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1 Universidade Católica Portuguesa Teoria Geral da Relação Jurídica Resolução dos Casos Práticos Ano Lectivo 2004/2005 por Gonçalo Rosas Conclusão de contrato; proposta e aceitação contratuais I O livreiro António pretende aumentar o seu já elevado número de clientes. A estes costuma enviar livros de amostra para que os examinem e, caso sejam do seu agrado, fiquem com eles, pagando em seguida. António resolve adoptar o mesmo processo para captar novos clientes. Nestes termos, o professor Ernesto recebeu três livros de amostra, os quais foram acompanhados de uma carta dizendo que se considera o negócio concluído por acordo, sé os livros não forem devolvidos no prazo de uma semana. Ernesto coloca os livros de lado, sem os utilizar, não reagindo. Passadas três semanas António exige o pagamento. Ernesto terá de pagar? A resposta seria a mesma se entre António e Ernesto existisse um acordo no sentido de que os livros só poderiam ser devolvidos na semana seguinte à entrega? 1º pergunta - A obrigação de pagar os livros só existe se o contrato estiver concluído. - A conclusão do contrato depende de: Proposta eficaz Aceitação eficaz - A proposta de António é eficaz: os livros chegaram à esfera de poder de Ernesto (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte). - Ernesto não reage, logo não há uma exteriorização de uma declaração. Neste caso, o silêncio não tem valor declarativo, uma vez que, nos termos do art. 218º, só por lei, uso ou convenção este terá valor declarativo. - Conclusão: o negócio não foi concluído, logo Ernesto não terá que pagar os livros a António. 2º pergunta - A obrigação de pagar os livros só existe se o contrato estiver concluído.

Casos Práticos Resolvidos 2004-2005

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Universidade Católica Portuguesa Teoria Geral da Relação Jurídica

Resolução dos Casos Práticos Ano Lectivo 2004/2005

por

Gonçalo Rosas

Conclusão de contrato; proposta e aceitação contratuais I

O livreiro António pretende aumentar o seu já elevado número de clientes. A estes costuma enviar livros de amostra para que os examinem e, caso sejam do seu agrado, fiquem com eles, pagando em seguida. António resolve adoptar o mesmo processo para captar novos clientes. Nestes termos, o professor Ernesto recebeu três livros de amostra, os quais foram acompanhados de uma carta dizendo que se considera o negócio concluído por acordo, sé os livros não forem devolvidos no prazo de uma semana. Ernesto coloca os livros de lado, sem os utilizar, não reagindo. Passadas três semanas António exige o pagamento. Ernesto terá de pagar? A resposta seria a mesma se entre António e Ernesto existisse um acordo no sentido de que os livros só poderiam ser devolvidos na semana seguinte à entrega?

1º pergunta

- A obrigação de pagar os livros só existe se o contrato estiver concluído. - A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de António é eficaz: os livros chegaram à esfera de poder de Ernesto (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte).

- Ernesto não reage, logo não há uma exteriorização de uma declaração. Neste caso, o silêncio não tem valor declarativo, uma vez que, nos termos do art. 218º, só por lei, uso ou convenção este terá valor declarativo.

- Conclusão: o negócio não foi concluído, logo Ernesto não terá que pagar os livros a António.

2º pergunta

- A obrigação de pagar os livros só existe se o contrato estiver concluído.

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- A conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de António é eficaz: os livros chegaram à esfera de poder de Ernesto (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte).

- O texto refere que existe um acordo entre António e Ernesto, no sentido de que Ernesto tornar-se-ia proprietário dos livros, se não os devolvesse no prazo de uma semana.

- Ernesto ficou com os livros, logo há uma aceitação eficaz deste, usando o silêncio como meio declarativo.

- Neste caso o silêncio tem valor declarativo, porque entre António e Ernesto havia uma convenção (cf. art. 218º).

- Conclusão: Ernesto terá que cumprir a sua obrigação (cf. art. 879º, c)), ou seja, pagar os livros a António.

II Jerónimo escreveu a Paulo uma carta declarando-se interessado na compra do seu automóvel Mercedes, modelo de 1950, por 25.000 euros a pronto pagamento. A carta, expedida em 5 de Janeiro, continha ainda a menção de que Jerónimo esperaria por uma resposta até ao dia 20 do mesmo mês. Em, 18 de Janeiro, Paulo respondeu também por carta dizendo que concordava com a venda nos termos propostos por Jerónimo. Porém, devido a um erro no sistema de distribuição de correspondência, a carta só chegou ao seu destino no dia 22 de Janeiro. a) Ficou concluído algum contrato entre Jerónimo e Paulo? A situação jurídica de Jerónimo seria a mesma se o carimbo de expedição da carta de Paulo fosse do dia 25e a carta tivesse chegado a 26? b) Se no dia 22 Paulo tivesse telefonado a Jerónimo pedindo-lhe para tratar do processo de alteração do registo de propriedade, a resposta à primeira parte da alínea a) seria a mesma? c) E se a carta de Paulo, expedida a 17 de Janeiro, tivesse sido entregue no dia 20 ao jardineiro, que, por coincidência, fazia o seu serviço nesse dia, mas se esqueceu de fazer chegar a carta às mãos de Jerónimo, só a tendo entregue a este na semana seguinte, quid iuris?

Alínea a) 1º pergunta

- A conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de Jerónimo é eficaz, pois esta chegou à esfera de poder de Paulo (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte). A proposta de Jerónimo continha uma limitação temporal, ou seja, o prazo de vigência da proposta.

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- A aceitação de Paulo é ineficaz, pois apesar deste ter expedido a declaração em tempo, a recepção foi tardia. Nos termos do art. 228º, n.º 1, a proposta mantém-se até o prazo findar, logo a aceitação já não encontrou uma proposta.

- Conclusão: não há contrato.

2º pergunta

- Na primeira pergunta, Jerónimo está perante uma recepção tardia (cf. art. 229º) - O art. 229º distingue duas situações, quanto a esta figura:

� Se a aceitação foi expedida em tempo, mas a recepção foi tardia, o proponente deve alertar o aceitante que o contrato não se concluiu, sob pena de responder pelos danos causados (nos termos da responsabilidade civil extra-contratual). Em caso de dúvida, se a expedição foi feita em tempo ou não, o proponente dever avisar o aceitante para a não conclusão do contrato, pois os riscos não avisar são maiores, comparados com a opção de não alertar o aceitante para o facto, visto que o último pode crer que houve conclusão do contrato. (NOTA: em situação alguma o contrato se concluí por sanção ao proponente, pelo facto deste não ter avisado o aceitante.)

� Se a aceitação foi expedida em tempo, mas a recepção foi tardia,

o proponente tem a faculdade de “ressuscitar” a proposta, de modo a tornar a aceitação eficaz. Em caso de dúvida, se a expedição foi feita em tempo ou não, o proponente não tem esse direito, pois está em causa um direito potestativo, sendo este de carácter excepcional, devido à sua natureza unilateral.

- Na segunda situação, já não estamos perante uma recepção tardia, pois a aceitação não foi expedida m tempo, logo não se podendo aplicar p art. 229º.

Alínea b)

- O facto de Jerónimo telefonar a Paulo para iniciar o processo e alteração do

título de propriedade, constitui um reconhecimento tácito da eficácia da aceitação de Paulo, ou seja, Jerónimo usou a faculdade que o art. 229º, n.º 2 lhe dá, ressuscitando a sua proposta.

- Se, a conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

logo, há um contrato concluído entre Jerónimo e Paulo.

Alínea c)

- A lei impõe como condição para a eficácia de uma declaração, a chegada ao

poder do destinatário desta, ou dele é conhecida (cf. art. 224º, n.º 1) - Não é função de jardineiro receber cartas, logo a entrega da aceitação ao

jardineiro não é válida, pois este não faz parte da sua esfera de poder, por outras

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palavras, a declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida, é ineficaz.

- Se, a conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

logo, não há um contrato concluído entre Jerónimo e Paulo, visto a aceitação não ser eficaz.

III

Horácio possui um piano que pretende vender. Dirige a Felisberto uma proposta, limitada até ao dia 3 de Outubro, às 13h. a) Felisberto escreve, no dia 2, uma carta na qual declara a aceitação da proposta. De regresso da estação do correio é atropelado por um autocarro e morre pouco depois. A carta é metida às 12h do dia 3 de Outubro na caixa de correio de Horácio que a encontra às 14h. b) Felisberto escreve, no dia 2, uma carta na qual declara a aceitação da proposta. A carta é metida às 12h do dia 3 de Outubro na caixa de correio de Horácio que, entretanto, tinha falecido subitamente algumas horas antes. c) Felisberto envia no dia 2 uma carta registada na qual declara a aceitação da proposta. Na manhã do dia 3, o carteiro procura em vão entregar a carta a Horácio. Este encontra-se dentro de casa, mas prefere não abrir a porta porque entretanto obtivera uma oportunidade para vender o piano a um preço mais elevado. Só no dia 4 de Outubro, Horácio recebe a carta. Diga se, nas três hipóteses expostas, ficou concluído um contrato ou não.

Alínea a)

- A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de Horácio é eficaz (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte), mas também limitada no tempo, ou seja, Felisberto terá que aceitar até dia 3 de Outubro às 13h (cf. art. 228º, n.º 1, a)).

- Felisberto morre de regresso da estação de correios, onde enviou a sua aceitação. Segundo o princípio geral do art. 226º, a morte ou incapacidade do declarante não prejudica a eficácia da declaração, pois a declaração autonomiza-se do declarante no momento que é emitida.

- Contudo, o art. 231º, nº 2 estabelece uma excepção ao artigo anteriormente citado. Este art. apenas se aplica a aceitação ainda não se tornou eficaz, ou seja, antes da conclusão do contrato. Assim, este diz-nos: “ A morte ou incapacidade do destinatário (da proposta) determina a ineficácia da proposta”.

- A aceitação da proposta é ineficaz, porque já não encontrou proposta, quando chegou, pois esta já era ineficaz, ao abrigo do art. 231º, n.º 2 que procura tutelar o interesse do proponente.

- Conclusão: não há contrato entre Horácio e Felisberto.

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Alínea b)

- A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de Horácio é eficaz (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte), mas também limitada no tempo, ou seja, Felisberto terá que aceitar até dia 3 de Outubro às 13h (cf. art. 228º, n.º 1, a)).

- Neste caso, Horácio morre, algumas horas antes da chegada da aceitação. - Analisando de novo o art. 231º, mas desta vez o seu n.º 1, este diz-nos que a

morte do proponente não obsta à conclusão do contrato. Contudo esta possibilidade de conclusão do contrato post mortem só é possível quando há uma dispensa da aceitação (art. 234º). A contrario sensu, se retira que não se dispensava a aceitação, logo a aceitação não é eficaz.

- Conclusão: não há contrato entre Horácio e Felisberto.

Alínea c)

- A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A proposta de Horácio é eficaz (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte), mas também limitada no tempo, ou seja, Felisberto terá que aceitar até dia 3 de Outubro às 13h (cf. art. 228º, n.º 1, a)).

- Felisberto tomou as devidas diligências conducentes à aceitação da proposta, enviando uma carta registada a Horácio. Na manhã do dia 3, o carteiro não consegue entregar a carta a Horácio, por este não querer abrir a porta. A aceitação só chega no dia 4.

- Aparentemente, a aceitação chegou fora do prazo, não sendo tempestiva, contudo a lei, no art. 224, n.º 2, consagra uma excepção: se só por culpa do destinatário, a declaração não foi recebida, esta considera-se eficaz.

- Conclusão: há contrato entre Horácio e Felisberto.

IV

António enviou à sua seguradora, por telefax, uma comunicação onde manifestava a vontade de contratar um seguro de responsabilidade civil automóvel pelo valor máximo que a seguradora praticasse. Nessa comunicação, António incluía todos os dados relevantes do automóvel a que se referia o seguro e pedia ainda que a seguradora o informasse caso não pudesse ou não quisesse efectuar o mesmo seguro. O telefax foi enviado às 22.00 de Quinta-Feira e recebido logo depois na companhia. Às 9.00 de Sexta-Feira os serviços comerciais da seguradora enviaram o telefax para os serviços técnicos para ser processada a apólice e aviso de pagamento do respectivo prémio. No Sábado seguinte António sofre um acidente com o automóvel em questão. Estará a sua responsabilidade civil coberta pelo seguro?

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- António só estará coberto se existir um contrato concluído. - A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- António dirige uma proposta à seguradora, por telefax, informando-a que queria contratar um seguro de resp. civil automóvel, indicando todas as condições e dados relativos à viatura. O fax foi enviado às 22.00 de quinta-feira.

- A seguradora recebe o telefax logo depois, e às 9.00 de sexta-feira envia aos serviços técnicos. A proposta torna-se eficaz (art. 224º, n.º 1).

- Estamos perante um caso de dispensa da aceitação, pois no mercado de seguros, as seguradoras não enviam qualquer aceitação, caso aceitem a proposta de seguro.

- Segundo o art. 234º, o contrato dá-se por concluído quando a seguradora mostre intenção de aceitar a proposta: foi o que aconteceu, quando a proposta de António foi enviada aos serviços técnicos.

- Conclusão: há conclusão de contrato, logo António está coberto.

V

João, agricultor, envia um fax a Manuel, grossista, dizendo: "ofereço-lhe 20 toneladas de maçãs ao preço de 50 contos por tonelada. Peço resposta imediata7''.

O fax dá entrada no escritório de Manuel às 21 horas desse dia, não se encontrando lá ninguém a essa hora. Enquanto jantava em casa, João ouve a notícia de que as maçãs vão subir de preço. Na manhã seguinte, envia, o mais cedo que lhe foi possível, um segundo fax a Manuel com o seguinte conteúdo: "não posso manter o preço oferecido, o qual passará a ser de 60 contos por tonelada". Ao chegar ao seu escritório, à hora habitual, Manuel depara com os dois faxes. Imediatamente envia um fax a João dizendo: "aceito o fornecimento de 20 toneladas de maçãs ao preço de 50 por tonelada". João terá de fornecer as maçãs a este preço?

- João só terá que fornecer maças se existir um contrato concluído. - A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- João dirige uma proposta a Manuel, por fax que dá entrada no escritório de Manuel às 21.00 desse dia, oferecendo-se para lhe fornecer maças a 50c./ton. A proposta torna-se eficaz (art. 224º, n.º 1).

- João arrepende-se e envia, na mesma noite, uma retracção da proposta a Manuel. - Manuel depara-se na manhã seguinte com duas propostas. Segundo a lei, só se o

destinatário receber a retracção antes ou ao mesmo tempo da proposta, esta torna-se eficaz (art. 230º, n.º 2). Contudo, isso não aconteceu: a retracção chegou depois da proposta.

- No entanto, a doutrina (cf. Hörster, pag. 458) considera que, mesmo que as duas propostas sejam recebidas em momentos diferentes, o que é decisivo é o momento do conhecimento das propostas. Se esse momento for simultâneo, fica a primeira proposta sem efeito.

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- Conclusão: João terá que fornecer as maças ao preço da retracção.

VI Em l de Junho de 2003, vem publicado um anúncio num jornal onde se lê: "Vende-se serviço de porcelana Vista Alegre pelo melhor preço. Aguardam-se propostas, até ao

dia 7 de Junho. Ivo Costa e Silva, telemóvel: 87 98 924 06”. Depois de um prévio contacto telefónico, no dia 3 de Junho, Ivo e Joana celebram por escrito um contrato de compra e venda do serviço, por 1000 euros, acordando que o preço seria pago no dia 15 do mesmo mês, data em que também seria entregue o serviço. Dois dias depois, em resposta ao mesmo anúncio, Luísa oferece 1500 euros pelo serviço. Ivo celebra, imediatamente, um contrato com Luísa e entrega-lhe o serviço. Também Luísa paga Jogo. Ivo envia então a Joana a seguinte carta: "como me ofereceram um preço melhor pelo serviço, o nosso contrato fica sem efeito", Em 15 de Junho, Joana exige a Ivo a entrega do serviço. Ouid iuris?

- Joana só poderá exigir a Ivo a entrega do serviço se, entre eles, existir um contrato.

- A conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- No dia 1 de Junho, Ivo publica num jornal um anúncio, informando que vende “um serviço de porcelana pelo melhor preço”. Mais acrescentou que aguardava respostas até ao dia 7 de Junho. Ora, este anúncio não constitui uma proposta, mas sim um convite a contratar. O convite a contratar apenas sinaliza o interesse ou a disponibilidade de entrar em negociações com vista à posterior conclusão do contrato, ou seja, o convite a contratar constitui um incentivo para que alguém dirija uma proposta contratual a quem convida, deixando a este o papel de aceitar ou não a dita proposta”1. Assim, uma proposta contratual deve ter como elemento imprescindível a susceptibilidade de ser aceite, ou seja, a proposta deve ser concreta e determinada, devendo prever os efeitos típicos daquele tipo de contrato (ex.: Compra e venda: efeitos – art. 879º C.Civil). O proponente deve aí exprimir uma clara vontade de vinculação aos efeitos jurídicos que a proposta visa realizar.

- No dia 3 de Junho, após um contacto telefónico, Ivo e Joana celebram um contrato escrito de compra e venda do dito serviço de porcelana (art. 874º e ss. C.Civil). Note-se que os contraentes têm liberdade de forma (art. 219º C.Civil), não sendo exigida escritura pública (art. 875º C.Civil), tendo por isso adoptado forma escrita [voluntária] (art. 222º C.Civil), ou seja, documento particular (art. 373º e ss. C.Civil). Combinaram ainda que, o preço seria de 1000 euros, sendo o pagamento e o serviço entregues no dia 15 de Junho.

1 vd., HÖRSTER, Einrich Ewald, A Parte Geral do Código Civil Português, §743, Almedina.

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- Neste momento, já há um contrato celebrado entre Ivo e Joana, que foi concluído no momento em que os dois disseram sim ao telefone, pois a celebração do contrato não depende da sua forma, ao contrário daqueles a que é exigida escritura pública. Conclusão: a propriedade do serviço é de Joana.

- No dia 5 de Junho, devido a uma oferta superior (1500 euros) Ivo celebra com Luísa um contrato de compra e venda do serviço de porcelana. Ivo entrega imediatamente o serviço, tal como Luísa paga logo. Ivo informa Joana que, por ter tido melhor oferta, o contrato entre eles fica sem efeito.

- Ivo não o pode fazer. Na sua carta a Joana, Ivo pretende sugerir que o contrato se extinguiu. Segundo o art. 406º C.Civil, o contrato só se pode extinguir ou modificar-se por mútuo acordo dos contraentes: isto não aconteceu, logo o contrato ainda é válido e existe. Assim, Ivo dispõe de uma coisa que já não é sua, ou seja, vende uma coisa alheia (art. 892º C.Civil), sendo esse contrato nulo. Joana poderá ainda reforçar a sua posição invocando o art. 407º, que nos diz que, em caso de incompatibilidade de direitos pessoais de gozo (o que acontece, uma vez que se trata de propriedade), prevalece o direito mais antigo, que é o de Joana.

- Conclusão: Ivo terá que entregar o serviço a Joana.

VII

António, proprietário de uma fábrica de produtos têxteis, enviou a Bernardo, proprietário de uma loja de pronto-a-vestir, uma carta, acompanhada de um catálogo e respectiva lista de preços, na qual manifestava o seu interesse em lhe fornecer os produtos constantes desse catálogo. A carta foi enviada em 3 de Junho e recebida no dia seguinte. Bernardo escreveu a António, em resposta, que existia um interesse semelhante da sua parte, e tomou a iniciativa de enviar ao mesmo tempo uma minuta de contrato (em dois exemplares) donde constavam os produtos que lhe interessavam e demais condições, mas com preços inferiores aos constantes da lista previamente enviada por António. Esta carta, juntamente com a minuta, foi enviada a 12 de Junho e recebida a 14. O mesmo António limitou-se então a devolver os dois exemplares do contrato devidamente assinados em 20 de Junho. Bernardo recebeu os contratos em 22 do mesmo mês, assinou-os também, e devolveu um dos exemplares a António em 25 de Junho, que o recebeu a 27. a) Diga se existiu, e quando, algum contrato concluído entre António e Bernardo, justificando a resposta e caracterizando juridicamente todas as fases da negociação. b) Se em 20 de Junho António, em vez de enviar os contratos assinados, tivesse apenas escrito a Bernardo dizendo que estava de acordo com o conteúdo do contrato mas que não o queria assinar, em virtude de não ter ainda a certeza de poder fornecer alguns dos modelos, a resposta à pergunta anterior seria a mesma? Justifique.

- António e Bernardo só terão obrigações a cumprir se, entre eles, existir um contrato.

- A conclusão do contrato depende de: � Proposta eficaz � Aceitação eficaz

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Alínea a)

- O envio do catálogo a Bernardo, por parte de António constitui um convite a

contratar2. - Em resposta ao envio do catálogo, Bernardo escreveu a António sinalizando um

interesse semelhante da sua parte, tendo enviado duas minutas de contrato, discriminando os produtos que lhe interessavam, mas com preços inferiores aos constantes na lista enviada por António. Resta saber se já é possível considerar este acto de Bernardo, uma proposta contratual. Na opinião do Prof. Dr. Hörster e do Prof. Agostinho Guedes, o envio das minutas não constitui uma proposta. Esta posição justifica-se pelo facto de Bernardo não ter, desde logo, assinado as minutas, mantendo as dúvidas sobre a sua efectiva vontade de vinculação jurídica. Outros consideram que, as minutas de um contrato, ou seja, a sua forma (quando não exigida por lei) não é decisiva para a conclusão de um contrato e sua posterior validade, pois este contrato poderia ser concluído verbalmente, não sendo por isso relevante o facto de os contraentes terem assinado ou não as minutas. Considerando a última posição o envio das minutas e a carta constituem uma proposta, pois ela preenche todos os requisitos da proposta contratual (opinião unânime), contudo adoptarei para a resolução a primeira posição, visto ser esta a que melhor ser adequa ao desenvolvimento do caso.

- Ao receber e assinar as minutas do contrato, António envia a Bernardo uma proposta contratual; Bernardo aceita proposta ao assinar os exemplares do contrato. Neste momento, conclui-se o contrato entre António e Bernardo.

Alínea b)

- A aceitação com aditamentos, limitações ou outras modificações, importa a

rejeição da proposta (art. 233º C.Civil). Aparentemente, e não havendo informações para o confirmar, a modificação não foi suficientemente precisa, pelo que não constitui nova proposta, logo neste caso, não há conclusão do contrato.

VII

Eduardo e Francisco celebraram, por escrito, um contrato mediante o qual o primeiro se obrigou a fornecer ao segundo material informático diverso, pelo preço global de 20 000 euros com pagamento a trinta dias após a data de emissão da respectiva factura. Recebido o equipamento e a respectiva factura Francisco recusa-se a pagar o preço alegando que tinha sido acordado com Eduardo um desconto de 10% sobre o preço da factura, acordo esse testemunhado por funcionários do mesmo Francisco. Se o caso for levado a tribunal como deverá este decidir?

2 vd. sobre o convite a contratar Caso VI, ponto 3.

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- Francisco terá que pagar o preço se, entre ele e Eduardo, existir um contrato. - A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- A conclusão do contrato deu-se quando os contraentes disseram sim à respectiva proposta e aceitação, tendo celebrado, por escrito, o dito contrato mediante Eduardo se comprometia a fornecer material informático, mediante o pagamento de 20.000 euros de Francisco.

- Ao receber o equipamento e a factura, Francisco repara que o preço não inclui um alegado desconto de 10%, alegadamente acordado entre os dois verbalmente. Apesar de não estar no contrato, o art. 222º C.Civil diz que as estipulações verbais acessórias, anteriores ou contemporâneas ao escrito, são válidas.

- Contudo, para mostrar que “corresponde à vontade das partes”, Francisco invoca como testemunhas, os seus funcionários, que terão presenciado o acordo. No entanto, o art. 394º C.Civil considera inadmissível a prova por testemunhas de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento autêntico.

- Francisco terá assim, que recorrer a outras provas para comprovar o acordo de desconto, caso contrário terá que pagar o preço previsto na factura enviada por Eduardo.

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Representação; procuração na conclusão de um contrato.

XV

Nivaldo, sabendo que o seu amigo Gustavo pretendia arrendar um apartamento no Algarve para passar as suas férias em Agosto, aproveitou as curtas férias que fez nessa região em Abril, para celebrar um contrato de arrendamento de um belo apartamento, com vista para o mar, em nome de Gustavo por 300 contos, sem que este soubesse do sucedido, pagando já um sinal de 75 contos. Uma vez regressado ao Porto, Nivaldo de imediato informou o seu amigo Gustavo, tendo este ficado muito satisfeito. Sem demora, Gustavo escreveu ao proprietário do apartamento perguntando como e quando este pretendia o pagamento dos restantes 225 contos. Porém, e porque entretanto outra pessoa tinha oferecido 400 contos pelo mesmo apartamento para o mês de Agosto, o aludido proprietário devolveu os 75 contos e respondeu a José dizendo que já não estava interessado no contrato. Quid iuris?

- Nivaldo só terá que pagar ao proprietário se, entre eles, existir um contrato. - A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz

- Não é necessário que o declarante emita a declaração negocial: este pode nomear outra pessoa que, em nome dele, emita essa declaração e, assim, negoceie para conclusão de um contrato.

- A figura da representação vem regulada nos arts. 258º e ss., estando a representação voluntária nos arts. 262º e ss. A representação “é um negócio jurídico [unilateral] realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, que produz efeitos jurídicos na esfera jurídica do representado.”

- Nivaldo, sabendo do interesse de Gustavo, mas sem o conhecimento dele, negoceia um contrato de arrendamento (art. 1022º e ss. C.Civil) em nome de Gustavo. Por outras palavras, Nivaldo celebrou um contrato em nome de Gustavo, mas sem poderes, enquadrável no art. 268º C.Civil, tendo ogo pago um sinal de setenta e cinco contos.

- A consequência jurídica da representação sem poderes é a ineficácia do negócio jurídico em relação ao representado, a menos que seja por este ratificado, ou seja, o contrato de arrendamento é ineficaz (não produz efeitos) em relação a Gustavo, mas continua eficaz na esfera jurídica do proprietário do apartamento. Naturalmente, o contrato nunca produz efeitos em relação a Nivaldo, pois este é procurador.

- No entanto, Gustavo até ficou satisfeito com o contrato que Nivaldo celebrou em nome dele, ou seja, Gustavo tenciona ratificar o contrato, o que provoca a total produção de efeitos. Põe-se agora o problema da forma da ratificação (art. 268º, n.º 2 C.Civil e art. 262º, n.º2 C.Civil). A ratificação deve ter a forma exigida para a procuração, sendo que a procuração deve ter a forma do negócio jurídico. No caso concreto, o contrato de arrendamento exige forma escrita,

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consequentemente a ratificação também deve ter essa forma. Gustavo enviou uma carta ao proprietário do apartamento, perguntando quando e como pretendia receber os restantes 225 contos. Esta carta constitui uma ratificação tácita do negócio, sendo possível ao abrigo do art. 217º, n.º 2 C.Civil – o carácter formal da declaração não impede que esta seja emitida tacitamente.

- Conclusão: a forma foi cumprida e o proprietário fica vinculado ao contrato, até porque não reagiu em tempo (art. 268º, n.º 3 C.Civil).

XVI

António sabe que o seu amigo Bernardo pretende estudar Direito na UCP, do Porto. (1°) Assim, por ocasião de uma estadia no Porto arrenda, sem informar Bernardo, um quarto em nome deste. (2°) Suponha agora, em alternativa, que Bernardo tinha pedido a António que lhe arrendasse um quarto no Porto mas este, pelo contrário, arrendou um apartamento no nome de Bernardo. a) Quando, em qualquer dos casos, o senhorio pede o pagamento da renda a Bernardo, este recusa-se. Quid iuris? (Na sua resposta distinga bem entre as situações de interesse existentes nas duas alternativas). b) E se, em qualquer dos casos, Bernardo se limitasse a enviar um cheque com o valor da renda, quais seriam as consequências jurídicas?

Alínea a)

- No primeiro caso, António celebra em nome de Bernardo um contrato de

arrendamento. No entanto, António não tinha poderes para o fazer, ou seja, exerce uma representação sem poderes (art. 268º C.Civil). Concretizando, António arrenda um quarto a Bernardo sem que este o tenha investido de tais poderes. Assim, o contrato só é eficaz em relação ao proprietário do quarto e não quanto a Bernardo, a menos que este o ratifique. O caso informa-nos que Bernardo recusa o pagamento do preço, logo recusa a ratificação. Conclusão: o senhorio não tem direito a pedir o pagamento da renda.

- No segundo caso, Bernardo concede a António poderes de representação (art. 262º C.Civil), para que negoceie um quarto. No entanto, António arrendou um apartamento. Ora, mais uma vez, António não tinha poderes para isso, logo cai numa representação sem poderes (art. 268º C.Civil), sendo o contrato apenas eficaz em relação ao proprietário do apartamento.

Alínea b)

- Ao enviar um cheque, Bernardo estaria a ratificar o negócio jurídico (tanto na primeira como segunda situação), que Bernardo tinha realizado sem poderes. Resta averiguar a forma da ratificação. O art. 7º Regime do Arrendamento Urbano determina que este tipo de contrato seja celebrado por escrito. Ao passar o cheque, Bernardo cumpre essa forma, apesar de tacitamente, o que não constitui impedimento, uma vez que o carácter formal da declaração não impede

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que ela seja emitida tacitamente (217º, n.º 2 C.Civil). Ao ratificar, o contrato produz os seus efeitos totalmente, tanto em relação ao declarante como em relação o declaratário.

XVII

Amílcar, residente no Porto, entrega uma procuração ao seu amigo Bernardo, residente em Lagos, pedindo-lhe a reserva de um quarto de hotel naquela cidade para a primeira quinzena de Agosto. Na procuração nada se dizia sobre o tipo de hotel pretendido por Amílcar. Considere as seguintes hipóteses: a) Bernardo faz uma reserva num hotel de 5 estrelas, com um preço de 4000 euros, apesar de Amílcar lhe ter dito que não queria gastar mais do que 2000 euros. Qual o valor jurídico deste negócio? b) Bernardo reserva um apartamento tipo Tl pertencente a um outro amigo seu por 1700 euros. Qual o valor jurídico deste negócio?

O caso diz-nos que Amílcar entrega uma procuração a Bernardo (262º C.Civil), ou seja, através de um negócio jurídico unilateral, Amílcar atribui voluntariamente poderes representativos e funcionais a Bernardo, para em nome dele negociar para a conclusão de um contrato, neste caso, uma reserva num quarto de hotel.

Alínea a)

Na primeira hipótese, Bernardo reserva um quarto num hotel de cinco estrelas, por 4000€, sabendo que Amílcar apenas pretendia gastar 2000€. Contudo, essa intenção de Amílcar não constava da procuração: Bernardo não estava a ultrapassar os limites formais da procuração, mas sim a abusar conscientemente dos seus poderes representativos, pois Bernardo sabia claramente que aquele negócio não era querido por Amílcar. Assim, Bernardo comete um abuso de representação (269º C.Civil), no entanto este não é relevante juridicamente, a menos que a outra parte conhecesse ou devia conhecer o abuso. Nesse caso, o abuso de representação teria as consequências da representação sem poderes (268º C.Civil).

Alínea b)

Na segunda hipótese, Bernardo reserva um apartamento, por 1700€, apesar da

procuração limitar o negócio a um quarto de hotel. Neste caso, Bernardo já ultrapassa os poderes funcionais que a procuração estabelece, uma vez que esta refere que Bernardo deveria reservar um quarto de hotel. Ora, mesmo que um apartamento seja bastante semelhante, a procuração era clara, logo Bernardo reserva o apartamento sem poderes. A representação sem poderes (268º C.Civil) torna o negócio ineficaz em relação a Amílcar, mas não quanto ao proprietário do apartamento (naturalmente, o negócio é ineficaz em relação a Bernardo, por este ser representante), a menos que seja ratificado por Amílcar. Como o caso não nos dá informação sobre a reacção de Amílcar, só poderemos concluir, para já, que o negócio é ineficaz em relação ao proprietário.

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Invalidade de negócios jurídicos: nemo plus iuris transfere poteste quam ipso habite; prioridade das leis do registo;

XVIII

Vicente vendeu a Xavier, por documento particular, um prédio rústico que possuía nos arredores da cidade onde ambos residem. Xavier não registou a aquisição. Um ano mais tarde, apercebendo-se de que o terreno, em virtude de um plano municipal de ordenamento do território, passara a ser urbanizável, tendo o seu valor triplicado, Vicente volta a vendê-lo, desta vez, a Zacarias. Este também não registou a aquisição. Abel, interessado em comprar o mesmo terreno, informa-se na Conservatória do Registo Predial sobre a identidade do seu proprietário. Depois, dirige-se a Vicente, oferecendo-lhe uma soma acima das expectativas deste. Vicente vende-lhe o terreno, cumprindo todas as formalidades legais, tendo Abel registado de imediato a sua aquisição. a) A quem pertence o terreno? b) Suponha agora que a venda entre Vicente e Xavier, portanto a primeira venda, foi realizada por escritura pública; a pergunta feita "a quem pertence o terreno?" terá a mesma resposta?

Alínea a)

- O primeiro negócio jurídico, feito entre Vicente e Xavier, é um contrato de

compra e venda (874º e ss. C.Civil) de uma coisa imóvel (204º C.Civil), celebrado por documento particular (373º C.Civil). As coisas imóveis (tais como certas coisas móveis, a saber: automóveis, navios, aeronaves e cotas sociais) estão sujeitas a registo. No entanto, Xavier não o fez, o que não tem qualquer consequência na validade do negócio jurídico, apenas este não é oponível a terceiros para efeitos de registo (5º, n.º 4 C.R.Predial), nomeadamente todos aqueles que tenham adquirido de autor comum, direitos incompatíveis entre si. Contudo, Vicente e Xavier celebram o negócio por documento particular, quando a lei exige que este negócio seja reduzido a escritura pública (875º C.Civil). Assim, o contrato é nulo ao abrigo do 220º C.Civil, ou seja, não produz efeitos ab initio. Neste momento, a propriedade é de Vicente.

- No segundo negócio, Vicente volta a vender (874º e ss. C.Civil) o prédio rústico a Zacarias, que também não regista a aquisição, não sendo, como o negócio de Xavier, oponível a terceiros para efeitos de registo. Como nada nos é dito sobre a forma deste negócio, podemos presumir que este cumpriu todos os trâmites legais. Assim, o negócio é válido e a propriedade transfere-se para Zacarias (879º, al. a) C.Civil).

- O terceiro negócio, celebrado entre Vicente e Abel, é também um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil), que como nos diz o caso, cumpriu todas as formalidades legais, ou seja, foi feito por escritura pública. Apesar disso, o negócio é nulo, porque Vicente vendeu uma coisa que já não tem, ou seja, vendeu uma coisa alheia (892º e ss. C.Civil). Contudo, ao contrário dos últimos dois negócios, Abel regista a sua aquisição. Assim, a propriedade transfere-se

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para Abel. Como se justifica este problema? Eis um pequeno artigo, que no essencial, resume a argumentação do problema (tome-se A como Vicente, B como Xavier e Zacarias e C como Abel):

“Problema 1: de quem é a propriedade neste momento?

Penso que é unânime na doutrina e jurisprudência que a propriedade é de C.

Ao adquirir de uma mesma pessoa direitos incompatíveis entre si, C e B tornam-se terceiros para efeitos de registo, como nos informa o art. 5º, n.º 4 do C.R.Predial. Sendo assim, segundo o art.6º, n.º 1 do mesmo código, o registo feito em primeiro lugar prevalece sob todos os outros, ou seja, o registo de C prevalece sobre o de B.

Problema 2: não tendo o registo efeitos constitutivos, porque é que este permite que C se torne proprietário?

C não pode alegar a transmissão do direito de propriedade, porque simplesmente, a propriedade não é de A. O que existe entre A e C é um mero contrato, ou seja, apenas há uma relação que envolve direitos relativos. Neste caso, esses direitos relativos são legais, porque exigidos por lei. Como o 892º do C.Civil, proíbe que A oponha a nulidade do negócio a C, desde que este esteja de boa fé (o que podemos pressupor que acontece, pois este confia no registo), só podemos daqui concluir que C tem o direito a exigir que A cumpra o contrato acordado entre ambos, apesar deste ser inválido. Ao registar, C apenas amplia o direito que tinha, tornando-o absoluto. Como ficou explicado atrás, C tem primazia por ter registado primeiro.

O instituto do registo não pode ser posto em causa junto com a fé pública que o acompanha, sob pena de condenar o tráfego jurídico a uma insegurança inaceitável. Esta teoria, esboçada pelo Prof. Dr. Hörster, sobre um problema que muito ocupa a doutrina e jurisprudência portuguesa, parece-me bem mais justificável e lógica do que a tese de que, neste caso, o registo teria efeito constitutivo, o que me parece ser uma interpretação revogatória do art. 1º do C.R.Predial.”3

Alínea b)

- O facto do primeiro negócio ter sido realizado por escritura pública, apenas altera o valor jurídico do primeiro e segundo negócios, ou seja, o primeiro torna-se válido, e o segundo nulo, por ser uma venda de bens alheios (892º e ss. C.Civil). No essencial, a situação mantém-se, pois só Abel registou a aquisição, por isso continua ele o proprietário.

3 Vd. http://www.iuris.web.pt.

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XIX

(1) António vendeu um terreno a Bernardo, não havendo registo desta aquisição. Depois, António vende o mesmo terreno a César. (2) Daniel arrenda a Eduardo um espaço comercial por dez anos, não havendo registo deste arrendamento. Uma vez que Eduardo se atrasa em ocupar o mesmo, Daniel aproveita e arrenda-o, com um segundo contrato, por uma renda muito maior a Fernando. Diga, em qualquer das duas hipóteses, a) qual é a validade dos contratos celebrados, fundamentando devidamente a sua resposta, e b) quem é, respectivamente, proprietário ou arrendatário dos objectos em causa. A seguir, explique se a feitura dos registos possíveis, tanto na hipótese (1) como na hipótese (2) tem relevância jurídica, e qual, para a solução dos casos.

Alínea a) e b)

- António celebrou com Bernardo um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil) de um bem imóvel (204º C.Civil), que deve ser feito por escritura pública (875º C.Civil), sendo a coisa sujeita a registo. No entanto, Bernardo não a registou, o que não implica a validade do negócio: o registo só é relevante para opor o negócio a terceiros para efeitos de registo (5º, n.º 4 C.R.Predial). Assim sendo, a propriedade transferiu-se (879º, al. a) C.Civil), por mero efeito do contrato (408º C.Civil), para Bernardo. Seguidamente, António vende o mesmo terreno a César. Contudo, António está a vender algo que já não possui, e sendo assim comete uma venda de bens alheios (892º C.Civil). Como consequência, este negócio é nulo, ou seja, não produz efeitos, logo Bernardo mantém-se proprietário

- No segundo caso, há um contrato de arrendamento (porque referente a bens imóveis) (1022º e ss. C.Civil) entre Daniel e Eduardo, sujeito a registo e, por isso necessariamente feito por escritura pública (1029º C.Civil). Contudo, Eduardo não registou o arrendamento, não perdendo com isso o título de arrendatário. Concluindo, este negócio é válido. Vendo que Eduardo tardava a ocupar o espaço comercial, Daniel arrenda esse imóvel a Fernando. Naturalmente, Daniel não pode arrendar algo que já está arrendado, logo este negócio é inválido.

- Caso César e Fernando registassem as suas aquisições, passariam a ser proprietário e arrendatário dos bens objecto dos negócios por eles realizados. Isto explica-se pela prevalência das leis do registo. Concretizando, o art. 6º, n.º 1 C.R.Predial diz-nos que o direito registado em primeiro lugar prevalece sobre todos os outros registados sobre o mesmo bem4.

4 Cf. explicações dadas a este propósito no caso XVIII.

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Simulação e os seus efeitos.

XX

Alberto encontra-se em graves dificuldades económicas. Como tal, para evitar que a sua moradia seja apreendida pelos credores, ficciona vendê-la a Bento. Este, porém, ao contrário do que ficara combinado, e porque começara também a enfrentar uma situação económica desfavorável, vende a casa a Marta. a) Assim que Alberto toma conhecimento deste negócio, pretende reaver a sua casa de Marta. Será procedente a sua pretensão? b) O procedimento de Alberto contra Marta desperta a atenção dos credores; também estes querem que Marta restitua a moradia? Quid iuris?

- De modo a salvaguardar os seus bens dos credores, Alberto vende a sua moradia, coisa imóvel (204º C.Civil), a Bento (874º e ss. C.Civil). Estamos perante uma simulação, pois esta situação preenche os seus pressupostos:

� Divergência intencional entre a vontade e a declaração [Alberto na realidade não queria vender a sua casa];

� Acordo entre declarante e declaratório; � Intuito de enganar terceiros [neste caso, os credores].

- Esta simulação é absoluta, porque na realidade Alberto não queria celebrar negócio nenhum, sendo o negócio nulo (240, n.º 2 C.Civil). O proprietário é Alberto.

- Bento, também em dificuldades económicas, celebra com Marta um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil) dessa mesma casa. Este contrato é nulo, pois é uma venda de bens alheios (892º C.Civil), pois Bento dispõe de uma coisa que não possui.

Alínea a)

- Alberto é um simulador e Marta é um terceiro ao negócio simulado. Os terceiros

estão protegidos no art. 243º C.Civil, sendo o único requisito estar de boa fé, que consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos (243, n.º 2 C.Civil): esta boa fé pode ser culposa5, ou seja, o terceiro pode desconhecer com culpa o negócio simulado. Nada nos indica que Marta conhecia a simulação, logo ela estaria de boa fé, e consequentemente protegida pelo art. 243º de Alberto. Concluindo, Alberto nada poderia fazer contra Marta.

Alínea b)

- Caso diferente é o dos credores: estes já não são simuladores e têm legitimidade

ao abrigo do art. 605 e 286º de invocar a nulidade dos negócios jurídicos, pois eles pretendem conservar a sua massa patrimonial, que foi afectada. Logo, Marta

5 Ao contrário da boa fé consagrada no art. 291º.

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já não se pode proteger pelo ar. 243º. Resta-lhe apenas a protecção do art. 291º, mas é preciso provar que estão cumpridos os cinco pressupostos exigidos:

� O negócio deve dizer respeito a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo [cumpre-se, pois a casa é um bem imóvel];

� Negócio oneroso [cumpre-se, pois foi um contrato de compra e venda];

� O terceiro deve estar de boa fé [cumpre-se, já o vimos a propósito do 243º];

� O registo da aquisição deve ser anterior ao registo de nulidade [não se sabe];

� Devem ter passado três anos após a conclusão do primeiro negócio [não se sabe].

- Assim, se Marta conseguir provar que preenche todos os requisitos está protegida contra os credores, caso contrário a nulidade do negócio é imparável.

XXI

Em 1992, António vende a Berta, com quem mantém secretamente relações extra-matrimoniais, um prédio registado em seu nome. Contudo, conforme fora acordado entre os dois, o preço indicado na escritura pública nunca foi pago, uma vez que António tencionava beneficiar Berta. Posteriormente, Berta vende o mesmo prédio a Carlos, que conhecia perfeitamente o referido acordo entre ela e António, embora não tivesse quaisquer indícios sobre as razões que deram origem àquele procedimento. Carlos, por seu lado, pagou a Berta e registou a sua aquisição. Suponha as seguintes hipóteses: a) António morre em 1997. Poderão os seus herdeiros reaver o prédio de Carlos? b) E se Berta tivesse doado o prédio ao seu amigo Dário que apenas não soube do referido acordo e suas razões subjacentes porque não prestou atenção às explicações da mesma, os herdeiros de António podiam reaver o prédio de Dário? c) E se, em cada uma das hipóteses referidas, os credores de António pretendessem a restituição do prédio – ou de Carlos ou então de Dário, que entretanto também registara a sua aquisição – invocando para o efeito precisamente as razões concretas que deram origem àquela transmissão entre António e Berta, quid iuris?

- De modo a beneficiar Berta, com quem mantém secretamente relações extra-matrimoniais, António vende um prédio seu, coisa imóvel (204º C.Civil), a Berta (874º e ss. C.Civil). Estamos perante uma simulação, pois esta situação preenche os seus pressupostos:

� Divergência intencional entre a vontade e a declaração [António na realidade não queria vender o seu prédio, queria doá-lo];

� Acordo entre declarante e declaratório; � Intuito de enganar terceiros [neste caso, a lei e o conjugue].

- Esta simulação é relativa objectiva, porque na realidade António celebrou um negócio, quando queria concluir outro, neste caso de natureza diferente, sendo o negócio simulado nulo – o contrato de compra e venda – (240, n.º 2 C.Civil). Resta-nos avaliar o negócio dissimulado – o contrato de doação. No art. 241º,

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diz-se que a invalidade do negócio simulado não prejudica a validade do negócio dissimulado, ou seja, este deve ser analisado autonomamente.

- O n.º 2 do mesmo artigo diz-nos que se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver respeitado essa forma. Neste ponto a doutrina diverge quanto à interpretação: a maioria da doutrina e a jurisprudência defende que a forma do negócio simulado (naturalmente, desde que seja essa a requerida para o negócio dissimulado, no caso, ambos os negócios são celebrados por escritura pública) aproveita para o negócio dissimulado. A doutrina minoritária, encabeçada pelo Prof. Dr. Hörster, defende que a forma do negócio simulado não aproveita para o negócio dissimulado; os simuladores devem ter previsto anteriormente essa forma.

- No caso, o problema da forma nem se põe, uma vez que o negócio dissimulado é nulo, pois é um dos casos de indisponibilidade relativa (o doador casado não pode dispor a favor da pessoa com quem cometeu adultério) (953º C.Civil remissível paro o 2196º C.Civil). Assim, conclui-se que tanto o negócio simulado, como o negócio dissimulado são nulos, não tendo a propriedade sido transferida.

- Apesar disso, Berta vendeu o mesmo prédio a Carlos, que pagou e registou a sua aquisição. No entanto, este contrato é nulo, uma vez tratar-se de uma venda de bens alheios (892º C.Civil).

Alínea a)

- Após a morte de António, os seus herdeiros pretendem reaver o prédio. O art.

242º, n.º 2 C.Civil estabelece as condições para que estes o possam fazer. Primeiramente, não poderão ser quaisquer herdeiros: só os herdeiros legitimários (2131º e 2157º C.Civil) poderão arguir a simulação. As outras duas condições são António (autor da sucessão) e que os negócios tenham sido feitos no intuito de os prejudicar (referência à simulação fraudulenta). Ora, estas condições não se verificam, logo resta aos herdeiros assumirem a posição contratual de António, ou seja, terão a legitimidade de um simulador (242º, n.º 1 C.Civil). Assim, os herdeiros são simuladores e Carlos é um terceiro ao negócio simulado. Os terceiros estão protegidos no art. 243º C.Civil, sendo o único requisito estar de boa fé, que consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos (243º, n.º 2 C.Civil): esta boa fé pode ser culposa6, ou seja, o terceiro pode desconhecer com culpa o negócio simulado. Neste caso, é-nos dito que Carlos conhecia o acordo, logo não está protegido pelo art. 243º, pois não preenche o único requisito. Consequentemente, também não está protegido pelo art. 291º, uma vez que este consagra uma boa fé mais exigente.

Alínea b)

- No caso de doação por parte de Berta a Dário (940º e ss. C.Civil), sendo que este

ignora o acordo e as razões subjacentes, porque não prestou a devida atenção ás explicações de Berta, esta continua a ser nula, por ser uma doação de bens alheios (956º C.Civil). Como na alínea a), os herdeiros terão que assumir a posição de simuladores, por não cumprirem as condições do art. 242º, n.º 2 C.Civil, ou seja, os herdeiros são simuladores e Dário é um terceiro ao negócio

6 Vd. nota 1.

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simulado, podendo invocar a protecção do art. 243º, restando-lhe para isso preencherem o requisito de boa fé, sendo que esta consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os respectivos direitos (243º, n.º 2 C.Civil). Com efeito, Dário está de boa fé, pois não conhecia a simulação, não sendo neste caso relevante se o desconhecia com ou sem culpa. Concluindo, no caso de Dário, os herdeiros de António nada poderiam fazer.

Alínea c)

- Os credores de António, ao arguírem a simulação do negócio entre António e

Berta, exercem a sua legitimidade ao abrigo do art. 605º e 286º, uma vez que a consistência económica da sua massa patrimonial foi afectada. No que diz respeito aos terceiros (Carlos e Dário), estes já não se poderão defender com o art. 243º C.Civil, pois este apenas os protege contra os simuladores. Resta-lhes invocar o art. 291º C.Civil. No entanto, nenhum deles preenche os pressupostos exigidos (como se viu nas outras alíneas): Carlos não está de boa fé; Dário estava de boa fé, mas o art. 291º C.Civil exige que boa fé sem culpa (291º, nº 3 C.Civil), logo não está de boa fé e o seu negócio não era oneroso. Assim, seria procedente a intenção dos credores, que pretendiam a restituição do prédio.

XXII Dinis, divorciado, pretende evitar atritos com os filhos do casamento dissolvido. Assim, resolve esconder destes a doação que pretende fazer à sua nova namorada, Eduarda, da sua casa de praia. Para tal, Dinis, Eduarda e Filipe (um amigo de Dinis) acordam no seguinte: a doação será feita, respeitando todos os trâmites legais, a Filipe, que, posteriormente transmitirá a Eduarda da mesma forma a casa de praia. a) Apesar de todas as cautelas de Dinis, os seus filhos vêm a descobrir tudo, dois anos após o ocorrido. Podem reagir? b) E se Filipe, decorrido o prazo convencionado, não doa a casa de praia a Eduarda, mas vende-a a Gustavo?

- Dinis, divorciado, pretende doar à sua namorada a sua casa de praia, mas de modo a evitar atritos com os seus filhos, resolve vende-la a Filipe, respeitando todos os trâmites legais, para que este a doe posteriormente a Eduarda. Estamos perante uma simulação, pois esta situação preenche os seus pressupostos:

� Divergência intencional entre a vontade e a declaração [Dinis na realidade não queria vender o seu prédio a Filipe, queria doá-lo a Eduarda];

� Acordo entre declarante e declaratório; � Intuito de enganar terceiros [neste caso, os filhos de Dinis].

- Esta simulação é relativa subjectiva, porque na realidade Dinis celebrou um negócio com uma pessoa, quando queria concluir esse negócio com outra pessoa, ou seja, há uma interposição fictícia de pessoas, sendo os negócios simulados nulo – o contrato de compra e venda entre Dinis e Filipe; a doação entre Filipe e Eduarda – (240, n.º 2 C.Civil). Resta-nos avaliar o negócio dissimulado – o contrato de doação. No art. 241º, diz-se que a invalidade do

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negócio simulado não prejudica a validade do negócio dissimulado, ou seja, este deve ser analisado autonomamente.

- O n.º 2 do mesmo artigo diz-nos que se o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver respeitado essa forma. Neste ponto a doutrina diverge quanto à interpretação: a maioria da doutrina e a jurisprudência defende que a forma do negócio simulado (naturalmente, desde que seja essa a requerida para o negócio dissimulado, no caso, ambos os negócios são celebrados por escritura pública) aproveita para o negócio dissimulado. A doutrina minoritária, encabeçada pelo Prof. Dr. Hörster, defende que a forma do negócio simulado não aproveita para o negócio dissimulado; os simuladores devem ter previsto anteriormente essa forma.

- Neste caso, seguiremos a doutrina maioritária, reconhecendo assim a validade do negócio dissimulado, uma vez que nos é dito no caso que são cumpridos todos os trâmites legais, e o negócio não é uma indisponibilidade relativa, pois Dinis já é divorciado.

Alínea a)

- Após descobrirem o sucedido, os filhos de Dinis pretendem reagir contra o

negócio. O art. 242º, n.º 2 C.Civil estabelece as condições para que estes o possam fazer. Primeiramente, não poderão ser quaisquer herdeiros: só os herdeiros legitimários (2131º e 2157º C.Civil) poderão arguir a simulação. As outras duas condições são Dinis (autor da sucessão) e que os negócios tenham sido feitos no intuito de os prejudicar (referência à simulação fraudulenta). No caso, os filhos de Dinis cumprem as primeiras duas condições, mas não a última, uma vez que a simulação é inocente, ou seja, feita no intuito de os enganar, e não de os prejudicar. Logo, os herdeiros não poderão reagir.

Alínea b)

- Agora, Filipe vende a casa a Gustavo (874º e ss. C.Civil). Já analisamos o valor

jurídico do negócio entre Dinis e Gustavo: é nulo. Assim sendo, este nunca produziu efeitos, ou seja, a propriedade nunca se transmitiu (879º al. a) C.Civil). Logo, ao dispor da casa, Filipe vende algo que não tem, ou seja faz uma venda de bens alheios, que é nula (892º C.Civil).

- Resta referir que, Gustavo terá a protecção do 243º C.Civil contra Dinis, se se provar que este está de boa fé, e eventualmente do art. 291º C.Civil, mais uma vez se provar todos os requisitos. Caso o faça, estará protegido.

XXIII

Antero, Beltrão e Carlota são os únicos sócios da sociedade comercial "Facas e Canivetes, SA.", cada um detendo 5000 acções com o valor nominal de 5 euros. Antero tem vindo a tentar comprar mais acções de modo a deter mais de 50% do capital social, mas quer Beltrão quer Carlota sempre se negaram a alienar acções a Antero. Considere as seguintes hipóteses: a) Antero acordou com Filipe que este compraria a Beltrão e a Carlota 2510 acções e transmiti-las-ia posteriormente a Antero. Filipe assim fez. Beltrão e Carlota querem agora invalidar os negócios e recuperar as acções vendidas.

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b) Antero acordou com Filipe que este compraria a Beltrão e a Carlota 2510 acções e transmiti-las-ia posteriormente a Antero, mas Filipe, para conseguir que Beltrão e Carlota lhe vendessem as acções e com o conhecimento de Antero, convenceu-os de que era neto do fundador da "Facas e Canivetes, SA." e estava a tentar reconstituir o património da família. Beltrão e Carlota vêm mais tarde a saber a verdade e pretendem reaver as acções. De que meios dispõem para conseguir este objectivo? c) Pressupondo ainda a mesma hipótese da alínea anterior, Beltrão e Carlota conseguiriam reaver as acções se tivessem sabido da verdade quatro anos após a venda das acções?

- “Facas & Canivetes, SA.” é uma sociedade comercial detida por Antero, Beltrão e Carlota, sendo que cada um detém 5000 acções, cada uma com o valor nominal de cinco euros, ou seja, cada um dos sócios tem cerca de 33% do capital da sociedade. Interessado em aumentar a sua participação para 50%, Antero pretende comprar acções a Beltrão e Carlota, mas ambos recusam-se.

Alínea a)

- Não conseguindo convencer os sócios a vender-lhe as acções, Antero acordou

com Filipe que este compraria a Beltrão e Carlota 2510 acções, transmitindo-as depois a Antero. Este caso não é uma simulação, pois de facto Antero queria mesmo contratar Filipe, sendo que este queria mesmo comprar as acções a Beltrão e Carlota, ou seja, não há qualquer divergência entre a vontade e a declaração. Trata-se assim de um mandato sem representação ou de uma interposição real de pessoas, pois Filipe actua em nome próprio (art. 1180º C.Civil). Naturalmente, que o mandatário é obrigado a transferir os direitos/bens adquiridos por via do mandato (art. 1181º C.Civil). Resumindo, o mandatário (Filipe) suporta os efeitos jurídicos, ao passo que o mandante deve suportar os efeitos económicos (art. 1182º C.Civil).

Alínea b)

- Neste caso, mantém-se no essencial a situação descrita na última alínea: Antero

faz um contrato de mandato (sem representação, uma vez que durante as negociações nunca se revela o nome de Antero, o mandante) com Filipe, para que este compre 2510 acções a Beltrão e Carlota. No entanto, é introduzido um novo facto: para convencer Beltrão e Carlota, Filipe disse-lhes que era neto do fundador da sociedade, e que tentava reconstituir o património da família. Convencidos, Beltrão e Carlota vendem as acções a Filipe.

- Assim, conclui-se que Beltrão e Carlota têm a vontade viciada, por outras palavras, formaram uma representação intelectual que não corresponde à realidade. Estamos, por isso perante um erro sobre os motivos (art. 252º C.Civil), mais propriamente um dolo (art. 253º e 254º C.Civil), pois o erro provém de uma actuação exterior, mais propriamente das declarações de Filipe. Neste caso, o dolo é positivo, pois Filipe usou um artifício com a intenção e consciência de induzir Beltrão e Carlota em erro (art. 253º, nº1, 1º parte C.Civil). Não se pode dizer que o dolo foi lícito (art. 253º, n.º2 C.Civil), uma vez que as afirmações de Filipe não são artifícios ou sugestões usais naquela actividade.

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- Consequentemente, Beltrão e Carlota têm direito a anular a declaração (art. 254º, n.º 1 e 287º C.Civil), podendo fazê-lo no prazo de um ano a contar da cessação do vício (art. 287º, n.º1 C.Civil).

Alínea c)

- Como se disse na alínea anterior, Beltrão e Carlota têm um ano subsequente à

cessação do vício que lhe serve de fundamento, neste caso desde o conhecimento do dolo7. Concretizando, mesmo tendo passados quatro anos, Beltrão e Carlota ainda têm mais um ano para arguir anulabilidade do negócio que realizaram. Para isso, devem interpor uma acção especialmente para o efeito, e sendo decretada anulabilidade, todos os efeitos produzidos serão apagados [efeitos ex tung] (289º C.Civil).

XXV

A é um conhecido comerciante de bens imóveis, só que, nos últimos tempos, os seus negócios não têm corrido muito bem. Estando iminente a sua declaração de insolvência, A resolve vender quatro apartamentos a B, seu grande amigo, com o fim de os subtrair ao processo de falência. B prometeu que uma vez resolvido o problema da falência voltaria a transmitir os apartamentos para A. De resto nunca chegou a ser entregue qualquer preço. A venda foi feita a B por intermédio de C, entretanto nomeado procurador de A, C esse que ignorava por completo o acordo existente entre A e B. Este não registou a aquisição. Entretanto, e ainda antes da abertura do processo de falência, D propôs a A comprar os referidos apartamentos por um preço bastante favorável, ao que A, muito aliviado, acedeu de imediato. B, sentindo-se mal-agradecido com a atitude de A, procedeu imediatamente ao registo, antecipando-se à conclusão do contrato entre A e D. a) Qual o valor jurídico do contrato celebrado entre A e B? b) Após a conclusão do contrato entre A e D, quem será o proprietário dos apartamentos? c) Suponha agora que o contrato entre A e D foi concluído depois de declarada a insolvência do primeiro. Quem é o proprietário dos apartamentos?

- A, em francas dificuldades financeiras e de modo a salvaguardar o seu património, vende a B (874º e ss. C.Civil) quatro apartamentos seus, que seriam restituídos quando A resolvesse o problema de falência. Estamos perante uma simulação, pois esta situação preenche os seus pressupostos:

� Divergência intencional entre a vontade e a declaração [A na realidade não queria vender os seus apartamentos];

� Acordo entre declarante e declaratório; � Intuito de enganar terceiros [neste caso, os credores].

7 Vd. MOTA PINTO, Carlos Alberto, Teoria Geral do Direito Civil, páginas 612 e ss., 3º edição, Coimbra Editora

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24

- Esta simulação é absoluta, porque na realidade A não queria celebrar negócio nenhum, sendo o negócio nulo (240, n.º 2 C.Civil). O proprietário é A.

- O facto do negócio ter sido celebrado por um representante, C, não altera o valor do negócio entre A e B, segundo o princípio a boa fé do representante não aproveitar a má fé do representado (259º C.Civil)

- Antes do processo de falência8, e aproveitando o interesse de D, A vendeu-lhe (874º e ss. C.Civil) os apartamentos por um preço muito favorável. Este negócio não é simulado, porque A e D querem mesmo celebrar aquele negócio, que até ajuda a grave situação de A. Assim, por mero efeito do contrato (408º C.Civil), a propriedade transfere-se para D (879º C.Civil). B, apesar de ter registado, nada pode fazer, pois o contrato entre ele e A é nulo, ou seja, nunca produziu efeitos, e por isso A pode perfeitamente vendê-lo.

- A insolvência provoca a ineficácia de todos os negócios, que disponham a massa insolvente. Concretizando, os apartamentos de A fazem parte da massa insolvente, logo A não poderia dispor deles, apesar de continuar sobre a sua propriedade. Logo, depois da declaração de insolvência, o negócio entre A e D é ineficaz.

8 Actualmente, não existe falência, apenas insolvência para ambos os casos.

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25

Incapacidades.

XXVIII

A nasceu em 1 de Janeiro de 1980. No dia 15 de Fevereiro de 1997, vendeu a B uma valiosa baixela, legada pelos seus avós paternos. O preço foi pago e ficou estipulado que a coisa seria entregue dois meses depois. Em 16 de Abril, B apresenta-se em casa dos pais de A, reclamando, na presença e com surpresa deles, a entrega da baixela. a) Será A obrigado a entregar a baixela? Que poderão os seus pais fazer? b) A falece em Dezembro de 1997, sobrevivendo-lhe um filho, C, com seis meses de idade. Suponha que só nesta altura B reclama a baixela. Quid iuris? E se, entretanto, os pais de A tivessem entregue a baixela a B, C poderia reavê-la?

- Primeiramente, há que referir que à data de celebração do negócio, A era menor,

pois tinha menos de 18 anos (122º C.Civil) e, consequentemente não tem capacidade negocial de exercício de direitos (123º C.Civil), logo não pode concluir per si, um contrato de compra e venda. Segundo o art. 125º C.Civil, os negócios jurídicos celebrados pelos menores, são anuláveis.

Alínea a)

- Concluímos que o negócio entre A e B é anulável (125º C.Civil). Contudo, há

três casos, consagrados no 127º C.Civil, que são excepções à incapacidade dos menores:

� Actos de disposição ou administração de bens adquiridos pelo seu trabalho;

� Negócios próprios da vida corrente do menor, que estejam ao alcance a sua capacidade natural, que só impliquem disposições de pequena importância;

� Negócios relativos à sua profissão, arte ou oficio. - Concluímos que nenhuma das excepções se verifica no caso, e por isso, apesar

de já ter produzido alguns efeitos, A pode invocar anulabilidade por via da excepção (287º C.Civil), não tendo assim de entregar a baixela.

- Por via da acção, os pais (porque são representantes legais) podem requerer anulabilidade do negócio celebrado por A (125º, nº 1, al. a) e 287º C.Civil), no prazo de um ano a contar do conhecimento do negócio, mas nunca depois de o menor ter atingido a maioridade, concretizando os pais têm até 31 de Dezembro de 1997 para requerer anulabilidade.

- Os pais de A não podem confirmar o negócio (125º, nº 2 C.Civil), pois estes não poderiam celebrar o negócio, pois é necessária autorização do tribunal para a sua validade (1889º C.Civil).

Alínea b)

- Se A falecer em Dezembro de 1997, ainda menor, e B só nessa altura reclamar a

entrega da baixela, o art. 125º C.Civil cria legitimidades concorrentes: em

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primeiro os representantes legais poderiam anular o negócio, no prazo de um ano, como consagra a alínea a); e depois os herdeiros do menor (se os herdeiros forem menores, serão os representantes deles que arguirão a anulabilidade), tendo também um ano a contar da morte do menor, mas sempre até à data em que o menor atingiria a maioridade, ou seja, mais uma vez, representantes legais e herdeiros só teriam até 31 de Dezembro para invocar anulabilidade por via da acção.

- Caso os pais de A já tivessem entregue a baixela a B, restava a C interpor uma acção de anulabilidade (dentro dos prazos acima referidos) para pedir a invalidade do negócio. Caso fosse decretada, só restava a B restituir a baixela, pois a anulabilidade tens efeitos ex tung, ou seja, todos os efeitos devem ser apagados (289º C.Civil).

XXIX

No dia em que fez 17 anos de idade, A comprou uma moderna motorizada da marca BMW, exibindo ao vendedor desconfiado o bilhete de identidade de um primo homónimo, de modo a fazê-lo crer que já tinha mais de 18 anos de idade. Um mês antes de atingir a maioridade, A falece vítima de um acidente de viação em que a motorizada fica completamente destruída. Sobrevive-lhe um um filho de dois meses, nascido fora do casamento. a) Dez meses depois do acidente, o contrato de compra e venda ainda poderá ser invalidado? Como e por quem? b) Suponha que o vendedor também está interessado em invalidar o contrato. Haverá algum fundamento que lhe sirva de apoio?

- No dia em que fez 17 anos, A celebra um contrato de compra e venda (874º e ss.

C.Civil). Há que referir que à data de celebração do negócio, A era menor, pois tinha menos de 18 anos (122º C.Civil) e, consequentemente não tem capacidade negocial de exercício de direitos (123º C.Civil), logo não pode concluir per si, um contrato de compra e venda. Segundo o art. 125º C.Civil, os negócios jurídicos celebrados pelos menores, são anuláveis.

- Concluímos que o negócio entre A e o vendedor é anulável (125º C.Civil).

Contudo devemos verificar se o acto não se enquadra nos rês casos, consagrados no 127º C.Civil, que são excepções à incapacidade dos menores:

� Actos de disposição ou administração de bens adquiridos pelo seu trabalho;

� Negócios próprios da vida corrente do menor, que estejam ao alcance a sua capacidade natural, que só impliquem disposições de pequena importância;

� Negócios relativos à sua profissão, arte ou oficio. - Verifica-se que nenhuma das excepções é preenchida, logo o negócio continua a

poder ser anulável (125º C.Civil). Contudo, A para provar a sua alegada maioridade, que lhe permitiria comprar a mota, usa o Bilhete de Identidade do seu primo, que é maior, tendo convencido o vendedor. Estamos assim perante

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dolo do menor (126º C.Civil), pois A usa um artifício para induzir o vendedor em erro (253º C.Civil). A consequência do dolo para o menor é que este não perde o direito a invocar a anulabilidade do negócio. Contudo, deve-se referir que o dolo do menor não dá direito ao vendedor de anular o negócio: esse acto perverteria todo o sistema de incapacidades, que tem como principal objectivo a protecção do menor. Devem ser os representantes legais a sancionar o menor e não o vendedor. Consequentemente, só os representantes legais têm direito a invocar a anulabilidade do negócio (125º C.Civil).

Alínea a)

- Como se explicou anteriormente, só os pais poderão invocar anulabilidade,

naturalmente dentro de um ano a contar do conhecimento do negócio, e sempre antes do menor ter atingido a menoridade. No entanto, após dez meses do acidente, o menor já seria maior (há nove meses), logo os representantes legais já nada poderiam fazer (125º,n.º 1, al. a) C.Civil). O seu filho, herdeiro, também nada poderia fazer, primeiramente pelas mesmas razões temporais dos representantes legais (125º, n.º 1, al. c) C.Civil), e depois porque o menor também já não tinha legitimidade para arguir simulação, devido ao dolo.

Alínea b)

- A questão da legitimidade do vendedor já foi resolvida na introdução ao caso.

XXX

António, nascido a 1 de Janeiro de 1980, sofre de perturbações mentais que o impedem de reger a sua pessoa e bens. Em 1 de Janeiro de 1997, os pais de António propuseram uma acção, visando restringir a sua capacidade, e obtiveram sentença favorável em l de Outubro de 1997. Em 5 de Outubro de 1997, António celebrou um contrato-promessa com Bento relativo à venda de uni automóvel que recebera em virtude de uma disposição testamentária. Os pais de António tomam conhecimento do contrato-promessa já no dia da sua celebração. a) Qual teria sido a restrição de capacidade decretada pelo tribunal? A partir de que momento a sentença produz efeitos e porquê? b) Supondo que, no momento em que celebrou o contrato, António estava completamente incapacitado de entender o sentido dos seus actos, poderia esse contrato ser invalidado com fundamento em incapacidade acidental? c) Supondo que o contrato prometido não chegou a ser celebrado, poderá o contrato-promessa ser anulado em 1 de Outubro de 1999? Em caso afirmativo quem o poderá fazer e a que título?

Alínea a)

- António é menor, porque tem menos de 18 anos (123º C.Civil), até ao dia 31 de

Dezembro de 1997. Visto sofrer de perturbações mentais que o impedem de

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reger a sua pessoa e bens, os pais, seus representantes legais, que têm legitimidade ao abrigo do art. 141º, n.º2 , propuseram uma acção para restringir a sua capacidade, tendo obtido sentença favorável. Naturalmente, o tribunal declarou uma interdição, porque António é incapaz de reger a sua pessoa e bens (138º, n.º 1 C.Civil), será muito brevemente maior. A interdição só pode ser aplicada a maiores, mas os representantes podem requerê-la um ano antes da maioridade, para que a pessoa alvo de interdição nunca adquira plena capacidade negocial (138º, n.º 2 C.Civil). A interdição só começará a produzir efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1998, data em que António será maior. A interdição tem um regime mutatis mutandis semelhante à menoridade (139º C.Civil), ou seja, os incapazes carecem de capacidade negocial de exercício. A forma de suprimento da incapacidade é a tutela (143º C.Civil).

Alínea b)

- Quando celebrou o negócio, António era menor, ou seja, não o poderia fazer,

pois carece de capacidade negocial de exercício (123º C.Civil). Logo, em princípio não se pode aplicar a incapacidade acidental, pois esta é para pessoas que, normalmente, possuam capacidade de exercício, como resulta da interpretação do art. 257º, 1º parte C.Civil, a menos que António fosse emancipado ou que o negócio preenchesse alguma das excepções do art. 127º C.Civil, o que não acontece.

Alínea c)

- A 1 de Outubro de 1999, António já era maior e assim, como se viu antes,

interdito. Contudo, o contrato-promessa foi celebrado quando António era menor, logo dever-se-á aplicar o regime de anulabilidade dos menores (125º C.Civil), concluindo-se que, como António já é maior, só ele tem legitimidade para arguir anulabilidade do contrato-promessa (125º, n.º1, al. b) C.Civil), tendo um ano após a maioridade, ou seja, até 31 de Dezembro de 1998. Mas na maioridade, António é interdito, logo ele próprio não poderá requerer anulabilidade: terá que ser o seu tutor, que desde 1 de Janeiro de 1998 cuida dele.

XXXI

Em Fevereiro de 1997, Ricardo adquiriu o equipamento para um estúdio fotográfico que manteve em actividade até Abril de 1998 e onde atendeu os seus clientes. Na sequência de uma acção proposta em Junho de 1997, Ricardo foi interditado por anomalia psíquica, sendo a sentença devidamente registada naquele mês de Abril de 1998. Do parecer psiquiátrico em que o tribunal baseou a decisão consta, sem margem para dúvidas, que Ricardo padecia desde há muito, de uma demência grave. a) O tutor, logo que sabe, na altura da sentença, do parecer psiquiátrico, quer invalidar o negócio de aquisição do equipamento. Quid iuris? b) A solução seria a mesma se Ricardo tivesse feito a sua aquisição em Setembro de 1997, por um preço excepcionalmente favorável? c) E se o preço tivesse sido, mais alto, em comparação com os valores de mercado, quando Ricardo, em Setembro de 1997, o pagou, o tutor pode reagir?

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d) E se, em qualquer dos casos, Ricardo ainda não tivesse pago o preço de aquisição, quid iuris?

- Ricardo, que possuía um estúdio fotográfico, comprou em Fevereiro de 1997

(874º e ss. C.Civil) o equipamento com que atendia os seus clientes. Em Junho de 1997, Ricardo foi interditado, tendo sido a sentença registada em Abril de 1998. Por outras palavras, Ricardo deixou de ter capacidade negocial de exercício, sendo que os seus actos de administração e disposição de bens são anuláveis (125º e 287º C.Civil). O suprimento desta incapacidade é feito por tutela, por pessoa a nomear nos termos do art. 143º. A sentença deve ser comunicada ao registo civil para publicação do registo (147º e 1920º –B C.Civil), sob pena de não poder ser invocada contra terceiro de boa fé (1920º –C C.Civil).

Alínea a)

- O tutor, considerando que servia melhor os interesses do menor, pretende pedir a

declaração de invalidade do contrato de compra e venda, feito por Ricardo em Fevereiro de 1997. Contudo nessa altura, Ricardo ainda não era interdito, logo teria capacidade negocial de exercício9. Mas, para protecção do próprio interdito, o C.Civil consagra no art. 150º a possibilidade de anular os negócios anteriores à publicidade da acção, através da incapacidade acidental (257º C.Civil). Assim, a incapacidade acidental só pode ser invocada se:

� quem fez a declaração se encontrava, por qualquer causa, (1) acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou (2) não tinha o livre exercício da sua vontade;

� o facto fosse notório (se uma pessoa de normal diligência o teria podido notar) ou conhecido do declaratário.

- Apesar de não termos informações suficientemente precisas, tudo leva a crer que os requisitos serão cumpridos (o segundo poderá ser mais duvidoso), visto o enunciado do caso, referir que o parecer psiquiátrico que serviu de base ao tribunal, afirmava, sem margem para dúvidas, que Ricardo sofria há muito de demência grave. Concluindo, se se conseguir provar que a situação preenchia os requisitos do art. 257º C.Civil, o negócio poderia ser anulado, caso contrário, não o poderia.

Alínea b)

- Se Ricardo tivesse celebrado o negócio em Setembro de 1997, já não seria um

acto antes da publicação da sentença (150º C.Civil), mas sim no decurso da acção (149º C.Civil). Esta diferença, apesar de ambos os actos terem igual consequência: a anulabilidade, altera o regime pelo qual esta pode ser arguida. Para que isso aconteça, é necessário que se cumpram as duas condições que o artigo estabelece:

� a interdição deve ser efectivamente decretada; � o negócio cause prejuízo ao interdito.

9 Naturalmente, durante todo este caso, devemos considerar Ricardo maior.

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- Como se vê, o primeiro pressuposto é cumprido, mas não o segundo, porque Ricardo adquire o equipamento por preço excepcionalmente favorável. Logo, o negócio não pode ser anulado.

Alínea c)

- Nesta alínea, Ricardo paga um preço mais alto, em comparação com os valores

de mercado, logo a aquisição causa prejuízo a Ricardo. Fica assim preenchido o requisito que faltava, podendo assim o tutor pedir a anulação do negócio de Ricardo, tendo para o efeito um ano após o registo da sentença (149º, n.º 2 C.Civil).

Alínea d)

- Ricardo celebrou um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil), tendo este

como efeitos essenciais (879º C.Civil): � a transferência da propriedade da coisa ou da titularidade do

direito; � obrigação de entregar a coisa; � obrigação de pagar a coisa.

- Ao não ter pago o preço, o contrato ainda está um cumprimento, ou seja, ainda falta uma obrigação para que ele, no essencial, se cumpra. A consequência deste incumprimento é que o tutor de Ricardo pode arguir a anulabilidade do negócio sem dependência de tempo (os prazos caem), naturalmente quando tem legitimidade para isso, o que se verifica apenas nas alíneas c) e eventualmente na a).

XXXII

Alexandre, apaixonado pela arte, tem vindo a adquirir, por preços elevados, quadros de jovens pintores que considera dotados de talento e merecedores de estímulo, ao mesmo tempo que doa ou vende por preço reduzido obras-primas de grandes mestres a museus e outras instituições públicas, por entender que as obras devem ser acessíveis a todos. Com esta atitude, Alexandre desfez-se de grande parte da sua fortuna, colocando em risco a conservação do seu padrão de vida, bem como o da sua família. A sua mulher, Beatriz, e os seus filhos maiores, Cristiano e Duarte, pretendem restringir a capacidade de Alexandre, de modo a impedir a destruição da sua fortuna. Para esse efeito, é proposta e publicitada uma acção em Janeiro de 1998, e esta vem a ser julgada procedente em Outubro de 1998 e registada em Janeiro de 1999. a) Ao restringir a capacidade de Alexandre, qual terá sido a decisão do tribunal? b) Ao longo dos anos, Alexandre pratica os seguintes actos: 1) em Setembro de 1998, graças à sua intuição e bom gosto, adquire, em leilão, por um preço bastante superior às restantes licitações, um quadro de autor desconhecido, que mais tarde se prova ter sido pintado por Vermeer, como Alexandre suspeitava, e que vale cerca do quádruplo do que por ele foi pago; 2) em Dezembro de 1998 compra uma casa antiga, do século XIV, pelo dobro do preço do seu valor de mercado.

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Qual a validade dos actos praticados por Alexandre? Quem e dentro de que prazos pode invocar uma eventual invalidade daqueles actos?

Alínea a)

- Alexandre, devido à sua paixão pela arte, desfez-se de grande parte da sua

fortuna. A sua família, preocupada, pediu ao tribunal para restringir a capacidade negocial de exercício de Alexandre. A incapacidade terá necessariamente que ser a inabilitação (152º e ss. C.Civil), pois Alexandre apenas não consegue reger os seus bens (na interdição, o incapacitado não consegue reger a sua pessoa e bens), por habitual prodigalidade, uma vez que as outras situações são de excluir (152º C.Civil). A sentença foi registada em Janeiro de 1999. Porque a tudo que não esteja especialmente previsto na secção de inabilitação, deve ser aplicado mutatis mutandis o disposto no regime de interdição, têm legitimidade para requerer a inabilitação, neste caso, tanto o conjugue, como os filhos maiores (porque parte sucessível). A inabilitação é suprível por um curador, pessoa a quem o inabilitado tem que pedir autorização para dispor dos seus bens (153º C.Civil). Quanto à administração dos bens, esta pode ficar a cargo ou não do curador (154º C.Civil). O curador deve uma das pessoas designadas no art. 143º C.Civil (com as devidas adaptações), e os actos praticados sem autorização deste são anuláveis (125º e 257º C.Civil).

Alínea b)

- O primeiro negócio de Alexandre, feito em Setembro de 1998, e por isso no

decurso da acção, foi uma compra e venda (874º e ss. C.Civil) em leilão. Por remissão do art. 156º C.Civil, os actos praticados no decurso da acção podem ser anulados pelo curador, sendo necessário que se cumpram as duas condições que o artigo estabelece:

� a inabilitação deve ser efectivamente decretada; � o negócio cause prejuízo ao inabilitado.

- Como se vê, o primeiro pressuposto é cumprido, mas não o segundo, porque Alexandre adquire o quadro por preço excepcionalmente favorável, apesar de não se reconhecer imediatamente. Logo, o negócio não pode ser anulado.

- No segundo acto de Alexandre, também um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil), é já concluído depois da acção ser julgada procedente, mas antes da publicação. Por isso, a este acto devemos aplicar o art. 150º C.Civil, mais uma vez remetido pelo art. 156º C.Civil. Este artigo é também uma remissão, desta vez para o art. 257º C.Civil. Para protecção do próprio inabilitado, o C.Civil a possibilidade de anular os negócios anteriores à publicidade da acção, através da incapacidade acidental. Assim, a incapacidade acidental só pode ser invocada se:

� quem fez a declaração se encontrava, por qualquer causa, (1) acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou (2) não tinha o livre exercício da sua vontade;

� o facto fosse notório (se uma pessoa de normal diligência o teria podido notar) ou conhecido do declaratário.

- Não temos informações precisas que nos permita esclarecer se os requisitos foram cumpridos ou não, mas caso se conclua que se preencheram, o tutor pode invocar a anulabilidade do negócio, no prazo de um ano a contar do conhecimento do negócio (125º e 287º C.Civil).

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Erro na declaração; Vícios da vontade.

XXXVI

José Honório é um empresário devorado pela ideia de maximizar os seus lucros, Tóni Migalhas é um trabalhador que, por estar desempregado, se encontra em situação económica desesperada. Sabendo deste facto, José Honório propõe a Tóni Migalhas um contrato de trabalho em que este seria remunerado com uma quantia igual a dois terços do salário mínimo nacional. À função desempenhada deveria corresponder, porém, em termos normais, uma soma igual ao dobro do salário mínimo nacional. Tóni aceitou a proposta. a) Poderia, mais tarde, Tóni reagir contra o contrato que se viu forçado a concluir? De que formas? b) E se a remuneração proposta e aceita correspondesse exactamente ao salário mínimo nacional, a solução (dada à alínea a.) seria a mesma?

- José, empresário obcecado pelos lucros, vê em Tóni, desempregado em situação económica desesperada, uma oportunidade de diminuir os custos da empresa. Para isso, celebrou com Tóni um contrato de trabalho, tendo sido acordado que José pagaria a Tóni um valor correspondente a dois terços do salário mínimo nacional. Contudo, a função que Tóni iria desempenhar equivaleria a dois salários mínimos. Apesar das condições, Tóni aceitou a proposta.

Alínea a)

- O contrato celebrado entre José e Tóni resulta em prestações claramente

desequilibradas, ou seja, Tóni não recebe o salário justo para o seu trabalho. Apesar que representar uma limitação à autonomia privada e à liberdade contratual (405º C.Civil), a Lei protege estas pessoas, vítimas de um mau uso da autonomia privada. Assim, o negócio realizado entre José e Tóni, é usurário, visto o seu conteúdo ser desaprovado pela Ordem Jurídica.

- Para que se possa dizer que um negócio é usurário é necessário preencher dois pressupostos, enunciados no art. 282º C.Civil:

� subjectivo: situação de uma situação de inferioridade [necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental, fraqueza de carácter];

� actuação consciente do autor da usura10; � objectivo: dessa situação, retirar benefícios excessivos e

injustificados. - Verificamos que, no caso, os requisitos se cumprem, pois José explora o estado

de desespero económico de Tóni, actua de modo consciente e, por outro lado, retira daí benefícios excessivos, nomeadamente não pagando cerca de um salário mínimo nacional.

10 Vd. CASTRO MENDES, João, Direito Civil (Teoria Geral), 1973, Lisboa

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- Consequentemente, o negócio celebrado entre José e Tóni e anulável (282º, nº1 e 287º C.Civil), sem dependência de tempo, visto o contrato ainda estar em execução (287º, nº 2 C.Civil).

- No entanto, devido à sua situação, Tóni pode não estar interessado nem em anular o contrato, nem em cumpri-lo como ele se encontra concluído. Assim, Tóni pode modificar o negócio, de modo a que ser torne lícito (283º C.Civil), por outras palavras, dá-se uma convalescença do contrato (906º C.Civil). Concretizando, Tóni poderia alterar o contrato ao receber o salário justo para o seu trabalho. Caso Tóni tenha interposto uma acção de anulação, ainda é possível que José se oponha, bastando para isso que aceite a modificação do contrato.

- Poder-se-á ainda afirmar que este contrato é ofensivo aos bons costumes e mesmo à ordem pública, pois é proibido que alguém trabalhe sem receber o salário mínimo nacional. Caso se verificasse, o contrato passaria a ser nulo (280º, nº 2 C.Civil).

Alínea b)

- No caso de José pagar a António o equivalente ao salário mínimo nacional,

poderíamos, desde logo, afastar a possibilidade do negócio ser contrário à ordem pública, visto já não ser contrário a uma disposição legal. No que diz respeito à usura, poder-se-ia discutir se o benefício retirado por José é excessivo e injustificado. Na minha opinião, admitirmos que o benefício já não é excessivo é entrar numa lógica de formalismo, pois na prática, José apenas estaria a pagar mais um terço do salário mínimo nacional, o que não conduz a um radical desagravamento do desequilíbrio entre as prestações. Apesar de se poder admitir o contrário, penso que o negócio ainda é usurário, e por isso anulável ou sujeito a modificação.

XXXVII

Francisco é um apreciador de bons vinhos e gosta de, em ocasiões especiais, presentear os seus amigos com garrafas de colheitas seleccionadas. Vendo aproximar-se o aniversário de um dos seus maiores amigos, resolve oferecer-lhe duas garrafas de vinho do Dão, reserva de 1964 (uma excelente reserva). Contudo, encontrando-se Francisco impossibilitado de comprar ele próprio o vinho, pediu a um colega, Zeferino, que o comprasse, indicando-lhe o tipo de vinho, colheita e estabelecimento onde devia adquirir (junto de um comerciante onde Francisco desde há muito se abastecia de vinhos de castas e reservas de qualidade superior). Chegado ao estabelecimento, Zeferino pediu: "duas garrafas de vinho do Dão, reserva de 1984, para o senhor Francisco". Trocou portanto o ano da reserva trazendo um vinho de qualidade corrente e, por isso, muito inferior ao "reserva 64". Ao receber as garrafas, Francisco telefonou de imediato ao comerciante para desfazer o negócio. Quid iuris? Haveria outra forma de satisfazer o interesse de Francisco?

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- Para oferecer duas garrafas de vinho Dão, reserva de 1964, a um amigo, Francisco pediu a Zeferino para se deslocar ao estabelecimento onde este se abastecia de vinhos de castas e reservas superiores. Contudo, Zeferino pediu duas garrafas de Dão, mas de 1984, dizendo expressamente que seriam para o senhor Francisco.

- Com efeito, este caso centra o seu problema na emissão da declaração. Essa declaração, produzida por Francisco, foi transmitida por Zeferino ao vendedor. O problema está assim, na transmissão da declaração, e não na declaração em si, pois Francisco disse aquilo que efectivamente queria, mas Zeferino não disse aquilo que Francisco queria. Logo, estamos perante um erro na transmissão da declaração (250º C.Civil), mais propriamente na própria declaração, pois Zeferino transmitiu a declaração com palavras diferentes do que na realidade pretendia. Logo, este negócio é anulável, nos termos do art. 247º C.Civil.

- Para que Francisco possa anular a declaração, teria que provar que o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro. Concretizando, para a declaração ser anulável, o vendedor devia conhecer ou não ignorar que adquirir vinhos de reserva superior era essencial para Francisco.

- Pelo que nos diz o caso, podemos afirmar que essa essencialidade era conhecida do vendedor, uma vez que Francisco, naquela loja, só comprava vinhos de qualidade superior, tendo sido dito expressamente por Zeferino que os vinhos eram para Francisco. Concluindo, Francisco pode desfazer o negócio, tendo um ano para o efeito (287º C.Civil).

- Uma outra forma, eventualmente mais prática, de satisfazer o interesse de Francisco, era este acordar com o vendedor a alteração do contrato, de modo a corresponder à sua vontade. Ao fazer isto, estariam a validar o negócio, ou seja, eliminariam a causa da anulação, que não poderia proceder (248º C.Civil). Poder-se-ia também, eventualmente, afirmar que o vendedor não estaria de boa fé, pois ele sabia que Francisco não comprava no seu estabelecimento vinhos correntes. Se assim se considerasse, o vendedor poderia ter que indemnizar os danos que, culposamente, causasse a Francisco, por não agir de boa fé na formação do contrato (227º C.Civil).

XXXVIII

José quer comprar uma enciclopédia de Direito e Economia denominada "Polis", mas está convencido que essa enciclopédia se chama "Logos", nome que designa uma outra enciclopédia, esta de Filosofia. Para o efeito dirigiu-se, por carta, à editora responsável por ambas as enciclopédias e pediu que lhe fosse entregue a enciclopédia de Direito e Economia "Logos". Passados alguns dias recebeu em sua casa a enciclopédia "Logos" e procedeu então ao respectivo pagamento. Quando abriu a embalagem onde se encontrava a enciclopédia verificou que aquela era, afinal, uma enciclopédia de Filosofia e a não a enciclopédia de Direito e Economia que pretendia. José pretende agora desvincular-se do negócio. Poderá fazê-lo?

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- Ao escrever uma carta à editora pedindo a enciclopédia “Logos” de Direito e Economia, José emitiu uma declaração que não corresponde à sua vontade real, pois ele, na realidade, queria a enciclopédia “Polis”. Estamos assim perante uma divergência não intencional entre a vontade real e a declaração, mais propriamente um erro no conteúdo da declaração, visto José usar palavras que têm um sentido diferente (236º C.Civil) do que ele lhes dá.

- Por sua vez, pode-se afirmar que o erro na declaração de José é revelado no contexto da declaração, ou seja, na carta que enviou à editora e, por isso, pode ser considerado um erro de escrita (249º C.Civil). Este é estruturalmente um erro na declaração, mas é ostensivo. O erro na declaração de José consiste em a denominação da enciclopédia não corresponder claramente ao nome e, por sua vez, o nome corresponde a outra enciclopédia. Podemos concluir que o erro é ostensivo e foi revelado no contexto da declaração, sendo assim um erro de escrita.

- O erro de cálculo ou escrita não dá direito a José a anular o contrato, ou seja, José não se pode desvincular dele. José apenas o pode rectificar: correcção do contrato para que fique de acordo com a vontade real do declarante.

XLI

Romeu comprou a César, construtor civil, um andar num edifício de quinze pisos construído por este último. Romeu decidiu-se pela compra deste andar porque, em comparação com outros do mesmo género, apresentava um preço mais acessível. Pouco tempo após a escritura, porém, Romeu toma conhecimento que afinal o edifício onde se encontra o seu andar não dispõe, ao contrário do legalmente exigido, da devida protecção anti-sísmica, pois os respectivos pilares não tinham sido pura e simplesmente construídos, e daí o preço tão acessível. Romeu consulta o seu advogado para saber de todos os meios possíveis que a lei lhe faculta para se desvincular daquele contrato de compra e venda, e de todos os direitos que poderá invocar contra César. Qual deverá ser a resposta do advogado? Considere agora as seguintes hipóteses a respeito da conclusão do contrato de compra e venda entre Romeu e César: a) César celebra o negócio por meio de Luís, seu procurador, que desconhece as "particularidades" da construção do edifício em causa. b) César utiliza, na preparação do contrato, de um mediador, Paulo, que está a par da qualidade da construção mas assegura a Romeu estar em face de uma construção da mais alta qualidade técnica. Diga se, em cada uma das situações descritas, a resposta dada à primeira pergunta continua a ser a mesma.

- Romeu pretende adquirir um apartamento, num prédio construído por Romeu

que, contudo, não disponha da respectiva protecção anti-sísmica, pois os pilares para o efeito não tinham sido construídos. Aproveitando o preço acessível e convencido que o prédio era de boa qualidade, Romeu e César celebram um contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil). Contudo, após a escritura (875º C.Civil), Romeu é informado da qualidade de construção do prédio.

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- Romeu tem, desde logo, vários meios para se desvincular do contrato. Primeiramente, podemos afirmar que Romeu está em erro, não por haver uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada, pois Romeu expressou-se exactamente como realmente queria, mas sim porque a sua vontade está viciada, ou seja, Romeu comprou a casa convencido de que esta tinha pilares anti-sísmicos. Assim, se o declarante soubesse, nunca teria realizado o negócio, pelo menos naquelas condições. Consequentemente, a vontade foi mal formada, fazendo uma representação incorrecta da realidade. Estamos, por isso, perante um erro sobre os motivos.

- Em princípio, o erro sobre os motivos é irrelevante, a menos que diga respeito a uma de três excepções:

� que o erro recaia sobre a pessoa ou objecto do negócio (251º C.Civil);

� que as partes tenham, por acordo, reconhecido a essencialidade do motivo para o declarante (252º, nº1 C.Civil);

� que o erro recaia sobre a base negocial do negócio (252º, nº2 e 437º C.Civil)

- Rapidamente se conclui que o erro recai sobre o objecto [o apartamento] do negócio jurídico (este artigo não abrange o objecto imediato da relação jurídica, pois nunca se pode referir ao conteúdo do negócio). A essencialidade do erro tem de ser encarada sob o aspecto subjectivo do errante11, ou seja, é sob a perspectiva do errante que deve ser avaliado a essencialidade o erro.

- O erro sobre o objecto do negócio tem o mesmo regime do erro na declaração (247º C.Civil): o negócio é anulável se o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, sobre o motivo sobre que incidiu o erro. Dado o carácter essencial da protecção anti-sísmica na parâmetros de construção modernos, pode-se considerar que César, pelo menos, não devia ignorar a essencialidade do motivo, logo Romeu poderia anular o contrato (287º C.Civil).

- Outro instrumento que Romeu teria à disposição é também um tipo de erro sobre os motivos: o dolo (253º e 254º C.Civil). Este erro é estruturalmente um erro sobre os motivos, mas um erro que induzido pelo declaratário ou por terceiro, através de qualquer sugestão ou artifício empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter alguém em erro (dolo positivo, porque implica uma acção), bem como a dissimulação do próprio erro (dolo negativo, porque nasce de uma omissão). Verifica-se que César conhecia perfeitamente essa característica do prédio, nada tendo dito a Romeu. Essa actuação enquadra-se no dolo, mais propriamente negativo, pois César nada fez para corrigir a representação errada da realidade que Romeu tinha. O comportamento de César também não faz parte dos artifícios ou sugestões considerados legítimos segundo as concepções dominantes do comércio jurídico (o chamado dolus bonus, segundo Antunes Varela), porque César está a atribuir, ainda que por omissão, características que o prédio não tem (253º, nº 2 C.Civil).

- O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo, pode anular a sua declaração (254º e 287º C.Civil), tendo para o efeito um ano a contar da cessação do vício, ou seja, a partir do momento em que se apercebe que está em dolo

11 Vd. VARELA, João de Matos Antunes e LIMA, Pires de, Código Civil anotado, volume I, quarta edição, nota 1 ao artigo 251º, Coimbra, 1987

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- Porque o problema do caso se situa, estruturalmente, na fase pré-contratual, Romeu poderia pedir uma indemnização a César com base no art. 227º C.Civil, por danos que este, culposamente, lhe tenha causado.

- Por fim, Romeu ainda se poderia defender recorrendo à figura do objecto contra a ordem pública, por outras palavras, o objecto ou as suas características violam uma disposição legal de carácter imperativo (280º C.Civil). Neste caso, o negócio seria nulo.

Alínea a)

- Caso César tivesse nomeado Luís seu procurador, com vista a conclusão dos

negócios respeitantes àquele prédio, em nada a resposta anterior se alteraria. Segundo o art. 261º, nº 2 C.Civil, o representante [Luís] de boa fé não aproveita o representado [César] de má fé. Logo, César não se poderia defender através da boa fé de Luís e, por isso, Romeu continua a poder anular o contrato nos mesmos termos acima descritos.

Alínea b)

- Mais uma vez, o facto de César ter utilizado um mediador para concluir o

negócio, estando este a par da qualidade de construção do imóvel, não alteraria a consequência jurídica, mas apenas a figura. Neste caso, o dolo já não seria do declaratário, mas de terceiro (254º, nº 2 C.Civil), e passaria a ser positivo, pois parte de uma acção de Paulo. Contudo, para que a declaração seja anulável, é necessário que o declaratário conheça ou devesse conhecer o dolo de terceiro. Em princípio, César conheceria o dolo de Paulo, mas não o podemos afirmar com certeza, visto o caso nada dizer a propósito.

- No entanto, caso não se provasse que César conhecia ou devia conhecer o dolo de Paulo, Romeu poderia recorrer ao art. 227º, pedindo a Paulo uma indemnização, no âmbito da responsabilidade pré-contratual, pelos danos que este tenha, culposamente, provocado a Romeu.

XLIV

António está interessado em comprar um leitor de discos compactos (CD) para integrar na aparelhagem modular que já possui. Para obter informações sobre as características técnicas destes aparelhos, dirigiu-se a uma loja da especialidade. Depois de ter analisado os modelos disponíveis perguntou ao empregado qual o preço do "PDS 1020", tendo então verificado que o mesmo estava dentro do valor que podia pagar (o aparelho custava 150 euros). António pediu então ao mesmo vendedor para embalar um "PDS 1020". Este assim fez, e entregou o modelo a António, recebendo, ao mesmo tempo, o respectivo preço. Atentos estes factos pondere as seguintes questões: a) Em que momento ficou concluído um contrato e entre quem? b) Após ter chegado a casa, António repara que na factura e recibo consta a venda de um "PDS 1050" por 150 euros. Ora, este modelo era bastante melhor e mais caro que aquele que António trouxera, de modo que agora António pretende que o

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vendedor troque o "PDS 1020" entregue pelo "PDS 1050" facturado, sem acréscimo de preço, alegando que foi este o modelo vendido. Terá esse direito? c) António constata que o modelo comprado (que só funciona ligado a um amplificador) não é compatível com o amplificador de quê dispõe, e pretende, por isso, desfazer o contrato. Poderá fazê-lo?

Alínea a)

- A conclusão do contrato depende de:

� Proposta eficaz � Aceitação eficaz � acordo sobre todas as clausulas (232º C.Civil.)

- A proposta de António é eficaz: este pediu para embalar o leitor de discos (cf. art. 224º, n.º 1, 1º parte). Por sua vez, a proposta foi aceite, quando o empregado da caixa encerrou a conta12. O contrato de compra e venda (874º e ss. C.Civil; efeitos 879º C.Civil) foi celebrado entre António e o estabelecimento comercial.

Alínea b)

- Ao chegar a casa, António depara-se com uma incorrecção na factura: o preço

era o correspondente ao “PDS 1020”, mas na descrição do produto constava a designação “PDS 1050”. António pretende uma validação do negócio (248º C.Civil), ou seja, que o declaratário aceitasse o negócio como o declarante o queria, o que já não daria direito à anulação. Contudo, a validação só pode ser feita quando há um direito a anulação (287º C.Civil), o que não acontece, pois o erro da factura é de escrita (249º C.Civil). O erro na declaração do estabelecimento é revelado no contexto da declaração, ou seja, na factura. Este é estruturalmente um erro na declaração, mas é ostensivo. O erro na declaração do estabelecimento consiste em a denominação do leitor de discos, na factura, não corresponder claramente ao real. Podemos concluir que o erro é ostensivo e foi revelado no contexto da declaração, sendo assim um erro de escrita.

- O erro de cálculo ou escrita não dá direito a António a anular o contrato, ou seja, apenas o pode rectificar: alterar a factura, de modo a que ela designe correctamente o leitor de discos.

Alínea c)

- Ao chegar a casa, António constata que o modelo comprado não é compatível

com o seu amplificador. Estamos perante um erro sobre os motivos (252º C.Civil), pois António sabia o que queria, exprimiu correctamente a sua vontade, mas tinha uma representação errada da realidade (pensava que aquele leitor de discos seria compatível com o amplificador, quando na realidade não o era).

- Em princípio, o erro sobre os motivos é irrelevante, a menos que diga respeito a uma de três excepções:

� que o erro recaia sobre a pessoa ou objecto do negócio (251º C.Civil);

12 Naturalmente, partindo do pressuposto que se tratava de um estabelecimento convencional.

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� que as partes tenham, por acordo, reconhecido a essencialidade do motivo para o declarante (252º, nº1 C.Civil);

� que o erro recaia sobre a base negocial do negócio (252º, nº2 e 437º C.Civil)

- Ora, não podemos associar nenhuma das excepções ao caso de António, pois o erro não recai sobre a base negocial, nem sobre o objecto (o leitor podia, de facto ligar-se a um amplificador, mas não ao de António, ou seja, tinha essa característica essencial de se ligar a um amplificador). Restava a António o erro sobre os outros motivos, mas para que o pudesse aplicar, António e o empregado tinham que ter acordado que o leitor de discos tinha que ser compatível com o seu amplificador, pois isso era essencial a António, no entanto o enunciado nada nos diz sobre esse acordo, por isso podemos considerar que ele não existe, logo este erro é irrelevante. António não se pudera desfazer do negócio.

XLVI

José estava interessado em adquirir a Claudino um valioso quadro, tendo-lhe endereçado, para o efeito, uma proposta nesse sentido. Na resposta Claudino afirmou que não lhe venderia o quadro "nem depois de morto". Esta atitude de Claudino resultava de antigas divergências existentes entre os dois. Muito desgostoso, José contou o sucedido ao seu amigo Tóni "Ponta e Mola", assim chamado em virtude de antigas condenações por agressão com armas brancas. Pretendendo fazer um favor ao seu amigo José e sem lhe dizer nada, Tóni telefonou a Claudino e "avisou-o" de que se não vendesse o quadro a José sofreria consequências desagradáveis. Intimidado, Claudino vendeu o quadro em questão a José, pois sabia bem que Tóni não costumava brincar. Passados 4 anos Tóni faleceu num acidente de viação, e Claudino recorreu então ao tribunal para reaver o quadro de Moisés, a quem José o vendera entretanto. Será Moisés obrigado a devolver o quadro? (Analise bem a posição aquisitiva de Moisés) Suponha agora, em alternativa, que ninguém intimidou Claudino, mas que este vendeu o quadro por bom dinheiro a Rafael, que em seguida o vendeu a José, no cumprimento do acordo anteriormente estabelecido entre ambos para permitir a José adquirir a obra de arte. Passados 6 meses Claudino descobre o sucedido e pretende reaver o quadro. Terá êxito nesta sua pretensão?

- Para conseguir “convencer” Claudino a vender-lhe um valioso quadro, José

procura o seu amigo Tóni, que se encarregou de “convencer” Claudino. Tendo sido bem sucedido, Claudino vende (874º e ss. C.Civil) o dito quadro a José.

- Neste caso, estamos perante uma coacção moral, uma vez que é claro que a declaração de Claudino foi determinada pela ameaça de Tóni. Na coacção moral (255º C.Civil), não se pode dizer que não haja vontade negocial, esta é que está viciada, sendo por isso anulável (256º C.Civil). Para que a ameaça seja constituída como coacção deve ser ilícita. No caso, não há dúvidas que a ameaça de Tóni é ilícita, pois poderá, inclusive, atentar contra a vida de Claudino.

- A coacção do caso não é feita pelo próprio declaratário: é Tóni, um terceiro ao negócio, que a executa. Assim, o art. 256º C.Civil exige na coacção por parte de

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terceiro, que o mal seja grave e o receio da sua consumação justificado. Ora, também não haverá dúvidas sobre estes requisitos. O enunciado refere, que Tóni costumava “cumprir as suas promessas”, visto já ter sido condenado por vários crimes contra a integridade física (143º e ss. C.Penal).

- Assim, Claudino pode anular a sua declaração (256º e 287º C.Civil), tendo para isso um ano subsequente à cessação do vicio, ou seja, um ano após a morte de Tóni, pois só nesse momento se poderá considerar que a ameaça cessou.

- Não conseguindo convencer Claudino a vender-lhe o quadro, José acordou com Rafael que este compraria o quadro a Claudino, transmitindo-o depois ao mesmo. Este caso não é uma simulação, pois de facto José queria mesmo contratar Rafael, sendo que este queria mesmo comprar ao quadro de Claudino, ou seja, não há qualquer divergência entre a vontade e a declaração. Trata-se assim de um mandato sem representação ou de uma interposição real de pessoas, pois Filipe actua em nome próprio (art. 1180º C.Civil). Naturalmente, que o mandatário é obrigado a transferir os direitos/bens adquiridos por via do mandato (art. 1181º C.Civil). Resumindo, o mandatário (Filipe) suporta os efeitos jurídicos, ao passo que o mandante deve suportar os efeitos económicos (art. 1182º C.Civil). Concluindo, neste caso, Claudino nada pode fazer.