são ignoradas ou arbitrariamente limita­das, criando-se a ilusão de que alguém ou algum discurso se pode libertar da sua intervenção. Opõe-se, então, às crenças e aos pré-juízos, uma racionalidade triunfante principalmente, na sua versão científica, ao mesmo tempo que essas crenças e esses pré-juízos são associados ao senso-comum, onde se misturaria um realismo ingênuo e uma apropriação empobre­cida das grandes conquistas da razão humana. Porém, as ideo­logias estão sempre no princípio e no fim. Mas se é impossível escaparmos à sua influência - enquanto entraves à livre expan­são do homem e da sua criatividade, elas são obstáculos antro­pológicos e epistemológicos - , é possível raciocinarmos com elas, sobre elas e contra elas.

A cultura, relativamente à ideologia que a penetra, corre o risco de se reduzir a um simples produto desta e a um meio ao seu serviço. Assim, a educação, mais do que um veículo de transmissão de cultura, seria a grande propagadora da ideologia encoberta por uma cultura. «A pedagogia põe incessantemente em evidência a educação como pro­cesso cultural e oculta assim a significação social e política da educação. De facto, a educação não tem somente conseqüências políticas. Ela é determinada social e politicamente. Não são simplesmente os resultados da educação que são políticos, é também o próprio processo educativo. Se a educação tem conseqüências políticas, é mesmo, precisamente,

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porque ela é determinada politicamente. Ocultando a significação polí­tica interna da educação, a pedagogia não é vítima de um erro, de um esquecimento ou de uma negligência; de facto, ela funciona como uma ideologia. A pedagogia encobre ideologicamente a realidade econô­mica, social e política por detrás de considerações culturais, espirituais, morais, etc.» (B. Charlot, op. cit., p. 24).

Em resumo, a «cultura» segregada por uma ideologia serviria para camuflar esta; a educação revelar-se-ia como uma instância meramente ideológica. Este compromisso estreito entre a educação e a ideologia não representa a negação da própria educação?

Para responder a esta interrogação, teremos de trazer à superfície novos elementos.

Assim, importa lembrar que o círculo ideológico não se fecha nunca, pois não há, em circunstância alguma, apenas uma ideologia, há sempre ideologias que se confrontam. A conflitualidade ideológica é até um dos factores que nos permite o reconhecimento da emergência do fenômeno ideológico.

Entretanto, a individualidade da pessoa humana é, ela mesma, uma manifestação da sua irreverência diante da coacção niveladora das ideologias. O homem enquanto pessoa, melhor, enquanto sede de um processo de personalização, desafia o seu estrangulamento como produto de um sistema ideológico.

A cultura, por seu turno, não se opõe simplesmente à ideologia, inclusive porque, numa primeira aproximação, ambas fornecem os quadros de referência, os padrões, de um sistema global de explicação e de interpretação do mundo. Esta constatação não invalida, todavia, que se denuncie a existência de expansões ideológicas da cultura, nomeadamente quando se pretende impor os valores desta para além do espaço e do tempo que justificaram o seu aparecimento. A interferência ideológica na cultura tem também lugar quando um determinado projecto cultural se toma prematuramente um sistema, empobrecendo-se e sub-vertendo-se deliberadamente aquele, e dominando, então, as estruturas sociais e econômicas historicamente em declínio sobre as aspirações à mudança que haviam dado corpo ao projecto em causa.

Há, por vezes, um atraso, outras vezes um avanço, das rupturas ideológicas em relação às rupturas culturais, o sistema ideológico não coincidindo nunca totalmente com o sistema cultural. Mas as ideologias

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tendem, invariavelmente, a preencher as lacunas dos sistemas cultu­rais, sobretudo em épocas em que há uma crise resultante da incapaci­dade destes para organizarem as condutas dos indivíduos e dos grupos humanos e para darem respostas aos seus anseios.

O (sub)sistema educativo repercute, dentro de certa medida e enquanto tal, os sistemas cultural e ideológico e tende a ideologizar-se mais rapidamente do que aquele. Isto, principalmente, porque ele tem tido a função primordial, como já vimos, de fazer interiorizar os valores de uma sociedade que, todavia, os cria, pelo menos contemporanea-mente, a um ritmo superior ao da sua transmissão efectiva. Porém, a educação, se implementada por modelos pedagógico-filosóficos (que não escamoteiam nem só a dimensão ideológica como também a cul­tural), contrariará esta tendência.

O que a nossa época nos trouxe de novo foram, sobretudo, os conceitos epistemológicos que nos permitem estudar e relacionar os processos de evolução e de transformação das ideologias, das culturas e da educação ao mesmo tempo que, através da razão operacional, se desenvolve e se elucida a dialéctica da interestruturação: interestruturação do conhecimento, do psiquismo e das práticas individuais, das estruturas de uma sociedade e das relações entre estes dois planos.

Por outro lado, a projecção cada vez mais importante da educa­ção para além dos limites da família e de uma escola fechada à socie­dade global, que chegou a ser tida como exterior - inclusive, mesmo quando se tentou recriar esta no território restrito da escola - , difi­culta, apesar dos novos factores que põe em jogo a sua situação ten-tacular, a manipulação directa do sistema educativo que transborda as fronteiras das instituições tradicionais e bem demarcadas. A edu­cação é atirada, deste modo, para o contexto das convulsões sociais, culturais e ideológicas, não lhes podendo, por isso, permanecer indi­ferente. Se, entretanto, aumentaram em quantidade e em qualidade os instrumentos de controlo, cresceu também, por causa do referido entro-samento, a consciência sobre o estatuto potencialmente emancipador da educação (7).

(7) Sobre este «estatuto emancipador da educação», em íntima conexão com o reconhecimento do fenômeno da conflitualidade, nas dimensões sociológica, psicanalitica e psicológica, cf. G. Mendel, Pour Décoloniser l'Enfant, pp. 133-198.

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Paralelamente, as ciências humanas mostraram-nos que as ruptu­ras e as continuidades dos processos sociais se realizam através de auto--estruturações internas às pessoas, à educação, às culturas e às ideolo­gias, as quais se inserem numa rede múltipla de interestruturações. Estão assim esboçadas as condições para que se combatam os redu-cionismos hetero-estruturantes, seja qual for o núcleo dominante que se privilegie.

Os projectos pedagógicos da verdade construída (ou, talvez melhor, em construção) contemplam e exprimem, em si mesmos, esta nova situação, pelo que estão optimamente colocados para desafiarem o pressuposto de que a educação serve apenas para reproduzir e perpetuar valores. Com eles a educação procura promover (o que não quer dizer que, em perfeita conformidade, o consiga) o próprio desafio da mudança.

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CAPITULO VIII

FORMAÇÃO DE PROFESSORES: UM EXEMPLO DAS LIMITAÇÕES

DO CIENTISMO

Na introdução ao seu livro A Formação dos Professores, G. Mialaret realça que a formação pedagógica é, hoje em dia, uma «for­mação incompleta consagrada quase sempre à aquisição de técnicas práticas de utilização imediata em vez de se dedicar a um conjunto de reflexões e informações que possam constituir fundamentos sólidos para uma acção educativa». Por seu turno, Morrison e Mclntyre defi­niram, já em 1969, o que se deveria entender por técnica ou aptidão pedagógica, escrevendo textualmente que, dentro de tais designações, cabe «todo o modo de comportamento pedagógico que se revela eficaz na prossecução de certos objectivos e de que um professor se serve com freqüência suficiente para que se possa considerá-lo como res­posta automática às situações para as quais o mesmo convém» (Pro-fession: Enseignant, p. 94). Acrescentam ainda que o fracasso da for­mação de professores reside menos na falta de teorias pertinentes do que na falta de treino para a aplicação destas teorias em situação escolar concreta (idem, p. 89).

Opta-se, nestas circunstâncias, por uma concertação entre a utili­zação do micro-ensino e a intervenção em turmas normais, passando--se gradualmente de uma situação à outra. O objectivo dominante é claro: trata-se de dar aos professores a capacidade de elaboração, con­trolo e revisão de planos de comportamentos, levando-os a «concep-tualizar a sua própria pedagogia sob a forma de regras de decisão às quais ele recorre» (idem, p. 106). Desenvolve-se, pois, a perspectiva de que a actuação educativa deve ser implementada segundo um modelo de estratégias bem definidas e verificadas, assentes numa ciência do comportamento que valida a instauração, progressivamente hege-

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mónica, de uma tecnologia da educação. Esta tecnologia oferecerá, portanto, estratégias específicas, logicamente organizadas e experi­mentalmente validadas que, condicionando do exterior os comporta­mentos individuais em função de objectivos pré-estabelecidos, garan­tirão pragmaticamente o êxito das intervenções educativas.

Parte-se do princípio de que tanto os comportamentos tidos como inadequados como os considerados convenientes se formam dentro de idênticos mecanismos de condicionamento: o que importa é encontrar e pôr em prática as regras apropriadas que conduzam ao reforço dos segundos e à eliminação dos primeiros.

Jerome Bruner (cf. Ch. Galloway, Psychology for Learning and Teaching, pp. 386-424) adianta coerentemente, a este propósito, que se torna inadiável juntar às teorias da aprendizagem - essencialmente descritivas - uma teoria da instrução que seja prescritiva. Esta teoria contemplará aspectos primordiais como a motivação, a estrutura do conhecimento, a seqüência de apresentação dos materiais a serem uti­lizados e o inevitáve] feedback (positivo ou negativo). Estipulará, pois, em consonância, as experiências que, de um modo efectivo, provocam nos indivíduos a predisposição para aprender, a maneira como deve ser estruturado um determinado campo do conhecimento de forma a que ele possa ser, o mais rapidamente possível, apreendido pelos alunos, as já referidas seqüências de apresentação do material escolhido e a natu­reza dos reforços e punições a serem usados no processo de aprendi­zagem e de ensino.

É bem evidente que, por detrás desta tecnologia da educação, estão presentes todos os principais pressupostos das psicologias do comportamento assim como do modelo metodológico skinneriano delas directamente derivado. Com efeito, para Skinner, o comporta­mento de aprendizagem deve ser estruturado gradativamente através de um reforço diferencial que conduza o aluno desde os actos mais simples até aos comportamentos complexos. Significa isto que a selec-ção dos actos eficazes é determinada por uma satisfação (ou não satis­fação) ligada a cada um desses actos e introduzida por dispositivos integralmente exteriores ao aluno. Logo, como assinala criticamente Louis Not, «a aprendizagem não poderia ser mais do que uma cons­trução sintética organizada pelo pedagogo de acordo com a estrutura do comportamento que ele projecta que o aluno adquira» (Les Péda-

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gogies de Ia Connaissance, p. 58). Há, de facto, uma actividade por parte do aluno, actividade essa que é individualizada. Ele não é, con­tudo, o sujeito real da acção: sendo a escolha dos actos eficazes, e a conseqüente progressão na aprendizagem, exclusivamente, como já dissemos, determinada por critérios exteriores aos actos em si, não é mais o significado destes para o aluno que, por si mesmo e, portanto, de forma consciente, o fazem agir. O aluno é o sujeito aparente. No terreno circunscrito das situações educativas o sujeito real é, sem qualquer dúvida, o professor.

Claro que Skinner apresenta justificações importantes para as suas propostas. Na obra Beyond Freedom and Dignity, afirma nomeada­mente:

«A luta do homem pela liberdade não decorre de um projecto de um desejo de ser livre, mas de determinados processos comporta-mentais característicos do organismo humano, cujo principal efeito é a subtracção ou a fuga às particularidades adversas do ambiente. As tecnologias física e biológica têm-se ocupado principalmente de estí­mulos adversos naturais; a luta pela liberdade visa os estímulos inten­cionais criados por outros indivíduos e propõe meios de lhes fugir ou de enfraquecer o seu poder. Ainda que tenha conseguido reduzir os estímulos adversos utilizados no controlo intencional, a literatura da liberdade cometeu o erro de definir a liberdade em termos de estado de alma ou sentimento, pelo que se tem revelado impotente para obstar eficazmente às técnicas de controlo que não incitam à fuga ou à revolta, mas que continuam a ter conseqüências adversas. Tem sido forçada a estigmatizar todo o controlo como condenável e a deformar muitas das vantagens a desfrutar de um ambiente social. Não se encontra preparada para o passo seguinte, o qual não consistirá em libertar o homem de todo o controlo, mas antes em analisar e modificar os tipos de controlo a que se encontra exposto» (trad. port., p. 62).

Nesta passagem encontra-se implícita uma crítica ao humanismo, ao paradigma da natureza humana, à doutrina do livre-arbítrio, ao tema mil vezes glosado da autonomia do homem. Trata-se, antes de mais, de uma concepção antropológica que, estribada nos dados que con-temporaneamente fornecem as ciências físicas e sociais, pretende pôr a descoberto o caracter especulativo das teorias filosóficas que reivin­dicam, para o homem, o universo da liberdade e de uma consciência

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insular, fundamentos de uma moral da responsabilidade e do indivi­dualismo.

A liberdade do homem passaria a ter de ser encontrada não a partir da negação, da recusa ou da ultrapassagem dos condicionamentos, mas antes da tomada de consciência racional e científica das condições ambientais determinantes, do que dependeria o conseqüente esforço no sentido de as modificar em proveito do próprio homem, isto é, para melhor. Só a complexidade do homem - designadamente do seu sis­tema nervoso e da sua cultura que, apesar de por ele construída, o envolve e condiciona - o distinguiria dos outros animais. A tônica é posta assim muito mais naquilo que une todos os seres vivos do que naquilo que eventualmente os possa diferenciar entre si. Por conter a idéia da extensão da análise experimental do comportamento dos animais ao homem a óptica behaviorista não deixa de valorizar, rela­tivamente a este, a expressão célebre de Pavlov «tão semelhante a um cão», em detrimento da igualmente célebre e solene proclamaçâo de Hamlet: «Tão semelhante a um deus!».

Há que anular, enfim, tudo o que provenha do mito, da metáfora, da utopia, e dar lugar a tudo quanto resulte da emergência do conhe­cimento positivo, o qual progressivamente irradicará a ignorância e, com ela, os seus equívocos e os seus fantasmas. Um tal conhecimento não se limitará, contudo, a satisfazer uma mera curiosidade intelectual. Ele será antes o suporte teórico de uma prática que passará pela manipulação, tornada legítima, das condicionantes do comportamento humano. O homem poderá agora fazê-la em seu próprio proveito e de um modo eficaz, ou melhor, mais eficaz já que, segundo Skinner, a manipulação dos comportamentos foi uma constante na história da humanidade, apesar de inconsciente ou demagogicamente encoberta pelas citadas ideologias da liberdade e da dignidade.

Pelo exposto ficou claro que há, da parte dos autores de inspi­ração behaviorista, uma preocupação nítida em fundamentar, inclusive em nome dos valores que tradicionalmente se consideram como apa­nágio da condição humana, os procedimentos pedagógicos que, em coerência com os princípios, propõem. Para eles, o desrespeito pelo homem teria a sua origem, afinal, nas doutrinas humanistas. Estas, defendendo sem mais as teses da autonomia humana, estariam a ocultar e, em contradição, a facilitar manipulações do comportamento

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que, escapando dessa maneira a todo e qualquer controlo científico, punham em cheque, em última instância, a tão propalada dignidade do homem.

Mas centremo-nos de novo no terreno propriamente dito da peda­gogia e associemos, tal como nos sugere Charles Galloway (cf. op. cit., pp. 259-261), as teorias da motivação de Skinner, que apelam para uma organização das condições do reforço no quadro de estratégias de ins­trução que assegurem conseqüências gratificantes, com as sugestões de Maslow, o qual, no âmbito do reconhecimento da existência de uma hierarquia de necessidades em cada um de nós, defende que se têm de satisfazer gradativamente os sucessivos patamares dessas necessida­des, desde as de ordem física até às de ordem intelectual.

Aceita-se, segundo o seu ponto de vista, que, apesar de haver uma diferença quanto às respostas e aos estímulos que se desencadeiam no plano estritamente fisiológico, os quais se reportam a estados como a fome ou o frio, e os que se desenvolvem quando estamos, por exemplo, diante de um processo de aquisição de conhecimentos, os princípios globais de actuação se mantêm inalteráveis em tudo o que diz respeito aos seus fundamentos.

Como é evidente não pomos minimamente em causa a idéia de que não é indiferente um aluno estar ou não com fome quando se trata de aprender matemática. Mas para dizer apenas isso nem valeria a pena escrever um livro! Porém a questão é mais profunda e do que duvida­mos é que, tal como insinua Maslow, as situações que se criam quando se trata de responder a necessidades primárias sejam, no fundo, da mesma natureza das que surgem no domínio da vida intelectual e que, portanto, as estratégias a utilizar possam ser sensivelmente as mesmas.

O percurso não é, de facto, linear e é muito pouco seguro que as experiências adquiridas aquando da satisfação de um nível inferior de necessidades - isto para utilizar a própria terminologia de Maslow -possam servir, enquanto experiências de reforço, para níveis supe­riores. É bem verdade que Maslow sugere este percurso sobretudo pela negativa, ou seja, dizendo que se não estiverem satisfeitos os estímulos relativos aos níveis de necessidades mais baixos, as experiências de reforço dos níveis mais elevados dificilmente têm lugar. É igualmente verdade, contudo, que o faz para, a partir dessa constatação mais ou

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menos incontroversa, extrapolar para posições em que, pela positiva, acaba por admitir a similitude dos mecanismos estímulo-resposta (e resposta-estímulo) em todos os estádios do comportamento humano.

Tal como em Skinner e, de uma forma geral, nas principais formu­lações que a convencionada designação de ensirao programado cobre. O aluno age mas enquanto sujeito individual que dá respostas e que nunca intervém na programação nem dos objectivos nem das seqüên­cias que lhe são apresentadas. Considera-se que as necessidades de conhecimento ocorrem com a mesma premência, univocidade e inevi-tabilidade das biológicas e ignora-se o significado que cada acto de pendor gnoseológico tem para cada indivíduo que o executa. A signifi­cação do acto de conhecimento para o aluno decorreria apenas dos seus efeitos e sempre de recompensas que lhe são atribuídas pelo professor. O valor positivo do erro, que Bachelard tão bem enalteceu e justificou no interior dos próprios procedimentos científicos, é assim paradoxal­mente preterido e marginalizado.

Estamos realmente na presença de uma doutrina psicopedagógica perigosamente reducionista que, socorrendo-se de métodos coactivos, visa em bloco a transmissão de noções e a aquisição, pelos processos mais eficazes, de comportamentos terminais arbitrariamente tidos como socialmente importantes. Por muito que nos custe admiti-lo, sabemos, desde os trabalhos pioneiros de Thomas Kuhn e de Lakatos, que os paradigmas de cientificidade que servem de referenciais às problemáticas e aos discursos das ciências, sejam elas quais forem, não são imunes a uma filiação social e ideológica. Desconfiemos, pois, da objectividade dos objectivos e dos comportamentos cientificamente apresentados como sendo socialmente úteis...

Mas como é afinal encarada a formação e o estatuto dos professo­res no contexto pedagógico até aqui esboçado? As saídas não parecem ser muitas. Vimos que as pedagogias referidas reconhecem explicita­mente o papel condicionante do meio exterior e, por isso, a neces­sidade urgente de se identificarem as determinantes objectivas do com­portamento a serem utilizadas da melhor forma. Rompendo com as ilusões da autonomia individual e de culto vesgo da intencionalidade subjectiva - o que, por si, nos parece ser um aspecto francamente positivo - a pedagogia visa declaradamente, a partir de então, os pro­cessos sociais e culturais. Em proveito de quem? Pretensamente dos

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alunos. Com certeza dos «pedagogos». Não necessariamente dos pro­fessores. Com efeito, os teorizadores das tecnologias da educação, aos quais chamamos indevidamente, mas por comodidade, pedagogos (não há realmente pedagogias sem projectos claros...), utilizando-se unilate­ral e ideologicamente das informações que são carreadas pelas ciências sociais e humanas, traçam os objectivos operacionais, isto é, compor-tamentais, que as necessidades sociais exigirão. O pedagogo desempe­nha, desta maneira, um papel político fundamental. O professor, esse, que não coincidirá obrigatoriamente com aquele, terá como missão assegurar o êxito do programa de acção de que é encarregado. Por outro lado, sendo a sua formação também uma aprendizagem, logo é inevitável que os métodos a serem usados para esse efeito se apro­ximem dos que são implementados com todo e qualquer aluno. E, com eles, todos os inconvenientes já assinalados.

Não queremos, todavia, deixar de destacar a preocupante subal-ternização da reflexão sobre as finalidades dos modelos educati­vos, asfixiada sob o peso de uma advogada preponderância da prática educativa e da sua operacionalização. Tudo isto sempre a coberto de um caucionamento cientificista, reducionista e demagógico, que, em nome do postulado da objectividade, impõe regras e metas para a formação cujos fundamentos, cada vez mais radicados na comuni­dade dos investigadores, escapam à competência e, por isso, à possibi­lidade de controlo dos professores. A estes são sedutoramente propos­tos modos de actuação - onde cabe um reduzido leque de alternativas - previamente validados, a par de rudimentos de sociologia e de psico­logia da educação que mais não servem do que de justificação e enqua­dramento.

Em nome da eficácia e do pragmatismo tornam-se técnicos de educação e até somente agentes práticos de ensino que ignoram as razões profundas do seu fazer, os motivos decisivos dos seus actos. Reagirão mesmo contra quem quiser alterar este estado de coisas...

Como foi possível chegar a esta situação crítica? Olhando para a história recente do pensamento pedagógico, im­

porta reter alguns passos importantes e algumas linhas de força domi­nantes. Entre estas, destaquemos o realismo conceptual do pensamento especulativo e a inteligência prática do empirismo que evoluirão e se especificarão segundo as formas próprias quer de um empirismo sub-

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jectivo quer de um empirismo objectivo (cf. A. Fabre, L'Ecole Active Expérimentale, pp. 37-75).

O realismo conceptual exprime uma visão do mundo de cariz metafísico traçada dentro de um sistema lógico especulativo, a qual, em função de uma representação do homem que se crê ser natural e, portanto, em correspondência com a própria realidade, fundamenta todo um saber-fazer construído por uma experiência intuitiva que, não sendo controlada, goza contudo de uma evidência que o bom senso cartesiano ratifica. O empirismo objectivo, que mergulha as suas raízes no renascimento, é despertado por motivações de ordem social e política, directamente relacionadas com as convulsões que atingem as sociedades ocidentais no período histórico que antecede e intercala as duas guerras mundiais e apresenta-se, à partida, como uma divergência relativamente ao empirismo subjectivo tradicional.

Com efeito, ele vai fazer estremecer - nomeadamente através da chamada Escola Nova - a solidez das normas pedagógicas anteriores e das técnicas que as implementavam, socorrendo-se mesmo, para isso, das primeiras contribuições das jovens ciências humanas. Ao ser pro­posto um liberalismo pedagógico, o professor passa a ter de abrir mão, pelo menos aparentemente, do poder que, enquanto sujeito da relação educativa, exercia sem qualquer contestação. O até então objecto da educação - o aluno - desfruta, de agora em diante, de uma capacidade de iniciativa que obriga a um calculado relaxamento por parte do professor. Os ideais de liberdade, de acção e de altruísmo opõem-se ao constrangimento, à passividade, à submissão e ao egoísmo com que a escola conservadora é etiquetada. Tudo isto em nome dos novos pro-jectos de inovação, de transformação, de democratização da sociedade tradicional, condenada como sendo perniciosamente imobilista e pac-tuante com a corrupção moral reinante no mundo contemporâneo.

A metáfora do oleiro e do jardineiro ilustra exemplarmente o salto ocorrido no que toca ao papel que passa a caber ao professor: este não modelará mais a criança como o oleiro modela o barro em obediên­cia a um projecto que só ao artífice diz respeito; o professor deverá ser antes como o jardineiro que cuidadosamente retira todas as pedras que possam entravar o crescimento da planta. Planta que, tal como a criança, crescerá naturalmente, segundo as suas próprias potenciali­dades e regras.

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Embora tenhamos de admitir que não há uma estrita uniformidade entre as propostas dos seus protagonistas, é legítimo reconhecer-se, sem qualquer margem de erro, que a Escola Nova, na esteira de Tolstoi, afirma sobretudo o primado da criança e do seu livre desen­volvimento, ou seja, o pedocentrismo. Daí todas as críticas que são dirigidas ao professor tradicional que, seguro do seu saber e dos seus valores, os procurava impor aos seus alunos recorrendo, para o efeito, a todos os métodos coercivos susceptíveis de aniquilarem a resistência que estes eventualmente oferecessem.

O poder do espírito crítico e da criatividade é especialmente enal­tecido, passando a preparação dos professores a centrar-se essencial­mente num esforço de depuração dos seus hábitos ancestrais e dos pre­conceitos de superioridade arreigados na sua condição de adultos. Assim, M. Montessori diz que eles deverão, logo à partida, «vencer o orgulho e a cólera», Decroly apela ao educador para descobrir o élan da vida psíquica infantil e adaptar-se a cada uma das etapas da vida da criança, Claparède põe em relevo as insuficiências de um ensino com base na transmissão dos conhecimentos para afirmar que o professor deve promover a realização de exercícios funcionais análogos aos jogos e através dos quais sejam os próprios alunos a procurar e a encontrar esses conhecimentos, Cousinet coloca como objectivo central da acção dos educadores o incentivo de uma actividade inventiva e criativa ditada pelas necessidades das crianças e dos jovens, Freinet valoriza as aprendizagens feitas por tentativas sucessivas e em que os profes­sores não devem intervir por antecipação, de modo a evitar os erros, Dewey, por fim, declara lapidarmente: «A criança é o ponto de partida, o centro, o fim; devemos partir literalmente da criança, tomá-la por guia».

Com base no importante estudo levado a cabo por G. Snyders no seu livro Pédagogie Progréssiste, podemos esquematicamente salien­tar os principais pontos de oposição entre os fundamentos da chamada Escola Nova - expressão acabada do empirismo pedagógico objectivo - e aquela que se convencionou apelidar de Escola Tradicional, onde se concretizam os princípios do empirismo pedagógico subjectivo:

- O ensino tradicional confere um grande lugar à transmissão do saber e à memorização; os novos métodos consideram sobretudo as actividades de pesquisa e de criação pessoais.

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- A adopção de modelos educativos ou a sua rejeição opõe também estas duas grandes correntes. Os modelos passam a ser vistos mais como formas de abstenção do que como promessas de acção.

- A directividade, na Escola Tradicional, desenvolve-se mor­mente pela prática de uma cultura escolar que, sendo subsidiária da própria cultura científica e dos seus procedimentos lógico-analíticos, simplifica e ordena as matérias de modo a torná-las acessíveis aos alunos. Os reformadores apostam numa escola que se torne um meio vivo, aberto para a vida, em que a cultura se integrará na própria exis­tência dos alunos.

- Contra o fosso entre a escola e o trabalho, a escola activa propõe a sua íntima conexão.

- Passa a ser implementado o trabalho em grupo, aceitando-se que o grupo, como tal, se organize espontaneamente e, por si mesmo, encontre as formas do seu equilíbrio.

- A aplicação de castigos é alvo das maiores críticas. Utilizan­do-se a terminologia piagetiana, poder-se-á dizer que se rejeitam as sanções expiatórias, as quais recorrem privilegiadamente ao sofrimento que a dor acarreta, em favor das sanções por reciproci­dade em que, banidas em princípio todas as punições bem como as recompensas, o prevaricador fica entregue às conseqüências dos seus actos.

- A descrença no valor modelar do mundo dos adultos separa também os adeptos da Escola Nova dos protagonistas da Escola Tra­dicional.

- Finalmente, o professor. É realmente ele o grande alvo de todos os ataques, enquanto agente do ensino magistral e do autoritarismo pedagógico. Enquanto agente do mundo dos adultos e das hierarquias dos saberes, dos valores e dos comportamentos estranhos ao universo infantil. Enfim, enquanto personificação de todos os vícios do ensino tradicional.

Claro que nós hoje conhecemos as ilusões do movimento da Escola Nova: a ilusão de que a educação assenta sempre em escolhas; a ilusão de que a escola pode ser neutra; a ilusão de que toda a auto­ridade é ilegítima; a ilusão de que há uma unidade e uma homoge­neidade nas comunidades infantis como se as divisões e as desigual­dades sociais não estivessem sempre aí presentes; a ilusão de que a

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selecção dos interesses das crianças não continua a ser feita por adultos; a ilusão de que a intervenção do professor não continua a subsistir, por exemplo, através dos materiais escolares postos à dispo­sição dos alunos; a ilusão de que a sobrevalorização das actividades lúdicas não condenaria a criança a ser alguém apenas capaz de uma só actividade, isto é, o próprio jogo; a ilusão de que a aprendizagem da palavra e da cultura se faz simplisticamente de um modo tão natural como quem aprende a andar, etc. (cf. op. cit.).

Foi a precipitação em erigir um sistema geral de educação a partir de motivações ideológicas não suficientemente clarificadas, embora apoiadas em alguns escassos conhecimentos debitados principalmente pela psicologia cientifica em ascensão, a principal causa dos descala-bros da Escola Nova. A sua importância e, com ela, a dos seus teóricos não pode, todavia, ser ignorada nos nossos dias. Somos, de uma forma ou de outra, seus herdeiros.

Vejamos como. Pensamos que por duas vias principais, não exactamente coinci­

dentes: - Uma que aponta para a salvaguarda e mesmo para a supremacia

da preocupação educativa sobre as do ensino e da instrução. Com ela, de alguma forma, a consciência acerca das conseqüências sociais da educação. Assinale-se que a assumpção das origens (das causas) sociais de educação é posterior, ou, para sermos mais precisos, terminal.

- Uma outra via que atribui ao aluno um novo estatuto e um novo papel nas situações educativas.

De que modo se apropriou desta herança a denominada pedagogia científica de inspiração positivista? De um modo algo complexo e difícil de deslindar. Porém, julgamos não errar se dissermos que o fez através de uma simbiose fluida e descaracterizadora das duas vias que acabámos de indicar: anulando a dimensão utópica dos projectos, reti­rou-lhes as margens incômodas de transgressão, pelo menos potencial, que os mesmos continham. A partir daqui foi possível domesticar a função social da educação. Concorrentemente, com base no pressu­posto adquirido da centralidade do aluno nas situações educativas, apurou e refinou estratégias que, fundadas no seu conhecimento e sempre em seu nome, vieram a servir para tentacularmente o controlar e direccionar.

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Os projectos pedagógicos, surpreendidos por uma série de fra­cassos, deixam desmobilizados os seus promotores eivados de idea­lismo. Os seus detractores encontram também aí pretextos fortes para as acusações generalizantes e radicais que lhes dirigem.

Pelo seu especial significado, não queremos prosseguir sem antes fazermos uma referência directa à pedagogia institucional. Esta, acei­tando a premissa não só da inevitabilidade como também da necessi­dade de um papel social para a escola, propôs-se, através do culto de uma vivência autogestionária no seu seio, plenamente assumida como sendo política, vir a contribuir decisivamente para uma alteração pro­funda da sociedade global.

Nas escolas que praticavam a pedagogia institucional, o professor estabelecia com os alunos a realização de um certo número de activida-des que criavam um conjunto complexo de situações capazes de faze­rem da vida na escola um autêntico espaço de vida social. Entretanto, o professor delegava progressivamente no grupo os seus poderes e as suas responsabilidades. A escola passava assim a ser uma instituição autogerida. Este modelo de organização, profundamente vivido e assu­mido pelos alunos e pelos professores, acreditava-se que seria natural­mente transposto para a própria sociedade. Mas eis que as recuperações que o poder efectivãmente instituído fez de tais planos - adaptando, inclusive, muitos dos seus principais aspectos sob a forma de refor­mas parciais do sistema educativo: decretou, por exemplo, a partici­pação dos estudantes na direcção dos estabelecimentos de ensino - e o número reduzido de escolas que praticaram a experiência autoges­tionária impedem a sonhada reforma estrutural da sociedade de que a escola seria o motor.

Independentemente dos pontos de vista quanto ao sentido ideo­lógico do projecto da pedagogia institucional, o que é para nós aqui importante destacar é o significado epistemológico, sociológico e pedagógico que assumiu o descalabro deste projecto enquanto tal. Este descalabro tornou-se a prova indesmentível e derradeira da inviabili­dade dos projectos pedagógicos como referenciais para transformações políticas, econômicas, sociais ou culturais amplas. Tornou-se a laje do túmulo em que ficaram enterradas as últimas ilusões da nova pedago­gia, incluindo-se aí Summerhill e as Escolas de Hamburgo mais os seus mestres-camaradas...

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Valerá a pena contudo reler ainda uma pequena história. História que é um conto árabe que Jacques Daignault incluiu nesse admirável e controverso livro Pour une Esthétique de Ia Pédagogie:

«Um jovem Vizir, passeando-se numa praça do mercado, cruzou--se com uma rapariga cujo olhar não deixa de o inquietar; ele reco­nhece-a, trata-se da sua morte. Horrorizado, o jovem Vizir procura o seu Califa e conta-lhe o acontecimento. Este concorda com ele, que estando a sua morte em Bagdad, seria mais prudente partir para outro lado. Recomenda-lhe que escolha o melhor cavalo da sua cavalariça e que vá para Samarcanda.

Naquele mesmo dia, mas um pouco mais tarde, o Califa vai também à praça do mercado e eis que encontra a morte do Vizir. Pergunta-lhe então: "Por que razão assustaste o meu Vizir esta tarde?". E a morte responde-lhe: "Mas eu não quis assustá-lo, eu fiquei muito simplesmente surpreendida por o encontrar aqui, em Bagdad, pois espero-o esta noite em Samarcanda"» (p. 80).

Acompanhemos a interpretação deste conto. Estamos perante uma duplicação do real: o acontecimento anunciado coincide exactamente com o acontecimento ocorrido; todavia, o Vizir terá pensado que poderia escapar ao destino anunciado, construindo uma realidade à qual atribuiu mais realidade do que ao próprio real. Para ele, a reali­dade tê-lo-á atraiçoado embora «ela tenha simplesmente realizado o que anunciou». Tentamos obstinadamente duplicar o real em proveito de um outro mundo que queremos apresentar como sendo mais real do que o real. E o próprio estratagema que o Vizir utiliza para escapar à morte que o conduz até ela. E o real enviou a morte a Samarcanda. O real surge como o que, afinal, «assegura o cumprimento do destino». O destino, esse, pela inquietação que provoca, alimenta a duplicação do real, a qual, parecendo, fornecer, pelas suas indicações, o meio mais seguro para escapar àquele, leva afinal ao seu mais eficaz cumpri­mento.

Ficar em Bagdad não era também solução pois não só a morte é inelutável, como o conhecimento verdadeiro do real não é possível. «Objectar-se-á muito provavelmente o seguinte: o conhecimento que o Vizir tinha do seu destino não era ilusório. Responderemos que isso ele tê-lo-á sabido apenas em Samarcanda. Porque se ele tivesse verda­deiramente dominado o conhecimento do real, nunca lá teria ido. Ou

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antes, nunca teria acreditado no duplo que tinha por mais real do que o real e em que depositou toda a confiança» (p. 83).

Na posse destas análises, J. Daignault compara a inelutabilidade da morte do Vizir com a inevitabilidade do fracasso da acção e da formação dos professores. Com efeito, a história longínqua e recente da pedagogia demonstra-o. Nos nossos dias, verificamos os sucessivos desaires dos diferentes discursos da pedagogia normativa, designada­mente das suas finalidades e dos seus ideais - finalidades e ideais esses, mesmo que generosos, nunca realizados - , opta-se, em nome dos limites e das exigências da realidade dita objectiva, que abandonará a especulação sobre «o que deve ser», pela análise rigorosa de «o que é». Montam-se, então, apertadas grelhas de objectivos e de sistemas de avaliação que respondem à preocupação obcecada de racionalização de todos os programas de formação, incluindo os dos professores.

Todavia, deste modo, passamos pura e simplesmente «da perspec­tiva de um inelutável fracasso à ilusão de um êxito» seguro. Conti­nuamos a trabalhar sobre uma duplicação do real e não sobre o próprio real. O encontro em Samarcanda permanece, por isso, marcado.

Tenha-se em linha de conta que os conflitos pululam necessaria­mente no mundo da educação com toda a sua irredutibilidade. Mas os hábitos da razão científica - ou, talvez melhor, do cientismo - não se compadecem com tal fenômeno: «Toda a racionalização dos progra­mas de formação de professores força as escolhas», aceitando, quando muito, algumas contradições ideológicas e nunca as admitindo todas. É que a complexidade da realidade educativa não se subordina às exi­gências de coerência e unidade dos objectivos, exigida pela vontade de operacionalização dos mesmos. Logo, a coerência tem de ser cons­truída à custa da escolha de determinadas disciplinas, metodologias e valores (organizados e encerrados dentro de certas categorias con-ceptuais) em prejuízo de outros.

Daqui poderemos concluir, ainda com J. Daignault, que a vontade de ter êxito nos programas de formação de professores - e, de uma forma geral, em todas as acções pedagógicas - , característica das peda­gogias científicas da objectividade, obedece também a um desejo, desejo ocultado pelo seu realismo e pelo seu reducionismo. E nas pedagogias anteriores era afinal igualmente um desejo que as fazia apontar para grandes ideais de homem, de sociedade e de mundo. O

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recuo destes ideais que as pedagogias científicas propõem, de forma a evitar os contínuos fracassos das acções e dos sistemas pedagógicos, estribado na quimera de que pode haver um saber objectivo e desin­teressado, corresponde apenas e sempre a um desejo: o desejo de ter êxito e de fugir ao fracasso.

Samarcanda continuará à espera: a realidade do destino ou o des­tino da realidade não se submetem nunca integralmente às ilusões dos nossos desejos. Os pequenos sonhos comungam da mesma natureza dos grandes sonhos. «Só os fantasmas é que mudam»!

Poder-se-á criticar toda esta análise por conduzir a um beco sem saída, por ser derrotista, por ser um convite mais ou menos declarado a que se cruzem os braços. Adiantamos, desde já, que não teríamos qualquer problema em fazer tal apelo se fosse nossa convicção de que seria esse o único caminho a seguir. Nem todas as histórias têm de ter um final feliz...

Mas, de facto, a situação é outra e o que nos move é, muito pelo contrário, o receio de que a pedagogia e os professores caiam, a breve trecho, num desalento total que julgamos ser evitável e desnecessário. Para isso, há que fechar urgentemente os alçapões abertos pelos novos tabus de uma tecnologia da educação toda-poderosa que, crescendo à sombra do pensamento científico, procura uma fundamentação adi­cional nas estruturas e nas necessidades, precisamente, da sociedade tecnológica contemporânea. Os métodos, as técnicas, os objectivos e os critérios adoptados - entre estes, sobretudo, o da eficácia - recebem assim uma dupla justificação científica e social, a qual, porém, se inscreve num círculo vicioso verdadeiramente infernal que sai conti­nuamente reforçado do seu movimento de autovalidação. A escola é mesmo um dos pontos privilegiados desse círculo, pois é um dos lugares principais em que se operam as transferências subtis entre os valores científicos e os valores sociais que garantem a função social da ciência e a orientação científica da sociedade. Só que, como nos lembra E. Morin, a ciência surge numa determinada sociedade, sociedade que é vista, por seu turno, por aquela ciência.

Compreende-se, deste modo, como é que uma formação de pro­fessores hegemonicamente centrada na aprendizagem - ainda que teó­rica - de técnicas do saber-fazer e do saber-agir, incluindo-se aqui a prática pedagógica, se torna não só legítima como auto-suficiente. O

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equívoco ideológico da objectividade positivista dos discursos pseudo--científicos realiza - objectiva - uma realidade inerente aos fins peda­gógicos operacionais. Realidade que, sendo o produto de um projecto, se apresenta como sendo um objecto real e prévio.

O debate ensino-educação que a escola nova tinha despertado, em nítido proveito desta última, parece agora resolvido por via da preo­cupação central em se favorecer apenas a aquisição de conhecimentos traduzíveis sob a forma de comportamentos. O ensino - ou, talvez melhor, o adestramento - , operando a absorção dos objectivos cogni­tivos pelos objectivos comportamentais, resolve também, na aparên­cia, as dificuldades colocadas pela tradicional indexação do campo educacional aos quadros axiológicos de teor moral. Na pedagogia do saber-fazer da segunda metade do século XX consolida-se uma inter-penetração entre as pedagogias do saber de origem platônica e as do saber-ser ou saber-estar de inspiração cristã. Isto pelo enaltecimento da competência prática conjugada com a fundamentação científica, ou seja, uma fundamentação no saber, que para a mesma se requer.

O professor vai aprender tal como se quer que ele ensine, que ele eduque. Ele vai, sobretudo, aprender a exercer uma competência que lhe confere um poder cuja natureza e cujo sentido lhe escapam crescen­temente. Esse poder é, nada mais nada menos, do que o poder pedagó­gico e educativo.

De facto, pela acção sistemática e continuada que a intervenção educativa - apoiada nos discursos pedagógicos - exerce sobre os seres humanos, ela goza de uma situação privilegiada no contexto das acções que procuram influenciar os comportamentos: tanto quando está ao serviço da manutenção do statu quo como quando aspira a ser trans­formadora e inovadora. Mesmo quando sabemos que há determinações sociais que a condicionam. Mesmo quando se aceita a advogada falên­cia dos projectos pedagógicos utópicos. Falência que é relativa. É que se as pedagogias especulativas não conseguiram realizar na plenitude as suas finalidades, não deixaram igualmente de contribuir, com a sua quota parte, positiva ou negativa (depende dos juízos de valor adop-tados), para os processos evolutivos das sociedades. O erro reside na circunstância de as julgarmos em função dos absolutos que eram os seus ideais esquecendo que os ideais serviam apenas como referenciais de acção. Criticá-los, exactamente por serem absolutos, para depois os

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utilizar enquanto grelhas igualmente absolutas de avaliação é, no mínimo, uma grave contradição.

Mas a verdade é que, a partir daqui, se oscilou entre a busca de novos espaços para a educação, como acontece nas propostas de I. Illich de criação de uma «sociedade sem escola», e o reforço das preocupações metodológicas e didácticas em que uma neodirectividade percorre o terreno da racionalização dos actos de ensino e de aprendi­zagem. Esta racionalização legitima pela via científica - nunca será demais recordá-lo - a autoridade pedagógica que, liberta das fraquezas quer do directivismo tradicional quer da não-directividade surge sufi­cientemente armada para ser eficaz e, em simultâneo, suficientemente distanciada de projectos ideológicos para que possa ser ingenuamente aceite por todos.

O poder da escola e da educação é demasiado evidente para que o Poder o despreze. Pelo seu controlo - conforme lembra D. Hameline -lutaram o papado e a realeza na Idade Média, a burguesia e a aristo­cracia depois da Revolução Francesa, lutam ainda fracções diversas dos grupos dominantes. Entusiasmado, Leibniz ironizou: «A educação pode tudo, pois ela até faz dançar os ursos!».

Não vamos tão longe como o foi Leibniz no clima da euforia humanista. Quisemos somente chamar a atenção para a realidade que constitui o poder da educação. Poder que foi por esta conjunturalmente abandonado depois dos sonhos da Escola Nova. Poder esse que veio, todavia, a ser recuperado rapidamente e de uma forma calculadamente actualizada.

As teorias da metacognição aplicadas ao estudo dos processos de ensino-aprendizagem e o envolvimento social da educação, a par de uma agudização da consciência do profissionalismo docente, têm levado, nos últimos anos, a uma profunda alteração da situação.

É assim patente, hoje em dia, a idéia da formação de profissionais capazes de serem protagonistas dos projectos educativos como adores que, com outros, mas com um papel específico, afirmem e realizem a autonomia cultural, social e economicamente integrada da educação. São, por isso, valorizadas, para além das ciências sociais e humanas em geral e das ciências da educação em particular, as epistemologias regionais e disciplinares, bem como as atitudes e metodologias ine­rentes aos procedimentos investigativos. O sentido ético dos desafios

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e das problemáticas que se colocam à humanidade constitui o impres­cindível pano de fundo - crítico e reflexivo - que tudo emoldura e fun­damenta.

A distribuição e a fruição do saber confundem-se, por isso, com a própria democratização do poder. Passam, com certeza, pela partilha da informação, pelo estabelecimento de uma autêntica comunicação. Condições imprescindíveis para o desenvolvimento de uma consciên­cia pessoal e social.

Sendo estes os propósitos inalienáveis da educação contemporâ­nea, têm de impregnar necessariamente também os grandes objectivos da formação dos seus responsáveis.

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CAPITULO IX

PRESSUPOSTOS E HORIZONTES DO PARADIGMA ECOLÓGICO EM EDUCAÇÃO

Importa, por último, proceder a uma aproximação entre o modelo dominante de ecologia e a adopção de uma perspectiva ecológica em educação. Importa, contudo, também, que esta leitura seja preferen­cialmente transversal e não vertical. Só assim se evitarão, de facto, as atitudes de uma recepção não crítica de padrões explicativos e inter-pretativos que se traduzam na sua pura e simples adopção mimética pelo efeito do prestígio das ciências de referência e matriciais. O con­ceito de paradigma legitima então os fenômenos de universalização e de estandardização dos procedimentos e das atitudes científicas.

No caso específico da educação reitera-se, deste modo, a hege­monia que das ciências da natureza vai às ciências da educação, com passagem pelas ciências humanas em geral. Mais ainda, aprofunda--se o comprometimento da pedagogia situando-a nos limiares quase dramáticos da sobrevivência. Apenas a leitura transversal da proble­mática ecológica permitir-nos-á tirar pleno proveito das aquisições já alcançadas pela epistemologia das ciências físicas como, ao mesmo tempo, introduzir dados novos que, de uma só vez, respeitem e promo­vam a identidade do terreno educativo e forneçam elementos originais aos outros espaços de reflexão em termos de um diálogo autêntico e produtivo.

Ora, a postura ecológica em educação tem assumido, com freqüên­cia, os contornos típicos de uma importação maciça de preceitos práti­cos de contornos mal definidos ou apenas aplicados a âmbitos restri­tos da actividade escolar (exemplo: a educação ambiental). A ecologia pode ganhar, então, um estatuto ideológico susceptível de provocar movimentos de adesão militante e cair no âmbito do ecologismo.

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Como o próprio termo indica com clareza, ecologismo designa uma focagem reducionista, a qual é particularmente contraditória quando se reporta a uma perspectiva que à partida tinha, entre outros objectivos e motivações, a vocação de combater as leituras disciplinares estritas e os pontos de vista hegemônicos ou autocentrados.

Como nos sintetiza J. J. Salomon, se «a ecologia pode legitima­mente conceber-se como um contributo científico global, o ecologismo enquanto visão política global pode ser apenas uma ideologia. Se con­fundirmos ou pretendermos unificar, na defesa da natureza, o território das verdades e o dos valores, expomo-nos uma vez mais à deriva que ameaça toda a ideologia global e o totalitarismo» (Le Destin Téchno-logique, p. 311).

Na realidade, o ecologismo mergulha numa postura ecocrática que, de uma forma articulada e perversa, articula a ideia de uma «ecologia gestionária» com a defesa da natureza enquanto valor supremo, a qual tende a substituir-se, nessa função, à que desempenhou a história. Neste contexto, os argumentos acabam por substituir as demonstrações e as convicções as provas. A ecologia, em vez de apoiar, numa quota parte bem determinada, as decisões políticas, transfigura-se, ela mesma, em poder que se legitima e se basta a si próprio. Ou seja, prescinde dos dados fornecidos pelas demais ciências, nomeadamente pelas ciências sociais e humanas, e prescindindo, por acréscimo, de qualquer mediação social, procura instituir uma autêntica «racionalidade ecológica». Uma tal racionalidade afirma como critério de decisão e de acção a preservação e equilíbrio do meio (natural), subordinando por isso a ecologia polí­tica à ecologia científica e tendendo, nesse quadro, a ignorar a primeira enquanto variável independente. A contracção perversa do poder ao saber de uma elite científica oculta uma profunda discriminação social.

Contra os reducionismos endógenos, o paradigma ecológico tende a afirmar a singularidade dos seus pressupostos intraparadigmáticos, o que, a ser levado até às últimas conseqüências, significaria que, mais do que a coexistência de paradigmas, seria promovida a sua convivência interna, constitutiva, aliás, do próprio paradigma ecológico. Aqui, em nome do respeito pela diversidade e pelo pluralismo, abandona-se a ideia de confronto entre paradigmas e da necessária ruptura entre os mesmos. Ou seja, o paradigma ecológico aspiraria a protagonizar, em termos muito mais radicais, uma revisão do próprio conceito de para-

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digma quando paradoxalmente, como vimos, não chegará a cumprir os preceitos basilares da concepção clássica de paradigma, isto é, os que o levariam, no âmbito histórico em que se desenvolve, a romper de facto, por exemplo, com a noção-chave de sujeito. Ao mesmo tempo, a promoção de uma apregoada teia intraparadigmática é talvez mais expressão de uma real falta de identidade e de originalidade relativa­mente aos paradigmas organizacional, sistêmico e construtivista que, à partida, lhe emprestam as noções fundamentais. Claro que tal ocorre em conseqüência do facto de o paradigma ecológico - ou a apropriação ideológica que dele é feita pelos protagonistas dos paradigmas que lhe são mais próximos - se deixar diluir ele mesmo, em nome do holismo e do contextualismo, num conjunto intrincado de inter-relações inter-paradigmáticas que, no fundo, o esvaziam de originalidade. Significa isto que o paradigma ecológico corre um enorme risco de ser vítima de uma coerência que, em última instância, lhe é anterior e, portanto, externa, a qual redunda também num novo reducionismo algo parado­xal - o reducionismo holista - de que o ecologismo é uma das suas expressões mais importantes.

Chegados a este ponto, torna-se decisivo alargarmos o âmbito do questionamento e perguntarmos se, na realidade, resta algum espaço de intervenção e de caracterização do paradigma ecológico em termos de reconhecimento da sua identidade e autenticidade, ou seja, afinal, da sua razão de ser como paradigma. Esta questão é tanto mais decisiva quanto será imprescindível evitar que a educação, uma vez mais, se limite a ser a reprodutora de subprodutos de querelas ideológicas e de investidas de projectos de expansão de lugares comuns mais ou menos sedutores, negando-se assim a sua própria função como educação, ou seja, a sua criatividade e a sua implicação cultural.

O paradigma ecológico, enquanto paradigma que é, tem, ou deverá ter, uma coerência lógica interna - coerência de princípios, de regras e de critérios - que decorre de uma dada percepção da coerência das pro­blemáticas epistemológicas suas contemporâneas e que, a partir daí, pretende enfermar a própria coerência das estratégias, dos procedimen­tos metodológicos, da caracterização e da delimitação dos objectos ou factos científicos que se constituem como terreno próprio de investigação. Por outro lado, quando se fala de um paradigma, logo se espera que ele delimite as fronteiras da legitimidade das atitudes e dos territórios de

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indagação, ou seja, que marque as linhas da exterioridade e da inferio­ridade que de relativas - quando sujeitas ao debate dos metadiscursos interparadigmáticos - tendem a tornar-se absolutas à medida que um dado paradigma de referência se institucionaliza e se torna universal. Aí o paradigma identifica-se progressivamente com a totalidade da ciência e das ciências e até com a totalidade do conhecimento em si mesmo.

Os trabalhos de Kuhn e de Lakatos deram-nos a possibilidade de identificar a razão sociológica dos paradigmas, de perceber os conflitos interparadigmáticos sincrónicos e diacrónicos quando está em causa a hegemonia de um deles. Permitem-nos ainda perceber alguns dos meca­nismos que subjazem à formação, manutenção e ruptura das respecti­vas comunidades científicas. Ficam-nos, porém, algumas dúvidas se as reflexões dos autores que acabámos de referir conseguem abranger as especificidades com que se apresenta agora o paradigma ecológico.

Com efeito, este paradigma surge enquanto tal, como vimos, na esteira das teorias organizacionais, sistêmicas, holísticas e construtivis-tas e em profunda ligação com as propostas daqueles que, de uma forma geral, se designam como métodos qualitativos. De entre estes, o destaque vai para os métodos etnográficos, ideográficos e fenomenológicos. A generalidade destes discursos têm em comum a refutação dos dogma-tismos positivistas, experimentalista e quantitativista pelos níveis de abstracção, de objectivismo e de substancialismo que introduzem com a conseqüente neutralização do papel dos sujeitos - das suas repre­sentações e das suas intenções - e flagrante secundarização das inter--relações, dos contextos e da dinâmica das situações concretas.

As propostas ecossistémicas acrescentam ou, talvez melhor, inde­xam todos estes conceitos à concepção de meio - natural num primeiro momento e, por um processo de crítica interna e externa, cada vez mais também social, político e educativo - como valor aglutinador e doador de sentido aos itinerários do conhecimento e aos projectos de acção. Um tal meio aglutina assim um conjunto de dimensões que, pelo seu desdobramento e abrangência, corre o risco de esbater o lugar e o papel da humanidade concreta ou dos homens tomados individualmente. Insinua-se, então, a chamada auto-ecologia.

Em oposição declarada ao paradigma mecanicista e ao projecto nele implícito de domínio da natureza - e do meio - pelo homem, a proposta ecológica pretende afirmar, antes de mais, a identidade, a

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liberdade e a dignidade da natureza - e, de uma forma geral, do ambiente - de que o homem e as suas obras, antes de mais também, fazem parte. Neste âmbito são atacados o humanismo tradicional e os seus propósitos antropocêntricos, ou seja, o humanismo que coloca o homem, enquanto sujeito-rei, no lugar de Deus. A tendência é todavia para que, no escamoteamento do fenômeno de que a natureza (e o meio) com que lidamos é prioritariamente a representação que dela fazemos, a mesma se substitua ao Homem, ou melhor, mascare a sua indelével intervenção.

Isto é, quando a perspectiva ecológica procura afirmar o seu estatuto paradigmático, ela vê já, à partida, os seus contornos confundidos com os de um discurso ideológico. No fundo, a desantropomorfização a que na aparência procede a crítica ecológica resulta apenas de uma contrac-ção artificial e ilusória da esfera antropológica que, por acréscimo, vem a coincidir com os limiares definidos pelos mecanicismo para o territó­rio egocrático do sujeito humano. Por outras palavras, a ruptura interpara-digmática pretensamente instaurada pelo paradigma ecológico, em termos epistemológicos estritos, é apenas possível e viável enquanto houver uma continuidade paradoxal no plano nuclear da concepção do sujeito.

Entretanto, o conceito de «ecodesenvolvimento», lançado em 1972 pela conferência de Estocolmo sobre o meio, detém algumas potencialidades, cujo alcance convirá reter e explorar.

Recorde-se que, através da noção de ecodesenvolvimento, se espera precisamente ultrapassar todos os reducionismos, incluindo o ecolo-gista. Afirma-se, num tal âmbito, o primado das necessidades dos seres vivos em geral, sem privilégios para qualquer um deles, a par do res­peito pelas gerações futuras, sempre em nome de um relacionamento renovado do homem com a natureza. Visando-se aqui, em continuidade dos princípios da economia capitalista, aumentar a produtividade do trabalho, acrescenta-se porém a preocupação com a preservação dos recursos. Através do conceito de ecodesenvolvimento a ecologia começa a impor-se pela introdução do projecto de defesa da natureza na dimensão política. Assim, torna-se inviável separar, ainda que artificialmente, as questões ecológicas das questões políticas, sobretudo quando tal é feito em nome do caracter científico dos fundamentos daquelas. Ao mesmo tempo, torna-se clara a subaltemização dos critérios economicistas a nível das opções políticas e da sua justificação.

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A noção de ecodesenvolvimento tenta transpor as idéias de dinâ­mica, de mudança e principalmente de inovação para o terreno dos processos de desenvolvimento e de progresso (em que o homem parti­cipa) mas percorrendo, articulando e subordinando todas elas à exigência capital do equilíbrio. Ou seja, ultrapassam-se os limites das concepções que, em nome da preservação da natureza, acabavam por defender e veicular uma concepção estática da mesma.

Mas, atente-se no facto de que, quando a ecologia «ressuscita - no dizer de E. Morin - o diálogo e a confrontação entre o homem e a natu­reza», ela assenta inevitavelmente, em última instância, como dissemos já, numa dada representação que o homem forma acerca dessa natureza e que constitui, afinal, o fundamento da própria noção de desenvolvi­mento global. Pretender estruturar uma tal representação apenas na eco­logia científica para, em nome do equilíbrio objectivamente encon­trado, legitimar, arbitrar e lançar o próprio desenvolvimento integrado constitui um novo perigo pois reemerge aí a ameaça de a ecologia se tornar uma ideologia, a ideologia do final do século XX.

Solidariedade e participação surgem, então, como dois quesitos decisivos - mas nem sempre bem definidos e consequentemente pro­movidos - para um desenvolvimento que respeite, de facto, a multidi-mensionalidade do critério ecológico. Fala-se mesmo, nestas circuns­tâncias, de ecologia social que se constitui, em simultâneo, como a condição decisiva e uma das metas fundamentais da ecologia como motor e fronteira do desenvolvimento.

Pela transferência apressada da perspectiva ecológica para o campo da educação escolar, apenas enquanto metodologia de explicação de situações e fundamento de uma tecnologia da acção, são grandes as possibilidades de, em nome do respeito pela complexidade das variáveis contextuais em jogo, se abstraírem os processos dignificantes dos sujei­tos envolvidos bem como o impacto positivo dos seus actos. Por outro lado, é também freqüente que as teias inter-relacionais sejam definidas apenas em função da noção de meio - aqui, da noção específica de meio educativo: comunidade, sociedade, etc. - , ou seja, em função de uma centralidade persistente, mas não assumida, do sujeito a partir do qual se forma em espiral um universo sistêmico - um nicho antropológico, afinal - que reflecte antes de mais o olhar desse sujeito. Nestas circuns­tâncias, despreza-se a presença do aleatório e o sentido mais profundo

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da alteridade. Tanto num caso como no outro, desvaloriza-se a respon­sabilidade dos sujeitos, quer pela sua diluição em coordenadas que são objectivamente externas, quer pelo seu desdobramento numa exterio-ridade aparente cujo caracter subjectivo se não admite, quer ainda pelo ocultamento que assim se favorece, mais do que dos sujeitos individuais, dos sujeitos institucionais.

Um outro elemento decisivo a considerar quando se reflecte sobre a adopção ingênua do paradigma ecológico em educação é a tendên­cia para se apagar a identidade e a autonomia da escola e da educa­ção escolar no seio da educação informal. Esta tendência é ainda mais vincada pelo facto de a escola enfrentar uma crise persistente diante de uma sociedade comunicacional triunfante que, para além de a envolver, a percorre em todas as suas dimensões. Este fenômeno, por si, não acarreta qualquer tonalidade negativa. Pelo contrário, resulta pleno de potencialidades inovadoras que urge explorar e aprofundar. Contudo, nem a sociedade em geral, nem a escola em particular lucrariam com a demissão desta última. Com efeito, a escola, enquanto espaço colectivo e específico da educação, ensino e aprendizagem e mesmo como espaço de recontextualização das aprendizagens, no quadro de uma pedagogia escolar, representa uma força única e indescurável de formação e tra­tamento da informação capaz de evitar a supressão pura e simples das descontinuidades, dos pluralismos e das rupturas de interpretações, perspectivas e visões do mundo. Isto numa época em que o apelo à homogeneização e padronização de comportamentos e atitudes dispõe de meios fortíssimos e sedutores. O poder político autêntico - que não reside mais nas instituições como tal convencionalmente reconheci­das - , o controlo social e a manipulação ideológica - sem a resistência da escola cultural - dispõem, pela sua própria natureza fantasmática, de uma enorme capacidade de intervenção.

Ora, precisamente o paradigma ecológico detém grandes possibi­lidades de fortalecer o papel educativo capital da escola, desenvolvendo, para além da sua estrita vocação epistemológica, a sua vertente antro­pológica. Significa isto, desde logo, que não se pode permitir que ele não seja mais do que uma nova roupagem do paradigma sistêmico.

José Antônio Caride (cf. Educación Ambiental: realidades y pers­pectivas) dá um importante contributo nesse sentido quando sintetiza, do modo que se segue, os princípios essenciais da perspectiva ecoló-

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gica, a partir de investigações de autores como Doyle, Bronfenbrenner, Tikunoff, Hamilton e outros. Assim:

- As práticas educativas têm uma dimensão histórico-social que as torna indissociáveis dos valores.

- A subjectividade é uma dimensão decisiva do comportamento humano.

- O ecossistema é, por definição, dinâmico, múltiplo e situacional. - Os contextos (e as suas especificidades) têm de ser sempre con­

siderados. - As informações procedentes da realidade deverão ser sempre

integradas segundo um critério de simultaneidade. - O processo de investigação é um processo de sucessivas ten­

tativas de acção e reflexão em que se destaca a superação do senso comum e em que as atitudes explorativas e interdiscipli-nares são sempre valorizadas no âmbito de uma metodologia interactiva.

Mas, se o conjunto de proposições que se acaba de enunciar é fundamental para o apuramento de uma autenticidade e de uma singu­laridade do paradigma ecológico, a verdade é que um tal projecto só será inteiramente alcançado se, de uma vez por todas, se aceitarem, na sua plenitude, as implicações humanistas da ecologia.

Claude Lévi-Strauss escreveu um dia que «um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo, mas coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros antes do amor-próprio». Pretende este autor, deste modo, chamar à atenção para a necessidade -e a possibilidade - de se romper com uma dada concepção histórica do humanismo sem que, por isso, se tenham de abandonar pura e simples­mente os seus valores centrais. Valores que, como a solidariedade e a responsabilidade, são inerentes às noções de sujeito e de pessoa e que constituem, por si, outros tantos valores do humanismo. Mais ainda, tudo leva a crer que sem a renovação do humanismo - e dos seus valo­res - se tornará impossível a inadiável emergência de uma «nova cida­dania ecológica e planetária».

De facto, uma longa e persistente confusão inaugurada por Hei-degger entre humanismo e individualismo e, por sua vez, entre indivi­dualismo e subjectivismo faz com que do combate a estes dois redu-

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cionismos antropopolíticos resulte uma culpabilização e um ataque sistemático ao humanismo enquanto suporte ideológico de uma sub-jectividade que, como diz A. Renaut na obra L'Ére de 1'Individu, «apa­rece como actividade, como instância cuja essência inclui o projecto de submissão do real». Revela-se, então, a subjectividade como a própria estrutura do real enquanto essa estrutura é uma estrutura racional.

Porém, o indivíduo - como ainda nos assinala A. Renaut - é apenas uma figura evanescente do sujeito e, por seu turno, o indivi­dualismo uma figura evanescente do humanismo, atendendo ao facto capital de a existência de uma esfera normativa supra-individual consti­tuir a dimensão essencial do humanismo. É nestas circunstâncias inde­fensável a concepção de um indivíduo independente de tudo bem como de um sujeito fechado e egocêntrico. Impõe-se a intersubjectividade. Ora, não há uma consciência autêntica sem uma consciência solidária, e, para que a solidariedade seja integral, ela tem de abranger, para além da relação dialógica e reversível eu-tu, a não-reciprocidade da relação com a terceira pessoa, com o e/e! Só assim se abrirá integralmente à natureza biótica e abiótica e à natureza cultural e social, dando pleno corpo à relação ética como relação de heteronomia e de alteridade.

Reconheça-se, isso sim, que a ecologia representa um estádio avançado do humanismo. Através dela, a solidariedade e a responsabi­lidade dos homens tornam-se realmente universais, pois obrigam a um reforço da coesão intersubjectiva e conduzem à irrevogável constatação da existência de sujeitos-outros detentores de direitos e não prioritaria­mente de deveres. A idéia de fragilidade da natureza implica, antes de mais, exactamente isso. Para Hans Jonas, por exemplo, a natureza é um sujeito de direito e origem de uma nova ética. O objecto da acção ética ultrapassa, pela primeira vez, o estrito nível da sociedade e encontra o seu fundamento fora de qualquer dimensão subjectiva consciente e ima-nente - individual ou comunitária - ou transcendente.

Neste mesmo movimento, a humanidade assume inteira responsa­bilidade pela herança que recebe do passado - independentemente do seu valor e dos eventuais benefícios imediatos que para ela daí resultem - e pondera as suas decisões tendo em consideração as suas conse­qüências para as gerações vindouras.

Verifica-se, pois, que a ecologia, por um lado, acolhe e reproduz no fundamental a mensagem do humanismo, por outro, dilata-lhe o

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sentido pelo alargamento, no espaço e no tempo, dos horizontes da solidariedade e da responsabilidade. Há, nestas circunstâncias, uma renovação e uma exponenciação do humanismo. É que, ao apagamento do sujeito na crítica pós-moderna correspondeu, mais do que a sua anu­lação efectiva, a sua desresponsabilização. Daí os apelos aos filósofos de sociólogos como R. Boudon para que se desenvolva um humanismo metodológico capaz de reconhecer o actor social como sujeito da sua acção. No fundo, o sujeito que a ecologia reconhece e que à educação incumbe formar e promover.

Os grandes desafios que o paradigma ecológico coloca à educação remetem para pressupostos do conhecimento e da acção que a euforia racionalista do espírito científico ocultou ou subalternizou, inclusive por escaparem aos próprios patamares da racionalidade epistemoló-gica. Foi assim que a educação racionalista e positivista se preocupou sobretudo com as questões do saber e da prática científicas, convicta de que, desse modo, realizava a própria vocação humana e natural: a natu­reza existia para ser conhecida e explorada pelo homem; a este compe­tia estudá-la e dominá-la. Ora, o grande desafio que agora se coloca à humanidade é o de conferir a todos a possibilidade de, pelo conheci­mento da complexidade do meio e da necessária e inevitável mediação social e tecnológica, contribuírem activamente para as decisões que têm a ver com a produção, desenvolvimento e aplicação de realizações e produtos técnicos. Trata-se, no fundo, de assegurar a partilha da infor­mação conjugadamente com uma nova política de educação que, para além de se preocupar com a elevação do nível de conhecimento, se preocupará também, como nos diz J. J. Salomon, em «reequilibrar o saber com as outras formas do conhecimento». «Reconciliar entre eles os diferentes saberes e os diferentes tipos de cultura de que a ciência não é, apesar de tudo, mais do que um elemento» (op. cit., p. 291). Na realidade, há que compreender que não podemos olhar o século XXI com as estruturas sociais, a cultura e o sistema de ensino da sociedade positivista. Joga-se aqui o futuro da humanidade, é verdade, mas logo à partida, o futuro da democracia: «À empresa de uma educação dual corresponde a ameaça de uma sociedade dual», isto é, uma sociedade em que as clivagens se fazem pela função e o estatuto sócio-cultural dos seus membros, ou, se se quiser, pelas desigualdades operadas pela dis­criminação no acesso ao saber mais do que pela origem social.

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Só uma educação universal mas, antes de tudo, assente numa sólida e actualizada cultura humanista capaz de relativizar e contex-tualizar o papel da ciência e da técnica, capaz de protagonizar a dimen­são social da técnica, capaz ainda de dar um sentido humano ao res­peito pelo meio e pela natureza, servirá a humanidade no dealbar do século XXI. Querer defender o equilíbrio da natureza e do universo pela pura e simples subordinação ao determinismo ou ao teleologismo das leis cósmicas - numa óptica ecocrática - é querer impor um impossível regresso ao passado em que a acção técnica do homem não era deci­siva para um tal equilíbrio. É querer eliminar a história e, em última análise, querer liquidar o homem. Não esqueçamos que o que está em causa não é, à partida e apenas, a natureza em si e a sua evolução. O que está em causa é o homem numa dada natureza, num certo universo, num mundo situado e a própria consciência cosmológica que actualmente o homem representa de uma forma ou de outra. Essa é, aliás, a nossa autêntica contemporaneidade. Aquela com que deixamos o século XX e entramos no século XXI.

Este é o papel antropopolítico do paradigma ecológico que terá de ser considerado na educação.

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CONCLUSÃO

Conscientes da filiação das ciências da educação nas ciências humanas e das freqüentes e imponderadas concessões destas a mode­los de cientificidade instituídos pelas ciências da natureza, mas que, mesmo aqui, entraram em fraco declínio; convictos de que a filosofia tradicional é incapaz de sair da crise em que mergulhou, inclusive pela sua incapacidade em responder às solicitações que lhe são feitas (ela não pode albergar as reestruturações dos novos posicionamentos cien­tíficos); atentos às dificuldades com que, por isso, se defrontam as ciências humanas (espartilhadas entre a especulação filosófica dominante e o objectivismo científico credor dos louros do progresso e do rigor), quisemos contribuir para um esclarecimento do que se passa e do que se poderá passar no domínio específico da educação, se se abandona­rem alguns dos tabus que decorrem dos pressupostos que, em cadeia, o atingem e que, nas suas linhas mais importantes, deslindámos.

A transdisciplinaridade da ciência da educação foi o ponto de che­gada e a base desta empresa. Com efeito, ela consagra a unidade multi-dimensional de uma construção praxiológica que, através de distintas abordagens científicas e filosóficas, visa a constituição e a prossecução de projectos educativos. Parte, deste modo, de premissas estranhas, não só às filosofias da tradição metafísica, como também às da ciência positivista.

Nestas circunstâncias, a transdisciplinaridade característica da ciência da educação resolve ou, pelo menos, abre perspectivas de resolução para os impasses que tem assaltado a problemática geral das relações entre a filosofia e as ciências. Todavia, ela não aparece como um artifício especialmente forjado para esse fim: decorre, pelo contrário,

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da própria prática científica da investigação educacional, conseguindo ser a resposta internamente credível no próprio plano da busca de uma superação dos obstáculos aí surgidos.

A filosofia - as filosofias - apreendem, radicalizam e, sobretudo, exprimem - através das finalidades - as expectativas (contraditórias) que (co)existem numa sociedade; as componentes científicas da ciência da educação, essas, planificam, verificam a exequibilidade das finalida­des, lançam as bases para a operacionalização dos ideais considerados e avaliam processos e resultados. Mas aqui ninguém tem nem a primeira nem a última palavra, realizando-se a interpenetrabilidade entre a(s) filosofia(s) e a(s) ciências(s) no próprio interior da investigação e da prática científico-filosófica. A separação entre o contributo das várias partes implicadas existe, sobretudo, nas análises metodológicas. A polê­mica sobre a natureza científica ou filosófica dos estudos epistemológi-cos tem assim, também, novos horizontes.

De facto, dentro das perspectivas esboçadas, a alternativa é ino­portuna e descabida. Recorde-se que, no entanto, ela se instala desde o momento em que a filosofia, na seqüência dos desenvolvimentos da ciência sua contemporânea (e de cuja importância se apercebe), se dedica a reflectir - para criticar - sobre os conceitos e sobre as teorias científicas, apoiando-se preferencialmente, para o efeito, na história desses conceitos e dessas teorias e nos princípios que, por si mesma, defende. A esta aspiração da filosofia, eis que se opõem as «episte-mologias internas», científicas, que não aceitam que ela se debruce, seja qual for o pretexto, sobre conteúdos em cuja construção não interveio. Mas onde assentarão os pólos desta alternativa, desta exclusão recí­proca, se tanto as filosofias como as ciências estiverem comprometi­das na edificação de objectos que, em última instância, são comuns? Pensamos que as epistemologias podem ser internas sem que, para tal, tenham de deixar de ser filosóficas. Aliás, só com epistemologias deste tipo é que toma corpo a dialéctica filosofia(s)-ciência(s), cerne da trans-disciplinaridade, designadamente da ciência da educação.

Todavia, mesmo autores que, à partida, não desprezam o papel da filosofia no domínio epistemológico tendem a impor uma divisão nítida entre uma epistemologia científica ou positiva e uma epistemolo-gia filosófica. A primeira seria «uma epistemologia fundada sobre a análise positiva e sistemática dos produtos da ciência mais do que sobre

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os a priori — os quais, poderemos nós concluir, competirão à episte-mologia filosófica - , por outras palavras, uma disciplina cujos proce­dimentos lembram mais os da ciência que os da filosofia» (R. Boudon, La Crise de Ia Sociologie, p. 92, nota). Apesar de o autor da passagem transcrita ter o cuidado de esclarecer que não confunde a ideia de uma epistemologia positiva com a de uma epistemologm positivista, ele não chega, na nossa opinião, a desembaraçar-se de um conjunto de pre­conceitos que explicam a distinção feita.

Tal distinção não se adaptará designadamente à ciência da educa­ção, a não ser que fizéssemos das finalidades simples elementos a priori, o que não seria correcto. Procedendo-se assim, estaríamos a negar a dialéctica que elas mantêm com os resultados da indagação científica estrita, dialéctica que passa, inclusive, pelo processo de construção desses resultados. Remeter a intervenção epistemológica da filosofia para o campo dos a priori significa que se continua a atribuir-lhe a tarefa de busca dos fundamentos e que, concomitantemente, se reco­nhece ser ela a sede da sua formulação, vedando-se-lhe, a par disso, a possibilidade de desempenhar um papel importante no interior do próprio desenvolvimento dos discursos científicos. A apreciação dos «produtos da ciência», sendo entregue apenas a uma epistemologia positiva - no caso concreto da ciência da educação - , comprometeria necessariamente a inserção desses «produtos» nos nexos do projecto educativo em causa bem como a revisão daqueles em função deste (e vice-versa). Alienados que ficariam esses «produtos» do processo filo­sófico, atomizar-se-iam de um modo incontrolado em relação aos pro-jectos pedagógico-filosóficos, entretanto atirados para o espaço dos a priori, isento da confrontação dialéctica.

A dicotomia epistemologias positivas/epistemologias filosóficas favoreceria (e pressuporia), em última instância, o ressurgimento do dogmatismo, pois desde o momento em que as finalidades educativas se reduzissem a princípios fundamentais a priori condicionariam todo o processo de estruturação do conhecimento científico, escapando, contudo, pela sua precedência, a esse mesmo processo.

Na ciência da educação tem de haver um desafio continuado àquele que se considera, em qualquer altura, como sendo o seu domínio pro­blemático e problematizador. De facto, a ciência da educação tem de enfrentar sempre, não só enigmas como utopias, quer dizer, não só

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questões formuladas e resolúveis dentro da teia dos instrumentos con-ceptuais, teóricos e metodológicos de que dispõe efectivamente enquanto ciência strictu senso, como também modelos educativos que, extra­vasando tais limites, não podem, por isso, ser ignorados a coberto do pretexto da sua não-cientificidade. Isto é, a ciência da educação tem de incorporar um questionamento quantitativa e qualitativamente múl­tiplo, o qual imporá, num certo sentido, a «incompatibilidade» interna e permanente de teorias tributárias de visões do mundo inconciliáveis, em menor ou maior grau.

Claro que a ressonância destas propostas (ou destas constatações) pode ser diminuída se nelas nos limitarmos a surpreender, uma vez mais, um hipotético sinal de falta de maturidade da ciência da educa­ção. Não excluímos, por princípio, essa possibilidade. Porém, ela não deve servir, em circunstância alguma, para escamotear a complexidade presente da situação, sobretudo se a argumentação usada utilizar como dado principal o que aconteceu com outras ciências. Se assim proce­dermos, será grande a tentação de fazer inflectir o processo de evolução da investigação educacional, mas mais para que ela se conforme com modelos de cientificidade ideologicamente prestigiados (e, igualmente, discutíveis) do que para que considere as suas próprias especificidades e exigências. Uma actividade epistemológica deste tipo, se é interior a um dado conceito de ciência, é exterior à ciência da educação em si mesma!

Será bom nunca esquecer que a ciência da educação não pode estar só ao serviço de uma certa e determinada visão do mundo que lhe estrangule o seu objecto de estudo: um afunilamento deste é causa e conseqüência de um afunilamento antropológico, logo, de um empo­brecimento das finalidades e da acção educativa. Deste modo, os inves­tigadores da ciência da educação têm de proceder sempre a uma «racio­nalização do paradigma» que transitoriamente assumem, recusando um confinamento à mera prospecção das suas aplicações e estando em posição de constante abertura relativamente à introdução de novos paradigmas, mesmo que a vitalidade e a validade destes sejam apenas pressentidas.

Não se pense, entretanto, que estamos a adulterar grosseiramente o sentido da noção de paradigma: tentamos antes mostrar que, no plano da configuração do seu objecto, a ciência da educação não se pode

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submeter ao esboço histórico-sociológico dessa noção. De acordo com a óptica de Kuhn, o campo objectivo, problemático e problematiza-dor de uma dada disciplina científica dependeria fundamentalmente (e normalmente...) dos pressupostos teóricos e metodológicos que, à par­tida, o limitariam. Na investigação educativa, a filosofia nela integrada - sem ignorar esta situação - tem todavia como uma das suas principais missões exactamente tentar impedir que isso aconteça, socorrendo-se, para o efeito, da plena expansão do seu pluralismo: à medida que se «estrutura e precisa» um paradigma em «condições novas ou mais estritas» tem de haver, simultaneamente, a preocupação conseqüente (que procura contrariar, sem anular, as «resistências») de se criar as condições para a emergência e reconhecimento de novos paradigmas que assegurem a conflitualidade. A ciência da educação não tem assim como ideal a adopção de um paradigma. Privilegiará, pelo contrário, o confronto entre paradigmas, sendo a unanimidade sobre o conceito de educação inviável sem o recurso ao dogmatismo das ideologias filosóficas e (ou) científicas muito provavelmente aliadas a ideologias políticas. Mas, dentro deste cárcere, seria muito difícil continuar a falar--se de investigação científica...

Convém agora realçar e sintetizar algumas outras constatações fundamentais que fomos destacando ao longo das páginas do presente livro:

1. A pedagogia - ciência tradicional da educação - sofre toda uma evolução conducente à afirmação das ciências da educação. Transita-se assim, em primeira análise, de uma via unidis-ciplinar a uma outra multi ou pluridisciplinar que se exprime através de uma mutação terminológica, a qual passa, numa fase intermédia, pelas «ciências pedagógicas». A passagem do sin­gular ao plural é acompanhada, finalmente, por um lado, pelo abandono de um vocábulo («pedagogia»), por outro, pela introdução do termo «educação». Esta mutação não é mera­mente formal e prende-se com transformações que ocorrem tanto a um nível externo como a um nível interno: aquelas têm a ver com o progressivo reconhecimento e com a expansão das ciências sociais e humanas, estas com a reperspectivação dos próprios modelos de abordagem da problemática educacional,

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onde a observação e a experimentação começam a tomar a dianteira.

2. Assiste-se, deste modo, a uma obstinada ânsia de desvinculação dos modelos especulativos e normativos da filosofia e a uma tentativa paralela de aproximação das metodologias das ciên­cias positivas. A filosofia da educação sobrevive, em alguns casos, como uma companheira que, de todo em todo, não se consegue eliminar ou que se quer precipitadamente comprome­ter nos planos de ascensão do saber educacional à positividade.

3. Entretanto, a multidisciplinaridade dos estudos sobre os fenô­menos educativos solicita o estatuto interdisciplinar, o que é, aliás, aparentemente assegurado por um objecto comum: a edu­cação.

Duas hipóteses sobre o fundamento da interdisciplinaridade das ciências da educação foram colocadas: uma privilegia a própria natu­reza primitivamente interdisciplinar destas enquanto ciências sociais, outra valoriza precisamente o papel polarizador da educação como objecto de investigação comum. Todavia, ambas são, para nós, insatis­fatórias, pois nem uma interdisciplinaridade importada tem, à partida, garantias de sobrevivência legítima, desde que deslocada do seu contexto original, nem um objecto destituído ainda de um tratamento científico próprio pode assegurar uma relação transaccional recíproca, adequada e equilibrada entre as disciplinas que por ele se interessam e que impeça a mera imposição de esquemas epistemológicos alheios.

Se, para as ciências sociais e humanas tradicionais, como a socio­logia e a psicologia, esta questão não é, à partida, pertinente, o mesmo não se poderá dizer relativamente à investigação educacional que, tendo historicamente decorrido daquelas, não só em termos de méto­dos como da emergência do seu objecto não pode permanecer nessa situação sob pena de ficar condenada a uma menoridade que passaria agora a obstruir o seu desenvolvimento interno. A própria psicologia, por exemplo, para alcançar o seu estádio actual teve de se demarcar -para além da tradição metafísica - da forte hegemonia da ciência socio­lógica que o sistema comtiano havia ditado. Sabemos, com Piaget, que, através desta última circunstância histórica (a da sua submissão diante da sociologia), a psicologia beneficiou, sem dúvida, de uma revisão dos

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seus métodos, nomeadamente pela crítica ao valor da introspecção e, simultaneamente, de uma clarificação dos seus conteúdos objectivos pela incorporação das variantes sociais no estudo dos fenômenos mentais. Porém, ela teve de ultrapassar esta fase de confusão estatutária para se afirmar como ciência autônoma, o que não prejudicou - permitiu até -a exploração das relações interdisciplinares que mantém com a socio­logia.

Como também tivemos ocasião de referir, a indefinição episte-mológica da investigação educacional acaba por favorecer, inclusive, tentativas tardias e isoladas de usurpação, por parte de ciências sociais e humanas constituídas. Podemos explicar este facto exactamente pelos contornos vagos daquela investigação, os quais, sendo externamente detectados, a colocam à mercê dessas disputas. A psicologia, a socio­logia - e por que razão também não a filosofia? - passam, unilateral e redutoramente, a procurar executar as tarefas e as pesquisas de que os teóricos da investigação educativa, enquanto tais, se demitem. Há, assim, um evidente retrocesso, pois uma vez abandonada a pedagogia filosófica aparecem a pedagogia psicológica, a pedagogia sociológica e novaspedagogiasfilosóficas. Estas ambicionam instalar-se num domí­nio que tarda a ser ocupado por uma nova ciência. Se, presentemente, se continua a falar em «ciências da educação» é, em larga medida, porque nenhuma dessas disciplinas conseguiu concretizar o seu projecto hegemônico. Todas elas insistem, afinal, em abeirarem-se do estudo da realidade educativa.

Como explicar esta situação? É que a própria realidade educativa resiste a uma qualquer absorção de pendor reducionista. É mesmo esse o aspecto essencial que reflecte a expressão «ciências da educação». Há, com efeito, uma realidade educativa que as ciências humanas, no processo da sua evolução, reconheceram e esboçaram tacitamente enquanto objecto de uma indagação científica multidimensional. As pretensões reducionistas esbarram desta maneira, curiosamente, com a precedência e a persistência de um enfoque pluri disciplinar, também ele oriundo das ciências sociais constituídas.

Foi aqui que se delineou a possibilidade de se dar um salto em frente através da proposta de reconhecimento de uma ciência que con­sagre e promova o caracter multifacetado do objecto em causa. Para isso, há que abandonar, conforme vimos oportunamente, quer os pre-

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conceitos objectivistas de certos modelos de cientificidade, quer as ambições da filosofa em se afirmar como saber fundamentador, absoluto e dogmático, quer ainda a idéia de que as ciências da educação formam um subsistema decorrente dentro das ciências sociais. Não o fazendo, como será viável legitimar e tirar pleno proveito da intervenção da filosofia da educação? Esta interrogação é, para nós, central porque o fenômeno educativo, objecto-projecto de uma indagação científica autônoma, sendo um processo em que se entrecruzam três linhas de força capitais e que são os programas de investigação científica, os movimentos pedagógicos e as instituições e agentes educativos, é incompatível com esquemas de abordagem que o tentem limitar a uma realidade exterior e acabada, ou que procurem subordiná-lo a determi­nados (pre)conceitos (de homem e de sociedade) provenientes de uma filosofia prévia ou de ciências humanas que, não estando inteiramente vocacionadas para o seu estudo, não garantem que se contemplem as exigências.da sua própria especificidade. Por outro lado, se se margi­nalizarem as filosofias da educação em nome de programas de inves­tigação científica que procurem dar conta, directa e exclusivamente, da problemática geral que envolve as instituições e os processos educa­tivos, substituindo-se esses programas, em especial, aos movimentos pedagógicos precipitadamente atirados para o rol das ideologias, como meio de se conseguir a tão propalada neutralidade ideológica (e filo­sófica), o que acontece é que, indevidamente, se distorce a realidade educativa e se empobrecem esses mesmos programas desvirtuando, empolando e atomizando os seus objectivos. Finalmente - pela sua desinserção do contexto das finalidades - , criar-se-á um enorme fosso entre aquilo que eles propõem e a complexidade da prática visada, aspecto que a ciência da educação não pode descurar.

As filosofias da educação trazem para o terreno da investigação a conflitualidade que percorre e anima o desenrolar dos processos edu­cativos (implicam - sem fazerem perigar o distanciamento crítico - o investigador na prática e vice-versa), dando credibilidade e validade aos seus procedimentos. Isto porque evitam que estes se tornem simples instrumentos ao serviço do poder político instituído: a incorporação da dinâmica do confronto dos movimentos pedagógicos na investigação empreendida pela ciência da educação - através da(s) filosofia(s) da educação - tem um certo número de conseqüências importantes, desig-

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nadamente no que concerne à identificação e sistematização dos prin­cípios que os regem, com vista ao estabelecimento claro e esclarecido de finalidades educativas. Esta sistematização é, todavia, sempre revisí-vel no todo ou em parte, admitida que seja a existência de um plura­lismo filosófico.

Entretanto, será bom lembrar que a filosofia da educação não se circunscreve ao papel de recolher e organizar os princípios que, para além dela, se insinuam, para depois propor finalidades. Se assim fosse, ela acabaria por se descaracterizar sob a pressão tentacular de ideologias que, actuando soberanamente numa primeira instância, determinariam infalivelmente e de uma forma demasiado pesada todos os discursos que, numa fase posterior, se abeirassem dos seus conteúdos. Mais cedo ou mais tarde, a filosofia estaria a elaborar inventários de princípios favorecendo, contraditoriamente, a sua cristalização e a sua manipula­ção. A filosofia da educação tem, muito pelo contrário, que pesquisar incessantemente e em todo o lado o sentido dos conceitos de homem e de sociedade veiculados pelas diferentes correntes pedagógicas em presença sem deixar de nelas participar à partida, impulsionando, logo aí, a radicalização crítica, a reformulação e, eventualmente, a supera­ção dos mesmos.

Nestas circunstâncias, ela contribui para a não-ideologização inte­gral da investigação científica - significativamente, ao evitar os custos de uma sua pretensa neutralidade ideológica e filosófica que faria dela uma presa fácil porque desprevenida - e para a passagem - ainda que incompleta - das filosofias implícitas (que, enquanto tal, correm igual­mente o risco de se afundarem no domínio das ideologias) para a área das filosofias explícitas, isto é, das filosofias que, conscientemente, apostam na prossecução de um determinado conjunto de valores e de uma certa visão do mundo, com a maior independência possível em relação ao poder instituído. Diga-se de passagem que, na nossa opinião, uma filosofia implícita, ao não identificar a sua própria visão do mundo e as suas premissas, contrapondo-se às demais, não chega a escapar ao território das ideologias. O que a distingue de outras formas de ideolo­gia, concretamente daquelas que subjazem à investigação científica reducionista, é precisamente o facto de poder transitar para o plano da reflexão filosófica por excelência, se obedecer aos requisitos acima descritos. Outras formas de ideologia (sendo já formas deturpadas e

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adulteradas de filosofias explícitas pré-existentes ou que nunca chega­ram a configurar-se como tal) carecem de potencialidades críticas ou de projectos novos e alternativos. Representam mesmo, pelo seu vector dogmático, um dos mais importantes entraves que encontramos para a produção filosófica plural.

A filosofia da educação assegura também a dialéctica sujeito--objecto assumida, aliás, cada vez mais, por amplos sectores da inves­tigação científica contemporânea. As tonalidades antropológicas e epis-temológicas da filosofia da educação (em íntima conexão com os vecto-res sociológico, biológico, psicológico, histórico, etc.) brotam mesmo daquela dialéctica, ao mesmo tempo que a implementam (')•

Assim, poderemos concluir que o trânsito que continuamente fize­mos da epistemologia para a pedagogia e para a antropologia (e vice--versa) não resultou de uma confusão de perspectivas de análise. Foi apenas expressão da tentativa de transposição, para a dinâmica do discurso, da complexidade da problemática que o motivou. Contra os estrangulamentos simplificadores e simplistas que rejeitámos.

(') A ciência da educação está, deste modo, em condições de responder a preo­cupações adiantadas pelo movimento da investigação-acção. Referimo-lo aqui porque consideramos que ele corporiza algumas das grandes tendências das pesquisas educativas dos nossos dias. Eis, em síntese, os tópicos fundamentais desta linha de investigação:

- A investigação, em função de um projecto, não deve visar somente a produção de conhecimentos, mas também a transformação dos grupos humanos abrangidos pelo problema que se está a tratar.

- A ciência não é neutra; a implicação dos investigadores torna-os, a eles também, objectos de estudo.

- A investigação debruça-se sobre uma prática social concreta, isto é, que não é apenas criada para efeito de verificação.

- É necessária a utilização de um extenso leque de referências teóricas e meto­dológicas.

- Pode haver uma produção de conhecimentos científicos sem que, para isso, tenhamos de renunciar ao objectivo de impulsionar transformações situáveis dentro de sistemas de valores.

- O conhecimento resulta de relações que se estabelecem entre a investigação e a acção, a teoria e apráxis, o sujeito e o objecto, pelo que tem de admitir-se um pensamento dialéctico, um pensamento do conflito, que tente integrar o que a ciência tradicional­mente excluiu.

O modelo de cientificidade da investigação-acção demarca-se decididamente, conforme se pode constatar, do paradigma objectivista e poderemos classificá-lo mesmo como sendo interaccionista.

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ANEXO

PLURALISMO FILOSÓFICO: ALCANCE E SIGNIFICADO

DE UM PRINCÍPIO

Será que J. F. Revel tem realmente razão quando diz que «os filósofos são tão ávidos em contestarem a qualidade de "verdadeiro" filósofo uns aos outros como em a atribuírem a todos em bloco desde o momento em que se trate de se defenderem contra pessoas do exterior» (Pourquoi les Philosophes?, p. 164)? Em caso afirmativo, tanto o alcance como o significado do princípio do «pluralismo filosófico» ficariam sensivelmente diminuídos pois este não passaria de um mero expediente de circunstância. Não recusamos a possibilidade de que muitas vezes ele não seja mais do que isso. Simplesmente, o pluralismo que aqui defendemos demarca-se de qualquer estratégia conjuntural para se afirmar enquanto princípio fundamental da actividade filosófica. Impõe--se, por isso, que esmiucemos o seu sentido.

«Da mesma maneira que o homem é todos os homens, a filosofia é todas as filosofias». Esta frase de Étienne Souriau sintetiza, com oportunidade, através da analogia que contém, a essência do pluralismo filosófico tal como o concebemos. Contudo, a analogia proposta, se não for suficientemente clarificada, pode fazer com que, uma vez formal­mente admitida a diversidade dos discursos filosóficos, esta seja depois encoberta e, finalmente, desprezada em favor de uma unificação neces­sariamente conduzida pela corrente dominante. Não foi isto, afinal, o que aconteceu com o humanismo renascentista que, enfrentando a diversidade, a afrontou? Longe de conter e de contemplar uma hete-rogeneidade de homens (e de culturas), não os submeteu a todos às perspectivas e aos ideais próprios do homem ocidental? Prosseguindo a análise da comparação adiantada por Souriau, teremos que, do mesmo modo, uma «filosofia que é as filosofias» pode pressupor também um

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ecletismo tendencioso que distorça e subjugue a conflitualidade exis­tente entre correntes diferentes anulando as respectivas zonas de fricção em proveito de uma determinada visão do mundo a qual, na prática, não dando voz activa a todas as outras que dela divergem, as faz surgir como resultado de desacordos de pormenor em tudo ou em quase tudo transponíveis e resolúveis no seu seio: da divergência passa-se assim perigosamente para a convergência, ilusória e demagógica, mas sempre cômoda e convidativa.

Atento a estes possíveis desvios, Souriau precisa, em UAvenir de Ia Philosophie, o seu pensamento. Vale a pena acompanhá-lo.

Depois de acentuar o compromisso que existe entre a filosofia e o futuro do homem, que aquela «escuta» temerariamente, ajudando-o a libertar-se da confusão da conjuntura, não através de um saber resolu-tivo, mas de um saber problematizador; depois de reforçar a importân­cia da «polidoxia filosófica» frente às várias ameaças que o dogma-tismo introduz; depois de chamar a atenção para o caracter «ubiquitário» da filosofia, isto é, para o facto de ela ocupar, no tempo e no espaço, «todo o humano na sua integridade», E. Souriau escreve: «Se a filosofia subsiste - e ela subsistirá - isto só pode acontecer adoptando e man­tendo uma atitude Io combativa, 2o inventiva, 3o integrativa» (p. 296). Estes três parâmetros definem, no seu conjunto, a noção de pluralismo filosófico. Vejamos, então, o que significa cada um deles.

Combatividade. Refere-se sobretudo ao posicionamento da filosofia diante dos seus inimigos. Desastrosamente para ela, esta combatividade é muitas vezes posta ao serviço de uma tese filosófica apenas com o intento de destruir as que dela discordam. Tal fenômeno tem duas conseqüências igualmente negativas e que se reforçam uma à outra: diminui-se a disputa interna e descura-se a agressividade perante os autênticos detractores do saber. A primeira faz definhar um espaço de polêmica necessário para o amadurecimento de perspectivas e para o despoletar de alternativas superadoras dos impasses constatados; a segunda abre brechas por onde se infiltram disputas estéreis e pola-rizadoras de energias que, deste modo, se desperdiçam. «E próprio da arte filosófica atingir a totalidade na sua sistemática, e não abrandar a dinâmica conflitual» (p. 297).

Capacidade inventiva. «A filosofia deve permanecer inventiva ou morrer», quer dizer, ela não pode cair no erro de querer impor uma

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ordem linear à história do pensamento passado ou actual. A audácia e o inconformismo inerentes, pelo menos potencialmente, a todos os grupos humanos organizam-se e projectam-se assim na construção de discursos filosóficos continuamente desconstruídos por discursos anta­gônicos, o que assegura, pela e na conflitualidade, a dinâmica da filo­sofia e do próprio homem. Filosofar e sempre problematizar, o mesmo é dizer não se quedar pela passividade ou pela submissão amorfa. A filosofia exprime e reforça esse inconformismo, já que ele pode ser ameaçado por constrangimentos de vária ordem, mas que invariavel­mente se filiam na institucionalização doutrinária de uma corrente filo­sófica (que, desta forma, deixa automaticamente de o ser para passar a pertencer à região das ideologias) ou numa ideologia externa com a qual a filosofia não deve, por qualquer meio, pactuar. Estão no primeiro caso os desenvolvimentos ideológicos da filosofia aristotélica na Idade Média, da filosofia kantiana nas universidades napoleónicas e, mais recentemente, da teoria nietzscheana; está no segundo caso o cientismo.

«A audácia de se revoltar contra a tese oficialmente aprovada ou socialmente preconizada pelo sucesso pode ser um grande móbil de inventividade» (pp. 298-299).

Vocação integrativa. Esta vertente da atitude filosófica encontra--se profundamente ligada às anteriores. Aliás, todas elas formam um conjunto coeso dificilmente discernível. Mas este último aspecto é o que reflecte com mais clareza a importância e a natureza da «polidoxia filosófica». E. Souriau define-o dizendo que é «uma das tarefas essenciais da vitalidade filosófica subsistente manter em dia o quadro exaustivo e sistemático de todas as grandes opiniões, sem, por causa disso, amortecer, mas, pelo contrário, detectando por isso cuidadosamente os antagonismos que fazem a tensão interior da filosofia» (p. 299).

Salvaguardado este parâmetro, podem todos os novos contributos esperar e encontrar curiosidade activa por parte dos meios filosóficos em vez de hostilidade e de desprezo. Nestes termos, a «integração filo­sófica» é sinônimo de receptividade e condição de vitalidade enquanto isto signifique que ela consagra a inovação e fomenta o debate. Debate de que beneficia não só a filosofia como o saber em geral. Claro que se levantam aqui imensas dificuldades, nomeadamente as que se prendem com uma necessidade que se vai sentir, mais cedo ou mais tarde, de encontrar um suporte referencial para a filosofia que permita seleccionar

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o que deve ser integrado e o que deve ser excluído para que se não instaure a confusão e o oportunismo desgastantes no lugar da diversidade conflitual, mas construtora.

Será muito difícil encontrar uma resposta e delinear um critério que satisfaça essa preocupação, pois corre-se o risco de se apresentar uma definição de filosofia que, ao servir posteriormente de grelha dis­criminatória, aniquile precisamente o pluralismo e a polidoxia filosó­ficos. A ser verdade que há tantas definições de filosofia quantos os filósofos, afigura-se-nos ainda por cima pouco coerente que fôssemos exactamente nós a indicar o paradigma aferidor da extensão possível da integração filosófica. Sendo todavia imprescindível também que a filo­sofia evite interferências ideológicas de que não tome consciência, urge encontrar uma plataforma mínima que caracterize a sua identidade sem afectar a sua diversidade constitutiva. Dentro destes condicionalismos, julgamos que só serão legítimas exigências que provenham do próprio desdobramento do conteúdo do princípio de base adoptado, isto é, do princípio do pluralismo filosófico, o qual representa fundamentalmente uma atitude metodológica. Assim, é filosófica toda a reflexão que não vise eliminar, através de instrumentos ideológico-institucionais, as opi­niões divergentes. Este perigo ocorre quando se aspira a ocupar todo o terreno da produção filosófica, desprezando-se as atitudes oriundas de um esforço de descentramento relativamente às posições dominantes e que, ao não se esgotarem nas soluções encontradas, buscam vias novas de problematização e de proposição de finalidades impulsionadoras, mobilizadoras e superadoras das capacidades de conhecimento e de acção existentes. Atitudes estas que são precisamente aquelas onde reside a vitalidade da filosofia (').

(') Sobre este assunto e a propósito de Deleuze, escreveu J. N. Vuarnet: «Contra a valorização do que permanece idêntico a si, afirma-se a escuta da diferença: por palavras inauditas, talvez inaudíveis, de um para além o Verdadeiro e o Falso, de uma filosofia impura, o logos, de uma (impossível?) tentativa de saída.

Se Sócrates é "o que não escreve" e Platão o que não faz gestos, se o cínico e o estóico não ensinam mais do que o exemplo, sonha-se, depois de Nietzsche, com um filósofo outro: professor como os sofistas, mas ponderado como um mestre do Zen, escritor como pessoa, este filósofo (seria ele ainda um filósofo?), identificando escrita e medicina, não seria mais identificável, a sua pregação situando-se aquém ou além da tese e do sistema, operando menos na lógica e buscando menos a convicção do que a

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A filosofa sem limites ou o pluralismo filosófico não será uma simples panaceia usada para encobrir uma tomada de posição que só na aparência se distinguiria daquelas a que se diz opor e que, nestas cir­cunstâncias, recorreria à categoria das ideologias (enquanto adjectiva-ção da produção divergente) como arma para impedir a polidoxia filo­sófica de ultrapassar as barreiras de um monolitismo envergonhado e encapotado que albergaria apenas as versões consentidas. O pluralismo filosófico não define os conteúdos de uma qualquer «visão do mundo» para que ela possa ser acolhida no seu seio. Se, como diz Morin, «a questão "o que é a ciência?" não tem uma resposta científica», no sen­tido de que não tem uma resposta rigorosa e concludente, também é verdade que a questão «o que é a filosofia?», por maioria de razão, não pode ter uma resposta filosófica firme. Isto não quer dizer que, por tal motivo, ela possa ser encontrada para além da filosofia: pelo contrário, toda a problemática que a envolve permanece nela como tal. Por isso é que o pluralismo, na produção filosófica, só tem um limite: o do próprio pluralismo.

O reconhecimento e a implementação deste princípio permitirão o incremento e o desanuviamento de novos rumos para a filosofia. Desembaraçada do «fantasma da ortodoxia», ela pode desenvolver, por exemplo, as chamadas «filosofias implícitas» e acolher com renovado empenho uma «filosofia do direito», uma «filosofia da física» ou uma «filosofia da educação» que, embora freqüentemente presentes na cons­trução dos grandes sistemas, deles se limitaram a receber as conse-

violência e a gargalhada. Deste filósofo sonhado diremos não só que é "médico" mas também "artista", não porque ele tenha relação directa com a produção ou com o consumo daquilo a que se chama Belas-Artes, mas porque ele "inventa novas pos­sibilidades de vida", porque cria valores. Um tal filósofo seria, certamente, tido como culpado do ponto de vista da moral e do sério, expor-se-ia a muitos perigos, a muitas angústias. (...) Pertenceria, sem dúvida, a um mundo ao contrário, Nietzsche disse-o magnificamente, quem foi e quem não foi um tal filósofo (- "este é o preço de se ser artista..."). Certamente, uma tal inversão dos valores de todo o mundo, haveria que a pagar pela angústia de uma discordância que repete a possibilidade de uma discordância entre a Verdade e "a arte". Em contrapartida: o delírio. Surgiriam no delírio, na violência, ou no rir, as figuras múltiplas do não-platonismo, as forças novas... (...)

"Há nos nossos dias tais filósofos, houve alguma vez tais filósofos? - não é preciso que os haja um dia?"» («Metamorphoses de Sophie», in UArc, n.° 49, pp. 35 e38).

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quências oriundas de formulações teórico-conceptuais mais amplas sem nunca se conseguirem afirmar como detentoras de problemáticas próprias ainda que, naturalmente, sem serem impermeáveis àquelas.

Será, então, que o âmbito da filosofia se alarga? Pensamos que não é exactamente isso que agora acontece, melhor dizendo, pensamos que não estamos diante de uma recém-criada dilatação objectiva do terreno da reflexão filosófica. Trata-se sobretudo, conforme acima afirmámos, de um reconhecimento, que qualificaremos de epistemológico, de um trabalho que há muito a filosofia desenvolve, mas que preconceitos, cuja natureza já em parte elucidámos, desvirtuaram ou escamotearam proclamando, respectivamente e apesar de tudo, ou a sua auto-suficiên-cia dentro das amarras de uma filosofia fundamental, ou a sua subalter-nidade. Assim se compreenderá que para o despoletar deste reconheci­mento epistemológico muito pouco contribuíram e contribuem, segundo o nosso ponto de vista, os filósofos consagrados como tais, enquanto forem prisioneiros dos referidos preconceitos.

Mas a ratificação efectiva destas áreas de reflexão não deixará de ter implicações importantes na investigação em causa, pois, identifi­cando-as e abrindo-as decidida e esclarecidamente ao labor filosófico, permitirá uma coordenação e uma motivação de esforços dispersos ou delas afastados, os quais darão lugar ao rasgar de novas perspectivas.

Entretanto, outras razões não serão também estranhas às resistências que se opõem a este reconhecimento, designadamente as que se filiam numa recusa da inserção da filosofia, com todas as suas abstracções, no conjunto das práticas (teóricas) culturais e sociais. Receosa das dificuldades que daí decorreriam, a filosofia procurará libertar-se de uma configuração doutrinária, o que, porém, serviu para a remeter para o espaço de um universo teórico especulativo-metafísico. Esta «ilusão especulativa» forma-se, segundo Althusser (cf. PourMarx, pp. 186-197), com a assimilação ilegítima de dois processos distintos, do processo abstracto de autogénese do conceito com o processo concreto de auto-génese do real, sob o comando do primeiro dos dois. Todavia, a superação do idealismo especulativo e dogmático não se fará pela simples inversão da situação relativa dos termos através da qual a questão da formação dos conceitos foi posta. A ruptura aparecerá somente com a ratificação de uma prática teórica que consagre a dialéctica entre a «generalidade abstracta» e a «generalidade concreta» dos conceitos. A inserção social

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da filosofia, como aliás das diferentes actividades do conhecimento científico, procura ser uma resposta à separação imaginária (em relação às contingências económico-político-sociais) que os filósofos tradicio­nalmente cultivaram. Por seu intermédio, estes reivindicaram um esta­tuto de superioridade. Contudo, em alternativa (desesperada) aos modos de filosofar dominantes, não há que propor a possibilidade de sairmos «para fora» da filosofia (2). Quer se queira quer não, as suas abstracções, as suas interpretações, integram e condicionam o nosso universo. Não nos podemos colocar do lado de fora da filosofia assim como não o podemos fazer, por exemplo, relativamente ao nosso «inconsciente», tal como a psicanálise nos ensinou. Mas tudo isto também não para que aceitemos passivamente, submissamente, os «discursos absolutos» das

(2) D. Lecourt debruçou-se, dentro de certa medida, sobre esta problemática, desenvolvendo, a propósito, umas tantas considerações que importa trazer aqui ao de cima. Primeiro de tudo. este autor adverte que, embora ao longo dos seus textos (refere--se precisamente aos que fazem parte da obra La Philosophie sans Feinte, da qual extraímos estas suas posições) exista algo que é colocado «fora» da filosofia, isso acontece precisamente para que se possa denunciar o mecanismo que permite tal ilusão. De facto, «si Ia philosophie a un "dedans", elle n'a en un sens aucun dehors: qu'elle est un dedans sans dehors» (p. 9). Mas como esta perspectiva, exposta somente desta maneira, enfermaria, em última análise, dos mesmos vícios daquela que se quer denunciar, D. Lecourt exprime-se, de seguida, em termos mais precisos, delimitando melhor o seu ponto de vista, Diz-nos, assim, que a relação entre o «dentro» e o «fora» da filosofia «n'est pas à penser comme un rapport de dedans à dehors; que donc on ne peut, à proprement parlei", en "sortir"» (ibid., p. 9).

As «abstracções» filosóficas inserem-se (e participam), inevitavelmente, na prá­tica social. Há aqui, desta forma, um projecto claro de dessacralizcição da filosofia. Esta, sacrificando a amplitude das suas origens concretas, volatilizava-se assegurando, simultaneamente, a extensão da sua acção e o reforço das posições de poder, em espe­cial pela radicalização das abstracções da linguagem que escamoteiam, com freqüência, na complicada teia das dicotomias implícitas, o concreto do abstracto em função do abstracto concreto.

Acrescente-se que é no contínuo recurso a termos importados da linguagem corrente, acompanhado de uma alteração de sentido destes, conexa com a rede concep-tua! própria de cada escola - sendo difícil ou até impossível a extrapolação dos mesmos para o vocabulário de uma outra escola concorrente (está aí uma das causas da ausência de «refutação» em filosofia) - que encontramos a base dos infindáveis desacordos e disputas entre os discursos filosóficos. É esta situação que leva D. Lecourt a afirmar que a «filosofia dos filósofos» aparece como «um discurso que soa estranho e profundo cujas palavras solenes se repercutem através dos séculos segundo o segredo de um código que cativa ou enfurece os não-iniciados» (idein, p. 10).

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ÍNDICE

PREFáCIO, por Louis Not 7

INTRODUçãO à 3.A EDIçãO 11

INTRODUçãO à 1/ EDIçãO 21

CAPíTULO I

Nas Encruzilhadas das Ciências Humanas 29

CAPíTULO II

Apogeu e Queda do Objectivismo Científico 43

CAPíTULO III

Ciências Humanas: a Indecisão de um Estatuto ou o Estatuto da Indecisão 65

CAPíTULO IV

Das Ciências Humanas à(s) Ciência(s) da Educação 79

CAPíTULO V

Em Torno do Estatuto da Filosofia da Educação 109

CAPíTULO VI

Projectos, Objectos e Modelos em Educação 129

CAPíTULO VII

Na Confluência da Epistemologia e da Antropologia, o Desafio das Pedagogias do Projecto 159

CAPíTULO VIII Formação de Professores: um Exemplo das Limitações do Cientismo .. 173

CAPíTULO IX

Pressupostos e Horizontes do Paradigma Ecológico em Educação 191

CONCLUSãO 203

ANEXO

Pluralismo Filosófico: Alcance e Significado de um Princípio 213

BIBLIOGRAFIA 221

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