Caso Do Vestido

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    DESFIANDO O CASO DO VESTIDO, UM POEMA DRUMMONDIANO

    Joo Pedro Fagerlande

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Letras Vernculas da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,

    como parte dos requisitos necessrios obteno

    do ttulo de Mestre em Letras Vernculas

    (Literatura Brasileira).

    Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos Secchin

    Rio de Janeiro

    Julho de 2011

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    DESFIANDO O CASO DO VESTIDO, UM POEMA DRUMMONDIANO

    Joo Pedro Fagerlande

    Orientador: Professor Doutor Antonio Carlos Secchin

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras Vernculas da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios

    obteno do ttulo de Mestre em Letras Vernculas (Literatura Brasileira).

    Examinada por:

    ___________________________________

    Presidente, Prof. Antonio Carlos Secchin

    ___________________________________

    Prof. Jorge Fernandes da Silveira

    ___________________________________

    Prof. Marco Americo Lucchesi

    ___________________________________

    Prof. Srgio Fuzeira Martago Gesteira (Suplente)

    ___________________________________

    Profa. Angelica Maria Santos Soares (Suplente)

    Rio de Janeiro

    Julho de 2011

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    Fagerlande, Joo Pedro.

    Desfiando o Caso do vestido, um poema drummondiano /Joo Pedro Fagerlande - Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2011.

    ix, 87f.:29,7 cm.

    Orientador: Antonio Carlos Secchin

    Dissertao (mestrado) UFRJ/ Faculdade de Letras/Programa de Ps-graduao em Letras Vernculas, 2011.

    Referncias Bibliogrficas: f. 85-87.

    1. Poesia brasileira. 2. Crtica. I. Fagerlande, Joo Pedro. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Ps-graduao.

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    RESUMO

    Desfiando o Caso do vestido, um poema drummondiano

    Joo Pedro Fagerlande

    Orientador: Antonio Carlos Secchin

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao

    em Letras Vernculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

    UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Literatura Brasileira.

    A dissertao analisa detidamente o poema Caso do vestido, publicado por

    Carlos Drummond de Andrade no volumeA rosa do povo. O estudo apresenta e discute

    os recursos poticos empregados no texto de modo a evidenciar o vigor artstico de sua

    construo.

    Palavras chave: Poesia brasileira Crtica Carlos Drummond de Andrade A rosa do

    povo Caso do vestido

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    ABSTRACT

    Raveling out Caso do vestido, a drummondian poem

    Joo Pedro Fagerlande

    Orientador: Antonio Carlos Secchin

    Abstractda Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao

    em Letras Vernculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

    UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Literatura Brasileira.

    The dissertation critically analyses the poem Caso do vestido, published by

    Carlos Drummond de Andrade inA rosa do povo. The study presents and discusses the

    poetry resources applied/created by the text, in order to understand its artistic value.

    Keywords: Brazilian poetry Criticism Carlos Drummond de Andrade A rosa dopovo Caso do vestido

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    Aos deuses da poesia

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    Agradecimentos

    A meus pais, meus geradores;

    a meu irmo, avesso e complemento;

    a Antonio Carlos Secchin, meu professor em poesia;

    a Olvia Guedes, pela amiga leitura;

    aos queridos professores: Cinda Gonda, Dau Bastos, Eucana Ferraz, Jorge Fernandes

    da Silveira, Luiz Edmundo Bouas Coutinho, Marco Lucchesi, Maria Lcia Leito,

    Mnica Fagundes, Ronaldo Lima Lins, Ronaldes de Mello e Souza, Srgio Martago

    Gesteira;

    aos queridos camaradas: Celme de Alcntara, Daniel Gil, Diego Rezende, Douglas

    Eleutrio, Eduardo Rosal, lida Fernandes, Estela Rosa, Fernanda Drummond, Gregory

    Costa, Iaci Sagnori, Irene Milhomens, Joo Guilherme, Joo Pedro de S, Julia Pastore,

    Liana Carreira, Maria Ca, Natlia Gama, Paula Jasmin, Paula Leijoto, Pedro Poranga,

    Rafael Nunes, Renato Pardal, Rogrio Amorim, Rosangela Val, Tessi Gomes, Tiago

    Okassian, Tio Macedo, Vladimir Arago, Wanessa Ribeiro.

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    me conta por que mistrio

    amor se banha na morte

    Drummond

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    SUMRIO

    Caso do vestido, 10

    1- Introduo, 15

    2- O ttulo, 19

    3- Mtrica, 26

    4- Anlise passo a passo, 37

    5- O poema na obra drummondiana, 72

    6- Consideraes finais, 80

    Anexo, 81

    Bibliografia, 85

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    Caso do Vestido

    Nossa me, o que aquelevestido, naquele prego?

    Minhas filhas, o vestidode uma dona que passou.

    Passou quando, nossa me?Era nossa conhecida?

    Minhas filhas, boca presa.Vosso pai evm chegando.

    Nossa me, dizei depressa

    que vestido esse vestido.

    Minhas filhas, mas o corpoficou frio e no o veste.

    O vestido, nesse prego,est morto, sossegado.

    Nossa me, esse vestidotanta renda, esse segredo!

    Minhas filhas, escutaipalavras de minha boca.

    Era uma dona de longe,vosso pai enamorou-se.

    E ficou to transtornado,se perdeu tanto de ns,

    se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,

    chorou no prato de carne,bebeu, brigou, me bateu,

    me deixou com vosso bero,foi para a dona de longe,

    mas a dona no ligou.Em vo o pai implorou.

    Dava aplice, fazenda,dava carro, dava ouro,

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    beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.

    Mas a dona nem ligou.Ento vosso pai, irado,

    me pediu que lhe pedisse,a essa dona to perversa,

    que tivesse pacinciae fosse dormir com ele...

    Nossa me, por que chorais?Nosso leno vos cedemos.

    Minhas filhas, vosso paichega ao ptio. Disfarcemos.

    Nossa me, no escutamospisar de p no degrau.

    Minhas filhas, procureiaquela mulher do demo.

    E lhe roguei que aplacassede meu marido a vontade.

    Eu no amo teu marido,

    me falou ela se rindo.

    Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,

    s pra lhe satisfazer,no por mim, no quero homem.

    Olhei para vosso pai,os olhos dele pediam.

    Olhei para a dona ruim,os olhos dela gozavam.

    O seu vestido de renda,de colo mui devassado,

    mais mostrava que escondiaas partes da pecadora.

    Eu fiz meu pelo-sinal,me curvei... disse que sim.

    Sai pensando na morte,mas a morte no chegava.

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    Andei pelas cinco ruas,passei ponte, passei rio,

    visitei vossos parentes,no comia, no falava,

    tive uma febre ter,mas a morte no chegava.

    Fiquei fora de perigo,fiquei de cabea branca,

    perdi meus dentes, meus olhos,costurei, lavei, fiz doce,

    minhas mos se escalavraram,meus anis se dispersaram,

    minha corrente de ouropagou conta de farmcia.

    Vosso pai sumiu no mundo.O mundo grande e pequeno.

    Um dia a dona soberbame aparece j sem nada,

    pobre, desfeita, mofina,

    com sua trouxa na mo.

    Dona, me disse baixinho,no te dou vosso marido,

    que no sei onde ele anda.Mas te dou este vestido,

    ltima pea de luxoque guardei como lembrana

    daquele dia de cobra,da maior humilhao.

    Eu no tinha amor por ele,ao depois amor pegou.

    Mas ento ele enjoadoconfessou que s gostava

    de mim como eu era dantes.Me joguei a suas plantas,

    fiz toda sorte de dengo,no cho rocei minha cara,

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    me puxei pelos cabelos,me lancei na correnteza,

    me cortei de canivete,me atirei no sumidouro,

    bebi fel e gasolina,rezei duzentas novenas,

    dona, de nada valeu:vosso marido sumiu.

    Aqui trago minha roupaque recorda meu malfeito

    de ofender dona casadapisando no seu orgulho.

    Recebei esse vestidoe me dai vosso perdo.

    Olhei para a cara dela,quede os olhos cintilantes?

    quede graa de sorriso,quede colo de camlia?

    quede aquela cinturinha

    delgada como jeitosa?

    quede pezinhos caladoscom sandlias de cetim?

    Olhei muito para ela,boca no disse palavra.

    Peguei o vestido, pusnesse prego da parede.

    Ela se foi de mansinhoe j na ponta da estrada

    vosso pai aparecia.Olhou pra mim em silncio,

    mal reparou no vestidoe disse apenas: Mulher,

    pe mais um prato na mesa.Eu fiz, ele se assentou,

    comeu, limpou o suor,era sempre o mesmo homem,

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    comia meio de ladoe nem estava mais velho.

    O barulho da comidana boca, me acalentava,

    me dava uma grande paz,um sentimento esquisito

    de que tudo foi um sonho,vestido no h... nem nada.

    Minhas filhas, eis que ouovosso pai subindo a escada.

    (in:ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008)1

    1Sempre que fizermos referncia aos poemas de Drummond, tomaremos como base esta edio.

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    1 - Introduo

    No livro O observador no escritrio(1985), dirio em que Carlos Drummond de

    Andrade aborda temas de ordem principalmente poltica e literria, h um texto

    correspondente ao dia 10 de novembro de 1944 em que o poeta comenta uma carta

    recebida de Otto Maria Carpeaux, tratando da questo das composies longas na

    poesia moderna. Dirigindo-se a Drummond, Carpeaux afirma:

    o poeta no muda de forma, no pode mudar; e a forma de voc e ser o versolivre. Agora, o verso livre se mantm em equilbrio numa poesia de tamanho curto,at mdio. Os poemas de tamanho grande precisam dum apoio formal, para no sedilurem

    (p.15)

    Conforme registrado no dirio, o crtico acrescenta carta: Ento, lembro-me

    de que aqueles poucos poemas longos dos quais gosto (...) so poemas narrativos.

    (p.16). Aps citar a observao, Drummond formaliza um seco e instigante: A

    meditar.

    Embora o poeta mineiro tenha empregado majoritariamente o verso livre em

    suas composies publicadas at a chegada da carta de Carpeaux, ele j havia escrito

    poemas regularmente metrificados, inclusive em seu livro de estreia,Alguma poesia(cf.

    Cantiga de vivo p.14). No mesmo volume, o autor, em fase modernista, flertara com

    a forma fixa at num de seus mais famosos versos, o decasslabo

    disse: Vai, Carlos! ser gauchena vida.

    (Poema de sete faces p.5)

    passando pelos dsticos eneassilbicos e octossilbicos de Toada do amor (p.8)

    E o amor sempre nessa toada:briga perdoa perdoa briga(...)Mariquita, d c o pito,No teu pito est o infinito.

    pelos novamente octossilbicos de Poema que aconteceu (p.17)

    nenhum problema nesta vida

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    o mundo parou de repenteos homens ficaram caladosdomingo sem fim nem comeo.

    A mo que escreve este poemano sabe que est escrevendo

    pela redondilha maior em Balada do amor atravs das idades (p.29)

    para matar seu irmo.Matei, brigamos, morremos.

    Virei soldado romano,perseguidor de cristos.Na porta da catacumbaencontrei-te novamente.

    dentre outros exemplos que demonstram que sua potica j apresentava, ainda que

    latente, um importante componente mtrico. Carpeaux, escrevendo a carta em 1944,

    no dispunha da viso que ora temos sobre o processo mtrico regular na obra

    drummondiana que alcanaria maturidade principalmente em Claro enigma, de 1951

    , da incorrer na problemtica afirmativa: a forma de voc e ser o verso livre.

    Contudo, a opinio do crtico de que o poema longo deve se sustentar por meio

    de uma narrativa metrificada sensibilizou Drummond, que se ps A meditar sobre o

    assunto.

    No podemos afirmar categoricamente que a carta levou o poeta a escrever

    poemas de tal natureza. Porm, propondo-nos a analisar um dos mais consagrados

    textos drummondianos que seguem essa linha Caso do vestido, de A rosa do povo,

    de 1945 , no temos como desconsiderar as observaes de Carpeaux, dirigidas ao

    escritor mineiro antes da publicao do livro.

    Um crtico que comentou o desenvolvimento do poema longo na obradrummondiana foi Joaquim-Francisco Colho (1973), registrando que, desde 1930, os

    textos

    aumentam pouco a pouco de tamanho, numa linha evolutiva cujo ponto alto, depoisde passar por Sentimento do mundo, estar nas grandes odes deA rosa do povo.

    (p.48)

    Os poemas longos chegam a constituir maioria em A rosa do povo; destes,

    porm, a minoria segue os preceitos sugeridos por Carpeaux.

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    Uma tambm importante caracterstica do livro a presena de composies

    com forte empenho poltico, como evidencia o desfecho de Nosso tempo:

    O poeta

    declina de toda responsabilidadena marcha do mundo capitalistae com suas palavras, intuies, smbolos e outras armaspromete ajudara destru-locomo uma pedreira, uma floresta,um verme.

    (p.130)

    O famoso poema Morte do leiteiro (p.168 a 170) tambm compartilha de tal

    empenho, ao configurar a cena de assassinato de um humilde (veio do ltimosubrbio) trabalhador confundido com um ladro pelo qual o eu-lrico nutre

    simpatia:

    Bala que mata gatunotambm serve pra furtara vida de nosso irmo.

    A denncia poltico-social fica ainda mais clara num verso logo posterior ao

    assassinato: Est salva a propriedade..

    Lembremos que o contexto de escritura de tais poemas a Segunda Guerra

    Mundial, que, observada sob o esprito de denncia, deixa suas marcas:

    Meus olhos so pequenos para vero general com seu capote cinzaescolhendo no mapa uma cidadeque amanh ser p e pus no arame.

    (Viso 1944 p.205)

    A guerra responsvel por versos de expressiva dramaticidade, como soldados

    se matam / no centro da cidade vencida (Idade madura p.191).

    Outros textos que colaboram para criar um imaginrio de forte conotao

    poltica com nfase no comunismo so Carta a Stalingrado (p.201), Telegrama

    de Moscou (p.202) e Com o russo em Berlim (p.208 a 210). Ressaltemos, porm,

    que o carter poltico-social no abarca todos os poemas da obra, que incidem em

    diversos assuntos, como a metapoesia, a famlia, a memria, dentre outros.

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    Sobre o aspecto poltico, vale a pena evocarmos as palavras de Sebastio Ucha

    Leite (1978):

    A adeso poltica, que em outros poetas assumiu s a atitude de manifesto, assume

    em Drummond uma feio mais retorcida. Rosa do povo ultrapassa a visopartidarista. Nem pessimista nem otimista, essa viso sobretudo crtica econflitiva.

    (p.280)

    CDV2

    O poema, contudo, a no se esgota. O que nos impressiona no texto no so

    apenas os temas discutidos, mas principalmente o vigor artstico de sua composio,

    construdo atravs de mecanismos poticos dos mais sofisticados ao mesmo tempo em

    que apresenta considerveis marcas da linguagem popular.

    poema inserido nessa linhagem, no sentido de denncia de uma

    realidade scio-histrica patriarcal que oprime a mulher. Evitando o cunho panfletrio,

    o texto se constitui atravs de uma linguagem crtica e conflitiva, servindo para

    problematizar as relaes familiares.

    Nossa dissertao pretende, nesse sentido, analisar os procedimentos

    empregados por Carlos Drummond de Andrade para configurar a estrutura potica de

    CDV. Para isso, faremos uma leitura do texto em vrias camadas, cada qual

    constituindo um captulo; comearemos pelo ttulo, para ento discutirmos a mtrica,

    chegando a uma anlise passo a passo, para enfim terminar com a contextualizao do

    poema na obra drummondiana.

    Esperamos que nosso trabalho possa contribuir para os estudos crticos sobre o

    autor, oferecendo um mergulho num de seus mais importantes textos.

    2A partir de agora vamos nos referir a Caso do vestido como CDV.

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    2 O ttulo

    Sabemos que as palavras, em geral, possuem mais de um significado. A

    depender do contexto em que for empregada, a palavra ter um(ns) significado(s)

    acionado(s), outro(s) no.

    Esta observao nos parece importante ao atentarmos para o primeiro vocbulo

    do poema: caso. So muitas as suas possibilidades significativas; mostraremos como

    Drummond aproveita sua polissemia numa estratgia de valorizao da palavra.

    Verifiquemos no Dicionrio Houaiss suas definies. Grifamos em negrito os

    significados que, a nosso ver, so acionados pelo poema numa primeira leitura.

    1 o que acontece, aconteceu ou pode acontecer; fato, ocorrncia, sucesso 1.1 JUR causa, demanda 2 ato, ao, feito 3 particularidade que acompanha um fato; circunstncia, condio 4 o que suscetvel de gerar alguma conseqncia oufazer prev-la 5 fato ou conjunto de fatos que, em torno depessoa ou acontecimento, compem situao problemtica e/ou de granderepercusso 6 histria, conto,narrativa, anedota 7 srio desacordo; desavena,desentendimento 8 grande desordem; confuso,escndalo, briga 9 ocorrncia de uma doena 10 B relao amorosa, esp. a clandestina; cacho 11 p.met pessoa com quem se mantm essa relao; amante, cacho 12 p.ext. relao estreita com pessoa, entidade ou coisa 13 GRAM LING nas lnguas de declinao, cada uma das diferentesformas de uma palavra flexionvel que indicam a funo sinttica da palavra na frase 14 p.ext. LING categoria gramatical que indica afuno sinttica de um sintagma nominal na frase, podendo ser expressa de trs maneiras:a) pela posio do sintagma nominal na frase; b) por preposies; c) por flexo nominal15 p.ext. LING interpretao semntica que os sintagmas nominais recebem em virtudede sua relao sinttica com verbos e preposies, como: agente, paciente, instrumento,origem, alvo etc., em todas as lnguas, mesmo aquelas que no marcam o caso por flexo

    16 cond. na hiptese de; se

    As definies grifadas so as de acepo mais claramente verificvel no

    contexto do poema; porm, outras podem ser apontadas a partir de leituras que suscitam

    maior discusso. Adentremos essa palavra.

    Quanto definio 1.1, JUR causa, demanda, podemos considerar o titulo do

    poema como aluso a um caso judicial. Tal sentido corroborado pelo encaminhamento

    dramtico do texto, em que a atuao das filhas pode ser comparada de promotoras de

    justia interrogando a me a partir de um elemento que infringe as leis da casa: um

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    vestido exposto na parede, fora do armrio. Observemos a postura das filhas

    interrogando a me como num inqurito judicial:

    Nossa me, dizei depressa

    que vestido esse vestido.

    Observemos, mais frente, quo incisivas elas so no inqurito quando a me

    tenta desconversar:

    Minhas filhas, vosso paichega ao ptio. Disfarcemos.

    Nossa me, no escutamospisar de p no degrau.

    O poema, nesta acepo, se configuraria como um depoimento da vtima

    perante o corpo de jurados os leitores. Seguindo a linha de raciocnio, o pai seria o ru

    do caso. No h, porem, um veredictoao fim do poema: o pai no declarado culpado

    ou inocente; ele volta ao crculo familiar quase como se nada tivesse acontecido (um

    sentimento esquisito / de que tudo foi um sonho).

    Um possvel veredictodiminuiria consideravelmente a fora literria do texto,

    ao apregoar uma verdade rgida sobre um comportamento humano. Ao contrrio, o quese nota uma problematizao do julgamento, em que o pai tambm pode ser

    considerado como vtima do prprio mpeto sexual, sendo este, portanto, mais um ru

    no caso do vestido. Notemos seu papel de vitima nos versos:

    E ficou to transtornado,se perdeu tanto de ns,

    se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,

    chorou no prato de carne

    Interessante observar o verso final do trecho destacado: a carne o algoz do pai

    ru e vitima no poema.

    Continuemos com a anlise da primeira palavra, seguindo para a definio de

    nmero nove do dicionrio: ocorrncia de uma doena . Neste caso, podemos considerar o vestido como metonmia do corpofeminino, que provoca uma doena (o desejo desregrado) no pai. O fato de a dona

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    ruim no estar individualizada sob um nome como, alis, nenhum dos demais

    personagens do poema corrobora nossa interpretao no sentido de tornar o desejo

    pela outra uma doena que afetar a sadedo casamento.

    Alm de metonmia, o vestido o catalisador da doena que atinge o pai,

    tornando-se pea fundamental para incitar o desejo pelo corpo feminino:

    O seu vestido de renda,de colo mui devassado,

    mais mostrava que escondiaas partes da pecadora.

    O pecado pode ser aproximado noo de doena, se considerado o contexto da

    famlia crist (eu fiz meu pelo-sinal). O colo mui devassado do vestido sugere umamulher devassa, pronta para arruinar a sade matrimonial.

    Em outro momento do texto, quando a dona ruim vai pedir perdo me, o

    amor comparado a uma doena, ainda que sutilmente:

    Eu no tinha amor por ele,ao depois amor pegou.

    O uso do verbo pegar neste tipo de construo, no sentido de contrair, omesmo utilizado em frases como Fulano pegou uma gripe. O amor, assim, se constitui

    neste trecho como doena contagiosa, que a dona ruimpegado pai apaixonado.

    Vale lembrar que, ao longo do poema, as relaes amorosas so descritas como

    molstias, como quando:

    a) o pai se apaixona pela outra:

    E ficou to transtornado,

    se perdeu tanto de ns,

    se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,

    b) a me perde a companhia do pai, seu amado:

    Sa pensando na morte,mas a morte no chegava. (...)

    no comia, no falava,

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    tive uma febre ter3

    mas a morte no chegava.,

    c) a dona ruim perde a companhia do pai, tambm seu amado:

    Me joguei a suas plantas,

    fiz toda sorte de dengo,no cho rocei minha cara,

    me puxei pelos cabelos,me lancei na correnteza

    Assim, percebemos que CDV tambm um caso de doena.

    Sigamos para outra definio do vocbulo, desta vez a de nmero 11: p.met

    pessoa com quem se mantm essa relao [amorosa, esp. a clandestina]; amante, cacho

    .

    Nesta acepo, podemos considerar o pai como ocaso do vestido, aquele que

    mantm uma relao amorosa com uma mulher (metonimizada pelo vestido) fora do

    casamento. Relacionando esta definio com a anterior, podemos dizer que a doena do

    pai ser o caso, o amante dos vestidos para alm de sua casa.

    Percebemos, portanto, como Drummond aproveita a polissemia do termo caso,

    desdobrando-o ao longo do texto. E estas vrias significaes da mesma palavra no se

    excluem; pelo contrrio, se reforam umas s outras, tornando o vocbulo mais

    vigoroso. O fato de no haver no ttulo artigo precedendo-o parece sugerir maior nfase

    palavra, que prescinde de adjuntos adnominais.

    O jogo polissmico na primeira palavra do poema demonstra a extraordinria

    capacidade de condensao potica de Drummond. E nos faz lembrar a concepo de

    Ezra Pound sobre o que ele chama de grande literatura: linguagem carregada de

    significado at o mximo grau possvel (1970, p.32).

    A segunda palavra do ttulo, o complemento nominal do, tambm tem a sua

    importncia, por se tratar de uma contrao da preposio de com o artigo definido

    o. A presena do artigo definido aponta para a especificidade deste vestido dentre os

    demais. No toa ele se encontra fora do armrio, apartado das outras vestimentas. No

    3

    Atentemos para a febre ter da me na ocasio, representando a doena causada pelo amor(ou pela incorrespondncia do amor).

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    um vestido qualquer, mas ovestido, aquele que marca definitivamentea trajetria da

    famlia representada.

    J a ltima palavra do ttulo pode ser considerada a mais importante do poema.

    Ela o motivo gerador que desencadeia toda a ao dramtica, desde o plano presente 4

    (em que a me narra o caso para as filhas) at o passado (em que a pea de roupa, de

    colo mui devassado, serve para atrair o marido). O vestido inclusive utilizado como

    substituto da palavra traio, como verificamos no fim do texto:

    um sentimento esquisito

    de que tudo foi um sonho,vestido no h... nem nada.

    Ou seja, a pea de roupa a sntese do texto, o motivo central do poema. No

    vestido cabem o corpo feminino, o desejo masculino, os papis do homem e da mulher

    numa sociedade tradicionalista, a traio, o segredo, a confidncia, a dor... Torna-se,

    assim, um signo repleto de significaes, ampliando o mbito da palavra para muito

    alm de suas previsveis acepes.

    Nesse sentido, podemos resgatar alguns versos do segundo poema deA rosa do

    povo, Procura da poesia (p.118), para entender a ao do poeta sobre a palavra.

    Penetra surdamente no reino das palavras.L esto os poemas que esperam ser escritos.Esto paralisados, mas no h desespero,h calma e frescura na superfcie intata.Ei-los ss e mudos, em estado de dicionrio.

    A tarefa do poeta, portanto, retirar a palavra de seu estado de dicionrio para

    empreg-la em novas realizaes, com o objetivo de reinaugurar a linguagem.

    exatamente isso o que Drummond faz com a palavra vestido e no apenas com ela,

    obviamente. Eis sua magia lcida, na expresso de Marlene de Castro Correia.

    a autora, inclusive, que nos lembra:

    Fazer poesia consiste em (...) manej-las [as palavras] de forma especfica, atualizandosuas virtualidades expressivas, combinando-as com tal eficcia que elas adquiremplenitude de significao. (...)

    4

    Discutiremos no prximo captulo questes referentes aos tempos presente e passado nopoema.

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    Em consequncia, o compromisso primeiro do poeta o enriquecimento expressivo dalngua.

    (2002, p. 15)

    Dentre as vrias possveis leituras do signo vestido, uma nos parece interessante:

    a do vestido como tecido potico, como texto bordado no processo discursivo da me

    diante das filhas.

    Sobre as relaes entre texto e tecido, h trecho de um ensaio de Ana Maria

    Machado (O Tao da teia sobre textos e txteis) que merece ateno. Nele a autora

    comenta suas reflexes a partir de uma conversa com seu orientador de doutorado,

    Roland Barthes. Leiamo-la.

    [Barthes] Mencionou que isso era muito interessante, porque vrias daspalavras que se usam para designar o texto e a escrita derivam de outro conjunto deatividades tradicionalmente femininas, a fiao e a tecelagem que haviam chamadosua ateno nos ltimos tempos, por ele ter se ocupado especialmente da moda comosistema de significao. Deu como exemplo a prpria palavra texto (variante de tecido).Comentei com ele que, realmente, em portugus, ao tratarmos da narrativa, falamos emtrama, em enredo, emfio da meada... Dizemos que quem conta um conto aumenta umponto. E temos as palavras novelo e novela.

    Enfim, essas idias de relacionar a escrita e o tecer, fiar e bordar j vinhamgirando havia muito tempo em meu esprito, e no havia nada demais nisso. Eu apenasestava tendo conscincia de algo j perfeitamente assimilado e registrado por nossalinguagem de todos os dias, criao annima e coletiva da nossa cultura pelos sculosafora.

    (in:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300011)

    Em nossa cultura, em nossa lngua, h uma relao prxima entre texto e tecido.

    No podemos saber se Drummond utilizou o vestido para apontar especificamente essa

    relao mas cabe a ns, num empenho interpretativo, sinalizar a aproximao entre os

    dois materiais.

    Primeiro, o poema tem incio pela presena do vestido. Texto e tecido comeam

    juntos:

    Nossa me, o que aquelevestido, naquele prego?

    Segundo, o fato de haver apenas mulheres no plano presente do poema, em que

    a narrao acontece em que o discurso tecido nos parece muito significativo.

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    Como aponta Ana Maria Machado, fiao e tecelagem so atividades tradicionalmente

    femininas.

    Terceiro, o vestido de renda, ou seja, manufaturado. No se trata de um

    produto industrial de larga escala, mas sim feito atravs da presena humana como a

    poesia. Mesmo que para isso se usem mquinas, a de escrever5

    A nosso ver, portanto, a me a personagem responsvel por bordar o Caso do

    vestido; isto , ela quem costura discursivamente a significao que torna esta

    vestimenta diferente das demais. ela a narradora do caso, quem tece o poema.

    e a de costura.

    Podemos pensar, ainda, no vestido de renda como uma obra dentro da obra, na

    figura de linguagem tambm conhecida como mise-en-abme, ou viso em abismo. O

    fato de o vestido estar exposto, ocupando posio anloga de um quadro, corrobora

    essa considerao. Se unirmos tal constatao anterior, da relao entre vestido e

    texto, no seria muito difcil comparar o vestido a um texto literrio a ser desvendado.

    Assim, a me seria uma intrprete da primeira obra, apontando os significados

    ocultos aos leitores menos experientes (as filhas). Claro que no se trata de uma exegese

    nos moldes tradicionais; muito pelo contrrio, uma leitura absolutamente pessoal e

    passional da obra exposta, sem critrios avaliativos que no sua prpria experincia

    como esposa trada. Mas ainda assim h uma forma de conhecimento nessa exegese;

    no um conhecimento terico sobre o valor artstico da obra, mas um conhecimento

    emprico que atribui sentido ao texto-tecido exposto. E no custa lembrar: se no

    houvesse tal leitura, tal explanao, no haveria o poema.

    A me, na exegese, desfia o vestido, mostrando as linhas narrativas que o

    compem. E o processo de desfi-lo ocorre simultaneamente com o ato de bordar o

    CDV. Dessa forma, o poema se estrutura a partir de um processo de leitura-escrita.

    5Em 1945, ano de publicao do poema, ainda no havia computador pessoal.

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    3 Mtrica

    CDV composto de 150 versos heptassilbicos (redondilha maior) organizados

    aos pares, totalizando 75 dsticos.

    Conforme sinaliza Mirella Vieira Lima (1995), h tendncia acentuao da

    terceira slaba de cada verso, aproximando o poema dos esquemas utilizados na

    literatura de cordel e na cantoria nordestinas. Escreve a autora:

    o Caso do vestido obedece a padres estabelecidos na tradio popular, cujarigidez formal procura preservar a transmisso do caso das instabilidades prpriasao ato de fala.

    (p. 86)

    Do total de 150 versos, 89 tm acentuao na terceira slaba ou seja, 59%.

    A aproximao ao esquema rtmico da referida literatura popular

    possivelmente um dos aspectos que levaram Antonio Houaiss (1976) a enxergar no

    poema um carter regional. Outros fatores, como o uso de expresses da linguagem oral

    como quede e evm, corroboram sua interpretao. Abordaremos tais aspectos mais

    frente.

    Interessa-nos mostrar, tambm, os poemas drummondianos escritos em

    redondilha maior at o aparecimento de Caso do vestido, para analisar o imaginrio

    potico que subjaz a esta recorrncia mtrica em sua obra.6

    O primeiro momento que tal medida surge em Cantiga de vivo (p.14), de

    Alguma poesia.

    A noite caiu na minh'alma,

    fiquei triste sem querer.Uma sombra veio vindo,veio vindo, me abraou.Era a sombra de meu bemque morreu h tanto tempo.

    Me abraou com tanto amorme apertou com tanto fogome beijou, me consolou.

    6

    Alguns (poucos) versos dos poemas a seguir desviam do padro heptassilbico, masconstituem rara exceo no conjunto.

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    Depois riu devagarinho,me disse adeus com a cabeae saiu. Fechou a porta.Ouvi seus passos na escada.Depois mais nada...

    acabou.

    O poema expressa a ausncia de uma esposa falecida, que revisita o eu-lrico

    vivo. O tom melanclico e noturno evidencia-se desde os primeiros versos (A noite

    caiu em minhalma, / fiquei triste sem querer.). Observemos ainda a rima entre

    escada e nada ao final do texto (a mesma ao fim de CDV), cujo recurso para

    desfecho se aproxima ao do poema em anlise: um corte sbito (acabou, em Cantiga

    de vivo; eis que ouo / vosso pai subindo a escada, em Caso do vestido).

    O prximo texto de Drummond em heptasslabos comparece em Brejo das

    almas; trata-se de Desdobramento de Adalgisa (p.63).

    Os homens preferem duas.Nenhum amor isoladohabita o rei Salomoe seu amplo corao.Meu rei, a vossa Adalgisavirou duas diferentespara mais a adorardes.

    Sou loura, trmula, blndulae morena esfogueteada.Ando na rua a meu lado,colho bocas, olhos, dedospela esquerda e pela direita.Alguns mal sabem escolher,outros misturam depressaperna de uma, brao de outra,e o indiviso sexo aspiram,como se as duas fossem uma,quando uma que so duas.

    Adalgisa e Adaljosa,parti-me para vosso amorque tem tantas direese em nenhuma se definemas em todas se resume.Saberei multiplicar-mee em cada praia tereisdois, trs, quatro, sete corposde Adalgisa, a lisa, friae quente e spera Adalgisa,

    numerosa qual Amor.

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    Se fugirdes para a floresta,serei cip, lagarto, cobra,eco de grota na tarde,ou serei a humilde folha,sombra tmida, silncioentre duas pedras. E o reique se enfarou de Adalgisaainda mais se adalgisar.

    Se voardes, se descerdesmil ps abaixo do solo,se vos matardes alfim,serei ar de respirao,serei tiro de pistola,veneno, corda, Adalgisa,Adalgisa eterna, os olhosluzindo sobre o cadver.

    Sou Adalgisa de fato,pensais que sou minha irmou que me espelho no espelho.amai-me e no repareis!Uma Adalgisa tradapresto se vinga da outra.Eu mesma no me limito:se viro o rosto me encontro,quatro pernas, quatro braos,duas cinturas e ums desejo de amar.

    Sou a qudrupla Adalgisa,sou a mltipla, sou a nicae analgsica Adalgisa.Sorvei-me, gastai-me e ide.Para onde quer que vades,o mundo s Adalgisa.

    Atentemos para a primeira estrofe do poema, que aborda a vontade dos homens

    de terem duas mulheres um dos temas de CDV. Para aplacar o mpeto sexual do rei

    Salomo, ela se desdobrar em vrias, tornando-se mulher ideal, ilimitada, nico

    remdio7

    O prximo passo na trajetria Cano da Moa-Fantasma de Belo Horizonte

    (p.69 a 71), de Sentimento do mundo.

    possvel para o desejo masculino (Sou a qudrupla Adalgisa, / sou a mltipla,

    sou a nica / e analgsica Adalgisa.). Uma mulher real no seria capaz de satisfazer sua

    virilidade.

    7Lembremos do que foi comentado anteriormente sobre a paixo como doena.

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    Eu sou a Moa-Fantasmaque espera na Rua do Chumboo carro da madrugada.Eu sou branca e longa e fria,a minha carne um suspirona madrugada da serra.Eu sou a Moa-Fantasma.O meu nome era Maria,Maria-Que-Morreu-Antes.

    Sou a vossa namoradaque morreu de apendicite,no desastre de automvelou suicidou-se na praiae seus cabelos ficaramlongos na vossa lembrana.Eu nunca fui deste mundo:

    Se beijava, minha bocadizia de outros planetasem que os amantes se queimamnum fogo casto e se tornamestrelas, sem ironia.

    Morri sem ter tido tempode ser vossa, como as outras.No me conformo com isso,e quando as polcias dormemem mim e fora de mim,meu espectro itinerante

    desce a Serra do Curral,vai olhando as casas novas,ronda as hortas amorosas(Rua Cludio Manuel da Costa),pra no Abrigo Cear,no h abrigo. Um perfumeque no conheo me invade: o cheiro do vosso sonoquente, doce, enrodilhadonos braos das espanholas. Oh! deixai-me dormir convosco.

    E vai, como no encontronenhum dos meus namorados,que as francesas conquistaram,e que beberam todo o usqueexistente no Brasil(agora dormem embriagados),espreito os Carros que passamcom choferes que no suspeitamde minha brancura e fogem.Os tmidos guardas-civis,coitados! um quis me prender.Abri-lhe os braos... Incrdulo,me apalpou. No tinha carnee por cima do vestido

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    e por baixo do vestidoera a mesma ausncia branca,um s desespero branco...Podeis ver: o que era corpofoi comido pelo gato.

    As moas que ainda esto vivas(ho de morrer, ficai certos)tm medo que eu apareae lhes puxe a perna... Engano.Eu fui moa, serei moadeserta, per omnia saecula.No quero saber de moas.Mas os moos me perturbam.No sei como libertar-me.Se o fantasma no sofresse,se eles ainda me gostassem

    e o espiritismo consentisse,mas eu sei que proibidovs sois carne, eu sou vapor.Um vapor que se dissolvequando o sol rompe na Serra.

    Agora estou consolada,disse tudo que queria,subirei quela nuvem,serei lmina gelada,cintilarei sobre os homens.Meu reflexo na piscina

    da Avenida Parana(estrelas no se compreendem),ningum o compreender.

    O poema dialoga com Cantiga de vivo ao criar a figura de um fantasma

    feminino que volta ao mundo dos vivos. Contudo, Cano da Moa-Fantasma de Belo

    Horizonte se diferencia daquele texto pelo fato de no ser um esprito individual, mas

    coletivizado ou genrico (Sou a vossa namorada / que morreu de apendicite, / no

    desastre de automvel / ou suicidou-se na praia) que assume a condio de eu-lrico.

    H uma aproximao a CDV pelo fato de a Moa-Fantasma revelar um desejo

    sexual (Oh! deixai-me dormir convosco) comparvel ao do pai (Em vo o pai

    implorou). Ela no realiza o desejo (Se o fantasma no sofresse, / se eles ainda me

    gostassem / e o espiritismo consentisse, / mas eu sei que proibido / vs sois carne, eu

    sou vapor.), porm resolve sua frustrao ao enunci-la (Agora estou consolada, /

    disse tudo que queria).

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    O poema seguinte em redondilhas maiores A noite dissolve os homens (p.83

    e 84), ainda em Sentimento do mundo.

    A noite desceu. Que noite!

    J no enxergo meus irmos.E nem to pouco os rumoresque outrora me perturbavam.A noite desceu. Nas casas,nas ruas onde se combate,nos campos desfalecidos,a noite espalhou o medoe a total incompreenso.A noite caiu. Tremenda,sem esperana... Os suspirosacusam a presena negraque paralisa os guerreiros.E o amor no abre caminhona noite. A noite mortal,completa, sem reticncias,a noite dissolve os homens,diz que intil sofrer,a noite dissolve as ptrias,apagou os almirantescintilantes! nas suas fardas.A noite anoiteceu tudo...O mundo no tem remdio...Os suicidas tinham razo.

    Aurora,entretanto eu te diviso, ainda tmida,inexperiente das luzes que vais ascendere dos bens que repartirs com todos os homens.Sob o mido vu de raivas, queixas e humilhaes,adivinho-te que sobes, vapor rseo, expulsando a treva

    [noturnaO triste mundo fascista se decompe ao contato de teus

    [dedos,teus dedos frios, que ainda se no modelarammas que avanam na escurido como um sinal verde e

    [peremptrio.Minha fadiga encontrar em ti o seu termo,minha carne estremece na certeza de tua vinda.O suor um leo suave, as mos dos sobreviventes se

    [enlaam,os corpos hirtos adquirem uma fluidez,uma inocncia, um perdo simples e macio...Havemos de amanhecer. O mundose tinge com as tintas da antemanhe o sangue que escorre doce, de to necessriopara colorir tuas plidas faces, aurora.

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    O texto se divide em duas partes, a primeira em redondilha maior, a outra em

    versos livres. Nos heptasslabos se inscrevem a noite, o medo, a incompreenso, a falta

    de esperana. Atentemos para a frase inicial do texto, A noite desceu., que muito se

    aproxima do incio de Cantiga de vivo (A noite caiu em minhalma.). J no

    segundo segmento, em versos livres, se inscreve a aurora, com suas luzes, bens, o sinal

    verde, a fluidez, a inocncia, o perdo simples e macio. O contraste entre as duas

    opes mtricas sugere que a redondilha maior suporta um aspecto sombrio, noturno,

    em oposio clareza e doura do verso livre.

    O passo seguinte em nossa trajetria o terceiro fragmento de Edifcio

    esplendor (p.97), do livroJos.

    Oh que saudades no tenhode minha casa paterna.Era lenta, calma, branca,tinha vastos corredorese nas suas trinta portastrinta crioulas sorrindo,talvez nuas, no me lembro.

    E tinha tambm fantasmas,mortos sem extrema-uno,anjos da guarda, bodoques

    e grandes tachos de docee grandes cismas de amor,como depois descobrimos.

    Chora retrato, chora.Vai crescer a tua barbaneste medonho edifciode onde surge tua infnciacomo um copo de veneno.

    H um dilogo com o poema Meus oito anos, de Casimiro de Abreu (1994)

    (Oh! que saudades que eu tenho / da aurora da minha vida), tambm em

    heptassilbico. Utilizando o recurso da pardia, Drummond expressa ojeriza casa

    paterna, desconstruindo o mito da infncia esplendorosa, romntica (Oh que saudades

    no tenho / de minha casa paterna.)8

    8Marlene de Castro Correia (2002) elabora pertinentes comentrios acerca da abordagem dopoeta quanto a esses temas:O tratamento dos temas da famlia e da terra natal representa uma pedrano meio do caminho da tradio lrica, a qual, centrada apenas no motivo da saudade, deles abordava

    prioritariamente (ou apenas) os componentes sentimentais. Drummond imprime a ambos significaofilosfica e existencial. (p.46)

    . Observemos a presena do corpo feminino, das

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    trinta crioulas talvez nuas, sugerindo uma promiscuidade no espao paterno. O

    verso E tinha tambm fantasmas sugere um dilogo com Cantiga de vivo e

    Cano da Moa-Fantasma de Belo Horizonte. E no podemos deixar de citar as

    grandes cismas de amor, / como depois descobrimos; esse depois, podemos intuir,

    se realizar especialmente no livro seguinte, em CDV.

    O subsequente poema que segue o referido padro mtrico Passagem da

    noite (p.132 e 133), j emA rosa do povo.

    noite. Sinto que noiteno porque a sombra descesse(bem me importa a face negra)mas porque dentro de mim,

    no fundo de mim, o gritose calou, fez-se desnimo.Sinto que ns somos noite,que palpitamos no escuroe em noite nos dissolvemos.Sinto que noite no vento,noite nas guas, na pedra.E que adianta uma lmpada?E que adianta uma voz? noite no meu amigo. noite no submarino. noite na roa grande.

    noite, no morte, noitede sono espesso e sem praia.No dor, nem paz, noite, perfeitamente a noite.

    Mas salve, olhar de alegria!E salve, dia que surge!Os corpos saltam do sono,o mundo se recompe.Que gozo na bicicleta!Existir: seja como for.A fraterna entrega do po.

    Amar: mesmo nas canes.De novo andar: as distncias,as cores, posse das ruas.Tudo que noite perdemosse nos confia outra vez.Obrigado, coisas fiis!Saber que ainda h florestas,sinos, palavras; que a terraprossegue seu giro, e o tempono murchou; no nos dilumos!Chupar o gosto do dia!Clara manh, obrigado,o essencial viver!

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    O texto segue estrutura semelhante de A noite dissolve os homens,

    dividindo-se em metades, duas estrofes9

    Confrontemos seus primeiros versos com os de Cantiga de vivo e A noite

    dissolve os homens: noite. Sinto que noite / (...) no fundo de mim, o grito / se

    calou, fez-se desnimo.. Qualquer semelhana no mera coincidncia...

    , a primeira enfatizando a noite, a segunda, o

    dia. No h, porm, o recurso do verso livre para acentuar a diferena entre ambas as

    partes do texto. Todavia percebemos que h um emprego mais rigoroso da redondilha

    maior na primeira metade, visto que na segunda aparecem dois versos octossilbicos

    (Existir: seja como for. / A fraterna entrega do po.). Assim, podemos inferir que a

    noite estabelece uma relao mais fechada, menos livre no que diz respeito mtrica,

    pois composta exclusivamente de heptassilbicos.

    O ltimo poema em heptassilbicos, antes de CDV, O mito (p.152 a 157):

    Sequer conheo Fulana,vejo fulana to curto,Fulana jamais me v,mas como amo Fulana.

    Amarei mesmo Fulana?ou iluso de sexo?Talvez a linha do busto,da perna, talvez do ombro.

    Amo Fulana to forte,amo Fulana to dor,que todo me despedaoe choro, menino, choro

    Mas Fulana vai se rindo...Vejam Fulana danando.No esporte ela est sozinha.No bar, quo acompanhada.

    E Fulana diz mistrios,diz marxismo, rimmel, gs.Fulana me bombardeia,no entanto sequer me v.

    E sequer nos compreendemos. dama de alta fidcia,

    9 Em nossa edio da poesia completa de Drummond, o poema se divide em trs estrofes.Consultando, porm, uma edio de Nova reunio(1983) o mesmo texto aparece dividido emduas estrofes. Como o poema se configura a partir da relao binria entre noite e dia,

    consideramos mais fidedigna a segunda verso, visto que estabelece uma oposio mais enfticaestruturalmente, dotando as duas estrofes de vinte versos cada.

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    tem latifndios, iates,sustenta cinco mil pobres,

    Menos eu...que de orgulhosome basto pensando nela.Pensando com unha, plasma,fria, gilete, desnimo.

    Amor to disparatado.Desbaratado que ...Nunca a sentei no meu colonem vi pela fechadura.

    Mas sei quanto me custamanter esse gelo digno,essa indiferena gaia,e no gritar: Vem, fulana!

    Como deixar de invadirsua casa de mil fechose sua veste arrancandomostr-la depois ao povo

    tal como ou deve ser:branca, intata, neutra, rara,feita de pedra translcida,de ausncia e ruivos ornatos.

    Mas como ser Fulana,

    digamos, no seu banheiro?S de pensar em seu corpo,o meu se punge...pois sim.

    Porque preciso do corpopara mendigar Fulana,rogar-lhe que pise em mim,que me maltrate... Assim no.

    Mas Fulana ser gente?Estar somente em pera?Ser figura de livros?

    Ser bicho? Saberei?

    No saberei? S pegando,pedindo: dona, desculpe,o seu vestido, esconde algo?Tem coxas reais? cintura?

    Fulana s vezes existedemais: at me apavora.Vou sozinho pela rua,eis que Fulana me roa.

    Olho: no tem mais Fulana.Povo se rindo de mim.

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    (Na curva do seu sapatoo calcanhar rosa e puro.)(...)

    No poema, o eu-lrico cria a personagem Fulana, sobre a qual projeta sua paixo,seu desejo (Amarei mesmo Fulana? / ou iluso de sexo?).

    A partir dessa trajetria, percebemos, portanto, que a redondilha maior est

    permeada de pr-significados, no configurando um uso aleatrio. Podemos observar

    que os temas da noite, do sombrio10

    A ttulo de curiosidade, lembremos que no livro seguinte, Claro enigma, h o

    longo e importante poema A mesa (p.292), tambm composto em heptasslabos, em

    que o eu-lrico intenta uma conciliao, aps tantos conflitos, com ningum menos que:

    seu pai.

    , do desejo sexual, do pai, da ausncia, do

    sofrimento esto presentes nos poemas heptassilbicos anteriores a Caso do vestido,

    como espcie de ndices a este texto. No que tenha havido uma inteno proposital do

    autor em preparar um caminho at o poema que ora analisamos; mas no podemosdeixar de perceber que existe um imaginrio subjacente na redondilha maior em sua

    obra, imaginrio onde se funda Caso do vestido.

    10Francisco Achcar (1993 p.46) salienta o carter sombrio de CDV.

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    4 Anlise passo a passo

    Efetuados os esclarecimentos anteriores, podemos passar para uma anlise mais

    detida do poema, que ser divido em fragmentos para facilitar a abordagem.

    Aproveitaremos as consideraes de Emanuel de Moraes (1978), que secciona o texto

    em prlogo (9 primeiras estrofes), episdio (que subdividiremos em unidades menores)

    e eplogo (10 ltimas estrofes).

    Nossa me, o que aquelevestido, naquele prego?

    Minhas filhas, o vestidode uma dona que passou.

    Passou quando, nossa me?Era nossa conhecida?

    Minhas filhas, boca presa.Vosso pai evm chegando.

    Nossa me, dizei depressaque vestido esse vestido.

    Minhas filhas, mas o corpoficou frio e no o veste.

    O vestido, nesse prego,est morto, sossegado.

    Nossa me, esse vestidotanta renda, esse segredo!

    Minhas filhas, escutaipalavras de minha boca.

    O poema comea com uma cena no tempo presente, representando o conflito

    entre a me e as filhas em revelar ou ocultar o significado do vestido. As filhas desejam

    recuperar o passado atravs de uma narrativa que atribua sentido ao presente, pelo

    estranhamento causado por uma pea de roupa exibida fora de seu lugar habitual. A

    me, porm, prefere no retornar ao passado traumtico (O vestido, nesse prego, / est

    morto, sossegado.).

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    A primeira palavra um pronome possessivo, Nossa, que estabelece relao

    no apenas familiar, mas tambm pronominal, entre me e filhas. Percebemos que o uso

    do possessivo ser frequente ao longo do discurso, aparecendo tambm quando a me se

    refere ao marido (Vosso pai). Notamos que h uma ironia no uso desses pronomes: a

    princpio eles poderiam servir para enfatizar a relao de pertencimento entre os

    membros da famlia, mas acabam tornando-os mais distantes. As filhas no a chamam

    de mame, preferindo o nossa me, com certo distanciamento formal.

    No deixa de ser curioso que a me nunca se refira ao pai como meu marido,

    mas sempre como vosso pai. O pai pertence s filhas, casa, famlia, e no a ela

    como indivduo. Ele estabelece relao semelhante para com a cnjuge, chamando-a

    apenas de Mulher, ao final do poema. A ruptura do vnculo amoroso entre eles

    correspondida, no plano gramatical, pela ausncia dos pronomes possessivos. O texto

    problematiza as relaes familiares, e o modo de tratamento entre os personagens uma

    dasformasdessa problematizao.

    interessante perceber que a pergunta inicial das filhas no o que faz aquele

    vestido naquele prego?. Elas recorrem ao verbo ser, o que aquele / vestido naquele

    prego. Parecem ter conscincia de que o vestido representa algo, no se tratando

    apenas de uma simples pea de roupa. O deslocamento da vestimenta (do armrio, onde

    se espera encontrar as roupas, para o prego) atribui-lhe nova significao, o que faz as

    filhas precisarem de uma intrprete11

    As filhas se constituem num personagem coletivo, remetendo-nos ao coro do

    teatro grego tradicional. O coro era composto por cidados de menor status social

    como o so as filhas na patriarcal famlia representada , e participava dos

    acontecimentos como comentador, informante, conselheiro e observador (Margot

    Berthold, 2004 p.114). O coro, em CDV, observa a estranheza do dado inicial (o vestido

    no prego) e exige uma explicao ao protagonista, a me, que se configura neste papelpela tenacidade do coro (Minhas filhas, escutai / palavras de minha boca.). No

    podemos deixar de apontar, portanto, a teatralidade que subjaz no poema.

    , a me, para entender seu significado.

    Outra categoria pronominal que nos parece de suma relevncia no trecho

    destacado a dos demonstrativos. Observemos que o vestido comea afastado das filhas

    (aquele vestido) e prximo da me (o vestido). Numa estratgia ditica, as filhas

    11Lembremos o que foi comentado anteriormente sobre a me como exegeta do vestido-texto.

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    buscam se aproximar da vestimenta e de seu significado at ento oculto atravs da

    variao dos demonstrativos, passando de aquele vestido (v.1) para esse vestido (v.

    10). A me, tentando afastar a vestimenta e a narrativa a ela subjacente, sinaliza que o

    vestido est nesse prego; ou seja, salienta a distncia em que a roupa est instalada.

    Lembremos que o esse serve para designar um objeto prximo ao interlocutor;

    percebemos, portanto, um jogo de empurra-empurra do vestido, em que nenhum dos

    dois locutores pode/quer assumir total proximidade em relao a ele. Porm as filhas

    foram o jogo para cima da me (essevestido / tanta renda, essesegredo), e acabam

    por vencer a disputa ditica.

    Outro recurso que elas utilizam para for-la a explicar a vestimenta a nfase

    no acoplamento, apontado por Jos Guilherme Merquior (1975), citando Samuel Levin:

    O acoplamento ocorre quando a convergncia das formas lingusticasnaturalmente (isto , semanticamente) equivalentes se encontram em posies porsua vez equivalentes.

    (Levin, 1962 cit. por Merquior, 1975 p.64).

    O acoplamento pronome demonstrativo + substantivoocorre algumas vezes no

    prlogo, mas as filhas enfatizam-no no trecho destacado (esse vestido, esse

    segredo).

    Mais um recurso empregado pelas filhas para forarem a me a narrar o vestido-

    texto a repetio (que vestido esse vestido). A repetio na poesia de Drummond

    foi analisada por Gilberto Mendona Teles, em Drummond a estilstica da repetio.

    O crtico se detm principalmente sobre repeties ternrias na obra do poeta (mente

    mente mente / desesperadamente), porm uma de suas consideraes pode ser evocada

    para compreendermos tal mecanismo no poema. Diz o autor que, na obra

    drummondiana, uma das funes da repetio revelar estados psicolgicos obsessivos

    (id ibid p.185). Assim, o estado anmico das filhas representado no por uma

    descrio externa, mas pelo modo como elas reiteram um signo; a repetio da palavra

    vestido, portanto, revela a obsesso das filhas em descobrir o significado do traje.

    O verso que vestido esse vestido serve para enfatizar a diferena desta

    vestimenta dentre as demais. Poderamos, num gesto interpretativo, reescrev-lo pondo

    inicial maiscula no primeiro v (que Vestido esse vestido), apartando-o das roupas e

    dos nomes comuns. justamente o que, num plano simblico, far a narrativa da me,

    atribuindo maiusculidadea essa letra.

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    Notamos que, para encaixar este verso no padro mtrico da redondilha maior,

    necessrio considerar a eliso das slabas do//e, num ditongo razoavelmente foroso.

    Mas tal componente mtrico apresenta sua correspondncia no plano temtico,

    sugerindo a pressa, a incontrolvel vontade das filhas em satisfazer sua curiosidade.

    Alm destes recursos, tambm percebemos a representao do estado anmico

    das filhas pela pontuao empregada em suas falas. Observemos como elas realizam um

    percurso que comea na dvida,

    Nossa me, o que aquelevestido, naquele prego?

    passa pela afirmao imperativa,

    Nossa me, dizei depressaque vestido esse vestido.

    at chegar exclamao:

    Nossa me, esse vestidotanta renda, esse segredo!

    Influenciada pela gradativa curiosidade das filhas, que vo da simples dvida

    insistncia do grito, e pelos outros recursos potico-argumentativos empregados, a me

    finalmente narrar o caso.

    Examinemos a ltima palavra do segundo verso: prego, o instrumento que

    segura o vestido na parede. Dado o contexto cristo da famlia representada (fiz meu

    pelo-sinal), esse prego no nos parece aleatrio, mas antes revestido de valores

    simblicos, aproximando a cena descrita crucificao de Cristo, imbuindodramaticidade ao poema. No h, porm, um corpo ali pregado; h sim uma lacuna, a

    ausncia de um corpo, e o preenchimento dessa lacuna o motivo gerador do texto.

    curioso perceber como a me denomina a mulher que traiu seu marido: dona.

    Comentamos h pouco sobre o uso dos pronomes possessivos no poema; atentemos que

    o termo dona tambm pertence ao campo da possessividade, um dos motes do texto.

    No podemos deixar de perceber uma ironia nesse jogo de possessividades. Depois de

    tantas perdas e frustraes amorosas, podemos inquirir: quem possui quem, afinal? De

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    que adianta a possessividade conjugal/familiar? O matrimnio cristo assegura a posse

    do outro? So questes que CDV provoca.

    Nos dsticos de nmero quatro e cinco notamos uma rima imperfeita entre

    presa e depressa. Podemos interpretar a oposio fnica entre as duas formas como

    recurso para enfatizar a diferena entre me e filhas, entre seus respectivos desejos: a

    primeira busca fechar o discurso sobre o vestido enquanto as outras o querem abrir.

    Isomorficamente, a me fecha a vogal e (prsa"), ao passo que as filhas abrem-na

    (deprssa).

    Percebemos no trecho destacado uma linguagem solene, pelo uso pouco habitual

    da segunda pessoa tanto nos pronomes possessivos (Vosso pai) quanto na conjugao

    dos verbos (dizei, escutai). O uso acentuado dos possessivos sugere tambm uma

    formalidade no modo de tratamento entre as personagens (Passou quando, nossa

    me?). Percebemos, portanto, um matiz clssico no discurso empregado.

    Mas h tambm uma palavra de extrao regionalista: evm. Mendona Teles

    (id. ibid. p.85) nos lembra que ela resulta da aglutinao de a vem. O uso de uma

    expresso localista aproxima o texto, em certo sentido, de um registro menos formal,

    com marcas de oralidade. Desse modo, verificamos que a linguagem em CDV se

    estrutura a partir de uma tenso entre a formalidade e o regionalismo. Discutiremos

    melhor essa tenso no captulo seguinte.

    H no trecho em anlise aproximaes fnicas entre pares de palavras que

    merecem nosso comentrio. Nos dsticos 6 e 7 notamos tal recurso potico como forma

    de ligar os termos vestido e frio. Consideramos que esta aproximao um modo

    de adjetivar o vestido sinestesicamente a partir do sentimento que ele desperta sobre a

    me: frieza. Ela evita descrever o passado porque a narrativa reaquecer o vestido,

    evocando o fogo passional entre o pai e a dona de longe. A rima com frio menos

    dolorosa.Nos dsticos 7 e 8 h uma aproximao entre as palavras prego e segredo. A

    relao sugere que h uma dor nesse segredo (lembremo-nos da crucificao), dor que

    aumentar ao revel-lo, levando a me s lgrimas no meio da narrativa. Podemos

    considerar tambm que o segredo estava pregado, imobilizado, e no convinha ser

    aberto naquele momento. Mas no deixa de ser curioso o fato de a me ostentar um

    segredo, exibindo-o na parede. At que ponto ela no quer revel-lo? Ou melhor: seria

    possvel ocult-lo? Que armrio comportaria tanta renda?

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    Quanto s citadas aproximaes fnicas, vale a pena trazermos as reflexes de

    Hlcio Martins (1968), autor de importante estudo sobre a rima na poesia de Carlos

    Drummond de Andrade.

    [as rimas] s adquirem verdadeiro valor de expressividade quando atuam sobre osignificante, estreitando-lhe os laos com o significado ou com a intenoexpressiva, de modo a se tornarem ingredientes do signo potico.

    (p.19)

    Ele afirma ainda que a rima

    no adereo do poema, engaste que se queira mais acabado ou mais raro, antesdesempenha uma funo esttica e tem um valor expressivo, harmoniza-se no todo

    potico e converge, com outros elementos da composio, para um fim nico, osignificante potico.(p.26)

    Assim, a partir de nossos comentrios sobre as relaes fnicas no prlogo,

    percebemos que Drummond demonstra domnio quanto ao uso expressivo da rima,

    aproveitando-a para tornar mais vigoroso o significante potico em CDV.

    Sigamos para o prximo trecho do poema, o incio do enredo pretrito.

    Era uma dona de longe,vosso pai enamorou-se.

    E ficou to transtornado,se perdeu tanto de ns,

    se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,

    chorou no prato de carne,bebeu, brigou, me bateu,

    me deixou com vosso bero,foi para a dona de longe,

    mas a dona no ligou.Em vo o pai implorou.

    Dava aplice, fazenda,dava carro, dava ouro,

    beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.

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    Mas a dona nem ligou.Ento vosso pai, irado,

    me pediu que lhe pedisse,a essa dona to perversa,

    que tivesse pacinciae fosse dormir com ele...

    A narrativa da me abre o tempo passado no poema, buscando construir

    significao para o vestido atravs de acontecimentos anteriores. Observemos que o

    trecho comea com Era uma dona de longe, em que se nota uma ligeira semelhana

    com o tradicional prlogo das histrias infantis, o era uma vez. O fato de ser uma me

    narrando s filhas parece acentuar tal semelhana, ainda mais aps dizer escutai /palavras de minha boca (enfatizando a situao de oralidade, como percebe Mirela

    Vieira Lima id. ibid. p.86), demanda que induz atmosfera necessria para se

    contar/ouvir uma histria. Drummond utiliza tal recurso para evidenciar o processo de

    abertura da narrativa; e, suprimindo o infantil uma vez, afasta qualquer proximidade

    com os contos de fadas, tornando ainda que teatralmente a histria mais real,

    menos fictcia. Trata-se, portanto, de um caso acontecido, na expresso de

    Guimares Rosa (2001 p.383).Reparemos que a me comea descrevendo umadona; mais frente, no sexto

    dstico, ela se tornar adona. A transio do artigo indefinido para o definido mostra o

    percurso da narrativa na definio do corpo que ocupa/ocupou a lacuna do vestido;

    lembremos que o preenchimento dessa lacuna , conforme sinalizamos, um dos motes

    geradores do texto. Aos poucos tal mulher ganhar contornos ainda mais definidos.

    Trata-se de uma dona de longe. H uma nfase na distncia da pessoa amada,

    que se torna mais afastada, menos alcanvel, acentuando o desejo do pai. Ao mesmotempo, esse longe pode ser lido como uma distncia em relao aos valores morais da

    me, visto se tratar de uma dona soberba, devassa. A narrativa realizar uma

    aproximao da dona nos dois sentidos; ela deixar a esfera inalcanvel (deitando-se

    com o pai) e depois se redimir frente aos valores da me (pedindo perdo). No

    podemos deixar de apontar, tambm, o processo narrativo que vai da indefinio para a

    definio moral da dona, dotando o texto, sim, de certo moralismo, ainda que

    teatralizado.

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    Observemos o verbo empregado pelo poeta para designar a paixo do pai:

    enamorar-se (vosso pai enamorou-se). Embora sua origem etimolgica seja estar in

    amor, reconhecemos que, do ponto de vista sincrnico, ao desmembrarmos tal palavra

    encontramos o verbo morar. Parece haver na escolha do termo enamorar uma sutil

    relao entre amor e moradia, que correspondida no texto pelo fato de o pai sair de

    casa para viver sua paixo morando com outra mulher. A locuo adverbial de longe

    salienta a distncia entre as duas moradas (a da me e a da outra), distncia que ser

    percorrida no processo da paixo paterna.

    Podemos perceber no trecho destacado a construo de uma dramaticidade

    exacerbada. Salientemos o uso dos intensificadores (to transtornado, se perdeu

    tantode ns, se afastou de todavida, toperversa), para a escolha dos vocbulos

    (transtornado12

    Essa fora expressiva ressaltada tambm pelas rimas internas entre os verbos,

    que funcionam como significantes de funo estruturadora (Martins, 1968). Grifemos os

    termos rimantes (em oue eu) para evidenciar tal procedimento:

    , devorou, implorou), para o comportamento exagerado do pai

    (beberia seu sobejo, / lamberia seu sapato), para a fora expressiva da linguagem com

    que se realiza a abertura emocional da me.

    Eficouto transtornado,seperdeutanto de ns,

    se afastoude toda vida,sefechou, se devorou,

    chorouno prato de carne,bebeu, brigou, me bateu,

    me deixoucom vosso bero,foi para a dona de longe,

    mas a dona no ligou.Em vo o pai implorou.

    (...)Mas a dona nem ligou.

    O fato de os termos rimantes serem todos oxtonos e terminados em ditongos

    decrescentes colabora para a estruturao musical do trecho. Trata-se de verbos a

    12

    A palavra transtornado parece-nos altamente sugestiva, pois leva dentro de si o tornado, ovento furioso ao qual associado o estado anmico do pai.

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    criarem uma sequncia de aes que estabelecem uma teatralidade aos espectadores (as

    filhas e o leitor), em cenas construdas atravs de notria conciso (bebeu, brigou, me

    bateu). A estrutura de acoplamento (se perdeu, se afastou, se fechou, se

    devorou), junto musicalidade e fora cnica dos verbos, colabora para tornar mais

    dramticos os fatos narrados.

    Observemos o vigor das imagens no trecho destacado; o verso chorou no prato

    de carne mostra a capacidade drummondiana de concentrar a linguagem. O prato

    sugere o momento da refeio, considerado sagrado na cultura crist. O fato de ele

    chorar sobre a refeio constitui um sacrilgio para esta cultura, visto que deveria

    agradecer pelo po de cada dia. Trata-se, porm, de carne, em vez de po; esta carne

    parece representar o desejo pela dona de longe, a pulso sexual. Nota-se, portanto, um

    duplo pecado; ao mesmo tempo o pai est chorando pela frustrao de seu desejo, numa

    imagem de alta densidade potica criada pela conciso drummondiana.

    A dramaticidade construda tambm por outros recursos, como a gradao.

    Percebemos seu uso, por exemplo, no verso bebeu, brigou, me bateu, em que h uma

    linha crescente nos excessos cometidos pelo pai, chegando a ferir fisicamente a me. A

    narrativa materna vai adentrando o vestido-texto para alm da superfcie (quando estava

    na parede quase como obra de arte), num processo de escavao gradativa da dor.

    Percebemos tal recurso tambm nos dsticos

    Dava aplice, fazenda,dava carro, dava ouro,

    beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.

    em que o pai vai pouco a pouco perdendo o senso de si at chegar ao mximo da

    humilhao. Vale a pena registrar, neste segundo dstico, o emprego do verbo no futuro

    do pretrito, que pode marcar tanto uma realidade acontecida (como mais uma das

    moedas oferecidas pelo pai ao implorar o amor da dona) quanto algo que poderia ter

    acontecido, de acordo com a imaginao da narradora. Esta segunda possibilidade nos

    parece interessante, pois evidenciaria a fabricao discursiva da me, que constri o

    enredo a partir de seu ponto de vista emocionalmente comprometido. Se considerarmos

    este uso do futuro do pretrito como recurso de construo imaginativa, podemos ver

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    mais claramente o apelo dramtico da narradora, que busca a empatia das filhas para

    com seu sofrimento, inserindo componentes ficcionais ao caso acontecido.

    Observemos que um dos itens oferecido pelo pai dona fazenda, termo que

    porta curiosa ambiguidade. Embora no texto seu sentido de stio seja mais coerente,

    como algo de muito valor a ser entregue, podemos detectar o eco de outra acepo da

    palavra, no sentido de tecido, material para fabricao de um vestido-texto.

    O apelo dramtico da me aparece tambm num verso anterior, me deixou com

    vosso bero, que enfatiza sua situao de fragilidade quando do abandono do pai. A

    escolha do termo bero crucial para isso, pois torna mais cruel a atitude paterna

    diante das filhas ainda bebs.

    Porm o esforo do pai no logra xito, e o poeta repete, com sutil diferena, um

    verso anterior (mas a dona no ligou. / Mas a dona nem ligou.). A repetio torna

    mais humilhante a derrota do pai, visto que, aps as vrias tentativas de conquistar a

    mulher, ele retorna ao lugar de origem tanto no plano dos fatos ocorridos quando no da

    linguagem potica. A mudana entre os adjuntos adverbiais de negao, de no para

    nem, salienta o desinteresse da dona de longe, deixando claro quo intil o esforo

    do pai.

    Fracassado em suas tentativas, o pai fica, no verso seguinte, irado, que

    apresenta curiosa relao de rima (fonossemntica) com o transtornado. H tambm

    uma correspondncia com sapato, do dstico anterior, que representa o rebaixamento

    do pai diante da dona. Com tais sentimentos, o pai reconhecer os prprios limites e ter

    que ultrapassar as fronteiras de si, necessitando da ajuda de um outro para conquistar o

    corpo do vestido de renda. No pice do gradativo apelo dramtico da me, ela descreve

    o pai realizando o pedido do pedido(me pediu que lhe pedisse), para que ela pea

    dona que durma com o marido, marcando sua total humilhao como esposa.

    O trecho em anlise termina em reticncias, estabelecendo uma lacunadiscursiva. A partir dos dsticos seguintes, entenderemos que tal lacuna representa o

    choro da me, que precisa interromper a narrativa, dado o grau de emotividade

    envolvido. Percebemos mais uma vez como Drummond emprega a pontuao como

    elemento expressivo em CDV.

    preciso dizer que a dramaticidade da narrativa materna no trecho destacado

    torna-se mais contundente pelo contraste em relao ao prlogo, em que ela desejava

    apenas se calar. Tal contraste foi comentado por Marlene de Castro Correia em relao poesia drummondiana:

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    A tenso entre essas duas foras o furtar-se e o expandir-se , o conflito entre atendncia desordem passional e a tendncia ordem intelectual que a refreiecontagiam a poesia de Drummond de inconfundvel dramaticidade.

    (2002 p.31)

    Percebemos que, num primeiro momento, a me tendia ao silncio, furtando-se

    ao discurso sobre o vestido e aos sentimentos a ele associados. Porm, pela insistncia

    das filhas, ela acaba ocupando o outro polo da dialtica sinalizada por Marlene Correia,

    expandindo-se numa narrativa altamente passional, que a levar s lgrimas. A tenso

    entre os dois polos um dos fatores que contagia CDV com inconfundvel

    dramaticidade.

    Continuemos no poema.

    Nossa me, por que chorais?Nosso leno vos cedemos.

    Minhas filhas, vosso paichega ao ptio. Disfarcemos.

    Nossa me, no escutamospisar de p no degrau.

    O poema volta cena presente com a interrupo da narrativa materna. A me

    continua desejosa de permanecer no presente, empregando este tempo verbal em sua

    fala (vosso pai / chega ao ptio. Disfarcemos.). As filhas, por sua vez, querem saber

    mais sobre a histria passada, e utilizam um verbo de temporalidade ambgua, que

    designa tanto o presente como o passado (escutamos). Tal ambiguidade, a nosso ver,

    estabelece uma ponte da cena presente para se retornar narrativa pretrita.

    O jogo de temporalidades entremeadas presena do pai comentado porAffonso Romano de SantAnna (1972):

    Enquanto os dois planos [presente e passado] se alternam e a histria avana e recua, afigura do pai movimenta-se sempre no espao imaginrio e concreto da narrativa: estsempre prestes a chegar, est sempre chegando e saindo, indo e voltando e prestes ainterromper com sua presena a histria passada, que a me est narrando s filhascuriosas.

    (p.114)

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    Examinemos o lugar onde a me diz que o pai est: o ptio. Tal espao costuma

    se localizar no centro do terreno e no possui nenhum tipo de cobertura. Consideramos

    que no h apenas uma referncia denotativa ao ptio, mas tambm metafrica; como

    se, para a me, o pai estivesse sempre num lugar central e descoberto, vigiando-a. O

    pai-ditador est no centro do poder; acima dele, apenas o cu. Diante desse homem, a

    me precisar se disfarar, se esquivar, ocupando posio semelhante do gauche. Este

    sujeito impotente parece ser uma das principais questes da poesia drummondiana,

    como nos lembra Alcides Villaa (2006):

    As impotncias reverberam, assumidamente, no mbito da expresso mais lcida eiluminadora, constituindo-se assim o paradoxo dramtico e nuclear da potica deDrummond.

    (p. 13)

    O ptio nos remete ao panopticonque Michel Foucault (2001) considera como

    metfora da vigilncia e do controle nas sociedades modernas. O panopticon era um

    tipo de priso circular em que o carcereiro podia observar todos os presidirios de um

    ponto central, de onde vigiava sem poder ser vigiado. Nesse sentido, como se a me,

    impotente, estivesse presa em sua prpria morada, e o pai a vigiasse do centro da casa, o

    ptio, espao do poder. As filhas, porm, no esto submetidas tamanha vigilncia

    paterna, o que nos permite inferir que essa relao de poder do pai sobre a me antes

    uma construo ideolgica, uma opresso de ordem principalmente subjetiva. Da

    advm o sujeito retrado, calado, de atitudes furtivas.

    curioso que Drummond, em crnica publicada no volume Passeios na ilha,

    defende a ideia de fuga, a mesma que as filhas condenam no poema. Vejamos suas

    palavras no referido texto:

    A idia de fuga tem sido alvo de crtica severa e indiscriminada nos ltimos anos,como se fosse ignominioso, por exemplo, fugir de um perigo, de um sofrimento, deuma caceteao.

    (p.6)

    Publicada em livro pela primeira vez no ano de 1952, foi escrita em poca

    razoavelmente prxima de CDV. O cronista parece assumir a mesma perspectiva da

    me, que considera a fuga como possibilidade de evitar o sofrimento. O poema, porm,

    apresenta tenso entre as diferentes perspectivas, dotando-se de maior dramaticidade. Aperspectiva das filhas se sobressai da me, que por isso levada a reviver o passado

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    traumtico, chegando ao choro. O cronista, podemos intuir, considera que no vale a

    pena derramar essas lgrimas; mas lembremos que se trata de Drummond, o poeta das

    sete faces.

    A presena do pai na obra potica do autor comentada por Antonio Candido

    (1977), que chega a se referir ao nosso poema:

    A partir da [Jos] o tema do pai avulta como fixao, de sentido ao mesmo tempopsicolgico e social, - tanto mais quanto nessa fase a me s apareceepisodicamente duas vezes, transferindo-se a sua funo para a casa ou a cidade. to viva essa presena de cunho patriarcal, que uma balada como Caso do vestido RP [Rosa do povo], completamente desligada das lembranas individuais e dapoesia familiar, chega a parecer uma espcie de ncleo desse poderoso complexo.Das brumas de um lirismo quase folclrico, surge nela o patriarca devorador queesmaga os seus e impe a prpria veleidade como lei moral. (p.111)

    Seria essa apario episdica da me umaforma de fuga, um modo de evitar os

    holofotes teatrais no imaginrio potico de Drummond? Uma questo a se pensar.

    Consideremos o primeiro verso do trecho em anlise. As filhas perguntam o

    motivo pelo qual a me est chorando (Nossa me, por que chorais?). Ora, elas j

    sabem a resposta, por tudo o que foi dito nos dsticos anteriores, todo o sofrimento da

    me causado pela paixo do pai. Percebemos, portanto, que se trata de uma pergunta

    retrica, que no busca resposta; sua funo no texto revelar ao leitor a cena presente,

    com o choro da me. Como a teatralidade de CDV construda sem o recurso da

    rubrica, comum no gnero dramtico, a pergunta funciona como uma rubrica que mostra

    ao leitor a ao fsica da personagem em cena. E serve tambm de resposta lacuna que

    as reticncias deixaram no dstico anterior.

    Notamos o dilogo desta passagem com um trecho do fragmento VII do poema

    Nosso tempo, tambm deA rosa do povo. Leiamos os versos:

    H o pranto no teatro,no palco? no pblico? nas poltronas?h sobretudo o pranto no teatro,

    (id. ibid. p.130)

    Percebemos que o imaginrio do choro num contexto teatral est presente

    tambm noutro momento do livro. Porm CDV no se passa num teatro propriamente

    dito apesar de possuir caractersticas teatrais, pelo jogo de vozes e pela ao das

    personagens em cena. No h na me, portanto, o fingimento de uma encenao; suas

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    lgrimas so verdadeiras pois resultam de uma experincia vivida (ainda que numa

    realidade fictcia), e servem para acrescentar maior vigor emocional ao poema.

    Observemos as relaes fonossemnticas entre algumas palavras no trecho

    destacado. A correspondncia entre chorais e paiindica o causador do choro da me.

    Mas o que nos parece mais interessante so as rimas entre cedemos, disfarcemos e a

    aproximao fnica a escutamos. Podemos inferir que a me utiliza a rima perfeita

    (disfarcemos) para aproveitar o momento de concesso das filhas (cedemos), buscando

    uma empatia fnica para assim no ter que prosseguir com a dolorosa narrao. As

    filhas, porm, recusam o pedido da me (Disfarcemos.) com escutamos, que quebra a

    correspondncia exata dos sons. A aproximao fnica, no caso, em vez de aproximar

    as palavras, torna-as ainda mais distantes, pois evidencia a diferena entre os segmentos

    fnicos as filhas, portanto, recusam tambm no plano fontico o pedido da me de

    permanecer no tempo presente.

    O trecho termina com no escutamos / pisar de p no degrau, que evidencia o

    cdigo estabelecido entre me e filhas de narrar o caso apenas na ausncia fsica 13

    Sigamos.

    do

    pai. O dstico evidencia tambm a unidade estrutural de CDV, visto tratar-se de um

    prenncio do fim do poema, quando o pai sobe a escada e interrompe com sua presena

    a narrativa da me.

    Minhas filhas, procureiaquela mulher do demo.

    E lhe roguei que aplacassede meu marido a vontade.

    Eu no amo teu marido,

    me falou ela se rindo.

    Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,

    s pra lhe satisfazer,no por mim, no quero homem.

    13

    Ressaltemos que a ausncia do pai sempre fsica, pois ele nunca desparece no planoimaginrio da me.

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    Olhei para vosso pai,os olhos dele pediam.

    Olhei para a dona ruim,os olhos dela gozavam.

    O seu vestido de renda,de colo mui devassado,

    mais mostrava que escondiaas partes da pecadora.

    A me atende ao pedido do pai, realizando, portanto, um gesto altrusta e

    humilde, valorizado no contexto da cultura crist. O gesto chega aqui ao autossacrifcio,

    a negao de si prpria como esposa para atender vontade adltera do homem.O trecho se inicia com a me dizendo procurei / aquela mulher do demo..

    Percebemos que o verbo procurar salienta uma dificuldade em localizar a dona de longe,

    que se torna mais distante pelo uso ditico de aquela, marcando o distanciamento da

    dona em relao tanto me quanto a suas interlocutoras, as filhas.

    A dona de longe agora definida como mulher do demo. Esta expresso, ao

    lado da outra utilizada para lhe caracterizar ao fim do trecho, pecadora, evidencia a

    base religiosa do pensamento da narradora, enfatizada ainda pelo gesto que informa terfeito no passado: Eu fiz meu pelo-sinal. (Lima, 1995 p.87).

    O dstico seguinte se revela um dos mais pungentes de todo poema: E lhe

    roguei que aplacasse / de meu marido a vontade.. Observemos a dramaticidade criada

    pelos vocbulos empregados, como roguei (que apresenta curiosa relao com o

    discurso cristo, mais especificamente o catlico, com a frase rogai por ns; e

    tambm pela subservincia crist)14

    A me agora ir evocar a voz da dona em discurso direto: Eu no amo teu

    marido, / me falou ela se rindo.. A narradora traz a outra cena, teatralizando seu

    prprio sofrimento num jogo discursivo que parece se situar entre o masoquismo e a

    e aplacasse (que sugere a contundente fora da

    vontade paterna). A inverso sinttica (hiprbato) em de meu marido a vontade torna

    ainda mais expressiva essa vontade, que fecha o verso. O dstico um dos que mais se

    aproximam de uma esttica barroca, pela nfase retrica na construo discursiva e pelo

    conflito entre a carne e o esprito, entre o sexo e a ideologia crist.

    14

    O verbo, em seu estado de dicionrio, tambm apresenta a acepo de rogar uma praga,servindo para aumentar a carga de dramaticidade do dstico.

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    autopiedade. curioso o fato de no haver no texto um travesso marcando a fala da

    dona de longe (recurso empregado para representar a voz do pai, ao final do poema); o

    travesso assinalaria um distanciamento grfico entre as duas vozes, e a ausncia deste

    signo sugere relativa proximidade entre a me e a outra. Consideramos que existe certo

    espelhamento entre elas, ainda mais por ocuparem posies simtricas: a santa e a

    pecadora. No jogo teatral, a santa veste a mscara da devassa, tornando mais

    dramtico seu depoimento frente plateia: as filhas e ns, leitores.

    Observemos a construo me falou ela se rindo. O uso do pronome reflexivo,

    pouco usual junto ao verbo rir, salienta o carter egosta, vaidoso, do riso da dona,

    voltado para si prpria, alm de tornar mais expressiva a risada. Drummond utiliza essa

    construo em outros momentos de sua obra, como no poema Os bens e o sangue

    (OC, p.292-286) (e na sua mala-sorte / se rir ele da morte e se riro se riro porque

    os mortos no choram).

    A mulher do demo empregar, em seguida, o verbo do poder: Mas possoficar

    com ele (grifo nosso). Ela faz questo de evidenciar superioridade, numa arrogncia

    absolutamente contrria ideologia crist.

    Se as filhas se assemelham ao coro do teatro grego tradicional, podemos

    considerar que a dona de longe apresenta traos de heri trgico, por sua representao

    baseada numa hybris.

    Recordemos o que Junito de Souza Brando (2009) fala sobre o processo da

    hybrisno teatro grego:

    O homem, simples mortal, nthropos, em xtasee entusiasmo, comungando coma imortalidade, tornava-se anr, isto , um heri, um varo que ultrapassou omtron, a medida de cada um. Tendo ultrapassado o mtron, o anr, ipso facto,um hipocrits, quer dizer, aquele que respondeem xtase e entusiasmo, isto , oATOR, um outro.

    Essa ultrapassagem do mtron pelo hypcrits uma dmesure, uma hybris,isto , uma violncia feita a si prprio e aos deuses imortais, o que provoca anmesis, o cime divino: o anr, o ator, o heri, torna-se mulo dos deuses. Apunio imediata: contra o heri lanada at, cegueira da razo; tudo o que ohipocritsfizer, realiz-lo- contra si mesmo (dipo, por exemplo). Mais um passoe fechar-se-o sobre eles as garras da Moira, o destino cego.

    (p.11)

    A ultrapassagem do mtron, a medida de cada um, transforma o homem, antes

    simples mortal, em ator, em heri, caracterizando o processo dionisaco da interpretao

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    teatral. Da o conceito de hybrisna formao do heri trgico, aquele que ultrapassa a

    medida humana e ser por isso castigado pelos deuses, pelo destino cego: a Moira.

    Leiamos uma definio de hybris, segundo artigo de Franciscato:

    Hbris excesso, desmedida, transgresso. Tambm significa impetuosidade,violncia, orgulho, arrogncia. No dicionrio Liddell e Scott,15

    (site acessado em 2011)

    a primeira definiode hbris violncia temerria que resulta do orgulho pela fora ou pelo poderque se possui. Outra fonte da hbris a paixo. Em alguns contextos, pode sertraduzida por luxria e lascvia.

    Marlene de Castro (2002), ao analisar a poesia drummondiana, tambm comenta

    a hybris:

    a hybris pode manifestar-se sob as formas de orgulho, arrogncia, prepotncia,imoderada confiana, especialmente ressaltadas na tragdia grega.

    (p. 89)

    Percebemos, portanto, como o comportamento da dona de longe caracterizado

    por uma hybris, um orgulho de seu poder luxurioso, uma imoderada confiana que a

    leva a ultrapassar a medida humana, desprezando a humanidade da me.

    A partir das definies acima, podemos considerar que o pai tambm apresenta

    caractersticas de heri trgico, por sua hybrisdiante da me, desconsiderando o amor

    dela num gesto egosta, arrogante e luxurioso. Porm o personagem que sofre a maior

    queda trgicano enredo a dona de longe, que vai do auge de sua potncia luxuriosa

    humilhao da perda do amado. O pai, por sua vez, realiza trajeto inverso, indo da

    humilhao de pedinte (Em vo o pai implorou.) ao poder de desprezar a amante,

    voltando para casa ao final do texto.

    A representao da hybrisnesse trecho do poema torna mais teatral a queda que

    sofrer nossa trgica herona, ao pedir perdo mais frente, entregando o vestido me.

    O vestido tambm pode ser considerado como smbolo da Moira, do destino cego que

    recair sobre a mulher que usar tal vestimenta de colo mui devassado no contexto da

    cultura crist. A narrativa tambm, portanto, um ensinamento da me para as filhas

    sobre a importncia de se respeitar o mtron, a medida de cada um. A me, porm, ao

    respeitar demasiadamente o mtron, inicia o texto recusando sua potncia de

    15H. G. Liddell and R. Scott, Greek- English Lexicon, p.1841.

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    discursividade acerca do mundo, acerca do vestido exposto na parede. Podemos

    considerar, tambm, que a ultrapassagem realizada pela me do silncio racional para o

    discurso emotivo um modo de hybris, recaindo sobre ela a at, a cegueira da razo que

    a levar s lgrimas.

    No processo da hybris, a mulher do demo realiza um gesto sdico frente me,

    orgulhando-se de seu poder luxurioso:

    Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,

    s pra lhe satisfazer,no por mim, no quero homem.

    Em seguida vem o jogo de olhares entre os atores da cena descrita. Ressaltemos

    a teatralidade desse jogo, que silencia os atores para enfatizar-lhes a ao dramtica (da

    tambm o seu efeito de rubrica) no palco da linguagem, o poema. Perceberemos que o

    olhar um cdigo muito importante em CDV, que se repetir mais frente, quando a

    me recebe o vestido da dona de longe e apenas olha para ela, sem dizer uma palavra. O

    olhar o modo de comunicao da me em seu mtron, sua medida dentro da famlia

    patriarcal, onde v tolhida sua verbalizao.Nesse jogo de olhares, reparemos na configurao do pai como um pedinte,

    como se realizasse uma mendicncia sexual. J os olhos da dona ruim apresentam a

    potncia ertica do termo gozar. H evidente contraste entre os dois, que ser revertido

    no decorrer do texto num processo de ascendncia do pai e de queda da dona.

    Atenhamo-nos na descrio do vestido de renda, de colo mui devassado.

    Notamos o uso pouco comum da corruptela de muito, o mui; h certo preciosismo em

    tal construo, preciosismo que tambm se nota no uso da segunda pessoa no texto

    (vosso pai, dizei etc). E o vestido devassado aberto, decotado serve para

    representar a devassido da dona de longe.

    No ltimo dstico do trecho, a narradora diz que o vestido mais mostrava que

    escondia, sugerindo o despudor e a hybrisda dona ruim. Percebemos nesse verso uma

    interessante semelhana com a situao inicial do poema, em que o vestido se

    encontrava exposto na parede. Ora, a me desejava ocultar o significado da vestimenta,

    sua narrativa potencial; mas a personagem a exibe fora de seu lugar habitual, que seria

    um armrio, um guarda-roupa. Assim, num princpio de composio que revela a

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    unidade estrutural do texto e o espelhamento entre as duas mulheres, no prlogo a

    santa mais mostrava que escondia o vestido no prego, servindo para despertar a

    inquietao das filhas assim como a devassa, vestindo-o, despertou o mpeto sexual do

    pai.

    Leitores, avante.

    Eu fiz meu pelo-sinal,me curvei... disse que sim.

    Sa pensando