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Cassandra clare os instrumentos mortais - 06 - cidade do fogo celestial

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Em Cidade do fogo celestial, Clary, Jace, Simon e toda a companhia se unem no meio do caos para enfrentar Sebastian, cujos poderes colocam tudo em risco. E agora, terão que viajar para outra dimensão para conseguir ter uma chance de impedi-lo. Vidas serão perdidas e sangue será derramado nesse último volume, onde o próprio destino do mundo pode ser mudado.

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EmDeusestáaglória:Equandooshomensaelaaspiram,Nãopassadeumacentelhadofogocelestial.

—JohnDryden,AbsalãoeAitofel

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PrólogoCaindocomoChuva

InstitutodeLosAngeles,dezembrode2007

Nodia emque os pais deEmmaCarstairs foram assassinados, o clima estavaperfeito.

Por outro lado, o clima costumava estar perfeito emLosAngeles.Naquelamanhã límpida de inverno, os pais de Emma a deixaram no Instituto nascolinasatrásdaautoestradaPaci cCoast,quedavaparaooceanoazul.Océuestendia-se, sem nuvens, dos penhascos das Paci c Palisades até as praias dePointDume.

À noite, eles tinham recebido um relatório sobre atividade demoníacapróximaàscavernasnapraiadeLeoCarrillo.OsCarstairsforamenviadosparadar uma olhada naquilo. Mais tarde, Emma se recordaria da mãe colocandoumamechadecabelosopradapeloventoatrásdaorelhaenquantoseofereciapara desenhar umamarca de Coragem no pai de Emma, e de John Castairsrindoedizendoquenãosabiabemcomosesentiaemrelaçãoasímbolosnovos.EleestavamaisquesatisfeitocomoqueestavaescritonoLivroGray.

Na hora, porém, Emma estava impaciente com os pais, por isso deu umabraçorápidonosdoisantesdesaircorrendopelosdegrausdoInstituto,comamochilabalançandonosombroseospaisacenandodopátio.

Emmaadorava treinarno Instituto.Não apenasporque seumelhor amigo,Julian, morava ali, mas porque toda vez que entrava ali ela sentia como seestivessevoandoedepoismergulhandonooceano.Oprédioeraumaestrutura

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imensa de madeira e rocha ao m de uma estrada comprida com umcalçamento de pedras sinuoso por entre as montanhas. Todos os cômodos,todos os andares davam para o oceano, para as montanhas e para o céu,extensõesonduladasdeazul,verdeedourado.OsonhodeEmmaerasubircomJulesatéotelhado(emboraatéentãoosdoisestivessemproibidosporseuspaisdefazerisso)paraconferirseavistaseestendiaatéodesertoaosul.

As portas principais a reconheceram e se abriram sem di culdade ao seutoque. A entrada e os primeiros andares do Instituto estavam cheios deCaçadoresdeSombrasadultos,andandodeumladoaoutro.Eraalgumtipodereunião,imaginouEmma.EntãoelaavistouopaideJulian,AndrewBlackthorn,diretordoInstituto,nomeiodamultidão.Semquererseatrasarporcausadoscumprimentos,Emmacorreuparaovestiáriodosegundoandar,ondetrocouojeanseacamisetapelouniformedetreino:umacamisetaextragrande,calçasdemalha largas e o item mais importante de todos: a espada trespassada nascostas.

Cortana.Onomesigni cavasimplesmente“espadacurta”,maselanãoerapequena para Emma. Tinha o comprimento do antebraço da garota, feita demetal reluzente, e levava gravadas na lâmina as palavras que sempre lhecausavam calafrios:Eu souCortana, domesmo aço e damesma têmpera queJoyeuseeDurendal .Opaihavia lheexplicadoosigni cadodaquelesdizeresaopôraespadaemsuasmãospelaprimeiravez,quandoelaestavacom10anos.

—Você pode usar a espada para treinar até os 18 anos, quando então elaserásua—explicouJohnCastairs,sorrindoaoobservá-latrilharosdedospelaspalavras.—Compreendeaimportânciadisto?

Emma balançara a cabeça. Ela sabia o que era “aço”, mas não o que era“têmpera”. “Têmpera” lembrava “temperamento”,umacoisaqueopai semprediziaqueeladeviacontrolar,comoaraiva.Oqueissotinhaavercomalâmina?

— Você já ouviu falar na família Wayland — dissera ele. — Eles foramarmeiros antes de as Irmãs de Ferro começarem a forjar as armas dosCaçadores de Sombras. Wayland, o Ferreiro, criou Excalibur e Joyeuse, asespadasdeArthureLancelote, eDurendal,aespadadoheróiRolando.Eeles

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forjaramestaespadatambém,comomesmoaço.Todoaçodevesertemperado,istoé, submetidoaocalor intenso, su cientequaseparaderretê-looudestruí-lo,comoobjetivode tornaroaçomais resistente.—Opai lhederaumbeijono altoda cabeça.—OsCarstairs têmcarregado esta espadapor gerações.Ainscriçãonos recordadequeosCaçadoresdeSombras sãoasarmasdoAnjo.Tempere-nos no fogo, e caremos mais fortes. Quando sofremos,sobrevivemos.

A menina mal podia esperar até completar 18, dali a seis anos, quandopoderia viajar pelo mundo combatendo demônios, quando poderia sertemperadanofogo.Agoraelacolocavaaespadaatiracoloesaíadovestiário,seperguntandocomoseriaessedia.Emsuaimaginação,elaestavaparadanotopodospenhascosno litoraldePointDume,repelindoosataquesdeumgrupodedemôniosRaumcomaespadaCortana.Julianestavacomela,claro,ebrandiasuaarmafavorita,abesta.

Quando Emma fantasiava, Jules sempre aparecia. Emma o conhecia desdeque se entendia por gente.OsBlackthorn e osCarstairs sempre forammuitochegados,eJuleseraapenasalgunsmesesmaisvelho;elanuncaviverasemele,literalmente. Tinha aprendido a nadar no mar com ele, quando ainda erambebês.Aprenderamaandareacorrer juntos.OspaisdeJulespegaramEmmano colo, e o irmão e a irmã mais velhos dele os castigavam quando os doisfaziamalgumacoisaerrada.

E vira e mexe eles faziam alguma coisa errada. Quando os dois tinham 7anos, Emma teve a ideia de tingir Oscar, o gato branco e fo nho da famíliaBlackthorn,deazulbemforte.Julianlevouaculpa;eelequasesemprelevavaaculpa.A nalde contas, conforme Julesobservara,Emmaera lhaúnica e eletinhaseisirmãos;ospaisdeJulesesqueceriamqueestavamaborrecidoscomelemuitomaisdepressadoqueospaisdeEmmaesqueceriamachateaçãocomela.

Emmase recordavada épocaemqueamãede Julesmorreu,poucodepoisdo nascimento de Tavvy, e de como Emma cara segurando a mão deleenquanto o corpo ardia nos des ladeiros e a fumaça ia até o céu. Ela selembrava do jeito como ele chorara, e também de pensar como meninos

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choravamdiferentedasmeninas,comsoluçosestranhos,entrecortados,comoseestivessemsendopescadoscomumanzol.Talvezfossepiorparaelesporquenãodeviamchorar...

—Uf!—Emmacambaleouparatrás;estiveratãoperdidanospensamentosque trombara no pai de Julian, um sujeito alto com o cabelo castanhobagunçadotalcomoamaioriadosfilhos.—Desculpe,Sr.Blackthorn!

Elesorriu.—Nunca vi uma pessoa tão ansiosa pelo treinamento— gritou, enquanto

eladisparavapelocorredor.A sala de treinamento era um dos cômodos favoritos de Emma. Ocupava

praticamente um andar inteiro, e as paredes leste e oeste eram de vidrotransparente.Davaparaveromarazulempraticamentetodososladosparaosquais seolhasse.Acurvado litoraleravisíveldenortea sul,aságuas in nitasdooceanoPacíficoseestendendoatéoHavaí.

No centrodo assoalhodemadeira extremamente encerado estava a tutoradafamíliaBlackthorn,umamulherautoritária,quesechamavaKaterinaeque,nomomento,sededicavaaensinarlançamentodefacasparaosgêmeos.Livvyacompanhavaas instruçõescomboavontade,comosempre,masTyestavadecarafeia,resistente.

Julian, nas roupas de treinamento leves e frouxas, estava deitado de costaspertoda janelaoeste e conversava comMark, quemantinha a cabeça en adanumlivroefaziaopossívelparaignoraromeio-irmãomaisnovo.

—Vocênãoachaque“Mark”éumnomemeioesquisitoparaumCaçadorde Sombras?—Era o que Julian comentava quando Emma se aproximou.—Tipo,sevocêpararparapensarbem,éconfuso.“Mark,memarque.”

Marklevantouacabeçalouraqueestavavoltadaparaolivroe touoirmãomais novo com expressão severa. Julian girava uma estela na mãodistraidamente. Ele a segurava como um pincel, e Emma sempre o olhava decara feia por isso. A estela deveria ser tratada como uma estela, como umaextensãodoseubraço,nãocomoaferramentadeumartista.

Mark suspirou de modo teatral. Aos 16 anos, era mais velho o su ciente

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paraconsiderarEmmaeJulianirritantesouridículos.— Se isso incomoda tanto você, podeme chamar pelo nome completo—

falou.—MarkAntonyBlackthorn?—Julienfranziuonariz.—Levamuitotempo

paradizertudo.Esefôssemosatacadosporumdemônio?Quandoeuestivessepronunciandometadedonome,vocêjáestariamorto.

—Na atual situação,você está salvando aminha vida?—perguntouMark.—Estáseantecipando,nãoacha,pirralho?

— Poderia acontecer. — Julian não gostou de ser chamado de pirralho esentou-se muito ereto. O cabelo estava arrepiado em tufos rebeldes. A irmãmais velha, Helen, sempre o atacava com escovas de cabelo, mas isso nuncadavajeito.EletinhaocabelodosBlackthorn,assimcomoopaieamaiorpartedos irmãos e irmãs: ondulado e rebelde, da cor de chocolate amargo. Asemelhança da família sempre fascinara Emma, que se parecia muito poucocomseuspais,amenosquevocêconsiderasseofatodeopaidelaserlouro.

HelenagorajáestavaemIdrisháváriosmesescomanamorada,Aline;elashaviamtrocadoanéisde famíliae falavamcom“muitaseriedade”umasobreaoutra, de acordo com os pais de Emma, o que indicava, sobretudo, que seentreolhavamdeumjeitosentimentaloide.Casoseapaixonasseumdia,Emmaestava decidida a nunca ser sentimentaloide assim. Compreendia que haviaalgumaagitaçãoporHeleneAlineseremmeninas,masnãoentendiaoporquê,eosBlackthornpareciamgostarmuitodeAline.AgarotapossuíaumapresençatranquilizadoraeevitavaqueHelenseaborrecesse.

AausênciaatualdeHelensigni cavaquenãohavianinguémparacortarocabelodeJules,ealuzdosolnoquartodeixavaaspontascacheadasdocabelocomumtomdourado.Asjanelasaolongodaparedelesteindicavamaextensãosombria das montanhas que separavam o mar de San Fernando Valley —morrossecosepoeirentosrecortadospordes ladeiros,cactoseespinheiros.Àsvezes os Caçadores de Sombras treinavam ao ar livre, e Emma adorava essesmomentos, amava encontrar trilhas ocultas, quedas d’água secretas e lagartosadormecidos, que descansavam nas rochas perto deles. Julian conseguia

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persuadir os lagartos a rastejar para sua palma e dormir ali enquanto lhesafagavaacabeçacomopolegar.

—Presteatenção!Emmaseabaixouquandoumaespadacompontademadeiravooupertode

sua cabeça, bateu na janela e atingiu Mark na perna ao quicar de volta. Eleatirouolivrodeladoe couparado,olhandodecarafeia.Tecnicamente,Markestava na supervisão secundária e auxiliava Katerina, embora preferisse carlendoaensinar.

—Tiberius—censurouele.—Nãojoguefacasemmim.—Foiumacidente.—LivvysepôsentreoirmãogêmeoeMark.Tiberius era tão moreno quanto Mark era louro, o único dos Blackthorn

(além de Mark e Helen, que não contavam muito por causa do sangue doSubmundo) que não tinha cabelo castanho nem olhos azuis esverdeados, ostraçosdefamília.OscabelosdeTyerampretosecacheados,eosolhosdeumcinzadacordoaço.

—Não,nãofoi—retrucouTy.—Eumireiemvocê.Mark respirou fundo de modo exagerado e passou as mãos pelo cabelo,

deixando os os espetados. Mark tinha os olhos dos Blackthorn, da cor doazinhavre, porém o cabelo, assim como o de Helen, era louro platinado, talcomoodesuamãe.OrumoreradequeamãedeMarkforaumaprincesadacortedas fadas; ela tiveraumcaso comAndrewBlackthorn,dandoorigemàsduas crianças, as quais ela abandonara umanoite nos degraus do Instituto deLosAngelesantesdedesaparecerparasempre.

O pai de Julian assumira os lhos com sangue de fada e os criara comoCaçadoresdeSombras.OsanguedosCaçadoresdeSombraseradominante,e,embora o Conselho não gostasse nada disso, eles aceitavam crianças comsanguedoSubmundonaClave, desdeque apele tolerasseos símbolos.TantoMarkquantoHelenforammarcadosaos10anos,eapelesuportaraossímbolossem problemas, embora Emma tivesse percebido que Mark tivera maisproblemasdecicatrizaçãoqueumCaçadordeSombrascomum.Elanotaraque

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eleseencolheu,apesardetertentandodisfarçar,quandoaestelaforapostaemsuapele.Maistarde,Emmapercebeumaisummontedeoutrascoisasarespeitode Mark: o modo como o formato do rosto, diferente e in uenciado pelosanguedefadas,eraatraente,ea larguradeseusombrossobascamisetas.Elanão sabia por quenotava essas coisas, e não exatamente gostavadisso. SentiavontadedebateremMarkoudeseesconder,comfrequênciaasduascoisasaomesmotempo.

— Você está encarando — falou Julian, olhando para Emma acima dosjoelhosdouniformedetreinamentotodomanchadodetinta.

Elavoltouaprestaratençãonumsobressalto.—Quem?—Mark...denovo.—Elepareceuaborrecido.—Caleaboca!—sibilouEmma,earrancouaesteladasmãosdogaroto.Ele a pegou de volta e uma disputa começou. A garota dava risinhos

enquanto se afastava de Julian. Ela treinara com ele por tanto tempo queconheciacadagestoantesmesmoqueeleo zesse.OúnicoproblemaeraqueEmma tinha tendência a facilitardemais as coisaspara ele.A ideiade alguémmachucarJulianadeixavafuriosa,e,algumasvezes,issoaincluía.

—Issoéporcausadasabelhasnoseuquarto?—QuissaberMarkenquantocaminhavanadireçãodeTiberius.—Vocêsabeporquetivemosquenoslivrardelas!

—Suponhoquetenhafeitoissoparameagastar—disseTy.Eleerabaixinhoparasuaidade,10anos,mastinhaovocabulárioeadicção

de um homem de 80. Ele não costumava mentir, sobretudo porque nãocompreendiaanecessidadedisso.Etambémnãocompreendiaporquealgumasdas coisas que fazia irritavam ou incomodavam as pessoas, e considerava suaraivafrustranteouassustadora,dependendodoprópriohumor.

—Nãoéumaquestãodeagastar,Ty.Simplesmentenãodáparaterabelhasnoquarto...

—Eu estava estudando as abelhas!— explicou omenino, e o rosto pálidocorou. — Era importante, elas eram minhas amigas e eu sabia o que estava

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fazendo.— Assim como sabia o que estava fazendo com a cascavel?— perguntou

Mark.—Algumasvezes,tomamosascoisasdevocêporquenãoqueremosquesemachuque;seiqueédifícilentender,Ty,masnósteamamos.

Tyolhouparaelecomumaexpressãovazia.Conheciaosigni cadode“euteamo”, e sabia que era bom, mas não compreendia por que isso servia comoexplicaçãoparaqualquercoisa.

Markseabaixou,mãosnosjoelhos,emanteveosolhosnamesmaalturadosolhoscinzentosdeTy.

—Estábem,presteatençãonoquenósvamosfazer...—Ha!—Emma conseguira deixar Julian deitado de costas e tirar a estela

dele. O garoto ria, se contorcendo debaixo dela, até que ela prendeu-lhe obraço,segurando-ocontraoassoalho.

—Desisto—disseele.—Eudesis...Elecontinuavaarir,ederepenteEmmafoiinvadidapelaconstataçãodeque

erameioesquisitoestardeitadaemcimadeJules,etambémpelaconstataçãodeque ele tinhaumbelo formatode rosto, tal comoMark.Redondo e juvenil, erealmente familiar, mas ela quase conseguia enxergar, através do rosto deleagora,orostoqueteriaquandoficassemaisvelho.

OsomdacampainhadoInstitutoecooupelocômodo.Eraumrepicardoceegrave, como sinos de igreja. A olhos mundanos, a fachada do Instituto separecia com as ruínas de uma antiga missão espanhola. Embora houvessecartazes dePROPRIEDADE PRIVADA eMANTENHA DISTÂNCIA colocados em todaparte, algumas vezes as pessoas (normalmente,mundanos com uma pequenadosedeVisão)tentavamsubirepassarpelaportaprincipalmesmoassim.

EmmarolouesaiudecimadeJulianenquantoespanavaasprópriasroupascom as mãos. Ela não estava rindo mais. Julian sentou-se muito ereto e seergueu,apoiando-senasmãos,osolhoscuriosos.

—Estátudobem?—indagouele.— Bati o cotovelo—mentiu Emma, e olhou para os outros por cima do

ombro.

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Katerina estavamostrando a Livvy como segurar a faca, e Ty balançava acabeça para Mark.Ty. Foi Emma quem deu a Tiberius o apelido quando elenasceu porque, com 18 meses, ela não conseguia dizer “Tiberius”, então ochamara de “Ty-Ty”. Às vezes, se perguntava se ele se lembrava disso. Eraestranhopensarnoque importavaenoquenão importavaparaTy.Nãodavaparaprever.

—Emma?— Julian se inclinou para ela, e tudo pareceu explodir ao redordeles.Osdois viramumclarão imenso e repentino, e omundo exterior coubranco, dourado e vermelho, como se o Instituto estivesse pegando fogo. Aomesmo tempo, o assoalho debaixo deles estremeceu como o convés de umnavio. Emma escorregou para a frente no momento exato em que começouumagritarianoprimeiroandar:umgritoirreconhecíveleterrível.

LivvytomoufôlegoefoiatrásdeTy,abraçando-ocomosepudesseenvolvereprotegerocorpodoirmãocomodela.Eraumadaspoucaspessoasquepodiatocar Ty sem que ele se importasse; o garoto se levantou com os olhosarregalados, e uma das mãos agarrou a manga da camiseta da irmã.Mark jáestavadepé,eKaterinaempalideceusoboscachosdecabeloescuro.

—Fiquemaqui—ordenouelaparaEmmaeJulianenquantodesembainhavaaespadapresaàcintura.—Tomemcontadosgêmeos.Mark,venhacomigo.

—Não!—gritouJulian,efezumesforçoparaseerguer.—Mark...—Vou car bem, Jules—disseMark, e sorriu demodo tranquilizador; já

seguravaumaadagaemcadamão.Erahábilevelozcomfacas,e suamiraeracerteira. — Fique com Emma — pediu e assentiu para os dois; depois,desapareceuseguindoKaterina,eaportadasaladetreinamentosefechouatrásdeles.

JulesseaproximoudeEmma,segurouamãodelaeaajudoua cardepé;elaqueriadizerque estavabemeque era capazde se levantarpor contaprópria,masdeixouparalá.EmmacompreendiaanecessidadedeJulesdesesentirútil,e, para ele, valia qualquer coisa para ajudar. Outro grito foi ouvido vindo doprimeiro andar; houve o barulho de vidro se quebrando. Emma correu até osgêmeos; imóveis feitopequenasestátuas.Livvyestavapálida;Tyagarrava-lhea

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camisetacomumapertoapavorado.—Vai cartudobem—consolouJules,epôsamãoentreosombrosfrágeis

doirmão.—Nãoimportaoque...—Vocênãotemideiadoqueseja—interrompeuTy,avozentrecortada.—

Nãopodedizerquevaificartudobem.Vocênãosabe.Então houve um novo barulho. Pior que o som de um grito. Um uivo

terrível, selvagem e cruel.Lobisomens? Foi o que Emma pensou, admirada,embora já tivesse ouvido o uivo de um lobisomem antes. Este era algo maissinistroecruel.

Livvy abraçava os ombros de Ty com força. Ele ergueu um pouco o rostobrancoeseusolhosabandonaramEmma,pousandoemJulian.

—Se carmosescondidosaqui—falouTy—,eessacoisa,sejaláoquefor,nosencontraremachucarnossairmã,aívaiserculpasua.

OrostodeLivvyestavaaninhadoemTy;elefaloubaixinho,masEmmanãotevedúvidadeque forasincero.Apesarda inteligênciaassustadora,apesardasesquisiticesedaindiferençaemrelaçãoàsoutraspessoas,eleerainseparáveldairmã gêmea. Se Livvy cava doente, Ty dormia aos pés da cama dela; se elaganhavaalgumarranhão,eleentravaempânico,eoinversotambémacontecia.

Emma viu o con ito de emoções persegui-los ao tar o rosto de Julian; osolhosdelebuscaramosdela,eagarotadeuumrápidoacenocomacabeça.Aideiadepermanecerna salade treinamentoe esperaraquela coisauivaroutravezeviratrásdelesafezsentircomoseapeleestivessedescolandodosossos.

Julian caminhou pela sala e depois voltou com uma besta curva e duasadagas.

—Precisa soltar Livvy, Ty— falou ele, e, após um instante, os gêmeos sesepararam.Julesentregouumaadagaà irmãeofereceuaoutraaTiberius,queolhouparaaarmacomosefosseumacriaturaalienígena.—Ty—disseJules,baixando amão—, por que vocêmantém as abelhas no seu quarto?Do quegostanelas?

Tynãorespondeu.

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—Vocêgostadofatodetrabalharemjuntas,nãoéisso?—emendouJulian.—Bem,nós temosque trabalhar juntosagora.Vamoschegaratéogabineteetelefonar para a Clave, ok? Um pedido de socorro. Então eles vão mandarreforçosparanosproteger.

Tyestendeuamãoparapegarafacaemeneouacabeçabrevemente.—Eraissoqueeuiasugerir,seMarkeKaterinativessemmeouvido.—Ele teria sugerido issomesmo—disse Livvy. Ela segurava a adaga com

maiscon ançaqueTyeaesticoucomosesoubesseoquefazercomalâmina.—Eleestavapensandonisso.

—Vamosterque carmuitoquietosagora.Osdoisvãomeacompanharatéogabinete—falouJules,eergueuosolhos.SeuolharencontrouodeEmma.—EmmavaiatrásdeTavvyeDruedepoisvainosencontrarlá.Certo?

O coração de Emma arremeteu contra o peito como uma gaivota caçandocomida no mar. Octavius, Tavvy, o caçula, com apenas 2 anos. E Dru, de 8anos, jovemdemaisparacomeçaro treinamento físico.Semdúvida,alguémiaterquepegarosdois,eoolhardeJulesimplorouqueelafizesseisso.

—Sim—falouela.—Éexatamenteoqueeuiafazer.

Cortana estava presa às costas deEmma, e ela também seguravauma faca dearremesso.Pareciaqueometalpulsavaatravésdesuasveias,comobatimentoscardíacos,àmedidaqueeladeslizavapelocorredordoInstituto,ascostasparaaparede. De vez em quando, o corredor era entrecortado por uma janela, e avisão domar azul, das montanhas verdes e das nuvens brancas e pací cas aincomodava.Elapensounospais,emalgumlugarnapraia, semfazer ideiadoque estava ocorrendono Instituto. Emmaqueria que eles estivessemali, e, aomesmotempo,sesentiacontentepornãoestarem.Aomenosestavamasalvo.

Emma se encontrava na parte do Instituto que conhecia melhor: osdormitórios familiares. Passou pelo quarto vazio de Helen, com as roupasembaladas e a colcha empoeirada. Passou pelo quarto de Julian, familiar porcausa dosmilhões de noites em que ela dormira ali, e depois pelo quarto deMark, com a porta rmemente fechada. O quarto seguinte era o do Sr.

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Blackthorn, e imediatamente ao ladodele cavaoquartodas crianças.Emmarespiroufundoeempurrouaportacomoombroparaabri-la.

Ovisãodoquartinhopintadodeazula fezarregalarosolhos.Tavvyestavanoberço,asmãozinhasagarrandoasbarraseasbochechasvermelhasdetantoberrar.Drusilla estavaparada,dianteda cama, agarradaaumaespada (sabeoAnjocomoelaconseguiraaquilo);aarmaestavaapontadaparaEmma.Amãode Dru tremia o su ciente para que a ponta da espada dançasse; as trançasprojetavam-se das laterais do rosto rechonchudo, mas a expressão nos olhostípicos dos Blackthorn era de determinação férrea:Não se atreva a tocar nomeuirmão.

—Dru— falouEmmano tommais baixo que conseguiu.—Dru, sou eu.Julesmemandouaquiparapegarvocês.

Drudeixouaespadacaircomumestrondoeirrompeuemlágrimas.Emmapassou por ela e tirou o bebê do berço com o braço livre, erguendo-o até aalturadoquadril.Tavvyerapequenoparaaidade,masaindaassimpesavaunsbons11quilos;elaseencolheuquandoobebêpuxouseucabelo.

—Mamã—falou.—Shhhh.—Eladeuumbeijono topodesuacabeça,quecheiravaa talco

de bebê e lágrimas.—Dru, se agarre nomeu cinturão, ok?Nós vamos até ogabinete.Vamosestarseguroslá.

Dru agarrou o cinturão de Emma com as mãozinhas; já havia parado dechorar.OsCaçadoresdeSombrasnãochoravammuito,mesmoquandotinham8anos.

Emma conduziu as crianças pelo corredor. Os sons do andar de baixoestavam piores agora. Os gritos ainda continuavam, o uivo grave, os sons devidro se partindo e de madeira se quebrando. Emma prosseguia, agarrada aTavvyemurmurandosempararquetudo cariabem,queele cariabem.Eláestavam mais algumas janelas, o sol abrindo caminho por elas cruelmente,quaseacegando.

Emmaestavacegaporcausadopânicoedosol;eraaúnicaexplicaçãoparaelatererradoocaminho.Emmapassoupelocorredore,emvezdeseencontrar

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naentradaqueimaginava,seviuparadanotopodaamplaescadariaquelevavaaosaguãoeàsenormesportasduplasdaentradadoprédio.

OsaguãoestavacheiodeCaçadoresdeSombras.Elaconheciaalgunscomoos Nephilim do Conclave de Los Angeles, usando uniforme preto; outrosvestiam vermelho. Havia leiras de esculturas, todas tombadas agora, empedaçosepónochão.A janelacomvistaparaomar foraestilhaçada,e tinhavidroquebradoesangueportodaparte.

Emmasentiuumrevirarnauseantenoestômago.Nomeiodosaguãohaviaumvultoaltovestidocomtrajesescarlate.Tinhacabelo louroplatinado,quasebranco,eorostopareciaentalhadonomármorecomoodeRaziel,massemacompaixão.Osolhoserampretoscomocarvão,e,emumadasmãos,eletraziaumaespadaornadacomestrelas;naoutra,umcálicereluzentefeitodeadamas.

AvisãodocálicedespertoualgumacoisanamentedeEmma.Osadultosnãogostavam de conversar sobre política perto dos Caçadores de Sombras maisjovens, no entanto ela sabia que o lho de Valentim Morgenstern tinhaassumidoumnomediferentee juradovingançacontraaClave.Tambémsabiaqueelehavia fabricadoumcáliceque erao inversodoCálicedoAnjo,oqualtransformava os Caçadores de Sombras em criaturas demoníacas e más. Elaouvira o Sr. Blackthorn chamar os Caçadores de Sombras malignos deCrepusculares;opaideJuleschegaraamencionarquepreferiamorreraserumdeles.

Aquele era ele então. Jonathan Morgenstern, a quem todos chamavamSebastian— uma gura saída de contos de fadas, uma história contada paraassustarcriançasganhavavida.OfilhodeValentim.

EmmapôsumadasmãosnapartedetrásdacabeçadeTavvyepressionouorosto dele contra o ombro. Ela não conseguia se mexer. Parecia que tinhachumbonospés.AoredordeSebastianhaviaCaçadoresdeSombrasdepretoevermelho, e vultos com capas escuras; será que também eram Caçadores deSombras? Ela não sabia dizer; seus rostos estavam escondidos, e haviaMark,comasmãospresas atrásdo corpoporumCaçadorde Sombrasdeuniforme

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vermelho. As adagas estavam aos pés dele, e havia sangue nas roupas detreinamento.

Sebastianergueuumadasmãosemeneouumdedobrancoelongo.— Tragam-na — falou ele; ouviu-se um murmúrio na multidão, e o Sr.

Blackthorndeuumpassoàfrente,arrastandoKaterinaconsigo.Ela lutava, se debatia, mas o homem era muito forte. Horrorizada e sem

quereracreditarnoquevia,EmmaobservavaenquantooSr.Blackthornpuxavaamulher,atédeixá-ladejoelhos.

—AgorabebadoCáliceInfernal—ordenouSebastian,comumavozsuave,impelindoabordadataçaentreosdentesdeKaterine.

FoientãoqueEmmadescobriuoqueeraouivoterrívelquehaviaescutado.Katerina lutava para se libertar, mas Sebastian era muito forte; ele forçou ocálice entre seus lábios, e Emma a viu engasgar e engolir. A mulher secontorceu para longe deles e, desta vez, o Sr. Blackthorn permitiu que ela sedesvencilhasse;elegargalhava,assimcomoSebastian.Katerinacaiunochão,ocorpoemespasmos,edagargantasaiuumúnicogrito—piorqueumgrito,umuivodedor,comosesuaalmaestivessesendoarrancadadocorpo.

Umagargalhadapercorreuocômodo;Sebastiansorriu,ehaviaalgoterrívelebeloemrelaçãoaele,damesmaformaquehaviaalgoterrívelebeloemcobrasvenenosasegrandes tubarõesbrancos.Emmapercebeuqueeleestava ladeadopordoisacompanhantes:umamulhercomcabelocastanho candogrisalhoeummachadonasmãos,eumvultoaltocompletamentecobertocomumacapapreta. Não dava para ver nenhuma parte dele, a não ser as botas pretas queapareciam debaixo da bainha do traje. Somente o peso e a largura indicavamque,afinal,setratavadeumhomem.

— Esta era a última dentre os Caçadores de Sombras aqui?— perguntouSebastian.

—Temumgaroto,MarkBlackthorn—falouamulherparadaaoladodele,eapontouparaMark.—Deveteridadesuficiente.

SebastianbaixouosolhosparaKaterina,quehaviaparadodesecontorcereestavadeitada,imóvel,comoscabelosescurosemaranhadossobreorosto.

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—Levante-se,irmãKaterina—falouele.—Traga-meMarkBlackthorn.Emma cou olhando, paralisada, enquanto Katerina se erguia lentamente.

Ela fora tutora do Instituto desde que Emma se entendia por gente; Katerinatinha sido professora deles quando Tavvy nasceu, quando a mãe de Julesmorreu,quandoEmmacomeçouotreinamentofísico.Haviaensinadoidiomas,costuradocortes,aliviadoadordearranhõeselhesdadoasprimeirasarmas;elaera parte da família e agora caminhava, os olhos inexpressivos, em meio àbagunçadosalão,esticando-separacapturarMark.

Dru arfou, trazendo Emma de volta à consciência. Emma girou e colocouTavvynosbraçosdeDru;ameninacambaleouumpoucoeentãoserecuperou,apertandooirmãozinhocomfirmeza.

—Corra—disseEmma.—Corraatéogabinete.Digaa Julianque jávouparalá.

O desespero na voz de Emma era evidente; Drusilla não discutiu,simplesmente apertou Tavvy com mais força ainda e saiu correndo, os pésdescalços e silenciosos sobre o pisodo corredor. Emmavirou-se para voltar atarohorrorquesedesdobrava.KaterinaestavaatrásdeMark,empurrando-o

paraafrente,comumaadagaencostadanoespaçoentreosombrosdele.Markcambaleou e quase caiu diante de Sebastian; O garoto estava mais perto dosdegrausagora, eEmmanotouqueeleestiverabrigando.Havia ferimentosnospulsos e nas mãos, cortes no rosto e, com certeza, não houve tempo parasímbolos de cura. Tinha sangue por toda a bochecha direita; Sebastian olhouparaogarotoefezummuxoxo,aborrecido.

—EstenãoétotalmenteNephilim—falouele.—Eleépartefada.Acertei?Porquenãofuiinformado?

Ouviu-seummurmúrio.Amulherdecabelocastanhofalou:—IssosignificaqueoCálicenãofuncionanele,LordeSebastian?—Significaquenãoqueroogaroto—retrucouSebastian.—Nóspoderíamoslevá-loparaovaledesal—emendouamulherdecabelo

castanho.—OuparaosmontesdeEdom,esacri cá-loparaagradarAsmodeuseLilith.

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—Não—observouSebastiandevagar.—Não,creioquenãoseriaprudentefazerissoaalguémcomsanguedopovofada.

Markcuspiunele.Sebastianpareceuassustado.ElesevirouparaopaideJulian:— Dê um jeito nele— falou.— Se quiser, pode machucá-lo. Não tenho

paciênciaparaseufilhomestiço.O Sr. Blackthorn adiantou-se, segurando uma espada longa. A lâmina já

estava manchada de sangue. Mark arregalou os olhos de pavor. A arma foierguida...

AfacadearremessodeixouamãodeEmma.VooupelasalaeseenterrounopeitodeSebastianMorgenstern.

Sebastian cambaleou para trás e a mão do Sr. Blackthorn, que segurava aespada, caiu ao lado do corpo.Os outros estavam gritando;Mark cou de pénumsaltoenquantoSebastianbaixavaosolhosparaafacaemseupeito,ocaboseprojetandodocoração.Elefranziuatesta.

—Ai—disse, e retiroua faca.A lâmina estavamanchadade sangue,masSebastianemsiparecianãoseincomodarcomoferimento.

Elejogouaarmalongeeergueuoolhar.Emmasentiuaquelesolhosescurosevaziosemcimadela,comootoquedededosfrios.Sentiuquandoeleamediude cima a baixo, para avaliá-la, tomar conhecimentode quem ela era e entãodispensá-la.

—Éumapenaquevocênãováviver—falouparaela.—ViverparacontaràClavequeLilithmefortaleceutremendamente.TalvezaGloriosapudessepôrmàminhavida.UmapenaparaosNephilimquenãohajamais favoresque

possampediraosCéus,equenenhumadasinsigni cantesarmasdeguerraqueforjam na Cidadela Adamant possa me ferir agora. — Ele se virou para osoutros.—Matemagarota—ordenou,eesfregoucomnojoocasacoqueagoraestavaensanguentado.

EmmaviuMarkavançarparaasescadasetentarchegaraelaprimeiro,masovultoescuroaoladodeSebastianjáestavaagarrandoogarotoearrastando-oparatráscomasmãosrevestidasporluvaspretas;osbraçosenvolveramMark,

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prendendo-o, quase como se o protegessem. Mark se debateu e depoisdesapareceu da vista de Emma quando os Crepusculares irromperam nosdegraus.

Emma deu meia-volta e correu. Tinha aprendido a correr nas praias daCalifórnia,ondeaareia semovia sobospés a cadapasso,portantoera rápidacomoo ventonopiso sólido.Disparoupelo corredor, o cabelo voando, entãopulou e desceu alguns degraus, virou para a direita e irrompeu no gabinete.Bateuaportaatrásdesiefechouotrincoantesdesevirarparaolhar.

Ogabineteeraumcômodoamplo,comparedescobertasporenciclopédias.Havia outra biblioteca no último andar também, mas era dali que o Sr.Blackthorn administrava o Instituto. Havia uma escrivaninha de mogno comdoistelefones:umbrancoeumpreto.Ofonedoaparelhopretoestavaforadogancho.Julianseguravaofoneegritavaparaooutroladodalinha:

—VocêsprecisammanteroPortalaberto!Nãoestamostotalmentesegurosainda!Porfavor...

AportaatrásdeEmmafezumestrondoeecoouquandoosCrepuscularessejogaram contra ela; Julian ergueu os olhos, alarmado, e deixou o fone cairquandoviuEmma.Elaretribuiuoolhar,depoisdesviouosolhosparaalémdele,em direção à parede leste, que brilhava. No centro, via-se um Portal, umaaberturaretangularatravésdaqualEmmapodiaver formasprateadasgirando,umcaosdenuvensevento.

ElacambaleouatéJulian,queaseguroupelosombros.Seusdedosapertavamapeledelacomforça,comoseogarotonãoconseguisseacreditarqueelaestavaaliouqueerareal.

—Emma—sussurrou ele, e então começoua falarmaisdepressa:—Em,ondeestáMark?Ondeestámeupai?

Elabalançouacabeça.— Eles não conseguem... eu não consegui...— Ela engoliu em seco.— É

Sebastian Morgenstern — falou, e piscou quando a porta estremeceunovamenteporcausadeoutroataque.—Temosquevoltareiratrásdeles...—falouEmma,edeumeia-volta,masamãodeJulianjáestavaaoredordopulso

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dela.—OPortal!—gritoueleacimadosomdoventoedaspancadasnaporta.—

Ele vai para Idris! A Clave o abriu! Emma... ele vai car aberto apenas poralgunssegundos!

— E Mark?! — gritou a garota, embora não tivesse ideia do que poderiafazer,decomopoderiamlutareabrircaminhopelosCrepuscularesquelotavamo corredor, de como poderiam derrotar SebastianMorgenstern, que eramaispoderosoquequalquerCaçadordeSombrascomum.—Nóstemosque...

— Emma! — gritou Julian, e então a porta foi aberta com força e osCrepuscularestomaramasala.Emmaouviuamulherdecabelocastanhogritarpara ela, algo sobre como os Nephilim queimariam, como todos queimariamnasfogueirasdeEdom,quequeimariam,morreriameseriamdestruídos...

JuliancorreuemdireçãoaoPortalepuxouEmmaporumadasmãos;depoisdedarumaolhadaapavoradaparatrás,elapermitiuqueapuxasse.Eseabaixouquando uma echa passou por eles e estilhaçou uma janela do lado direito.Julian agarrou Emma freneticamente, passando os braços ao seu redor; elasentiaosdedosdele seapertandonascostasdacamisetaenquantose jogavamdentrodoPortaleeramengolidospelatempestade.

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Parte1

FizJorraroFogo

Assim,detifizjorrarofogoquetedevorou,etereduziàcinzasobreaTerra,aosolhosdosobservadores.Todosaquelesqueteconheciamentre

ospovosficaramestupefatoscomoteudestino;acabastesendoumobjetodeespanto;fostebanidoparasempre!

—Ezequiel28:18,19

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1APorçãodoCálice

— Imagine uma cena relaxante. A praia em Los Angeles, areia branca, águaazulbatendo,vocêcaminhandonabeiradapraia...

Jaceabriuumdosolhos.—Issoparecemuitoromântico.Ogarotosentadoàfrentedelesuspirouepassouasmãospelocabeloescuro

bagunçado.Emborafosseumdiafriodomêsdedezembro,os lobisomensnãosentiam a temperatura tão intensamente quanto os humanos, e Jordan haviatiradoajaquetaearregaçadoasmangasdacamisa.Elesestavamsentadosfrentea frente em um trecho de grama escurecida numa clareira do Central Park,ambos com as pernas cruzadas, asmãos nos joelhos e as palmas viradas paracima.

Uma rocha se projetava e se erguia no chão perto deles. Ela se partia empedregulhos maiores e menores, e, acima de um dos pedregulhos maiores,estavam Alec e Isabelle Lightwood. Quando Jace ergueu os olhos, Isabelle oencarou e deu um aceno de incentivo. Alec, ao observar o gesto, deu umtapinha no ombro dela. Jace percebera que ele dera uma bronca em Izzy,provavelmentedizendopara elanão interromper sua concentração.Ele sorriupara si; nenhum deles realmente tinha uma razão para estar ali, mas forammesmoassim, “paradar apoiomoral”.Noentanto, Jace suspeitavaque tivessemaisavercomofatodeAlecodiarnãoteroquefazernessesdias,deIsabelleodiar que o irmão estivesse solitário e de ambos estarem evitando os pais e oInstituto.

JordanestalouosdedosdebaixodonarizdeJace.

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—Estáprestandoatenção?Jacefranziuatesta.— Eu estava, até nós entrarmos no território dos anúncios classi cados

ruins.—Ora,quetipodecoisafazvocêsesentircalmoeempaz?Jace tirouasmãosdos joelhos—aposiçãode lótus lhedava câimbrasnos

pulsos—eseapoioucomosbraços.Oventofriochacoalhavaaspoucasfolhassecas que ainda estavampresas aos galhos das árvores, as quais apresentavamumaelegânciafrugalcontraocéupálidodeinverno,comodesenhosfeitoscomcanetaetinta.

— Matar demônios — falou ele. — Uma boa matança limpa é muitorelaxante. As matanças bagunçadas são mais entediantes porque depois vocêprecisalimpartudo...

—Não.— Jordan ergueu asmãos.As tatuagens eram visíveis debaixo dasmangas da camisa.Shanti,shanti,shanti. Jace sabiaque isso signi cava “apazqueultrapassaoentendimento”equeapalavradeveriaserditatrêsvezesparaacalmaramente.Masnadapareciaacalmaradeleatualmente.Ofogoemsuasveiastambémaceleravaopensamento,asideiassurgiamdepressademais,umadepoisdaoutra,comofogosdeartifícioestourando.Ossonhoseramtãovívidosesaturadosdecoresquantopinturasaóleo.Eletentaratiraraquilodedentrodesi,passarahorasehorasnasaladetreinamento,comsangue,hematomas,suore,umavez,comdedosquebrados.MasnãoconseguiranadasenãoirritarAleccom pedidos de símbolos de cura e, em uma ocasião memorável,acidentalmenteincendiouumadasvigas.

FoiSimonquemobservouqueocolegadequartomeditava todososdias,equetalhábitoacalmavaosataquesderaivaincontroláveisquecostumavamserpartedatransformaçãoemlobisomem.Apartirdaí,foraumpequenosaltoparaClary sugerir que Jace “poderia muito bem tentar”, e ali estavam eles, nasegunda sessão. A primeira terminara com Jace deixando uma marca dequeimadura no piso demadeira de Simon e Jordan, por isso, Jordan sugeriraqueeles cassemaoarlivreparaasegundarodada,a mdeevitarmaisdanosà

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propriedade.— Sem mortes — falou Jordan. — Estamos tentando fazer você car

tranquilo.Sangue,mortes,guerranãosãocoisas tranquilas.Nãohámaisnadadequegoste?

—Armas—falouJace.—Eugostodearmas.— Estou começando a pensar que você tem um probleminha de loso a

pessoalaqui.Jaceinclinou-separaafrente,aspalmasapoiadasnagrama.—Souumguerreiro—disseele—Fuicriadocomoumguerreiro.Nãotinha

brinquedos, eu tinhaarmas.Dormicomumaespadademadeiraatécompletar5 anos.Meusprimeiros livros foramsobredemonologiasmedievais, cheiosdeiluminuras. As primeiras canções que aprendi foram cânticos para banirdemônios. Seioquemedápaz, enão sãopraiasnemgorjeiosdepassarinhosemflorestastropicais.Queroumaarmaeumaestratégiaparavencer.

Jordanolhoufixamenteparaele.—Entãoestádizendoqueoquetedápazéaguerra.Jacejogouasmãosparaoaltoeficouempé,tirandoagramadojeans.—Agora você entendeu.— Ele ouviu o estalo da grama seca e deumeia-

volta, a tempo de ver Clary se abaixar através de uma abertura entre duasárvores e emergir na clareira, com Simon a apenas alguns passos atrás.Claryestavacomasmãosnosbolsostraseirosdacalçaeria.

Jaceosobservouporuminstante.Haviaalgumacoisaemolharpessoasquenãosabiamqueestavamsendoobservadas.Eleserecordoudasegundavezqueviu Clary, do outro lado do salão principal do Java Jones. Ela estava rindo econversando com Simon do mesmo jeito que fazia agora. Ele se lembrou dapontada desconhecida de ciúme no peito, di cultando a respiração, e dasensaçãodesatisfaçãoquandoelaabandonouSimonefoiconversarcomele.

As coisasmudaram. Ele deixara de ser consumido pelo ciúme de Simon epassara a ter um respeito relutante pela tenacidade e coragem do rapaz, atéefetivamenteconsiderá-loumamigo,emboraduvidassequeumdiafossecapazdedizerissoemvozalta.JaceobservouquandoClaryolhouporcimadoombro

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esoprouumbeijoenquantoocabelovermelhobalançavanorabodecavalo.Elaeratãopequena,delicada,semelhanteaumaboneca,pensaraumavez,antesdedescobrircomoagarotaeraforte.

ClaryfoiatéJaceeJordan,eSimonescalouosolorochosoaossaltos,atéolocalemqueAleceIsabelleestavamsentados;eledesabouao ladodeIsabelle,que,nomesmoinstante,seinclinouparadizeralgoaoseuouvido,acortinadecabelospretosencobrindoorostodela.

ClaryparounafrentedeJace,balançandonoscalcanharescomumsorriso.—Comoestãoascoisas?— Jordan quer que eu pense numa praia — comentou Jace, em tom de

tristeza.—Eleéteimoso—advertiuClary.—Estádizendoquegostadisso.—Nãoestou,não—retrucouJace.Jordanfezumbarulho,mostrandodesagrado.— Se não fosse por mim, você estaria correndo pela Madison Avenue e

atirando faíscas por todos os orifícios.—O garoto se pôs de pé, encolheu osombros cobertos pelo casaco verde e falou para Clary: — Seu namorado édoido.

—É,maseleégostoso—retrucouClary.—Éisso.Jordanfezumacaretadebrincadeira.—Voucairfora.TenhoqueencontrarMaianocentro.—Elefezumgesto

de despedida engraçadinho e foi embora, se en ando entre as árvores edesaparecendocomopassosilenciosodoloboqueeradebaixodaprópriapele.Jaceobservousuapartida.Salvadoresimprováveis,pensou.Seismesesatrás,elenão teria acreditado se alguém dissesse que ia acabar tendo aulas decomportamentocomumlobisomem.

Jordan,SimoneJacemeioquetinhamcomeçadoumaamizadenosúltimosmeses. Jace não conseguia evitar usar o apartamento deles como um refúgio,que o mantinha distante das pressões diárias do Instituto e distante daslembranças de que a Clave ainda não estava preparada para a guerra contra

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Sebastian.Erchomai.ApalavratocoualgumpontodamentedeJacecomadelicadeza

deumapenaeo fezestremecer.Eleviuumaasadeanjo,arrancadadocorpo,estiradanumapoçadesanguedourado.

Estouchegando.

—Oquehouve?—perguntouClary;Jacesubitamentepareceuestaramilhõesdequilômetrosdali.

Desde que o fogo celestial entrara em seu corpo, ele tendia a divagar pormaistempo.Clarytinhaasensaçãodequeeraumefeitocolateralpelofatodeelereprimirasemoções.Elasentiuumapontadadedor.Quandooconhecera,Jace eramuito controladoe sóum tiquinhode seueuverdadeirovazavapelasssuras da armadura pessoal, como a luz passando pelas rachaduras de uma

parede. Foi necessário um longo tempo para romper todas aquelas defesas.Agora, porém, o fogo em suas veias o obrigava a se controlar, a engolir asemoçõesemproldasegurança.Masquandoofogoseextinguisse,seráqueeleseriacapazdedemoliraquelasdefesas?

Elepiscou;avozdelaochamaradevolta.OsoldeinvernoestavaaltoefrioedestacavaosossosdorostodeJace,alémdeacentuarasolheiras.Eleesticouamãoparaseguraradelaerespiroufundo.

— Você está certa — falou, usando uma voz baixa e mais séria que elereservava apenas para ela.— Isto está ajudando... as lições com Jordan. Estáajudando,eeugostodisto.

—Eusei.—Clarysegurouopulsodele.Apeleeraquentesobotoque;elepareciater cadoalgunsgrausmaisquentequeonormaldesdeoencontrocomaGloriosa.Ocoraçãodeleaindabatianoritmofamiliar,regular,masosanguenasveiaspareciabombearcomaenergiacinéticadofogoprestesaarder.

Ela counapontadospésparabeijarabochechadele,masJaceseviroueoslábiossetocaram.Elesnãotinhamfeitonadaalémdesebeijardesdequeofogoqueimarapelaprimeiravezno sanguedele, emesmo issoera feitocommuitacautela.Jacetomavacuidadoagora,abocaroçandoadeladelicadamente,amão

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segurandooombro.Porummomento,seuscorposseencontraram,eelasentiuabatidaeapulsaçãodosanguedele.Jaceapuxouparasi,eumafaíscadiretaefortepassounomeiodeles,comoozumbidodeeletricidadeestática.

Jace interrompeuobeijoedeuumpassopara trás, comumsuspiro.AntesqueClarypudessedizeralgumacoisa,umcorodeaplausossarcásticosirrompeuda colina mais próxima. Simon, Isabelle e Alec acenavam para eles. Jace fezumamesuraenquantoClarydavaumpassoparatrás, levementeconstrangida,ospolegaresenfiadosnocósdojeans.

Jacesoltouumsuspiro.—Devemosnosjuntaraosnossosamigosirritantesevoyeurs?—Infelizmente, éoúnico tipodeamigosquenós temos.—Clarybateuo

ombro contra o braço dele, e os dois se dirigiriam para as rochas. Simon eIsabelle estavam lado a lado e conversavam em voz muito baixa. Alec estavasentadoumpoucoafastadoe tavaateladeseucelularcomumaexpressãodeconcentraçãointensa.

Jacedesabouaoladodeseuparabatai.— Ouvi dizer que se você encarar tempo su ciente uma coisa dessas, ela

toca.—Elemandouumamensagemde textoparaMagnus—explicou Isabelle,

olhandoporcimadoombrocomardereprovação.—Eunão—respondeuAlexautomaticamente.—Mandou,sim—retrucouJace,eesticouopescoçoparaolharporcimado

ombrodeAlec.—Eestátelefonando.Dáparaveraschamadasrealizadas.— É aniversário dele — explicou Alec, e fechou o telefone. Ele parecia

menor nos últimos dias, quase esquelético no pulôver azul desbotado comfurinhosnoscotovelos,eoslábiosmordidoserachados.Clarysentiapenadele.DepoisqueMagnusterminaracomele,Alecpassaraaprimeirasemanaapósorompimentonumaconfusãode tristeza edescrença.Nenhumdeles conseguiarealmente acreditar. Ela sempre pensara que Magnus amava Alec, querealmenteoamava;eraevidentequeAlectambémtinhaacreditadonisso.—Eunãoqueriaqueelepensassequeeunão...quepensassequeeumeesqueci.

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—Vocêestácomsaudades.Alecdeudeombros.—Olhe sóquemfala: “Oh,euaamo.Oh,ela éminha irmã.Oh,porquê,

porquê,porquê...”JacejogouumpunhadodefolhassecasemAlecefezogarotocuspir.Isabelleestavarindo.—Vocêsabequeeletemrazão,Jace.— Me passe o telefone — disse Jace, ignorando Isabelle. — Ande,

Alexander.—Nãoédasuaconta—falouAleceafastouocelular.—Esqueceissotudo,

estábem?— Você não come, não dorme, ca olhando para o telefone, e eu é que

tenhoqueesquecertudoisso?—retrucouJace.Havia uma quantidade surpreendente de agitação em sua voz. Clary sabia

comoainfelicidadedeAlecoincomodava,masnãotinhacertezaseAlectinhanoção disso. Em circunstâncias normais, Jace teria matado, ou ao menosameaçado, qualquer um que magoasse Alec; mas agora era diferente. Jacegostava de vencer, mas não dava para vencer nada com o coração partido,mesmoquefosseodeoutrapessoa.Mesmoquefossedeumapessoaquevocêamasse.

Jace se inclinou e tirou o telefone da mão doparabatai. Alec protestou eesticouobraçoparapegaroaparelho,mas Jaceoafastoucomumadasmãos,rolandopelatelaparaverasmensagenshabilmentecomaoutramão.“Magnus,retornealigação.Precisosabersevocêestábem...”Elebalançouacabeça.

—Tudobem,não.Nãomesmo.—Comummovimentodecidido,quebrouo telefone ao meio. A tela cou em branco enquanto Jace deixava as peçascaíremnochão.—Pronto.

Alecbaixouosolhosparaaspeçasquebradassemacreditar.—VocêQUEBROUmeuTELEFONE.Jacedeudeombros.—Carasnãopermitemqueoutros caras quem ligandoparaoutros caras.

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Tá, saiu errado. Amigos não deixam que amigos quem ligando para ex-namoradosedepoisdesligando.Sério.Vocêtemqueparar.

Alecpareciafurioso.—Entãovocêquebroumeutelefonenovinhoemfolha?Valeumesmo.Jacesorriucomserenidadeeserecostounarocha.—Denada.—Veja o ladobom—emendou Isabelle.—Vocênão vaimais receber as

mensagensdamamãe.Elameenviouseishoje.Eudesligueiotelefone.—Eelabateunobolsocomumolharexpressivo.

—Oqueelaquer?—perguntouSimon.—Reuniões constantes— falou Isabelle.—Tomar depoimentos. AClave

continua querendo ouvir o que aconteceu quando enfrentamos Sebastian emBurren. Todos nós temos que dar informações, tipo, umas cinquenta vezes.ComoJaceabsorveuo fogocelestialdaGloriosa.DescriçõesdosCaçadoresdeSombrasmalignos,doCáliceInfernal,dasarmasqueelesusaram,dossímbolosqueestavammarcadosneles.Oquevestiam,oqueSebastianvestia,oquetodomundovestia...tipotele-sexo,sóquechato.

Simonfezumbarulhodequemseengasgava.—OqueachamosqueSebastianquer—continuouAlec.—Quandoelevai

voltar.Oquevaifazerquandovoltar.Claryapoiouoscotovelosnosjoelhos.—ÉsemprebomsaberqueaClavetemumplanocuidadosoeconfiável.— Eles não querem acreditar — falou Jace, e tou o céu. — Esse é o

problema.NãoimportaquantasvezescontemosoquevimosemBurren.Nemquantas vezes digamos o quanto os Crepusculares são perigosos. Eles nãoqueremacreditarqueosNephilimrealmentepoderiamsercorrompidos.EssesCaçadoresdeSombraspoderiammatarosCaçadoresdeSombras.

Clary presenciara quando Sebastian criara os primeiros Crepusculares. Elavira a expressão vazia em seus olhos, a fúria com que lutavam. Eles aapavoravam.

— Eles não são mais Caçadores de Sombras — acrescentou ela em voz

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baixa.—Aliás,nempessoaselessãomais.— É difícil acreditar, se você não viu — disse Alec. — E Sebastian tem

poucosdeles.Umgrupopequeno,disperso...elesnãoqueremacreditarquesejauma ameaça de fato. Ou, se for uma ameaça, preferem acreditar que é umaameaça maior para nós, para Nova York, mas não para os Caçadores deSombrascomoumtodo.

—Elesnãoestãoerrados:seSebastianse importacomalgumacoisaécomClary—falouJace,eClarysentiuumcalafrionaespinha,umamisturadenojoe apreensão. — Ele não possui emoções de fato. Não como nós. Mas, se astivesse,eleas teriaporcausadela.Eporcausade Jocelyn.Eleaodeia.— Jacefez uma pausa, com ar pensativo. — Mas não acho que tentaria um ataquedireto.Seriamuito...óbvio.

—EsperoquevocêtenhaditoissoàClave—falouSimon.— Umas mil vezes — informou Jace. — Não creio que tenham muita

consideraçãopelasminhasideias.Clary baixou o olhar para as próprias mãos. Tinha sido interrogada pela

Clave, assim como o restante deles, e respondera a todas as perguntas. Noentanto ainda havia coisas sobre Sebastian que ela não revelara, que nãocontaraaninguém.Ascoisasqueeledisseraquererdela.

ElanãohaviasonhadomuitodesdequeelesvoltaramdeBurrencomasveiasdeJacecheiasdefogo,masquandotinhapesadelos,eramsobreoirmão.

—É como tentar lutar contra um fantasma— falou Jace.—Eles não sãocapazes de rastrear Sebastian, não conseguem encontrá-lo nem encontrar osCaçadoresdeSombrasqueeletransformou.

— Eles estão fazendo o que podem— disse Alec.— Estão reforçando asbarreiras ao redor de Idris e Alicante. Todas as barreiras, na verdade. EenviaramdezenasdeespecialistasparaaIlhadeWrangel.

A Ilha deWrangel era a sede de todas as barreiras domundo, dos feitiçosque protegiam o planeta, e Idris em especial, dos demônios e de invasõesdemoníacas. A rede de barreiras não era perfeita, por isso algumas vezes os

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demônios conseguiampassarpor elasmesmo assim,masClary só seria capazdeimaginaragravidadedasituaçãoseasbarreirasnãoexistissem.

— Ouvi mamãe dizer que os feiticeiros do Labirinto Espiral andaramprocurandoummeiodereverterosefeitosdoCáliceInfernal—falouIsabelle.—Semdúvida,seriamaisfácilseelestivessemcadáveresparaestudar...

Elaparouafrasenomeio;Clarysabiaoporquê.OscorposdosCaçadoresdeSombrasmalignos abatidos emBurren tinhamsido trazidosde volta àCidadedosOssosparaqueos IrmãosdoSilêncioos examinassem.Porém isto jamaisaconteceu. Da noite para o dia, os corpos entraram em decomposição atécarem como cadáveres com décadas de putrefação. Não havia nada a fazer

alémdequeimarosrestos.Isabellerecuperouavoz:— E as Irmãs de Ferro estão fabricando armas emmassa. Vamos receber

milhares de lâminas sera m, espadas,chakrams, tudo... forjado no fogocelestial. — Ela olhou para Jace. Nos dias que se seguiram imediatamente àbatalhaemBurren,quandoofogoseespalhoupelasveiasdeJacecomviolênciasu ciente para fazê-lo gritar algumas vezes por causa da dor, os Irmãos doSilêncio o examinaram repetidamente, o testaram com gelo e chamas, commetalbentoe ferro frio, a mde tentarver sehaviaalgummodode retirarofogodele,decontê-lo.

Elesnãoencontraramnemsequerummodo.OfogodaGloriosa,depoisdecapturado numa lâmina, parecia não ter pressa de habitar outra, nem deabandonar o corpo de Jace em troca de qualquer tipo de receptáculo, naverdade.OIrmãoZachariahdisseraaClaryque,nosprimórdiosdosCaçadoresde Sombras, os Nephilim tentaram capturar o fogo celestial dentro de umaarma, algoquepudessembrandir contraosdemônios. Jamais conseguiram, e,umdia,aslâminassera msetornaramasarmasescolhidas.No m,maisumavez, os Irmãos do Silêncio tinham desistido. O fogo da Gloriosa contorcia-senasveiasdeJacecomoumaserpente,e,namelhordashipóteses,elesópoderiateresperançasdecontrolá-loparanãoserdestruídoporele.

Ouviram o bipe alto de uma mensagem de texto chegando no celular;

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Isabelletinhaligadootelefone.— Mamãe diz para voltarmos ao Instituto agora — falou. — Tem uma

reunião. Temos que participar.—A garota cou empé e espanou a terra dovestido.—Euteconvidariaparairlá—disseelaaSimon—,massabecomoé,temaquelahistóriadeserbanidoporserummorto-vivoetal.

—Eume lembrodisso—concordouSimon, e sepôsdepé.Clary fezumesforçoparaselevantareestendeuamãoparaJace,queaaceitoueselevantou.

— Simon e eu vamos fazer compras de Natal — comentou ela. — Eninguém pode ir com a gente porque precisamos comprar os presentes devocês.

Alecpareceuestarhorrorizada.—Ai,Deus.Entãoissosignificaqueprecisocomprarpresentesparavocês?Clarybalançouacabeça.— Caçadores de Sombras não… comemoram o Natal? — No mesmo

momento,elapensounojantardesgastantedeAçãodeGraçasnacasadeLuke,quandopedirama Jacepara cortar operu e ele o abateu comuma espada atésobrarempoucomaisquealgunsresquíciosdaave.Talveznão.

— Nós trocamos presentes e comemoramos a mudança das estações —falouIsabelle.—CostumavahaverumacelebraçãodoAnjonoinverno,nodiaem que os Instrumentos Mortais foram entregues a Jonathan Caçador deSombras.Mas acho que os Caçadores de Sombras se aborreceram por seremdeixados de lado em todas as comemorações mundanas, por isso muitosInstitutos têmfestasdeNatal.AdeLondreséamais famosa.—Agarotadeudeombros.—Masnãoachoqueagenteváfazerisso...esteano.

—Ora.—Clarysentiu-semal.SemdúvidaelesnãoqueriamfestejaroNataldepois de perderMax.— Bem, deixem aomenos a gente comprar presentesparavocês.Nãoéprecisoterumafestaoucoisaassim.

— Exato.— Simon ergueu os braços para o alto.— Tenho que comprarpresentesdeChanuká.Éobrigatóriopela lei judaica.ODeusdos JudeuséumDeuszangado.Eelegostamuitodepresentes.

Clary sorriu para ele. Estava cando cada vez mais fácil dizer a palavra

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“Deus”ultimamente.Jace suspirou e beijouClary— um beijo breve de despedida na testa dela,

mas que a fez estremecer. O fato de não poder tocar Jace nem beijá-lo deverdade estava começando a deixá-la nervosa. Ela prometera a ele que issonuncaimportaria,queoamariamesmoquenuncapudessemvoltarase tocar,masodiava isso,dequalquer forma,odiavasentir faltadomodoreconfortantecomoseuscorpossempreseencaixavam.

—Vejovocêmaistarde—prometeuJace.—VouvoltarcomAleceIzzy...— Não, você não vai, não — falou Isabelle inesperadamente. — Você

quebrou o telefone de Alec. Tá certo que a gente queria fazer isso há váriassemanas...

—ISABELLE—disseAlec.— Mas o fato é, você é oparabatai de Alex e o único que não foi ver

Magnus.Váatéláefalecomele.—Edigooquê?—perguntou Jace.—Nãodáparaconvencer aspessoasa

nãoterminaremonamoro...outalvezdê—emendouelerapidamenteaoveraexpressãodeAlec.—Quemsabe?Voutentar.

—Valeu.—AlecdeuumtapinhanoombrodeJace.—Ouvidizerquevocêsabesermuitocharmosoquandoquer.

—Ouvidizeramesmacoisa—falouJace,ecomeçouacorrerdecostas.Atéfazendoissoele cavabem,pensouClarycomtristeza.Esexy.De nitivamentesexy.Elaergueuamãonumacenosementusiasmo.

—Vejovocêdepois—gritouela.Seeunãomorrerdefrustraçãoatélá.

Os Fray nunca foram uma família religiosa, mas Clary adorava a QuintaAvenidanaépocadoNatal.Oartinhacheirodecastanhastorradasnoaçúcar,easvitrinesreluziamemprataeazul,verdeevermelho.Esteanohaviaimensoscristais de gelo pendurados em cada poste, e eles re etiam a luz invernal emfeixes dourados. Isso sem mencionar a gigantesca árvore de Natal, noRockefellerCenter.ElalançavasuasombrasobreelesquandoClaryeSimonseesticaram pelo portão no lado do rinque de patinação, observando os turistas

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levandotombosenquantotentavamsedeslocarnogelo.Clary segurava um chocolate quente, o calor da bebida se espalhando pelo

corpo. Ela se sentia quase normal; isso: ir até a Quinta Avenida para ver asvitrineseaárvoreeraumatradiçãodeinvernoparaelaeSimondesdesempre.

— Parece os velhos tempos, não é? — comentou ele, ecoando ospensamentos dela enquanto apoiava o queixo nos braços cruzados sobre agrade.

Agarota lhedeuumaolhadeladesoslaio.Simonvestiaumsobretudoeumcachecol pretos que destacavam a palidez da pele. Também tinha olheiras, oque indicava que não vinha se alimentando de sangue nos últimos dias. Elepareciaoqueera:umvampirocansadoefaminto.

Bem,pensouela.Quasecomonosvelhostempos.—Temmais gente para comprarmos presentes— confessou ela.—Além

disso, tem a pergunta sempre traumática de o-que-comprar-para-alguém-no-primeiro-Natal-depois-do-início-do-namoro.

—Oque comprarparaoCaçadordeSombrasque tem tudo—comentouSimon,edeuumsorriso.

—Jacegostadearmasmaisdoquetudo—falouClary.—Gostade livros,mas eles têm uma biblioteca imensa no Instituto. Também gosta de músicaclássica... — Seu rosto se iluminou. Simon era músico e, embora sua bandafosse horrível e sempre mudasse de nome (atualmente ela se chamava Su êMortal),eletinhaprática.—Oquedariaaalguémquegostadetocarpiano?

—Umpiano.—Simon.—Ummetrônomoimensoquetambémpudessefazerasvezesdearma?Clarysuspirou,exasperada.—Umapartitura.Rachmaninoffébemdifícil,maselegostadeumdesafio.—Boaideia.Vouversetemalgumalojademúsicaporaqui.—Clary,quejá

havia terminadodebebero chocolatequente, jogouo coponuma latade lixopróximaepegouocelular.—Equantoavocê?OquevaidarparaIsabelle?

— Não faço a menor ideia — respondeu Simon. Eles caminharam até a

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avenida, onde um uxo constante de pedestres que olhavam as vitrinesamontoavaasruas.

—Ora,oqueéisso?!Isabelleéfácil.— É da minha namorada que você está falando. — Simon franziu as

sobrancelhas.—Euacho.Nãotenhocerteza.Nósnãoconversamossobreisso.Sobrearelação,querodizer.

—VocêstêmqueterumaDR,Simon.—Oquê?—Vocêstêmquediscutirarelação,de nirascoisas.Oqueé,paraondevai.

Sãonamorados,sóestãosedivertido,estãoenroladosouoquê?Quandoelavaicontarparaospais?Vocêspodemsaircomoutraspessoas?

Simonficoupálido.—Oquê?Issoésério?—Ésério.Mas,nessemeio-tempo…perfume!—ClarypuxouSimonpelas

costasdocasacoeoarrastouatéumalojadecosméticos.Eraimensadoladodedentro,com leirasdefrascosreluzentesportodaparte.—Eumacoisaexótica— falou ela, indo até a área dos perfumes.— Isabelle não vai querer cheirarcomoasoutraspessoas.Vaiquerercheirarafigos,vetiverou...

— Figos? Figos têm cheiro? — Simon pareceu horrorizado; Clary estavaprestesarirdelequandootelefonevibrou.Eraamãe.

ONDEVOCÊESTÁ?

Clary revirou os olhos e respondeu à mensagem. Jocelyn ainda cavanervosa ao pensar que ela estava na rua com Jace.Muito embora, conformeClaryobservara,provavelmenteJacefosseonamoradomaissegurodomundo,poiseleestavaproibidode:(1)seaborrecer,(2)fazeravançosnoquesitosexoe(3)fazerqualquercoisaqueaumentasseaadrenalina.

Por outro lado, eletinha sido possuído; ela e a mãe caram observandoenquanto ele, imóvel, deixava Sebastian ameaçar Luke.Clary ainda não tinhacontado tudo o que vira no apartamento que dividira com Jace e Sebastiandurante aquele breve intervalo fora do tempo, uma mistura de sonho e

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pesadelo.ElajamaiscontaraàmãequeJacetinhamatadoalguém;haviacoisasqueJocelynnãoprecisavasaber,coisasqueClarynãoqueriaenfrentartambém.

—TemtantacoisanestalojaquepossoimaginaroqueMagnusiaquerer—falouSimon,epegouumfrascodevidrodeglittercorporal utuandoemalgumtipo de óleo. — Comprar presentes para alguém que terminou com o seumelhoramigoviolaalgumtipoderegra?

—Achoquedepende.Queméseuamigomaischegado:MagnusouAlec?—Alecse lembradomeunome—falouSimon,epôsofrascodevoltano

lugar.—Eeumesintopéssimoporele.CompreendoporqueMagnusfezisso,mas Alec estátão arrasado. Acho que, quando você lamenta de verdade, apessoaqueteamadeveriateperdoar.

—Achoquedependedoquevocê fez—opinouClary.—EnãoestoumereferindoaAlec...faloemgeral.TenhocertezadequeIsabelleteperdoariaporalgumacoisa—emendouelarapidamente.

Simonpareceuemdúvida.—Fiqueparadoaí—anunciouela,balançandoumfrascopertodacabeçade

Simon.—Emtrêsminutos,voucheirarseupescoço.—Ora,eununca...—falouSimon.—Vocêesperoumuitotempoparadar

essepasso,Fray,éoquedigo.Clary não se importou com a resposta engraçadinha; ela ainda estava

pensandonoqueSimontinha faladosobreperdãoese lembrardealguém,davoz,dorostoedosolhosdealguém.SebastiansentadoàfrentedelanumamesaemParis.Vocêachaquepodemeperdoar?Querodizer,vocêachaqueépossívelperdoaralguémcomoeu?

— Algumas coisas são imperdoáveis — disse ela. — Não sou capaz deperdoarSebastian.

—Vocênãooama.—Não.Maseleémeuirmão.Seascoisasfossemdiferentes...Masnão sãodiferentes . Clary abandonou aquele pensamento e se inclinou

parasentirocheiro.—Vocêestácomcheirodefigoedamasco.

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—Achade verdade que Isabelle quer cheirar comoumabandeja de frutassecas?

—Talveznão.—Clarypegououtrofrasco.—Então,oquevocêvaifazer?—Quando?Claryergueuoolhar,re etindosobreadiferençaentreumatuberosaeuma

rosa comum, e viu Simon tá-la com uma expressão de espanto nos olhoscastanhos.Elafalou:

— Bem, não dá para morar com Jordan para sempre, não é? Tem afaculdade...

—Vocênãovaiparaafaculdade—observouele.— Não. Mas sou uma Caçadora de Sombras. Nós continuamos a estudar

depoisdos18,somosenviadosaoutrosInstitutos...essaéanossafaculdade.— Não gosto da ideia de ver você indo embora. — Ele pôs as mãos nos

bolsosdocasaco.—Nãopossoirparaafaculdade—comentou.—Minhamãenãovaipagarporela,eeunãopossoobtercréditoestudantil.Legalmente,estoumorto, na pior. Além disso, quanto tempo levaria para alguém na faculdadeperceber que eles envelhecem, e eu não?Garotos de 16 anos não se parecemcomveteranos,nãoseisejápercebeu.

Claryguardouofrasco.—Simon...— Talvez eu devesse comprar alguma coisa para minha mãe — falou

amargamente.—Quepresentediz“Obrigadopormebotarparaforadecasaefingirquemorri”?

—Orquídeas?MasohumordeSimonjánãoestavamaisparabrincadeiras.—Talveznãosejacomonosvelhostempos—falouele.—Normalmenteeu

compraria lápis ou material de desenho para você, só que você não desenhamais,né?Anãosercomaestela?Vocênãodesenha,eeunãorespiro.Nãoécomonoanopassado.

—TalvezvocêdevesseconversarcomRaphael—disseClary.—Raphael?

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— Ele sabe como os vampiros vivem. Como ganham a vida, ganhamdinheiro,arrumamapartamentos.Elesabeessascoisasepoderiateajudar.

—Poderia,masnãoajudaria—observouSimon,efranziuatesta.—EunãoouvifalarnadadobandodeDumortdesdequeMaureensubstituiuCamille.SeiqueRaphaeléosucessordela.E tenhoquasecertezadequeelesaindaachamquecarregoaMarcadeCaim;casocontrário,teriammandadoalguématrásdemimagora.Questãodetempo.

—Não.Elessabemquenãoéparatocaremvocê.SeriaumaguerracontraaClave.OInstitutofoimuitoclaro—disseClary.—Vocêestáprotegido.

—Clary,nenhumdenósestáprotegido.Antes que Clary pudesse responder, ouviu alguém chamar seu nome;

totalmenteconfusa,olhouporcimadoombroeviuamãeabrindocaminhoemmeioàmultidãodeclientes.Pelavitrine,ClaryviuLuke,queesperavado ladode fora, na calçada. Com sua camisa de anela, ele parecia não se encaixarentreosestilososnova-iorquinos.

Livrando-se da multidão, Jocelyn se aproximou e abraçou a lha. Claryolhou para Simon por cima do ombro da mãe, confusa. Ele deu de ombros.Finalmente,JocelynsoltouClaryedeuumpassoparatrás.

—Eutivetantomedodequealgumacoisaacontecesseavocê...—NaSephora?—perguntouClary.Jocelynfranziuatesta.—Vocêsnãoouviram?Penseique Jace já teria enviadoumamensagemde

textoaessahora.Clary sentiu uma súbita onda de frio pelas veias, como se tivesse engolido

águamuitogelada.—Não.Eu...Oqueestáacontecendo?—Eusintomuito,Simon—falou Jocelyn—,masClaryeeu temosque ir

paraoInstitutoimediatamente.

OlugarondeMagnusmoravanãotinhamudadomuitodesdeaprimeiravezemqueJaceestiveraali.Amesmaentradinhaeaúnicalâmpadaamarela.Jaceusou

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umsímbolodeAberturaparapassarpelaportada frente, subiuosdegrausdedois emdois e tocou a campainha do apartamento. Eramais seguro que usaroutro símbolo, calculou Jace. A nal, Magnus podia estar jogando videogamepeladoou,naverdade,podiaestarfazendopraticamentequalquercoisa.Quemsaberiaoqueosfeiticeirosinventavamnotempolivre?

Jace tocoudenovoe,dessavez,grudouodedonacampainha.Tocoumaisduasvezes,demoradamente,eMagnusa nalabriuaportanumtranco,furioso.Eleestavausandoumrobedesedapretaporcimadeumacamisabrancaecalçadetweed.Ospésestavamdescalços.Ocabelopretoestavaemaranhado,evia-seasombradabarbaporfazer.

—Oquevocêestáfazendoaqui?—Ora,ora—respondeuJace.—Issonãofoinadaacolhedor.—Porquenãoéparaser.Jaceergueuumasobrancelha.—Penseiquefôssemosamigos.—Não.VocêéamigodeAlec.Eleerameunamorado,porissoeutinhaque

te tolerar.Mas agora ele não émais, então não preciso te aguentar.Não quevocêspareçamperceberisso.Vocêdevesero...oquê,oquarto?...dogrupoavirme incomodar. — Magnus contou nos dedos compridos. — Clary, Isabelle,Simon...

—Simonpassouporaqui?—Vocêparecesurpreso.—NãoacheiqueeleestivessetãointeressadonasuarelaçãocomAlec.—EunãotenhoumarelaçãocomAlec—afirmouMagnussemrodeios,mas

Jace já estava passando por ele e entrandona sala de estar, olhando ao redorcomcuriosidade.

Uma das coisas que Jace sempre apreciara em segredo no apartamento deMagnuseraqueraramentepareciaomesmoduasvezes.Algumasvezes,eraumlograndeemoderno.Outras,pareciaumbordel francêsouumcovildeópiovitorianoouointeriordeumanaveespacial.Agora,porém,estavabagunçadoeescuro. Pilhas de embalagens velhas de comida chinesa se amontoavam na

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mesade café. PresidenteMiau estavadeitadono tapete de retalhos, as quatropatasmuitoesticadaseretas,comoumcervomorto.

—Temcheirodecoraçãopartidoaquidentro—comentouJace.— É a comida chinesa. — Magnus se jogou no sofá e esticou as pernas

compridas.—Ande,acabelogocomisso.Digaoquevocêveiodizer.—AchoquevocêdeviavoltarcomAlec—falouJace.Magnusrevirouosolhosefitouoteto.—Eporqueisso?— Porque ele está infeliz — explicou Jace. — E está arrependido. Está

arrependidopeloquefez.Nãovaifazerdenovo.—Ah, elenãovai se encontrar em segredocomumadasminhas ex,nem

planejarencurtarminhavidaoutravez?Muitonobredapartedele.—Magnus...—Alémdisso,Camilleestámorta.Elenãopodefazerissodenovo.— Você entendeu — falou Jace. — Ele não vai mentir, nem enganar ou

escondercoisas,nemqualqueroutracoisaqueestejateaborrecendo.Elesejogounumapoltronadecouroeergueuumadassobrancelhas.—Então?Magnusvirouparaolado.—PorquevocêseimportaseAlecestáinfeliz?— Por que eu me importo? — repetiu Jace tão alto que Presidente Miau

sentou-semuito empertigado, como se estivesse em choque.—Claro que eume importo com Alec; ele é meu melhor amigo, meuparabatai. E ele estáinfeliz.Evocêtambém,peloestadodascoisas.Embalagensdecomidaportodaparte,vocênãofeznadaparaarrumarolocal,seugatoparecemorto...

—Elenãoestámorto.—EumeimportocomAlec—falouJace,e xouoolharemMagnus.—Eu

meimportocomelemaisdoquecomigo.—Vocênuncapensou—re etiuMagnus,epuxouumalascadoesmalte—

que toda essa história deparabatai é um tanto cruel?Vocêpode escolher seu

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parabatai,mas então não pode nunca desescolhê-lo.Mesmo que ele se voltecontravocê.OlheparaLukeeValentim.E,emboraseu parabataisejaapessoamais próxima de você no mundo, em certos aspectos você não pode seapaixonarporele.E,seelemorrer,umapartedevocêmorretambém.

—Comosabetantosobreosparabatai?—EuconheçoosCaçadoresdeSombras—disseMagnus,dando tapinhas

nosofáaoladodeleparaquePresidentepulasseparaasalmofadasecutucasseMagnuscomacabeça.Osdedoscompridosdofeiticeiroafundaramnopelodogato.—Eeuconheçohámuito tempo.Vocês sãocriaturasestranhas.Deumlado, tudo é humanidade e nobreza frágil, e do outro, tudo é fogo impensadodos anjos. — Os olhos dele se moveram até Jace. — Você, em particular,Herondale,poistemofogodosanjosnosangue.

—VocêjáfoiamigodeCaçadoresdeSombras?—Amigo?—repetiuMagnus.—Oqueissorealmentesignifica?—Saberiasetivesseum—observouJace.—Vocêtem?Vocêtemamigos?

Querodizer,alémdaspessoasquefrequentamsuasfestas.Amaioriatemmedode você ou parece te dever alguma coisa, ou então já dormiu com você,masamigos...eunãovejovocêcomummontedeles.

— Ora, isso é novo — falou Magnus. — Nenhum dos outros do grupotentoumeinsultar.

—Estáfuncionando?—Sevocêquer saber semesenti subitamente impelidoavoltarparaAlec,

entãonão—respondeuMagnus.—Surgiuumdesejoestranhoporpizza,masnãodeveestarrelacionadoaele.

— Alec disse que você faria isso: se desviar das perguntas pessoais compiadas—retrucouJace.

Magnussemicerrouosolhos.—Eeusouoúnicoquefazisso?— Exatamente. Aprenda com alguém que sabe. Você odeia falar de si e

preferiria aborrecer aspessoas a fazê-las sentirpena.Quantos anos você tem,Magnus?Arespostaverdadeira.

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Magnusnãodissenada.—Quaiseramosnomesdosseuspais?Qualéonomedoseupai?Magnusolhoufeioparaelecomosolhosverdesedourados.—Seeuquisessemedeitarnumdivãefalarmaldosmeuspaisparaalguém

euiriaaumpsiquiatra.—Ah—continuouJace.—Masmeusserviçossãodegraça.—Ouvifalarissodevocê.Jace sorriu edeslizouemsua cadeira.Haviaumaalmofada comabandeira

doReinoUnidosobreodivã.Eleapegoueacolocouatrásdacabeça.—Nãotenhoqueiralugaralgum.Possoficarsentadoaquiodiatodo.—Ótimo!—falouMagnus.—Vou tirarumcochilo.—Eleesticouamão

parapegarumcobertoramassadonochão,justamentequandoocelulardeJacetocou.Magnusobservou, interrompidonomeiodomovimento,enquantoJaceremexianobolsoeabriaotelefoneparaatender.

EraIsabelle.—Jace?—Sim.EstounacasadeMagnus.Talvezeuestejafazendoalgumprogresso.

Oqueaconteceu?—Volte—pediu Isabelle, e Jace sentou-semuitoereto,aalmofadacaindo

no chão.Avozdela estavamuito tensa.Elepercebia a rispideznela, comoasnotas dissonantes de um piano mal-a nado. — Para o Instituto.Imediatamente,Jace.

— Qual é o problema? — insistiu ele. — O que aconteceu? — E ele viuMagnussentar-semuitoesticadotambém,eocobertorcaiudamãodele.

—Sebastian—falouIsabelle.Jacefechouosolhoseviusanguedouradoepenasbrancasespalhadassobre

o piso de mármore. Ele se recordou do apartamento, de uma faca nas mãosdele,domundoaseuspés,deSebastianapertandoseupulsoedosolhosnegrosprofundos demais tando-o com um prazer obscuro. Havia um zumbido nosouvidosdele.

—Oquefoi?—AvozdeMagnusinterrompeuospensamentosdeJace.Ele

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percebeu que já estava na porta, o celular guardado no bolso. E se virou.Magnusestavaatrásdele,aexpressãosombria.—FoiAlec?Eleestábem?

—E você se importa?— perguntou Jace, eMagnus se encolheu. Jace nãoachou que já tivesse visto Magnus se encolher antes. Foi a única coisa queevitouqueJacebatesseaportaantesdesair.

Haviadezenasde casacos e jaquetasdesconhecidospenduradosna entradadoInstituto.Clarysentiaosombrosvibraremdetensãoenquantoabriaozíperdopróprio casaco de lã e o pendurava em um dos ganchos en leirados nasparedes.

—EMarysenãodisseoqueaconteceu?—perguntouClary.—Avozdelaestavamuitobaixaporcausadaansiedade.

Jocelyn desenrolava um cachecol cinza comprido do pescoço emal olhavaparaLukeenquantoeleopegavaeopenduravanumgancho.Osolhosverdesda mulher percorriam o cômodo, assimilando o portão do elevador, o tetoabobadado,osmuraisdesbotadosdehomenseanjos.

Lukebalançouacabeça.—SóquehouveumataqueàClaveequetemosqueirparaláomaisrápido

possível.—Apartedo“nós”équemepreocupa.—Jocelynenrolouocabeloemum

coquealtoeprendeu-ocomosdedos.—NãovenhoaoInstitutoháanos.Porqueelesmequeremaqui?

Luke apertou o ombro dela para tranquilizá-la. Clary sabia o que Jocelyntemia,oquetodostemiam.AúnicarazãoparaaClavequererqueelaestivessealiéporquehavianotíciasdofilho.

—Marysedissequeestariamnabiblioteca—falouJocelyn.Claryseguiunafrente.Ouvia Luke e amãe conversando atrás de si, além do sommacio dospassos, e os de Luke estavam mais lentos que antes. Ele ainda não havia serecuperadototalmentedoferimentoquequaseomataraemnovembro.

Sabe por que está aqui, não sabe? , sussurrava a voz baixa atrás dela.Clarysabiaqueavoznãoestavarealmenteali,masissonãoajudava.Nãoviaoirmão

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desde o combate em Burren, mas o trazia em alguma parte pequenina damente,umfantasmaindesejadoeintruso. Porminhacausa.Vocêsempresoubeque eunão tinha ido emborapara sempre.Faleique issoaconteceria.Falei emvozaltaparavocê.

Erchomai.Estouchegando.Eleschegaramàbiblioteca.Aportaestavaentreaberta,eumburburinhode

vozestransbordavadali.Jocelynparouporuminstantecomaexpressãotensa.Clarypôsumadasmãosnamaçaneta.—Vocêestápronta?—Elanãotinhapercebidoatéaquelemomentoquea

mãevestia jeanspretos,botas eumablusapretadegola alta.Como se tivesseescolhido o que havia demais próximo do uniforme de combate, sem se darcontadisso.

Jocelynassentiuparaafilha.Alguém tinha empurrado toda a mobília da biblioteca para um canto e

aberto um espaço imenso nomeio do cômodo, bem em cima domosaico doAnjo. Uma mesa imensa fora colocada ali, um grande bloco de mármoreequilibradosobredoisanjosdepedra.Aoredordamesa,sentava-seoConclave.Clary conhecia alguns de seus integrantes pelo nome: Kadir e Maryse. Osoutros eram apenas rostos familiares.Maryse estava parada, contando nomesnosdedosenquantoentoavaemvozalta.

— Berlim — falou. — Sem sobreviventes. Bangcoc. Sem sobreviventes.Moscou.Semsobreviventes.LosAngeles...

—LosAngeles?—repetiuJocelyn.—EramosBlackthorn.Elesestão...?Marysepareceuassustada,comosenãotivessepercebidoqueJocelynhavia

entrado. Os olhos azuis passaram por Luke e Clary. Ela parecia abatida eexausta, o cabelo estava preso com rmeza e havia umamancha (seria vinhotintoousangue?)namangadeseucasacofeitosobmedida.

—Hásobreviventes—falouela.—Ascrianças.EstãoemIdrisagora.—Helen—disseAlec,eClaryselembroudagarotaquehaviaenfrentando

SebastiancomelesemBurren.ElaserecordavadeHelennanavedoInstituto,

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comumgarotodecabelosescurosagarradoaopulsodela.Meuirmão,Julian.—AnamoradadeAline—exclamouClary,eviuoConclaveolharparaela

comhostilidadesutilmentevelada.Semprefaziamisso,comosequemelaeraeoquerepresentavaosdeixassepraticamenteincapazesdeenxergá-la. A lhadeValentim.AfilhadeValentim.—Elaestábem?

— Está em Idris, com Aline— respondeuMaryse.— Os irmãos e irmãsmais novos sobreviveram, embora pareça ter havido algum problema com oirmãomaisvelho,Mark?

— Algum problema? — repetiu Luke. — O que exatamente estáacontecendo,Maryse?

—NãoachoquevamossaberdahistóriatodaantesdechegarmosaIdris—falouMaryse, alisandoocabelo já alisado.—Mashouveataques, algunsdelesnocursodeduasnoites,emseisInstitutos.NãotemoscertezaaindadecomoosInstitutosforaminvadidos,massabemos...

—Sebastian—falouamãedeClary.Asmãosestavamdentrodosbolsosdojeanspreto,masClarysuspeitavaque,seamãenãotivesse feito isso,elaveriaasmãos de Jocelyn em punho.—Direto ao ponto,Maryse.Meu lho. Vocênão teriamechamadoaqui seelenão fosseoresponsável.Teria?—OsolhosdeJocelynencontraramosdeMaryse,eClaryseperguntousetinhasidoassimquando as duas estiveram no Ciclo, as bordas a adas das personalidades deambasencontrando-seegerandofaíscas.

Antes queMarysepudesse falar, a porta se abriu e Jace entrou.Vermelho,com a cabeça fria e descoberta, e o cabelo louro desgrenhado por causa dovento.Não usava luvas, as pontas dos dedos estavam vermelhas por causa doclima, e asmãos tinhamcicatrizes deMarcasnovas e antigas. Ele viuClary edeuumsorrisobreveaoseacomodarnumacadeiracontraaparede.

Comosempre,Lukeinterferiuparapacificar.—Maryse?Sebastianfoioresponsável?Maryserespiroufundo.—Sim,foi.EosCrepuscularesestavamcomele.

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—ClaroquefoiSebastian—falouIsabelle.Elaestivera tandoamesa,masagora erguia a cabeça. O rosto re etia ódio e fúria. — Ele disse que estavachegando.Bem,agoraelechegou.

Marysesoltouumsuspiro.— Nós imaginamos que ele atacaria Idris. Era isso que os serviços de

inteligênciaindicavam.NãoosInstitutos.—Entãoelefezalgoquevocêsnãoesperavam.TalvezaClavedevesseterse

planejado paraisso.—Jacebaixouavoz.—Euavisei.Aviseiqueele iaquerermaissoldados.

—Jace—disseMaryse.—Vocênãoestáajudando.—Eunãoestavatentandoajudar.— Eu teria acreditado que ele atacaria aqui primeiro — falou Alec. —

ConformeJacefalou,eéverdade...todosqueeleamaouodeiaestãoaqui.—Elenãoamaninguém—rebateuJocelynsemrodeios.—Mãe, pare— pediu Clary. O coração dela batia com força e de modo

doloroso;aindaassim,aomesmotempo,haviaumasensaçãoestranhadealívio.Todoesse tempoesperandoqueSebastianchegasseeagoraele tinhachegado.A espera havia acabado. A guerra teria início. — E o que devemos fazer?ReforçaroInstituto?Nosesconder?

—Deixe-me adivinhar— falou Jace, com a voz cheia de sarcasmo.— AClavechamouoConselho.Outrareunião.

—AClaveordenouevacuaçãoimediata—a rmouMaryse,e,aodizerisso,todos caram em silêncio, até Jace. — Todos os Institutos devem seresvaziados. Todos os Conclaves devem retornar a Alicante. As barreiras aoredordeIdrisserãoredobradasdepoisdeamanhã.Ninguémconseguiráentrarousair.

Isabelleengoliuemseco.—QuandopartiremosdeNovaYork?Maryseempertigou-se.Umpoucodocostumeiroardecomandoretornara,a

bocaestavacontraída,eoqueixo,cerradocomdeterminação.—Arrumesuascoisas—ordenouela.—Vamosemborahojeànoite.

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2LutarouCair

Acordarfoicomoserjogadanumabanheiracomáguagelada.Emmasentou-se,arrancadadosono,abocaabertaparagritar.

—Jules!Jules!Houve umamovimentação na penumbra, amão em seu ombro e uma luz

súbitaqueferiuseusolhos.Emmapuxouoarcomforçaesearrastouparatrás,empurrando-se contra as almofadas. Percebeu então que estava deitada nacama, que os travesseiros se empilhavam às costas dela e que os lençóisencontravam-seaoredordocorponumemaranhadosuado.Emmapiscouparaafastaraescuridão,tentandofocar.

Helen Blackthorn inclinava-se sobre ela, com os olhos azuis-esverdeadosapreensivos e uma pedra de luz enfeitiçada na mão. Elas estavam em umcômodocomumtelhadodeempenairregular,quesecurvavaacentuadamentedecadalado,comoumacabanadecontosdefadas.Haviaumacamagrandedemadeiracomquatroreposteirosnocentrodocômodo,e,nassombrasatrásdeHelen,Emmaviaamobíliaseassomando:umguarda-roupaquadradoimenso,umsofácomprido,umamesacompernasbambas.

—O-ondeestou?—perguntouEmma,comdificuldade.—EmIdris—respondeuHelen,edeutapinhasnobraçodagarotaa mde

acalmá-la.—VocêconseguiuchegaraIdris,Emma.EstamosnoporãodacasadosPenhallow.

—M-meus pais. — Os dentes de Emma trincavam.— Onde estão meuspais?

—VocêveiopeloPortalcomJulian—explicouHelen,comdelicadeza,sem

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responderàpergunta.—Todosvocêschegaramdeumjeitooudeoutro...éummilagre,sabe?AClaveabriuocaminho,masaviagempeloPortalédifícil.Drupassou agarrada aTavvy, e os gêmeos vieram juntos, claro.Depois, quando játínhamosquasedesistido,vocêsdoischegaram.Vocêestava inconsciente,Em.—Ela tirouocabeloda testadeEmma.—Ficamosmuitopreocupados.VocêdeviatervistoJules...

—Oqueestáacontecendo?—perguntouEmma.ElaseafastoudotoquedeHelen, não porque não gostasse dela, mas porque seu coração estavamartelando.—EquantoaMarkeaoSr.Blackthorn...?

Helenhesitou.—SebastianMorgensternatacouseisInstitutosnosúltimosdias.Elematou

todas as pessoas presentes ou as Transformou. Ele usa oCálice Infernal parafazercomqueosCaçadoresdeSombrasdeixemdeserquemsão.

— Eu o vi fazer isso — murmurou Emma. — Com Katerina. E eleTransformou seu pai também. Eles iam fazer isso comMark, mas Sebastiandissequenãooqueriaporcausadosanguedefada.

Helenseencolheu.—TemosrazõesparaacreditarqueMarkaindaestávivo—disseela.—Eles

foramcapazesderastreá-loatéopontoemquedesapareceu,masossímbolosindicam que ele não estámorto. É possível que Sebastian o esteja mantendocomorefém.

—Meus...meuspais— repetiuEmma, coma garganta secadesta vez.Elasabia o que signi cava Helen não ter respondido na primeira vez queperguntara.—Ondeestão?ElesnãoestavamnoInstituto,entãoSebastiannãoteriacomomachucá-los...

—Em...—Helensoltouoar.Subitamente,pareceujovem,quasetãojovemquanto Jules.— Sebastian não ataca apenas os Institutos; elemata ou tira osmembros do Conclave das próprias casas. A Clave tentou localizar seus pais,masnãoconseguiu.Entãoos corposapareceramnaMarinadelRey,napraia,hojedemanhã.AClavenãosabeoqueaconteceuexatamente,mas...

AvozdeHelenseperdeunumasequênciasemsentidodepalavras,palavras

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como “identi cação con rmada” e “cicatrizes e marcas nos corpos” e “nãoforam encontradas evidências”. Coisas como “na água havia horas”, “não hámeio de transportar os corpos” e “de acordo com os ritos funeráriosapropriados, foram queimados na praia conforme ambos pediram, vocêentende...”.

Emmagritou.Foiumgritomudono início, elevando-se cadavezmais,umgritoquerasgousuagargantaetrouxeogostodemetal.Foiumgritodeperdatão imensoquenãohaviapalavraparadescrevê-lo.Foiogrito inexprimíveldeterocéuacimadesuacabeçaeoaremseuspulmõesarrancadosparasempre.Ela gritou, e gritoumais uma vez, e rasgou o colchão com asmãos até cavardentro dele, e havia penas e sangue presos debaixo de suas unhas enquantoHelensoluçavaetentavasegurá-la,dizendo:

—Emma,Emma,porfavor,Emma,porfavor.Eentãohouvemais luz.Alguémhaviaacendidoum lampiãonocômodo,e

Emmaouviuopróprionome,comumavozfamiliar,delicadaeurgente,elogoHelen a soltou, e Jules apareceu e se inclinou na beirada da cama, esticandoalgumacoisaparaela,umacoisaquebrilhava,dourada,sobanovaluzcruel.

Era Cortana. Sem a bainha exposta e na palma da mão dele como umaoferenda.Emmapensouqueaindaestivessegritando,maspegouaespada,easpalavras brilharam na lâmina e queimaram seus olhos:Eu sou Cortana, domesmoaçoedamesmatêmperaqueJoyeuseeDurendal.

Ela ouviu a voz do pai em suamente.Os Carstairs portam esta espada hámuitas gerações. A inscrição nos recorda que os Caçadores de Sombras são asarmasdoAnjo.Tempere-nosnofogo,e caremosmaisfortes.Quandosofremos,sobrevivemos.

Emma engasgou, engolindo os gritos, obrigando-os a baixar até o silêncio.Eraissoqueopaiqueriadizer:aexemplodeCortana,elatambémpossuíaaçonas veias e estava destinada a ser forte.Mesmo se os pais não estivessem aliparaver,elaseriaforteparaeles.

Agarotaabraçouaespadacontraopeito.Comoseestivessebemlonge,elaouviaHelen exclamando e esticando amão para ela,mas Julian... Julian, que

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sempresouberadoqueEmmaprecisava,empurrouamãodeHelen.OsdedosdeEmmaseguravama lâmina, eo sanguedesceupor seusbraços epelopeitoquandoapontacortousuaclavícula.Elanãosentiu.Balançandoparaafrenteepara trás, Emma agarrou a espada como se fosse a única coisa que tivesseamado,edeixouosangueescorrernolugardaslágrimas.

Simonnãoconseguiaafastarasensaçãodedéjàvu.Ele estivera ali antes, parado, do lado de fora do Instituto, e observara os

Lightwood desaparecerem através de um Portal reluzente. Embora na época,muitoantesdeeleteraMarcadeCaim,oPortaltivessesidocriadoporMagnuse,destavez, estivesse soba supervisãodeuma feiticeiradepele azul chamadaCatarina Loss. Daquela vez, ele fora convocado porque Jace queria conversarsobreClaryantesdedesapareceremoutropaís.

Destavez,Claryestavadesaparecendocomeles.Ele sentiu a mão dela na dele, os dedos envolvendo levemente seu pulso.

TodooConclave—praticamentetodoCaçadordeSombrasnacidadedeNovaYork—haviacruzadoosportõesdoInstitutoepassadopeloPortal reluzente.OsLightwood,comoguardiõesdoInstituto,iriamporúltimo.Simonestavaalidesdeoiníciodocrepúsculo,elinhasdecéuvermelhodeslizavamparatrásdosedifícios no horizonte de Nova York, e agora a pedra de luz enfeitiçadailuminavao cenáriodiantedele, captandodetalhesque reluziam:o chicotedeIsabelle, a faísca de fogo que pulava do anel da família de Alec conforme elegesticulava,osrelancesnocabeloclarodeJace.

—Eleparecediferente—observouSimon.Clary ergueu o olhar para ele. Assim como o restante dos Caçadores de

Sombras, ela estava vestida com o que Simon poderia descrever como umacapa. Parecia a capa que eles usavam ao ar livre durante o inverno, feita develudopretopesado,presanopeito.Eleseperguntouondeelahaviaarrumadoaquilo.Talvezelesapenasastivessemenviado.

—Oqueparecediferente?—OPortal—respondeuele.—ParecediferentedequandoMagnusfazia.

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Mais...azul.—Talveztodoselestenhamestilosdiferentes?SimonolhouparaCatarina.Elapareciaenergicamentee ciente,comouma

enfermeiraouprofessoradojardimdeinfância.De nitivamentenãoeracomoMagnus.

—ComoIzzyestá?—Preocupada,acho.Todosestãopreocupados.Fez-seumbrevesilêncio.Claryexpirou,eoardarespiraçãodelacondensou

porcausadofrio.—Nãoqueroquevá—falouSimon,noinstanteemqueClarydisse:—Eunãoqueroiredeixarvocêaqui.— Vou car bem— falou Simon.— Tenho Jordan para tomar conta de

mim.—Defato,Jordanestavaali,sentadonotopodaparedequecircundavaoInstituto,epareciaatento.—Eninguémtentamematarhá,pelomenos,duassemanas.

— Não tem graça. — Clary olhou para ele com expressão severa. Oproblema,Simonre etiu,eraadi culdadede tranquilizaralguémdequevocêcariabemquandoseeraumDiurno.AlgunsvampirospoderiamquererSimon

do lado deles, ansiosos para se bene ciarem dos seus poderes incomuns.Camillehaviatentadorecrutá-lo,eoutrospoderiamtentar,masSimontinhaanítidaimpressãodequeamaioriadosvampirosqueriamatá-lo.

— Tenho certeza absoluta de queMaureen ainda espera pôr as mãos emmim—a rmouSimon.MaureeneraalíderdoclãdosvampirosdeNovaYorke acreditava estar apaixonada por Simon.Oque teria sidomenos esquisito seelanãotivesse13anos.—SeiqueaClaveavisouàspessoasparanãotocarememmim,mas...

—Maureenquertocaremvocê—disseClary,comumsorrisomalicioso.—Toquedomal.

—Calada,Fray.—Jordanvaimantê-lalongedevocê.Simon olhou para a frente com expressão contemplativa. Ele estava

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tentandonãoolharpara Isabelle,queo cumprimentaraapenas comumbreveacenodesdequeele chegaraao Instituto.Ela estavaajudandoamãe,o cabelopretovoandoaoventoforte.

—Vocêpoderiasimplesmenteirfalarcomela—disseClary.—Emvezdeficarolhandotodoesquisitãodeumjeitobizarro.

—Nãoestouolhandodeumjeitobizarro.Sóestouolhandocomsutileza.— Eu percebi — observou Clary. — Olhe, você sabe como Isabelle ca.

Quandoestáaborrecida,seafasta.Elanãovaifalarcomninguém,alémdeJaceouAlec,porquemal con a emalguém.Mas se vocêvai seronamoradodela,temquemostrarqueéumadessaspessoasemquemelapodeconfiar.

—Não sou o namorado dela. Pelomenos, não acho que seja o namoradodela.Dequalquerforma,elanuncausouapalavra“namorado”.

Claryochutounotornozelo.—VocêsdoisprecisamdeumaDRmaisdoquequalqueroutro“casal”que

jáconheci.— Está rolando uma DR por aqui? — falou uma voz atrás deles. Simon

virou-seeviuMagnus,muitoaltocontraocéuescuroatrásdeles.Estavavestidodiscretamente, com um jeans e uma camiseta preta, o cabelo escuroparcialmentecaídonosolhos.—Vejoquemesmoquandoomundoselançanaescuridão e no perigo iminente, vocês dois cam por aí discutindo a vidaamorosa.Adolescentes.

—Oquevocêestáfazendoaqui?—perguntouSimon,surpresodemaisparaumareaçãointeligente.

—VimverAlec—falouMagnus.Claryergueuassobrancelhasparaele.—Equehistóriafoiaqueladeadolescentes?Magnusesticouumdedoparaadvertir.—Nãodêumpassomaiorqueaperna,docinho—disseele,epassoupelos

dois,desaparecendonamultidãoaoredordoPortal.—Docinho?—questionouSimon.

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—Acredite se quiser, ele jáme chamou assim— comentouClary.—Dêumaolhada,Simon.—Esevirouparaele,retirandoamãodobolsodojeans.Elaolhouparaoobjetoesorriu.—Oanel—explicou.—Foibemútilquandofuncionou,nãofoi?

Simon tambémolhouparaoanel.Umaneldeourocom formatode folhacirculava o dedo anelar direito. Emoutra época, o anel fora uma ligação comClary. Agora que o dela tinha sido destruído, era apenas um anel, mas ele oguardavamesmoassim.Elesabiaqueeracomopossuirametadedeumcordãodemelhoresamigos,masnãoconseguiaevitar.Eraumbeloobjetoeaindaeraumsímbolodaconexãoentreeles.

Clary apertou a mão dele com força e ergueu o olhar. Sombras seremexeramnoverdedesuaíris;davaparaverqueelaestavacommedo.

—SeiqueéapenasumareuniãodoConselho...—começouadizerClary.—MasvocêvaificaremIdris.—SóatéelesdescobriremoqueestáacontecendocomosInstitutosecomo

protegê-los — falou Clary. — Depois nós vamos voltar. Sei que telefones emensagensdetextoetalnãofuncionamemIdris,masseprecisarfalarcomigo,dêumtoquenoMagnus.Elevaiencontrarumjeitodememandarorecado.

Simonsentiuumbolonagarganta.—Clary...—Euteamo—disseela.—Vocêémeumelhoramigo.—Elasoltouamão

dele, osolhosbrilhavam.—Não,nãoprecisadizernada.Nãoqueroquediganada.—ElasevirouequasecorreudevoltaparaoPortal,ondeJocelyneLukea aguardavam, com três bolsas de lona cheias de coisas aos pés deles. LukeolhouparaSimondooutroladodopátio,aexpressãopensativa.

Mas onde estava Isabelle? A multidão de Caçadores de Sombras tinhadiminuído. Jace se aproximoue cou ao ladodeClary, comamãonoombrodela;MaryseestavapertodoPortal,masIsabelle,queestavacom...

—Simon—disseumavozaoombrodele,eeleseviroueviuIzzy.Seurostoera umborrãopálido entre o cabelo escuro e a capapreta, e ela o tava comumaexpressãomeio zangada,meio triste.—Achoque essa é aparte emque

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dizemosadeus,nãoé?

—Tudobem—disseMagnus.—Vocêqueriafalarcomigo.Entãofale.Alec o encarava, de olhos arregalados. Eles tinham contornado a igreja e

estavamparadosemum jardimpequeno,queimadopelo inverno,entrecercasvivas desfolhadas. Videiras grossas cobriam o muro de pedra e o portãoenferrujado perto dele, e agora estavam tão desnudas por causa do clima queAlecpodiaveraruamundanaatravésdogradeadodoportãodeferro.Haviaumbancodepedraporperto,easuperfícieásperaestavacobertacomgelo.

—Euqueria...oquê?Magnus olhava para ele com uma expressão irritadiça, como se o garoto

tivesse feito alguma coisa tola. Alec suspeitava que tivesse feito mesmo. Osnervosestavamà ordapele,eeletinhaumasensaçãonauseantenofundodoestômago.Da última vez que viraMagnus, o feiticeiro havia se afastado dele,desaparecendo dentro de um túnel do metrô desativado e cando cada vezmenoratésumir.Akucintakamu,disseraaAlec.“Euteamo”,emindonésio.

Issoderaaogarotoumacentelhadeesperança,osu cienteparaqueligassedezenasdevezesparaMagnus,osu cienteparaqueelecontinuasseaveri carotelefone,verificaracorrespondênciaeatéverificarasjanelasdoquarto—queparecia estranho, vazio e desconhecido semMagnus nele,muito diferente doquartodesempre—embuscaderecadosoubilhetesenviadospormágica.

E no presentemomentoMagnus estava parado diante dele, o cabelo pretobagunçado e os olhos de gato com pupilas em fenda, a voz feitomelaço e asfeições belas, acentuadas e interessantes agora inexpressivas, e Alec sentiucomosetivesseengolidocola.

— Você queria conversar comigo — disse Magnus. — Suponho que essefosseomotivodetodosaquelestelefonemas.Eomotivodetermandadotodososseusamigosidiotasaomeuapartamento.Ousimplesmentefazissocomtodomundo?

Alecengoliuparaabrandarasecuranagargantaefalouaprimeiracoisaquelheveioàmente.

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—Vocênuncavaimeperdoar?—Eu...—Magnusparouedesviouoolhar,balançandoacabeça.—Alec,eu

teperdoei.—Nãoacredito.Vocêparecezangado.QuandoMagnusvoltouaolharparaele,tinhaumaexpressãomaissuave.—Estoupreocupadocomvocê.OsataquesaosInstitutos.Acabeidesaber—

retrucouofeiticeiro.Alecestavatonto.Magnusoperdoara;Magnussepreocupavacomele.—VocêsabiaqueestamospartindoparaIdris?—Catariname contou que havia sido convocada para criar umPortal. Eu

imaginei—falouMagnusironicamente.—Fiqueiumpoucosurpresoporvocênãoterligadoouenviadoumtorpedodizendoqueestavaindoembora.

—Vocênuncaatendenemrespondeàsmensagens—observouAlec.—Issonãoteimpediuantes.—Todomundodesisteemalgummomento—respondeuogaroto.—Além

disso,Jacequebroumeucelular.Magnussoltouumagargalhadabufada.—Ora,Alexander.—Oquê?—perguntouAlec,confusodeverdade.— Você é simplesmente... Você é tão... Eu quero muito te beijar —

comentouMagnusabruptamenteedepoisbalançouacabeça.—Entende,éporissoqueeunãoqueriatever.

—Mas você está aqui agora— falouAlec.Ele se lembroudaprimeira vezque Magnus o beijou, contra a parede, em frente ao apartamento; todos osossosdeleviraramlíquido,eelepensou:Ah,beleza,éassimquedeveserentão.Agoraeuentendi.—Vocêpoderia...

—Não posso— continuouMagnus.—Não está funcionando, não estavafuncionando.Vocêtemqueenxergarisso,nãoé?—Asmãosdeleestavamnosombros de Alec.O garoto sentiu o polegar do feiticeiro roçando seu pescoçopor cima da gola, e seu corpo inteiro deu um pulo. — Não é? — repetiu

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Magnus,eobeijou.Alecseentregouaobeijo.Foitotalmentesilencioso.Eleouviaobarulhodas

botas esmagando a neve no chão enquanto se aproximava, amão deMagnusdeslizandoparaapoiarsuanuca,eosabordesempre,doce,amargoefamiliar.Alec entreabriuos lábios para suspirar, respirar ou sorverMagnus, porémeratarde demais porque o outro se afastou dele bruscamente, deu umpasso paratrásepôsfimnaquilo.

—Oquefoi?Magnus,oquefoi?—perguntouAlec,confusoesesentindoestranhamentediminuído.

— Eu não devia ter feito isso — respondeu Magnus num ímpeto. Eraevidentequeele estavaagitado,deummodoqueAlecnunca tinhavisto, comumrubornasbochechasmarcadas.—Euteperdoo,masnãoposso carcomvocê. Não posso. Não funciona. Vou viver para sempre ou pelo menos atéalguémfinalmentemematar,evocênão,eécoisademaisparavocêassumir...

—Nãovenhamedizeroqueé coisademaisparamim—falouAlec, comumaindiferençamortal.

Era tão raroMagnus car surpreso que a expressão foi quase estranha aorostodele.

—Écoisademaisparaamaiorpartedaspessoas—comentouele.—Paraamaioria dosmortais. E não é fácil para nós também.Ver alguém que se amaenvelheceremorrer.Euconheciumagarota,umavez,imortalcomoeu...

—Eelaestavacomalguémmortal?—perguntouAlec.—Oqueaconteceu?—Elemorreu— explicouMagnus.Havia uma peremptoriedade nomodo

comoeledisseaquilo,quedavacontadeumatristezamaisprofundadoqueaspalavraspoderiamexpressar.Osolhosdegatobrilharamnoescuro.—Nãoseiporqueacheiqueissofuncionaria—disseele.—Desculpe,Alec.Eunãodeviatervindo.

—Não—retrucouAlec.—Nãodevia.Magnus tava Alec com um pouco de cautela, como se estivesse se

aproximandodealguémfamiliarnaruaedescobrisse,a nal,quese tratavadeumestranho.

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—Não sei por que você fez isso— desabafouAlec.— Sei que tenhometorturadohá semanaspor suacausaepeloqueeu z, eporquenãodevia terfeito, por que nunca devia ter falado com Camille. Eu me arrependi,compreendiepedidesculpasváriasvezes,evocênuncaestevelá.Eufiztudoissosemvocê.Entãoissomefazpensarnoquemaiseupoderiafazersemvocê.—EleolhouparaMagnuscomumaexpressãopensativa.—Oqueaconteceu foiminha culpa.Mas foi culpa sua também. Eu poderia ter aprendido a nãomeimportarporvocê ser imortal e eu sermortal.Todomundo temo tempoquetemjuntocomoutrapessoa,enadamais.Talvezagentenãosejatãodiferenteassim.Massabeoquenãoconsigosuperar?Quevocênuncamediganada.Nãosei quando você nasceu. Não sei nada sobre sua vida: qual é o seu nomeverdadeiro,nemseinadasobresuafamíliaouqualfoioprimeirorostoquevocêamou,ouaprimeiravezquepartiramseucoração.Vocêsabetudosobremim,eeunãoseinadasobrevocê.Esseéoverdadeiroproblema.

— Eu te contei — respondeu Magnus, baixinho —, no nosso primeiroencontro,quevocêteriaquemeaceitardojeitoquecheguei,semperguntas...

Alecfezumgestocomamãopararejeitaraquilo.—Nãoéjustopedirumacoisadessas,evocêsabe…sim,vocêsabiaquena

época eu não compreendia o su ciente sobre o amor para entender aquilo.Você age como se fosse a parte enganada,mas teve umamãozinha sua nissotudo,Magnus.

—Teve—comentouMagnus,depoisdeumapausa.—Suponhoquesim.—Masissonãomudanada,nãoé?—perguntouAlec,sentindooargelado

entrandosorrateiramentedebaixodascostelas.—Nuncamudacomvocê.— Não posso mudar — falou Magnus. — Faz tempo demais. Sabe, nós

imortais camos petri cados como fósseis que viram rocha. Quando teconheci,penseiquevocêtivessetodaessaadmiraçãoealegria,equetudofossenovoparavocê,eacheiqueissoiriamemudar,mas...

—Mudeporvocêmesmo—interrompeuAlec,masavoznãosaiuzangadanemseveracomoelepretendia,masbaixa,comoumapelo.

MasMagnusapenasbalançouacabeça.

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—Alec— disse ele.—Você conhecemeu sonho. Aquele sobre a cidadefeita de sangue, com sanguenas ruas e torres de ossos. Esse vai ser omundorealseSebastianconseguiroquequer.OsangueseráodosNephilim.VáparaIdris. Vai estar mais seguro lá, mas não con e em ninguém e não baixe aguarda. Eu preciso que você viva. — Ele inspirou, deu meia-volta muitoabruptamenteeseafastou.

Euprecisoquevocêviva.Alecsentou-senobancodepedracongeladoepôsorostoentreasmãos.

—Não é um adeus de nitivo—protestou Simon,mas Isabelle simplesmentefranziuatesta.

—Venhacomigo—disseela,epuxou-lheamanga.Elaestavausandoluvasde veludo vermelho-escuro, e suamãoparecia umborrifo de sangue contra otecidoazul-marinhodocasaco.

Simonafastouaquelepensamento.Elegostariadenãopensaremsangueemmomentosinoportunos.

—Iraonde?Isabelleapenasrevirouosolhosepuxouogarotoparaolado,atéumrecesso

obscuro perto dos portões dianteiros do Instituto.O espaço não era amplo, eSimonpodiasentirocalordocorpodeIsabelle—calore frionãooafetavamdesdequesetornaravampiro,excetosefosseocalordosangue.ElenãosabiaseissoocorriaporquejáhaviabebidoosanguedeIsabelle,ouseeraalgomaisprofundo,mas estava consciente da pulsação do sangue nas veias dela de umjeitoquenãoficavaarespeitodemaisninguém.

—EuqueriaircomvocêaIdris—disseele,sempreâmbulos.— Você está mais seguro aqui — respondeu a garota, embora os olhos

escurostenhamsesuavizado.—Alémdisso,nãovamosparasempre.Osúnicosintegrantes do Submundo que podem ir até Alicante são os membros doConselhoporque elesprecisam se reunir, pensarnoque todos vamos fazer, eprovavelmente nos mandar de volta. Não podemos nos esconder em Idrisenquanto Sebastian destrói tudo do lado de fora. Caçadores de Sombras não

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fazemisso.Simonpassouumdedopelabochechadela.—Masvocêquerqueeumeescondaaqui?—Jordanpode tomarcontadevocêaqui—comentouela.—Seuguarda-

costas pessoal.Você é omelhor amigo deClary— acrescentou.— Sebastiansabedisso.Vocêpodeserumrefémedeviaestarondeelenãoestá.

—Ele jamais demonstrou interesse pormim.Não vejo por que começariaagora.

Eladeudeombrosepuxoumaisacapaparasi.—Elenuncademonstrou interesseemninguémalémdeClarye Jace,mas

isso não signi ca que ele não vá começar a se interessar. Ele não é idiota.—observouelacomarrelutante,comoseodiassedartantocréditoaSebastian.—Claryfariaqualquercoisaporvocê.

— Ela também faria qualquer coisa por você, Izzy. — E, diante do olhardescon adode Isabelle, ele abarcou a bochecha dela.—Tudo bem, então, sevocênãovaificarforatantotempo,porquetudoisso?

Isabelle fez uma careta. A boca e as bochechas estavam rosadas, o friotrazendoo rubor à superfície. Ele queria poder encostar os lábios geladosnosdela, tão cheios de sangue, vida e calor, mas sabia que os pais dela estavamolhando.

—OuviClaryquandoestavasedespedindodevocê.Eladissequeteama.Simonolhoufixamenteparaela.—Sim,maselanãosereferiaàquelejeito...Izzy...—Eusei—protestouIsabelle.—Porfavor,eusei.Masésóqueeladizisso

comtantafacilidade,evocêdizparaelacomtantafacilidade,eeununcadisseissoparaninguém.Paraninguémquenãofossemeuparente.

—Massevocêdizqueama—falouSimon—,podeacabarsemagoando.Éporissoquenãodiz.

— Você também poderia acabar assim. — Os olhos dela eram grandes epretos,erefletiamasestrelas.—Semagoando.Eupoderiamagoarvocê.

—Eu sei—con rmouSimon.—Eu sei enãome importo. Jaceme falou

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umavezquevocêpisarianomeucoraçãocombotasdesaltoalto,eissonãomeimpediudeiremfrente.

Isabellearfoudeummodosutil,comumarisadaespantada.—Eledisseisso?Evocêcontinuouporperto?Ele se inclinou em direção a ela. Se respirasse, teria remexido o cabelo de

Isabelle.—Euconsiderariaissoumahonra.Elavirouacabeça,eoslábiosdelessetocaram.Osdelaeramdolorosamente

quentes. Ela estava fazendo alguma coisa com as mãos — abrindo a capa,pensouSimonporummomento,mascertamenteIsabellenãocomeçariaatirararoupadiantedetodaafamília,nãoé?NãoqueSimonestivessesegurodequeteria persistência para impedi-la.A nal de contas, ela era Isabelle, e quase—quase—tinhafaladoqueoamava.

OslábiosdelaroçavamapeledeSimonenquantoelafalava.—Fiquecomisto—murmurouela,eelesentiuumacoisafriaemsuanuca,

eoveludodeslizandosuavementeenquantoelaseafastavaeasluvasroçavamopescoçodele.

Simonbaixouoolhar.Umquadradovermelho-sanguereluziaemseupeito.Opingentede rubide Isabelle.EraumaherançadosCaçadoresdeSombrasetinhaumencantoparadetectarapresençadeenergiademoníaca.

—Não posso car com isto— respondeu, chocado.— Iz, isto deve valerumafortuna.

Elaajeitouosombros.— É um empréstimo, não um presente. Guarde-o até nosso próximo

encontro.—Elapassouosdedos enluvadospelo rubi.—Umahistória antigadizqueeleentrounanossa famíliagraçasaumvampiro.Entãocombinacomvocê.

—Isabelle,eu...—Não—interrompeuela,emboraelenãosoubesseexatamenteoque iria

dizer.—Nãodigaisso,nãoagora.

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Elaseafastoudele.Simonpodiaverafamíliaatrásdela,tudoquerestaradoConclave.Luke tinha atravessadooPortal, e Jocelyn estavaprestes a segui-lo.Alec, que vinha contornando o Instituto com asmãos nos bolsos, olhouparaIsabelleeSimon,ergueuumadassobrancelhasecontinuouandando.

—Sónão...sónãosaiacommaisninguémenquantoeuestiverfora,tá?Eleolhouparaela.—Issoquerdizerqueagenteestánamorando?—perguntou,mas Isabelle

apenas esboçou um sorriso e depois deu meia-volta, correndo para o Portal.SimonviuquandoelapegouamãodeAleceosdoisentraramjuntos.Marysefoi a seguinte, depois Jace, e então Clary foi a última, parada ao lado deCatarina,emolduradapelaluzazulofuscante.

ClarypiscouparaSimonepassou.OgarotoviuogirodoPortalaocapturá-la,eentãoelasefoi.

Simonpôsamãonorubiemseupescoço.Pensoutersentidoumbatimentono interior da pedra, uma pulsaçãomutante. Era quase como voltar a ter umcoração.

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3PássarosatéaMontanha

Clarycolocouabolsanochãopertodaportaeolhouemvolta.Ela ouvia a mãe e Luke se movendo ao redor, acomodando a própria

bagagem, acendendo as pedras de luz enfeitiçada que iluminavam a casa deAmatis.Claryseabraçou.ElesaindafaziampoucaideiadecomoAmatistinhasido levada por Sebastian. Embora o lugar já tivesse sido examinado pelosmembros do Conselho em busca de materiais perigosos, Clary conhecia oirmão. Se fosse controlado pelo humor, teria destruído tudo na casa,simplesmente para demonstrar que podia — transformado os sofás numafogueira,estilhaçadoosespelhoseexplodidoasjanelasempedacinhos.

Elaouviuamãedarum levesuspirodealívio,e soubeque Jocelyndeve terpensado o mesmo que Clary: não importava o que tivesse ocorrido, a casaparecia ótima. Não havia nada nela que indicasse que algo ruim tivesseacontecidoaAmatis.Os livros estavamempilhadosnamesadecentro,opisoestava empoeirado, mas não se via lixo, as fotogra as na parede pareciamarrumadas. Clary sentiu uma pontada ao ver que perto da lareira havia umafotogra a recente dela, de Luke e de Jocelyn em Coney Island, abraçados esorrindo.

PensounaúltimavezqueviraairmãdeLuke,SebastianforçandoAmatisabeber do Cálice Infernal enquanto ela gritava em protesto. O modo como apersonalidadedesapareceradosolhosdeladepoisdeengoliroconteúdo.Claryse perguntava se era assim ao ver alguém morrer. Não que já não tivessepresenciado amorte também.Valentimmorrera diante dela. Certamente, elaerajovemdemaisparatertantosfantasmas.

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Luke se deslocara para olhar a lareira e as fotogra as que estavam ali.Esticouamãoparatocarumaquemostravaduascriançasdeolhosazuis.Umadelas, o menino mais novo, desenhava enquanto a irmã o observava comexpressãocarinhosa.

Ele parecia exausto. A viagem no Portal os levara até Gard, e elescaminharampelacidadeatéacasadeAmatis.Lukeestremeciacomfrequênciapor causa da dor da ferida na lateral que ainda não estava curada,masClaryduvidava que o ferimento fosse o verdadeiro problema.O silêncio na casa deAmatis, os tapetes caseiros de retalhos, os objetos de recordaçãocuidadosamentearrumados—tudomanifestavaumavidacomuminterrompidadapiorformapossível.

Jocelyn caminhou e pôs a mão no ombro dele, murmurandocarinhosamente. Ele se virou no círculo formado pelos braços dela e pôs acabeçacontraoombrodamulher.Eramaisumgestodesolidariedadequealgoromântico, mas Clary ainda sentia como se tivesse se deparado com ummomentoíntimo.Silenciosamente,pegouabolsadelonaesubiupelaescada.

O cômodo extra não tinha mudado nada. Pequeno; paredes pintadas debranco; as janelas eram circulares, como escotilhas— lá estava a janela pelaqualJacehaviasearrastadodeterminadanoite—,eamesmacolchaderetalhosna cama. Clary largou a bolsa no chão, perto damesa de cabeceira. Amesa,ondeJacedeixaraumacartacertamanhã,naqualdiziaqueiaemboraenãoiavoltar.

Ela se sentou na beirada da cama e tentou espanar a teia de lembranças.ClarynãohaviapercebidocomoseriadifícilvoltaraIdris.NovaYorkeraolar,normal. Idris era guerra e destruição. Em Idris, tinha visto a morte pelaprimeiravez.

Osanguedelazuniaelatejavaemseusouvidos.ElaqueriaverJace,verAleceIsabelle—elesaapoiariam,dariamasensaçãodenormalidade.Elaconseguia,demodomuitofraco,ouviramãeeLukesemovimentandonoandardebaixo,possivelmente até mesmo o tinir das xícaras na cozinha. Ela se obrigou a selevantare foiatéospésdacama,ondehaviaumbaúquadrado.Eraobaúque

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Amatis trouxera para ela quando Clary cara ali antes, e lhe dissera pararemexerneleepegarroupas.

Agora ela estava ajoelhada, abrindo o baú. As mesmas roupas,cuidadosamente separadas entre camadas de papel: uniformes escolares,suéterese jeanssemenfeites,blusasesaiasmais formaise,porbaixode tudo,umvestidoqueClaryinicialmentepensaraserumvestidodecasamento.Elaopegou.Agoraqueestavamais familiarizadacomosCaçadoresdeSombraseomundodeles,reconheciaaquilo.

Roupas de luto. Um vestido branco simples e um casaco justinho comsímbolos prateados de luto bordados no tecido — e ali, nos punhos, umdesenhoquaseinvisíveldeaves.

Garças. Clary pousou as roupas na cama com cuidado. Em suamente viaAmatisvestindoaquelasroupasapósamortedeStephenHerondale.Vestindocomcuidado,alisandootecido,abotoandoocasaquinhojusto,tudoparachorarpor um homem com quem não estava mais casada. As roupas de viúva paraalguémquenãoforacapazdeseintitularviúva.

—Clary?—Eraamãe,inclinando-senaentradaeobservandoa lha.—Oque são essas... Oh. — Ela cruzou o cômodo, tocou o tecido do vestido esuspirou.—Oh,Amatis.

—ElanuncaesqueceuStephen,nãoé?—perguntouClary.—Às vezes as pessoas não esquecem.—Amão de Jocelyn foi do vestido

para o cabelo de Clary, ajeitando-o com rápida precisão maternal. — E osNephilim... nós tendemos a amar de formamuito avassaladora.Apaixonar-seuma única vez emorrer por amor.Meu antigo tutor costumava dizer que oscorações dos Nephilim eram como os corações dos anjos: sentiam todas asdoreshumanasenuncasecuravam.

—Masvocêsecurou.VocêamavaValentim,masagoraamaLuke.— Eu sei. — O olhar de Jocelyn estava distante. — Foi somente quando

passeimais temponouniversomundanoquecomeceiaperceberqueos sereshumanos não encaravam o amor dessa forma. Percebi que era possível tê-lomais de uma vez, que seu coração poderia se curar, que você poderia amar

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váriasvezes.EeusempreameiLuke.Talveznãosoubessedisso,maseusempreoamei.—Jocelynapontouasroupasnacama.—Vocêdeveriavestirocasacodeluto—falouela.—Amanhã.

Assustada,Claryperguntou:—Paraareunião?—CaçadoresdeSombrasmorrerame foram transformadosemCaçadores

malignos—falouJocelyn.—TodoCaçadordeSombrasperdidoé lho,irmão,irmã, primo de alguém. Os Nephilim são uma família. Uma famíliaproblemática, mas... — Ela tocou o rosto da lha, a expressão seguinteescondida pelas sombras.—Durma umpouco,Clary— sugeriu.—Amanhãvaiserumdialongo.

Depois de amãe sair e fechar a porta, Clary vestiu a camisola e deitou-seobedientementenacama.Elafechouosolhosetentoudormir,masosononãochegava. Imagens continuavam a irromper atrás das pálpebras feito fogos deartifício: anjos caindo do céu; sangue dourado; Ithuriel em suas correntes, osolhos vendados, falando-lhe sobre as imagens dos símbolos que ele lhe deradurante a vida, visões e sonhos como futuro.Ela se recordavados sonhosdoirmão, com asas pretas que espirravam sangue, caminhando sobre um lagocongelado...

Tirou a colcha. Estava com calor e coceira, agitada demais para dormir.Depoisdesairdacama,andounapontadospésatéoandardebaixo,buscandoumcopodeágua.Asaladeestarestavasemi-iluminada,eapoucaclaridadedapedra de luz enfeitiçada se derramava pelo corredor. Ouviam-se murmúriosatrás da porta. Clary seguiu com cautela pelo corredor até que os sussurroscomeçaramaganhar formae familiaridade.Ela reconheceuprimeiroavozdamãe,tensaporcausadaansiedade.

—Maseunãocompreendocomoistopoderiater cadonoarmário—diziaela.—Eunãovejodesde...desdequeValentim tirou tudooqueeranosso, láemNovaYork.

—ClarynãodissequeestavacomJonathan?—perguntouLuke.

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—Sim,masentãoeleteriasidodestruídocomaqueleapartamentonojento,não teria?—Avozde Jocelyn se elevouquandoClary sepostouà entradadacozinha. — Aquele com todas as roupas que Valentim comprou para mim.Comoseeuestivessevoltando.

Clary cou bem quietinha. A mãe e Luke estavam sentados à mesa dacozinha;Jocelyn,comacabeçaapoiadaemumadasmãos,eLukeesfregandoascostas dela. Clary contara à mãe tudo sobre o apartamento, sobre comoValentim omantivera com todas as coisas de Jocelyn, certo de que um dia aesposa voltaria a morar com ele. A mãe ouvira tranquilamente, mas eraevidentequeahistóriaaperturbaramuitomaisdoqueClarypercebera.

—Agora ele se foi, Jocelyn— disse Luke.— Sei que pode parecer quaseimpossível. Valentim sempre foi uma presença tão grandiosa,mesmo quandoestavaseescondendo.Maselerealmenteestámorto.

—Masmeu lhonãoestá—falouJocelyn.—Vocêsabiaqueeucostumavapegarestacaixaechorarsobreela,todososanos,noaniversáriodele?Àsvezessonho comum garoto de olhos verdes, um garoto que nunca foi envenenadocomosanguedemoníaco,umgarotocapazderir,deamaredeserhumano,eeraporessegarotoqueeuchorava;masessegarotonuncaexistiu.

Pegavaechoravasobreela ,pensouClary;elasabiasobrequalcaixaamãesereferia.Atalcaixaeraummemorialaumacriançaquehaviamorrido,emboraainda estivesse viva.A caixa continha cachos de cabelo do bebê, fotogra as eum sapatinho minúsculo. Da última vez que Clary a vira, ela estava com oirmão.Valentimdevetê-ladadoaele,emboraelanuncapudessecompreenderporqueeleaguardara.Dificilmenteeradotiposentimental.

— Você vai ter que contar à Clave — observou Luke. — Se for algorelacionadoaSebastian,vãoquerersaber.

Clarysentiuoestômagogelar.—Euquerianão terque fazer isso— falou Jocelyn.—Queriapoder jogar

todaessahistórianumafogueira.Odeioqueissosejaminhaculpa—desabafou.—EtudoqueeusemprequisfoiprotegerClary.Porémoquemaismeapavoraporcausadela,porcausadetodosnós,équeeleéalguémquenãoestariavivo

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senão fossepormim.—Avozde Jocelynse tornou indiferenteeamarga.—Eudeveriatê-lomatadoquandoeraumbebê—disseerecostou-se,afastando-sedeLukedemodoqueClaryconseguiuveroquehavianasuperfíciedamesada cozinha. Era a caixa de prata, exatamente como ela se recordava dela.Pesada,comumatampasimpleseasiniciaisJ.C.entalhadasnalateral.

O sol da manhã re etiu nos portões novos diante do Gard. Os antigos,imaginouClary,tinhamsidodestruídosnabatalhaquearrasaragrandepartedoGardechamuscaraasárvoresaolongodaencosta.DavaparaverAlicantelogoabaixo, depois dos portões, a água reluzente nos canais, as torres demoníacasestendendo-seatéumpontoondeosolasfaziacintilarfeitomicabrilhandonapedra.

OGardemsi tinha sido restaurado.O incêndionãodestruíraosmurosdepedranemastorres,eomuroaindaocercava,comosnovosportõesfeitosdomaisrígidoepuroadamasqueformavaastorresdemoníacas.Elespareciamtersido forjados à mão, com as linhas se curvando para circular o símbolo doConselho — trêsCs e umP dentro de um quadrado, que representavam oConselho,aClave,oCônsuleoPacto.Acurvadecadaletratinhaumsímbolode uma das divisões dosmembros do Submundo. Uma lua crescente para oslobos,umlivrodemagiaparaosfeiticeiros,uma echaél caparaopovofadae,paraosvampiros,umaestrela.

Uma estrela. Clary não conseguira pensar em nada que simbolizasse osvampiros.Sangue?Presas?Mashaviaalgodesimpleseelegantenaestrela.Erareluzente na escuridão. Uma escuridão que nunca seria iluminada, e erasolitáriadeumjeitoqueapenascriaturasimortaispoderiamser.

Clary sentia uma saudade tão grande de Simon que chegava a doer. Elaestavaexaustaapósumanoitedepoucosono,easreservasemocionaisestavambaixas.O fatode sentir-se comose fosseo centrodeumacentenadeolhareshostistambémnãoajudava.DezenasdeCaçadoresdeSombrasperambulavampelos portões, e a maioria era desconhecida. Muitos lançavam olharesdisfarçados para Jocelyn e Luke; alguns vinham cumprimentá-los, enquanto

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outros cavamparatráseobservavamcomcuriosidade.Jocelynpareciamanteracalmacomumpoucodeesforço.

MaisCaçadoresdeSombrasestavamsubindoatrilhaaolongodaColinadeGard. Aliviada, Clary reconheceu os Lightwood — Maryse na frente, comRobert ao lado dela; Isabelle, Alec e Jace vinham em seguida. Eles vestiam asroupasdelutobrancas.Marysepareciaespecialmentemelancólica.Clarynotouque ela e Robert caminhavam lado a lado, porém afastados, nem mesmo asmãossetocavam.

Jace afastou-se do grupo e caminhou em direção a ela. Os olhares oacompanhavamconformeeleprosseguia,emboraeleparecesseindiferente.Jaceera famosodeummodoestranhoentreosNephilim: erao lhodeValentimque,naverdade,nãotinhasido lho.SequestradoporSebastian,resgatadopelalâminadoCéu.Claryconheciamuitobemaquelahistória,bemcomotodososoutros próximos a Jace, mas os rumores cresceram como corais, ganhandocamadasenovastonalidades.

“...sanguedoanjo...”“...poderesespeciais...”“...ouviqueValentimensinoutruquesaele...”“...fogoemseusangue...”“...nãoserveparaosNephilim...”Elaouviaosmurmúrios,mesmoenquantoJacecaminhavaentreeles.Era um dia claro de inverno, frio, porém ensolarado, e a luz destacava as

mechasdouradaseprateadasdocabelodeJaceefaziamClaryapertarosolhosconformeeleseaproximavadelanoportão.

—Roupadeluto?—perguntouele,etocouamangadocasaco.—Vocêestáusando—observouela.—Nãoacheiquevocêtivessealguma.—ÉdeAmatis—falouClary.—Olhe,eutenhoquetecontarumacoisa.Elepermitiuqueelaopuxasseparaolado.Clarydescreveuaconversaentre

suamãeeLukearespeitodacaixa.

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—Semdúvidaéacaixadaqualmelembro.Éacaixaqueminhamãetinhaquando eu era criança, e a que estava no apartamento de Sebastian quandoestivelá.

Jacepassouumadasmãospelasmechasfinasdocabelo.—Acheimesmoquehouvessealgumacoisa—falouele.—Maryserecebeu

umrecadodesuamãehojedemanhã.—Oolhardeleeraíntimo.—SebastianTransformouairmãdeLuke—acrescentou.—Elefezissodepropósito,paramagoarLukeemagoarsuamãeatravésdeLuke.Eleaodeia.DevetervindoaAlicante para pegar Amatis, naquela noite que lutamos no Burren. Ele mecontou o que ia fazer, quando nós estávamos ligados.Disse que ia raptar umCaçadordeSombrasdeAlicante,masnãodissequal.

Claryassentiu.SempreeraestranhoouvirJacefalarsobreo euqueeletinhasido.OJacequeeraamigodeSebastian,maisqueamigo,umaliado.OJacequeusava a pele e o rosto de Jace, mas que na verdade era alguém totalmentediferente.

—Eledevetertrazidoacaixaedeixadonacasadela—completouogaroto.— Ele saberia que sua família a encontraria um dia. Pensou nela como umamensagemouassinatura.

—ÉissooqueaClaveacha?—perguntouClary.—Éissooqueeuacho—falouJace,eseconcentrounela.—Evocêsabe

que nós dois podemos interpretar Sebastian melhor do que eles podem oupoderão.Elesnãoocompreendemdemodoalgum.

—Sorteadeles.Osomdeumsinoecoou,eosportõesseabriram.ClaryeJacesejuntaram

aosLightwood,aLukeeaJocelynnatorrentedeCaçadoresdeSombrasquesereuniamali.Elespassarampelos jardins externosda fortaleza, subiramalgunsdegraus, depois passaram por outro conjunto de portas e adentraram umcorredorqueterminavanacâmaradoConselho.

JiaPenhallow,emtrajesdeConsulesa,parouàentradadacâmaraenquantoCaçadores de Sombras se acomodavam, um após o outro. Originalmente, ocômodoerauman teatro:umsemicírculodebancos emcamadasquedavam

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para um estrado retangular na parte da frente da sala.Havia dois púlpitos noestrado:umparaaConsulesaeumparaoInquisidore,atrásdospúlpitos,duasjanelas,retângulosimensoscomvistaparaAlicante.

Clarysentou-secomosLightwoodeamãe,enquantoRobertLightwoodsedirigiaaocorredorcentralparaassumirolugardoInquisidor.Noestrado,atrásdos púlpitos, havia quatro cadeiras, e, nas costas altas de cadauma, havia umsímboloinscrito:umlivrodemagia,a lua,a echa,aestrela.Osassentosparaos integrantes do Submundo do Conselho. Luke deu uma olhada em seuassento, porém sentou-se ao lado de Jocelyn. Não era uma reunião plena doConselho, com a presença de membros do Submundo. Luke não estavadesempenhando uma função. Diante dos assentos fora erguida uma mesacobertacomveludoazul.Sobreoveludo,via-seumobjetolongoea ado,umacoisaquebrilhavasobaluzdasjanelas.AEspadaMortal.

Claryolhouaoredor.AtorrentedeCaçadoresdeSombrastinhadiminuídopara umgotejo; o cômodo estava praticamente cheio até o teto, que produziaecos. Antigamente havia outras entradas além daquela do Gard. A abadia deWestminstertiverauma,elasabia,bemcomoaSagradaFamíliaeacatedraldeSão Basílio, o Abençoado, mas todas foram fechadas com a invenção dosPortais. Ela não conseguia evitar se perguntar se era algum tipodemagia queevitavaqueasaladoConselhotransbordasse.Estavacheiacomoelanuncavira,masaindaassimhaviaassentosvaziosquandoJiaPenhallowsubiunoestradoebateupalmascomforça.

—Porfavor,prestematenção,membrosdoConselho—falouela.O silêncio se instaurou rapidamente, muitos dos Caçadores de Sombras

estavamse inclinandoparaa frente.Osrumorestinhamvoadocomopássarosem pânico, e havia uma eletricidade no ambiente, a corrente crepitante depessoasdesesperadasporinformações.

—Bangcoc,BuenosAires,Oslo,Berlim,Moscou,LosAngeles— falou Jia.—Atacadasemrápidasucessão,antesqueosataquespudessemserinformados.Antes que avisos pudessem ser dados. Em todos osConclaves nessas cidades,tivemos Caçadores de Sombras capturados e Transformados. Uns poucos,

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lamentavelmentepoucos, osmuito velhosoumuito jovens, forammortos.Oscorposforamabandonadosparanósqueimarmos,paraacrescentarmosàsvozesdosCaçadoresdeSombrasnaCidadedoSilêncio.

Uma voz falou de uma das leiras da frente. Uma mulher com cabelospretos, o desenho prateado de uma carpa tatuado e se destacando na pelemorena da bochecha. Clary raramente via Caçadores de Sombras comtatuagensquenãofossemMarcas,masnãoeraumcasoinédito.

— Você falou “Transformados” — observou ela. — Mas não quer dizer“destruídos”?

Jiaenrijeceuaboca.—Nãoquerodizer“destruídos”—falou.—Querodizer“Transformados”.

NósestamosfalandodosCrepusculares,aquelesqueJonathanMorgensternouSebastian, como ele prefere ser chamado, Transformou para desviar de seusns comoNephilim usando o Cálice Infernal. Todos os Institutos receberam

relatóriosdoocorridoemBurren.AexistênciadosCrepusculareséalgosobreoqual sabíamos há algum tempo, mesmo que talvez houvesse aqueles que nãoqueriamacreditar.

Ummurmúrio circulou pela sala. Clarymal o ouviu. Estava consciente damãodeJaceaoredordasua,masouviaoventoemBurreneviaosCaçadoresde Sombras se erguendo do Cálice Infernal e encarando Sebastian, com asMarcasdoLivroGrayjádesaparecendodapele...

—CaçadoresdeSombrasnãoenfrentamCaçadoresdeSombras—a rmouumhomemidosoemumadasprimeiras leiras. JacemurmurounoouvidodeClaryqueosujeitoeraolíderdoInstitutodeReykjavík.—Éumablasfêmia.

— É blasfêmia — concordou Jia. — Blasfêmia é o credo de SebastianMorgenstern. O pai dele queria limpar omundo dos Caçadores de Sombras.Sebastianqueralgomuitodiferente.ElequerosNephilimreduzidosacinzas,equerusarosNephilimparafazerisso.

— Sem dúvida, se ele foi capaz de transformar os Nephilim em... emmonstros,deveríamossercapazesdeencontrarummeiodetransformá-losde

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volta— falouNasreenChoudhury, a líderdo InstitutodeMumbai,magní caem seu sari branco decorado com símbolos. — Sem dúvida, não deveríamosdesistirtãofacilmente.

— O corpo de um dos Crepusculares foi encontrado em Berlim — disseRobert.— Estava ferido, provavelmente abandonado paramorrer.Os IrmãosdoSilênciooestãoexaminandonestemomentoparaverseconseguemreuniralgumainformaçãoquetalvezleveaumacura.

— Qual dos Crepusculares? — perguntou a mulher com a tatuagem decarpa.—EletinhaumnomeantesdeserTransformado.UmnomedeCaçadordeSombras.

—AmalricKriegsmesser—disseRobertapósummomentodehesitação.—Afamíliajáfoiavisada.

Os feiticeiros do Labirinto Espiral estão trabalhando numa cura . A vozmultidirecionalesussurradadeumIrmãodoSilêncioecoounocômodo.Claryreconheceu Irmão Zachariah parado, com as mãos cruzadas, próximo aoestrado.Aoladodele,HelenBlackthorn,vestidacomaroupabrancade lutoeparecendoansiosa.

— Eles são feiticeiros — falou outra pessoa em tom indiferente. — Semdúvida,nãovãofazermelhorquenossosprópriosIrmãosdoSilêncio.

— Será que Kriegsmesser não pode ser interrogado?— interrompeu umamulher alta com cabelo branco. — Talvez ele conheça o próximo passo deSebastian,oumesmoumaformadecurarsuacondição...

AmalricKriegsmessermalestáconsciente;alémdisso,eleéumservodoCáliceInfernal, disse Irmão Zachariah.O Cálice Infernal o controla completamente.Elenãotemvontadeprópriae,portanto,nãotemvontadeaserquebrada.

Amulhercomatatuagemdecarpavoltouafalaremvozalta:—É verdade que SebastianMorgenstern está invulnerável agora?Quenão

podesermorto?Ouviu-seummurmúrionasala.Jiafalou,erguendoavoz:—Como eu disse, não houve sobreviventesNephilim do primeiro ataque.

MasoúltimofoinoInstitutoemLosAngeleseseissobreviveram.Seiscrianças.

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—Elasevirou.—HelenBlackthorn,porfavor,tragaastestemunhas.Clary viuHelen assentir e desaparecer por uma porta lateral.Um instante

depois, ela retornou; caminhava devagar e cuidadosamente agora, a mão nascostasdeumgarotomagrocomcabelos castanhosonduladosedesgrenhados.Ele não podia termais de 12 anos. Clary o reconheceu imediatamente. Ela otinhavistonanavedoInstitutonaprimeiravezqueencontraraHelen,opulsopresono apertoda irmãmais velha, asmãos cobertasde ceraporque estiverabrincandocomostocosdevelaquedecoravamointeriordacatedral.Eletinhaumsorrisotravessoeosmesmosolhosazuis-esverdeadosdairmã.

Julian,Helenochamara.Seuirmãomaisnovo.Osorrisotravessotinhaesmorecidoagora.Ogarotopareciacansado,sujoe

apavorado.Pulsos nos emergiamdospunhosdeuma jaquetade lutobranca,commangascurtasdemaisparaele.Carregavaummenininho,provavelmentecom não mais de 3 anos, com cachos castanhos embaraçados; parecia umacaracterísticadefamília.Ascriançasrestantesusavamroupasde lutosimilaresemprestadas. Atrás de Julian havia uma garota de cerca de 10 anos, suamãormementepresanamãodeummeninodamesma idade.Ocabelodagarota

era castanho-escuro, mas o menino tinha cachos pretos embaraçados quepraticamente obscureciam o rosto dele. Gêmeos fraternos, imaginou Clary.Depoisdeles,veioumagarotaquepoderiater8ou9anos,comorostoredondoe muito pálido entre tranças castanhas. Todos os Blackthorn — pois asemelhançadefamíliaeraimpressionante—pareciamadmiradoseassustados,menosHelen,cujaexpressãoeraumamisturadefúriaetristeza.

AinfelicidadeemseusrostospartiuocoraçãodeClary.Elapensounopoderdos símbolos, desejando poder criar um que diminuísse o golpe da perda. Asmarcasdelutoexistiam,massomenteparahomenagearosmortos,domesmomodo que existiam símbolos de amor, como as alianças de casamento, parasimbolizaro vínculodo amor.Vocênãopoderia fazer alguémamar comumamarca, e não poderia diminuir a tristeza com um símbolo também. Tantamágica,pensouClary,enadaparaemendarumcoraçãopartido.

—JulianBlackthorn—disse JiaPenhallow,e suavoz foigentil.—Dêum

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passoàfrente,porfavor.Julianengoliuemsecoeacenoucomacabeça,entregandoomenininhoque

segurava para a irmã mais velha. Ele deu um passo adiante, e seus olhospercorreramosalão.Eraevidentequeestavaexaminandooespaçoembuscadealguém.Osombroscomeçavamaseencolherquandooutrovultocorreuatéoestrado.Umagarota,commaisoumenos12anos tambémeumemaranhadode cabelo louro-escuro que descia pelos ombros. Vestia um jeans e umacamisetaquenão lhe cabiammuitobem, e a cabeça estavaabaixada, como senãoconseguissesuportartantaspessoasolhandoparaela.Eraevidentequenãoqueria estar ali (no estradoou talvez até em Idris),masno instante emque aviu, Julian pareceu relaxar. O olhar apavorado desapareceu de sua expressãoenquantoelacaminhavapara carao ladodeHelen,o rostoaindaabaixadoedistantedamultidão.

—Julian—disseJia,comamesmavozgentil—,vocêfariaumacoisaparanós?VocêpegariaaEspadaMortal?

Clary sentou-semuito ereta.Elahavia seguradoaEspadaMortal; sentiraopeso daquela arma. O frio, semelhante a ganchos em sua pele, arrancava averdadedevocê.AoseguraraEspadaMortal,vocênãoconseguiamaismentir,masaverdade,mesmoaverdadequevocêqueriacontar,eraumaagonia.

—Elesnãopodem—murmurouela.—Eleéapenasumacriança...— Ele é o mais velho das crianças que escaparam do Instituto de Los

Angeles—comentouJacebembaixinho.—Elesnãotêmopção.Julianacenoucomacabeça,osombrosmagrosesticados.—Voupegar.Então Robert Lightwood passou por trás do púlpito e foi até a mesa. Ele

ergueuaEspadaevoltou,atépararna frentede Julian.Ocontrasteentreelesera quase engraçado— o homem grande e de peito largo e o adolescente decabelosselvagensecheios.

JulianesticouumadasmãosepegouaEspada.Quandoosdedosapertaramao redordo cabo, ele estremeceu,umaondadedor rapidamente forçadaparabaixo.Agarotalouraatrásdelecorreuparaafrente,eClarycaptouumrelance

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daexpressãonorostodela: fúriapura,antesdeHelensegurá-laepuxá-laparatrás.

Jiaseajoelhou.Eraumavisãoestranha,ogarotocomaEspada,apoiadodeumladopelaConsulesa,comasvestesseespalhandoaoredordela,e,dooutrolado,peloInquisidor.

—Julian—disseJia,e,emborasuavozfossebaixa,espalhava-seportodaasaladoConselho.—Podenosdizerquemestánoestradoaquicomvocêhoje?

Emsuavozlímpidadegaroto,Julianfalou:—A senhora.O Inquisidor.Minha família:minha irmãHelen, Tiberius e

Livia,DrusillaeTavvy.Octavian.Eminhamelhoramiga,EmmaCarstairs.—EtodoselesestavamcomvocêquandooInstitutofoiatacado?Julianbalançouacabeça.—Helen,não—disseele.—Elaestavaaqui.—Podenoscontaroqueviu,Julian?Semesquecernenhumdetalhe?Julian engoliu em seco. Ele estava pálido. Clary podia imaginar a dor que

sentia,opesodaEspada.— Foi à tarde — começou ele. — Estávamos praticando na sala de

treinamento.Katerinaestavanosensinando.Markobservava.OspaisdeEmmaestavamnumapatrulharotineiranapraia.Vimosumclarãodeluz;penseiquefosseumrelâmpagoou fogosdeartifício.Mas...nãoera.KaterinaeMarknosdeixaramedesceramparaoprimeiroandar.Disserampara carmosnasaladetreinamento.

—Masvocêsnãoficaram—falouJia.—Nósouvíamosossonsdeluta.Enosdividimos:EmmafoipegarDrusillae

Octavian, e eu fui até o gabinete com Livia e Tiberius para chamar a Clave.Tivemos que nos esgueirar pela entrada principal para chegar lá. Quandochegamos,euovi.

—Viu?—EusabiaqueeraumCaçadordeSombras,sóquenão.Eleestavausando

umacapavermelha,cobertacomsímbolos.—Quesímbolos?

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—Eunãoosconhecia,mashaviaalgumacoisaerradacomeles.NãoeramcomoossímbolosdoLivroGray.Aoolhar,elesmederamumtipodeenjoo.Eelepuxouocapuzparatrás;tinhacabelobranco,porissonoiníciopenseiquefosse velho.Depois percebi que era SebastianMorgenstern. Ele seguravaumaespada.

—Vocêpodedescreveraespada?—Prateada, comumpadrãode estrelas pretas na lâmina e no cabo. Ele a

estendeue...—ArespiraçãodeJuliansaiudeumavez,eClaryquaseconseguiusentir,sentirohorrordalembrançalutandocontraacompulsãodecontar,dereviveraquilo.Elaseinclinou,comasmãosempunhos,emalpercebeuqueasunhasestavamseenterrandonaspalmas.—Eleaseguroucontraopescoçodomeu pai — prosseguiu o garoto. — Havia outros com Sebastian. Tambémestavamvestidosdevermelho...

—CaçadoresdeSombras?—perguntouJia.—Eunão sei.—Juliancomeçoua carofegante.—Algunsusavamcapas

pretas. Outros, o uniforme,mas era vermelho.Nunca vi uniforme vermelho.Haviaumamulher,comcabelocastanho,eelaseguravaumcálicequepareciaoCáliceMortal.Elafezmeupaibeberdele.Meupaicaiuegritou.Tambémouvimeuirmãogritando.

—Qualdosseusirmãos?—perguntouRobertLightwood.— Mark — respondeu Julian. — Vi quando começaram a passar pela

entrada, eMark se virou e gritouparanós corrermospara o andarde cima efugirmos. Caí no degrau do alto, e, quando olhei para baixo, estavam seamontoando em cima dele... — Julian fez um som como se estivesseengasgando.Emeupaiestavaparado,eosolhosdeletambémestavampretos,eelecomeçouaandarnadireçãodeMark,assimcomoorestantedeles,comosenemoconhecesse...

Avozde Julian falhou,nomesmo instanteemqueagarota lourase soltoudoapertodeHelen,sejogandoentreJulianeaConsulesa.

—Emma!—chamouHelen,edeuumpassoà frente,mas Jiaesticouuma

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dasmãosparamantê-laparatrás.Emmaestavacomorostopálidoeofegante.Clary pensou que jamais tinha visto tanta raiva contida numa gura tãopequena.

—Deixem-no em paz!— berrou Emma, e abriu bem os braços, como sepudesse proteger Julian atrás de si, embora fosse bemmais baixa.—Vocês oestãotorturando!Deixem-noempaz!

—Estátudobem,Emma—falouJulian,emboraacorestivessecomeçandoavoltaraoseurosto,agoraquenãoointerrogavammais.—Elesprecisamfazerisso.

Elasevirouparaele.— Não. Não precisam. Eu estava lá também. Vi o que aconteceu. Façam

comigo.—Elaesticouasmãos,comose implorandoparacolocaremaEspadaali.—FuieuquemgolpeouSebastiannocoração.Fuieuquemviuquandoelenãomorreu.Vocêsdeveriamestarperguntandoamim!

—Não—começouJulian,edepoisJiafalou,aindacomvozgentil:— Emma, nósvamosperguntaravocê, a seguir.AEspadaédolorosa,mas

nãocausamal...—Parem!— falou a garota.—Apenas parem.—E ela foi até Julian, que

segurava a Espada com força. Era evidente que ele não tinha a intenção deentregá-la.OgarotobalançavaacabeçaparaEmma,mesmoquandoelapôsasmãossobreaele,demodoqueambosestavamsegurandoaEspadaagora.

—Eugolpeei Sebastian— falouEmma, e suavoz sooupelo cômodo.—Eelearrancouaadagadopeito,deuumarisada.E falou: “Éumapenaquevocênão vá viver — falou para ela. — Viver para contar à Clave que Lilith mefortaleceu tremendamente. Talvez a Gloriosa pudesse pôr m à minha vida.Umapenapara osNephilimquenãohajamais favores que possampedir aosCéus, e que nenhuma das insigni cantes armas de guerra que forjam naCidadelaAdamantpossameferiragora.”

Claryestremeceu.ElaouviuSebastiannaspalavrasdeEmmaequasepodiaenxergá-loparadodiantedesi.ConversasirromperamentreaClave,abafandooqueJacefalouaelaemseguida.

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—Vocêtemcertezadequenãoerrouocoraçãodele?—perguntouRobert,assobrancelhasescurasfranzidas.

FoiJulianquemrespondeu:— Emma não erra. — E pareceu ofendido, como se tivessem acabado de

insultá-lo.— Sei onde ca o coração— disse Emma, e se afastou de Julian comum

passo para trás, lançando um olhar de raiva, mais que raiva, e simmágoa, àConsulesaeaoInquisidor.—Masnãoachoquevocêssaibam.

A voz se elevou, e a garota girou e saiu correndodo estrado, praticamentedandoumacotoveladaemRobertaopassar.Desapareceupelamesmaportaporondetinhaentrado,eClaryouviuaprópriarespiraçãoseesvairentreosdentes—seráqueninguémiaatrásdamenina?EraevidentequeJulianqueriair,mas,presoentreaConsulesaeo InquisidorecarregandoopesodaEspadaMortal,nãoconseguia semexer.Helenprocuravaporelacomumaexpressãodepurador,eseusbraçosaninhavamomeninomaisnovo,Tavvy.

E então Clary cou de pé. Amãe esticou amão para ela,mas a garota jáseguia apressada pelo corredor inclinado entre as leiras de assentos. Ocorredor transformou-se emdegraus demadeira;Clary fazia barulho ao subirneles,passandopelaConsulesa,peloInquisidor,porHelen,atéaporta lateral,indoatrásdeEmma.

Ela quase derrubou Aline, que estava parada perto da porta aberta eobservava, de cara feia, o que acontecia na sala do Conselho. A caretadesapareceu quando ela viu Clary, e foi substituída por uma expressão desurpresa.

—Oquevocêestáfazendo?—A garotinha—disseClary, sem fôlego.—Emma. Ela correu aqui para

trás.—Eusei.Tenteibloqueá-la,maselaseafastoudemim.Elasimplesmente...

—AlinesuspiroueolhouparaasaladoConselho,ondeJiahaviarecomeçadoainterrogarJulian.—Temsidotãodifícilparaeles,paraHeleneosoutros.Vocêsabequeamãedelesmorreuháapenasalgunsanos.Tudoquetêmagoraéum

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tioemLondres.—Issosigni caquevãomudarascriançasparaLondres?Sabe,quandotudo

issoacabar—questionouClary.Alinebalançouacabeça.—OfereceramaotioaliderançadoInstitutodeLosAngeles.Achoqueeles

têmesperançasdequeeleassumao trabalhoecrieossobrinhos.Noentanto,temoqueaindanãotenhaconcordado.Provavelmenteestáemchoque.Querodizer, ele perdeu o sobrinho, o irmão... Andrew Blackthorn não está morto,maspoderiamuitobemestar.Decertomodo,épior.—Avozdelaeraamarga.

—Eusei—disseClary.—Seiexatamentecomoé.Alineolhouparaelacommaisatenção.— Suponho que sim— comentou ela.—É só que...Helen.Queria poder

fazermaisporela.Estáseroendodeculpaporestaraquicomigo,enãoemLosAngeles, quando o Instituto foi atacado. E está se esforçando tanto,mas nãopodeseramãedetodasaquelascrianças,eotionãochegouaquiainda,etemEmma,queoAnjoaajude.Elanemmesmotemumresquíciodefamília...

—Eugostariadeconversarcomela.ComEmma.Aline pôs um cacho do cabelo para trás da orelha; o anel dos Blackthorn

reluziunamãodireita.—Elanãovaiconversarcomninguém,anãosercomJulian.—Deixe-metentar—pediuClary.—Porfavor.AlineolhouparaaexpressãodeterminadanorostodeClaryesuspirou.—Sigaocorredor...oprimeiroquartoàesquerda.OcorredorfaziaumacurvadepoisdasaladoConselho.Claryouviaasvozes

dosCaçadoresdeSombrasdiminuindoconformecaminhava.Asparedeseramde pedra lisa, cobertas com tapeçarias que representavam cenas gloriosas dahistóriadosCaçadoresdeSombras.Aprimeiraportaqueapareceuàesquerdaera de madeira, muito simples. Estava parcialmente aberta, mas Clary bateulevementeantesdeabrir,paranãosurpreenderquemestivesseládentro.

O quarto era simples, com revestimento de madeira e uma confusão decadeiras,amontadasàspressas.Claryachoualiparecidocomasaladeesperade

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umhospital. Tinha aquela sensação pesada no ar, de um local impermanenteonde as pessoas enfrentavam a ansiedade e a tristeza em ambientesdesconhecidos.

No canto do quarto, via-se uma cadeira apoiada na parede, e ali estavaEmma.Pareciamenordoquequandovistaàdistância.Vestiaapenasacamisetademangas curtas, e nos braços nus era possível ver asMarcas, o símbolo daClarividência na mão esquerda — então ela era canhota como Jace —, quepousava no cabo de uma espada curta sem bainha, no colo da menina. Deperto, Clary podia ver que o cabelo de Emma era louro-claro, mas estavaembaraçado e sujo o su ciente para parecer mais escuro. Em meio aoemaranhadodecabelo,agarotaolhoucomexpressãodedesafio.

—Oquê?—disseela.—Oquevocêquer?—Nada— retrucouClary, e empurrou aporta, fechando-a atrásde si.—

Apenasconversarcomvocê.Emmasemicerrouosolhos,desconfiada.—VocêquerusaraEspadaMortalemmim?Meinterrogar?—Não. Já usaram a espada emmim, e foi horrível. Lamento por a terem

usadonoseuamigo.Achoquedeveriamterencontradooutromeio.—Achoquedeveriamcon arnele—falouEmma.—Juliannãomente.—

ElaolhouparaClary,comoseadesafiandoadiscordar.—Claroquenão—disseClary,edeuumpassoparadentrodoquarto;ela

sentiacomoseestivessetentandonãoassustaralgumtipodecriaturaselvagem,nafloresta.—Julianéseumelhoramigo,nãoé?

Emmafezquesimcomacabeça.—Meumelhoramigotambéméumgaroto.OnomedeleéSimon.—Eonde ele está?—OsolhosdeEmma semoverampara trás deClary,

comoseelaesperassequeSimonsubitamentesematerializasse.—EleestáemNovaYork—respondeuClary.—Sintomuitasaudadedele.Pareciaqueaquilofaziatodoosentido.—UmavezJulianfoiparaNovaYork—disseela.—Eusentisaudadedele,

então, quando ele voltou, eu o z prometer que não iria a parte alguma sem

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mimnovamente.ClarysorriueseaproximoudeEmma.—Suaespadaébonita—falouela,apontandoparaaarmaapoiadanocolo

dagarota.A expressão de Emma se suavizou um pouco. Ela tocou a lâmina, gravada

comumpadrãodelicadodefolhasesímbolos.Oguarda-mãoeradourado,enalâmina estavam entalhadas as palavras:Eu sou Cortana, do mesmo aço e damesmatêmperaqueJoyeuseeDurendal.

—Eradomeupai.TempassadodegeraçãoemgeraçãonafamíliaCarstairs.É uma espada famosa— acrescentou ela, comorgulho.—Foi feita hámuitotempo.

— Do mesmo aço e da mesma têmpera que Joyeuse e Durendal— disseClary.—Asduassãoespadasfamosas.Vocêsabequemforamosdonosdessasespadas?

—Quem?—Heróis—disseClary,eseajoelhounochãoparapoderolharorostoda

garota.Emmafezumacareta.—Não souumherói—retrucouela.—Não znadapara salvaropaide

JuliannemMark.—Eu sintomuito—disseClary.—Sei como é ver alguémdequemvocê

gostairparaastrevas.Sertransformadoemoutrapessoa.MasEmmaestavabalançandoacabeça.—Marknãofoiparaastrevas.Elesolevaramembora.Claryfranziuatesta.—Levaramembora?—Nãoqueriamque ele bebesse doCálice por causa do sanguede fada—

explicou Emma, e Clary se lembrou de Alec dizendo que havia um ancestralfada na árvore genealógica dos Blackthorn. Como se prevendo a perguntaseguintedeClary,Emmafalou,cansada:

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—ApenasMark eHelen têmsanguedas fadas.Amãedeles era amesma,mas ela os deixou com o Sr. Blackthorn quando eram pequenos. A mãe deJulianedosoutrosnãoéamesma.

— Ah — disse Clary, sem querer pressionar muito e sem desejar que agarota magoada pensasse que ela era apenas mais um adulto enxergando-nacomoumafontederespostasparasuasperguntasenadamais.—EuconheçoHelen.Markseparececomela?

— Sim. Helen e Mark têm orelhas um pouco pontudas e cabelo claro.NenhumdosoutrosBlackthornélouro.Elestêmcabelocastanho,menosTy,eninguémsabeporqueeletemcabelopreto.Livvynãotemeéagêmeadele.—UmpoucodecoreanimaçãotinhavoltadoaorostodeEmma;eraevidentequeelagostavadefalardosBlackthorn.

—EntãoelesnãoqueriamqueMarkbebessedoCálice?—continuouClary.Intimamente, elaestava surpresaporSebastianse importar,deum jeitooudeoutro.ElenuncativeraaobsessãodeValentimcomosmembrosdoSubmundo,embora não aparentasse gostar deles.— Talvez não funcione se você tiver osanguedeumintegrantedoSubmundo.

—Talvez—disseEmma.ClaryesticouamãoeacolocousobreamãodeEmma.Elatemiaaresposta,

masprecisavaperguntar:—ElenãoTransformouseuspais,nãoé?—Não...não—falouEmma,eavozestavatremendo.—Elesestãomortos.

Não estavam no Instituto; eles investigavam uma informação sobre atividadedemoníaca.Oscorposforamlevadosparaapraiadepoisdoataque.Eupoderiateridocomeles,masqueria carnoInstituto.QueriatreinarcomJules.Seeutivesseidocomeles...

—Sevocêtivesseido,tambémestariamorta—observouClary.— Como você sabe? — indagou Emma, mas havia algo em seus olhos,

algumacoisaquequeriaacreditarnaquilo.—Posso ver que você é umaboaCaçadora de Sombras— falouClary.—

EstouvendosuasMarcas.Evejosuascicatrizes.Eomodocomovocêseguraa

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espada. Se é assim tão boa, só posso imaginar que eles realmente eram bonstambém.Ealgocapazdematarosdoisnãopoderiaserdetidoporvocê.—Elatocoua espadade leve e concluiu:—Heróisnemsempre sãoosquevencem.Algumas vezes, são os que perdem. Mas eles continuam lutando, continuamvoltando.Nãodesistem.Éissoquefazdelesheróis.

Emma inspirou de forma entrecortada, no mesmo instante em que umabatidasoouàporta.Claryvirouumpoucoquandoestaabriu,deixandoaluzdocorredorentrar,etambémJace.Elesustentouoolhardelaesorriu,seapoiandonobatente.Ocabeloeralouro-dourado-escuro,eosolhostinhamumtommaisclaro.ÀsvezesClaryacreditava-secapazdeverofogodentrodele,iluminandoosolhos,apeleeasveias,correndopoucoabaixodasuperfície.

—Clary—chamouele.Ela pensou ter ouvido um gritinho atrás de si. Emma estava agarrando a

espadaeolhavadeClaryparaJacecomolhosmuitoarregalados.—OConselhoterminou—explicouele.—EnãoachoqueJiatenha cado

muitosatisfeitaporvocêtercorridoparacá.—Entãoestouencrencada—falouClary.—Como sempre— disse Jace,mas o sorriso dele tirou qualquer irritação

daquilo.—Estamostodosindoembora.Estáprontaparair?Elabalançouacabeça.— Vou encontrar vocês na sua casa. Aí vão poder me contar o que

aconteceunoConselho.Elehesitou.—PeçaaAlineouHelenparairemcomvocê—aconselhou, nalmente.—

A casa daConsulesa ca no m da rua, depois da casa do Inquisidor.— Elefechouozíperdajaquetaesaiudoquartosilenciosamente,fechandoaporta.

Claryvirou-senovamenteparaEmma,queaindaafitava.—VocêconheceJaceLightwood?—perguntouagarota.—Eu...Oquê?—Ele é famoso— falouEmma, com espanto evidente.—Ele é omelhor

CaçadordeSombras.Omelhor.

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—Eleémeuamigo—falouClary,epercebeuqueaconversahaviatomadoumrumoinesperado.

Emmadeuumaolhadelacomarsuperior.—Eleéseunamorado.—Comovocê...?—Euviomodocomoeleolhouparavocê—disseEmma—,e,dequalquer

forma,todomundosabequeJaceLightwoodtemumanamorada,quesechamaClaryFairchild.Porquenãomedisseseunome?

—Achoquenãopensei que você fosse conhecê-lo— respondeuClary, seafastando.

—Nãosouidiota—retrucouEmma,comumarde irritaçãoquefezClaryseaprumartodarapidamenteantesquepudesserir.

—Não.Nãoénão.Vocêérealmenteesperta—disseClary.—E cofelizpor saber quem sou, porque quero que saiba que pode vir falar comigo aqualquerhora.NãoapenassobreoqueaconteceunoInstituto...sobrequalquercoisa que você queira. E pode falar com Jace também. Você precisa deorientaçãoparasaberondenosencontrar?

Emmabalançouacabeça.—Não—falou,comavozbaixanovamente.—Euseionde caacasado

Inquisidor.—Certo.—Clary cruzou asmãos, sobretudopara evitar abraçar a garota.

Ela não achava que Emma fosse gostar daquilo. Clary virou-se em direção àporta.

—SevocêéanamoradadeJaceLightwood,deveriaterumaespadamelhor— disse Emma subitamente, e Clary baixou os olhos para a arma que haviapegadonaquelamanhã;umaespadaantigaquetinhaembaladojuntamenteaospertencesdeNovaYork.

Elatocouocabo.—Estanãoéboa?Emmabalançouacabeça.

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—Dejeitonenhum.AoutrapareceutãosériaqueClarysorriu.—Obrigadapeladica.

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4MaisEscurosqueOuro

Quando Clary bateu à porta da casa do Inquisidor, ela foi aberta por RobertLightwood.

Por um instante ela congelou, sem saber o que dizer. Nunca haviaconversado com o pai adotivo de Jace, jamais o conhecera muito bem. Elesempre fora uma sombra em segundo plano, normalmente atrás de Maryse,com amão na cadeira. Era um sujeito grande; cabelos escuros e barba bem-aparada. Ela não conseguia imaginar aquele homem sendo amigo de seu pai,emborasoubessequeelepertenceraaoCiclodeValentim.Haviarugasdemaisnorostodele,eoqueixoerarijodemaisparaelaconseguirimaginá-lojovem.

Quando ele a tou, Clary notou que seus olhos tinham um tom azul-marinhotãoescuroqueelasemprepensaraserempretos.Aexpressãodelenãomudou;elasentiaareprovaçãoirradiandodele.EsuspeitavaqueJianãofosseaúnicapessoaaborrecidaporelaterfugidodareuniãodoConselhoeidoatrásdeEmma.

— Se você está procurando pormeus lhos, eles estão lá em cima.—Foitudoqueohomemdisse.—Noúltimoandar.

Ela passou por ele e foi até a gigantesca sala principal. A casa, a qual forao cialmente designada para o Inquisidor e sua família, era grandiosa em suasdimensões, com pés-direitos altos e móveis maciços de aparência cara. Oespaçoeragrandeosu cientepara terarcadasemseu interior,umaescadariaimensaemagní ca,alémdeumlustrequependiadotetoebrilhavacomumaluzencantada.ClaryseperguntouondeMaryseestavaeseelagostavadacasa.

—Obrigada—disseClary.

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RobertLightwooddeudeombrosedesapareceunassombrassemdizermaisnenhumapalavra.Clarysubiuosdegrausdedoisemdois,passandoporváriospatamaresatéchegaraoúltimoandar,que cavaaumlancedaescadaíngremedo sótão que levava a um corredor. Havia uma porta entreaberta ao nal docorredor;Claryouviavozesdooutrolado.

Comumabatidaleve,elaentrou.Asparedesdosótãoerambrancasehaviaumimensoguarda-roupanocanto,comambasasportasabertas:asroupasdeAlec,práticaseumpoucogastas,estavampenduradasdeumlado,easdeJace,pretas e cinzas, como novas, do outro. Os uniformes de ambos estavamcuidadosamentedobradosnapartedebaixo.

Clary esboçou um sorriso; mas não tinhamuita certeza domotivo. Haviaalgodeadorávelna ideiadeAleceJacedividindoumquarto.Elaseperguntouseummantinhaooutroacordadoduranteasconversasànoite,domesmojeitocomoelaeSimonsemprefaziam.

AleceIsabelleestavamsentadosnopeitorildajanela.Atrásdeles,davaparaver as cores do pôr do sol cintilando na água do canal abaixo. Jace estavaesparramado sobre uma das camas de solteiro, as botas plantadas de mododesafiadornacolchadeveludo.

— Acho que eles querem dizer que não podem simplesmente caresperando que Sebastian ataque outros Institutos— falava Alec.—Que issoseriaseesconder.CaçadoresdeSombrasnãoseescondem.

Jace esfregou a bochecha no ombro; parecia cansado; o cabelo claro todobagunçado.

—Parecequeagenteestáseescondendo—falou.—Sebastianestáláfora;nós,aqui.Combarreirasduplas.TodososInstitutosforamevacuados.Ninguémparaprotegeromundodosdemônios.Quemvigiaosvigilantes?

Alecsuspiroueesfregouorosto.—Comsorte,nãovaidemorarmuito.—Difícil imaginar o que aconteceria—disse Isabelle.—Ummundo sem

Caçadores de Sombras. Demônios por toda parte, membros do Submundoatacandounsaosoutros.

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—SeeufosseSebastian...—começouJace.—Masvocênãoé.VocênãoéSebastian—falouClary.Todos olharam para ela. Alec e Jace não eram nem um pouco parecidos,

pensouClary,mas de vez em quando havia uma semelhança nomodo comoeles olhavam ou nos gestos que a fazia se lembrar que tinham sido criadosjuntos. Ambos pareciam curiosos e um pouco preocupados. Isabelle pareciamaiscansadaeirritada.

—Vocêestábem?—perguntouJace,comosefosseumcumprimento,elheofereceuumsorrisotorto.—ComoestáEmma?

—Arrasada— respondeuClary.—Oque aconteceu depois que eu saí dareunião?

—Ointerrogatóriopraticamenteacabou—comentouJace.—ÉóbvioqueSebastian está por trás dos ataques, e ele tem uma força considerável deguerreirosCrepuscularesqueoapoiam.Ninguémsabeexatamentequantossão,masdevemossuporquetodososdesaparecidosforamTransformados.

—Aindaassim,temosquantidadesmuitomaiores—observouAlec.—EletemsuasforçasoriginaiseosseisConclavesqueTransformou;nóstemostodososoutros.

HaviaalgumacoisanosolhosdeJacequeosdeixoumaisescurosqueouro.—Sebastiansabedisso—murmurouele.—Eleconhecerásuasforças,atéo

últimoguerreiro.Evaisaberexatamenteoqueécapazounãoderivalizar.—NóstemosoSubmundodonosso lado—completouAlec.—Épor isso

que haverá a reunião amanhã. Não é? Conversar com os representantes,fortalecer nossas alianças. Agora que sabemos o que Sebastian está fazendo,podemos criar uma estratégia, atingi-lo com as Crianças Noturnas, com asCortes,osfeiticeiros...

Os olhos de Clary encontraram os de Jace em comunicação silenciosa.Agoraque sabemosoqueSebastianestá fazendo, ele faráoutra coisa.Algumacoisaqueaindanãoimaginamos.

—EentãotodosfalaramsobreJace—disseIsabelle.—Aí,vocêsabe,foiodesempre.

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—Sobre Jace?—Clary se apoiou contra o pé da cama de Jace.—O quefalaramsobreele?

— Houve muita discussão para concluir se Sebastian estava basicamenteinvulnerávelagora, sehámeiosde feri-loedematá-lo.AGloriosapoderia terfeito isso por causa do fogo celestial, mas atualmente a única fonte de fogocelestialé...

— Jace — concluiu Clary, com expressão sombria. — Mas os Irmãos doSilêncio tentaram de tudo para separar Jace do fogo celestial, e eles nãoconseguem fazer isso. Está impregnado naalma dele. Então qual é o planodeles,baternacabeçadeSebastiancomJaceatéeledesmaiar?

—IrmãoZachariahdissepraticamenteamesmacoisa—comentouJace.—Talvezcommenosironia.

—En m,elesdestrincharamosmeiosdecapturarSebastiansemmatá-lo...Se podem destruir todos os Crepusculares, se ele pode car preso em algumlugaroudealgummodo,issonãoimportatantoseelenãopudersermorto—completouAlec.

—Minha sugestão é que o coloquemnum caixão de adamas e joguem nomar—disseIsabelle.

—Masentão,quandoterminaramdefalarsobremim,oquesemdúvidafoia melhor parte — continuou Jace —, voltaram rapidamente a discutir sobremeiosdecurarosCrepusculares.ElesestãopagandoumafortunaaoLabirintoEspiral para tentar descobrir o feitiço que Sebastian usou para criar o CáliceInfernalerealizaroritual.

—ElesprecisamparardesepreocuparemcurarosCrepuscularesecomeçarapensaremcomoderrotá-los—disseIsabelle,comvozfirme.

—MuitosdelesconhecemaspessoasqueforamTransformadas,Isabelle—rebateuAlec.—Semdúvida,queremqueelasvoltem.

— Bem, eu queromeu irmão caçula de volta— disse Isabelle, elevando avoz.—ElesnãoentendemoqueSebastianfez?Eleosmatou.Elematouoquehaviadehumanoneles,edeixoudemôniosandandoporaínapeledaspessoas

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queconhecíamos;étudo...—Falebaixo—pediuAlec,comotom-determinado-de-irmão-mais-velho.

—Vocêsabequemamãeepapaiestãoemcasa,nãoé?Elesvãosubir.— Ah, eles estão aqui — disse Isabelle. — O mais longe possível um do

outro,dentrodoquarto,masaindaestãoaqui.—Nãoéproblemanossoondedormem,Isabelle.—Elessãonossospais.—Mas têmasprópriasvidas—censurouAlec.—E temosquerespeitare

car fora disso. — Sua expressão cou sombria. — Muita gente se separaquandoumfilhomorre.

Isabellesoltouumpequenosuspiro.— Izzy?—Alec pareceu perceber que fora longe demais.As referências a

Max pareciam deixar Isabelle mais arrasada que quaisquer dos outrosLightwood,incluindoMaryse.

Isabelledeumeia-voltaesaiucorrendodocômodo,batendoaportaatrásdesi.

Alecpassouosdedospelocabelo,deixando-osarrepiadosfeitopenugemdepato.

—Mas que droga— xingou ele, depois corou. Alec raramente xingava, ecostumava falar baixinho quando o fazia. O garoto lançou um olhar dedesculpasaJaceefoiatrásdairmã.

Jace suspirou, girou as pernas compridas para sair da cama e cou de pé.Entãoseespreguiçoucomoumgato,estalandoosombros.

—Achoqueessaéadeixaparaeulevarvocêparacasa.—Eupossoirsozinha...Ele balançou a cabeça e tateou para pegar a jaqueta na cabeceira da cama.

Havia algo de impaciente em seusmovimentos, alguma coisa observando e àespreitaquefaziaapeledeClarypinicar.

—Euquerosairdaqui,dequalquerforma.Ande.Vamosembora.

— Já faz umahora. Pelomenos, umahora. Eu juro—disseMaia. Ela estava

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deitada no sofá do apartamento de Jordan e Simon, com os pés descalços nocolodeJordan.

— Não deveria ter pedido comida tailandesa — argumentou Simon,indiferente.EleestavasentadonochãoemexianocontroledoXbox.Elenãofuncionava havia dias. Tinha uma tora arti cial Dura ame na lareira, queestava mal conservada, como todo o restante no apartamento, e que quasesempreenfumaçavaocômodoquandoeraacesa. Jordan sempre reclamavadofrio,dasrachadurasnasjanelaseparedes,edodesinteressedoproprietárioemconsertaralgumacoisa.—Elesnuncachegamnahora.

Jordansorriucombomhumor.—Evocêseimporta?Vocênemcome.—Agoraeupossobeber—observouSimon.Eraverdade.Elehaviatreinado

o estômago para aceitar a maioria dos líquidos: leite, café, chá, emboraalimentos sólidos ainda o zessem ter ânsia de vômito. Ele duvidava que abebida servisse para nutri-lo; apenas o sangue parecia capaz de fazer isso, noentantoelesesentiamaishumanoquandoconsumiaempúblicoalgumacoisaquenão fazia todomundogritar.Comumsuspiro, eledeixouocontrole cair.—Achoqueestacoisaestáquebrada.Devez.Oqueéótimo,porquenãotenhodinheiroparasubstituir.

Jordan olhou para ele com ar curioso. Simon havia trazido todas aseconomiasdecasaquandosemudara,masnãoforamuitacoisa.Felizmente,eletinha poucas despesas.O apartamento era emprestado da Praetor Lupus, quetambémforneciasangueparaSimon.

—Eutenhodinheiro—disseJordan.—Vamosficarbem.—Éoseudinheiro,nãoomeu.Vocênãovai cartomandocontademim

parasempre—ponderouSimon,e touaschamasazuisnalareira.—Edepoisoquê?Voumeinscreverna faculdade logose... tudonãoacontecer.Escolademúsica. Eupoderia estudar, arrumarum emprego.Ninguémvaime empregaragora.Pareçoter16anos;esemprevouparecer.

—Hum—murmurouMaia.—Achoque vampirosnão têm empregosdeverdade, têm?Quero dizer, alguns lobisomens têm...Morcego éDJ, e Luke é

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donodaquela livraria.Masvampirosvivememclãs.Nãohá,de fato,vampiroscientistas.

—Nemvampirosmúsicos—observouSimon.—Vamosencararos fatos.Minhacarreiraagoraéadevampiroprofissional.

—Na verdade, estoumeio surpresa pelo fato de os vampiros não estaremdestruindo as ruas nem comendo os turistas com Maureen como líder —comentouMaia.—Elaébemsanguinária.

Simonfezumacareta.— Imagino que alguns vampiros do clã estejam tentando controlá-la.

ProvavelmenteRaphael.Lily...Elaéumadasvampirasmaisinteligentesdoclã.Sabe tudo. Ela e Raphael sempre foram muito grudados. Mas não tenhoexatamente amigos vampiros. Considerando que sou um alvo, algumas vezesficosurpresoporteralgumamigo.

Ele ouviu a amargura na própria voz e cou observando o cômodo, osretratos que Jordanpregara na parede: retratos dele comos amigos, na praia,comMaia. Simonpensara empendurar aspróprias fotos.Emboranão tivessetrazidonenhumadecasa,Clarytinhaalgumas.Elepoderiapegaremprestadas,deixar o apartamentomais com a cara dele. No entanto, embora gostasse demorar com Jordan e se sentisse à vontade ali, não era seu lar. Não pareciapermanente,comoseelepudesseterumavidaali.

—Eunemmesmotenhoumacama—faloueleemvozalta.Maiavirouacabeçanadireçãodele.—Simon,qualéoproblema?ÉporqueIsabellefoiembora?Simondeudeombros.—Nãosei.Querodizer,sim,eusintofaltadeIzzy,mas...Clarydizquenós

doisprecisamosterumaDR.— Ai, discutir a relação — falou Maia ao perceber o olhar confuso de

Jordan.—Você sabe, para decidir se vão assumir que são namorados. E, porfalarnoassunto,vocêdeveriafazerisso.

— Por que todo mundo conhece essa sigla, menos eu? — perguntou-seSimonemvozalta.—SeráqueIsabellequerserminhanamorada?

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—Nãoseidizer—falouMaia.—Éticafeminina.Pergunteaela.—IzzyestáemIdris.—Perguntequando ela voltar.—Simon cou calado, eMaia acrescentou,

maisgentil:—Elavaivoltar,eClarytambém.Ésóumareunião.—Nãosei.OsInstitutosnãoestãoseguros.—Nemvocêsestão—observouJordan.—Porissoprecisamdemim.Maia olhou para Jordan. Havia alguma coisa estranha no olhar, algo que

Simon não conseguia identi car. Há algum tempo estava rolando um climãoentreMaiaeJordan;Maiameiodistantedele,osolhosquestionadoresquandoela olhava para o namorado. Simon esperava que Jordan fosse contar algumacoisa para ele, mas Jordan não o fez. Simon se perguntava se Jordan estavapercebendo o distanciamento de Maia — era óbvio — ou se ele se negavateimosamenteareconhecer.

—VocêaindaseriaumDiurno?—perguntouMaia,evoltouaatençãoparaSimon.—Sepudessemudar?

—Nãosei.—Simonhaviaseperguntadoamesmacoisa,masdaíafastaraaideia;nãofaziasentidosepreocuparcomissosenãodavaparamudar.SerumDiurno signi cava ter ouro nas veias. Outros vampiros queriam isso, pois sebebessem seu sangue, poderiam caminhar sob o sol. Mas também haveriamuitos outros desejando destruir você, pois a maior parte dos vampirosacreditava que os Diurnos eram uma abominação a ser eliminada. Simon selembrou das palavras de Raphael para ele no telhado de um hotel deManhattan.E é melhor rezar, Diurno, para não perder a Marca antes daguerra.Poisseissoacontecer,haveráuma ladeinimigosesperandopelachancedematá-lo.Eeusereioprimeiro.

Eaindaassim.—Eusentiriafaltadosol—falouele.—Issomemantémhumano,acho.AluzdalareirailuminouosolhosdeJordanquandoelefitouSimon.—Serhumanoésuperestimado—disse,comumsorriso.MaiagirouetirouospésdaspernasdeJordanabruptamente.Eleolhoupara

ela,preocupado,noexatoinstanteemqueacampainhatocou.

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Simonselevantounuminstante.—Éaentregadorestaurante—anunciouele.—Voupegar.Alémdisso—

emendou,por cimadoombro, enquanto caminhavapelo corredor até aportade entrada —, ninguém tentou me matar em duas semanas. Talvez tenhamficadoentediadosedesistido.

Ele ouviu omurmúrio de vozes atrás de si,mas não prestou atenção; elesestavamfalandoumcomooutro.Girouamaçanetaeabriuaportacomforça,jáfuçandonobolsoembuscadacarteira.

E sentiu uma pancada contra o peito. Simon olhou para baixo e viu opingentedeIsabellebrilhandoemtomescarlate,entãosejogouparatrás,parasedesviardamãoqueselançavaparaagarrá-lo.Eledeuumberro—umvultousandouniformevermelhoseagigantavanaentrada,umCaçadordeSombrascommanchas feias de símbolos em ambas as bochechas, umnariz aquilino eumatestalargaepálida.ElerosnouparaSimoneavançou.

— Simon,abaixe-se!— gritou Jordan, e Simon se jogou no chão e roloupara o lado assim que a seta da besta explodiu no corredor. O Caçador deSombrasmalignogirouparaoladocomvelocidadepraticamenteinacreditável;a seta ncounaporta.Simonouviu Jordanxingar, frustrado, e entãoMaia, jánaformadelobo,saltounoCrepuscular.

Ouviu-se um uivo satisfatório de dor quando os dentes dela cravaram nopescoço do Caçador de Sombras maligno. O sangue jorrou e preencheu oambiente com uma névoa vermelha salgada; Simon a inalou, provou o gostotravosoeamargodosanguedemoníacoquandosepôsdepé.Eledeuumpassoà frente bem quando a criatura crepuscular agarrou Maia e a jogou pelocorredor,umabolacomgarrasedentes,queuivavaeapanhava.

Jordan gritou. Simon emitia um ruído baixo na garganta, uma espécie desibilodevampiro,esentiaaspresasseliberando.OCrepusculardeuumpassoàfrente, vertendo sangue, porém ainda equilibrado. Simon sentiu uma pontadademedonofundodoestômago.EleviracomoossoldadosdeSebastianlutaramemBurren e sabiaque erammais fortes, velozes edifíceisde sematarqueos

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CaçadoresdeSombras.Elenãotinhapensadodefatoemcomoeramaisdifícilmatá-losemrelaçãoaosvampiros.

—Saiadocaminho!—JordanagarrouSimonpelosombrosepraticamenteo jogou para trás deMaia, que se levantara com algum esforço.Havia sanguenospelosdopescoço,eosolhosde loboestavamdilatadosporcausadaraiva.—Saiadaqui,Simon.Deixequeagentelidecomisso.Váembora!

Simonnãosemoveu.—Eunãovou...Eleestáaquiporminhacausa...— Eu sei disso! — gritou Jordan. — Sou seu guardião da Praetor Lupus.

Agoramedeixefazermeutrabalho!Jordangirounolugareergueuabestanovamente.Destavez,asetaafundou

noombrodoCaçadorde Sombrasmaligno, que cambaleoupara trás e soltouuma sequência de palavrões em um idioma que Simon não compreendia.Alemão,pensouele.OInstitutodeBerlimforaatingido...

MaiapulouporcimadeSimon,eelae JordanseaproximaramdoCaçadordeSombrasmaligno.JordanvirouorostoparatrásumavezparaolharSimon,eosolhoscordeavelãestavamcruéiseselvagens.Simonacenoucomacabeçaecorreudevoltaàsaladeestar.Eleabriuviolentamenteajanela—quecedeucomum guincho cruel demadeira dilatada e uma explosão de lascas de tintavelha—esubiuatéasaídadeincêndio,ondeosacônitosdeJordan,ressecadospeloardoinverno,lotavamoparapeitodemetal.

Cadapartedelegritavaqueelenãodeveriairembora,mashaviaprometidoaIsabelle, prometera que deixaria Jordan fazer o trabalho de guarda-costas,prometeraquenãoseriaumalvo.ElesegurouopingentedeIzzy,quentesobosdedos,comosetivesseestadonopescoçodelarecentemente,edesceucorrendoosdegraus demetal. Eles tiniam e escorregavampor causa daneve; ele quasecaíra algumas vezes antes de alcançar o último degrau e pular para a calçadasombriaabaixo.

Imediatamente,foicercadoporvampiros.Simontevetempodereconhecerapenas dois deles como parte do clã doHotel Dumort— Lily, delicada, comcabelos escuros, e o louro Zeke, ambos sorrindo como demônios— antes de

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sentiralgumacoisalheacertandoacabeça.Umpedaçodepanofoipuxadocomforçaaoredordopescoço,eeleengasgou,nãoporqueprecisassedear,masporcausadadorporteropescoçoapertado.

—Maureenmandalembranças—disse-lheZekeaoouvido.Simon abriu a boca para gritar, mas a escuridão o dominou antes que

pudesseemitiralgumsom.

—Eunãopercebiquevocêera tão famoso—observouClary, enquantoelaeJace caminhavampela calçada estreita ao longo doCanalOldway.A noite seaproximava,ocairdaescuridãotinhaacabadodeacontecer,easruasestavamcheias de pessoas correndo de um lado para outro, embrulhadas em casacosgrossos,comosrostosfriosefechados.

As estrelas começavam a sair, delicados pontinhos de luz pelo céu a leste.Elas iluminaram os olhos de Jace quando ele olhou para Clary por cima doombro,comexpressãodecuriosidade.

—TodomundoconheceofilhodeValentim.—Eu sei,mas...quandoEmma teviu, agiucomosevocê fosseapaixonite

famosadela.ComosevocêestivessenacapadeumarevisasobreosCaçadoresdeSombrastodomês.

— Sabe, quando eles me pediram para posar, disseram que seria de bomgosto...

— Desde que você estivesse segurando a lâmina sera m em posiçãoestratégica, não vejo problema — completou Clary, e Jace riu, um somentrecortado que indicava que ela o surpreendera fazendo graça. Era a risadafavoritadela.Jacesempreeratãocontrolado;aindaeraumprazerserumadaspoucaspessoascapazesdeadentrarnaarmaduracuidadosamenteconstruídaesurpreendê-lo.

—Vocêgostoudela,nãofoi?—perguntouJace.Confusa,Claryfalou:—Gostoudequem?Eles estavam passando por uma praça da qual ela se recordava, tinha

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calçamentodepedra,comumpoçonocentro,agoracobertocomumatampacircularfeitadepedra,provavelmenteparaevitarqueaáguacongelasse.

—Daquelagarota.Emma.—Havia algonela—reconheceuClary.—Nomodocomoelaprotegeuo

irmãodeHelen,talvez.Julian.Elafariaqualquercoisaporele.EmmarealmenteamaosBlackthorneperdeutodososoutros.

—Vocêseidentificoucomela.—Nãoachoque seja isso—concluiuClary.—Achoque talvez ela tenha

feitoeumelembrardevocê.—Porquesoubaixinho,louroeficobemdemarias-chiquinhas?Clary o empurrou como ombro. Eles tinham chegado ao alto de uma rua

ladeada de lojas. Estavam fechadas agora, embora a pedra de luz enfeitiçadabrilhasse entre as janelas gradeadas. Clary tinha a sensação de estar em umsonhooucontodefadas,umasensaçãoqueAlicantenuncadeixaradelhedar:océuvastoacima,osedifíciosantigosentalhadoscomcenasdelendase,acimade tudo, as torres demoníacas transparentes, que conferiam a Alicante suadenominaçãovulgar:aCidadedeVidro.

—Porque—emendouela, enquantopassavamporuma loja com fatiasdepão empilhadas na vitrine— ela perdeu a família consanguínea.Mas tem osBlackthorn. Ela não tem mais ninguém, nem tias nem tios, ninguém pararecebê-la,masosBlackthornvãofazerisso.Entãoelateráqueaprenderoquevocê aprendeu: que família não é sangue. São as pessoas que te amam. Aspessoasqueteprotegem.ComoosLightwood,paravocê.

Jace tinha parado de caminhar. Clary deu meia-volta para encará-lo. Amultidãodepedestrestinhasedivididoaoredordeles.Jaceestavaparadodiantedaentradaparaumbecoestreitopertodeumaloja.Oventoquesopravanaruabagunçavaseucabelolouroeesvoaçavaajaquetaaberta;Claryviaapulsaçãonagargantadele.

—Venhacá—pediuJace,eavozestavarouca.Clarydeuumpasso até ele, comumpoucode cautela. Seráque tinhadito

algumacoisaqueoaborrecera?Noentanto,Jaceraramentesezangavacomela,

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e, quando isso acontecia, ele falava sem rodeios. Jace esticou amão, pegou adela comdelicadeza e a puxou atrás de si enquanto contornava o prédio e seen ava nas sombras de uma passagem estreita que se abria para um canal aolonge.

Não havia mais ninguém na passagem com eles, e a entrada estreitabloqueavaavistadarua.OrostodeJaceeratodoangulosonaescuridão:maçãsdorostoacentuadas,bocamaciaeosolhosdouradosdeumleão.

—Euteamo—disseele.—Nãodigoistocomfrequênciasu ciente.Euteamo.

Elaseencostounaparede.Apedraerafria.Emoutrascircunstâncias, teriasido desconfortável,mas, nomomento, Clary não se importava. Ela o puxoupara si com cuidado, até os corpos estarem alinhados, embora sem se tocar,mastãopróximosqueelapodiasentirocalorirradiandodele.Claroqueelenãoprecisavafecharajaquetacomozíper,nãocomofogoardendoemsuasveias.O cheiro de pimenta-do-reino, sabonete e ar frio o envolvia enquanto Claryencostavaorostonoombrodeleerespiravafundo.

—Clary—continuouele.Avozummurmúrioeumalerta.Elapercebiaaaspereza da saudade na voz dele, saudade do conforto físico resultante daintimidade,dequalquertoque.Comcuidado,eleesticouasmãosaoredordelaeapoiou as palmas na parede de pedra, prendendo-a no espaço criado pelosbraços. Clary sentiu a respiração em seus cabelos, o roçar delicado do corpocontra o dela. Cada centímetro parecia supersensível; onde quer que ele atocasse, era como se minúsculas agulhas de dor e prazer estivessem sendoarrastadasporsuapele.

— Por favor, não diga que você me puxou para um beco, que está metocando enão planeja me beijar porque não acho que eu vá ser capaz desuportarisso—comentouelanumtombaixo.

Ele fechou os olhos. Dava para notar os cílios escuros pairando sobre asbochechas,eClaryselembroudasensaçãodedelinearoformatodorostodelecomosdedos,dopesodocorpodelesobreodela,domodocomoapeledeJaceficavacontraadela.

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—Nãovoutebeijar—respondeuele,eClarysentiuaasperezaobscurasobodeslizarmacio costumeiro da voz dele.Doçura se sobrepondo a al netadas.Eles estavam próximos o su ciente, a ponto de Jace inspirar e Clary sentir opeitodeleseexpandindo.—Nósnãopodemos.

Elapôsamãonopeitodele;ocoraçãobatendocomoasasengaioladas.—Leve-mepara casa, então—murmurou ela, e se inclinoupara roçar os

lábiosnocantinhodabocadeJace.Oupelomenoselaqueriaterroçado,comoumbaterdeasasdeborboletadelábiosnoslábios,noentantoeleseinclinoueseumovimentomudouoângulorapidamente;elaacabouportocá-locommaisforçaqueopretendido,oslábiosdeslizandoparaocentrodosdele.Clarysentiuquandoelesoltouoar,surpreso,deencontroasuaboca,eentãoelesestavamsebeijando,sebeijandodeverdade,demodomaravilhosamentelento,quenteeintenso.

Leve-meparacasa .Masalieraacasadela,osbraçosdeJace,oventofriodeAlicantenasroupas,osdedosprocurandoanucadele,olocalondeocabeloseenrolavasuavementecontraapele.Asmãosdeleaindaestavamespalmadasnapedra atrás deClary, porém ele estavamovimentando o corpo contra o dela,pressionando-a delicadamente contra a parede; dava para ouvir o murmúrioroucodarespiraçãodele.Jacenãoatocariacomasmãos,maselapodiatocá-lo,entãoClarypermitiuquesuasmãoscorressem livrementesobreovolumedosbraços,pelopeitodele,traçandooscontornosdosmúsculos,pressionandoparaagarraraslateraisdocorpodeJaceatéacamisetadeleenrugarsobseusdedos.Aspontasdosdedostocaramapelenua,entãoeladeslizouasmãosporbaixodacamiseta;eelanãootocavaassimhátantotempoquequaseseesqueceradecomo a pele era macia onde não havia cicatrizes, de como os músculos nascostassaltavamao toque. JacesuspiroudentrodabocadeClary,e tinhagostodechá,chocolateesal.

Ela assumira o controle do beijo. E agora o sentia tenso enquanto eleretomava o controle e lhe mordia o lábio inferior até Clary estremecer,mordiscando-lhe o canto da boca, beijando ao longo do contorno do queixo

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para sugar o local da pulsação no pescoço e engolir os batimentos cardíacosdisparados.Apeledeleardiasobasmãosdela,queimava...

Ele se afastou, girandopara trásquase como se estivessebêbadoebatendona parede oposta. Os olhos estavam arregalados, e, por um momentovertiginoso, Clary acreditou ter visto chamas neles, como fogos gêmeos naescuridão. Então a luz os abandonou, e ele cou ofegante como se tivessecorrido,pressionandoaspalmasdasmãoscontraoprópriorosto.

—Jace—disseClary.Elebaixouasmãos.—Olheaparedeatrásdevocê—falouemvozbaixa.Ela se virou — e encarou com surpresa. Atrás de si, onde Jace tinha se

apoiado,haviaduasmarcaschamuscadasnapedra.Noformatoexatodasmãosdele.

ARainhaSeelieestavadeitadanacamaeergueuoolharparaotetodepedradoquarto. Ele se contorcia com treliças suspensas de rosas, espinhos aindaintactos, cada or perfeita num tom vermelho-sangue. Todas as noites elasmurchavamemorriam,etodasasmanhãseramsubstituídas,tãofrescasquantonodiaanterior.

As fadas dormiam pouco, raramente sonhavam, mas a Rainha gostava dacama confortável. Era um imenso divã de pedra, comum colchão de penas ecobertacomgrossascamadasdeveludoecetimescorregadio.

— A senhora já se machucou num dos espinhos, Vossa Majestade? —perguntouogarotoaoladodacamadela.

Ela se virou para Jonathan Morgenstern, esparramado entre as cobertas.EmboraeletivessepedidoparaserchamadodeSebastian,oqueelarespeitava...a nal nenhuma fada permitiria que outra pessoa a chamasse pelo nomeverdadeiro.Eleestavadeitadodebruços,acabeçaapoiadanosbraçoscruzados,e,mesmosobapoucaluz,erapossívelverasmarcasantigasdechicoteaolongodascostas.

ARainha sempre fora fascinadapelosCaçadoresde Sombras—eles eram

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meio anjos, assim como o povo fada; sem dúvida devia haver um parentescoentre eles —, mas ela nunca havia imaginado que encontraria um cujapersonalidade pudesse ser tolerada por mais de cinco minutos, até Sebastianaparecer. Todos eram tão terrivelmente hipócritas. Menos Sebastian. Ele eramuitoincomumparaumhumanoe,sobretudo,paraumCaçadordeSombras.

—Não tão frequentementequantovocê se corta com seus gracejos, pensoeu,meu querido— respondeu ela.— Sabe que não gosto de ser chamada de“VossaMajestade”,masapenasde“Lady”ou“Milady”,sepreferir.

—Vocênãopareceseimportarquandomere roavocêcomominha“bela”ou“minhabeladama”.—Otomnãoeradepenitência.

—Hum—disseela,passandoosdedos nospelamassadecabeloprateado.Eletinhaumacoradorávelparaummortal:cabelocomoumalâmina,olhosdeônix.Elaserecordoudairmãdele,tãodiferenteenemdepertotãoelegante.—Osonofoireparador?Vocêestácansado?

Elesedeitoudecostasesorriuparaela.—Nãotãocansado,acho.Ela se inclinouparabeijá-lo, e eleesticouamãoparaenrolarosdedosnos

cabelosruivosdela.Fitouumcacho,escarlatecontraapeledosnósdosdedosrepletosdecicatrizes,eroçouocachoemsuabochecha.Antesqueelapudessedizermaisumapalavra,ouviu-seumabatidaàportadoquarto.

ARainhagritou:—Oqueé?Senãoforumaquestãoimportante,saiaimediatamente,ouvocê

vaialimentarasnixiesdorio.A porta se abriu, e uma das damas mais jovens da corte entrou: Kaelie

Whitewillow.Umapixie.Elafezumamesuraefalou:—Milady,Meliornestáaquiegostariadefalarcomasenhora.Sebastianfranziuumadassobrancelhasclaras.—OtrabalhodeumaRainhanuncaestáconcluído.ARainhasuspirouegirouparaforadacama.—Traga-oaqui—ordenou—etraga-meumdemeusrobestambém,poiso

arestágélido.

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Kaelie assentiu e saiudoquarto.Um instantedepois,Meliorn entroue fezuma mesura com a cabeça. Se Sebastian achou estranho a Rainha tercumprimentado os cortesãos cando de pé, nua, nomeio do quarto, ele nãomanifestouistoemnenhummovimentodesuaexpressão.Umamulhermortalteria cado constrangida, poderia ter tentado se cobrir, mas a Rainha era aRainha, eterna eorgulhosa, e sabiaque cava tão gloriosa sem roupasquantocomelas.

—Meliorn—falou.—VocêtemnotíciasdosNephilim?Meliorn se aprumou. Como sempre, ele usava armadura branca com um

desenhodeescamassobrepostas.Osolhoseramverdeseocabelopretoemuitocomprido.

—Milady—disse,edeuumaolhadelaparaSebastian,atrásdaRainha,queestava sentadonacamacomacolchaenroladaao redordacintura.—Tenhomuitasnotícias.NossasnovasforçasdosCaçadoresdeSombrasmalignosforamposicionadasnafortalezadeEdom.Eaguardamnovasordens.

—EosNephilim?—perguntou aRainha, quandoKaelie voltou aoquartotrazendoumrobetecidocompétalasdelírios.Elaoergueu,eaRainhadeslizouparadentrodaroupa,enrolando-senabrancurasedosa.

— As crianças que escaparam do Instituto de Los Angeles deraminformaçõessu cientes,elas sabemqueSebastianestápor trásdosataques—respondeuMeliornumtantoamargo.

—Elesteriamimaginado,dequalquerforma—concluiuSebastian.—Elestêmolamentávelhábitodemeculparportudo.

—Aperguntaé:nossopovofoiidentificado?—perguntouaRainha.—Não— respondeuMeliorn, satisfeito.—As crianças supuseramque os

agressoresfossemCrepusculares.—Issoéimpressionante,considerandoapresençadesanguefadanogaroto

Blackthorn—observouSebastian.—Eradese imaginarqueelesestariamemsintonia com isso. E por falar no assunto, o que vocês estão planejando fazercomele?

—Ele tem sangue fada; é nosso.Gwyn solicitou que se juntasse à Caçada

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Selvagem;eleseráenviadoparalá—disseMeliorn,esevirouparaaRainha:—Precisamosdemaissoldados.OsInstitutosestão candovazios,eosNephilimestãofugindoparaIdris—emendouele.

— E quanto ao Instituto de Nova York? — Quis saber Sebastian, semrodeios.—Equantoaomeuirmãoeàminhairmã?

— Clary Fray e Jace Lightwood foram mandados para Idris — explicouMeliorn.—Nãopodemostentarresgatá-losaindasemnosrevelarmos.

Sebastiantocouapulseira.EraumhábitoqueaRainhahaviapercebido,algoque ele fazia quando estava irritado e tentava não demonstrar.Ometal tinhaumainscriçãonumalinguagemantigadossereshumanos: Senãopuderdobraroscéus,movereioinferno.

—Euosquero—disseele.—Evocêos terá—a rmouaRainha.—Nãome esquecideque isso era

partedenossabarganha.Masvocêdeveserpaciente.Sebastiansorriu,emboraosorrisonãoalcançasseosolhos.—Nós,mortais,podemosserprecipitados.— Você não é um mortal comum — observou a Rainha, e se virou

novamente paraMeliorn.—Meu cavaleiro, o que o senhor aconselha à suaRainha?

— Precisamos de mais soldados — respondeu Meliorn. — DevemosdominarmaisumInstituto.Maisarmasseriaumavantagemtambém.

— Pensei que você tivesse dito que todos os Caçadores de SombrasestivessememIdris?—observouSebastian.

—Nãoainda—retrucouMeliorn.—Algumascidadeslevarammaistempoque o esperadopara evacuar todos osNephilim; osCaçadores de Sombras deLondres, Rio de Janeiro, Cairo, Taipé e Istambul permanecem. Devemos ter,pelomenos,maisumInstituto.

Sebastian sorriu. Era o tipo de sorriso que transformava o rosto adorável,nãoemalgomaisadorável,masnumamáscaracruel,cheiadedentes,comoosorrisodeumamantícora.

— Então carei com Londres — respondeu ele. — Se isso não for de

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encontroaosseusdesejos,minhaRainha.Elanãoconseguiuevitar senão sorrir.Fazia séculosqueumamantemortal

nãolheestimulavaumsorriso.Elaseinclinouparabeijá-lo,esentiusuasmãosdeslizaremsobreaspétalasdorobe.

—FiquecomLondres,meuamor,etransformetudoemsangue—disseela.—Meupresenteparavocê.

—Vocêestábem?—perguntouJace,peloquepareciaaClaryacentésimavez.Ela estava parada no degrau da frente da casa de Amatis, parcialmenteiluminada pelas luzes das janelas. Jace estava logo abaixo dela, as mãos nosbolsos,comosetivessemedodedeixá-laslivres.

Ele caraencarandoasmarcasdequeimaduraquedeixaranaparededalojadurantealgumtempoantesdeajeitaracamisaepraticamenteempurrarClaryparaarualotada,comoseelanãodevesse carasóscomele.Esecomportarade modo taciturno pelo restante do trajeto de volta, a boca contraída numalinhatensa.

—Euestoubem—tranquilizouela.—Sabe,vocêqueimouaparede,nãoamim.—Eladeuumrodopioexagerado,comoseestivesseexibindoumaroupanova.—Estávendo?

Osolhosdeleestavamtristes.—Seeumachucassevocê...—Masnãomachucou—disseela.—Nãosoutãofrágilassim.— Pensei que estivesse controlando isso melhor, que os exercícios com

Jordanestivessemajudando.—Afrustraçãoperpassouavozdele.—Você está; isso estámelhorando. Sabe, você foi capaz de concentrar o

fogo nas mãos; isso é progresso. Eu toquei você, beijei você e não estoumachucada.—Ela pôs uma dasmãos na bochecha dele.—Nós vamos fazerissojuntos,lembra-se?Enadademedispensar.Semfugasdramáticas.

—EuestavapensandoemfugirparaIdrisnaspróximasOlimpíadas—falouJace,massuavozjáestavamaissuave,eapontadedesprezoprópriodiminuíra

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ederalugaràironiaeàdiversão.—Você e Alec podiam disputar a fuga em dupla— falou Clary, com um

sorriso.—Vocêficariacomoouro.Ele virou a cabeça e beijou a palma da mão dela. O cabelo dele roçou as

pontasdosdedosdeClary.Tudoaoredordelesparecia tranquiloe silencioso;Clary quase seria capaz de acreditar que eles eram as únicas pessoas emAlicante.

—Ficomeperguntando—disseele,seencostandonapeledela—oqueodonodaquela lojavaipensarquandochegarparaotrabalhodemanhãenotarduasmarcasdemãosqueimadasnaparede.

—“Esperoquehajaseguroparaisso”?Jacesorriu,umpequenosoprodearcontraamãodela.— E por falar nisso— disse Clary—, a próxima reunião do Conselho é

amanhã,certo?Jaceacenoucomacabeça.—Conselhodeguerra—respondeuele.—Apenasmembros selecionados

daClave.—Eremexeuosdedoscomirritação.Clarysentiuaperturbaçãodele.—JaceeraumexcelenteestrategistaeumdosmelhorescombatentesdaClave,e se ressentiria por car de fora de qualquer reunião sobre combates. Emespecial,pensouela,sehouvesseumdebatesobreousodofogocelestialcomoarma.

—Entãotalvezvocêpossameajudarcomumacoisa.Precisodeumalojadearmas.Querocomprarumaespada.Umaespadarealmenteboa.

Jacepareceusurpreso,depois,pareceusedivertir.—Paraquê?— Ah, você sabe. Matança. — Clary fez um gesto com a mão, o qual

esperava que transmitisse suas intenções assassinas contra todas as coisasmalignas.—Tipo, jáfazumtempinhoquesouumaCaçadoradeSombras.Eudeviaterumaarmaadequada,certo?

Umsorrisolentoseabriunorostodele.

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—Amelhor lojade espadas é a lojadeDiana,naFlintlockStreet—disseele,osolhosbrilhando.—Eutepegoamanhãàtarde.

—Éumencontro—disseClary.—Umencontrocomarmas.— Bem melhor que jantar e cinema — retrucou Jace, e desapareceu nas

sombras.

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5AMedidadaVingança

Maiaergueuoolharquandoaportadoapartamentode Jordanabriu comumestrondo e ele correu para dentro, quase deslizando no piso escorregadio demadeiradelei.

—Nada?—perguntouele.Elabalançouacabeça.Adecepção couestampadanorostodele.Depoisde

mataremosCrepusculares,elaconvocaraobandoparaajudarosdoisalimparabagunça.Aocontráriodosdemônios,osCrepuscularesnãoevaporavamquandoerammortos.Eranecessárioeliminá-los.Normalmenteeles teriamconvocadoosCaçadoresdeSombras eos IrmãosdoSilêncio,masagoraasportasparaoInstitutoeaCidadedosOssosestavamfechadas.Emvezdisso,oMorcegoeorestantedobandoapareceramcomumsacomortuário,enquantoJordan,aindasangrandoporcausadaluta,tinhasaídoparaprocurarporSimon.

Ele demorou horas para voltar, e, quando retornou, a expressão em seusolhosexpunhatodaahistóriaparaMaia.TinhaencontradoocelulardeSimon,empedaços,abandonadonodegraumaisbaixodasaídade incêndiocomoumbilheteirônico.Deoutromodo,nãohaveriasinalalgumdele.

Nenhumdosdoisdormiudepoisdisso,claro.Maiatinhavoltadoparaasededamatilhade loboscomMorcego,queprometera—mesmoquecomalgumahesitação—pedir aos lobos que procurassempor Simon e tentassem (ênfaseemtentar)alcançarosCaçadoresdeSombrasemAlicante.Havialinhasabertaspara a capital dos Caçadores de Sombras, linhas que somente os líderes doslobosedosclãspodiamusar.

Maia retornara ao apartamento de Jordan ao alvorecer, exausta e

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desesperada.Estavaparadana cozinhaquando ele entrou, comumpedaçodepapel-toalha úmido na testa, o qual ela afastou assim que Jordan a encarou esentiuaáguadescerpelorostofeitolágrimas.

—Não—disseela.—Nenhumanotícia.Jordan desabou contra a parede. Vestia apenas uma camiseta de manga

curta, e as tatuagens dosUpanishads estavam escuras e visíveis ao redor dobíceps.Ocabeloestavasuado,grudadonatesta,ehaviaumalinhavermelhanopescoço,bemnopontoondepassavaafaixadaaljava.Elepareciainfeliz.

— Não consigo acreditar nisso — desabafou, pelo que pareceu a Maia amilionésimavez.—Euoperdi.Eraresponsávelporelee,droga,euoperdi.

—Nãoé suaculpa.—Elasabiaque issonãoo faria sentir-semelhor,masprecisavadizê-lo.—Sabe,vocênãopode lutarcontracadavampiroevilãonaárea dos três estados, e a Praetor não deveria ter pedido para você tentar.Quando Simon perdeu a Marca, você pediu reforços, não pediu? E eles nãomandaramninguém.Vocêfezopossível.

Jordanolhouparaasprópriasmãosefaloualgumacoisaemvozbaixa:—Nãofoibomosuficiente.Maia sabiaque eladeveria ir até ele, abraçá-lo e confortá-lo.Dizerque ele

nãodeviaseculpar.Maselanãoconseguia.Opesodaculpaeratãograndeemseupeitoquanto

uma barra de ferro, e palavras não ditas obstruíam sua garganta. Já estavadaquele jeito há semanas.Jordan, preciso te dizer uma coisa. Jordan, preciso.Jordan,eu.

Jordan...O som de um telefone tocando rompeu o silêncio entre eles. Quase

freneticamente,Jordanremexeunobolsoepegouocelular;abriuoaparelhojáencostando-oaoouvido.

—Alô?Maiaoobservava,inclinando-setantoparaafrentequeabancadaesmagava

suascostelas.Noentanto,elaconseguiaouvirapenasmurmúriosnooutroladodalinhaeestavapraticamentegritandodeimpaciênciaquandoJordanfechouo

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celulareolhouparaela,umbrilhodeesperançanosolhos.—EraTealWaxelbaum, segundo em comandodaPraetor—disse ele.—

Eles me querem na sede imediatamente. Acho que vão ajudar a procurarSimon.Vocêvem?Sesairmosagora,devemoschegarlápelomeio-dia.

Soba torrentedeansiedadeemrelaçãoaSimon,haviaumasúplicaemsuavoz.Elenãoerabobo,pensouMaia.Sabiaquealgoestavaerrado.Elesabia...

Ela respirou fundo. As palavras abarrotavam sua garganta —Jordan, nósprecisamos conversar sobre uma coisa —, mas ela as conteve. Simon era aprioridadeagora.

—Claro—respondeu.—Claroquevou.

A primeira coisa que Simon viu foi o papel de parede, que não era tão ruimassim. Um pouco ultrapassado. De nitivamente descascando. Sério problemademofo.Mas,emgeral,nãoeraapiorcoisaqueelejátinhavisto.Simonpiscouumaouduas vezes, assimilando as listras pesadas que interrompiamo padrãooral.Bastouumsegundoparaperceberqueaslistraseram,naverdade,barras.

Estavanumajaula.Rapidamente, Simon girou sobre as costas e cou de pé, sem veri car a

alturadajaula.Bateuacabeçanasbarrassuperiores,seabaixandonumre exoenquantoxingavaemvozalta.

Edepoiseleseviu.Vestia uma camisa branca uida e fofa. Mais perturbador era o fato de

tambémestarvestindocalçasdecouromuitoapertadas.Muitoapertadas.Muitodecouro.Simonseexaminoueassimilouaquilotudo.Osbabadosdacamisa.Odecote

profundoemVquemostravaopeito.Ocourojusto.—Porquesemprequeeuachoqueencontreiacoisamaisterrívelquepodia

meacontecerdescubroqueestouerrado?Como se fosse uma deixa, a porta se abriu e uma guraminúscula correu

para dentro do cômodo. Um vulto escuro fechou a porta instantaneamente

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atrásdesi,comvelocidadedeServiçoSecreto.Ovultocaminhounapontadospésatéajaulaeespremeuorostoentreduas

barras.—Siiimon—murmurouela.Maureen.Normalmente, Simon teria tentado pelo menos pedir a ela para soltá-lo,

encontrarumachaveouajudá-lo.MasalgumacoisanaaparênciadeMaureenlhediziaqueissonãoseriaútil.Especi camente,acoroadeossosqueelaestavausando.Ossosdededos.Talvezossosdospés.Eacoroadeossostinhajoias—ou talvez fosse enfeitiçada.E entãohaviaovestidodebaile rosa e cinza,maislargo nos quadris, num estilo que o fazia se recordar das roupas de época doséculoXVIII.Nãoeraotipoderoupaqueinspiravaconfiança.

—Ei,Maureen—disseele,comcautela.Maureensorriueencostouorostonaaberturacommaisforça.—Você gosta da sua roupa?— perguntou ela.— Eu tenho algumas para

você. Tenho uma casaca e um kilt, e todo tipo de coisas, mas eu queria queusasseessaprimeiro.Eufizsuamaquiagemtambém.Fuieu.

Simon não precisava de um espelho para saber que estava usandodelineador.Anoçãofoitotaleimediata.

—Maureen...— Estou fazendo um colar— continuou ela, interrompendo-o.— Quero

que você usemais joias. Quero que você usemaispulseiras. Quero coisas emvoltadosseuspulsos.

—Maureen,ondeestou?—Vocêestácomigo.—Tá.Ondenósestamos?—Ohotel,ohotel,ohotel...OHotelDumort.Pelomenosaquilofaziaalgumsentido.—Tá—disseele.—Eporqueeuestou...numajaula?Maureencomeçouamurmurarumacançãoparasiepassouamãoaolongo

dasbarrasdajaula,perdidanoprópriomundo.

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— Juntos, juntos, juntos... agora estamos juntos. Você e eu. Simon eMaureen.Finalmente.

—Maureen...—Este vai ser seuquarto—disse ela.—Eassimquevocê estiverpronto,

poderá sair.Tenhocoisasparavocê.Tenhoumacama.Eoutrascoisas.Umascadeiras.Coisasdasquaisvocêvaigostar.Eabandavaipodertocar!

Elagirouequaseperdeuoequilíbrioporcausadopesoestranhodovestido.Simonsentiuqueprovavelmentedeveriaescolheraspróximaspalavrascom

muitocuidado.Elesabiaquetinhaumavoztranquilizadora.Esabiasersensível.Reconfortante.

—Maureen...vocêsabe...eugostodevocê...Aoouviraquilo,Maureenparoudegirarevoltouaagarrarasbarras.—Vocêprecisadetempo—disseela,comumabondadeterrívelnavoz.—

Apenas tempo.Você vai aprender.Vai se apaixonar. Estamos juntos agora. Evamos governar. Você e eu. Você vai governar meu reino. Agora que sou arainha.

—Rainha?—Rainha.RainhaMaureen.RainhaMaureendanoite.RainhaMaureenda

escuridão.RainhaMaureen.RainhaMaureen.RainhaMaureendosmortos.Elapegouumavelaquequeimavaemumsuportenaparedee,subitamente,

meteu-aentreasbarras,emdireçãoaSimon.Elaainclinoumuitolevementeesorriuquandoacerabrancacaiuemformadelágrimasnosrestosdestruídosdocarpete escarlate. Ela mordeu o lábio, concentrada, girando o pulsodelicadamente,acumulandoasgotasjuntinhas.

—Você é... uma rainha?—disse Simon baixinho. Ele sabia queMaureeneraa líderdoclãdevampirosdeNovaYork.ElahaviamatadoCamille,a nalde contas, e assumido o lugar desta. No entanto os líderes do clãs não eramchamadosreisnemrainhas.Elessevestiamnormalmente,comoRaphaelfazia,não com fantasias. Eram guras importantes na comunidade dasCrianças daNoite.

Mas Maureen, sem dúvida, era diferente. Maureen era uma criança, uma

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criançamorta-viva.Simonserecordoudasmanguinhasdearco-íris,davozinharuidosa, dos olhos grandes. Ela permanecera uma garotinha com toda suainocência de garotinha quando Simon a mordera, quando Camille e Lilith alevaram emudaram, injetando tal maldade em suas veias que retirara toda ainocênciaeacorromperarumoàloucura.

Era culpa dele, Simon sabia. Se Maureen não o tivesse conhecido, não otivesseseguidoporaí,nadadissoteriaacontecido.

Maureenacenou coma cabeça e sorriu, concentrando-senapilhade cera,queagorapareciaumvulcãominúsculo.

— Eu preciso... fazer coisas — falou abruptamente, e deixou a vela cair,aindaacesa.

Avela seapagouquandoatingiuochão,eMaureencorreuparaaporta.Omesmovultoescuroaabriuno instantequeela seaproximou.EentãoSimoncousozinhonovamente, comos restos fumegantesdavela eanovacalçade

couroeopesohorríveldesuaculpa.

Maia cara calada durante todo o trajeto pela via expressa de Long Island,entupida de carros, até a Praetor; o sol se elevava no céu e os arredorespassavamdeedifícioslotadosdeManhattanasítiosecidadezinhaspastoraisdeNorth Fork. Eles estavamperto da Praetor, e dava para ver as águas azuis doSoundàesquerda,ondulandocomoventogelado.Maiaseimaginoujogando-senelas,eestremeceuaopensarnofrio.

—Você estábem?—perguntou Jordan, que tambémmal falaradurante amaiorpartedaviagem.

O interior da van estava gelado, e ele usava luvas de couro para dirigir,porémelasnãoescondiamosnósbrancosdosdedosnovolante.Maiasentiaaansiedadefluindodeleemondas.

—Estoubem—respondeuela.Nãoeraverdade.ElaestavapreocupadacomSimon e ainda lutava com as palavras que não conseguia dizer, que lheobstruíam a garganta. Agora não era a hora certa para expeli-las, não com

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Simondesaparecido, e, ainda assim, todos os instantes emque ela deixava dedizê-laspareciamumamentira.

Osdoisviraramnaestradacompridaebrancaqueseestendiaao longe,nadireçãodoSound.Jordanpigarreou.

—Vocêsabequeeuteamo,nãoé?— Eu sei — disse Maia em voz baixa, e lutou contra a vontade de dizer

“Obrigada”.Nãoeracorretoresponder“Obrigada”quandoalguémdissessequeteamava.EsimresponderoqueJordanevidentementeestavaesperando...

Elaolhoupelajanelaeseassustou,saindododevaneiosubitamente.—Jordan,estánevando?—Achoquenão.Entretanto ocos brancos caíamdiante das janelas da van, acumulando-se

no para-brisa. Jordan estacionou o veículo, baixou uma das janelas e abriu amãoparapegarumfloco.Elerecuouamão,esuaexpressãoficousombria.

—Istonãoéneve—falouele.—Sãocinzas.Maia sentiuumapontadanopeito enquanto ele voltava a ligar omotorda

vaneelesavançavam,dandoavoltanaesquina.Àfrente,ondedeveriaerguer-seasededaPraetorLupus,douradacontraocéucinzentodemeio-dia,via-seuma concentração de fumaça preta. Jordan xingou e girou o volante para aesquerda;avanatingiuumavalaefezumbarulhoalto.Elechutouaportaparaqueabrisseesaiudoveículo;Maiaoseguiuuminstantedepois.

A sede da Praetor Lupus fora construída sobre um imenso lote de terrenoverdeque se inclinavaparao Sound.O edifício central erade rochadourada,um solar romanesco circundado por pórticos em arco. Ou pelomenos tinhasido.Agora era um amontoado demadeira e pedra fumegantes, chamuscadasfeitoossosemumcrematório.Póbrancoecinzas utuavamdensamentepelosjardins, e Maia engasgou com o ar pungente, erguendo uma das mãos paraprotegerorosto.

OcabelocastanhodeJordanestavatodosalpicadocomascinzas.Eleolhouaoredor,aexpressãochocadaeincompreensível.

—Eunão...

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AlgumacoisaatraiuoolhardeMaia,umlampejodemovimentoatravésdafumaça.ElaagarrouamangadeJordan.

—Veja...temalguémali...Elecaminhou,sedesviandodaruínafumegantedoedifíciodaPraetor.Maia

oacompanhou, emboranãoconseguisse evitar recuar,horrorizada, ao tarosdestroços chamuscados da estrutura que se projetava da terra: as paredes quesustentavam um telhado agora inexistente, janelas que explodiram ouderreteram,vislumbresdebrancoquepoderiamtersidotijolosouossos...

Jordanparou à frente deMaia. Ela andou até car do ladodele.As cinzasgrudavamem seus sapatos, partículas entre os cadarços.Ela e Jordan estavamnaparteprincipaldosedifíciosdestruídospelo fogo.Davaparaveraáguanãomuito longe. O fogo não tinha se espalhado, embora houvesse folhasmortaschamuscadas e cinzas sopradas ali também — e, em meio às cercas vivasaparadas,haviacorpos.

Lobisomens—detodasasidades,emboraamaioriafossejovem—estavamesparramados ao longo das trilhas bem-cuidadas, os corpos lentamentecobertos por cinzas, como se estivessem sendo engolidos por uma nevasca.Lobisomens possuíam o instinto de se cercar de outros indivíduos da própriaespécie,de tirar forçasumdooutro.Aquelaquantidadede licantroposmortosera uma dor lancinante, um buraco de perda nomundo. Ela se recordou daspalavrasdeKipling,escritasnasparedesdaPraetor.Aforçadobandoéolobo,eaforçadoloboéobando.

Jordan estava olhando ao redor, os lábios se movendo conforme elemurmurava os nomes dos mortos:Andrea, Teal, Amon, Kurosh, Mara . Nabeiradaágua,Maiasubitamenteviualgosemexer—umcorpo,submersopelametade.Eladisparou,Jordanemseuencalço.Elaescorregoupelascinzasatéolocalondeagramadavalugaràareia,edesabouaoladodocadáver.

Era Praetor Scott, o corpo balançando com o rosto virado para baixo, ocabelo louro grisalho encharcado, a água ao redor dele manchada de umvermelhorosado.Maiaseabaixouparavirá-loequaseengasgou.Osolhosdeleestavamabertos,fitandoocéucegamente,agargantaabertaporumcorte.

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—Maia.—Ela sentiu um toque em suas costas. Era amão de Jordan.—Não...

A frase foi interrompida por um suspiro, e ela deumeia-volta e sentiu umpavortãointensoquesuavisãoquaseescureceu.Jordanestavaatrásdela,umadasmãosesticada,umaexpressãodechoquetotal.

Domeiodeseupeito,projetava-sealâminadeumaespada,ometalgravadocomestrelaspretas.Pareciabizarrodemais, comosealguéma tivessepregadoalicomfita,oucomosefosseumtipodeacessórioteatral.

O sangue começou a se espalhar em um círculo ao redor da lâmina emanchouafrentedajaqueta.Jordandeumaisumsuspiroborbulhanteecaiudejoelhos, a espada retraindo e saindo de seu corpo enquanto ele desabava nochãoerevelavaquemestavalogoatrás.

Umgaroto que carregava uma imensa espada preta e prateada olhava paraMaiaporcimadocorpoajoelhadodeJordan.Ocaboestavameladodesangue—naverdade, estava totalmente ensanguentado,do cabelo claro até asbotas,respingadas como se ele tivesse cado de pé diante de um ventilador quesopravatintaescarlate.Exibiaumsorrisolargo.

—MaiaRobertseJordanKyle—falou.—Ouvifalarmuitosobrevocês.Maiacaiudejoelhos,aomesmotempoqueJordandesabouparaolado.Elao

segurou, apoiando-ono colo.Maia sentia o corpo inteirodormentepor causado pavor, como se estivesse deitada no fundo congelado do rio. Jordanestremecia em seusbraços, e ela o abraçava enquantoo sangue escorriapeloscantosdaboca.

Elaergueuoolharparaogaroto.Poruminstantevertiginosopensouqueeletivesse saído de um dos pesadelos com seu irmão, Daniel. Ele era belo comoDaniel fora, embora não pudesse ser mais diferente. A pele de Daniel eramorena como a dela, ao passo que a do garoto parecia ter sido entalhada nogelo.Pelebranca,maçãsdorostopálidaseproeminentes,cabelobrancocomosal,caindonatesta.Osolhoseramnegros,olhosdetubarão,fixosefrios.

—Sebastian—disseela.—VocêéofilhodeValentim.— Maia — murmurou Jordan. As mãos dela estavam sobre o peito dele,

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encharcadasdesangue,assimcomoacamisetaeaareiadebaixodeles,osgrãosseacumulandonoescarlategrudento.—Nãofique...corra...

—Shhhh.—Elaobeijounabochecha.—Vocêvaificarbem.—Não.Nãovai—falouSebastian,parecendoentediado.—Elevaimorrer.Maiaergueuacabeça.—Caleaboca—sibilouela.—Caleaboca,sua...suacoisa...OpulsodeSebastianfezummovimentorápidocomumestalo—elanunca

viraninguémfazeraquilo tãodepressa,anãoser, talvez, Jace—,eapontadaespadaestavaemseupescoço.

— Quieta, menina do Submundo — ordenou ele. — Veja quantos estãomortosàsuavolta.Vocêachaqueeuhesitariaemmatarmaisum?

Elaengoliuemseco,masnãoseafastou.—Porquê?PenseiquesuaguerrafossecontraosCaçadoresdeSombras...—Éumalongahistória...—explicouele,comvozarrastada.—Bastadizer

que o Instituto de Londres é irritantemente bem protegido e que a Praetorpagouopreço.Euiamataralguémhoje.Sónãotinhacertezadequem,quandoacordeiestamanhã.Adoroasmanhãs.Tãocheiasdepossibilidades.

—APraetornãotemnadaavercomoInstitutodeLondres...—Ah, você está errada nesse ponto. Temuma história e tanto.Mas é de

pouca importância. Você está correta ao dizer queminha guerra é contra osNephilim,oquesignificaqueeuestouemguerracontraseusaliados.Este—eleabanouamãolivreparatráseindicouasruínasincendiadas—émeurecado.Evocêvaitransmiti-lopormim.

Maiacomeçouabalançaracabeça,massentiuquealgumacoisaagarravasuamão— eramos dedos de Jordan. Ela baixou os olhos para ele. Jordan estavabranco feito um fantasma, os olhos buscavam os dela.Por favor , pareciamdizer.Façaoqueelepede.

—Qualrecado?—murmurouela.—QueelesdeveriamserecordardeShakespeare—disseele.—Eununca

vou parar, nunca vou car imóvel, até que amorte feche osmeus olhos, ou afortuna me dê a medida da vingança . — Os cílios roçavam a bochecha

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ensanguentada enquanto ele piscava. — Diga aos membros do Submundo.Estou atrás de vingança e vou conseguir.Vou lidar dessemodo comqualquerumquesealieaosCaçadoresdeSombras.Nãoquerodialogarcomsuaespécie,amenosquevocêssigamosNephilimnabatalha;nessecaso,vocêsalimentarãominha lâmina e as lâminas do meu exército, até o último ser extinto dasuperfíciedestemundo.

Ele baixou a ponta da espada, de modo que a lâmina roçou os botões dacamisadeMaia,comosehouvessepretensãodecortarocorpodela.Sebastianaindaestavasorrindoquandoafastouaarma.

—Achaqueconsegueselembrardisso,garota-lobo?—Eu...—Claroqueconsegue—disseele,ebaixouoolharparaocorpodeJordan,

que ainda estava nos braços dela.— Seu namorado está morto, por sinal—emendou,depois en ou a espadanabainhapresa à cintura e se afastou. Suasbotasfaziamsubirnuvensdecinzasenquantoelecaminhava.

Magnus nunca havia entrado noHunter’sMoon, uma vez que tinha sido umbar clandestino durante os anos da Proibição, um local onde mundanos sereuniam tranquilamenteparabeber até cair.Emalgummomentodosanosde1940eleforaassumidoporproprietáriosdoSubmundoe,desdeentão,atendiaàessaclientela—sobretudo,lobisomens.Forasujonaépocaeerasujoagora,ochãocobertocomumacamadadepoeiragrudenta.Haviaumbalcãodemadeiracomumabancadamanchada,marcadapordécadasdeanéis feitos comcoposúmidos e arranhões causados por garras compridas. Pete Furtivo, o barman,serviaumaCoca-colaparaMorcegoVelasquez,olídertemporáriodobandodelobosdeLuke,emManhattan.Magnussemicerrouosolhosparaele,pensativo.

— Você está de olho no novo líder do bando dos lobos? — perguntouCatarina, espremida na mesa sombria ao lado de Magnus, os dedos azuissegurandoumLongIslandIcedTea.—Penseiqueestivessedesacocheiodoslobos,depoisdeWoolseyScott.

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—Nãoestoudeolhonele—disseMagnus,exaltado.Morcegonãoeranadafeio se você gostava de tipos com queixo quadrado e ombros largos, masMagnus estava imerso em pensamentos. — Minha mente estava em outrascoisas.

—Não importa o que seja, não faça!— falouCatarina.—Éumapéssimaideia.

—Eporquevocêdizisso?—Porqueelessãodoúnicotipoquevocêtem—disseela.—Euteconheço

há muito tempo, e tenho certeza absoluta nesse quesito. Se você estáplanejandovirarpiratadenovo,éumapéssimaideia.

—Eunãorepitomeuserros—retrucouMagnus,ofendido.—Tem razão.Você comete errosnovos e até piores—disseCatarina.—

Não faça isso, seja o que for. Não lidere ummotim de lobisomens, não façanadaquepossacontribuiracidentalmenteparaoapocalipse,enãocomecesuapróprialinhadeglitterparatentarvendê-lanaSephora.

—A última ideia temmérito real— observouMagnus.—Mas não estoucogitandoumamudançadecarreira.Euestavapensandoem...

— Alec Lightwood? — Catarina deu um sorriso. — Nunca vi alguém teimpressionartantoquantoaquelegaroto.

— Você não me conhece tanto assim — resmungou Magnus, mas ocomentárionãofoisincero.

—Porfavor.VocêmefezassumirotrabalhocomoPortalnoInstitutoparanão ter que vê-lo, e depois apareceumesmo assim, só para se despedir. Nãonegue.Eutevi.

—Nãonegueicoisaalguma.Apareciparamedespedir;foiumerro.Eunãodeviaterfeitoisso.—Magnustomouumgoledesuabebida.

— Ora, poupe-me — falou Catarina. —Que história é essa, de verdade,Magnus?NuncavivocêtãofelizcomoquandoestavacomAlec.Normalmente,quando se apaixona, você ca infeliz. Lembre-se de Camille. Eu a odiava.Ragnoraodiava...

Magnusabaixouacabeçasobreamesa.

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—Todosaodiavam—emendouCatarinacruelmente.—Elaeradesonestaemá. E então seu pobre e doce namorado foimordido por ela; bem, sério, háalguma razãopara terminarum relacionamentoperfeito?É como incitarumapítonaatacarumcoelhinhoedepoisficarzangadoquandoocoelhinhoperde.

—Alecnãoéumcoelhinho.ÉumCaçadordeSombras.—EvocênuncanamorouumCaçadordeSombras.Édissoquesetrata?Magnusseafastoudamesa,oquefoiumalívio,poiselacheiravaacerveja.—Decertaforma,omundoestámudando.Vocênãosente isso,Catarina?

—perguntouele.Elaoespiouporcimadabordadocopo.—Nãopossodizerquesinta.— Os Nephilim sobreviveram durante milhares de anos — observou

Magnus.—Mas alguma coisa está chegando, uma grande mudança. SempreaceitamososCaçadoresdeSombrascomoumfatodenossaexistência.Masháfeiticeiros velhos o su ciente para se lembrar de quando os Nephilim nãocaminhavamsobreaTerra.Elespoderiamserextintostãorapidamentequantochegaram.

—Masvocênãoacreditarealmente...—Sonheicomisso—disseele.—Vocêsabequetenhosonhosverdadeiros,

algumasvezes.— Por causa do seu pai. — Ela pousou a bebida na mesa. Sua expressão

estavaconcentradaagora,nãohaviahumornela.—Elepoderiasimplesmenteestartentandoteassustar.

Catarina era uma das poucas pessoas nomundo que sabia quem o pai deMagnus realmente era; a outra fora Ragnor Fell. Não era algo que Magnusgostassederevelaràspessoas.Umacoisaeraterporpaiumdemônio.OutraeraseupaiserproprietáriodegrandepartedoInferno.

—Qualéa nalidadedisso?—Magnusdeudeombros.—Nãosouocentrodoquequerquesejaesteturbilhãoqueestáporvir.

—MastemmedoqueAlecseja—falouCatarina.—Evocêquerafastá-lo,antesqueoperca.

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—Você disse para não fazer nada que pudesse contribuir acidentalmenteparaoapocalipse—observouo feiticeiro.—Seique estavabrincando.Mas émenos engraçado quando não consigo me livrar da sensação de que oapocalipse virá de qualquer jeito. ValentimMorgenstern praticamente acaboucomosCaçadoresdeSombras, e seu lhoéduasvezesmais inteligentee seisvezesmaiscruel.Eelenãovirásozinho.Eletemauxílio,dedemôniosmaioresquemeupai,deoutros...

—Comovocêsabedisso?—OtomdevozdeCatarinaeraagudo.—Euolhei.— Pensei que você tivesse parado de ajudar os Caçadores de Sombras—

disseCatarina,eentãoergueuamãoantesqueelepudesse falaralgumacoisa.—Deixe para lá. Já ouvi você repetir esse tipode coisa vezes su cientes parasaberquevocênuncafalasério.

—Essaéaquestão—disseMagnus.—Euolhei,masnãoencontreinada.Não importa quais sejam os aliados de Sebastian, ele não deixou rastros daaliança.Continuosentindocomoseestivesseprestesadescobriralgumacoisa,e entãome agro agarrandoo ar.Não achoque eu possa ajudá-los, Catarina.Nãoseisealguémpode.

Magnusdesviouoolhardaexpressãosúbitadecompaixãodooutroladodobalcão.Morcegoestavainclinadocontraomóvelebrincavacomotelefone—aluzdatelalançavasombrasemseurosto.SombrasqueMagnusviaemtodososrostosmortais:emtodososhumanos,emtodososCaçadoresdeSombras,emtodasascriaturasdestinadasamorrer.

—Mortais têmessenomeexatamenteporquenãosãoeternos—observouCatarina.—Vocêsempresoubedissoeaindaassimjáosamou.

—Nãodessejeito—falouMagnus.Catarinaarfou,surpresa.—Oh—murmurou.—Oh...— Ela pegou a bebida.—Magnus, você é

absurdamentetolo—emendoucarinhosamente.Ofeiticeirosemicerrouosolhosparaela.

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—Sou?—Seédessejeitoquevocêsesente,deveria carcomele—aconselhou.—

Pense em Tessa. Você aprendeu alguma coisa com ela? Sobre quais amoresvalemadordeperdê-los?

—EleestáemAlicante.—Edaí?—insistiuCatarina.—Vocêdeveriaserofeiticeirorepresentante

doConselho;vocêdepositouessaresponsabilidadeemmim.Estoudevolvendoavocê.VáparaAlicante.Dequalquerforma,paramim,vocêtemmaisadizerao Conselho do que eu jamais poderia. — Ela en ou a mão no bolso douniformedeenfermeiraqueestavavestindo:tinhavindodiretodotrabalhonohospital.—Ah,efiquecomisto.

Magnuspuxouopedaçodepapelamassadodosdedosdela.—Umconviteparajantar?—falou,desconfiado.—Meliorn, do povo fada, deseja que todos osmembros do Submundo no

ConselhoseencontremparajantarnavésperadograndeConselho—disseela.—Umtipodegestodepazeboavontade,outalvezeleapenasqueirachateartodomundocomenigmas.Deumjeitooudeoutro,deveserinteressante.

—Comida de fada— retrucouMagnus,melancólico.—Odeio comida defada.Querodizer,mesmootiposeguro,quenãovaifazervocê cardançandomúsicas típicas durante o próximo século. Todos aqueles besouros e vegetaiscrus...

Eleseinterrompeu.Dooutroladodocômodo,Morcegoencostouotelefonenoouvido.Aoutramãoagarrouobalcãodobar.

—Temalgumacoisaerrada—disseofeiticeiro.—Algumacoisareferenteaobando.

Catarinapousouo coponamesa.Ela conheciaMagnusmuitobeme sabiaquando eleprovavelmente estava certo.Ela tambémolhouparaMorcego, quetinha fechado o celular. Ele empalidecera, a cicatriz se destacava, lívida, nabochecha. Ele se inclinou para dizer alguma coisa para Pete Furtivo, atrás dobalcão,depoislevoudoisdedosàbocaeassobiou.

Pareceu o apito de um trem a vapor e interrompeu omurmúrio baixo de

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vozesnobar.Eminstantes,todososlicantroposestavamdepé,irrompendoemdireção aMorcego.Magnus se pôsdepé também, emboraCatarina segurassesuamanga.

—Não...— Vou car bem. — Ele a afastou e empurrou a multidão até chegar a

Morcego.O restante do bando estava parado em um círculo frouxo ao redordele. Eles se retesaram, inseguros ao ver o feiticeiro no meio deles, abrindocaminho para car perto do líder do bando.Um dos lobisomens, uma loura,saiudeseulugarebloqueouMagnus,porémMorcegoergueuamão.

— Está tudo bem, Amabel— disse ele. A voz era de poucos amigos,maseducada.—MagnusBane,correto?AltoFeiticeirodoBrooklyn?MaiaRobertsdizquepossoconfiaremvocê.

—Vocêpode.—Ótimo,mastemosnegóciosurgentesdobandoaqui.Oquevocêquer?— Você recebeu um telefonema? — Magnus apontou para o celular de

Morcego.—FoiLuke?AconteceualgumacoisaemAlicante?Morcegobalançouacabeça,esuaexpressãoeraindecifrável.—OutroataqueaoInstituto,então?—insistiuMagnus.Eleseacostumaraatertodasasrespostaseodiavanãosaberalgo.Emborao

InstitutodeNovaYorkestivessevazio,issonãosigni cavaqueoutrosInstitutosestivessemdesprotegidos,quepoderianãoterhavidoumabatalha,umanaqualAlectalveztivesseresolvidoseenvolver...

—NãofoiaumInstituto—falouMorcego.—EraMaiaaotelefone.Asededa Praetor Lupus foi incendiada e destruída. Pelo menos uma centena delobisomens estão mortos, incluindo Praetor Scott e Jordan Kyle. SebastianMorgensterntrouxeocombateaténós.

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6IrmãodeChumboe

IrmãdeAço

—Não jogue... por favor, por favor, não jogue... Ai,Deus, ele jogou— falouJulian,comvozresignada,quandoumpedaçodebatatavooupelocômodoeporpouconãoacertouaorelhadele.

— Nada foi quebrado — tranquilizou Emma. Ela estava sentada com ascostasapoiadasnoberçodeTavvyeobservavaJuliandararefeiçãodatardeaoirmãocaçula.Tavvyhaviachegadoàidadenaqualeramuitorestritoemrelaçãoao que gostava de comer, e qualquer coisa que não o agradasse era jogada nochão.—Oabajurestáumpoucoembatatado,sóisso.

Felizmente, embora o restante da casa dos Penhallow fosse um tantoelegante,osótãoonde cavamos“órfãosdaguerra”—termocoletivoaplicadoàs crianças dos Blackthorn e a Emma desde que chegaram a Idris — eraextremamente simples, funcional e sólido no design.Ocupava o último andarinteiro da casa: vários cômodos conectados, uma pequena cozinha e umbanheiro,umacoleçãofortuitadecamasepertencesespalhadosportodaparte.Helen dormia no andar de baixo com Aline, embora subisse diariamente;Emma recebera o próprio quarto, assim como Julian, que mal cava nele.Drusilla e Octavian ainda acordavam todas as noites gritando, e Julian seacostumara a dormir no piso do quarto deles, com o travesseiro e o cobertoramontoados ao lado do berço de Tavvy.Não havia cadeirinha de comer parabebês, por isso Julian sentava-se no chão, na frente do menininho, em umcobertor todo sujo de comida, com um prato na mão e uma expressãodesesperada.

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Emmaseaproximouesentou-sedefrenteparaele,erguendoTavvyatéseucolo.Orostinhodeleestavaenrugadodetristeza.

—Mamã—falou,quandoelaoergueu.— Faz o trenzinho piuí-piuí — aconselhou a Jules. Ela se perguntou se

deveria avisar que ele estava com molho de espaguete no cabelo. Hesitou eachoumelhornão.

Elaobservavaenquantoeleselecionavaacomida,antesdecolocá-lanabocadeTavvy.Omenininhodavarisadasagora.Emmatentavaengolirasensaçãodeperda: ela se lembrava do próprio pai separando a comida no pratopacientementenafaseemqueelaserecusavaacomerqualquercoisaverde.

— Ele não está comendo o su ciente — disse Jules baixinho, enquantotransformavaumpedaçodepão commanteiganum trembarulhento eTavvyesticavaasmãosmeladasparaele.

—Eleestátriste.Éumbebê,masentendequealgumacoisaruimaconteceu—explicouEmma.—ElesentesaudadedeMarkedopai.

Julesesfregouosolhos,cansado,deixandoumamanchademolhoemumadasbochechas.

—NãopossosubstituirMarknempapai.—ElepôsumpedaçodemaçãnabocadeTavvy.Omenininhocuspiu,comumaexpressãocrueldeprazer.Juliansuspirou.—Vouveri carDrueosgêmeos.ElesestavamjogandoMonopolynoquarto,masvocênuncasabequandoascoisasvãosairdocontrole.

Eraverdade.Tiberius,comamenteanalítica,tendiaavenceramaiorpartedos jogos. Livvy nunca se importava, mas Dru, que era competitiva, sim, emuitasvezesumapartidaterminavaempuxõesdecabelodeambososlados.

— Pode deixar que faço isso. — Emma devolveu Tavvy e estava selevantandoquandoHelenentrounoquartocomaexpressãosombria.Quandoviuosdois,aexpressãosetransformouemapreensão.Emmasentiuospelosdanucasearrepiarem.

—Helen—disseJulian.—Qualéoproblema?—AsforçasdeSebastianatacaramoInstitutodeLondres.EmmapercebeuJuliantenso.Elaquaseconseguiusentir,comoseosnervos

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delefossemosdela,comoseopânicodelefosseodela.Orostodele—jámuitomagro—pareceuseretesar,emboracontinuasseasegurarobebêcomcuidadoedelicadeza.

—TioArthur?—perguntouele.— Ele está bem — avisou Helen rapidamente. — Ficou ferido. Isso vai

atrasarachegadadeleemIdris,masestábem.Naverdade,todosestãobemnoInstitutodeLondres.Oataquefoiumfracasso.

—Porquê?—AvozdeJulianfoipoucomaisqueumsussurro.—Nãosabemosainda,nãocomcerteza—disseHelen.—VouatéoGard

com Aline, a Consulesa e o restante do grupo para tentar descobrir o queaconteceu.—ElaseajoelhouepassouamãopeloscachosdeTavvy.—Éumaboa notícia— faloupara Julian,quepareciamais confusoquequalquer coisa.— Sei que é assustador o fato de Sebastian ter atacado de novo,mas ele nãovenceu.

Emma tou Juliannosolhos.Sabiaquedeveria estar animadacomasboasnotícias,mas havia uma sensação violenta dentro dela—uma inveja terrível.Por que os habitantes do Instituto de Londres estavamvivos se a família delamorreu?Dequemaneiraelestinhamlutadomelhor,feitomais?

—Nãoéjusto—desabafouJulian.— Jules — disse Helen, e se pôs de pé. — É uma derrota. Isso signi ca

algumacoisa.Signi caquepodemosderrotarSebastianesuasforças.Dominá-los.Viraramaré.Issovaideixartodomundocommenosmedo.Éimportante.

—Espero que o peguem com vida— disse Emma, os olhos em Julian.—EsperoqueomatemnaPraçadoAnjoparaquepossamosassistiràsuamorte,eesperoquesejalenta.

—Emma—disseHelen, soando chocada,masosolhos azuis-esverdeadosde Julian ecoaram a própria crueldade de Emma, sem qualquer vestígio dereprovação.Emmanuncaoamara tantoquantonaquelemomentoporre etiratéossentimentosobscurosnasprofundezasdeseucoração.

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Alojadearmaseralinda.Clarynuncatinhapensadoquedescreveriaumalojadearmasdestaforma—talvezumpôrdosolouumavistanoturnalímpidanohorizonte de Nova York, mas não uma loja cheia de clavas, machados ebengalas-espada.

Masaquelaera.Aplacademetalquependiadoladodeforatinhaoformatodeumaaljavaeonomedaloja—FlechadeDiana—escritoemletracursiva.No interior da loja, havia facas exibidas como leques mortais de ouro, aço eprata. Um imenso candelabro pendia de um teto pintado com um desenhorococóde echasdouradasemplenovoo.Flechasdeverdadeeramexibidasemsuportes demadeira entalhados. Espadas tibetanas, com os pomos decoradosem turquesa, prata e coral, pendiam nas paredes ao lado de sabresdhabirmanesescompontasdemetaltrabalhadasemcobreelatão.

— Então... o que despertou isso? — perguntou Jace com curiosidade,segurandoumanaginataentalhadacomcaracteresjaponeses.Quandoeleapôsno chão, a lâmina ergueu-se acima de sua cabeça, e os dedos compridos securvaram ao redor do punho para mantê-la rme. — Esse desejo por umaespada?

—Quandoumagarotade12anosdizquesuaarmaéumaporcaria,éhorademudar—falouClary.

A mulher atrás do balcão deu uma risada. Clary a reconheceu como amulher com tatuagem de peixe que tinha se manifestado na reunião doConselho.

—Ora,vocêveioaomelhorlugar.—Estalojaésua?—perguntouClary,eesticouamãoparatestarapontade

umaespadalongacomcabodeferro.Amulhersorriu.—EusouDianaWrayburn.Claryesticouamãoparaum orete,mas Jace,depoisdeapoiaranaginata

naparede,balançouacabeçaparaela.—Aquelaclaymoreficariamaisaltaquevocê.Nãoqueissosejadifícil.Clarymostrou a língua para ele e pegou uma espada curta que pendia na

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parede.Haviaarranhõesaolongodalâmina—arranhõesque,apósumexamemaisatento,Claryviuseremletrasdeumalinguagemqueelanãoconhecia.

—Sãosímbolos,masnãosãosímbolosdosCaçadoresdeSombras—falouDiana.—Estaéumaespadaviking;muitoantiga.Emuitopesada.

—Asenhorasabeoquediz?—Somente osValorosos— falouDiana.—Meupai costumava dizer que

vocêpoderiaconhecerumagrandearmaseelativesseumnomeouinscrição.— Eu vi uma ontem — recordou-se Clary. — Dizia algo como “Sou do

mesmoaçoedamesmatêmperaqueJoyeuseeDurendal.”—Cortana!—OsolhosdeDianaseiluminaram.—AespadadeOgier.Isso

éimpressionante.ÉcomopossuirExcaliburouKusanagi-no-Tsurugi.CortanaéumaespadadosCastairs,creio.EmmaCastairs,agarotaqueestavanareuniãodoConselhoontem,éadonaagora?

Claryassentiu.Dianafezummuxoxo.—Pobrecriança—disseela.—EosBlackthorn também.Perderamtanta

coisanumúnicogolpe...Gostariadepoderfazeralgumacoisaporeles.—Eutambém—emendouClary.Dianadeuumaolhadela, avaliandoClary, e se abaixouatrásdobalcão.Ela

ressurgiuum instantedepois comumaespadamaisoumenosdo tamanhodoantebraçodeClary.

—Oquevocêachadesta?Clary touaespada.Semdúvida,erabela.Aguarda,ocaboeopomoeram

douradoscomranhurasdeobsidiana;alâmina,deumapratatãoescuraqueeraquasepreta.AmentedeClarypercorreurapidamente todosos tiposdearmasqueelaestiveramemorizandonaslições:cimitarras,sabres,espadões,espadas.

—Éumacinquedea?—Elatentouadivinhar.—Éumaespadacurta.Vocêpodequererolharooutrolado—falouDiana,

e ela virou a espada. No lado oposto da lâmina, no sulco central, havia umdesenhodeestrelaspretas.

—Oh.—OcoraçãodeClarybateudolorosamente;eladeuumpassopara

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trásequaseesbarrouemJace,queestavaatrásdela,franzindoatesta.—ÉumaespadadosMorgenstern.

—Sim, é.—OsolhosdeDiana erampenetrantes.—Hámuito tempoosMorgenstern encomendaram duas espadas com Wayland, o ferreiro... umconjunto.—Umagrandeeoutramenor,parapaie lho.ComoMorgensternsigni ca Estrela da Manhã, cada uma tem seu nome em função decaracterísticas da estrela: a menor, esta aqui, chama-se Heosphoros, quesigni ca“quetrazamanhã”,enquantoamaiorsechamaPhaesphorosou“queportaa luz”.Semdúvidavocê jáviuPhaesphoros,poisValentimMorgensterneraodonodela,eagoraéofilhodelequemacarrega.

— Você sabe quem nós somos — disse Jace. Não era uma pergunta. —QueméClary.

— O mundo dos Caçadores de Sombras é pequeno — a rmou Diana, eolhoudeumparaooutro.—EstounoConselho.Viseudepoimento, lhadeValentim.

Claryobservavaaespada,emdúvida.— Eu não entendo — disse. — Valentim nunca teria abandonado uma

espadaMorgenstern.Porquevocêficoucomela?— A esposa dele a vendeu — explicou Diana — para meu pai, que era

proprietáriodalojanaépocadaAscensão.Eradela.Deveriasersuaagora.Claryestremeceu.—Euvidoishomensportaremaversãomaiordestaespada,eodeioosdois.

NãoháMorgensternnestemundoagoraque sedediqueaalgoquenão sejaomal.

Jacefalou:—Hávocê.Elaolhouparaele,massuaexpressãoerailegível.—Dequalquerforma,eunãoteriacomocomprá-la—emendouClary.—É

deouro,edeouronegro,eadamas.Nãotenhodinheiroparaestetipodearma.—Eudouaespadaparavocê—falouDiana.—Temrazãosobreaspessoas

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odiarem osMorgenstern; elas contam histórias sobre como as espadas foramcriadaspara conter amágicamortal e, aomesmo tempo,matarmilhares. Sãoapenashistórias,claro,nenhumaverdadenelas,masaindaassim...nãoéotipode item que eu poderia vender em outro lugar. Ou que necessariamente iriaquerervender.Eladeveriairparaboasmãos.

—Eunãoaquero—murmurouClary.—Sevocêseencolherdiantedela,estarápermitindoquetedomine—falou

Diana.—Fiquecomela,corteagargantadeseuirmãoedevolvaahonraaseusangue.

Eladeslizouaarmapelobalcão,atéClary.Semdizernada,agarotaapegou,a mão envolvendo o pomo, que se acomodou bem entre seus dedos —perfeitamente, como se tivesse sido feita para ela. Mesmo contendo aço emetais preciosos, a espada parecia leve como uma pluma. Clary a ergueu, asestrelas pretas ao longo da lâmina piscando para ela, uma luz como fogocorrendoefaiscandoaolongodoaço.

ClaryergueuoolharparaverDianapegaralgonoar:umbrilhode luzquese transformou num pedaço de papel. Ela o leu, franziu as sobrancelhas depreocupação.

—PeloAnjo—disseela.—OInstitutodeLondresfoiatacado.Claryquasederrubouaespada.OuviuJacearfaraoseulado.—Oquê?—perguntouele.Dianaergueuoolhar.— Está tudo bem — disse. — Aparentemente algum tipo de proteção

especial foipostasobreoInstitutodeLondres,algoqueoConselhoaindanãoconhece direito. Há feridos, mas ninguém foi morto. As forças de Sebastianforam repelidas. Infelizmente, nenhum dos Crepusculares foi capturado oumorto. — Enquanto Diana falava, Clary percebia que a proprietária da lojaestavausandoroupasdelutobrancas.SeráquetinhaperdidoalguémnaguerradeValentim?NosataquesdeSebastianaosInstitutos?

QuantosangueforaderramadopelasmãosdosMorgenstern?— Eu... eu sintomuito.— Clary arfou. Ela conseguia enxergar Sebastian,

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podiavê-loemsuamente,ouniformevermelhoeosanguevermelho,ocabeloprateadoeaespadaprateada.Elacambaleouparatrás.

Subitamente, sentiu alguém tocando seu braço, e percebeu que estavarespirandonoarfrio.Dealgumaforma,estavaemfrenteàlojadearmas,numaruacheiadepessoas,comJaceaoseulado.

—Clary— disse ele.—Está tudo bem. Tudo está bem.OsCaçadores deLondres,todosescaparam.

—Diana falouquehá feridos— repetiuClary.—Mais sanguederramadoporcausadosMorgenstern.

Elabaixouosolhosparaaespada,aqualsuamãodireitaaindaagarrava;osdedospálidosnocabo.

—Vocênãoprecisaficarcomaespada.—Não.Dianatinharazão.TermedodetudoqueédosMorgensterndá...dá

aSebastianpodersobremim.Eéexatamenteissoqueelequer.—Concordo—disseJace.—Poressarazãoeutrouxeisto.Ele lhe entregou uma bainha de couro preto, ornada com um desenho de

estrelasprateadas.— Você não pode andar para cima e para baixo com uma arma

desembainhada—emendouele.—Querodizer,vocêpode,maséprovávelqueteolhemdemaneiraestranha.

Clarypegouabainha,cobriuaespada,aen ounocintoe fechouocasacoporcima.

—Melhor?Eleafastouumamechadecabeloruivodorostodela.— É sua primeira arma de verdade, que pertence a você. O nome

Morgenstern não é amaldiçoado, Clary. É um sobrenome de Caçadores deSombrasantigoegloriosoqueremontaacentenasdeanos.Aestreladamanhã.

—Aestreladamanhãnãoéumaestrela—a rmouClary,mal-humorada.—Éumplaneta.Aprendiistonaauladeastronomia.

—Lamentavelmente,aeducaçãomundanaéprosaica.Olhe—refutouele,eapontouparacima.Claryolhou,masnãoparaocéu.Elaolhouparaele,parao

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solnocabeloclaro,paraacurvaturadabocaquandoelesorria.—Muitoantesdealguémsabersobreplanetas,elessabiamquehaviafendasnotecidodanoite.As estrelas. E sabiam que havia uma que se erguia a leste, ao nascer, e achamaramdeestreladamanhã,aquelaquetraziaaluz,omensageirodaaurora.Étãoruimassim?Trazerluzparaomundo?

Impulsivamente,ClaryseesticouebeijouabochechadeJace.—Certo,estábem—ponderouela.—Entãoissofoimaispoéticoqueaaula

deastronomia.Eleabaixouamãoesorriuparaela.— Bom — falou ele. — Vamos fazer outra coisa poética agora. Venha.

Querotemostrarumacoisa.

DedosfrioscontraastêmporasdeSimonoacordaram.—Abraosolhos,Diurno—ordenouumavozimpaciente.—Nãotemoso

diatodo.Simonsentou-secomtalrapidezqueapessoadiantedeledeuumpulopara

trás comum sibilo. Simonobservou. Ele ainda estava cercadopelas barras dajauladeMaureen,aindaestavadentrodoquartodecadentenoHotelDumort.Dooutro lado, estavaRaphael.Elevestiaumacamisabrancaabotoadae calçajeans, o brilho do ouro visível no pescoço. Ainda assim... Simon só o viraarrumadoe coma roupaengomada, como se estivesse indoauma reuniãodenegócios. Agora havia gel no cabelo, a camisa branca estava rasgada emanchadadeterra.

—Bomdia,Diurno—disseRaphael.—O quevocê está fazendo aqui?—perguntouSimon, sem rodeios.Ele se

sentiasujo,enjoadoezangado.Eaindavestiaacamisacombabados.—Jáédemanhã?

— Você dormiu, agora está acordado... é de manhã. — Raphael pareceuobscenamentealegre.—Quantoaoqueestoufazendoaqui:estouaquiporsuacausa,óbvio.

Simonsereclinoucontraasbarrasdajaula.

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—Oquevocêquerdizer?E,porfalarnisso,comovocêentrouaqui?RaphaelolhouparaSimoncomexpressãodepena.—Ajaulaabredoladodefora.Foifácilentrar.—Entãoéapenassolidãoeumdesejopelacompanhiadeoutrogarotoouo

quê?—QuissaberSimon.—Daúltimavezque tevi,vocêmepediuparaserseu guarda-costas e, quando eu disse que não, deixou claro que se um dia euperdesseaMarcadeCaim,vocêmemataria.

Raphaelsorriuparaele.—Entãoestaéaparteemquevocêmemata?—perguntouSimon.—Devo

avisar,nãoétãosutilassim.Provavelmentevocêvaiserpego.—Sim—re etiuRaphael.—Maureen cariamuitoinfelizcomsuamorte.

Umavezmencioneiameraideiadevendervocêparafeiticeirosinescrupulosos,eelanãoachougraça.Foilamentável.Porcausadospoderesdecura,osanguedos Diurnos vale muito. — Ele suspirou. — Teria sido uma tremendaoportunidade.Infelizmente,Maureenétolademaisparaverascoisassobmeupontodevista.Elapreferemantervocêvestidocomoumaboneca.Masdaí,elaélouca.

—Vocêpodefalaressetipodecoisadasuarainhavampira?—Houve um tempo em que eu quis ver vocêmorto, Diurno— retrucou

Raphael, em tom casual, como se estivesse contando a Simon que cogitaracomprarumacaixadechocolatesparaeleemdeterminadaépoca.—Mastenhouminimigomaior.Vocêeeu,nósestamosdomesmolado.

AsbarrasdajaulapressionavamascostasdeSimondemododesconfortável.Elemudoudeposição.

—Maureen?—perguntou.—Vocêsemprequisserolíderdosvampiros,eagoraelaassumiuseulugar.

Raphaeltorceuolábioemumrosnado.—Vocêachaqueissoéapenasumjogodepoder?—disseele.—Vocênão

entende.AntesdeMaureenserTransformada,ela foiaterrorizadae torturadaatéopontoda loucura.Quando se ergueu, saiudo caixão comas garras.Nãohavianinguémparaensiná-la.Ninguémparadaroprimeirosangue.Comoeu

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fizporvocê.SimonencarouRaphael.Subitamente,eleserecordoudocemitério,desair

do solo para o frio do ar e da terra, e da fome, da fome insuportável, e deRaphael lhe jogando uma bolsa cheia de sangue. Ele nunca pensara naquilocomoumfavorouumserviço,mas teriadilaceradoqualquercriaturavivaquetivesseencontradosenão fosseporsuaprimeirarefeição.ElequasedilaceraraClary.ForaRaphaelquemimpediraissodeacontecer.

Fora Raphael quem levara Simon do Dumort ao Instituto; que o deitara,sangrando,nosdegrausdafrentequandoelesnãoconseguirammaisavançar;eque explicara aos amigos de Simon o que havia acontecido. Simon supôs queRaphael poderia ter tentado esconder isso, poderia ter mentido para osNephilim,maseleconfessaraeassumiraasconsequências.

Raphaelnunca foraparticularmentebompara Simon,mas, à suamaneira,elepossuíaumtipoestranhodehonra.

—Eu criei você— a rmouRaphael.—Meu sangue em suas veias fez devocêumvampiro.

—Vocêsempredissequeeueraumvampiroterrível—observouSimon.—Nãoesperosuagratidão—disseRaphael.—Vocênuncaquisseroqueé.

NemMaureen, imagina-se.Ela cou louca comaTransformaçãoe aindaestálouca. Ela mata sem pensar. Não pensa nos perigos de nos expor aomundohumano pormeio de umamatança descuidada. Ela não pensa que, talvez, sevampirosmataremsemnecessidadeou consideração,umdianãohaverámaiscomida.

—Sereshumanos—corrigiuSimon.—Nãohaveriamaissereshumanos.—Vocêéumvampiroterrível—disseRaphael.—Masestamosladoalado

nisso.Vocêquerprotegeroshumanos.Euqueroprotegerosvampiros.Nossoobjetivoéumsó,éomesmo.

—EntãomateMaureen—disseSimon.—MateMaureeneassumaoclã.— Não posso. — Raphael assumiu uma expressão sombria. — As outras

crianças do clã a adoram. Elas não enxergam a longa estrada, a escuridão no

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horizonte. Veem apenas a liberdade paramatar e consumir de acordo com aprópriavontade.NãosesubmetemaosAcordos,nãoseguemumaLeiexterna.Maureendeuaelastodaaliberdadedomundo,eelasvãosedestruircomisso.—Otomeraamargo.

— Você realmente se preocupa com o que acontece ao clã — a rmouSimon,surpreso.—Vocêdariaumótimolíder.

Raphaeloolhoucomexpressãosevera.— Embora eu não saiba como você caria com uma tiara de ossos —

emendou Simon. — Olhe, eu entendo o que está dizendo, mas como possoajudar?Casonãoperceba,estoupresonumajaula.Semelibertar,sereipego.Eseeusair,Maureenvaimeencontrar.

—NãoemAlicante—disseRaphael.—Alicante?— Simon encarou o outro.—Você quer dizer... a capital de

Idris,Alicante?—Vocênãoémuitointeligente—respondeu.—Sim,édessaAlicanteque

estou falando.—Ao ver a expressão confusa de Simon,Raphael esboçouumsorriso. — Há um representante dos vampiros no Conselho, AnselmNightshade.Um tipo recluso,o líderdo clãdeLosAngeles,mas éumsujeitoqueconhececertos...amigosmeus.Feiticeiros.

— Magnus? — falou Simon, surpreso. Raphael e Magnus eram imortais,moravamemNovaYorkeeramrepresentantesrazoavelmente importantesdesuas divisões do Submundo. Ainda assim, ele nunca havia pensado em comoelespoderiamseconhecer,ounoquãobemelespoderiamseconhecer.

RaphaelignorouaperguntadeSimon.—Nightshade concordouemmeenviar como representante em seu lugar,

emboraMaureen não saiba disso. Portanto, irei a Alicante e me sentarei noConselhoparaagrandereunião,masexijoquevocêvácomigo.

—Porquê?—OsCaçadores de Sombras não con am emmim—disseRaphael, sem

rodeios.—Mascon amemvocê.Sobretudo,osNephilimdeNovaYork.Olhepara você. Usa o colar de Isabelle Lightwood. Eles sabem que você estámais

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paraumCaçadordeSombrasdoqueparaumaCriançaNoturna.VãoacreditarnoquevocêdizselhescontarqueMaureenviolouosAcordosedeveserdetida.

—Muitobem—disseSimon.—Elescon amemmim.—Raphaelo toucomolhos arregalados, sinceros.—E isso não temnada a ver como fato devocê não querer que o clã descubra que transformou Maureen, porque elesgostamdelaeentãosevoltariamcontravocêfeitoanimais.

—Vocêconheceos lhosdo Inquisidor—disseele.—Pode testemunhardiretamenteparaele.

— Claro — emendou Simon. — Ninguém no clã vai se importar se eudedurar a rainha deles e for morto. Tenho certeza de que minha vida seráfantásticaquandoeuvoltar.

Raphaeldeudeombros.—Eu tenho seguidoresaqui— informouele.—Alguémmedeixouentrar

neste cômodo. Assim que cuidarem de Maureen, é provável que possamosvoltaraNovaYorkcompoucasconsequênciasnegativas.

—Poucasconsequênciasnegativas.—Simonfezummuxoxo.—Vocêmetranquiliza.

—Dequalquerforma,vocêestáemperigoaqui—disseRaphael.—Senãotivesse seu protetor lobisomem ou seus Caçadores de Sombras, já teriaencontrado amorte eternamuitas vezes. Se não quiser ir comigo a Alicante,carei feliz em deixá-lo aqui nesta jaula, e você pode ser o brinquedinho de

Maureen.OupodesejuntaraosseusamigosnaCidadedeVidro.CatarinaLossestá esperandono andar de baixo para criar umPortal para nós.A escolha ésua.

Raphael reclinou-se, com uma das pernas cruzadas e a mão pendendofrouxanojoelho,comoseeleestivesserelaxandonoparque.Atrásdele,atravésdas barras da jaula, Simon via o vulto de outro vampiro de pé à porta, umagarotadecabelosnegros,comos traçosàsombra.Agarotaque tinhadeixadoRaphael entrar, imaginou Simon. Ele pensou em Jordan. Seu protetorlobisomem.Masisto,estecon itodeclãselealdadese,acimadetudo,odesejohomicidadeMaureenporsangueemorte,eramuitacoisaparaJordansuportar.

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—Nãotenhomuitaopção,tenho?—perguntouSimon.Raphaelsorriu.—Não,Diurno.Nãotemmuitaopção.

Da última vez que Clary havia estado no Salão dos Acordos, ele quase foradestruído—otetodecristalestilhaçado,osoalhorachado,afontecentralseca.

Tinha que admitir que os Caçadores de Sombras haviam feito um serviçoimpressionantena reconstruçãodo lugardesde então.O telhado voltara a serumapeçaúnica, opisodemármore estava limpoe liso, com osdeouro.Osarcos erguiam-se acimadas cabeças, a luz que se in ltrava através do telhadoiluminavaossímbolosentalhadosali.Afontecentral,comaestátuadesereia,reluziasobosoldefinaldetarde,transformandoaáguaembronze.

—Quando você ganha a primeira arma de verdade, a tradiçãomanda viraquieabençoaralâminanaságuasdafonte—disseJace.—OsCaçadoresdeSombrastêmfeitoissohágerações.—Eledeuumpassoparaafrente,sobaluzdouradasombria,atéabeiradafonte.Claryse lembroudossonhosquetinha,dançando com ele ali. Ele olhou para trás e fez um gesto para que ela seaproximasse.—Venhacá.

Clary caminhou e parou ao lado dele.A estátua central na fonte, a sereia,tinhaescamassobrepostas,debronzeecobre,esverdeadascomoazinhavre.Asereia segurava um cântaro do qual jorrava água, e o rosto estava congeladonumsorrisodeguerreira.

—Ponhaalâminanafonteerepitadepoisdemim—pediuJace.—Queaságuas desta fonte puri quem esta lâmina. Consagrada apenas ao meu uso.Permita-me usá-la somente em auxílio de causas justas. Permita-me brandi-lacomvirtude.Deixe-meguiá-laparaserumaguerreiravaliosadeIdris.Equeelameprotejaparaqueeupossaretornaraestafonteemaisumavezabençoarseumetal.EmnomedeRaziel.

Clarydeslizoua lâminadentrodaáguae repetiu aspalavrasdepoisdele.Aágua ondulou e reluziu ao redor da espada, e ela então se recordou de outrafonte,emoutrolugar,edeSebastiansentadoatrásdela,olhandoparaaimagem

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distorcidadoprópriorosto.Vocêtemumcoraçãosombrio,filhadeValentim.—Ótimo— disse Jace. Clary sentiu a mão dele em seu pulso; a água da

fonte espirrou, deixando sua pele fria e úmida onde ele a havia tocado. Ele aincitouarecuaramãocomaespadaeasoltouparaqueClarypudesseergueralâmina. O sol estava aindamais baixo agora, porém havia luz su ciente paralançarcentelhasnas estrelasdeobsidianaao longodo sulcocentral.—Agoradêonomeàespada.

—Heosphoros—falou,deslizando-adevoltanabainhaeprendendo-anocinto.—Aquetrazaaurora.

Eleabafouumarisada,eseinclinouparalhedarumbeijodelicadonocantodaboca.

—Eudeverialevarvocêparacasa...—Eseaprumou.—Vocêtempensadonele—disseela.— Talvez você devesse ser mais especí ca — a rmou Jace, embora

suspeitassesaberdoqueelaestavafalando.—Sebastian—emendouela.—Querodizer,maisqueonormal.Ealguma

coisaestáincomodandovocê.Oqueé?— O que não é? — Ele começou a se afastar dela, cruzando o piso de

mármore até as grandes portas duplas do Salão, que se abriram. Ela oacompanhou e saiu para o amplo patamar acima da escadaria que conduzia àPraçadoAnjo.Océuescureceuparaocobalto,acordoespelhodomar.

—Não—pediuClary.—Nãoseretraia.—Eunãoiafazerisso.—Elesoltouarespiraçãocomforça.—Ésóquenão

há nada de novo. Sim, eu penso nele. Penso nele o tempo todo. Queria nãopensar. Não sei explicar, não para outra pessoa, além de você, porque vocêestavalá.Eracomoseeufosseele,eagora,quandovocêmecontacoisascomoo fato de ele ter deixado aquela caixa na casa de Amatis, sei exatamente oporquê.Eodeiosaber.

—Jace...—Nãodigaquenãosoucomoele—pediuJace.—Eusou.Fuicriadopelo

mesmo pai... nós dois temos as vantagens da educaçãoespecial de Valentim.

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Falamososmesmosidiomas.Aprendemosomesmoestilodecombate.Elenosensinou os mesmos princípios. Tínhamos os mesmos animais de estimação.Semdúvida,issomudou;tudomudouquandocompletei10anos,masabasedainfância cacomapessoa.Algumasvezes,eumeperguntoseissotudoéminhaculpa.

AquilotomouClarydesobressalto.—Vocênãopodeestar falando sério.Nadadoquevocê fezquandoestava

comSebastianfoiopçãosua...—Eugostava—retrucouJace,eouviu-seumtomroucoemsuavoz,como

seofatooarranhassecomoumalixa.—Sebastianébrilhante,masháburacosnopensamentodele, locaisqueeledesconhece...euoajudeicomisso.Nósnossentávamos ali e conversávamos sobre incendiar e destruir o mundo, e eraemocionante.Euqueriaisso.Varrertodasascoisas,recomeçar,umholocaustodefogoesangue,edepoisumacidadereluzentesobreacolina.

— Ele fez você pensar que queria essas coisas — disse Clary, mas a voztremiaumpouco.Vocêtemumcoraçãosombrio, lhadeValentim. —Ele fezvocêofereceraeleoqueelequeria.

— Eu gostei de oferecer — a rmou Jace. — Por que você acha que euconseguia pensar em meios de quebrar e destruir com tanta facilidade, masagora não consigo pensar num meio de consertar? Quero dizer, para quêexatamenteissomequali ca?Umtrabalhonoexércitodoinferno?Eupoderiasergeneral,comoAsmodeusouSamael.

—Jace...—Antigamente eramos servosmaisbrilhantesdeDeus—emendou Jace.

—É issoqueacontecequandovocêdecai.Tudoqueerabrilhanteemvocê setorna escuridão. Pormais brilhante que tenha sido, você se tornamau.É umlongocaminhoparadecair.

—Vocênãodecaiu.—Aindanão—retrucouele,eentãoocéuexplodiuemfaíscasvermelhase

douradas. Por um momento vertiginoso, Clary recordou-se dos fogos de

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artifício quepintaramo céunanoite emque eles comemoraramnaPraça doAnjo.Eladeuumpassoparatrásetentouobterumavisãomelhor.

Mas agora não era uma comemoração. Quando os olhos de Clary seadaptaram ao brilho, ela notou que a luz vinha das torres demoníacas. Cadauma se acendera como uma tocha, tons de vermelho e dourado amejantecontraocéu.

Jaceempalidecera.—As luzesdebatalha— falou.—Temosque irparaoGard.—Ogaroto

segurouamãodeClaryecomeçouapuxá-ladegrausabaixoClaryprotestou.—Masminhamãe.Isabelle,Alec...— Todos estão a caminho do Gard também.— Eles chegaram à base da

escada.APraçadoAnjoestava candomovimentada,compessoasabrindoasportasdascasascomviolênciaeesvaziandoasruas,todascorrendoemdireçãoàtrilhailuminadaquesubiapelaencostadacolinaatéotopodoGard.—Éistoque o sinal vermelho-e-dourado signi ca: “Ir até o Gard.” É isto que elesesperamque a gente faça...—Ele sedesvioudeumCaçadorde Sombrasquepassou correndo por eles enquanto amarrava uma braçadeira. — O que estáacontecendo?—gritouJaceatrásdele.—Porqueoalarme?

—Houve outro ataque!— berrou um sujeito idoso vestindo um uniformepuído.

—OutroInstituto?—gritouClary.Elesvoltaramaumaruacomlojasdosdoislados,daqualelaselembravade

tervisitadocomLukeantes:elescorriamcolinaacima,maselanãoestavasemfôlego.Emsilêncio,agradeceuosúltimosmesesdetreinamento.

Ohomemcomabraçadeiradeumeia-voltaecorreu,decostas,colinaacima.—Nãosabemosainda.Oataqueestáemandamento.Elegiroueredobrouavelocidade,disparandopelaruaemcurvaemdireção

ao mdatrilhadoGard.Claryseconcentravaemnãoesbarrarnaspessoasnamultidão.Eraumahordacorrendoeempurrando.ElacontinuavasegurandoamãodeJaceenquantocorriam,anovaespadabatendocontraalateralexterna

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daperna,comosearecordandodequeestavaali—alieprontaparaserusada.A trilha que conduzia aoGard era íngreme, de terra batida. Clary tentava

correr com cuidado por causa das botas e do jeans que vestia, a jaqueta douniformecomozíperfechadoatéemcima,masnãoeratãobomquantoestarcom o uniforme completo. De algummodo, uma pedrinha tinha entrado nabota esquerda e estava espetando a sola do pé quando chegaram ao portãoprincipaldoGardediminuíramavelocidade,observando.

Os portões foram abertos com violência. Lá dentro havia umpátio amplo,que cavacobertodegramanoverão,emboraagoraestivessenu,cercadopelosmuros internos do Gard. Contra um dosmuros, via-se um imenso quadradogirando,tomadoporventoevazio.

Um Portal. Dentro dele, Clary pensou ter visto traços de preto, verde ebrancoincandescente,eatémesmoumtrechodecéusalpicadodeestrelas...

Robert Lightwood agigantou-se diante deles e bloqueou o caminho; Jacequase colidiu contra ele e soltou amãodeClary, equilibrando-se.OventodoPortal era frio e poderoso, e atravessava o tecido da jaqueta do uniforme deClary,agitandoocabelodela.

—Oqueestáacontecendo?—perguntouJacesemrodeios.—IstotemavercomoataquedeLondres?Penseiquetivessesidorepelido.

Robertbalançouacabeça,comexpressãosombria.—ParecequeSebastianfracassouemLondresevoltouaatençãoparaoutro

lugar.—Onde...?—começouClary.—ACidadelaAdamantfoisitiada!—EraavozdeJiaPenhallow,erguendo-

seacimadosgritosdamultidão.Estavadepé,próximaaoPortal;omovimentodo ar dentro e fora agitava sua capa como as asas de um melro imenso. —Vamos ajudar as Irmãs de Ferro!Caçadores de Sombras que estão armados eprontos,apresentem-seamim!

O pátio estava cheio de Nephilim, embora não tantos quanto Claryimaginara de início. Parecia uma torrente enquanto eles disparavam colinaacimaatéoGard,masagoraelaviaqueestavamaisparaumgrupodequarenta

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ou cinquenta guerreiros.Alguns usavamuniforme, outros estavam em roupascomuns. Nem todos estavam armados. Os Nephilim que serviam o Gardcorriamdeumladoparaooutro,atéaportaabertadoarsenal,acrescentandoarmasaumapilhadeespadas, lâminassera m,machadoseclavasempilhadosaoladodoPortal.

— Vamos atravessar — a rmou Jace para Robert. Com o uniformecompletoevestidocomocinzadoInquisidor,RobertLightwoodfaziaClaryselembrardoladoíngremeerochosodeumpenhasco:irregulareimóvel.

Robertbalançouacabeça.—Nãohánecessidade—disse ele.—Sebastian tentouumataque furtivo.

Ele tinha apenas vinte ou trinta guerreiros Crepusculares consigo. Temosguerreirossuficientesparaoserviço,semmandarmosnossascrianças.

—Eunão souumacriança —falouJace ferozmente.ClaryseperguntouoqueRobertpensaraaoolharparaogarotoqueadotara; seRobertenxergaraopai de Jace no rosto do garoto, ou se ainda buscava vestígios ausentes deMichael Wayland. Jace examinou a expressão de Robert Lightwood, adescon ança obscurecendo os olhos dourados. — O que você está fazendo?Temalgumacoisaquenãoquerqueeusaiba.

O rosto deRobert adquiriu linhas rígidas.Naquelemomento, umamulherlouradeuniformepassouporClary,falando,agitada,comseucompanheiro:“...dissequepodemostentarcapturarosCrepuscularesetrazê-losdevoltaparacá.Versepodemsercurados.OquesignificaquetalvezpossamsalvarJason.”

ClaryolhouseveramenteparaRobert.—Vocênão vai deixar.Você não vaideixarqueaspessoasque tiveramos

parentes levados nos ataques atravessem. Você não vai dizer que osCrepuscularespodemsersalvos.

Robertolhouparaelacomexpressãosombria.—Nãosabemossenãopodem.—Nóssabemos—falouClary.—Elesnãopodemsersalvos!Nãosãoquem

eram!Não sãohumanos.Mas quando estes soldados aqui viremos rostos daspessoasqueconhecem,elesvãohesitar,vãoquererquenãosejaverdade...

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— E serãomassacrados— disse Jace, com pesar.— Robert, você precisaimpedirisso.

Robertbalançavaacabeça.—EstaéavontadedaClave.Éissoqueelesqueremquesejafeito.—Entãoporqueenviá-los?—perguntouJace.—Porquesimplesmentenão

cam aqui e apunhalam cinquenta indivíduos do próprio povo? Por que nãopouparotempo?

—Nãoousefazerpiada—rosnouRobert.—Eunãoestavafazendopiada...—EnãoousemedizerquecinquentaNephilimnãosãocapazesdederrotar

vinteguerreirosCrepusculares.OsCaçadoresdeSombrascomeçavamapassarpeloPortal,guiadosporJia.

Clary sentiuumapontadade pânicodescer por sua espinha. Jia só permitia apassagemdaquelesqueusavamouniformecompleto,masalgunspoucoserammuito jovens, ou muito idosos, e muitos tinham ido desarmados e estavamsimplesmente pegando armas da pilha fornecida pelo arsenal, antes deatravessar.

—Sebastianesperaexatamenteestareação—a rmouJace,desesperado.—Seelefoicomapenasvinteguerreiros,entãoháumarazão,eeleteráreforços...

—Elenãopodeterreforços!—Robertergueuavoz.—VocênãopodeabrirumPortalparaaCidadelaAdamant,amenosqueasIrmãsdeFerropermitam.Elas estão permitindo que nós façamos isso, mas Sebastian deve ter ido porterra.SebastiannãoimaginaqueestejamosvigiandoaCidadelaporcausadele.Sabequetemosnoçãodequenãopodeserrastreado;semdúvida,pensouqueestivéssemosvigiandoapenasosInstitutos.Issoéumpresente...

—Sebastiannãodápresentes!—gritouJace.—Vocêsestãocegos!—Nãoestamoscegos!—rugiuRobert.—Vocêpodeestarcommedodele,

Jace,mas ele é só umgaroto; ele não é amentemilitarmais brilhante que jáexistiu!EleteenfrentouemBurreneperdeu!

Robertdeumeia-voltaeseafastou,caminhandonadireçãodeJia.EracomoseJacetivessesidoestapeado.Claryduvidavaquealguémjáotivesseacusadode

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sentirmedoemalgumaoutraocasião.Ele se virou e olhou para ela.Omovimento deCaçadores de Sombras em

direção ao Portal tinha diminuído; Jia acenava e dispensava as pessoas. JacetocouaespadacurtanoquadrildeClary.

—Euvouatravessar—informouele.—Elesnãovãodeixar—disseClary.—Elesnãoprecisamdeixar.OrostodeJacepareciaentalhadoemmármoresobaquelasluzesvermelhas-

e-douradas das torres. Atrás dele, Clary via outros Caçadores de Sombrassubindo a colina. Conversavam entre si como se fosse um combate habitual,umasituaçãoquepoderiaserresolvidacomoenviodeunscinquentaNephilimao localdoataque.ElesnãotinhamestadoemBurren.Nãotinhamvisto.Elesnãosabiam.OsolhosdeClaryencontraramosdeJace.

Elanotava as linhasde tensãono rostodele, aprofundandoos ângulos dasmaçãsdorosto,enrijecendooqueixo.

— A pergunta é: há alguma chance de você concordar em car aqui? —perguntouele.

—Vocêsabequenão—disseela.Jaceinspiroudemaneiraexasperada.—Muito bem.Clary, isso pode ser perigoso, perigoso de verdade...— Ela

ouvia as pessoasmurmurando ao redor, vozes agitadas, erguendo-se na noiteem nuvens de ar exalado, pessoas fofocando que a Consulesa e o Conselhohaviam se encontrado para discutir o ataque a Londres nomomento em queSebastian subitamente passou a existir no mapa de rastreamento, que elesomenteestiveraalihaviapoucotempoecomalgunsreforços,queelestinhamuma chance real de impedi-lo, que ele fora repelido em Londres e que serianovamente...

—Euteamo—disseClary.—Masnãotentemeimpedir.Jaceesticouamãoepegouadela.—Muitobem—falou.—Entãonóscorremosjuntos.EmdireçãoaoPortal.

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—Nóscorremos—concordouela,efoioquefizeram.

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7ConflitoNoturno

Aplanícievulcânicaseesparramava feitoumapaisagemlunarpálidadiantedeJace, se estendendo até uma linha de montanhas ao longe, negras contra ohorizonte.Anevebrancasalpicavaosolo:densaemalgunslugares;emoutros,gelo no e rme, juntamente aos galhos desfolhados de cercas-vivas emusgocongelado.

Aluaestavaatrásdenuvens,océuescurodeveludopintadinhocomestrelasaquieali,eobscurecidoporumacortinadenuvens.Aluzardiaaoredordeles,porém,vindadaslâminassera m—e,Jacecomeçavaaenxergar,conformeosolhosseadaptavam,aluzdoquepareciaumafogueiraardendoàdistância.

OPortalhaviadepositadoJaceeClaryaalgunspoucosmetrosumdooutro,naneve.Estavamladoaladoagora,Clarymuitosilenciosa,comocabelocordecobresalpicadode ocosbrancos.Aoredor,gritoseberros,osomdaslâminasserafimsendoacesas,omurmúriodosnomesdeanjos.

— Fique perto de mim — murmurou Jace, enquanto ele e Clary seaproximavamdotopodaserra.ElepegaraumaespadadapilhapertodoPortalpouco antes de pular, o grito desesperado de Jia alcançando-os através dosventosqueguinchavam.JacemeioqueesperaraqueelaouRobertosseguissem,mas, em vez disso, o Portal se fechara imediatamente atrás deles, como umaportabatendo.

A espada pouco familiar pesava nas mãos dele. Jace preferia usar o braçoesquerdo,masopunhodaespadaeraparadestros.Aarmaestavaamassadadoslados, como se já tivesse presenciado algumas batalhas. Ele queria estar comumadasprópriasarmasnamão...

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Subitamente tudo apareceu, erguendo-se diante deles como um peixerompendoasuperfíciedaáguacomumbrilhoprateadorepentino.Jacesótinhavisto a Cidadela Adamant em fotogra as até então. Feita domesmomaterialque as lâminas sera m, a Cidadela reluzia contra o céu noturno como umaestrela; era isso que Jace confundira com a luz de uma fogueira. Um murocircular deadamas a envolvia, sem aberturas, exceto por um único portão,formado por duas lâminas imensas cravadas no solo, formando um ângulo,comoumpardetesourasaberto.

AoredordaCidadela,osolovulcânicoseestendia,pretoebrancocomoumtabuleiro de xadrez—metade rocha vulcânica emetade neve. Jace sentiu ospelosdanucasearrepiando.EracomoestardevoltaaoBurren,emboraeleserecordasse daquilo tal como se fosse um sonho: o Nephilim maligno deSebastian como uniforme vermelho, e oNephilimdaClave de preto, lâminacontra lâmina, as faíscas da batalha se elevando na noite, e então o fogo daGloriosa,varrendotudoqueexistia.

A terra do Burren costumava ser escura, mas agora os guerreiros deSebastianestavamparadoscomogotasdesanguecontraosolobranco.Estavamaguardando,overmelhosobaluzdasestrelas,aslâminasdastrevasnasmãos.ElesestavamentreosNephilimquetinhampassadopeloPortaleosportõesdaCidadelaAdamant. Embora os Crepusculares estivessem ao longe, e Jace nãoconseguissevernenhumdosrostoscomclareza,dealgumaformaelesentiaquesorriam.

EsentiatambémainquietaçãonosNephilimemtornodele,osCaçadoresdeSombras que tinha vindo tão con antes pelo Portal, tão dispostos para abatalha.EstavamparadosebaixaramosolhosdiantedosCrepusculares,eJacepercebiaahesitaçãoemsuasbravatas.Finalmente(tardedemais),elessentirama estranheza, a diferença dosCrepusculares. Aqueles não eramCaçadores deSombras que tinham perdido o rumo temporariamente. Não eram, de modoalgum,CaçadoresdeSombras.

—Ondeeleestá?—sussurrouClary.Arespiraçãoestavaesbranquiçadaporcausadofrio.—OndeestáSebastian?

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Jace balançou a cabeça; muitos dos Caçadores de Sombras tinham oscapuzes levantados, e seus rostos estavam invisíveis. Sebastian poderia serqualquerumdeles.

—EasIrmãsdeFerro?—Claryexaminouaplaníciecomoolhar.Aúnicabrancuraeraadaneve.NãohaviasinaldasIrmãsemsuasvestes,familiaresporcausadasmuitasilustraçõesdoCódex.

—Elas vão car dentro daCidadela— disse Jace.—Precisam proteger oqueestáemseuinterior.Oarsenal.Presumidamente,épor issoqueSebastianestá aqui... pelas armas. As Irmãs terão cercado o arsenal interior com ospróprios corpos. Se ele conseguir cruzar os portões, ou se os Crepuscularesconseguirem,asIrmãsdestruirãoaCidadelaantesdedeixá-los carcomela.—Avozdeleerasombria.

—MaseseSebastiansouberdisso,seelesouberoqueasIrmãsfarão...?—começouClary.

Umgritocortouanoitecomouma faca. Jace se lançouparaa frenteantesdeperceberqueogritovinhadedetrásdele. JacegiroueviuumhomemcomuniformepuídocaircomalâminadeumCaçadordeSombrasmalignoen adaemseupeito.EraosujeitoquehaviagritadoparaClaryemAlicante,antesdechegaremaoGard.

O Caçador de Sombras maligno girou e sorriu. Ouviu-se um grito dosNephilim,eamulherlouraqueClarytinhavistofalandonoGardcomagitaçãodeuumpassoàfrente.

—Jason!—gritouela,eClarypercebeuqueamulherfalavacomoguerreiroCrepuscular,umhomemrobustocomcabelolouroigualaodela.—Jason,porfavor. — A voz dela falhava quando avançou e esticou a mão para oCrepuscular, que desembainhou outra espada do cinto e olhou para ela comexpectativa.

—Porfavor,não—pediuClary.—Não...nãoseaproximedele...Mas a mulher loura estava a apenas um passo do Caçador de Sombras

maligno.— Jason—murmurou ela.—Você émeu irmão.Você é um de nós, um

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Nephilim.Nãotemquefazer isso...Sebastiannãopodeteobrigar.Porfavor...—Elaolhouao redor,desesperada.—Venhaconosco.Eles estãoprocurandoumacura;vamoscurarvocê...

Jasonriu.Alâminabrilhou,comumgolpelateral.AcabeçadaCaçadoradeSombras louracaiu.O sanguecomeçoua jorrar, escurocontraanevebranca,quando o corpo da mulher desabou no chão. Alguém começou a gritar semparar,histericamente,eentãooutrapessoadeuumberroegesticuloudemodoselvagematrásdeles.

Jace ergueu os olhos e viu uma leira de Crepusculares avançando, todosvindosdetrás,dadireçãodoPortalfechado.Aslâminasbrilhavamsobaluzdalua.OsNephilimcomeçaramacambalearpelaserra,porémnãoeramaisumacaminhadaordenada—haviapânicoentreeles;Jacepodiasentir,comoogostodesangueaovento.

—Marteloebigorna!—gritouele,torcendoparaqueentendessem.PegouamãodeClaryeaempurrouparatrás,paralongedocorpodecapitado.—Éumaarmadilha—gritouparaela,acimadobarulhodaluta.—Váparaomuro,paraalgumlugarondevocêpossafazerumPortal!Tireagentedaqui!

Claryarregalouosolhosverdes.Jacequeriaagarrá-la,beijá-la,grudarnelaeprotegê-la,masocombatentenelesabiaqueahaviatrazidoparaestavida.Queaencorajara.Treinara.Quandoviuacompreensãonosolhosdela,eleassentiueasoltou.

Claryseafastoudamãodele,passandoporumguerreiroCrepuscularquesepreparava para enfrentar um Irmão do Silêncio, o qual brandia umbastão naensanguentada túnica de pergaminho. As botas dela escorregavam na neveenquantoelacorriaparaaCidadela.Amultidãoaengoliu,atéqueumguerreiroCrepusculardesembainhouaarmaeatacouJace.

Como todos os Caçadores de Sombras Crepusculares, seus movimentoseramrápidosecegantes,quaseselvagens.Quandoeleergueuaespada,pareceuriscara lua.Eo sanguede Jace tambémferveu,disparandocomo fogoatravésdas veias conforme sua consciência se estreitava: não havia mais nada no

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mundo, apenas aquele momento, apenas aquele arma na mão. Ele pulou nadireçãodoCaçadordeSombrasmaligno,aespadaesticada.

Claryinclinou-separapegarHeosphoros,bemondeelahaviacaídonaneve.Alâminaestavasujadesangue,osanguedeumCaçadordeSombrasmalignoquemesmo agora estava correndo para longe dela, lançando-se na batalha que seagitavanaplanície.

Isso tinhaacontecidomeiadúziadevezes.Clary atacava, tentandochamarum dos Crepusculares para a luta, e eles largavam as armas, recuavam, seafastavamcomoseelafosseumfantasma,esaíamemdisparada.Nasprimeirasduasvezes,Clary seperguntou se eles tinhammedodeHeosphoros, confusospor causa de uma espada que tanto se assemelhava à de Sebastian. Elasuspeitava de outra coisa agora. Provavelmente, Sebastian dissera para nãotocaremnela,nemamachucarem,eelesestavamobedecendo.

Isso a fazia querer gritar. Ela sabia que deveria ir atrás deles quandocorressem, acabar com eles com uma lâmina nas costas ou um corte nopescoço,masnãoconseguiafazê-lo.ElesaindapareciamNephilim,humanososu ciente.O sangue corria vermelho sobre a neve. Ela ainda achava covardiaatacaralguémquenãopoderiacontra-atacar.

O gelo foi esmagado atrás dela, e Clary girou o corpo, a espada emprontidão.Tudo aconteceu rapidamente: a percepçãode quehavia duas vezesmaisCrepuscularesdoqueeles tinhamimaginado,queagoraoscercavamdosdois lados, o apelo de Jace para que ela criasse umPortal.AgoraClary estavaabrindo caminho em meio a uma turba desesperada. Alguns Caçadores deSombras tinham debandado, e outros plantaram-se no local onde estavam,determinados a lutar. Como uma massa, estavam sendo empurradoslentamenteencostaabaixo,emdireçãoàplanície,bemondeabatalhaeramaisdifícil eas lâminassera mbrilhantes reluziamcontraoscavaleirosdas trevas,umamisturadepreto,brancoevermelho.

Pelaprimeiravez,Clarytevemotivosparaagradecerabaixaestatura.Elafoicapaz de correr em meio à multidão, o olhar captando os quadros vivos

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desesperadoresdocombate.Ali,umNephilimpoucomaisvelhoqueelaestavaenvolvidonumabatalhadesesperadacontraumdosCrepuscularescomodobrodotamanhodele,oqualaempurroupelaneveescorregadia;umaespadagiroueentãoumgrito,eumalâminasera mfoiescurecidaparasempre.Umjovemdecabelos escuros, com uniforme preto, estava parado acima do corpo de umguerreiro de vermelho morto. Ele segurava uma espada ensanguentada, elágrimasescorriampelorosto,livremente.PertodeumIrmãodoSilêncio,umavisão inesperada porém bem-vinda em sua túnica de pergaminho, oesmagamentodocrâniodeumCaçadordeSombrasmalignocomumgolpedocajado de madeira; o Crepuscular desabou em silêncio. Um homem caiu dejoelhos,agarrandoaspernasdeumamulherdeuniformevermelho;elao toucom indiferença, depois en ou a espada entre os ombros dele. Nenhum dosguerreirossemoveuparaimpedi-la.

Clarycorreuparaooutroladodamultidãoese agrouaoladodaCidadela.Os muros brilhavam com uma luz intensa. Ela pensou ter visto o brilho dealgumacoisavermelhaedouradaatravésdaarcadadoportãodetesouras,comouma fogueira.Tateoupelaestelanocinto,pegou-a,pôsapontanomuro—econgelou.

Apoucospassosdela,umCaçadordeSombrasmalignohaviaseafastadodabatalha e seguia para os portões da Cidadela. Ele carregava uma clava e umagelo debaixo do braço; com um olhar irônico para a batalha, passou pelo

portãodaCidadela...Eastesourassefecharam.Nãohouvegrito,masosomnauseantedeossose

cartilagemsendoesmagadospôdeserouvidomesmoemmeioaoburburinhodabatalha. Uma bolha de sangue se espalhou pelo portão fechado, e Clarypercebeuquenão era aprimeira.Haviaoutrasmanchas,dispersaspelomuro,escurecendoosolologoabaixo...

Ela se virou, sentindo uma pontada no estômago, e encostou a estela napedra.Começouaobrigar amente apensar emAlicante e tentouvisualizar aextensão coberta de relva diante do Gard, procurando afastar todas asdistraçõesàsuavolta.

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—Baixeaestela,filhadeValentim—alertouumavozfriaecontrolada.Ela congelou. Atrás de Clary, estava Amatis, com a espada em punho, a

ponta a ada diretamente voltada para ela.Havia um sorriso selvagem em seurosto.

—Muitobem—disseela.—Deixeaestelanochãoevenhacomigo.Seidealguémquevaificarmuitofelizemtever.

—Ande,Clarissa.—Amatisgolpeoua lateraldocorpodeClarycomapontadaespada.Nãofoiforteosu cientepararasgarajaqueta,masobastanteparadeixaragarotadesconfortável.Clarydeixouaestelacair; couaalgunsmetros,nanevesuja,reluzindocomumbrilhohipnótico.—Paredeenrolar.

—Vocênãopodememachucar—disseClary.—Sebastiandeuordens.—Ordens para nãomatar você— concordouAmatis.— Ele nunca disse

nadasobre temachucar.Ficarei felizemteentregaraelecomtodososdedosfaltando,garota.Nãopensequenão.

Claryencarouaoutracomexpressãoseveraantesdedarmeia-voltaedeixarqueAmatisaconduzisseemdireçãoàbatalha.OolhardelasemoviaentreosCrepusculares,procurandoporumacabeça lourafamiliarnomardeescarlate.Precisava saber quanto tempo tinha antes de Amatis jogá-la aos pés deSebastianedar màchancedelutaoufuga.AmatispegaraHeosphoros,claro,e a lâmina Morgenstern agora pendia do quadril da mulher mais velha, asestrelasaolongodalâminapiscandosobaluzfraca.

—Apostoquenemsabeondeeleestá—provocouClary.Amatisacutucoudenovo,eClarysejogouparaafrente,quasetropeçando

sobreocadáverdeumCaçadordeSombrasmaligno.Osoloeraumamassadeneve,terraesanguerevirados.

—Eusouaprimeira-tenente;sempreseiondeeleestá.Eéporissoqueeleconfiaemmimparalevarvocêatéele.

—Elenãocon aemvocê.Nãoseimportacomvocênemcomnada.Veja.—Elaschegaramaocumedeumapequenaserra;Clarydiminuiuatépararefezumgestoamplocomobraço,apontandoocampodebatalha.—Vejaquantos

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de vocês estão caindo. Sebastian quer apenas bucha de canhão. Só quer usarvocês.

— É isso que você vê? Eu vejo Nephilim mortos. — Clary conseguia verAmatis de soslaio. O grisalho cabelo castanho utuava no ar frio, e os olhoseram severos. — Você acha que a Clave não foi dominada? Dê uma boaanalisada.Olheaoredor.—ElacutucouClarycomumdedo,queolhou,contrasua vontade. As duas metades do exército de Sebastian tinham se unido eestavamcercandoosNephilimnomeio.MuitosdosNephilimestavamlutandocomhabilidade emalícia.Era adorável vê-los embatalha, em seu estilomuitopeculiar; a luz das lâminas sera m traçava desenhos no céu escuro. Não queisso mudasse o fato de serem amaldiçoados. — Eles zeram o que semprefazem quando há um ataque do lado de fora de Idris e um Conclave não éiminente. Enviam guerreiros pelo Portal, qualquer um que chegue ao Gardprimeiro. Alguns desses guerreiros jamais combateram numa batalha deverdade. Outros lutaram em batalhas demais. Nenhum deles está preparadopara matar um inimigo que carrega o rosto dos lhos, namorados, amigos,parabatai.—Ela cuspiu a última palavra.—AClave não compreende nossoSebastiannemasforçasdele,etodosserãomortosantesdisso.

—Deondeelesvieram?—questionouClary.—OsCrepusculares.AClavedisseque eramapenasvinte, enãohaviameiodeSebastian esconderquantoshavia.Como...

Amatisjogouacabeçaparatrásedeuumarisada.—Comoseeu fossecontar.Sebastian temaliadosemmais lugaresdoque

vocêimagina,pequena.— Amatis. — Clary tentava manter a voz rme. — Você é uma de nós.

Nephilim.VocêéairmãdeLuke.—EleéummembrodoSubmundo,enãomeuirmão.Deviatersesuicidado

quandoValentimordenou.—Vocênãoestáfalandosério.Ficoufelizaovê-loquandofomosàsuacasa.

Euseiqueficou.Desta vez o golpe da ponta da lâmina entre os ombros foi mais do que

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desconfortável:doeu.—Naépoca,eueraprisioneira—disseAmatis.—Eupensavaqueprecisava

da aprovação daClave e doConselho.OsNephilim tiraram tudo demim.—Ela se virou e olhou a Cidadela com expressão severa.— As Irmãs de Ferrotiraram minha mãe. Depois uma delas presidiu meu divórcio. Dividiram asMarcas de casamento em duas, e eu gritei com a dor. Elas não têm coração,apenasadamas, assim como os Irmãos do Silêncio. Você pensa que eles sãogentis, que os Nephilim são gentis, porque são bons, mas bondade não égentileza,enãohánadamaiscruelqueavirtude.

—Masnóspodemosescolher—falouClary,mascomoelapoderiaexplicaraalguémquenãocompreendiaqueasescolhastinhamsidoretiradas,quehaviaumacoisachamadalivre-arbítrio?

—Ora,diabos,fiquequieta...—interrompeuAmatis,retesando-se.Claryseguiuoolhardela.Poruminstante,nãoconseguiuveroqueaoutra

estava encarando. Via apenas o caos da luta, sangue na neve, o brilho dasestrelas nas lâminas e o ardor intenso da Cidadela. Depois percebeu que abatalhapareciatersedesenvolvidoaumtipoestranhodepadrão;algumacoisaestavaabrindocaminhoemmeioàmultidãocomoumnavioabrindoaságuasedeixando o caos em seu rastro. Um Caçador de Sombras magro, vestido depreto,comcabelobrilhante,semovimentavatãorápidoqueeracomoobservarofogopulardecumeemcumenumafloresta,incendiandotudo.

Sóquenessecasoa orestaeraoexércitodeSebastian,eosCrepuscularescaíamumporum.Caíamcomtantarapidezquemaltinhamtempoparapegarasarmas,muitomenosparabrandi-las.Eenquantocaíam,outroscomeçavamarecuar,confusose inseguros,demodoqueClaryviaoespaçolivrenomeiodabatalha,bemcomoquempermaneciaemseucentro.

Apesardetudo,elasorriu.—Jace.Amatis arfou, surpresa— foi ummomento de distração,mas era tudo de

que Clary precisava para se jogar e enganchar a perna nos tornozelos da

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mulher, do mesmo modo que Jace ensinara, e então ela puxou os pés deAmatis, que caiu.Em seguida a espada se afastoudamãodela e deslizoupelosolocongelado.AmatisestavaseinclinandoparaselevantarquandoClarydeuum encontrão nela— não foi gracioso nem e ciente, mas a mulher caiu decostasnaneve.Amatisreagiu,agarrandoClaryepuxandosuacabeçaparatrás,noentantoamãodameninaalcançouocintodamulhermaisvelhae liberouHeosphoros,paradepoisencostarapontaafiadanopescoçodeAmatis.

Amulherficouimóvel.—Muitobem—disseClary.—Nempenseemsemexer.

—Solte-me!—gritouIsabelleparaopai!—Solte-me!Quando as torres demoníacas caram vermelhas e douradas com o aviso

parairparaoGard,elaeAlecsaíramaostropeçosparapegarosuniformeseasarmas e subir pela colina.O coraçãode Isabelle batia forte, nãopor causa doesforço,masdaagitação.Alecestavasombrioepráticocomosempre,porémoagelode Isabelle cantavaparaela.Talvez fosse isso:umabatalhadeverdade;

talvezfosseomomentodevoltaraenfrentarSebastianemcampo,edestavezelaomataria.

Porseuirmão.PorMax.AleceIsabellenãoestavampreparadosparaamultidãonopátiodoGard,ou

paraavelocidadecomqueosNephilimestavamsendoempurradospeloPortal.Isabelleperderaoirmãonamultidão,masavançaraatéoPortal;tinhavistoJacee Clary ali, prestes a entrar, e redobrara a velocidade, até subitamente duasmãossaíremdamultidãoeagarraremseusbraços.

Era o pai dela. Isabelle começou a espernear e gritou porAlec,mas Jace eClaryjátinhamidoembora,rumoaoredemoinhodoPortal.Rosnando,Isabellelutou, porém seu pai era alto e forte, e tinha muitos anos a mais detreinamento.

EleasoltouquandooPortaldeuumúltimorodopioesefechoucomforça,desaparecendo na parede branca do arsenal. Os Nephilim restantes no pátiocaramquietos,aguardandoinstruções.JiaPenhallowanunciouquequantidade

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su cientedelestinhapassadopelaCidadela,equeosoutrosdeveriamaguardardentrodoGard,casoreforçosse zessemnecessários;nãohavianecessidadedecarnopátioecongelar.Elacompreendiaoquantotodosdesejavamlutar,mas

muitosguerreirosjáhaviamsidodespachadosparaaCidadela,eAlicanteaindaprecisavadeumaforçaparaguardá-la.

— Viu? — disse Robert Lightwood, gesticulando com exasperação para alha quando ela girou para encará-lo. Ficou satisfeita ao ver que havia

arranhõessangrandonospulsosdele,bemondeelaen araasunhas.—Vocêénecessáriaaqui,Isabelle...

— Cale a boca — sibilou ela para o pai, entre dentes. — Cale a boca,mentirosofilhodamãe.

OespantodeixouRobertsemexpressão.IsabellesabiapormeiodeSimoneClary que alguns berros comos pais eram esperados na culturamundana, noentanto osCaçadores de Sombras acreditavamno respeito pelosmais velhos,bemcomonocontroledasemoções.

Noentanto,Isabellenãotinhavontadedecontrolarasemoções.Nãoagora.—Isabelle...—EraAlec,deslizandopara carao ladodela.Amultidãoao

redor diminuía, e ela estava remotamente consciente de que muitos dosNephilim já haviam entrado no Gard. Aqueles que sobraram olhavam paraoutradireçãodemodoesquisito.AsdiscussõesdefamíliasalheiasnãoeramdacontadosCaçadoresdeSombras.—Isabelle,vamosvoltarparacasa.

Alec esticou a mão; ela a afastou com um movimento irritado. Isabelleadoravaoirmão,masnuncahaviasentidotantavontadedesocá-locomoagora.

—Não—retrucouela.—JaceeClaryatravessaram;nósdevíamos ircomeles.

RobertLightwoodpareciaexausto.—Nãoeraparateremido—disseele.—Eles zeramissocontraasordens

estritas.Oquenãosignificaquevocêdeveriaacompanhar.— Eles sabiam o que estavam fazendo — interrompeu Isabelle. — Você

precisademaisCaçadoresdeSombrasparaenfrentarSebastian,nãodemenos.— Isabelle, não tenho tempo para isso — falou Robert, e tou Alec,

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exasperado, comose esperandoqueo lho casse ao ladodele.—Háapenasvinte Crepusculares com Sebastian. Mandamos cinquenta guerreiros peloPortal.

—Vinteguerreirosdeles sãocomoumacentenadeCaçadoresdeSombras—afirmouAlecemsuavozbaixa.—Nossoladopoderiasermassacrado.

—SealgumacoisaaconteceraJaceeClary,seráculpasua—disseIsabelle.—AssimcomoaconteceucomMax.

RobertLightwoodrecuou.—Isabelle.—Avozdamãerompeuosilêncioterrívelesúbito.Isabellegirou

a cabeça e viu queMaryse estava atrás deles; a exemplo de Alec, ela pareciaespantada. Uma pequena parte longínqua de Isabelle sentia-se culpada enauseada, mas a parte dela que parecia ter assumido o controle, que estavaborbulhandodentrodelacomoumvulcão,sentiasomenteumtriunfoamargo.Estava cansada de ngir que tudo ia bem. — Alec está certo — emendouMaryse.—Vamosvoltarparacasa...

—Não—disseIsabelle.—VocênãoouviuaConsulesa?Somosnecessáriosaqui,noGard.Elespodemquererreforços.

—Elesvãoquereradultos,nãocrianças—a rmouMaryse.—Sevocênãovai voltar, então peça desculpas ao seu pai. Amorte de... O que aconteceu aMaxnãofoiculpadeninguém;foiculpadeValentim.

—Talvezsevocêsjánãotivessem cadodoladodeValentimumavez,nãohaveriaumaGuerraMortal—sibilouIsabelleparaamãe.Depois,elasevirouparaopai:—Estoucansadade ngirquenãoseioquesei.Seiquevocêtraiumamãe. — Isabelle não conseguiu deter as palavras agora; elas continuaramsaindocomoumatorrente.ElaviuMaryseempalidecer,Alecabrirabocaparaprotestar.Robertpareciaterlevadoumgolpe.—AntesdeMaxnascer.Eusei.Ela me contou. Com uma mulher que morreu na Guerra Mortal. E você iaembora, ia abandonar todosnós, e só couporqueMaxnasceu, e apostoquevocêestáfelizporeleestarmorto,nãoé?Porqueagoranãoprecisaficar.

—Isabelle...—começouAlec,horrorizado.Robertvirou-separaMaryse.

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—Vocêcontouaela?PeloAnjo,Maryse,quando?—O senhor está dizendo então que é verdade?—A voz de Alec tremia,

enojado.Robertsevoltouparaele.—Alexander,porfavor...MasAleclhederaascostas.Opátioestavaquasevazioagora.Isabellepodia

verJiadepéaolonge,pertodaentradadoarsenal,esperandoqueoúltimodelesentrasse.ViuAleciratéJia,ouviuosomdadiscussãocomela.

Os pais de Isabelle a tavam como se seus mundos estivessemdesmoronando. Ela nuncahavia se imaginado capaz de destruir omundodospais. Esperava que o pai fosse berrar com ela, e não car ali, com suamaturidadedeInquisidor,parecendoarrasado.Finalmente,elepigarreou.

—Isabelle—disse,comvozrouca.—Não importaoquevocêpense, temqueacreditar...vocênãopoderealmenteacreditarquequandoperdemosMax,queeu...

—Nãofalecomigo—retrucouIsabelle,afastando-seaostrancos,ocoraçãobatendodemodoirregularnopeito.—Simplesmente...nãofalecomigo.

Elasevirouecorreu.

Jacedisparounoar,colidiucontraumCaçadordeSombrasmalignoeconduziuocorpodoCrepuscularatéosolo,dando-lheumgolpecruel,semelhanteaumatesoura. De alguma forma ele havia obtido uma segunda lâmina; não tinhacertezadeonde.Tudoerasangueefogoemsuamente.

Jáhavialutadoantes,muitasvezes.Conheciaaemoçãodabatalhaconformeestasedesenrolava,omundoaoredordelebaixandoparaumsussurro,todososmovimentosprecisoseexatos.Umapartedesuamenteeracapazdeafastarosangue,adoreomaucheirodaquiloparadetrásdeummurodegelocristalino.

Mas aquilo não era gelo; era fogo. O calor que percorria suas veias oconduzia, acelerava seus movimentos de tal modo que era como se estivessevoando.ElechutouocorpodecapitadodoCaçadordeSombrasmalignoparaocaminhodeoutro,umvultovestidodevermelhoquevoavanadireçãodele.O

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Crepusculartropeçou,eJaceocortourigorosamenteaomeio.Osanguesurgiunaneve.Jacejáestavaempapadonele:sentiaouniformepesadoeencharcadocontraocorpo,esentiaocheioferrosoesalgado,comoseosangueinvadisseoarqueelerespirava.

ElepraticamentepulouocorpodoCrepuscularmortoecaminhouatéoutrodeles, um homem de cabelo castanho com um rasgo namanga do uniformevermelho. Jace ergueu a espada na mão direita, e o homem se encolheu,surpreendendo-o. Os Caçadores de Sombras malignos não pareciam sentirmuitomedoemorriamsemgritar.Este,porém, tinhaorostocontorcidopelomedo.

—Na verdade,Andrew, nãohá necessidade de car assim.Não vou fazernadacomvocê—a rmouumavozportrásdeJace,aguda,límpidaefamiliar.Eapenasumpoucoexasperada.—Amenosquevocênãosaiadocaminho.

OCaçadordeSombrasdecabelocastanhodisparouparalongedeJace,quedeumeia-volta,jásabendooqueveria.

Sebastian estava parado atrás dele. Aparentemente tinha vindo de lugarnenhum, embora isso não surpreendesse Jace. Ele sabia que Sebastian aindapossuíaoaneldeValentim,oqualpermitiaqueeleaparecesseedesaparecessequando quisesse. Vestia o uniforme vermelho, desenhado com símbolosdourados—símbolosdeproteção,curaeboasorte.SímbolosdoLivroGray,dotipo que os seguidores não podiam usar. O vermelho fazia o cabelo claroparecermaisclaroainda,osorrisoeraumaaberturabrancanorostoenquantoseuolharexaminavaJacedacabeçaàsbotas.

—MeuJace—disseele.—Sentiuminhafalta?Emum lampejo, as espadasde Jace se erguerame aspontaspairarambem

sobreocoraçãodeSebastian.Jaceouviuummurmúriodamultidãoàsuavolta.Parecia que os Caçadores de Sombrasmalignos e seus equivalentesNephilimtinhamparadoalutaparaobservaroqueestavaacontecendo.

—Vocênãopodepensardeverdadequesentisuafalta.Sebastianergueuoolharlentamente,aexpressãodivertidaencontrandoade

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Jace.Osolhoseramnegroscomoosdopai.NaprofundidadeescuradelesJaceenxergavaasimesmo,viaoapartamentoquetinhadivididocomSebastian,asrefeições que zeram juntos, as piadas que contaram, os combates quecompartilharam.EletinhaseincorporadoaSebastian,desistidocompletamentedolivre-arbítrio,eissoforaagradávelefácil,e,nofundodasprofundezasmaisobscurasdeseucoraçãopér do,Jacesabiaqueaquelapartedeledesejavatudoaquilonovamente.

IssofaziacomqueodiasseSebastianaindamais.—Bem,nãoconsigo imaginaroutromotivoparavocêestar aqui. Sabeque

nãopossosermortocomumaespada—relembrouSebastian.—OpirralhodoInstitutoLosAngelesdeveterlhecontadoisso,pelomenos.

— Eu poderia fatiar você — a rmou Jace. — Ver se você conseguesobreviverempedacinhos.Oueucortosuacabeça. Isso talveznãotematasse,masseriaengraçadoobservarvocêtentandoencontrá-la.

Sebastianaindasorria.—Eunãotentariasefossevocê—acrescentouele.Jace soltou o ar, o hálito parecia uma pluma branca.Não deixe que ele te

controle,gritavasuamente,masamaldiçãoeraqueeleconheciaSebastianbemo su ciente para não acreditar que ele estivesse blefando. Sebastian odiavablefar.Elegostavadeteravantagemedeterconsciênciadisso.

—Porquenão?—rosnouJaceatravésdosdentestrincados.—Minha irmã—disseSebastian.—VocêmandouClarycriarumPortal?

Não foi muito inteligente se separarem. Ela está sendo mantida a algumadistância daqui por um de meus tenentes. Se você me machucar, cortam agargantadela.

HouveummurmúriodosNephilimatrásdele,masJacenãoconseguiuouvir.OnomedeClarypulsavanosanguedesuasveias,eo localondeosímbolodeLilith outrora o conectara a Sebastian ardia. Diziam que era melhor vocêconhecerseuinimigo,masemqueajudavasaberqueafraquezadeseuinimigoeraasuatambém?

Amultidãoquemurmuravaergueu-seaumrugidoquando Jacecomeçoua

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baixar as espadas. Sebastian se movimentou com tanta rapidez que Jace viuapenasumborrãoquandoooutrogarotogirouechutouseupulso.Aespadasesoltoudoapertodormentedamãodireita,eelesejogouparatrás.NoentantoSebastianfoimaisrápido,sacouaespadaMorgensterneacertouumgolpequeJaceconseguiuevitarapenasgirandoocorpoparaolado.Apontadaespadafezumcortesuperficialemsuascostelas.

Agoraumpoucodosangueemseuuniformeeradelemesmo.EleseabaixouquandoSebastianoatacounovamente,eaespadasibiloupor

suacabeça.EleouviuoxingamentodeSebastianese lançougirandoaprópriaespada.Asduasespadascolidiramcomosomdemetalestridente,eSebastiandeuumsorriso.

— Você não pode vencer — provocou ele. — Eu sou melhor que você,semprefui.Eupoderiaseromelhor.

— Modesto também — disse Jace, e as espadas se separaram com umrangido.Elerecuou,apenasosuficienteparateralcance.

— E não pode me machucar, não de verdade, por causa deClary —emendou Sebastian, insistente. — Da mesma forma que ela não poderia memachucar por sua causa. Sempre a mesma dança. Nenhum dos dois estádispostoa fazero sacrifício.—Ele se aproximoude Jace comumgiro lateral;Jace se defendeu, embora a força do golpe de Sebastian tivesse enviado umchoque por todo seu braço.— Você pensaria, com toda a sua obsessão pelabondade,queumdevocêsestariadispostoaabrirmãodooutroporumacausamaior.Masnão.Emessência,oamoréegoísta,evocêsdoistambémsão.

—Vocênãoconhecenenhumdenós—arfouJace;estavaofeganteagora,esabia que lutava defensivamente, evitando Sebastianmais do que atacando.OsímbolodeForçanobraçoardia,incendiandoorestantedeseupoder.Issoeraruim.

— Conheço minha irmã — a rmou Sebastian. — E agora não, mas embreveeuaconhecereidetodososmodosqueseépossívelconheceralguém.—Ele sorriumaisumavez, selvagem.Eraomesmoolhardemuito tempoatrás,numanoitedeverãoemfrenteaoGard,quandoeledissera:Ou,talvez,sóesteja

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irritadoporqueeubeijeisuairmã.Porqueelamequis.A náusea invadiu Jace, náusea e raiva, e ele se lançou contra Sebastian,

esquecendo-se,porumminuto,dasregrasda luta,esquecendo-sedemanterapressãodoapertonopunhodistribuídaigualmente,esquecendo-sedobalanço,daprecisão,de tudo,menosdoódio, eo sorrisodeSebastian seabriuquandoeleescapoudoataqueechutouapernadeJacecomexatidão.

O garoto caiu com força, e as costas colidiram com o solo congelado,deixando-o sem fôlego. Jace ouviu o sibilo da Morgenstern antes de vê-la, erolou para o lado quando a espada acertou o ponto onde ele estivera umsegundoantes.Asestrelasgiravamenlouquecidasacimadesuacabeça,pretaseprateadas, e então Sebastian cou de pé acima dele, mais preto e prata, e aespada baixou outra vez; depois ele rolou para o lado, mas não foi veloz osuficiente,edestavezsentiuogolpe.

A agonia foi instantânea, nítida e clara, quando a lâmina bateu em seuombro.Foicomosereletrocutado—Jacesentiuadoratravésdocorpointeiro,seusmúsculossecontraíram,ascostasarquearam.Ocalorchamuscavaatravésdele, como se os ossos estivessem sendo fundidos ao carvão. As chamas sereuniramepercorreramsuasveias,subindopelaespinha...

Ele viu Sebastian arregalar os olhos, e se viu re etido na escuridão deles,esparramado no solo preto e vermelho, e seu ombro estava incendiando.Chamas se erguiamda ferida feito sangue. Faiscavampara cima, e umaúnicacentelhapercorreuaespadaMorgensterneardeuparadentrodocabo.

Sebastianxingoue jogouamãopara trás,comose tivessesidogolpeado.Aespada retiniu no chão; ele ergueu a mão e a encarou. E mesmo através daconfusão de dor, Jace notara umamarca preta, umaqueimadura na palmadamãodorival,noformatodocabodeumaespada.

Jaceesforçou-separaseapoiarnoscotovelos,emboraomovimentoenviasseumaondadedortãoseverapeloombroqueelepensouquefossedesmaiar.Suavisão escureceu. Quando ele voltou a enxergar, Sebastian estava de pé acimadele,comumrosnadocontorcendoseustraços,aespadaMorgensterndevoltaà mão — e os dois estavam cercados por um círculo de vultos. Mulheres

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vestidasdebrancocomooráculosgregos,osolhosjorrandochamasalaranjadas.Seusrostoseramtatuadoscommáscaras,comovinhasdelicadasecontorcidas.Elaserambelaseterríveis.EramasIrmãsdeFerro.

Cadaumaseguravaumaespadadeadamas,comapontaviradaparabaixo.Estavam em silêncio, e a boca formava uma linha rígida. Entre duas delas,estavaoIrmãodoSilêncioqueJacetinhavisto,lutandonaplanície,ocajadodemadeiranamão.

—Emseiscentosanos,nãoabandonamosnossaCidadela—disseumadasIrmãs,umamulheralta,comcabelopretoquecaíaemtrançasatéacintura.Osolhos faiscavam, fornalhas gêmeas na escuridão. —Mas o fogo celestial noschamou, e nós viemos. Afaste-se de Jace Lightwood, lho de Valentim. Semachucá-lodenovo,nósvamostedestruir.

—NemJaceLightwoodnemofogoemsuasveiasvãotesalvar,Cleophas—retrucou Sebastian, ainda empunhando a espada. Sua voz era rme. — ONephilimnãotemsalvação.

—Vocênão sabia temero fogocelestial.Agora sabe—disseCleophas.—Horadeseretirar,garoto.

ApontadaespadaMorgensternbaixounadireçãode Jace—baixou—,e,com um grito, Sebastian atacou. A espada passou sibilando por Jace e seenterrounosolo.

A terra pareceu uivar, como se mortalmente ferida. Um tremor fendeu osolo,espalhando-seapartirdapontadaespadaMorgenstern.AvisãodeJaceiaevoltava,aconsciênciaescapavadelecomoofogoqueescapavadesua ferida,porém,mesmoenquantoas trevasodominavam,eleviao triunfonorostodeSebastian,eoouviucomeçararirquando,comumacontorçãoterrívelesúbita,a terra se rompeu. Uma rachadura negra imensa se abriu ao lado deles.Sebastianpulouparadentrodelaedesapareceu.

—Nãoétãosimples,Alec—disseJia,comvozcansada.—AmagiadoPortalécomplicada,enãotemosnotíciasdasIrmãsdeFerroparaindicarqueprecisamdenossoauxílio.Alémdisso,depoisdoqueaconteceuhoje cedoemLondres,

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precisamosficaraqui,alertas...—Euestoudizendo,eusei—a rmouAlec.Eleestavatremendo,apesardo

uniforme. Estava frio na Colina doGard,mas não era somente por isso. Emparte,eraochoquepeloqueIsabelledisseraaospais,pelaexpressãodopai.Masgrandepartedaquiloeraporcausadaapreensão.Opressentimentofriopingavapor sua espinha como gelo.—Você não compreende os Crepusculares; vocênãoentendecomoelessão...

Elesecurvou.Umacoisaquenteohaviaperfurado,passandodoombroatéasvísceras,comoumalançadefogo.Eleatingiuosolo,dejoelhos,gemendo.

—Alec...Alec!—AsmãosdaConsulesaestavamnosombrosdele.Alectinhaconsciênciaremotadospaiscorrendoatéele.Suavisãonadouem

agonia. Dor, sobreposta e duplicada porque não era dor de modo algum; ascentelhas sob as costelas nãoqueimavamem seu corpo,mas simnode outrapessoa.

—Jace.—Eletrincouosdentes.—Algumacoisaestáacontecendo...ofogo.VocêprecisaabrirumPortal,rápido.

Amatis,deitadadecostasnochão,soltouumarisada.—Vocênãovaimematar.Nãotemcoragem.Respirandocomdi culdade,ClarycutucouoqueixodeAmatiscomaponta

daespada.—Vocênãosabedoquesoucapaz.—Olheparamim.—OsolhosdeAmatis reluziram.—Olheparamime

medigaoquevê.Claryolhou,mas já sabia.Amatisnãosepareciaexatamentecomo irmão,

mastinhaomesmoqueixo,osmesmosolhosazuiscon áveis,omesmocabelocastanhocomtoquesdecinza.

—Clêmencia—disseAmatis, e ergueu asmãos como se quisesse evitar ogolpedeClary.—Vocêadariaparamim.

Clêmencia.Clary cou imóvel,mesmoquandoAmatis ergueuo olhar para

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ela, evidentemente se divertindo.Bondadenão é gentileza enada émais cruelqueavirtude .Elasabiaquedeveriacortaragargantadaoutra,queriaaté,mascomocontar aLukeque tinhamatado a irmãdele?Quehaviamatado a irmãdeleenquantoelajazianosolo,implorandoporclemência?

Clarysentiuaprópriamãotremer,comoseestivessedesligadadocorpo.Aoredor, os sons da batalha tinha diminuído: ela ouvia gritos emurmúrios,masnãoousavaviraracabeçaeveroqueacontecia.EstavaconcentradaemAmatis,no aperto no cabo de Heosphoros, no lete de sangue que descia abaixo doqueixodeAmatis,ondeapontadaespadadeClaryperfuraraapele...

Osoloseabriu.AsbotasdeClaryescorregaramnaneve,eelaselançouparaolado;rolou,malconseguindoevitarsecortarcomaprópria lâmina.Aquedafezcomqueperdesseofôlego,maselatropeçouparatráseagarrouHeosphorosenquanto o solo sacudia em volta.Terremoto, pensou furiosamente. ClarypegouumapedracomamãolivreenquantoAmatis cavadejoelhos,olhandoaoredorcomumsorrisodepredador.

Ouviram-se gritos por toda parte e um estranho som de algo se partindo.QuandoClary olhou, apavorada, o solo havia se dividido em dois, uma fendaimensa se abrindo. Pedras, terra e pedaços irregulares de gelo caíam pelaabertura enquanto Clary saía dela com di culdade. A fenda aumentavarapidamente,arachadurairregularsetornandouma ssuraamplacomlateraisíngremesquedesapareciamemmeioàsombra.

Osolocomeçavaaparardesacudir.ClaryouviraagargalhadadeAmatis.Elaergueuoolhareviuamulhermaisvelhaselevantaresorrircomsarcasmo.

—Dê lembranças aomeu irmão—pediuAmatis, e pulou para dentro dafissura.

Clary se levantou,comocoraçãoacelerado,ecorreuatéabeirada ssura.Olhouporcimadela.Agarotaconseguiaverapenasalgunsmetrosde terrenoíngremeeentãotrevas,esombras,sombrasquesemovimentavam.Elaseviroue viu que, em toda parte do campo de batalha, os Crepusculares corriam emdireçãoà ssuraepulavamdentrodela.Elesa recordavamdosmergulhadoresolímpicos,segurosedeterminados,confiantesdesuaaterrissagem.

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Os Nephilim fugiam da ssura aos trancos enquanto os inimigos vestidoscom roupas vermelhas disparavam por eles, lançando-se dentro da cova. OolhardeClaryrastreouentreeles,ansioso,procurandoporuma guravestidadepretoemparticular,comacabeçacomcabeloclaro.

Ela parou. Ali, exatamente na ssura, a alguma distância dela, estava umgrupo de mulheres usando branco. As Irmãs de Ferro. Através das brechasentre elas, notou um vulto no chão, e outro, com a túnica de pergaminho,encolhida...

Clarycomeçouacorrer.Sabiaquenãodeviacomaespada foradabainha,mas não se importou. Pisava na neve com força, saindo do caminho deCrepusculares apressados, passando no meio dos Nephilim, e a neve estavaensanguentada, encharcada e escorregadia, mas mesmo assim ela continuavacorrendo,atéqueirrompeunocírculodasIrmãsdoFerroealcançouJace.

Ele estava no chão, e o coração de Clary, que parecia prestes a explodirdentro do peito, diminuiu lentamente os batimentos quando viu que os olhosdele estavam abertos. No entanto, Jace parecia pálido e respirava comdi culdade su ciente para que ela pudesse ouvir. O Irmão do Silêncio estavaajoelhado ao ladodele, e osdedospálidos e compridos abriamouniformenoombrodeJace.

— O que está acontecendo? — perguntou Clary, olhando ao redor comexpressão feroz. Dezenas de Irmãs de Ferro retribuíam aquele olhar,impassíveisesilenciosas.HaviaoutrasIrmãsdeFerrotambém,dooutroladodassura, observando, imóveis, enquanto os Crepusculares se lançavam dentro

dela.Eraassustador.—Oqueaconteceu?—Sebastian—falou Jaceentredentes,eela sedeixoucairao ladodele,de

frenteparaoIrmãodoSilêncio,enquantoeletiravaouniformeeelaviaocortenoombro.—FoiSebastianquemaconteceu.

Aferidaerafogojorrando.Nãohavia sangue,mas fogo,douradocomoa linfados anjos.A respiração

deClaryestavaentrecortada,entãoelaergueuoolhareviuoIrmãoZachariaholhandoparaela.Captouumúnicolampejodorostodele,todoângulos,palidez

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ecicatrizes,antesdeeletirarumaesteladasvestes.Emvezdepassá-lanapelede Jace, conforme Clary teria imaginado, ele a passou na própria pele eentalhouumsímboloemsuapalma.Elefezissorapidamente,entretantoClaryconseguiasentiropoderqueemanavadosímbolo.Eleafaziaestremecer.

Fique imóvel. Isto vai acabar com a dor , falou em seu sussurro baixomultidirecional,ecolocouamãosobreocorteardentenoombrodeJace.

Jace gritou alto. O corpo dele se elevara um pouco do chão, e o fogo quesangrava da ferida como lágrimas lentas ergueu-se como se tivesse recebidogasolina, chamuscando o braço do Irmão Zachariah. Um fogo incontrolávelconsumiuamangadepergaminhodasvestesdeZachariah;oIrmãodoSilêncioteveumsobressalto,masnãoantesdeClaryperceberque asbrasas cresciam,consumindo-o. Nas profundezas das chamas, conforme ondulavam eestalavam,Claryviuumaforma—a formadeumsímboloquepareciamduasasasunidasporumaúnicabarra.Umsímboloqueelajátinhavisto,depénumtelhadoemManhattan:oprimeiro símboloque ela já visualizara,quenão eradoLivroGray.Eletremeluziuedesapareceucomtantarapidezqueelasupôsterimaginadoaquilo.Pareciaserumsímboloqueapareciaparaelaemmomentosdeestresseepânico,masoqueelesigni cava?Seráquesigni cavaummododeajudarJace—ouoIrmãoZachariah?

O Irmãodo Silêncio se reclinoupara trás naneve, em silêncio, desabandocomoumaárvorequeimadavirandocinzas.

Um murmúrio irrompeu das leiras de Irmãs do Ferro. O que quer queestivesse acontecendo ao Irmão Zachariah, não deveria acontecer. Algumacoisaderaterrivelmenteerrado.

AsIrmãsdoFerroavançaramatéoirmãocaído.ElasbloquearamavisãoqueZachariah tinha deClary quando ela se dirigiu a Jace. Ele estava encolhido econvulsionandonochão,osolhos fechadoseacabeça inclinadapara trás.Elaolhouemvolta,desesperada.AtravésdasbrechasentreasIrmãsdoFerro,Claryvia Irmão Zachariah, remexendo-se no chão: seu corpo estava brilhando ecrepitandocomfogo.Umgritoirrompeudesuagarganta:umbarulhohumano,ogritodeumhomemcomdor,nãoosussurromentalsilenciosodosIrmãos.A

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IrmãCleophasopegou—túnicadepergaminhoefogo,eClaryouviuavozdaIrmãcrescendo:“Zachariah,Zachariah...”

Maselenãoeraoúnico ferido.AlgunsdosNephilimestavamreunidosemvoltadeJace,masmuitosoutrosestavamcomoscolegasferidos,administrandosímbolosdecuraeprocurandoatadurasnosuniformes.

— Clary — murmurou Jace. Ele tentava se apoiar nos cotovelos, comesforço,maselesnãoosustentavam.—IrmãoZachariah...oqueaconteceu?Oqueeufizparaele...?

—Nada.Jace.Deitequietinho.—Claryguardouaespadanabainhaetateouembuscadaestelanocinturãodearmas,comdedosdormentes.Elaesticouamãoparaencostarapontanapeledele,masogarotosecontorceueseafastoudela,convulsionando.

—Não—arfou.Osolhosdeleeramimensosedeumacordouradaardente.—Nãometoque.Voutemachucartambém.

—Vocênãovai.Desesperada, ela se jogou em cima dele, o peso de seu corpo fazendo-o

afundarnaneve.ElatocavaoombrodeJaceenquantoelesecontorciadebaixodela,asroupaseapeledogarotoescorregadiascomosangueequentescomofogo.Osjoelhosdeslizaramparaaslateraisdosquadrisquandoelajogoutodoopesocontraopeitodele,prendendo-oaochão.

— Jace— disse.— Jace, por favor.—Mas os olhos dele não conseguiamfocalizá-laeasmãossecontorciamcontraosolo.—Jace—repetiuClary,epôsaestelanapeledele,poucoacimadoferimento.

E ela estava novamente no barco com o pai, comValentim, e jogava tudoque tinha, todos os fragmentos de força, cada átomoderradeiro de vontade eenergiaparacriarumsímboloquedestruísseomundocomfogo,querevertesseamorte, que zesse os oceanos voarem para os céus. Porém desta vez era omais simplesdos símbolos, o símboloque todoCaçadorde Sombras aprendianoprimeiroanodetreinamento.

Cure-me.AiratzetomouformanoombrodeJace,acorproduziaespiraisdapontatão

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pretaquealuzquevinhadasestrelasedaCidadelapareciadesaparecerdentrodela. Clary conseguia sentir a própria energia desaparecendo enquantodesenhava. Ela nunca sentira tanto a estela como uma extensão das própriasveias,comoseestivesseescrevendonoprópriosangue,comosetodaaenergianelaestivessesendodrenadaatravésdamãoedosdedos,eavisãoescurecendoenquanto ela lutava para manter a estela rme, para terminar o símbolo. Aúltimacoisaqueviu foiogrande redemoinhoardentedeumPortal,oqual seabriuparaavisãoimpossíveldaPraçadoAnjo,antesdedeslizarparaonada.

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8ForçanoquePermanece

Raphael estava parado, as mãos nos bolsos, e ergueu o olhar para as torresdemoníacasquebrilhavamcomumacorvermelho-escura.

—Estáacontecendoalgumacoisa—disseele.—Algumacoisaincomum.Simonqueriaretrucarqueacoisaincomumeraqueeletinhaacabadodeser

sequestrado e levado para Idris pela segunda vez, no entanto estava enjoadodemais. Ele se esquecera de que a travessia de um Portal parecia despedaçarvocêedepoisremontardooutrolado,compeçasimportantesfaltando.

Alémdisso,Raphael tinha razão. Estava acontecendo alguma coisa. Simonestivera emAlicante antes e se recordava das estradas e dos canais, da colinaerguendo-se acimade tudo comoGardno topo.Ele se recordavadeque, emnoites comuns, as ruas cavam tranquilas, iluminadas pelo brilho pálido dastorres.Mas hoje à noite havia barulho, o qual vinha sobretudo doGard e dacolina, onde as luzes dançavam como se dezenas de fogueiras tivessem sidoacesas. As torres demoníacas brilhavam em um sinistro tom vermelho edourado.

—Elesmudamas coresdas torres para comunicarmensagens—explicouRaphael.—Douradoparacasamentosecomemorações.AzulparaosAcordos.

—Oquesignificaovermelho?—perguntouSimon.—Magia—disseRaphael,esemicerrouosolhos.—Perigo.Elesevirou,numcírculolento,eolhouaoredordaruatranquila,dascasas

imensasaoladodocanal.ErapraticamenteumacabeçamaisbaixoqueSimon.O Diurno se perguntava quantos anos Raphael teria quando foraTransformado.Catorze?Quinze?SóumpouquinhomaisvelhoqueMaureen?

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QuemoTransformara?Magnussabia,masnuncarevelara.—AcasadoInquisidoréali—disseRaphael,eapontouparaumadascasas

maiores,comumtelhadopontudoesacadasparaocanal.—Masestáescura.Simonnãopodianegartal fato,emboraseucoraçãoinertetivessedadoum

pulinhoquandoeleolhouparao local. Isabelleestavamorandoali agora;umadaquelasjanelaseraadela.

—Provavelmente todos estãonoGard—re etiu.—Eles fazem isso,parareuniões e outras coisas.— Elemesmo não tinha boas lembranças do Gard,depoisde ter cadopresoporcausadoúltimoInquisidor.—Nóspodíamos iratélá,acho.Veroqueestáacontecendo.

—Sim,obrigado.Seidas“reuniõeseoutrascoisas”—rebateuRaphael,masparecendoinsegurodeummodoquesoavainéditoparaSimon.—Sejaláoqueestiver acontecendo, isso é problema dos Caçadores de Sombras. Tem umacasa, nãomuito longedaqui, que foi doada ao representante dos vampirosnoConselho.Podemosiratélá.

—Juntos?—Éumacasamuitogrande—disseRaphael.—Você carádeumlado,e

eu,dooutro.Simonergueuassobrancelhas.Nãotinhacertezadoqueesperaraquefosse

acontecer,masnãotinha lheocorridopassaranoitenumacasacomRaphael.Não que achasse que Raphael fosse matá-lo durante o sono. Mas a ideia dedividir aposentos com alguém que parecia odiá-lo intensamente, e sempreodiara,eraestranho.

AvisãodeSimoneraclaraeprecisaagora—umadaspoucascoisasqueelerealmentegostavaemserumvampiro—,eeleeracapazdeenxergardetalhesmesmoàdistância.Eleaviuantesqueelapudessevê-lo.Caminhavadepressa,comacabeçaabaixada,ocabeloescuronalongatrançaqueelacostumavausarquandolutava.Estavausandoouniforme,easbotasbatiamnosparalelepípedosenquantocaminhava.

Vocêédearrasarcorações,IsabelleLightwood.Simonvirou-separaRaphael.

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—Váembora.Raphaeldeuumsorrisoirônico.—LabelleIsabelle—disseele.—Sabequeéumcasoperdido,vocêeela.—PorquesouumvampiroeelaéumaCaçadoradeSombras?—Não. Porque ela simplesmente é, como se diz?, muita areia para o seu

caminhãozinho.Isabelleestavaameiocaminhodaruaagora.Simontrincouosdentes.—Sevocêsemeter,euvouteempalar.Efalosério.Raphaeldeudeombros,inocente,masnãosemexeu.Simonseafastoudele

esaiudassombras,emdireçãoàrua.Isabelleparouimediatamente,comamãonochicoteenroladonocinto.Um

instante depois, ela piscou, impressionada, a mão caindo, e falou com vozinsegura:

—Simon?Simon sentiu-se subitamente estranho. Talvez ela não tivesse gostado da

apariçãorepentinaemAlicante—esteeraomundodela,nãoodele.—Eu...—começouele,masnãofoimuitoalémporqueIsabellesejogouem

cimadeleeoabraçou,quasederrubando-onochão.Simonsepermitiufecharosolhoseenterrarorostonopescoçodela.Sentia

o coração de Isabelle batendo, mas afastou violentamente quaisquerpensamentos sobre sangue. Ela era forte e delicada nos braços dele, o cabelofaziacócegasnorostodeSimon,e,enquantoaabraçava,elesesentianormal,maravilhosamente normal, como qualquer adolescente apaixonado por umagarota.

Apaixonado. Ele recuou com um susto e se agrou olhando para Izzy aalgunscentímetrosdedistância,osimensosolhosescurosbrilhando.

—Nãoconsigoacreditarquevocêestejaaqui—a rmouela,semfôlego.—Eu estava desejando que você estivesse, e pensei quanto tempo levaria até eupodertevere...Ai,meuDeus,oquevocêestávestindo?

Simon baixou os olhos para a camisa de babados e a calça de couro. Eleestava vagamente consciente da presença de Raphael, em algum lugar nas

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sombras,dandorisadinhas.— É uma longa história — explicou. — Você acha que a gente poderia

entrar?

Magnusvirouacaixadepratacomasiniciais,osolhosdegatoreluzindosobaluzenfeitiçadafracanoporãodeAmatis.

Jocelyn o tava com um olhar de ansiedade curiosa. Luke não conseguiaevitar pensar em todas as vezes que Jocelyn levara Clary ao apartamento deMagnusquandoelaerapequena,emtodasasvezesqueostrês caramsentadosjuntos,umtrioimprovável,enquantoClarycresciaecomeçavaaselembrardoquedeveriaesquecer.

—Algumacoisa?—perguntouJocelyn.—Vocêprecisamedartempo—pediuMagnus,cutucandoacaixacomum

dedo.—Armadilhasmágicas,maldições,coisasassim,elaspodemestarmuitobemescondidas.

—Leveotempoqueprecisar—disseLuke,reclinando-secontraumamesaquetinhasidoempurradaparaumcantocheiodeteiasdearanha.

Há muito tempo ela zera o papel de mesa da cozinha de sua mãe. Elereconheceu o padrão de marcas de faca no tampo de madeira, até mesmo amarca que ele havia deixado em uma das pernas, ao chutá-la durante suaadolescência.

Duranteanos,elaforadeAmatis.ForadelaquandosecasaracomStephen,ealgumasvezesserviraparaoferecerjantaresnacasaHerondale.Foradelaapósodivórcio,depoisqueStephensemudaraparaosolarno interiorcomanovamulher.Na verdade, todooporãohavia cado empilhado commobília velha:itensqueLukereconheciacomopertencentesaospaisdeles,quadrosebibelôsda época em que Amatis tinha sido casada. Ele se perguntava por que elaesconderaascoisasali.Talveznãosuportasseolharparaelas.

—Nãoachoquehajaalgoerradocomacaixa—disseMagnus, nalmente,colocandoacaixadevoltanaprateleiraondeJocelynaen ara,semvontadedeteroitememcasa,mastambémsemvontadedejogá-lofora.Eleestremeceue

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esfregouasmãos.Estavaembrulhadoemumcasacocinzaepretoqueofaziaseassemelhar a um detetive durão; Jocelyn não lhe dera chance de pendurar ocasacoquandoelechegara,simplesmenteoagarrarapelobraçoeoarrastaraatéoporão.—Semtruques,semarmadilhas,semmágicaalguma.

Jocelynpareceuumpoucoconstrangida.—Obrigada.Porterverificado.Eupossoestarumpoucoparanoica.Edepois

doqueaconteceuemLondres...—OqueaconteceuemLondres?— Nós não sabemos muita coisa — explicou Luke. — Recebemos uma

mensagemdefogodoGardsobreissohojeàtarde,masnãohámuitosdetalhes.Londres foi um dos poucos Institutos que ainda não tinha sido evacuado.Aparentemente, Sebastian e suas forças tentaramatacar. Eles foram repelidospor algum tipo de feitiço de proteção, algo que nem mesmo o Conselhoconhecia.AlgoqueadvertiuosCaçadoresdeSombrassobreoqueestavavindoeosconduziuparaasegurança.

—Um fantasma— disseMagnus, e um sorriso pairou em seus lábios.—Umespírito,dedicadoàproteçãodolugar.Elaestáalihá130anos.

— Ela? — repetiu Jocelyn, recostando-se na parede empoeirada. — Umfantasma?Sério?Qualeraonomedela?

—Vocêareconheceriapelosobrenome,seeu lhecontasse,maselanão iagostar que eu contasse.—O olhar deMagnus estava distante.—Espero queisso signi que que ela encontrou a paz. — Ele voltou a prestar atençãoimediatamente.—Dequalquerforma,eunãoquerialevaraconversaparaesterumo.Nãofoiporessarazãoquevimatévocês.

— Imaginei que não — disse Luke. — Agradecemos a visita, embora euadmita ter cado surpreso ao te ver na entrada.Não achei que você fosse virparacá.

A frasePenseique iriaparaacasadosLightwood couparandoentre eles,semserverbalizada.

—EutinhaumavidaantesdeAlec—a rmouMagnus,semrodeios.—SouoAltoFeiticeirodoBrooklyn.Estou aquipara assumirum lugarnoConselho

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emnomedosFilhosdeLilith.— Pensei que Catarina Loss fosse a representante dos feiticeiros— disse

Luke,surpreso.— Ela era — admitiu Magnus. — Ela me fez assumir seu lugar para que

pudesseviratéaquieverAlec.—Elesuspirou.—Naverdade,elainsistiunessepontoemespecial enquantoestávamosnoHunter’sMoon.Eé sobre issoquequeriaconversarcomvocês.

Lukesentou-senamesamanca.—VocêviuMorcego?—perguntouele.MorcegocostumavatrabalharnobarHunter’sMoonduranteodia,emvez

denadelegacia;nãoeraoficial,mastodossabiamqueeraondeoencontrariam.—Sim. Ele acabou de receber um telefonema deMaia.—Magnus passou

umadasmãospelocabelopreto.—Sebastiannãogostaexatamentedofatodeser repelido—disse ele lentamente, eLuke sentiuosnervosenrijecerem.Eraevidente que Magnus estava hesitante em compartilhar as notícias ruins. —Parece que depois que tentou atacar o Instituto de Londres e se deumal, elevoltousuaatençãoàPraetorLupus.Aparentemente,elenãovêmuitautilidadepara os licantropes, não pode transformá-los em Crepusculares, por issoqueimouedestruiuolocal,eassassinoutodoseles.MatouJordanKylenafrentedeMaia.Eadeixouviverparaqueentregasseumrecado.

Jocelynabraçouoprópriocorpo.—MeuDeus.—Qualeraorecado?—perguntouLuke,recobrandoavoz.— Era um recado para os integrantes do Submundo— disseMagnus.—

FaleicomMaiapelotelefone.Elatevequememorizá-lo.Aparentementedizia:“Diga aos membros do Submundo. Estou atrás de vingança e vou conseguir.VoulidardessemodocomqualquerumquesealieaosCaçadoresdeSombras.Não tenhonadacontra suaespécie, amenosquevocês sigamosNephilimnabatalha; nesse caso, vocês alimentarão minha lâmina e as lâminas do meuexército,atéoúltimoserextintodasuperfíciedestemundo.”

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Jocelynfezumsomexasperado.—Elefalacomoopai,nãofala?LukeolhouparaMagnus.—VocêvaientregaresserecadoaoConselho?Magnusbateunoqueixocomumdedocheiodeglitternaunha.—Não—respondeuele.—Mas tambémnãovouesconderdosmembros

do Submundo.Minha lealdade aos Caçadores de Sombras não está acima dalealdadeaeles.

Nãoécomoasua.Aspalavraspendiamentreeles,tácitas.—Eutenhoisto—disseMagnus,etirouumpedaçodepapeldobolso.Luke

reconheceu,poiseletambémtinhaum.—Vocêvaiaojantardeamanhãànoite?—Vou.Asfadasencaramconvitescomoestecommuitaseriedade.Meliorn

eaCorteficariamaborrecidosseeunãofosse.—Entãoplanejocontaraelas—disseMagnus.— E se entrarem em pânico? — perguntou Luke. — Se abandonarem o

ConselhoeosNephilim?—NãoécomoseoqueaconteceucomaPraetorpudesseserocultado.— O recado de Sebastian poderia — disse Jocelyn. — Ele está tentando

assustarosintegrantesdoSubmundo,Magnus.EstátentandofazercomqueseafastemenquantodestróiosNephilim.

—Seriadireitodeles—retrucouMagnus.—Se zeremisso,achaqueosNephilimvãoperdoá-losumdia?—insistiu

Jocelyn.—AClavenãoperdoa.SãomaisrigorososqueDeusempessoa.—Jocelyn—interrompeuLuke.—IssonãoéculpadeMagnus.MasJocelynaindafitavaofeiticeiro.—OqueTessalhediriaparafazer?—questionouela.— Por favor, Jocelyn — disse Magnus. — Você mal a conhece. Ela iria

pregar a honestidade; normalmente é o que faz. Esconder a verdade nuncafunciona.Quandovocêviveportemposuficiente,aprendeaenxergarisso.

Jocelynbaixouoolharparaasmãos:erammãosdeartista,queLukesempre

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amara—ágeis,cuidadosasemanchadasdetinta.—NãosoumaisumaCaçadoradeSombras—emendouela.—Fugideles.

Conteiissoavocêsdois.MasummundosemCaçadoresdeSombras...eutenhomedodisso.

—AntesdosNephilim,haviaummundo—disseMagnus.—Ehaveráumdepoisdeles.

—Ummundoondepossamossobreviver?Meu lho...—começouJocelyn,eparouquandoouviubatidasvindodoandardecima.Alguémestavabatendoàporta da frente.—Clary?— perguntou ela, em voz alta.—Talvez ela tenhaesquecidoachavedenovo.

—Euatendo—disseLuke, e se levantou.Ele trocouumolharbreve comJocelynquandosaiudoporão,amentegirando.

Jordan morto, Maia de luto. Sebastian tentando colocar os membros doSubmundocontraosCaçadoresdeSombras.

Ele abriu a porta da frente, e uma corrente de ar frio da noite entrou.Parada, na entrada, estava uma jovem com cabelo louro-claro cacheado,vestindoouniforme.HelenBlackthorn.Lukemal teve tempode registrarqueas torres demoníacas acima deles estavam brilhando com um tom vermelho-sanguequandoeladisse:

—TenhoumrecadodoGard—disseela.—ArespeitodeClary.

—Maia.Uma voz baixa em meio ao silêncio. Maia se virou, sem desejar abrir os

olhos. Havia alguma coisa terrível esperando na escuridão, algo do qual elapoderiaescaparsomentesedormisseparasempre.

—Maia.— Ele a tava das sombras, olhos claros e pele escura.O irmãodela,Daniel.Enquantoelaobservava,elearrancavaasasasdeumaborboletaedeixavaocorpodestacairnochão,contorcendo-se.

— Maia, por favor. — Um toque leve no braço. Ela se ergueu numsobressalto,etodoocorpoconvulsionou.Ascostasbateramemumaparede,eela arfou, abrindo os olhos. Eles estavam grudentos, os cílios tinham sal nas

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beiradas.Haviachoradoduranteosono.Elaseencontravanumquartosemi-iluminado,comumaúnicajanelavirada

paraaruasinuosanocentro.Davaparaverosarbustosdesfolhadosatravésdovidromanchadoeabordadealgumacoisademetal:umaescadade incêndio,imaginouela.

Maia baixou os olhos— uma cama estreita com cabeceira de ferro e umcobertorfinoqueelahaviachutadoparaospés.Ascostascontraumaparededetijolos. Uma única cadeira, velha e lascada, ao lado da cama.Morcego estavasentadonela,olhosarregalados,baixandoamãolentamente.

—Eusintomuito—disseele.—Não—rosnouela.—Nãometoque.—Vocêestavagritando—informouele.—Duranteosono.Ela passou os braços em volta do corpo. Vestia um jeans e uma camiseta

regata. O suéter que tinha vestido em Long Island se perdera, e a pele dosbraçossearrepiavacomcalafrios.

— Onde estão minhas roupas? — perguntou ela. — Minha jaqueta, meusuéter...

Morcegolimpouagarganta.—Estavamcobertosdesangue,Maia.—Tá—disseela.Ocoraçãobatiaforte.—Vocêselembradoqueaconteceu?—questionouele.Elafechouosolhos.Lembrava-sedetudo:daviagem,davan,doedifícioem

chamas,dapraia coberta comcorpos.De Jordandesabandoemcimadela,dosanguejorrandoemcimaeaoredordelafeitoágua,misturando-seàareia.Seunamoradoestámorto.

—Jordan—disseela,emborajásoubesse.Morcegoestava comumaexpressão séria;haviaumre exo esverdeadoem

seus olhos castanhos que os fazia brilhar à penumbra. Era um rosto que elaconhecia bem. Ele fora um dos primeiros lobisomens que ela encontrara. Esaíram juntos até ela dizer que se achava nova demais para a cidade, agitada

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demais, que ainda pensava demais em Jordan para um novo relacionamento.Ele terminara com ela no dia seguinte; surpreendentemente, continuaramamigos.

— Está morto — respondeu ele. — Junto a praticamente toda a PraetorLupus. Praetor Scott, os alunos... alguns sobreviveram. Maia, por que vocêestavalá?OqueestavafazendonaPraetor?

Maia contou sobre o desaparecimento de Simon, o telefonema da Praetorpara Jordan, a viagem frenética até Long Island, a descoberta da Praetor emruínas.

Morcegopigarreou.— Eu estou com algumas coisas do Jordan. As chaves, o pingente da

Praetor...EracomoseMaianãoconseguisserecuperarofôlego.—Não.Nãoquero...Nãoqueroascoisasdele—disseela.—Ele iaquerer

que Simon casse com o pingente. Quando encontrarmos Simon,entregaremosaele.

Morcegonãoprolongouoassunto.— Tenho boas notícias — disse ele. — Tivemos novidades de Idris: seu

amigoSimonestábem.Naverdade,eleestácomosCaçadoresdeSombras.—Ah.—Maiasentiuoapertonocoraçãoseafrouxarumpouco,dealívio.—Eudevia ter te contado logode cara—desculpou-se ele.—É só que...

queipreocupado.Vocêestavamuitomalquandotetrouxemosdevoltaàsede.Eficoudormindodesdeentão.

Euqueriadormirparasempre.—EuseiquevocêjácontouaMagnus—emendouBat,comorostotenso.

—MasexpliquepramimoutravezporqueSebastianMorgensternatacariaoslicantropes.

—Elefalouqueeraumamensagem.—Maiaouviualetargiadaprópriavoz,comoseestivessedistante.—Elequeriaquesoubéssemosqueoataqueocorreuporque os lobisomens eram aliados dosCaçadores de Sombras e que era issoqueeleplanejavafazercomtodososaliadosdosNephilim.

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“Eununcavouparar,nuncavou carimóvel,atéqueamortefecheosmeusolhos,ouafortunamedêamedidadavingança.”

—Agora osCaçadores de Sombras saíram deNovaYork, e Luke está emIdris com eles. Estão erguendo barreiras extras. Embreve não conseguiremosenviarnemrecebermensagens.—Morcegoseremexeunacadeira;Maiasentiuquehaviamaisalgumacoisaqueelenãoestavalhecontando.

—Oquefoi?—disseela.Osolhosdelesedesviaramcomrapidez.—Morcego...—VocêconheceRufusHastings?Rufus.MaiaserecordavadaprimeiravezqueestiveranaPraetorLupus,um

homem com rosto marcado por arranhões e expressão irritada, saindo doescritóriodePraetorScottnumacessodefúria.

—Nãodefato.—Elesobreviveuaomassacre.Estáaquinadelegacia.Estánoscolocandoa

pardetudo—prosseguiuMorcego.—EtemconversadocomosoutrossobreLuke.DizqueeleémaisumCaçadordeSombrasqueumlicantrope,quenãotemsidolealaobando,queobandoprecisadeumnovolíderagora.

—Vocêéolíder—corrigiuela.—Vocêéosegundoemcomando.—Poisé,e fuidelegadoaessa funçãoporLuke. Issosigni caque também

nãosouconfiável.Maiadeslizouparaabeiradadacama.Ocorpointeirodoía;elapercebeuisso

quandopôsospésdescalçosnopisofriodepedra.—Ninguémestáprestandoatençãonele,está?Morcegodeudeombros.— Isso é ridículo. Depois do que aconteceu, temos que nos unir, e não

tolerar alguém tentando nos separar. Os Caçadores de Sombras são nossosaliados...

—EfoiporessarazãoqueSebastiannosatacou.—Eleatacariadequalquerforma.NãoéamigodosmembrosdoSubmundo.

EleéfilhodeValentimMorgenstern.—Osolhosdelaardiam.—Elepodeestar

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tentandonosfazerabandonarosNephilimtemporariamenteparapoderiratrásdeles, mas se conseguir extingui-los da face da Terra, virá atrás de nós emseguida.

Morcegojuntoueseparouasmãos,depois,pareceutomarumadecisão.—Seiquevocê temrazão—disseele, e foi atéumamesinhanocantodo

cômodo.Voltoucomumajaqueta,alémdemeiasebotas,easentregouaela.— Apenas... faça-me um favor e não diga nada assim hoje à tarde. Os

ânimosjávãoestarbemexaltadosdojeitoqueascoisasestão.Elavestiuajaqueta.—Hojeàtarde?Oquetemhojeàtarde?Elesuspirou.—Ofuneral—respondeu.

—VoumatarMaureen—afirmouIsabelle.Elaabriraasduasportasdoguarda-roupadeAlecejogavaasroupassobreopiso,formandomontinhos.

Simonestavadeitadoedescalçoemumadascamas(deJace?OudeAlec?),depois de ter tirado as assustadoras botas a veladas. Embora sua pele nãoestivesse realmentemachucada,parecia incríveldeitar-se sobreumasuperfíciemaciadepoisdeterpassadotantashorasnochãosujoedurodoHotelDumort.

—Você vai ter que enfrentar todos os vampiros deNova York para fazerisso—disseele.—Aparentemente,elesaadoram.

— Gosto não se discute. — Isabelle estendeu um suéter azul-escuro queSimonreconheceucomosendodeAlec, sobretudopelosburacosnospunhos.—EntãoRaphaeltetrouxeaquiparavocêpoderconversarcommeupai?

Simonseergueueseapoiounoscotovelosparaobservá-la.—Vocêachaqueelevaiencararissonumaboa?— Claro, por que não?Meu pai adora conversar. — Ela pareceu amarga.

Simon se inclinou para a frente, mas, quando ela ergueu a cabeça, estavasorrindoparaele,eelepensouterimaginadoaquilo.—Noentanto,quemsabeoqueacontecerácomoataqueàCidadelahojeànoite.—Elamordeuo lábioempreocupação.— Isso poderia signi car o cancelamento da reunião ou sua

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antecipação. Obviamente, Sebastian é um problema maior do que elespensavam.ElenãodevianemsercapazdeseaproximardaCidadela.

—Ora—falouSimon—,eleéumCaçadordeSombras.—Não,nãoé—retrucouIsabellecomraiva,earrancouumsuéterverdede

umcabidedemadeira.—Emais:eleéumhomem.—Desculpe—disseSimon.—Deveserangustianteesperarparavercomo

abatalhavaiterminar.Quantaspessoaselesatravessaram?—Cinquenta ou sessenta— respondeu Isabelle.— Eu quis ir, mas... eles

não me deixaram. — A voz sustentava o tom cauteloso que signi cava aaproximaçãodeumassuntosobreoqualelanãoqueriafalar.

—Euteriaficadopreocupadocomvocê—disseele.SimonviuIsabelleesboçarumsorrisorelutante.— Experimente isto — falou, e jogou o suéter verde para ele, um pouco

menospuídoqueorestantedasroupas.— Você tem certeza de que não tem problema eu pegar as roupas

emprestadas?—Nãopodeandarporaídessejeito—disseela.—Vocêpareceterfugidode

umromance.—Isabellepôsumadasmãoscontraa testadramaticamente.—Oh, LordeMontgomery, o que o senhor pretende fazer comigo neste quartoquandoestivermostotalmenteasós?Umadonzelainocenteedesprotegida?—Elaabriuozíperda jaquetaea jogounochão, revelandoumacamiseta regatabranca.Lançouumolharardenteparaele:—Minhahonraestásegura?

— Eu, ah... o quê? — balbuciou Simon, temporariamente desprovido devocabulário.

—Seiqueosenhoréumhomemperigoso—declarouIsabelle,caminhandoemdireçãoàcama.Elaabriuacalçaeatirou,chutando-apelochão.Vestiaboyshorts preta por baixo da roupa. — Alguns o chamam de libertino. Todossabemqueosenhoréumdemôniocomasmulheres,comsuacalçairresistívelecamisapoeticamentecheiadebabados.—Elapulounacamaeengatinhouatéele, tando-ocomoumaserpenteprestesadevorarsuapresa.—Rogo-lhequeconsidere minha inocência — sussurrou ela. — E meu pobre e vulnerável

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coração.Simon concluiu que aquilo era muito parecido com jogar D&D, porém

potencialmentemuitomaisdivertido.— LordeMontgomery não tem consideração por nada, além dos próprios

desejos— disse ele, com voz rouca.—Vou lhe dizermais uma coisa. LordeMontgomerytemumapropriedademuitogrande...eterrenosimensostambém.

Isabelledeuumarisadinha,eSimonsentiuacamabalançardebaixodeles.—Tábem,eunãoesperavaquevocêentrassetantoassimnabrincadeira.— Lorde Montgomery sempre supera as expectativas — retrucou Simon,

agarrandoIsabellepelacinturaerolando-aparaque cassedebaixodele,comocabelo preto espalhado sobre o travesseiro. — Mães, tranquem suas lhas,depois, tranquem as criadas e então se tranquem. LordeMontgomery está àsolta.

Isabelleemoldurouorostocomambasasmãos.—Milorde— disse ela, com os olhos brilhando.— Temo que não possa

resistirpormaistempoaosseusencantosmasculinosemodosviris.Porfavor,façaoqueosenhorquisercomigo.

SimonnãotinhamuitacertezadoqueLordeMontgomeryfaria,massabiaoqueele queria fazer. Inclinou-se e deu um beijo demorado em sua boca. OslábiosdeIsabelleseabriramsobosdele,esubitamentetudosetransformouemcalor doce e sombrio, e os lábios de Isabelle roçaram os dele, primeiroprovocando,depois,comforça.Elacheirava,comosempre,arosasesangue,deummodoinebriante.Simonencostouoslábiosnopontoondeosanguepulsavaem sua garganta, abocanhando-o com delicadeza, mas sem morder, e Izzyofegou; asmãosdeladesceramparaa frenteda camisadele.Porum instante,Simon cou preocupado com a ausência de botões, mas Isabelle agarrou otecidonasmãos fortes e rasgou a camisa aomeio, deixando-a penduradanosombrosdele.

— Caramba, esta coisa rasga que nem papel — exclamou ela, seposicionando para tirar a camiseta regata. Estava no meio da ação quando a

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portaseabriueAlecentrounoquarto.— Izzy, você... — começou ele. Então arregalou os olhos e recuou tão

depressa que bateu a cabeça na parede atrás de si.—O que ele está fazendoaqui?

Isabelleendireitouacamisetaeolhoucomexpressãoseveraparaoirmão.—Vocênãobatemais?—É...éomeuquarto!—cuspiuAlec.Ele parecia tentar deliberadamente não olhar para Izzy e Simon, que, de

fato,estavamemumaposiçãocomprometedora.SimongirourapidamenteparalongedeIsabelle,quesesentoumuitoesticada,espanando-secomoseestivessecom apos nas roupas. Simon sentou-se mais devagar, tentando fechar asmetadesdacamisarasgada.

—Porquetodasasminhasroupasestãonochão?—perguntouAlec.—Euestava tentandoencontraralgumacoisaparaSimonusar—explicou

Isabelle. —Maureen o fez vestir calça de couro e uma camisa com babadosporqueeleeraumescravodignodeumromance.

—Eleeraoquê?— Um escravo digno de um romance — repetiu Isabelle, como se Alec

tivessefaladoalgoparticularmenteestúpido.Alecbalançouacabeçacomoseestivessenumpesadelo.—Sabedeumacoisa?Nãoexplique.Apenas...sevistam,vocêsdois.— Você não vai sair... vai? — perguntou Isabelle, em tom desanimado,

descendoda cama.Elapegoua jaqueta e a vestiu, depois jogouo suéter verdeparaSimon.Eleotrocaracomsatisfação,nolugardacamisadepirata,que,dequalquerforma,estavaemfrangalhos.

—Não.Émeuquarto.Alémdomais,precisoconversarcomvocê,Isabelle.— O tom de Alec era ríspido. Simon pegou o jeans e os sapatos do chão eentrounobanheiroparasetrocar,demorando-sedepropósito.Quandovoltou,Isabelleestavasentadanacamaamarrotadaepareciatensa.

—EntãoelesvãoabriroPortalparatrazertodomundodevolta?Ótimo.—Ébom,masoqueeusenti...équenãoébom.—InconscientementeAlec

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pôs amão no próprio braço, perto do símbolo deparabatai.— Jace não estámorto—emendouapressadamentequandoIsabelleempalideceu.—Eusaberiaseeleestivesse.Masalgumacoisaaconteceu.Algocomofogocelestial,acho.

—Vocêsabeseeleestábemagora?EClary?—perguntouIsabelle.—Espereaí, rebobine— interrompeuSimon.—Quehistóriaéessa sobre

Clary?EJace?— Eles atravessaram o Portal— respondeu Isabelle, com voz sombria.—

ParaabatalhanaCidadela.Simonpercebeuqueinconscientementehaviaesticadoamãoparaoanelde

ouronamãodireitaeagoraoapertavacomosdedos.—Elesnãosãomuitojovens?—Elesnãotinhamexatamentepermissão.—Alecestavareclinadocontraa

parede. Ele parecia cansado, as olheiras estavam azuladas, da cor dehematomas.—AConsulesatentouimpedi-los,masnãodeutempo.

Simonvirou-separaIsabelle.—Evocênãomecontou?Isabellenãotevecoragemdeencará-lo.—Eusabiaquevocêiasurtar.AlecolhoudeIsabelleparaSimon.—Vocênãocontouparaele?SobreoqueaconteceunoGard?Isabellecruzouosbraçosepareceudesafiá-lo.—Não.Euesbarreinelenarua,aínóssubimose...enãoédasuaconta.—Édaminhacontaquandovocêestánomeuquarto—disseAlec.—Se

vocêvaiusarSimonparaesquecerqueestázangadaeconfusa, tudobem,masfaçaissonoseuquarto.

—Eunãoestavausando...SimonpensounosolhosdeIsabelle,quebrilharamquandoelaoviraparado

narua.Elepensouquefossefelicidade,masagorapercebiaqueprovavelmenteera por causa de lágrimas não derramadas. Omodo como ela caminhara emdireção a ele, com a cabeça abaixada, os ombros encolhidos, como se elaestivessesecontrolando.

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—Estava,sim...—disseele.—Ouvocêteriamecontadooqueaconteceu.Você sequermencionouClaryou Jace, ouque estavapreocupadaouqualquercoisa.—Ele sentiuumapontadanoestômagoquandopercebeucomoIsabellese desviara habilmente de suas perguntas e o distraíra combeijos, e sentiu-seumidiota.Eletinhapensadoqueelaestavafelizporvê-lo,especi camente,mastalvezpudessetersidocomqualquerum.

OrostodeIsabelleestavaimóvel.— Por favor— pediu ela.—Você nem sequerperguntou.— Ela estivera

remexendo no cabelo; agora havia esticado a mão e começado a retorcê-loquasefuriosamentenumcoquenotopodacabeça.—Sevocêsdoisvão caraímeculpando,talvezdevessemsimplesmenteir...

—Nãoestou te culpando—começouSimon,mas Isabelle já estavadepé.Elaagarrouopingentederubi,arrancando-osemmuitadelicadezaporcimadacabeçadele,eorecolocounoprópriopescoço.—Eununcadeviaterdadoistoavocê—falou,osolhosbrilhando.

—Elesalvouaminhavida—retrucouSimon.Issoafezparar.—Simon...—sussurrouIsabelle.Ela desistiu de falar quando Alec subitamente agarrou o próprio ombro e

começouaarfar.Eledeslizouatéochão.Isabellecorreuatéeleeseajoelhouaoseulado.

—Alec?Alec?—Avozdelaseergueuaotomdepânico.Alectirouajaqueta,afrouxouagoladacamisaeaafastouparaveramarca

no ombro. Simon reconheceu o esboço do símbolo parabatai.Alec passouosdedos em cima, que caram sujos com alguma coisa escura, semelhante acinzas.

—ElesvoltarampeloPortal—disseele.—EtemalgumacoisaerradacomJace.

Eracomovoltaraumsonho,ouaumpesadelo.Após aGuerraMortal, a Praça doAnjo cara cheia de corpos. Corpos de

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CaçadoresdeSombras,estendidosem leirasorganizadas,cadacadávercomosolhoscobertoscomasedabrancadamorte.

Mais uma vez, havia corpos na praça, mas agora também havia caos. AstorresdemoníacasreluziamcomumaluzbrilhantenacenaquesaudaraSimonquandoele nalmentechegouaoSalãodosAcordos,depoisdeseguirIsabelleeAlec pelas ruas sinuosas de Alicante. A praça estava cheia de pessoas. HaviaNephilim uniformizados deitados no solo, alguns se contorcendo com dor egritando,outros,imóveisdemodoalarmante.

OSalãodosAcordoseraescuroebemfechado.Umdosmaioresedifíciosdepedra na praça estava aberto e cintilava com as luzes, as portas duplasescancaradas.UmacorrentedeCaçadoresdeSombrasiaevinha.

Isabelleseergueranapontadospéseexaminavaamultidãocomansiedade.Simon acompanhava o olhar dela. Conseguia distinguir alguns poucos vultosfamiliares: a Consulesa correndo ansiosamente entre as pessoas, Kadir, doInstituto de Nova York, Irmãos do Silêncio nas túnicas de pergaminho,orientando silenciosamente as pessoas para que seguissem rumo ao prédioiluminado.

—OBasilias está aberto—disse Isabelle para umAlec abatido.—TalveztenhamlevadoJaceláparadentro,seeleestiverferido...

—Eleestavaferido—emendouAlec,semrodeios.—OBasilias?—perguntouSimon.—Ohospital—falouIsabelle,indicandooedifícioiluminado.Simonsentia

a energia de Isabelle pulsando, nervosa, em pânico. — Eu deveria... nósdeveríamos...

—Voucomvocês—disseSimon.Elabalançouacabeça.—ApenasCaçadoresdeSombras.Alecchamou:— Isabelle. Vamos. — Ele segurava o ombro marcado pelo símbolo de

parabatairigidamente.Simonqueriadizeralgumacoisaaele,queriadizerqueseu melhor amigo também tinha ido para a batalha e que também estava

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desaparecido, queria dizer que compreendia. Mas talvez só fosse possívelcompreender umparabatai quando se era um Caçador de Sombras. Eleduvidava que Alec fosse agradecê-lo por dizer que compreendia. RaramenteSimonsentiraadivisãoentreosNephilimeosnãoNephilimtãointensamente.

Isabelle assentiue seguiuo irmão semdizermaisnada.SimonosobservouenquantocruzavamapraçaepassavampelaestátuadoAnjo,cujoolharmiravaas consequências da batalha com olhos tristes de mármore. Eles subiram osdegraus da frente do Basilias e desapareceram até mesmo para sua visão devampiro.

— Você acha — disse uma voz baixa em seu ombro — que eles seimportariamsenósnosalimentássemosdosmortos?

Era Raphael. O cabelo enrolado tinha um halo bagunçado ao redor dacabeça,eelevestiaapenasumacamisetafinaeumjeans.Pareciaumacriança.

—O sanguedos recém-falecidosnão éminhabebida favorita—emendouele—,masémelhorquesangueengarrafado,nãoacha?

—Vocêtemumapersonalidadeincrivelmentecharmosa—disseSimon.—Esperoquealguémjátenhateditoisso.

Raphaelfezummuxoxo.—Sarcasmo—falou.—Entediante.Simonemitiuumsomexasperadoeincontrolável.—Vánafrenteentão.Alimente-sedosNephilimmortos.Tenhocertezade

queelesrealmenteestãonoclimaparaisso.Talvezdeixemvocêviverporcincoouatédezsegundos.

Raphaeldeuumarisadinha.—Parecepiordoqueé—disse.—Nãohátantosmortosassim.Umbocado

de feridos. Eles foram suplantados. Agora não vão esquecer o que signi caenfrentarosCrepusculares.

Simonsemicerrouosolhos.—OquesabesobreosCrepusculares,Raphael?—Sussurrosesombras—rebateuovampiro.—Masmeunegócioésaber

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dascoisas.—Então,sesabedascoisas,diga-meondeestãoJaceeClary—disseSimon,

semmuita esperança.RaramenteRaphael era útil, amenos que isso fosse serútilparaele.

— Jace está noBasilias— respondeuRaphael, para surpresa de Simon.—Parece que o fogo celestial em suas veias nalmente foi demais para ele. ElequasesedestruiueaumdosIrmãosdoSilênciocomele.

—Oquê?—AansiedadedeSimonpassoudegeralaespecí ca.—Seráqueelevaisobreviver?OndeestáClary?

Raphael lançouumolhar arrematadopor cílios longos e escuros; o sorrisoeratorto.

—Paraosvampiros,nãoadiantaseinquietarmuitopelavidadosmortais.—JuroporDeus,Raphael,sevocênãocomeçaraajudar...— Muito bem então. Venha comigo. — Raphael avançou nas sombras,

mantendo-senos limitesdapraça.Simonapressou-separaacompanhá-lo.Eleavistouumacabeçalouraeumacabeçaescurainclinadas,eramAlineeHelen,cuidandodeumdosferidos,epensou,poruminstante,emAleceJace.

—SevocêestáseperguntandooqueaconteceriasebebesseosanguedeJaceagora,arespostaéqueissotemataria—explicouRaphael.—Vampirosefogocelestialnãosemisturam.Sim,mesmovocê,Diurno.

—Eu não estava pensando nisso.— Simon fez uma careta.— Estavameperguntandooqueaconteceunabatalha.

—SebastianatacouaCidadelaAdamant—esclareceuRaphael,econtornouumamontoadodeCaçadoresdeSombras.—OndeasarmasdosCaçadoresdeSombras são forjadas. O local onde cam as Irmãs de Ferro. Ele enganou aClave ao fazê-los acreditar que tinha uma força de apenas vinte homensconsigo, quando, na verdade, eram mais. Ele teria matado todos eprovavelmentetomadoaCidadelasenãofosseporseuJace.

—ElenãoémeuJace.—EClary—continuouRaphael,comoseSimonnãotivesseditonada.—

Emboraeunãosaibaosdetalhes.Ésóoqueouviporaí,eparecehavermuita

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confusãoentreosNephilimquantoaoocorrido.—ComoSebastianconseguiulevá-losapensarquehaviamenosguerreiros?Raphaelergueuosombros,comoserespondendoquenãosabia.—OsCaçadoresdeSombrasseesquecem,algumasvezes,dequenemtoda

mágica é deles. A Cidadela é construída sobre Linhas Ley. Há uma magiaantiga, selvagem, que existia antes de Jonathan Caçador de Sombras, e quevoltaráaexistir...

Ele parou de falar, e Simon acompanhou seu olhar. Por um instante, viuapenasumacortinade luzazul.Depoisqueeladiminuiu,eleviuClarydeitadanosolo.Eouviuumsomderugido,comosuacorrentesanguínearessoandonosouvidos. Ela estava pálida e imóvel, os dedos e a boca tingidos de um violetaazuladoeescuro.Ocabelocaíaemmechassoltasaoredordorosto,eosolhosestavam circundados pormanchas escuras. Ela vestia um uniforme rasgado eensanguentado, e perto da mão havia uma espada Morgenstern, a lâminagravadacomestrelas.

Magnusestavainclinadopertodela,amãonorostodeClary,aspontasdosdedos brilhando num tom azulado. Jocelyn e Luke estavam ajoelhados alitambém.JocelynergueuoolhareviuSimon.Oslábiosdelaarticularamonomedele. Simonnão conseguia ouvir nada acima do rugido nos ouvidos. Será queClaryestavamorta?Elapareciamortaouquaseisso.

Eleavançou,masLukejáestavadepé,esticandoamãoparaSimon.AgarrouosbraçosdeleeoarrastouparaondeClaryestavadeitada.

AnaturezavampíricadeSimon lhedavaumaforçasobrenatural, forçaqueele mal aprendera a usar, mas Luke era tão forte quanto ele. Seus dedoscravaramnosbraçosdeSimon.

—Oqueaconteceu?—perguntouSimon,avozseelevando.—Raphael...?—Ele girou, procurandopelo vampiro,masRaphael tinha ido embora; ele semisturaraàssombras.—Porfavor—pediuSimonaLuke,desviandoosolhosdesteparaorostofamiliardeClary.—Deixe-me...

— Simon, não — vociferou Magnus. Ele acariciava o rosto de Clary,deixando centelhas azuis de rastro. Ela não se mexia nem reagia. — Isto é

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delicado...aenergiadelaestáextremamentebaixa.—Elanãodeveria estarnoBasilias?—questionouSimon, virando-separa

olharoedifíciodohospital.A luzaindaestavavertendoda janela, e,para sua surpresa,SimonviuAlec

de pé nos degraus. Estava encarando Magnus. Antes que Simon pudesse semover ou fazer sinal para ele, Alec virou-se abruptamente e voltou para ointeriordaconstrução.

—Magnus...—começouSimon.— Simon,cale a boca — disseMagnus entre dentes. Simon se contorceu

paradesvencilhar-sedoapertodeLuke,tropeçouebateucontraalateraldeummurodepedra.

—MasClary...—recomeçouele.Lukeestavaarrasado,massuaexpressãoerafirme.—Claryseesgotouaofazerumsímbolodecura.Maselanãoestáferida,o

corpoestáintacto,eMagnuspodeajudá-lamaisdoqueosIrmãosdoSilêncio.Amelhorcoisaafazeréficarforadocaminho.

—Jace—disseSimon.—Alecsentiualgumacoisaaconteceraele,graçasàligação deparabatai. Tem algo a ver com o fogo celestial. E Raphael estavatagarelandosobreLinhasLey...

— Veja, a batalha foi mais sangrenta do que os Nephilim esperavam.SebastianferiuJace,masofogocelestialricocheteounele,dealgumaforma.Equasedestruiu Jace também.Clary salvouavidade Jace,masos Irmãosaindaprecisam trabalharmuito para curá-lo.—Luke olhou para Simon com olhosazuiscansados.—EporquevocêestavacomIsabelleeAlec?PenseiquefosseficaremNovaYork.VeioporcausadeJordan?

Imediatamente,onomechamouaatençãodeSimon.—Jordan?Oqueeletemavercomisso?Pelaprimeiravez,Lukepareciaverdadeiramenteconfuso.—Vocênãosabe?—Nãoseioquê?Lukehesitouporumlongomomento.Depoisfalou:

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—Tenhoumacoisaparavocê.MagnustrouxedeNovaYork.—Eleen ouamão no bolso e retirou ummedalhão numa corrente. A peça era de ouro,gravadacomapatadeumloboeainscriçãolatinaBeatiBellicosi.

Abençoadossãoosguerreiros.Simonsoubeimediatamente.OpingentedeJordandaPraetorLupus.Estava

lascadoemanchadodesangue.Vermelho-escurocomoferrugem,manchandoa corrente e a face do medalhão. Mas se alguém sabia a diferença entreferrugemesangue,essealguémeraumvampiro.

—Não compreendo— disse Simon.O rugido voltou novamente aos seusouvidos.—Porquevocêestácomisto?Porqueestámedando?

—PorqueJordanqueriaquevocêficassecomele—respondeuLuke.—Queria?—AvozdeSimonseergueu.—Vocênãodeviadizer“quer”?Lukerespiroufundo.—Lamento,Simon.Jordanestámorto.

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9AsArmasqueVocêPorta

Clary acordou e viu em suas pálpebras fechadas a imagem de um símbolodesaparecendo.Eraumsímboloparecidocomasasligadasporumaúnicabarra.Todoseucorpodoía,eporuminstanteela couimóvel, temendoadorqueomovimento traria. Lembranças a invadiram lentamente— a planície de lavaendurecida pelo frio diante da Cidadela, a gargalhada de Amatis, desa andoClaryparaqueamachucasse, JaceabrindocaminhoemmeioaumcampodeCrepusculares;Jacenochão,sangrandofogo,IrmãoZachariahsejogandoparatrás,afastando-sedaschamas.

Ela abriu os olhos de repente.Meio que tinha esperado acordar em algumlugartotalmenteestranho,mas,emvezdisso,estavadeitadanapequenacamade madeira do quarto de hóspedes simples de Amatis. A luz pálida do solatravessavaascortinasderendaeformavadesenhosnoteto.

Clary começou a fazer esforço para sentar. Perto dela, alguém cantarolavabaixinho:erasuamãe.Jocelyninterrompeu-seimediatamenteelevantou-sedeum pulo, inclinando-se sobre a lha. Aparentemente tinha cado acordadadurante a noite inteira. Vestia uma camiseta velha e um jeans, e seu cabeloestava puxado para trás num coque, preso com um lápis. Uma onda defamiliaridade e alívio invadiu Clary, mas foi rapidamente acompanhada pelopânico.

—Mãe—disseela,enquantoJocelynseinclinava,encostandoascostasdamãonatestadeClarycomoseverificandoseelaestavacomfebre.—Jace...

—Jaceestábem—respondeuJocelyn,retirandoamão.DiantedoolhardesconfiadodeClary,Jocelynbalançouacabeça.

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—Eleestábem,deverdade.EstánoBasiliasagora,comoIrmãoZachariah.Estáserecuperando.

Claryolhouparaamãe,comarsevero.—Clary,seiquejálhedeirazõesparanãocon aremmim,masporfavor,

acredite, Jace estáperfeitamente bem . Sei que você nuncame perdoaria se eunãocontasseaverdadearespeitodele.

—Quandovoupodervê-lo?— Amanhã.— Jocelyn recostou-se na cadeira ao lado da cama e revelou

Luke,que caraapoiadonaparededoquarto.ElesorriuparaClary;umsorrisotriste,carinhoso,protetor.

—Luke!—exclamou,aliviadaporvê-lo.—Digaamamãequeestoubem.QuepossoiraoBasilias...

Lukebalançouacabeça.— Sinto muito, Clary. Sem visitas para Jace neste momento. Além disso,

hojevocêprecisadescansar.Ficamossabendosobreoquevocêfezcomaquelairatze,naCidadela.

—Ou,pelomenos,oqueaspessoasviramvocêfazer.Nãotenhocertezaseumdiavouentenderissodireito.—AsrugasnoscantosdabocadeJocelynseaprofundaram.—VocêquasesematoucurandoJace,Clary.Vaiterquetomarcuidado,poisnãotemreservasdeenergiainfinitas...

—Eleestavamorrendo—interrompeuClary.—Estavasangrandofogo.Eutinhaquesalvá-lo.

—Masnãoeraparavocêfazerisso!—Jocelynafastoudosolhosda lhaumcachosoltodocabeloruivo.—Oquevocêestavafazendonaquelabatalha?

—Elesnãotinhammandadopessoassu cientespeloPortal—disseClary,com voz desanimada. — E todo mundo estava falando sobre como ia serquandochegassem lá,que iamresgatarosCrepusculares,que iamtrazê-losdevolta, encontrar uma cura...mas eu estava em Burren. E você também,mãe.Sabe que não dá para resgatar os Nephilim que Sebastian controlou com oCáliceInfernal.

—Vocêviuminhairmã?—perguntouLuke,emvozbaixa.

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Claryengoliuemsecoeassentiu.— Lamento. Ela... Ela é a tenente de Sebastian. Não émais ela, nem um

tiquinho.—Elatemachucou?—perguntouLuke.Avozaindaestavacalma,masum

músculolatejavaemseurosto.Clarybalançoua cabeça;não conseguiamanter a composturaparamentir,

mastambémnãoconseguiacontaraverdadeaLuke.— Está tudo bem — disse ele, interpretando a ansiedade dela de outra

maneira.—AAmatisqueestáaserviçodeSebastianétãominhairmãquantoo Jace que servia a Sebastian era o garoto que você amava. É tãominha irmãquantoSebastianéofilhoquesuamãeteveumdia.

Jocelyn segurou a mão de Luke e beijou-lhe as costas levemente. Clarydesviouoolhar.Amãesevirounovamenteparaelauminstantedepois.

—Deus, a Clave... se eles aomenosouvissem.— Ela bufou, frustrada.—Clary,compreendemosporque fezoque feznanoitepassada,maspensamosquevocêestivessesegura.DepoisHelenapareceunanossaportaenoscontouque você havia sido ferida na batalha da Cidadela. Quase tive um enfartoquando achamos você na praça. Seus lábios e dedos estavam azuis. Como sevocêtivesseseafogado.SenãofosseporMagnus...

—Magnusmecurou?Oqueeleestáfazendoaqui,emAlicante?— Issonão tema ver comMagnus—censurou Jocelyn, comaspereza.—

Isso temavercomvocê. Jia temandadoforadesi,achandoquepermitiuquevocêatravessasseoPortalequevocêpoderia termorrido.EstavamchamandoCaçadoresdeSombrasexperientes,nãocrianças...

—EraSebastian—insistiuClary.—Elesnãocompreenderiam.— Sebastian não é nossa responsabilidade. E, por falar nisso...— Jocelyn

en ouamãodebaixodacama;quandolevantou,estavasegurandoHeosphoros.—Ésua?Estavanoseucinturãodearmasquandotrouxeramvocêparacasa.

—Sim!—Clarybateupalmas.—Penseiqueativesseperdido.—Éuma espadaMorgenstern,Clary—disse amãe, e segurou-a como se

fosse um pedaço de alface mofada. — A espada que vendi há muito tempo.

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Ondevocêaconseguiu?—Na loja de armas onde você a vendeu. A proprietária da loja disse que

ninguém mais ia comprá-la. — Clary tirou Heosphoros da mão da mãe. —Sabe, eusouumaMorgenstern.Nãopodemos ngirquenão tenhoumpoucodo sangue de Valentim. Preciso descobrir um jeito de ser parteMorgensternsemqueissosejaumproblema;sem ngirquesououtrapessoa...alguémcomumnomefalsoquenãosignificanada.

Jocelynrecuouligeiramente.—Vocêquerdizer“Fray”?—NãoéexatamenteumnomedeCaçadoradeSombras,é?—Não—disseamãe.—Nãoexatamente,maseletemsignificado.—Penseiquevocêotivesseescolhidoaoacaso.Jocelynbalançouacabeça.—VocêconheceacerimôniaquedeveserrealizadanascriançasNephilim

quandonascem?AquelaqueconcedeaproteçãoqueJaceperdeuquandovoltoudos mortos, aquela que permitiu a Lilith se aproximar dele? Normalmente acerimôniaérealizadaporumaIrmãdeFerroeumIrmãodoSilêncio,mas,noseu caso, como estávamos nos escondendo, eu não podia participaro cialmente.ElafoifeitapeloIrmãoZachariaheporumafeiticeira,nolugardaIrmãdeFerro.Deiavocêosobrenomedela.

—“Fray”?Osobrenomedelaera“Fray”?— O sobrenome foi um impulso — falou Jocelyn, sem exatamente

responderàpergunta.—Eu...gostavadela.Elaconheciaaperda,adoreoluto,no entanto era forte, do jeito que eu queria que você fosse. É tudo que eusemprequis.Quevocêfosseforte, casseseguraenãotivessequesofreroquesofri:oterror,adoreoperigo.

—IrmãoZachariah.—Claryseergueusubitamente.—Eleestavaláontemà noite. Ele tentou curar Jace,mas o fogo celestial o queimou. Ele está bem?Nãoestámorto,está?

— Eu não sei.— Jocelyn parecia um pouco confusa com a veemência de

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Clary. — Sei que ele foi levado para o Basilias. Os Irmãos do Silêncio têmmantidosegredosobreoestadodetodomundo;certamentenãofalariamsobreumdeles.

—EledissequeosIrmãosdeviamaosHerondaleporcausadelaçosantigos—afirmouClary.—Seelemorrer,será...

—Nãoseráculpadeninguém—disseJocelyn.—Eumelembrodequandoele pôs o feitiço de proteção em você. Falei para ele que nunca ia querer quevocê tivesse algo a ver com Caçadores de Sombras. Ele disse que talvez nãofosseminhaescolha.DissequeaatraçãodosCaçadoresdeSombrasécomoarebentação...eeleestavacerto.Penseiqueestivéssemoslivres,mascáestamos,devoltaaAlicante,devoltaàguerra,eaíestáminha lha,comsanguenorostoeumaespadaMorgensternnasmãos.

Havia um tomobscuro e tenso na voz de Jocelyn, o qual fez os nervos deClarychisparem.

—Mãe— disse ela. — Aconteceu mais alguma coisa? Tem mais algumacoisaquenãoestámecontando?

JocelyntrocouumolharcomLuke.Elefalouprimeiro:— Você já sabe que ontem de manhã, antes da batalha na Cidadela,

SebastiantentouatacaroInstitutodeLondres.—Masninguémficouferido.Robertfalou...—Então Sebastian voltou sua atenção para outro lugar— emendou Luke,

com rmeza.—EleeseuexércitoabandonaramLondreseatacaramaPraetorLupus emLong Island.Quase todos os Praetorianos, incluindo o líder, forammassacrados.JordanKyle...—Avozfoidelefalhou.—Jordanfoimorto.

Clarynãotinhaconsciênciadequehaviase levantado,masderepentenãoestavamaisdebaixodascobertas.JogaraaspernasporcimadalateraldacamaeesticavaamãoparaabainhadeHeosphorosnamesinhadecabeceira.

—Clary—chamouamãeeesticouobraço,colocandoosdedoscompridosnopulsodeClary, limitandoseusmovimentos.—Clary,acabou.Nãohánadaquevocêpossafazer.

Clary sentiaogostodas lágrimas,quentes e salgadas, ardendono fundoda

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garganta,e,sobaslágrimas,ogostomaisásperoeobscurodopânico.—Equanto àMaia? Se Jordan estámachucado,Maia estábem?ESimon?

Jordaneraoguardiãodele!Simonestábem?—Eu estoubem.Não se preocupe, estoubem—disse a vozde Simon.A

porta do quarto estava aberta, e, para o completo espanto de Clary, Simonentrou e parecia surpreendentemente tímido. Ela deixou a bainha deHeosphoroscairsobacoberta,etambémsedeixoucair,desabandoemcimadeSimoncomtantaforçaquechegouabateracabeçanaclavículadele.Clarynãopercebeu se doeu ou não. Estava ocupada demais se agarrando a ele como seambos tivessemacabadodecairdeumhelicópteroeestivessemsedeslocandovelozmente para o chão. Ela agarrava o suéter verde amassado, apertando orosto demaneira desajeitada contra o ombrodele enquanto se esforçava paranãochorar.

Eleaabraçou,acalmando-acomtapinhasconstrangidos,comoaquelesqueos garotos dão nas costas e ombros uns dos outros.Quando ela nalmente osoltouedeuumpassoparatrás,viuqueosuétereojeansqueeleestavausandoerammuitograndes.Umacorrentedemetalpendiaaoredordopescoço.

—Oqueestáfazendoaqui?—perguntou.—Dequemsãoestasroupasquevocêestáusando?

— É uma longa história, e a maior parte destas roupas são de Alec —respondeuSimon. Suaspalavras eramcasuais,mas ele parecia tenso.—Vocêdeviatervistooqueeuestavausandoantes.E,porfalarnisso,belopijama.

Clary olhou para si. Estava usando pijamas de anela, curtos demais napernaeapertadosdemaisnopeito,comestampadecaminhõesdebombeiro.

Lukeergueuumasobrancelha.—Achoqueerameuquandoeuerapequeno.—Você só pode estar brincando que não havia outra coisa que pudessem

usarparamevestir...?—Seinsistiremtentarsermorta,vouinsistiremescolheroquevocêveste

enquantoserecupera—disseJocelyn,comumrisinhominúsculo.— O pijama da vingança — resmungou Clary. Ela pegou o jeans e uma

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camisetadochão,eolhouparaSimon.—Euvoumetrocare,quandovoltar,émelhorvocê estarprontoparamecontarumpouco sobre comochegouaqui,algoalémde“éumalongahistória”.

Simon resmungou alguma coisa que soou como “mandona”, mas Clary játinha saído. Ela tomoubanho em tempo recorde, desfrutandoda sensaçãodaágualavandoasujeiradabatalha.AindaestavapreocupadacomJace,apesardeamãe tê-la tranquilizado,mas a visão de Simon levantara seu ânimo. Talveznão zessesentido,maselaestavamais felizporeleestarondeelapodia cardeolhonele,emvezdeteroptadoporvoltaraNovaYork.Sobretudo,depoisdeJordan.

Quando Clary voltou ao quarto, o cabelo úmido amarrado num rabo decavalo,Simonestavasentadonamesinhadecabeceira,imersonaconversacomamãe dela e Luke, recontando o que havia acontecido emNovaYork, comoMaureenosequestraraeRaphaeloresgataraeolevaraparaAlicante.

—Nessecaso,esperoqueRaphaeltenhaapretensãodeparticipardojantarorganizadopelosrepresentantesdaCortedeSeeliehojeànoite—diziaLuke.— Anselm Nightshade teria sido convidado, mas se Raphael o estiverrepresentandonoConselho, entãoeledeve comparecer. Sobretudo,depoisdoque aconteceu à Praetor, a importância da solidariedade dos integrantes doSubmundoparacomosCaçadoresdeSombrasémaiorquenunca.

—VocêtemnotíciasdeMaia?—perguntouSimon.—Odeiopensarqueelaesteja sozinha, agoraque Jordan estámorto.—Ele se encolheuumpouco aofalar“Jordanestámorto”,comosedizertaispalavrascausassedor.

—Elanãoestásozinha.Obandoestácuidandodela.Morcegotemmantidocontato comigo; sicamente, ela estábem.Emocionalmente, aí jánão sei.ElafoiincumbidadetransmitirorecadodeSebastian,depoisqueelematouJordan.Issonãodevetersidofácil.

—ObandovaiacabartendoquelidarcomMaureen—disseSimon.—ElaestáencantadacomofatodeosCaçadoresdeSombrasteremidoembora.VaitransformarNovaYorkno seuquintal sangrento, se conseguir fazer as coisasdojeitoquequer.

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—Seelaestámatandomundanos,aClave teráquedespacharalguémparalidarcomela—emendouJocelyn.—Mesmoqueissosigni quedeixarIdris.SeelaquebrarosAcordos...

— Será que Jia não deveria ouvir tudo isso? — perguntou Clary. — Nóspoderíamos ir falar comela. Jianãoé comooúltimoCônsul.Dariaouvidosavocê,Simon.

Simonfezquesimcomacabeça.—Prometi aRaphael que falaria como Inquisidor e comaConsulesa por

ele...—Subitamente,eleparoudefalareestremeceu.Claryo toucommaisatenção.Eleestavasentadosobumfeixesutildeluz,

apelepálida feitomármore.As veias eramvisíveis, tão fortes e pretas quantomarcas de tinta. As maçãs do rosto pareciam acentuadas, as sombras abaixodelaseramseveraseirregulares.

—Simon,háquantotempovocênãosealimenta?Eleseencolheu;elasabiaqueSimonodiavaserlembradodesuanecessidade

desangue.—Trêsdias—disseemvozbaixa.— Alimento — falou Clary, olhando da mãe para Luke. — Precisamos

alimentá-lo.—Eu estoubem—rebateuSimon,demodopouco convincente.—Estou

mesmo.—Olocalmaisrazoávelparaobtersangueseriaacasadorepresentantedos

vampiros—disse Luke.—Eles têm de fornecê-lo para uso do representantedasCriançasdaNoitenoConselho.Euiriapessoalmente,masdi cilmentevãodá-loaumlobisomem.Poderíamosmandarumrecado...

—Nadaderecados.Demorademais.Vamosagora.—Claryabriuaportadoclosetcomforçaepegouumcasaco.—Simon,vocêconsegueiratélá?

—Não é tão longe assim— disse ele, com voz enfraquecida.—AlgumasportasdepoisdacasadoInquisidor.

—Raphael vai estar dormindo— observou Luke.— Estamos nomeio dodia.

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—Então vamos acordá-lo.—Clary vestiu o casaco e fechouo zíper.—Étarefadelerepresentarosvampiros;elevaiterqueajudarSimon.

Simonfezummuxoxo.—Raphaelnãoachaquetemquefazeralgumacoisa.—Nãomeimporto.—ClarypegouHeosphorosedeslizou-anabainha.—Clary,nãoseisevocêestábemosu cienteparasairassim...—começou

Jocelyn.—Estoubem.Nuncamesentimelhor.Jocelyn balançou a cabeça, e a luz do sol captou os re exos vermelhos no

cabelodela.—Emoutraspalavras,nãohánadaqueeupossafazerparaimpedir.—Nadinha—falouClary,enfiandoHeosphorosnocinto.—Nadamesmo.—O jantar dosmembros doConselho é hoje à noite— comentou Luke,

reclinando-secontraaparede.—Clary,vamosterquesairantesdevocêestarde volta.Vamos botar um guardião na casa para ter certeza de que vai voltarantesdeescurecer...

—Vocêsestãobrincando.—Demodoalgum.Queremosvocêaquidentro,comacasafechada.Senão

voltarantesdopôrdosol,oGardseránotificado.— Isso é uma ditadura — resmungou Clary. — Ande, Simon. Vamos

embora.

Maiasentou-senapraiaemRockaway,fitandoaágua,eestremeceu.Rockaway cavalotadanoverão,porémvaziaeexpostaaoventoagora,em

dezembro. As águas do Atlântico se estendiam, um cinza pesado, da cor doferro,sobumcéuigualmentecordeferro.

Os corpos dos lobisomens que Sebastian tinha matado, inclusive o deJordan,tinhamsidoqueimadosentreasruínasdaPraetorLupus.Umdoslobosdobandoseaproximoudapraiaelançouoconteúdodeumacaixacomcinzasnaágua.

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Maia observava enquanto a superfície do mar cava preta com os restosmortais.

— Lamento. — Era Morcego, sentando-se ao lado dela na areia. Elesobservavam enquanto Rufus caminhava pela areia e abria outra caixa comcinzas.—SobreJordan.

Maiapuxouocabelopara trás.Nuvenscinzentassereuniamnohorizonte.Elaseperguntavaquandocomeçariaachover.

—Euiaterminarcomele—confessouela.—Oquê?—Morcegoficouchocado.—Eu ia terminar com ele— repetiuMaia.—Nodia emque Sebastian o

matou.— Pensei que tudo estivesse ótimo entre vocês dois. Pensei que fossem

felizes.— Pensou?—Maia en ou os dedos na areia úmida.—Você não gostava

dele.— Ele te magoou. Foi há muito tempo, e sei que ele tentou consertar as

coisas,mas...—Morcegodeudeombros.—Talvezeunãosaibaperdoar.Maiasoltouoar.—Talvez eu tambémnão saiba—comentou.—Nacidade emquecresci,

todasessasmeninasbrancas,ricas,magrasemimadasfaziameumesentirumlixoporqueeunãomepareciacomelas.Quandoeu tinha6anos,minhamãetentou fazer uma festa de aniversário com o tema da Barbie para mim. ElesfazemaBarbiepreta, sabe,masnão fazemcoisasquecombinamcomela...osdescartáveis de festas e enfeites de bolo e tal. Por issominha festa teve umabonecalouracomotema,ummontedeconvidadaslouras,etodaselasriramdemim,tapandoabocacomasmãos.—Oardapraiaerafrioemseuspulmões.—EntãoquandoeuconheciJordaneelemedissequeeuerabonita,bem,nãofoi preciso muito. Eu me apaixonei completamente por ele cinco minutosdepois.

—Vocêébonita—disseMorcego.Umcaranguejopaguroabriacaminhonaareiaaospoucos,eeleocutucoucomosdedos.

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—Agente era feliz— falouMaia.—Mas então tudoaconteceu, e elemeTransformou,eeuoodiei.VimparaNovaYorkeoodiei,eentãoelevoltouaaparecer,etudoqueelequeriaeraqueeuoperdoasse.Elequeriatantoeestavatão arrependido. E eu sabia, as pessoas fazem coisas loucas quando sãomordidas.Tinhaouvidofalardepessoasquemataramasprópriasfamílias...

—PorissotemosaPraetor—disseMorcego.—Bem.Tínhamos.— E pensei: o quanto você pode responsabilizar alguém pelos seus atos

quandoessapessoanãoconseguiacontrolá-los?Acheiquedeviaperdoá-lo,elequeria tanto. Tinha feito de tudo para compensar suas falhas. Pensei quepudéssemosvoltaraonormal,voltaraomodocomoagentecostumavaser.

— Algumas vezes, não dá para voltar — ponderou Morcego. Ele tocou acicatriz na bochecha, pensativo; Maia nunca havia perguntado como eleganharaaquilo.—Algumasvezes,muitacoisajámudou.

—Nãoconseguimosreatar—disseMaia.—Pelomenos,eunãoconsegui.Ele queria tanto que eu o perdoasse que, às vezes, simplesmente olhava paramimeenxergavaoperdão.Aredenção.Eleenxergavaamim.—Elabalançouacabeça.—Nãosouaabsolviçãodeninguém.SouapenasMaia.

—Masvocêseimportavacomele—rebateuMorcegoemvozbaixa.—Osu cientepara caradiandoterminarcomele.Penseiquetalvezeume

sentiriadiferente.Eentãotudocomeçouaacontecer:Simonfoisequestrado,enósfomosatrásdele,eeuaindaiacontaraJordan.Euiacontaraeleassimquechegássemos a Praetor, mas quando chegamos foi... — Ela engoliu em seco.—...umacarnificina.

—Elesdisseramquequandoteencontraram,vocêestavaabraçandoJordan.Ele estavamorto, e o sanguemanchava amaré,mas você estava abraçada aocorpodele.

—Todos deviammorrer recebendoum abraço—disseMaia, e pegouumpunhadodeareia.—Eusó...mesentitãoculpada.Elemorreupensandoqueeuaindaoamava,que íamos car juntos eque tudoestavabem.Morreucomigomentindoparaele.—Maiadeixouosgrãosescorrerempelosdedos.—Eudeviaterfaladoaverdade.

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—Paredesepunir.—Morcego coudepé.Elepareciaaltoemusculosonocasaco anoraque como zíper fechado até ametade, o ventomal agitando seucabelo curto. As nuvens cinzentas aglomeradas delineavam seu vulto. Maiapodia ver o restante do bando, reunido ao redor de Rufus, que estavagesticulandoenquantofalava.—Seelenãoestivessemorrendo,entãosim,vocêdeveria tercontadoaverdade.Maselemorreupensandoqueeraamadoequeforaperdoado.Hápresentesmuitopioresasedaraalguém.Oqueelefezcomvocêfoiterrível,eelesabiadisso.Maspoucaspessoassãocompletamenteboasou completamentemás. Pense nisso como umpresente que você deu à parteboa nele. Não importa aonde Jordan vá, e eu acredito que todos vamos paraalgumlugar,pensenissocomoaluzquevailevá-loparacasa.

SevocêestádeixandooBasilias,devecompreenderqueissoécontrárioaoqueosIrmãosaconselharam.

—Tudobem—disseJace,calçandoasegundaluvaedobrandoosdedos.—Vocêsdeixaramissobemclaro.

OIrmãoEnochseagigantouacimadele,aexpressãosevera,enquanto Jacesecurvavacomprecisãolentaparaamarrarocadarçodoscoturnos.Eleestavasentadonabeiradadoleitodaenfermaria,umdentreuma leirademacascomlençóis brancos que percorriam a extensão do cômodo comprido.Muitas dasoutrasmacas estavam ocupadas por Caçadores de Sombras guerreiros que serecuperavamdabatalhanaCidadela.OsIrmãosdoSilênciocaminhavamentreos leitos como se fossem enfermeiras fantasmagóricas. O ar tinha cheiro deervasecataplasmasestranhos.

Vocêdeviadescansarmaisumanoite,pelomenos.Seucorpoestáexaurido,eofogocelestialaindaardedentrodevocê.

Depois de terminar de amarrar os coturnos, Jace ergueu os olhos. O tetoabobadadoacimaestavapintadocomumdesenhoentrelaçadode símbolosdecura em prata e azul. Ele cara tando aquilo pelo que pareceram semanas,emborasoubessetersidoapenasumanoite.OsIrmãosdoSilênciomantiveram

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as visitas afastadas e caram pairando perto dele com símbolos de cura ecataplasmas.Também zeramexamesnele, colhendo sangue, osdecabeloeaté cílios; tocando sua pele com uma série de lâminas: ouro, prata, aço,sorveira-brava. Ele se sentia bem. Tinha a forte sensação de que queriammantê-lonoBasiliasmaisparaestudarofogocelestialqueparacurá-lo.

—QueroveroIrmãoZachariah—pediuele.Eleestábem.Vocênãoprecisasepreocuparcomele.—Euquerovê-lo—insistiu.—EuquaseomateinaCidadela...Nãofoivocê.Foiofogocelestial.Enãofeznadaalémdeferi-lo.Jacepiscouporcausadaestranhaescolhadepalavras.—Quando eu o encontrei, ele disse que acreditava ter uma dívida comos

Herondale.EusouumHerondale.Elequeriamever.EentãovocêpretendedeixaroBasilias?Jaceficoudepé.— Não há nada errado comigo. Não preciso car na enfermaria. Sem

dúvida, vocês poderiam usar seus recursos commais proveito nos feridos deverdade.—Elepegousuajaquetaemumganchoaoladodoleito.—Sabe,vocêpodeme levaraoIrmãoZachariahoupossoandarporaíberrandoporeleatéeleaparecer.

Vocêtrazumbocadodeproblema,JaceHerondale.—Foioquemedisseram—respondeuJace.Havia janelasarqueadasentreascamas;elas lançavamamplos feixesde luz

no chão demármore.O dia estava começando a escurecer: Jace acordara noinício da tarde, com um Irmão do Silêncio ao lado de sua cama. Ele seempertigara, querendo saber onde Clary estava, ao mesmo tempo que aslembranças da noite anterior o invadiam: ele se recordou da dor quandoSebastian o acertou, se recordou do fogo fazendo a lâmina arder, e deZachariahqueimando.DosbraçosdeClaryemvoltadele,docabelodelacaindoao redordosdois,do mdadorqueviera juntamenteà escuridão.Edepois...nada.

Depois que os Irmãos garantiramqueClary estava bem, segura na casa de

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Amatis, ele perguntara por Zachariah, se o fogo o havia machucado, masreceberaapenasrespostasirritantementevagas.

Agora ele acompanhava Enoch pela enfermaria até um corredor maisestreito, de gesso branco.Asportas se abriramna saídado corredor.Quandopassaram por uma, Jace deu uma olhadela num corpo que se contorcia,amarrado auma cama, eouviuo somde gritos e xingamentos.Um IrmãodoSilêncio estava de pé acima do homem que se debatia, vestido com restos douniformevermelho.Osanguerespingavanaparedebrancaatrásdeles.

Amalric Kriegsmesser , falou Irmão Enoch sem virar a cabeça.Um dosCrepuscularesdeSebastian.Comovocêsabe, temostentadorevertero feitiçodoCáliceInfernal.

Jaceengoliuemseco.Parecianãohavernadaadizer.Eletinhavistooritualdo Cálice Infernal ser realizado. No fundo do coração, não acreditava que ofeitiçopudesseserrevertido.Ofeitiçogeravaumamudançamuitofundamental.MaseletambémsequerhaviaimaginadoqueumIrmãodoSilênciopudessesertãohumanoquantoo IrmãoZachariah sempreparecera. Era por isso que eleestava tão determinado a vê-lo? Jace se recordava do que Clary contara, algoqueoIrmãoZachariahdisseraumavezquandoelaperguntaraseelechegaraaamaralguémosuficienteparamorrerporeles:

Duas Pessoas. Existem lembranças que o tempo não apaga. Pergunte a seuamigoMagnusBane,senãoacreditaremmim.Aeternidadenãotornaaperdaesquecível,apenastolerável.

Tinhaalgumacoisanaquelaspalavras,algumacoisaquefalavadeumadorede um tipo de lembrança que Jace não associava aos Irmãos. Eles estavampresentes em sua vida desde que tinha 10 anos: estátuas pálidas e silenciosasquetraziamacura,guardavamsegredos,quenãoamavam,desejavam,cresciamnemmorriam,apenasexistiam.MasoIrmãoZachariaheradiferente.

Chegamos. Irmão Enoch parou diante de uma porta comum pintada debranco. Ele ergueu amão larga e bateu.Ouviu-se um som no interior, comoumacadeirasendoarrastada,edepoisumavozmasculina:

—Entre.

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O Irmão Enoch abriu a porta e fez um gesto para Jace entrar. As janelascavamviradasparaoeste,eocômodoestavamuitoclaro,a luzdosolpoente

pintavaasparedescomumfogopálido.Haviaumvultonajanela:umasilhueta,esguia, sem a túnica de um Irmão. Jace se virou e tou o Irmão Enoch comsurpresa, porém o Irmão do Silêncio já tinha ido embora, fechando a portaatrásdesi.

—OndeestáoIrmãoZachariah?—perguntouJace.—Estou bem aqui.—Uma voz baixa, suave, um pouco desa nada, como

umpianoquehámuitonãoeratocado.Ovultoseviraradajanela.Jacese agrouolhandoparaumgarotosomente

umpoucomaisvelhoqueele.Cabelosescuros,umrosto noedelicado,olhosque pareciam jovens e velhos ao mesmo tempo. Os símbolos dos Irmãosmarcavam asmaçãs do rosto proeminentes, e, quando o garoto se virou, Jacenotouabeiradapálidadeumsímbolodesbotadonalateraldopescoço.

Umparabatai .Como ele.E Jace sabia tambémoqueo símbolodesbotadosigni cava: umparabatai cuja outra metade estava morta. Ele sentiu acompaixãoaumentaremrelaçãoaoIrmãoZachariah,aomesmotempoqueseimaginava semAlec, comapenas aquele símbolodesbotadopara lembrá-lodeque outrora ele fora ligado a alguémque conhecia todas asmelhores e piorespartesdesuaalma.

— JaceHerondale— disse o garoto.—Mais uma vez, umHerondale é oportadordaminhasalvação.Eudeviaterprevisto.

— Eu não... isso não é...— Jace estava espantado demais para pensar emalgumacoisainteligenteparadizer.—Nãoépossível.QuandovocêéumIrmãodoSilêncio,nãopodedeixardesê-lo.Você...eunãoentendo.

O garoto—Zachariah, Jace supôs, embora nãomais um Irmão— sorriu.Eraumsorrisoangustiantementevulnerável,jovemegentil.

—Não tenho certeza também se compreendo totalmente— disse ele.—MasnuncafuiumIrmãodoSilênciocomum.Trouxeram-meaestavidaporquehaviamagianegrasobremim.Nãohaviaoutromeiodemesalvar.—Ogarotobaixouoolharparaasprópriasmãos,asmãoslisasdeumgaroto,maciascomo

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poucasmãosdeCaçadoresdeSombrasoeram.OsIrmãospodiamlutarcomoguerreiros,mas raramente faziam isso.—Abandonei tudo que eu conhecia etudoque eu amava.Talveznão tenha abandonado totalmente,mas erguiumaparededevidroentremime avidaque levava.Eupodiavê-la,masnãopodiatocá-lanemtomarpartenela.Comeceiameesquecerdecomoeraserumserhumanocomum.

—Nósnãosomossereshumanoscomuns.Zachariahergueuoolhar.—Ah,nósdizemosissoanósmesmos—falou.—Mastenhoestudadoos

CaçadoresdeSombrasduranteoúltimoséculoedeixe-medizerquenóssomosmaishumanosque amaioriados sereshumanos.Quando camosde coraçãopartido,elesequebraemlascasquenãopodemsercoladasfacilmente.Algumasvezes,invejoaresistênciadosmundanos.

—Maisdeumséculodeidade?Vocêparecebem...resistenteparamim.—EupenseiqueiriaserumIrmãodoSilêncioparasempre.Nós...elesnão

morrem,você sabe; elesperdemavitalidadedepoisdemuitosanos.Paramdefalar, paramde semovimentar.No m, são enterrados vivos.Pensei que esseseria meu destino, mas quando toquei em você com a mão marcada pelosímbolo, quandovocê estava ferido, absorvi o fogo celestial em suas veias.Elequeimou e destruiu a escuridão nomeu sangue.Voltei a ser a pessoa que eraantes de fazer os votos.Antesmesmodisso. Eume tornei o que sempre quisser.

AvozdeJaceestavarouca.—Doeu?Zachariahpareceuconfuso.—Como?—QuandoClarymegolpeoucomaGloriosafoi...agonizante.Senticomose

meus ossos estivessem se desmanchando e virando cinzas dentro de mim.Continueiapensarnissoquandoacordei...continueiapensarsobreador,esedoeuquandovocêmetocou.

Zachariaholhoupareele,surpreso.

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—Vocêpensouemmim?Seeuestavasentindodor?—Claro.—Jacepodiaverore exonajanelaatrásdeZachariah.Ogaroto

eratãoaltoquantoele,porémmaismagro,ecomocabeloescuroeapeleclarapareciaumnegativodeJace.

— Herondales. — A voz de Zachariah era um sussurro, metade risadametade dor. — Eu quase tinha esquecido. Nenhuma outra família faz tantascoisasporamorousentetantaculpa.Nãocarregueofardodomundo,Jace.ÉpesadodemaisatéparaumHerondalesuportar.

—Nãosouumsanto—disseJace.—Talvezeudevessesuportá-lo.Zachariahbalançouacabeça.—AchoquevocêconheceafrasedaBíblia:“Menemenetequelufarsim”?—Pesado foste na balança e foste considerado em falta. Sim, conheço.O

EscritonaParede.— Os egípcios acreditavam que no portão dos mortos, seu coração era

pesado embalanças, e, se ele pesassemais que umapena, seu caminho era ocaminho para o Inferno.O fogo doCéu nos avalia, JaceHerondale, como asbalançasdosEgípcios.Seháemnósmaismaldoquebem,issovainosdestruir.Euapenassobrevivi,assimcomovocê.Adiferençaentrenóséqueeusomentefui tocado pelo fogo, ao passo que ele penetrou seu coração. Você ainda ocarregadentrodesi,umgrandefardoeumgrandedom.

—Mastudoquetenhotentadofazerémelivrardele...—Vocênãopodese livrardisso.—AvozdeIrmãoZachariah coumuito

séria.—Issonãoéumaespéciedemaldição,daqualvocêdeveselivrar;éumaarma que lhe foi con ada.Você é a lâminadoParaíso.Certi que-sedeque édignodela.

— Você fala como Alec — disse Jace. — Ele sempre fala sobreresponsabilidadeemérito.

—Alec.Seuparabatai.OgarotodosLightwood?—Você...—Jaceapontoua lateraldopescoçodeZachariah.—Você teve

umparabataitambém.Masseusímbolodesbotou.

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Zachariahbaixouosolhos.— Elemorreu hámuito tempo. Eu era... Quando elemorreu, eu...— Ele

balançou a cabeça, frustrado. — Durante anos, tenho apenas falado com aminhamente, embora vocêpossa ouvirmeuspensamentos—disse ele.—Oprocesso de formar a linguagem do modo comum, de encontrar a fala, nãoocorretãofacilmenteparamimagora.—EleergueuacabeçaparaencararJace.E falou: — Valorize seuparabatai, pois é um laço precioso. Todo amor éprecioso. É por isso que fazemos o que fazemos. Por que enfrentamosdemônios?Porqueelesnãosãoguardiõesadequadosparaestemundo?Oquenos tornamelhores?Éporqueelesnãoconstroem,apenasdestroem.Elesnãoamam, somente odeiam. Somos humanos e falíveis, nós, Caçadores deSombras.Massenãotivéssemosacapacidadedeamar,nãopoderíamosguardarossereshumanos;devemosamá-losparaguardá-los.Meuparabatai,eleamoucomopoucos seriam capazes de amar, foi assim com tudo e com todos.Vejoquevocêtambéméassim;issoardecommaisbrilhoemvocêdoqueofogodoCéu.

OIrmãoZachariahestavaolhandoparaJacecomumaintensidadetãoferozqueeracomosearrancasseacarnedosossos.

— Sinto muito — disse Jace em voz baixa — por você ter perdido seuparabatai.Temalguém...alguémquesobrou,paraquemvocêpossavoltar?

Ogarotosorriulevemente.—Temumapessoa.Elasempre couemcasapormim.Masnãotãorápido.

Primeiro,eudevoficar.—Paralutar?—E amar e chorar.Quando eu eraum IrmãodoSilêncio,meus amores e

minhas perdas emudeceram lentamente, como a música ouvida à distância,umaharmoniagenuína,porémabafada.Agora...agoratudodesceusobremimdeumavezsó.Estoucurvadodebaixodetudo.Tenhoqueestarmaisforteantesde vê-la. — O sorriso dele era melancólico. — Você já sentiu seu coraçãopreenchidoportantacoisaapontodeseromper?

JacepensouemAlecferidoemseucolo,emMaximóvelepálidonochãodo

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Salão dos Acordos; pensou em Valentim abraçando-o enquanto o sangueencharcava a areiadebaixodeles.E, nalmente,pensou emClary:nabravuraalerta que o mantivera a salvo, na inteligência mais alerta que aquela que omantinhasão,nafirmezadoamordela.

—Armas,quandoquebramesãoremendadas,podem carmaisfortesnoslocais remendados — disse Jace. — Talvez aconteça a mesma coisa com ocoração.

IrmãoZachariah,queagoraeraapenasumgarotocomoJace,sorriucomumpoucodetristeza.

—Esperoquevocêtenharazão.

—Não consigo acreditar que Jordan estejamorto—disseClary.—Eu tinhaacabado de vê-lo. Ele estava sentado próximo ao muro do Instituto quandoatravessamosoPortal.

Ela caminhava comSimon ao longode umdos canais, dirigindo-se para ocentro da cidade. As torres demoníacas se erguiam ao redor e o brilho delasrefletianaságuasdocanal.

SimondeuumaolhadeladesoslaioparaClary.Elenãoparavadepensarnoestado dela quando a vira na noite anterior, a pele azulada, exausta esemiconsciente, com as roupas rasgadas e ensanguentadas. Agora parecia elamesmaoutra vez, comasbochechas coradas, asmãosnosbolsos e o cabodaespadaseprojetandodocinto.

—Nemeu—falouele.OsolhosdeClaryeramdistantesebrilhantes;Simonseperguntavadoque

elaestavaselembrando—deJordanensinandoJaceacontrolarasemoçõesnoCentral Park? De Jordan no apartamento de Magnus conversando com umpentagrama? De Jordan, na primeira vez em que o viram, abaixando-se epassandodebaixodaportadeumagaragemparafazerumtesteparaabandadeSimon?Jordansentadonosofánoapartamentodeles,jogandoXboxcomJace?JordancontandoaSimonquehaviajuradoprotegê-lo?

Simon sentiu um vazio por dentro. Ele tinha dormido mal à noite,

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acordando de pesadelos nos quais Jordan aparecia, parado, encarando-o emsilêncio, os olhos castanhos pedindo para ajudá-lo, para salvá-lo, enquanto atintanosbraçosescorriafeitosangue.

—PobreMaia—disseClary.—Queriaqueelaestivesseaqui,queagentepudesseconversar.Elapassouportantacoisa,eagoraisso...

— Eu sei— emendou Simon, quase engasgando. Pensar em Jordan já eraruim.SepensasseemMaiatambém,ficariaarrasado.

Claryrespondeuaotomríspidodeleesticandoamão.—Simon.Vocêestábem?Elepermitiuqueelasegurassesuamão,entrelaçandoosdedosfrouxamente.

E notou o olhar dela baixando para o anel de ouro das fadas que ele sempreusava.

—Achoquenão—retrucouele.—Não,claroquenão.Comopoderiaestar?Eleeraseu...—Amigo?Colega

dequarto?Guarda-costas?—Eraminharesponsabilidade—disseSimon.Elapareceuconfusa.—Não...Simon,vocêeraresponsabilidadedele.Jordaneraseuguardião.—Ora,Clary.Oque você acha que ele estava fazendona sede daPraetor

Lupus?Elenunca chegou lá. Se estava lá, eraporminha causa, porque estavaprocurandopormim.Seeunãotivessemedeixadosequestrar...

— Tivesse se deixado sequestrar? — rebateu Clary. — O quê? Você foisequestradoporMaureendeboavontade?

—Maureennãomesequestrou—disseeleemvozbaixa.Elaolhouparaele,espantada.—Pensei que ela tivessemantidovocênuma jaulanoDumort.Pensei que

vocêtivessedito...—Ela fez isso— emendou Simon.—Mas a única razão para eu estar do

ladodefora,ondeelapoderiamepegar,sedeuporquefuiatacadoporumdosCrepusculares. Eu não queria contar ao Luke nem à suamãe.Achei que eles

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fossemsurtar.—Porque se SebastianmandouumCaçador de Sombrasmaligno atrás de

você foiporminhacausa—disseClary, relutante.—Elequeria te sequestraroumatar?

—Eurealmentenãotivechancedeperguntar.—Simonen ouasmãosnosbolsos.—Jordanmefalouparacorrer,entãocorri...bemnadireçãodealguémdoclãdeMaureen.Evidentemente,elaestavavigiandooapartamento.Suponhoque foi isso que ganhei por sair correndo e abandoná-lo. Se não tivesse feitoisso,senãotivessesidolevado,elenuncateriaidoàPraetorenuncateriasidomorto.

—Pare.—Simonaencarou,surpreso.Clarypareciairritadadeverdade.—Pare de se culpar. Jordan não foi enviado para você por acaso. Ele queria otrabalho para poder car perto de Maia. Ele conhecia os riscos de ser seuguardião. Ele os aceitou de boa vontade. Foi escolha dele. Jordan estavaprocurandoredenção.PorcausadoquetinhaacontecidoentreeleeMaia.Porcausadoqueelefez.EraissoqueaPraetoreraparaJordan.Elaosalvou.Seroseuguardião,depessoas comovocê,o salvou.Elehavia se transformadonummonstro.TinhamagoadoMaia. Ele a transformaranummonstro também.Oqueelefezfoiimperdoável.SeelenãotivesseaPraetor,senãotivessevocêparacuidar,issooteriaconsumidoatéelesematar.

—Clary...—Simonestavachocadopeladurezadaspalavrasdela.A garota estremeceu, como se estivesse se sacudindo para tirar teias de

aranha. Eles tinham dobrado uma longa rua, próxima ao canal, ladeada porcasas velhas e grandiosas. A rua fazia Simon se recordar de fotogra as dosbairrosricosdeAmsterdã.

— Aquela ali é a casa dos Lightwood. Há membros do Alto Conselhomorando nesta rua. A Consulesa, o Inquisidor, os representantes doSubmundo.SóprecisamosdescobrirqualdelaséadeRaphael...

—Ali—disseSimon,e indicouumacasaestreitanocanalcomumaportapreta. Uma estrela prateada fora pintada na porta. — Uma estrela para osFilhosdaNoite.PorquenãovemosaluzdoSol.—Elesorriu,outentousorrir.

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Afomeardiaemsuasveias;elaspareciamaramequentesobapele.Elesevirouesubiuosdegraus.Aaldravatinhaoformatodeumsímboloe

erapesada.Osomquefaziaquandobaixadareverberavanointeriordacasa.SimonouviuClarysubirosdegrausatrásdesinomomentoemqueaporta

foiaberta.Raphaelestavaparado,nointeriordacasa,cuidadosamenteafastadodaluzqueinvadiapelaportaaberta.Nassombras,Simondistinguiaovultodovampiro: o cabelo cacheado, o clarão branco dos dentes quando ele oscumprimentou.

—Diurno.FilhadeValentim.Claryemitiuumruídoexasperado.—Vocênuncachamaninguémpelonome?—Apenasmeusamigos—rebateuRaphael.—Vocêtemamigos?—perguntouSimon.Raphaelolhoudecarafeia.—Presumoquevocêsestejamaquipelosangue?— Sim — disse Clary. Simon não disse uma única palavra. Ao ouvir a

palavra “sangue”, sentiu-se levemente tonto. Seu estômago roncava. Estavafaminto.

RaphaeldeuumaolhadelaemSimon.—Você parece com fome. Talvez devesse ter aceitadominha sugestão na

praçaontemànoite.Claryarqueouassobrancelhas,masSimonapenasfezumacareta.—SequiserqueeuconversecomoInquisidoremseunome,vaiterqueme

darsangue.Casocontrário,voudesmaiaraospésdeleoudevorá-lo.— Suspeito que isso não pegaria bem com a lha dele. Embora ela não

parecesse nem um pouco satisfeita com você ontem à noite. — Raphaeldesapareceunovamentenassombrasdacasa.ClaryolhouparaSimon.

—SuponhoquevocêtenhavistoIsabelleontem?—Supôscerto.—Eascoisasnãoforambem?SimonfoipoupadoderesponderquandoRaphaelreapareceu.Eletraziauma

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garrafa de vidro com rolha, cheia de líquido vermelho. Simon pegou-a comvoracidade.

O cheiro do sangue atravessou o vidro, ondulante e doce. Simon retirou arolha e engoliu, as presas se projetando, apesar de não precisar delas. Osvampirosnãoeramfeitosparabeberemgarrafas.Osdentesarranharamapelequandoeleesfregouabocacomascostasdamão.

OsolhoscastanhosdeRaphaelbrilhavam.—Fiqueitristeaoouvirasnotíciassobreseuamigolobisomem.Simonseretesou.Clarycolocouamãonobraçodele.—Vocênãoestásendosincero—observouSimon.—Vocêodiavaqueeu

tivesseumguardiãoPraetoriano.Raphaelresmungou,pensativo.—Semguardião,semMarcadeCaim.Todasassuasproteçõesarrancadas.

Deveserestranho,Diurno,saberquepodemesmomorrer.Simonoencarou.— Por que você se esforça tanto? — perguntou, e tomou outro gole da

garrafa.Destavez,osaborfoimaisamargo,umpoucoácido.—Parafazercomqueeuteodeie?Ouaquestãoéapenasquevocêmeodeia?

Houveumlongosilêncio.SimonpercebeuqueRaphaelestavadescalço,bemnabeiradinhaondea luzdo sol formavauma faixanopisodemadeirade lei.Outropassoadiante,ealuzlhequeimariaapele.

Simon engoliu em seco, saboreando o sangue na boca, sentindo-seligeiramentetonto.

—Vocênãomeodeia—percebeuele,e touacicatrizbrancanabasedopescoçodeRaphael,onde,algumasvezes,umcruci xoseapoiava.—Vocêtemciúmes.

Semdizermaisnenhumapalavra,Raphaelfechouaportaentreeles.

Clarysuspirou.—Uau.Issoterminoubem.Simonnãodissenada, simplesmentedeumeia-voltae seafastou,descendo

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osdegraus. Fezumapausanabasepara nalizar a garrafade sangue e então,para surpresadela, a jogouaesmo.Elavoou ruaabaixoeatingiuumpostedeluz,estilhaçando-seedeixandoumamanchadesanguenoferro.

—Simon?—Claryapressou-sedegrausabaixo.—Vocêestábem?Elefezumgestovago.—Não sei. Jordan,Maia, Raphael, tudo isso é... é demais. Não sei o que

fazer.— Você se refere a falar ao Inquisidor em nome de Raphael? — Clary

acelerouparaacompanharSimonquandoelecomeçouaandarsemrumopelarua.Oventoestavamaisforte,bagunçandoocabelocastanhodele.

— Não, a qualquer coisa. — Ele cambaleou um pouco quando se afastoudela.Clarysemicerrouosolhos,descon ada.Senãooconhecessebem,achariaque ele estava bêbado. — Eu não pertenço a este lugar — disse ele. Tinhaparado diante da residência do Inquisidor. Simon inclinou a cabeça para trás,erguendooolharparaasjanelas.—Oquevocêachaqueelesestãofazendoalidentro?

—Jantando?—palpitouClary.Oslampiõescomluzenfeitiçadacomeçavama acender, iluminando a rua. — Vivendo as próprias vidas? Ora, Simon.Provavelmenteelesconheciamaspessoasquemorreramnabatalhadeontem.SevocêquerverIsabelle,amanhãéareuniãodoConselhoe...

— Ela sabe— emendou ele.—Que os pais provavelmente vão terminar.Queopaidelateveumcaso.

—Eleoquê?—disseClary,fitandoSimon.—Quando?—Hámuito tempo.—Simonde nitivamente estava coma fala arrastada.

—Antes deMax. Ele ia embora,mas... descobriu sobreMax e cou.Marysecontoua Isabelleanosatrás.Não foi justocontar tudo issoaumamenininha.Izzyéforte,masaindaassim.Nãosedevefazerisso.Nãoaoprópriofilho.Vocêdeve...aguentaroprópriofardo.

—Simon.—Elapensounamãedele,enxotando-odesuaporta.Nãosedevefazer isso. Não ao próprio lho . — Há quanto tempo você sabe disso? SobreRoberteMaryse?

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—Hámeses.—Elecaminhouatéoportãodafrentedacasa.—Eusemprequis ajudá-la, mas ela jamais quis que eu dissesse nada, zesse nada... e, porfalarnisso,suamãesabe.FoielaquemrevelouaIzzycomquemRobertteveocaso. Não era alguém de quem ela já tivesse ouvido falar. Não sei se issomelhoraoupioraascoisas.

—Oquê?Simon,vocêestáenrolandoalíngua.Simon...Ele desabou na cerca que rodeava a casa do Inquisidor, causando um

estrondo.—Isabelle!—chamouele,inclinandoacabeçaparatrás.—Isabelle!—Ai,caramba…—ClarypuxouSimonpelamanga.—Simon—sussurrou

ela.—Você é um vampiro, nomeio de Idris. Talvez não devesse gritar parachamaratenção.

Simonaignorou.—Isabelle!—berroumaisumavez.—Joguesuastranças,Isabelle!—Ai,meuDeus—resmungouClary.—Tinhaalgumacoisanaquelesangue

queRaphaeltedeu,nãotinha?Voumatá-lo.—Elejáestámorto—observouSimon.— Ele é ummorto-vivo. Obviamente ainda pode morrer, sabe, mais uma

vez. Eu voumatá-lo de novo.Ande, Simon.Vamos voltar para você poder sedeitarepôrgelonacabeça...

—Isabelle!—gritavaSimon.Uma das janelas do andar de cima da casa se abriu, e Isabelle se inclinou

para fora.Os cabelosestavam jogados, caindo ao redor do rosto.No entanto,elapareciafuriosa.

—Simon,caleaboca—sibilou.—Não vou calar!— anunciou Simon, com rebeldia.— Pois tu ésminha

beladama,edevoganharteusfavores.Isabelledeixouacabeçacairentreasmãos.—Eleestábêbado?—gritouparaClary.— Eu não sei. — Clary estava dividida entre a lealdade a Simon e uma

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necessidadeurgentedetirá-lodali.—Achoqueelebebeusangueforadoprazodevalidadeoucoisaassim.

—Euteamo,IsabelleLightwood!—gritouSimon,assustandotodomundo.As luzes foramacesaspor toda a casa enas casas vizinhas também.Ouviu-seum barulho rua abaixo, e, um instante depois, Aline e Helen apareceram;ambaspareciamexaustas,Helententavaamarrarocabelolourocacheadoparatrás.—Euteamoenãovouemboraatévocêdizerquemeamatambém!

—Digaquevocêoama—gritouHelen.—Eleestáassustandotodaarua.—ElaacenouparaClary.—Bomtever.

— Bom te ver também — respondeu Clary. — Sinto muito pelo queaconteceu emLosAngeles e, se houver alguma coisa que eu possa fazer paraajudar...

Alguma coisa desceudo céu, utuando.Duas coisas: uma calça de couro eumacamisabrancadepiratacombabados.ElasaterrissaramaospésdeSimon.

—Peguesuasroupaseváembora!—gritouIsabelle.Acimadela,outrajanelaseabriu,eAlecseinclinou.—Oqueestáacontecendo?—OolhardelepousouemClaryenosoutros;

elecontraiuassobrancelhas,confuso.—Oqueé isso?VãocantarcançõesdeNatalmaiscedoesteano?

—EunãocantocançõesdeNatal—disseSimon.—Soujudeu.SeiapenasacançãodoChanuká.

— Ele está bem? — perguntou Aline a Clary, parecendo preocupada. —Vampirosenlouquecem?

— Ele não está louco — explicou Helen. — Está bêbado. Deve terconsumidoo sanguede alguémque tinha ingerido bebida alcoólica. Isso podedeixarosvampirosdoidõespor...osmose.

—OdeioRaphael—resmungouClary.— Isabelle!— gritou Simon.— Pare de jogar roupas emmim! Só porque

vocêéumaCaçadoradeSombraseeu,umvampiro,nãoquerdizerqueagentenãopossadarcerto.Nossoamoréproibidocomooamordeumtubarãoedeuma...deumacaçadoradetubarões.Maséissoqueotornaespecial.

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—Hã?—interrompeuIsabelle.—Quemdenóséotubarão,Simon?Quemdenóséotubarão?

A porta da frente foi aberta com força. Era Robert Lightwood, e ele nãoparecia satisfeito. Desceu pelo caminho da entrada da casa, chutou o portãoparaabri-loefoiatéSimon.

—O que está acontecendo aqui?— perguntou. Seus olhos se dirigiram aClary.—Porquevocêsestãogritandodoladodeforadaminhacasa?

—Elenãoestá se sentindobem—respondeuClary, segurandoopulsodeSimon.—Estamosindoembora.

— Não — disse Simon. — Não. Eu... eu preciso falar com ele. Com oInquisidor.

Robert en ou a mão no casaco e retirou um cruci xo. Clary couobservandoenquantoeleoerguiaentreeleeSimon.

—EufalocomorepresentantedoConselhodasCriançasdaNoiteoucomo líder do clã de Nova York — emendou Robert. — Não com um vampiroqualquer que bate à minha porta, mesmo que seja amigo dos meus lhos. EvocênemdeveriaestaraquiemAlicantesempermissão...

SimonesticouamãoearrancouacruzdamãodeRobert.—Religiãoerrada—falou.Helenassobioubaixinho.—EeufuienviadocomorepresentantedasCriançasNoturnasaoConselho.

RaphaelSantiagometrouxeatéaquiparafalarcomosenhor...— Simon!— Isabelle correu para fora da casa, colocando-se rapidamente

entreSimoneopai.—Oquevocêestáfazendo?Ela olhou com expressão severa paraClary, que tinha agarrado o pulso de

Simonnovamente.—Nósrealmentetemosqueir—resmungouClary.OolhardeRobertfoideSimonparaIsabelle.Suaexpressãomudou.—Háalgumacoisaentrevocêsdois?Todaaquelagritariafoiporisso?Clary olhou para Isabelle, surpresa. Ela pensou em Simon, confortando

IsabellequandoMaxmorreu.EmoquantoSimoneIzzytinhamseaproximado

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nosúltimosmeses.Eopaidelanãofaziaideia.— Ele é um amigo. É amigo de todos nós — disse Isabelle, cruzando os

braços.ClarynãosabiaseaoutraestavamaisirritadacomopaioucomSimon.—Eponhominhamãonofogoporeleseissosigni carqueelepode caremAlicante.—ElaolhoucomexpressãoseveraparaSimon.—MasagoraelevaivoltarparaacasadeClary.Nãovai,Simon?

— Minha cabeça está girando — falou Simon, com tristeza. — Girandotanto.

Robertbaixouobraço.—Oquê?—Elebebeusanguecomalgumadroga—falouClary.—Nãoéculpadele.RobertvoltouosolhosazuisparaSimon.—Amanhã conversarei com você na reunião doConselho, se você estiver

sóbrio — disse ele. — Se Raphael Santiago quer que você me conte algumacoisa,podefazê-lodiantedaClave.

—Eunão...—começouSimon.MasClaryointerrompeu,apressada:— Ótimo. Vou levá-lo comigo à reunião do Conselho amanhã. Simon,

temosquevoltarantesdeescurecer,vocêsabedisso.Simonparecialigeiramenteconfuso.—Temos?— Amanhã, no Conselho — disse Robert rapidamente, deu meia-volta e

caminhou em direção à casa. Isabelle hesitou um momento; ela vestia umacamiseta larga escura e jeans, os pés pálidos descalços na calçada estreita depedras.Etremia.

—Ondeeleconseguiuosanguebatizado?—perguntouela,apontandoparaSimon.

—Raphael—explicouClary.Isabellerevirouosolhos.— Vai estar bem amanhã — disse. — Faça com que ele durma. — Ela

acenou para Helen e Aline, que estavam inclinadas perto do portão com

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curiosidadeevidente.—Vejovocêsnareunião—emendou.—Isabelle...—começouSimon,balançandoosbraçosfuriosamente;porém,

antesqueelepudessecausarmaisdanos,Claryagarrouascostasdesuajaquetaeopuxouparaarua.

ComoSimonpercorreraváriosbecose insistiraemtentar invadiruma lojadedocesfechada,jáestavaescuroquandoeleeClarychegaramàcasadeAmatis.Clary olhou ao redor, buscando o guardião que Jocelyn dissera que seriacolocadoapostos,masnãoviuninguém.Oueleestavaexcepcionalmentebemescondido ou,mais provavelmente, já havia partido para informar aos pais deClarysobreoatrasodela.

Melancólica,Clarysubiuosdegrausdacasa,destrancouaportaeempurrouSimon para dentro. Ele tinha parado de protestar e começado a bocejar emalgum lugar perto da Praça da Cisterna, e agora suas pálpebras estavambaixando.

—OdeioRaphael—disseele.—Euestavapensandoamesmacoisa—retrucouela,girando-o.—Ande.

Vamosbotarvocêparadormir.Elaoarrastouatéosofá,ondeeledesabou,afundandonasalmofadas.Aluz

fracada luaera ltradapelascortinasde rendaquecobriamasamplas janelasprincipais.OsolhosdeSimonestavamdacordequartzofumêenquantoeleseesforçavaparaabri-los.

—Vocêdeviadormir—aconselhouClarypara ele.—Minhamãe eLukeprovavelmentevoltarãoaqualquerminuto.—Eladeumeia-voltaparasair.

—Clary—chamouele,puxandoamangadaroupadela.—Tomecuidado.Ela se desvencilhou com delicadeza e subiu as escadas, pegando a pedra

enfeitiçadacomsímbolosdeluzparaclarearocaminho.Asjanelasaolongodocorredor superior estavam abertas, e uma brisa fria soprava, com cheiro depedrasurbanaseáguadocanal,afastandoocabelodeladorosto.Clarychegouàportadeseuquarto,abriu-ae...congelou.

Aluzenfeitiçadapulsavaemsuamão,lançandofeixesbrilhantesatravésdo

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cômodo. Havia uma pessoa sentada na cama. Uma pessoa alta, com cabelolouroesbranquiçado,umaespadanocoloeumapulseiraprateadaquefaiscavacomofogosobaluzenfeitiçada.

Senãopuderdobraroscéus,movereioinferno.—Olá,minhairmã—disseSebastian.

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10EstesPrazeresViolentos

AprópriarespiraçãoofegantesoavaaltonosouvidosdeClary.Ela pensou na primeira vez em que Luke a levara para nadar, no lago da

fazenda,edecomoafundaratãoprofundamentenaáguaazul-esverdeadaqueomundo lá fora desaparecera, restando apenas o som dos próprios batimentoscardíacos, ecoando distorcidos. Ela se perguntara se tinha deixado o mundoparatrás,se cariaperdidaparasempre,atéLukepuxá-ladevoltaparaaluzdosol,cuspindoedesorientada.

Era assim que ela se sentia agora, como se tivesse caído em outromundo,distorcido,sufocantee irreal.Oquartoeraomesmo,amesmamobíliagastaeasparedesdemadeira;omesmo tapete colorido,obscurecidoe esbranquiçadoporcausada luzda lua,masagoraSebastian surgiranomeiodissocomoumaplantavenenosaexótica,crescendonumcanteirodeervasconhecidas.

Clarydeumeia-voltaparacorreresairpelaportaabertanoquepareceuummovimento em câmera lenta— somente para a porta se fechar em sua caracomumestrondo.Umaforçainvisívelaagarrou,agiroueafezbaternaparededoquarto,acabeçaatingindoamadeira.Elapiscouparaafastaras lágrimasdedor e tentou mover as pernas, sem conseguir. Estava pregada à parede,paralisadadacinturaparabaixo.

—Minhasdesculpaspelo feitiçode contenção— falouSebastian, comumtomleve,zombeteironavoz.Elesereclinounostravesseiroseesticouosbraçosaté tocaracabeceiradacama,numarcosemelhanteaoqueosgatos fazem.Acamiseta subira, deixando a barriga lisa e pálida à vista, toda traçada comcontornos de símbolos.Havia alguma coisa de sedutora naquela posição, algo

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que deixavaClary nauseada.— Levei algum tempo para criar tudo,mas vocêsabecomoé.Nãodáparacorrerriscos.

—Sebastian.—Para surpresadeClary, a voz saiu rme.Ela estavamuitoconscientedecadacentímetrodaprópriapele.Sentia-se expostaevulnerável,como se estivesse sem uniforme ou proteção diante de vidro estilhaçadovoando.—Porquevocêestáaqui?

Orostoangulosoestavapensativo,examinando.Umaserpentedormindoaosol,acabandodeacordar,aindaapresentandopoucoperigo.

—Porquesentisuafalta,irmãzinha.Vocêsentiusaudadedemim?Ela pensou em gritar, mas Sebastian en aria uma adaga no pescoço dela

antesmesmoqueconseguisseemitiralgumsom.Elatentavaacalmarocoraçãoacelerado:tinhasobrevividoemoutraocasião.Seriacapazdefazê-lodenovo.

—Daúltimavezquetevi,vocêapontavaumabestaparaminhascostas—disseela.—Entãoarespostaénão.

Elefezumdesenhopreguiçosonoarusandoosdedos.—Mentirosa.—Você também— respondeu ela.—Você não veio porque senteminha

falta;veioporquequeralgumacoisa.Oqueé?Subitamente, ele cou de pé— gracioso, rápido demais para ela captar o

movimento.Ocabelolouroplatinadocaíasobreosolhos.ElaselembroudeterestadodepénabeiradorioSenacomele,observandoa luz iluminarocabelodele,tão noelouroquantoocaulefelpudodeumdente-de-leão.Ela caraseperguntandoseValentimeraigualquandojovem.

—Talvezeuqueiranegociarumcessar-fogo—disseele.—AClavenãovaiquerernegociarumcessar-fogocomvocê.—Sério?Depoisdanoitepassada?—Eledeuumpassoàfrente,nadireção

dela. A constatação de que ela não podia correr a invadiu por dentro; Claryengoliuumgrito.—Estamosemdoisladosdiferentes.Temosexércitosqueseopõem. Não é isso que se faz? Propor uma trégua? Isso ou lutar até um dosladosperdergentesu cienteparadesistir?Mas,nessecaso,talvezeunãoestejainteressadonumcessar-fogocom eles.Talvezsóestejainteressadonumcessar-

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fogocomvocê.—Porquê?Vocênãosabeperdoar.Conheçovocê.Oqueeu z...vocênão

perdoaria.Elesemoveumaisumavez,numlampejo,ederepenteestavaencostando-se

nela,osdedosaoredordopulsoesquerdo,imobilizando-oacimadacabeça.—Qualparte?Destruirminhacasa...acasadomeupai?Metrairementir

paramim?Romperminha ligação com Jace?—Ela podia ver um lampejo deraivanosolhosdoirmão,sentir-lheocoraçãobatendocomforça.

TudoqueClaryqueria era chutá-lo,mas aspernasdelanão semoviam.Avoztremia.

—Qualquerparte.Eleestavatãopertoqueelasentiuquandoocorpodelerelaxou.Eleerarijo,

esguioemuitomagro,osossinhosproeminentesdocorpoencostadosnela.—Acho que você pode ter feito um favor para mim. Talvez até fosse essa suaintenção.—Claryenxergavaoprópriore exonosolhosestranhosdele,asíristãoescurasquequaseseconfundiamcomaspupilas.—Euestavadependentedemaisdolegadoedaproteçãodenossopai.DeJace.Euprecisavamesustentarporcontraprópria.Algumasvezesénecessárioperder tudopara seganhardenovo, e a reconquista é mais doce sobre a dor da perda. Sozinho, reuni osCrepusculares. Sozinho, criei alianças. Sozinho, tomeios InstitutosdeBuenosAires,Bangcoc,LosAngeles...

— Sozinho, você matou pessoas e destruiu famílias — emendou ela. —Haviaumguardiãoparadonafrentedestacasa.Eleestavaaliparameproteger.Oquefezcomele?

— Fiz com que se lembrasse de desempenharmelhor sua função— disseSebastian. — Proteger minha irmã. — Ele ergueu a mão que não estavaprendendoopulsodelaàparedeetocouumcachodocabeloruivo,esfregandoasmechasentreosdedos.—Vermelho—falou,avozmeiosonolenta—comoopôrdosol,osangueeofogo.Comoapontaprincipaldeumaestrelacadente,ardendoaotocaraatmosfera.NóssomosMorgenstern—acrescentouele,comuma dor obscura na voz. — As estrelas brilhantes da manhã. Os lhos de

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Lúcifer,omaisbelode todososanjosdeDeus.Nóssomos tãomaisadoráveisquandodecaímos.—Ele fezumapausa.—Olheparamim,Clary.Olheparamim.

Ela olhou para ele, relutante. Os olhos negros se concentravam nela comumaavidezevidente;contrastavamcomocabelobrancocomosal,apelepálida,oleverosadoaolongodasmaçãsdorosto.AartistaemClarysabiaqueeleerabonito, domesmomodo como panteras eram bonitas, ou garrafas de venenoreluzentes, ou os esqueletos polidos. Luke dissera a Clary certa vez que seutalentoeraverabelezaeohorrornascoisasbanais.EmboraSebastianestivesselongedeserbanal,elaenxergavaambasascaracterísticasnele.

—Lúcifer Estrela daManhã era o anjomais belo doCéu.A criaçãomaisorgulhosadeDeus.EentãochegouodiaemqueLúciferserecusouasecurvardiante da humanidade. Dos seres humanos. Porque ele sabia que eraminferiores.Eporissofoilançadonacovacomosanjosque caramaoseulado:Belial,Azazel,AsmodeuseLeviatã.ELilith,minhamãe.

—Elanãoésuamãe.—Vocêtemrazão.Elaémaisqueminhamãe.Seela fosseminhamãe,eu

seriaumfeiticeiro.Emvezdisso,elamealimentoucomseusangue,antesdeeunascer. Sou algomuito diferente de um feiticeiro; algomelhor. Pois ela já foiumanjo,Lilith.

—Aonde vocêquer chegar, a nal?Demônios são simplesmente anjosquetomamdecisõeserradasnavida?

—Demôniosmaioresnãosãotãodiferentesdosanjos—disseele.—Vocêeeunãosomostãodiferentes.Eujádisseisso.

—Eume lembro—concordouClary.— “Você temumcoraçãomaligno,filhadeValentim”.

— Não tem? — insistiu ele, e acariciou os cachos dela, descendo até oombro, depois até o peito, parando pouco acima do coração.Clary sentia suapulsaçãobater fortecontraasveias;queriaempurrá-lo,masobrigouseubraçodireito a permanecer junto à lateral do corpo. Os dedos da mão estavamapoiadosnabeiradadajaqueta,e,debaixodela,estavaHeosphoros.Mesmoque

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ela não pudesse matá-lo, talvez conseguisse usar a espada para apagá-lo portempo su ciente até a ajudachegar.Talvezpudessematéprendê-lo.—Nossamãemetraiu—disseele.—Elamerenegouemeodiou.Eueraumacriança,eelameodiava.Assimcomonossopai.

—Valentimcriouvocê...—Mas todooamordeleerapara Jace.Oproblemático,orebelde,o fraco.

Fiz tudo que nosso pai já me pediu, e ele me odiava por isso. E odiava vocêtambém.—Osolhosestavambrilhando,pratasobreopreto.—Éirônico,nãoé,Clarissa?Nós somos lhos de sangue deValentim, e ele nos odiava.Você,por tirar nossamãedele, e amimpor eu ser exatamente o que eleme criaraparaser.

Clary recordou-se de Jace então, ensanguentado e cortado, de pé, com aespadaMorgensternnamãoàsmargensdoLagoLyn,gritandocomValentim:Porquevocêmeadotou?Nãoprecisavadeumfilho.Vocêjátinhaumfilho.

EValentim,comavozrouca:— Não era de um lho que eu precisava. Era de um soldado. Achei que

Jonathan pudesse ser esse soldado, mas tinha muito de natureza demoníaca.Também eramuito selvagem, impetuoso, não possuía sutileza. Eu temia que,mesmonaquelaépoca,quandoelemalhaviaabandonadoaprimeirainfância,quejamaistivesseapaciênciaouacompaixãoparameseguir,paraseguirmeuspassosnocomandodaClave.Entãotenteinovamentecomvocê.Etiveoopostodoproblema.Vocêeragentildemais.Empáticodemais.Entenda,meu lho...euoameiporcausadessascoisas.

ElaouviuarespiraçãodeSebastian,pesadanosilêncio.—Vocêsabe—falouele—queoqueestoudizendoéverdade.—Masnãoseiporqueissotemimportância.— Porque nós somos iguais! — Sebastian elevou a voz; como Clary se

encolheu, isso permitiu que ela baixasse os dedos mais um milímetro, emdireçãoaocabodeHeosphoros.—Vocêéminha—emendouele,controlandoa voz com esforço óbvio. — Você sempre foi minha. Quando nasceu, eraminha,minhairmã ,emboranãomeconhecesse.Há laçosquenãopodemser

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desfeitos.Eporissoeutedareiumasegundachance.—Umachancedequê?—Eladesceuamãomaisumcentímetro.—Vou vencer isto— disse ele.—Você sabe. Você estava no Burren, na

Cidadela.ViuopoderdosCrepusculares.SabedoqueoCáliceInfernalécapaz.SevocêvirarascostasparaAlicanteeviercomigo,ejurarlealdade,eutedareioquejamaisdeiaoutrapessoa.Jamais,poisguardeiparavocê.

Clary deixou a cabeça cair para trás, contra a parede. O estômago secontorcia, os dedosmal tocavam o cabo da espada no cinturão. Os olhos deSebastianestavamfixosnela.

—Vocêvaimedaroquê?Entãoelesorriu,soltandooarcomoseaperguntafosse,poralgumarazão,

uma espécie de alívio. Ele pareceu resplandecer com a própria convicção poruminstante;olharparaeleeracomoobservarumacidadequeimar.

—Compaixão—disseele.

O jantar foi surpreendentemente elegante. Magnus jantara com as fadassomente umas poucas vezes antes na vida, e a decoração sempre tinha umatendência naturalista: mesas de troncos de árvore, talheres com formatoselaboradosfeitosderamos,pratosdenozesebagos.Elesempreterminavacomasensaçãodequeteriaaproveitadomaistudoaquilosefosseumesquilo.

AliemIdris,porém,nacasaoferecidaaopovofada,amesaforapostacomtoalhasbrancas.Luke,Jocelyn,Raphael,MeliorneMagnuscomiamempratosdemognopolido;osdecantadoreseramdecristal,eostalheres—emrespeitoaLuke e às fadas presentes— não eram feitos de prata nem de ferro,mas debrotosdelicados.Cavaleiros fadas caramdeguarda,silenciosose imóveis,emcadaumadas saídas do cômodo.Havia lanças brancas e longas ao ladodeles,desprendendoumailuminaçãofracaelançandoumbrilhosuavepelocômodo.

A comida tambémnão era ruim.Magnus pegou umpedaço de umcoq auvin bem decente e mastigou, pensativo. Não tinha muito apetite, isso eraverdade. Estava tenso— um estado que ele abominava. Em alguma parte, lá

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fora,alémdosmurosedojantarexigido,estavaAlec.Nãohaviamaisdistânciageográ ca queos separasse.Claro, eles não tinham cado longeumdooutroem Nova York também, mas a distância que os separava não era feita dequilômetros,porémdeexperiênciasnavidadeMagnus.

Era estranho, pensou ele. Magnus sempre pensava em si como alguémcorajoso.Eranecessáriocoragemparaviverumavidaimortalenãofecharseucoração emente para qualquer experiência ou pessoa nova. Porque o que eranovoquasesempreeratemporário.Eoqueeratemporário,partiaseucoração.

—Magnus?—chamouLuke,acenandoumgarfodemadeiraquasedebaixodonarizdofeiticeiro.—Estáprestandoatenção?

—Oquê?Claroqueestou—respondeuele,ebebeuumgoledevinho.—Concordo.Cemporcento.

—Sério?—disseJocelynsecamente.—VocêconcordaqueosmembrosdoSubmundodeveriamabandonaroproblemadeSebastianedoexércitomaligno,e deixar por conta dos Caçadores de Sombras, como um problema dosNephilim?

—Eudissequeelenãoestavaprestandoatenção—emendouRaphael,quetinharecebidoumfonduedesangueepareciaestargostandomuitodele.

—Ora,éumproblemadosCaçadoresdeSombras...—começouMagnus,eentão suspirou, pousando o copo de vinho. O vinho estava muito forte; eleestava começando a sentir a cabeça leve. — Ah, muito bem, eu não estavaprestandoatenção.Enão,claroquenãoacreditoque...

— Cachorrinho de estimação dos Caçadores de Sombras — interrompeuMeliorn. Os olhos verdes estavam semicerrados. O povo fada e os feiticeirossempre tiveram uma relação um pouco complicada. Nenhum deles gostavamuitodosCaçadoresdeSombras,oqueofereciauminimigoemcomum,masopovo fada menosprezava os feiticeiros pela disposição em fazer magia pordinheiro.Aopassoqueosfeiticeirosdesprezavamopovofadapelaincapacidadedementir,peloscostumesconservadoresepelatendênciaairritarosmundanosazedandoo leite e roubando suasvacas.—Háalguma razãoparavocêquererpreservar a amizadecomosCaçadoresdeSombras, alémdo fatodeumdeles

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serseuamante?Luketossiuviolentamentedentrodataçadevinho.Jocelyndeutapinhasnas

costasdele.Raphaelsimplesmentepareceuestarsedivertindo.—Meliorn,vocêprecisaseatualizar—falouMagnus.—Ninguémmaisdiz

“amante”.— Além disso — emendou Luke. — Eles terminaram. — O lobisomem

esfregouascostasdamãonosolhosesuspirou.—E,parafalaraverdade,seráquedevíamos carfofocandoagora?Nãovejodequemodoasrelaçõespessoaisdealguémtêmavercomisso.

— Tudo tem a ver com relações pessoais — disse Raphael, mergulhandoumacoisadeaparênciadesagradávelnofondue.—Porquevocês,CaçadoresdeSombras, têm este problema? Porque Jonathan Morgenstern jurou vingançacontravocês.Porqueele jurouvingança?Porqueeleodeiaopaieamãe.Semquererofender você—emendouele, e acenou coma cabeçapara Jocelyn—,mastodosnóssabemosqueissoéverdade.

—Nãoofendeu—disseJocelyn,emboraseutomfossefrio.—Senãofossepor mim e por Valentim, Sebastian não existiria, em nenhum sentido dapalavra.Assumototalresponsabilidadeporisso.

Lukesoouestrondoso.—FoiValentimquemotransformounummonstro—continuouele.—E,

sim, Valentim foi um Caçador de Sombras. Mas não é como se o ConselhoestivesseendossandoeapoiandoValentimouo lho.Elesestãoativamenteemguerra contra Sebastian e querem nossa ajuda. Todas as raças, licantropes,vampirosefeiticeirose,sim,oPovodasFadas,têmopotencialdefazerobemouomal.PartedoobjetivodosAcordos édizerque todosnósque fazemosobem, ou que esperamos fazer, estamos unidos contra os que fazem o mal.Independentementedaslinhagens.

MagnusapontouogarfoparaLuke.—Este—disseele—foiumbelodiscurso.O feiticeiro fez uma pausa. De nitivamente estava com di culdade para

pronunciaraspalavras.Comoeleconseguiu car tãoembriagadobebendo tão

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pouco vinho? Normalmente, era muito mais cuidadoso com isso. Magnusfranziuatesta.

—Quetipodevinhoéeste?—perguntou.Meliorn se inclinou na cadeira e cruzou os braços. Seus olhos brilharam

quandorespondeu:—Asafranãoteagrada,feiticeiro?Jocelynpousouocopolentamente.—Quandofadasrespondemaperguntascomperguntas—disse.—Nunca

éumbomsinal.—Jocelyn...—Lukeesticouamãoparacolocá-lanopulsodela.Eerrou.Ele tou a própria mão por um instante, confuso, antes de baixá-la

lentamentesobreamesa.—Oque—disseele,pronunciandocadapalavracomcuidado—vocêfez,

Meliorn?Ocavaleirofadariu.OsomeraumborrãomusicalnosouvidosdeMagnus.

O feiticeiro pousouo copode vinho,mas percebeuque o havia derrubado.Ovinho escorreupelamesa feito sangue.Ele ergueuoolhar atéRaphael,masovampiro estava com o rosto sobre a mesa, quieto e imóvel. Magnus tentouarticularonomedelecomoslábiosdormentes,masnãoemitiunenhumsom.

De algummodo, ele fez um esforço e conseguiu car de pé.A sala estavagirando.EleviuLukeafundarnacadeira; Jocelynsepôsdepé,depoisdesabouno chão, e a estela rolou para longe da mão dela. Magnus se lançou para aporta,esticouamãoparaabri-la...

Do outro lado, estavam os Crepusculares, vestidos com o uniformevermelho. Os rostos não tinham expressão, os braços e pescoços estavamdecorados com símbolos,mas nenhum familiar aMagnus. Tais símbolos nãoeramasmarcasdoAnjo.Elesfalavamdedissonância,dedomíniosdemoníacosedepoderesmalignosedecaídos.

Magnussepreparouparaseafastardeles—esuaspernascederam.Elecaiudejoelhos.Algumacoisabrancaseergueudiantedofeiticeiro.EraMeliorn,na

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armadura branca como a neve, curvando-se sobre um dos joelhos para tarMagnusnorosto.

— Filho do demônio — disse —, você realmente acreditou que nós nosaliaríamosàsuaespécie?

Magnus puxou o ar. O mundo estava escurecendo nas beiradas e securvandonaslaterais,comoumafotografiapegandofogo.

—OPovodasFadasnãomente—respondeuele.—Criança—prosseguiuMeliorn,equasehaviacompaixãoemsuavoz—,

nãosabe,depoisde todosessesanos,queoengodopode seesconderà luzdodia?Ah,masvocêéumingênuo,afinal.

Magnustentouergueravozparaprotestarqueeleeratudo,menosingênuo,mas as palavras não saíram. A escuridão, no entanto, se manifestou, e oarrastouparabemlonge.

OcoraçãodeClary couapertadonopeito.Elatentoumaisumavezmoverospés,masaspernaspermaneceramcongeladas.

— Acha que não entendi o que você quis dizer com “compaixão”? —murmurouela.—VocêvaiusaroCáliceInfernalemmim.VaimetornarumdeseusCrepusculares,comoAmatis...

—Não—disseele,comumaurgênciaestranhanavoz.—Nãovoumudarvocêsenãoquiser.Vouteperdoar,eaoJacetambém.Podemficarjuntos.

—Juntosdevocê—falouela,edeixouumapontadeironialhetocaravoz.Maselenãopareceuregistrarisso.—Juntos,comigo.Sevocêsjuraremlealdade,seprometeremissoemnome

doAnjo,acreditarei.Emboratodoorestantemude,preservareivocêsapenas.Ela desceu a mão mais um centímetro e agora segurava o cabo de

Heosphoros.Sóprecisavaapertaropunho...—Eseeunãofizerisso?Aexpressãodeleendureceu.—Sevocême rejeitar agora, vouTransformar todosaquemvocêamaem

Crepusculares,eentãoTransformareivocêporúltimo,paraquesejaobrigadaa

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observá-losmudandoenquantoaindaforcapazdesentirador.Claryengoliuparaumedeceragargantaseca.—Essaésuacompaixão?—Compaixãoéumacondiçãodenossoacordo.—Nãovouconcordar.Elebaixouoscílios,dispersandoaluz;osorrisoeraumapromessadecoisas

terríveis.— Qual é a diferença, Clarissa? Você combaterá por mim, de qualquer

forma.Ouvocêmantémsualiberdadee cacomigo,ouaperdee cacomigo.Porquenãoficarcomigo?

—Oanjo—disseela.—Qualeraonomedele?Confuso,Sebastianhesitouporummomentoantesderesponder.—Oanjo?—AqueledequemvocêcortouasasaseenviouparaoInstituto—falouela.

—Quevocêmatou.—Nãocompreendo—emendouele.—Quediferençafaz?—Não—respondeuela,devagar.—Vocênãocompreende.Ascoisasque

fezsãoterríveisdemaisparaseremesquecidas,evocênemmesmosabequesãoterríveis. E é por isso que não. É por isso quenunca. Nunca vou te perdoar.Nuncavouteamar.Nunca.

Ela viu cadapalavra atingi-lo comoum tapa. Enquanto Sebastian respiravafundo para responder, ela girou a espada de Heosphoros e apontou para ocoraçãodele.

Maselefoimaisveloz,eofatodeaspernasdelaestarempresaspormágicadiminuíaseualcance.Sebastiangirou;elaesticouamão,tentandopuxá-loparasi,maseleafastouobraçocomfacilidade.Elaouviuumchacoalharepercebeuremotamentequehaviaarrebentadoapulseiraprateada.Elatiniunopiso.Clarydeu outro golpe com a espada; ele se lançou para trás, eHeosphoros fez umcortenítidonapartedafrentedacamisa.Elaonotoucontraindoos lábios,dedor e de raiva. Sebastian a agarrou pelo braço e girou amão dela, batendo-a

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contraaportaefazendocomqueumaondadedormênciasubisseatéoombrodeClary.Osdedosficarammoles,eHeosphoroscaiudamãodela.

Sebastian baixouos olhos para a espada caída e depois voltou a olhar paraela,respirandodemaneiraofegante.Osanguebrotounotecidoondeelahaviacortado a camisa; a ferida não foi o su ciente para deixá-lo menos ágil. AdecepçãoinvadiuClary,maisdolorosaqueadornopulso.Sebastianimprensoua irmã contra a porta; ela sentia a tensão em cada contorno dele. A voz eracortante.

—AquelaespadaéHeosphoros,Aquetrazoalvorecer.Ondeaencontrou?—Numalojadearmas—arfouela.Asensaçãoestavavoltandoaoombro;a

doreraintensa.—Aproprietáriadolocaladeuparamim.Dissequeninguémmais...iaquererumaespadaMorgenstern.Nossosangueestácontaminado.

— Mas énosso sangue . — Ele se aferrou às palavras. — E você pegou aespada.Vocêaquis.—Elapodiasentirocaloremanandodele;pareciabrilharaoredor,comoachamadeumaestrelaseapagando.Eleinclinouacabeçaatéseus lábiostocaremopescoçodela, faloucontraapele,easpalavrastinhamomesmoritmodapulsaçãodela.Claryfechouosolhoscomumtremorenquantoasmãosdelepercorriamseucorpo.—Vocêmentequandomedizquenuncavai me amar — disse ele. — Que nós somos diferentes. Você mente, assimcomoeu...

—Pare—ordenouela.—Tiresuasmãosdemim.— Mas você é minha — insistiu Sebastian. — Eu quero você para... eu

preciso de você para... — Ele puxou o ar, ofegante; as pupilas tinham sedilatado; alguma coisa naquilo a apavoravamais que qualquer coisa que ele játivesse feito. Ver Sebastian no controle era assustador; e Sebastian fora decontroleeraalgoterríveldemaisparasecontemplar.

—Deixe-air—disseumavoz rmeeclaradooutroladodocômodo.—Etireasmãosdelaoueuvoutetransformaremcinzas.

Jace.Clary o viu acima do ombro de Sebastian; surgiu de repente, onde há um

minutonãohavianinguém. Jace estavadianteda janela, as cortinas soprando

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atrásdelecomabrisadocanal,eseusolhoseramtão rmesquantopedrasdeágata. Ele vestia o uniforme, a lâmina na mão, ainda com vestígios doshematomas no queixo e no pescoço, e sua expressão enquanto ele tavaSebastianeradeabsolutorepúdio.

ClarysentiutodoocorpodeSebastianenrijecercontraodela;ummomentodepois,elegiroueseafastou,chutouHeosphoros,eamãovoouparaoprópriocinto. Seu sorriso era como um corte de navalha, mas os olhos estavamcautelosos.

—Váemfrenteetente—disseele.—NaCidadela,vocêtevesorte.Eunãoesperavaquevocê fossequeimardaquele jeitoquando te cortei.Foimeuerro.Nãovoucometê-loduasvezes.

Os olhos de Jacemoveram-se rapidamente paraClary, com uma perguntaneles;elameneouacabeçaparaindicarqueestavabem.

—Entãoadmita—falouJace,dandoavoltaeseaproximandomaisdeles.Apisadadasbotaserasuavenopisodemadeira.—Ofogocelestialsurpreendeuvocê. Tirou você do jogo. Foi por isso que fugiu. Você perdeu a batalha naCidadela,enãogostadeperder.

O sorriso cortante de Sebastian couumpoucomais reluzente, umpoucorígido.

—Eunãoconseguioquefuibuscar.Masaprendialgumascoisas.— Você não rompeu os muros da Cidadela — continuou Jace. — Não

entrounoarsenal.NãoTransformouasIrmãs.—EunãofuiàCidadelaatrásdearmasearmaduras—zombouSebastian.

—Possoconseguirissocomfacilidade.Fuiatrásdevocês.Devocêsdois.ClaryolhoudesoslaioparaJace,queestavaparado,semexpressãoeimóvel,

orostorijocomopedra.—Nãotinhacomosaberqueestávamoslá—disse.—Estámentindo.—Nãoestou.—Elepraticamenteirradiavacomoumatochaardente.—Eu

consigo te ver, irmãzinha.Consigo ver tudo que acontece emAlicante.Dia enoite,naescuridãoounaclaridade,euconsigotever.

—Parecomisso—ordenouJace.—Nãoéverdade.

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— Sério? — disse Sebastian. — Como eu sabia que Clary estariaaqui?Sozinha,hojeànoite?

Jaceavançounadireçãodeles,comoumgatonacaçada.—Porquevocênãosoubequeeuestariaaquitambém?Sebastianfezumacareta.—Difícilobservarduaspessoasaomesmotempo.Tantosferrosnofogo...—E,sevocêqueriaClary,porquenãoapegarsimplesmente?—questionou

Jace.—Por que passar todo esse tempo conversando?—A voz dele pingavadesprezo.—Vocêquerqueelaqueiraircomvocê—disseele.—Ninguémnasuavidafezoutracoisasenãotedesprezar.Suamãe.Seupai.Eagorasuairmã.Clarynãonasceucomódionocoração.Você fezcomqueela teodiasse.Masnãoeraoquevocêqueria.Vocêseesqueceudequenósestávamosligados,euevocê.Esqueceuqueeu tinhavisto seus sonhos.Emalgumapartedentrodessasua cabecinha existe ummundo em chamas, e lá está você o observando deuma sala do trono, e nessa sala há dois tronos. Então quemocupa o segundotrono?Quemsentaaseuladonosseussonhos?

Sebastiandeuumrisoofegante;haviamarcasvermelhasnasbochechasdele,comoseestivessefebril.

— Você está cometendo um erro ao falar comigo assim, garoto anjo —alertouele.

—Mesmoemseussonhos,vocênãoéumsolitário—disseJace,eagoraavozdeleeraavozpelaqualClaryhaviaseapaixonado,avozdogarotoquelhecontaraahistóriasobreumacriançaeumfalcão,easliçõesqueeleaprendera.— Mas quem você poderia encontrar, capaz de compreendê-lo? Você nãoentende o amor; seu pai te ensinoumuito bem.Mas você entende o sangue.Clary tem seu sangue. Se pudesse tê-la a seu lado, vendo omundo queimar,seriatodaaaprovaçãodaqualvocêprecisaria.

— Eu nunca desejei aprovação — disse Sebastian, através dos dentestrincados.—Nemasua,nemadela,nemadeninguém.

— Sério?— Jace sorriu quando Sebastian ergueu a voz.— Então por quevocê nos deu tantas segundas chances? — Ele tinha desistido de avançar e

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estavaparadodiantedeles,osolhosdourados-clarosbrilhandosobapoucaluz.— Você mesmo disse isso. Você me apunhalou. Foi direto no meu ombro.Poderia ter ido no coração.Você estava se contendo. Por quê? Pormim?OuporqueemalgumaminúsculapartedasuamentevocêsabequeClarynuncateperdoariasepusessefimàminhavida?

—Clary,vocêdesejasemanisfestarnestaquestão?—perguntouSebastian,emboraelenuncatirasseosolhosdalâminanasmãosdeJace.—Ouquerqueeledêasrespostasporvocê?

JacedesviouosolhosparaClary,eSebastiantambém.Elasentiuopesodosolharesporuminstante,pretoedourado.

—Nuncavouquererircomvocê,Sebastian—disseela.—Jacetemrazão.Seaescolhafossepassaravidacomvocêoumorrer,euprefeririamorrer.

OsolhosdeSebastianescureceram.—Vocêvaimudardeideia—afirmouele.—Vaisubiraotronoaomeulado

espontaneamente,quandoo mchegarao m.Eutedeiachancedevirdeboavontade.Pagueicomsangueeaborrecimentosparatervocêcomigoporopçãoprópria.Masvoutelevarcontrasuavontade,damesmaforma.

—Não!— gritouClary, bem quando uma pancada alta soou no andar debaixo.Subitamente,acasaficoucheiadevozes.

—Ora,ora—começouJace,avozcheiadesarcasmo.—AchoqueenvieiumamensagemdefogoàClavequandoviocorpodoguardiãoquevocêmatoue arrastou até debaixo daquela ponte. Você foi tolo por não o descartar commaiscuidado,Sebastian.

A expressão de Sebastian cou rígida por tão pouco tempo que Claryimaginouqueamaiorpartedaspessoas jamaisterianotado.Eleesticouamãoparaela,oslábiosarticulandopalavras—umfeitiçoparalibertá-ladequalquerquefosseamagiaqueaestivesseprendendoàparede.Elafaziaforça,tentavaseimpelircontraele,eentãoJacepulousobreosdois,alâminamergulhando...

Sebastiansedesvencilhou,masnãoconseguiuimpediraespadadeacertá-lo:um o de sangue escorria pelo braço. Ele gritou, cambaleou e parou. SorriuquandoJaceoencarou,orostopálido.

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—Ofogocelestial—disseSebastian.—Vocêaindanãoconseguecontrolá-lo.Algumasvezesfunciona,outrasvezes,não,hein,irmãozinho?

OsolhosdeJaceardiam,dourados.—Veremos—falouele,atacandoSebastian,aespadacortandoaescuridão

comluz.MasSebastian era rápidodemaispara aquilo representar algumadiferença.

Ele caminhou e arrancou a espada da mão de Jace. Clary se debatia, mas amagiadeSebastianamantinhapresanolugar;antesqueJacepudessesemover,Sebastiangirouaespadaeaenfiounoprópriopeito.

A ponta afundou, rasgando a camisa, depois a pele. Ele sangrou emvermelho,sanguehumano,escurocomorubis.Eraevidentequesentiador:osdentes expostos num riso de escárnio, a respiração cando irregular, mas aespada continuou a avançar, amão rme.As costas da camisa incharam e serasgaram quando a ponta da espada irrompeu através dela, em uma bolha desangue.

O tempo pareceu esticar-se como um elástico.O cabo chegou ao peito deSebastian, a lâmina se projetava das costas, pingando em escarlate. Jace couparado,chocadoeimóvel,enquantoSebastianesticavaasmãosensanguentadaspara ele e o puxava para si. Acima do som de passos subindo os degraus,Sebastianfalou:

—PossosentirofogodoCéuemsuasveias,garotoanjo,ardendosobapele—disse.—Aforçapuradadestruiçãodabondadesuprema.AindapossoouvirseusgritosquandoClaryenterrouaespadaemvocê.Queimousemparar?—Avozsemfôlegoeraobscura,comintensidadevenenosa.—Vocêachaquetemumaarmaquepodeusarcontramimagora,nãoé?Etalvezemcinquentaanosoucem,pudesseaprenderadominaro fogo,mas tempoéprecisamenteoquevocênãotem.Ofogosealastra,semcontrole,dentrodevocê,commuitomaischancedetedestruirdoquedemedestruirumdia.

Sebastian ergueu uma dasmãos e agarrou a nuca de Jace, puxando-o paramaisperto,tãopertoquesuastestasquasesetocavam.

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—Claryeeusomosiguais—disseele.—Evocê...vocêémeuespelho.Umdiaelameescolheráemvezdevocê,eujuro.Evocêestaráláparaver.—Comum gesto repentino, ele beijou Jace na bochecha, com rmeza e rapidez;quandoseafastou,haviaumamanchadesangueali.—Ave,MestreHerondale— falou Sebastian, e girou o anel de prata no dedo; viu-se um brilho, e eledesapareceu.

Jace encarou silenciosamente o local onde Sebastian tinha estado, depoiscaminhouatéClary, easpernasdameninadesabaram, subitamente livresemfunção do desaparecimento de Sebastian. Ela caiu de joelhos e se abaixou nomesmoinstante,tateandoparapegaralâminadeHeosphoros.Amãosefechouem volta da arma, a qual ela puxou para si, curvando o corpo em volta delacomosefosseumacriançanecessitandodeproteção.

—Clary...Clary...—Jaceestavaali,os joelhosafundandonochãoao ladodela,eseusbraçosaenvolviam;elaseaninhouentreeles,encostandoatestanoombro do garoto. E sentiu que a camisa dele, e agora a pele dela, estavamúmidas com o sangue de seu irmão. Então a porta abriu com violência, e osguardiõesdaClaveirromperamnoquarto.

—Elávamosnós—falouLeilaHaryana,umadasintegrantesmaisrecentesdobandodelobos,aoentregarumapilhaderoupasaMaia.

Maiapegou-ascomgratidão.—Obrigada...vocênãofazideiadoquesigni caterroupaslimpasparausar

—disseela,eolhouapilha:umacamisetaregata,jeans,umcasacodelã.ElaeLeila tinhammaisoumenosomesmo tamanho, e,mesmoqueas roupasnãocoubessemtãobem,eramelhorquevoltaraoapartamentodeJordan.FaziaumtempodesdequeMaiapassaraamorarnasededobando,etodasascoisasdelaestavam no apartamento de Jordan e de Simon, mas era horrível pensar noapartamentosemosmeninosdentrodele.Pelomenosalielaestavacercadaporoutros lobisomens, cercadapeloconstantemurmúriodevozes,pelocheirododelivery de comida chinesa e de comida daMalásia, pelo barulho de pessoaspreparando a comida na cozinha. E Morcego estava lá... nunca invadindo o

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espaço dela, mas sempre por perto caso ela precisasse de alguém com quemconversar,ouapenascomquem carsentadaemsilêncio,observandootráfegonaBaxterStreet.

Semdúvida,tambémhaviapontosnegativos.RufusHastings,imenso,cheiode cicatrizes e assustador nas roupas pretas de motoqueiro, parecia estar emtodaparte,avoz roucaaudívelnacozinha,enquantoresmungavaao longodoalmoçosobreofatodeLukeGarrowaynãoserumlídercon ável,queeleiasecasarcomumaex-CaçadoradeSombras,quesua lealdadeestavaemdúvida,eque eles precisavamde alguémde quempudessemdepender para priorizar oslobisomens.

— Sem problema.— Leila remexia no grampo dourado no cabelo escuro,parecendosemgraça.—Maia,sóumconselho—emendouela—,talvezvocêpudessediminuirotomdessasualealdade-a-Luke.

Maiacongelou.—PenseiquetodosfossemleaisaLuke—disseela,emtomcuidadoso.—E

aMorcego.—SeLukeestivesseaqui,talvez—falouLeila.—Masmaltivemosnotícias

desdequeelefoiemboraparaIdris.APraetornãoéumbando,masSebastiannosdesa ou.Quer que a gente escolha entre osCaçadoresde Sombras e ir àguerraporeles,e...

—Semprehaveráguerra—disseMaia,comumtomdevozbaixoefurioso.—Minhalealdadenãoécega.EuconheçoosCaçadoresdeSombras.EconheciSebastiantambém.Elenosodeia.Tentaracalmá-lonãovaifuncionar...

Leilaergueuasmãos.—Tudo bem, tudo bem.Como eu disse, era apenas um conselho. Espero

queasroupassirvam—emendou,ecaminhouparaocorredor.Maia se remexeudentrodo jeans—apertado, comoela imaginara—eda

camiseta,evestiuocasacodeLeila.Pegouacarteiraemcimadamesa,calçouasbotasecaminhoupelocorredoratébaternaportadeMorcego.

Ele a abriu, sem camisa, e ela não esperava por isso. Além da cicatriz nabochecha direita, ele tinha uma cicatriz no braço direito, onde a bala— que

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nãoeradeprata—haviaacertado.Acicatrizpareciaumacrateralunar,brancacontraapelemorena.Eleergueuumadassobrancelhas.

—Maia?—Sabe,voudarumabroncaemRufus—disseela.—Eleestáenchendoa

cabeçadaspessoascomlixo,eestoucansadadisso.—Opa.—Morcegoergueuumadasmãos.—Nãoachoque sejaumaboa

ideia...—Elenãovaipararatéquealguémlhedigaparafazê-lo—alertouela.—Eu

me lembro de ter esbarrado nele na Praetor, com Jordan. Praetor Scott dissequeRufus tinha quebrado a perna de outro lobisomem semmotivo.Algumaspessoasveemumvácuodepoderequerempreenchê-lo.Enãoseimportamseferemalguémnoprocesso.

Maiadeumeia-volta edesceu; elaouviuos sons abafadosdos xingamentosde Morcego atrás de si. Um segundo depois, ele se juntou a ela na escada,vestindoumacamisetaapressadamente.

—Maia,eurealmentenão...— Lá vem você — falou ela. Maia tinha chegado ao saguão, onde Rufus

estavaapoiadonoqueantesforaumaescrivaninhapesada.Umgrupodecercadedezlobisomens,incluindoLeila,estavaaoredordele.

—...temosquemostraraelesquesomosmaisfortes.—Eleestavafalando.— E que nossa lealdade é para nósmesmos. A força do bando é o lobo, e aforçado lobo é o bando.—Avozdele era tão roucaquanto ela se lembrava,comosealgumacoisativesseferidosuagargantahámuitotempo.Ascicatrizesprofundasna faceeram lívidascontraapelepálida.Ele sorriuaoverMaia.—Olá.Creioquejánosencontramosantes.Lamenteipeloqueaconteceuaoseunamorado—emendou.

Duvido.—Forçaé lealdadeeunião,nãodivisãodaspessoascommentiras—disse

Maia.—Acabamosdenosreunir, evocê jáestámechamandodementiroso?—

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indagouRufus.Otomdeleaindaeracasual,mashaviaumlampejode tensão,comoumgatoprontoparaatacar.

—Sevocêestádizendoàspessoasqueelasdeveriam carforadaguerradosCaçadores de Sombras, então você é um mentiroso. Sebastian não vai parardepois de exterminar os Nephilim. Se ele os destruir, virá atrás de nós emseguida.

—ElenãoseimportacomosintegrantesdoSubmundo.—EleacaboudedestruiraPraetorLupus!—gritouMaia.—Eleseimporta

emdestruir.Evaimataratodosnós.—NãovaisenãonosunirmosaosCaçadoresdeSombras!—Émentira—disseMaia.ElaviuMorcegopassarumadasmãossobreos

olhos,edepoisalgumacoisabateucomforçanoombrodela,fazendocomquecambaleasse para trás. Ela foi pega de surpresa, o su ciente para tropeçar edepoisseequilibrarnabeiradadaescrivaninha.

— Rufus! — rosnou Morcego, e Maia percebeu que fora Rufus quem aatingiranoombro.Elaendureceuoqueixo,semquererdaraeleasatisfaçãodeveradoremseurosto.

Rufus cou parado em meio ao grupo imóvel de lobisomens, dando umsorrisinhomalicioso.MurmúriospercorreramogrupoquandoMorcegodeuumpassoàfrente.Rufuseraenorme,assomava-seatémesmoaBat,eseusombroseramtãolargoserombudosquantoumatora.

—Rufus—disseMorcego.—Na ausência deGarroway, sou o líder aqui.Vocêéumconvidadoentrenós,masnãofazpartedonossobando.Éhoradeirembora.

RufussemicerrouosolhosparaMorcego.—Vocêestámeexpulsando?Sabendoquenãotenhoparaondeir?—Tenhocertezadequeencontraráumlugar—disseMorcego,ecomeçou

adarascostasparaele.— Eu te desa o— falou Rufus.—MorcegoVelasquez, eu te desa o pela

liderançadobandodeNovaYork.—Não!—gritouMaia,horrorizada,masMorcego já estavaaprumandoos

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ombros. Os olhos dele se xaram nos de Rufus; a tensão entre os doislobisomenseratãopalpávelquantoumacercaeletrificada.

—Aceito seu desa o— disseMorcego.—Amanhã à noite, em ProspectPark.Encontrovocêlá.

Eledeumeia-voltae saiudadelegacia.Depoisdeuminstante imóvel,Maiacorreuatrásdele.

O ar frio a atingiunominuto emque ela chegou aos degraus da frente dacasa. O vento gelado rodopiava por Baker Street, atravessando o casaco. Eladesceu os degraus fazendo barulho, o ombro doendo. Morcego praticamentetinha chegado à esquina da rua na hora que ela conseguiu alcançá-lo, lheagarrandoobraçoegirando-oparaqueeleaencarasse.

Ela estava consciente de que outras pessoas na rua olhavam para eles, edesejou,poruminstante,terossímbolosdefeitiço.Morcegoa tou.Haviaumarugaderaivaentreseusolhos,eacicatrizseressaltava,nítidanabochecha.

—Vocêestálouco?—perguntouela.—Comopoderiaaceitarodesa odeRufus?Eleéimenso.

—Vocêconheceasregras,Maia—disseMorcego.—Umdesa odeveseraceito.

— Somente se você for desa ado por alguém do próprio bando! Vocêpoderiaterserecusado.

— E perdido todo o respeito do bando— respondeu.— Eles nuncamaisseguiriamminhasordens.

—Elevaitematar—a rmouMaia,eseperguntouseeleconseguiaouviroque ela estava dizendo nas entrelinhas: que ela havia acabado de ver Jordanmorrer,enãoseachavacapazdesuportarissodenovo.

—Talvez não.— Ele retirou do bolso uma coisa que tinia e tilintava, e acomprimiunamão.Depoisdeummomento,Maiapercebeudoquesetratava:eramas chavesde Jordan.—Avanestá estacionadabemnaesquina—disseMorcego.—Pegue e vá embora. Fique longedadelegacia até isso se resolver.NãoconfioemRufuspertodevocê.

—Venha comigo— implorouMaia.—Vocênunca deu importância para

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essa coisade ser líderdobando.Nóspoderíamos simplesmente ir embora atéLukevoltareresolverisso...

— Maia. — Morcego pôs a mão no pulso dela, e os dedos se curvaramdelicadamenteemsuapalma.—EsperarLukevoltaréexatamenteoqueRufusquerqueagentefaça.Seformosembora,basicamenteestaremosabandonandoobandocomele.Evocê sabeoqueelevaidecidir fazer.VaideixarSebastianmatarosCaçadoresdeSombrassemmexerumdedo,e,nahoraqueSebastianresolvervoltarenospegarcomoasúltimaspeçasnumtabuleirodexadrez,serátardedemaisparatodos.

Elabaixouosolhosparaosdedosdele,delicadosemsuapele.—Sabe—disseele—,eumelembrodequandovocêmedissequeprecisava

demaisespaço.Quevocênãoconseguiaterumrelacionamentodeverdade.Euacreditei e tedei espaço.Euaté comecei a sair comaquelagarota, a feiticeira,qualeraonomedela...

—Eve—emendouMaia.—Isso.Eve.—MorcegopareceusurpresoporMaiaselembrar.—Masnão

deucertoe,dequalquerforma,talvezeutivessetedadoespaçodemais.Talvezeudevesseterditocomoeumesentia.Talvezeudevesse...

Ela ergueu o olhar para ele, assustada e admirada, e viu a expressãomudando,osolhossefechando,ocultandoabrevevulnerabilidade.

—Deixepralá—disse.—Nãoéjustodespejartudoissoemvocêagora.—ElesoltouMaiaedeuumpassoparatrás.—Pegueavan—falou,eseafastoudela,indoemdireçãoàmultidãoeaCanalStreet.—Saiadacidade.Esecuide,Maia.Pormim.

Jacepousouaestelanobraçodosofáepassouumdedopelairatzequeeletinhadesenhado no braço deClary.Uma faixa prateada brilhou no pulso dele. Emalgummomento,Clarynãoselembravabemquando,elepegaraapulseiracaídadeSebastianeaprenderanoprópriopulso.Elanãotevevontadedeperguntaroporquê.

—Comovocêestásesentindo?

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—Melhor.Obrigada.—OjeansdeClaryestavaenroladoacimadosjoelhos;ela observava enquanto os hematomas nas pernas começavam a desaparecerlentamente.ElesestavamnumasaladoGard,umaespéciedelocaldereunião,Clarysupunha.Haviaalgumasmesaseumsofácompridodecouro,posicionadodiantedeumalareiracomchamafraca.Livroscobriamumadasparedes.Asalaerailuminadapelaluzdofogo.AjanelasemcortinasproporcionavaumavisãodeAlicanteedasreluzentestorresdemoníacas.

—Ei!—A luzdosolhosdouradosdeJaceexaminouorostodela.—Vocêestábem?

Sim, ela queria dizer,mas a resposta cou presa na garganta. Fisicamente,ela estava bem. Os símbolos haviam curado os machucados. Ela estava bem,Jace estava bem— Simon, derrubado pelo sangue batizado, dormira durantetodos os acontecimentos e no momento ainda estava dormindo, em outrocômododoGard.

Umamensagem fora enviada a Luke e Jocelyn. O jantar no qual estavamtinhabarreirasdeproteção,explicaraJia,maselesareceberiamnasaída.Claryestavaansiosaparavê-losmaisumavez.Omundopareciainstávelsobseuspés.Sebastian tinha ido embora, aomenos por enquanto,mas ela ainda se sentiadestruída,amarga,irritada,vingativaetriste.

Osguardiõespermitiramqueelaarrumasseumabolsacomsuascoisasantesde ir emboradacasadeAmatis:umamudade roupas,ouniforme, a estela,ocadernodedesenhoseasarmas.Partedelaqueriadesesperadamentetrocarderoupa, livrar-se do toque de Sebastian no tecido, mas uma parte maior nãoqueria sair do quarto, não queria car sozinha com as lembranças e ospensamentos.

—Estoubem.Ela desenrolou as pernas do jeans e coude pé, caminhando até a lareira.

EstavaconscientedequeJaceaobservavadosofá.Claryesticouasmãoscomoseasesquentasse juntoao fogo,emboranãosentisse frio.Naverdade,sempreque seu irmão cruzava sua mente, ela sentia uma onda de raiva, como fogolíquido percorrendo o corpo. As mãos tremiam; ela as olhava com uma

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sensaçãodedistanciamento,comosefossemasmãosdeumestranho.—Sebastian temmedodevocê—disseClary.—Ele tentounos jogarum

contraooutro,emespecialnofim,masdavaparaver.— Ele tem medo do fogo celestial — corrigiu Jace. — Não acho que ele

tenha certeza do que o fogo causa, não mais que nós. Uma coisa, porém, écerta:elenãosemachucasódemetocar.

—Não—disseela,semdarmeia-voltaparaolharparaJace.—Porqueelete beijou? — Não era isso que ela queria dizer, mas não parava de pensarnaquelacena.Sebastiancomamãoensanguentada,securvandoatéopescoçodeJace,eentãoaquelebeijoestranhoesurpreendentenorosto.

ElaouviuoestalidodosofádecouroenquantoJacemudavadeposição.—Eraumtipodecitação—explicouele.—DaBíblia.QuandoJudasbeijou

Jesus no jardim do Getsêmani. Era um sinal da traição. Ele o beijou e disse“Salve, mestre”, e foi assim que os romanos souberam a quem prender ecrucificar.

—Foiporessarazãoqueeledisse“Ave,mestre”paravocê—disseClary,aocompreender.—“Salve,mestre.”

— Ele queria dizer que planejava ser o instrumento de minha destruição.Clary,eu...—Elaseviroue touJacequandoeleparoudefalar.Estavasentadonabeiradadosofá,passandoamãonocabelo lourobagunçado,osolhos xosnochão.—Quandoentreinoquartoevivocêali,eeleali,euquismatá-lo.Eudeviatê-loatacadoimediatamente,mastivemedodequefosseumaarmadilha.Que,seeufosseatévocês,qualquerumdevocês,eleencontrariaummeiodetemataroutemachucar.Elesempredistorceutudoque z.Eleéinteligente.MaisinteligentequeValentim.Eeununcative...

Elaaguardou,oúnicosomnocômodoeraoestalidoeocrepitardamadeiraúmidanalareira.

— Eu nunca tive medo de alguém assim — concluiu ele, engolindo aspalavrasenquantoaspronunciava.

Clary sabia o quanto custava a Jace confessar aquilo, o quanto de sua vida

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foradedicadaaesconderomedo,adorequalquervulnerabilidadeperceptível.Ela queria dizer alguma coisa, falar que ele não precisava car com medo,porém não conseguiu. Clary também tinha medo, e ela sabia que ambospossuíam boa razão para ter. Não havia ninguém em Idris que tivesse maismotivosqueelesparasentirpavor.

—Elesearriscoumuitovindoaqui—disseJace.—EledeixouqueaClavesoubesseque ele consegueatravessar asbarreiras.Eles vão tentar aumentá-lasnovamente. Talvez funcione, talvez não, mas provavelmente será uminconvenienteparaSebastian.Elequeriamuitovervocê.Osu cienteparafazeroriscovalerapena.

—Eleaindaacreditaquepodemeconvencer.—Clary.—Jacesepôsdepéecaminhouatéela,amãoesticada.—Você...Ela se encolheu,desvencilhando-sedo toquedele.Uma luz alarmada ardia

nosolhosdouradosdele.—Qualéoproblema?—Elebaixouoolharparaasmãos;obrilhosuavedo

fogonasveiaseravisível.—Ofogocelestial?—Não—disseela.—Então...—Sebastian.Eudeviatertecontado,massimplesmente...nãoconsegui.Elenãosemexeu,sóficouolhandoparaela.—Clary,vocêpodemecontarqualquercoisa;sabequepode.Ela respirou fundo e olhou para o fogo, observando as chamas: douradas,

verdeseazul-safira,perseguindoumasàsoutras.—Emnovembro— falou—, antesde a gente ir aBurren, depoisde você

sair do apartamento, ele percebeu que eu estivera espionando. Esmagoumeuanel e então ele... eleme bateu,me empurrou através damesa de vidro.Mederrubounochão.Euquaseomateinahora,quaseenterreiumpedaçodevidroemseupescoço,maspercebique,se zesseisso,eumatariavocê,porisso,nãoofiz.Eeleficoutãosatisfeito.Eleriuemepuxou.Estavatirandominharoupaerecitando trechos dos Cânticos de Salomão, dizendo que irmãos e irmãscostumavamse casarparamanter as linhagensde sangue realpuras, eque eu

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pertencia a ele.Como se eu fosseumapeçadebagagemcom seumonogramagravadoemmim...

Jaceseimpressionoudeummodoqueelararamentevira;elainterpretavaosníveisdaexpressãodele:mágoa,medo,apreensão.

—Ele...ele...?— Me violentou? — disse ela, e as palavras soaram feias e terríveis na

tranquilidadedoquarto.—Não.Elenãofezisso.Ele...parou.—Avozbaixouparaumsussurro.

Jace coubrancocomopapel.Eleabriuabocaparadizeralgumacoisa,masClaryouvia apenaso ecodistorcidodaprópria voz, como se estivessedebaixod’água de novo. Ela tremia inteira, violentamente, embora o quarto estivessequente.

—Hojeànoite—disseela,por m.—Eunãoconseguiamemexer,eelemeempurroucontraaparede,eeunãoconseguiasair,esimplesmente...

— Eu voumatá-lo— falou Jace.Um pouco de cor tinha voltado ao rostodele,eelepareciapesaroso.—Voufazê-loempedaços.VouarrancarasmãosdeSebastianportocarememvocê...

— Jace — disse Clary, sentindo-se subitamente esgotada. — Temos ummilhão de razões para querê-lomorto. Além disso— emendou ela, com umsorrisosemgraça—,Isabellejáarrancouamãodele,eissonãofuncionou.

Jace fechouamãonumpunho, levou-aaopróprioestômagoe en ou-anoplexosolar,comosepudesseinterrompersuarespiração.

—Todo esse tempo emque estive ligado a ele, pensei que conhecesse suamente, seusdesejos, seusanseios,masnão imaginei, eunãosabia.Evocênãomecontou.

—Issonãoésobrevocê,Jace...—Eusei—disseele.—Eusei.—Masopunhoestavacerradocomtanta

forçaquepareciabranco,asveiasdascostasdamãosaltandonumatopogra aacentuada.—Eu sei e não te culpopornãome contar.Oque eupoderia terfeito?Oquãototalmenteinútileusouaqui?Euestavadepéaummetroemeiodele, e tenho fogo nas veias que deveria ser capaz dematá-lo, e tentei, e isso

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nãofuncionou.Eunãofuicapazdefazerfuncionar.—Jace.— Sintomuito. É só que... vocême conhece. Eu só tenho duas reações a

notíciasruins.Iraincontroláveleentãoumacurvaacentuadaàesquerdaparaoautodesprezofurioso.

Ela couemsilêncio.Acimadetudo,estavacansada,muitocansada.ContaraeleoqueSebastian zeratinhasidocomoerguerumpesoimpossível,eagoratudoqueelaqueriaerafecharosolhosedesaparecernaescuridão.Tinha cadotãoirritadaportantotempo—araivasempresobasuperfíciedetudo,querelaestivesse no shopping para comprar presentes com Simon, ou sentada noparque,ousozinhaemcasatentandodesenhar,araivasempreestavacomela.

Era evidente que Jace estava lutando; ele não tentava esconder nada dela,pelomenos,eClaryviuo lampejobrevedeemoçõesno fundodosolhosdele:ira, frustração, impotência, culpa e, então, tristeza. Era uma tristezasurpreendentemente tranquila, para Jace, e, quando elepor m falou, sua voztambémpareciasurpreendentementetranquila:

— Eu só queria poder dizer a coisa certa, fazer a coisa certa, facilitar issoparavocê—disseele,semolharparaelae,emvezdisso, tandoochão.—Oque você quiser demim, eu quero fazer.Quero te apoiar damelhormaneira,Clary.

—Isso—falouelaemvozbaixa.Eleergueuosolhos.—Oquê?—Oquevocêacaboudedizer.Foiperfeito.Elepiscou.—Bem,issoébomporquenãotenhocertezasetenhocapacidadedeumbis

dentrodemim.Qualdaspartesfoiperfeita?Ela retorceu os lábios ligeiramente.Havia alguma coisa tão Jace na reação

dele, a estranha mistura de arrogância e vulnerabilidade, de resistência,amarguraedevoção.

— Eu só quero saber— disse ela— que sua opinião a meu respeito não

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mudou.Quemeuvalorsejamenor.—Não.Não—respondeuele,consternado.—Vocêécorajosaebrilhante,

éperfeitaeeuteamo.Eusimplesmenteteamoesempreteamei.Easatitudesdealgumlunáticonãovãomudarisso.

— Sente-se — disse Clary, e ele sentou no sofá de couro que estalava, acabeça inclinada para trás, olhando para ela. A luz re etida da lareira seacumulava feito centelhas no cabelo de Jace. Ela respirou fundo e foi até ele,acomodando-secuidadosamentenocolodele.—Vocêpoderiameabraçar?—pediuela.

Ele pôs os braços ao redor dela, apertando-a contra si. Clary sentia osmúsculos nos braços dele, a força em suas costas enquanto a tocavadelicadamente, muito delicadamente. As mãos dele eram feitas para lutar, eaindaassimelesabiasermuitogentilcomela,comopiano,comtodasascoisascomasquaisseimportava.

Elaseajeitoucontraele,sentadadeladoemseucolo,comospésnosofá,einclinou a cabeça contra o ombro dele. Clary sentia as batidas rápidas docoraçãodeJace.

—Agoramebeijetambém—disseela.Elehesitou.—Vocêtemcerteza?Elaassentiu.— Sim. Sim— falou.— Deus sabe que não temos conseguido fazer isso

ultimamente,massemprequetebeijo,semprequevocêmetoca,éumavitória,sevocêquersaber.Sebastianfezoquefezporque...porquenãocompreendeadiferençaentreamareter.Entresedoaretomar.Eeleachaqueseconseguissemeobrigaramedoar,elemeteria,euseriadele,e,paraele,issoéamor,porqueele não conhecemais nada.Mas, quando eu toco em você, faço isso porquequero,eessaétodadiferença.Eelenãovaiterissonemtirarissodemim.Nãovai— disse ela, e se esticou para beijá-lo, um toque leve dos lábios nos dele,apoiandoamãonascostasdosofá.

ElasentiuquandoJacepuxouoaraovera levecentelhaquesaltouentrea

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peledeambos.Eleroçouabochechacontraadela,asmechasdocabelodelesseentrelaçando,vermelhasedouradas.

Clary voltou a se ajeitar contra ele. As chamas pularam na grade, e umpoucodocalorinvadiuosossosdela.Estavaapoiadanoombromarcadocomaestrela branca dos homens da família Herondale, e pensou em todos os quetinhampartidoantesdeJace,cujosangue,ossosevidasfizeramdeleoqueera.

—Oque você estava pensando?—perguntou ele. Jace passou amão pelocabelodelaedeixouoscachossoltosdeslizarementreseusdedos.

—Que cofelizportertecontado—respondeuClary.—Oquevocêestápensando?

Ele cou em silêncioporum longo instante enquanto as chamas subiamebaixavam.Depois,falou:

—Estava pensando no que você disse sobre Sebastian ser solitário. Estavatentandome lembrar de como era estar naquela casa com ele. Sebastianmelevou por um monte de motivos, claro, mas em parte era apenas para tercompanhia.Acompanhiadealguémqueeleacreditavasercapazdeentendê-lo,porque fomos criadosdamesma forma.Eu estava tentandome lembrar se eurealmentegostavadele,segostavadepassarotempocomele.

— Acho que não. Só de estar ali com você, nunca parecia relaxado, nãoexatamente.Vocêeravocê,masnãoeravocê.Édifícildeexplicar.

Jaceolhouparaofogo.—Nãoétãodifícilassim—disseele.—Achoqueexisteumaparteemnós,

separadaatédenossavontadeoudanossamente,eeraessapartequeelenãopodia tocar. Nunca fui exatamente eu, e ele sabia disso. Ele queria quegostassemdeleouquerealmenteoamassempeloqueera,genuinamente.Maselenãoachaqueprecisamudarparaserdignodeseramado;emvezdisso,elequermudaromundointeiro,mudarahumanidade,transformá-laemalgoqueo ame. — Ele fez uma pausa. — Sinto muito pela psicologia de sofá.Literalmente.Cáestamosemumsofá.

MasClaryestavamergulhadaempensamentos.

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—QuandoeuremexinascoisasdeSebastian,nacasa,encontreiumacartaescrita por ele. Estava incompleta,mas estava endereçada “àminha bela”. Eume lembrode terachadoestranho.Porqueeleescreveriaumacartadeamor.Querodizer,eleentendeumpoucodesexoedesejo,masamorromântico?Nãopeloqueeuvi.

Jacepuxou-aparasi,ajeitando-amelhornacurvadalateraldeseucorpo.Elanão tinha certeza sobre quem estava acalmando quem, apenas que o coraçãodele batia com regularidade contra a pele dela, e o cheiro de metal-suor-sabonetedeleerafamiliarereconfortante.Claryamoleceudeencontroaele,ocansaçotomandocontaeaextenuando,pesandoaspálpebras.Foramumdiaeumanoitemuitolongos,e,antesdisso,haviasidoumlongodia.

— Se minha mãe e Luke chegarem enquanto eu estiver dormindo, meacorde—pediuela.

—Ah, você será acordada—disse Jace, sonolento.—Suamãe vai pensarqueestoumeaproveitandodevocê,evaimeperseguiraoredordocômodocomumatiçador.

Elaesticouamãoefezumcarinhonabochechadele.—Euteprotejo.Jacenãorespondeu.Elejáestavadormindo,respirandocomtranquilidade,o

ritmo das batidas do coração se adequando lentamente. Ela cou acordadaenquantoeledormia—olhandoparaaschamasquepululavam,e franzindoatesta,aspalavras“minhabela”ecoandoemseusouvidoscomoalembrançadepalavrasouvidasemsonho.

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11OMelhorEstáPerdido

—Clary.Jace.Acordem.Clary levantou a cabeça e quase gritou enquanto a dor disparava em seu

pescoço enrijecido. Ela havia adormecido aninhada no ombro de Jace; eletambémestavadormindo,encostadonocantodosofácomajaquetaemboladadebaixo da cabeça, como se fosse um travesseiro.O cabo da espada do rapazestava enterrado desconfortavelmente no quadril de Clary quando eleresmungoueseesticou.

AConsulesaestavaparada,diantedeles,vestidacomatúnicadoConselho,muitoséria.Jacefezumesforçoparaselevantar.

—Consulesa—disse ele, comum tomde voz tão formal quanto possívelenquanto recolhia as roupas emboladas e ajeitava o cabelo claro que searrepiavaemtodasasdireçõespossíveis.

—Nósquasenosesquecemosdequevocêsdoisestavamaqui—a rmouJia.—AreuniãodoConselhojácomeçou.

Clary coudepémais lentamente,estalandoascostaseopescoço.Abocaestavasecafeitogiz,eocorpodoíaporcausadatensãoedocansaço.

—Ondeestáminhamãe?—perguntouela.—OndeestáLuke?—Vouesperarvocêsnocorredor—disseJia,masnãosemexeu.Jaceenfiavaosbraçosnajaqueta.—Iremosimediatamente,Consulesa.HaviaalgonavozdaConsulesaquefezClaryolhardenovoparaela.Jiaera

bonita, como a lha dela,Aline,mas nomomento tinha rugas de tensão noscantosdabocaedosolhos.Claryjáviraaquelaexpressão.

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—Oqueestáacontecendo?Temalgumacoisaerrada,não tem?Ondeestáminhamãe?OndeestáLuke?

— Não temos certeza — disse Jia baixinho. — Eles não responderam àmensagemqueenviamosontemànoite.

Muitasondasdechoque,enviadasrapidamente,deixaramClaryentorpecida.Ela não conseguia arfar nem exclamar, somente sentir o frio espalhando-sepelas veias. Pegou Heosphoros da mesa onde a havia deixado e a en ou nocinturão. Sem dizer uma palavra, passou pela Consulesa e seguiu para ocorredoremfrenteaoquarto.

Simonestavaesperandoali.Pareciaamarrotadoeexausto,pálidoatémesmoparaumvampiro.Elaesticouamãoparacumprimentá-lo,eosdedosroçaramoaneldouradodefolhanodedodele.

— Simon vai para a reunião do Conselho— disse Clary, e sua expressãodesafiavaaConsulesaaretrucar.

Jiasimplesmenteassentiu.Elapareciacansadademaisparaargumentar.—ElepodeserorepresentantedasCriançasdaNoite.—Mas Raphael ia se apresentar como representante— protestou Simon,

alarmado.—Nãoestoupreparado.— Não conseguimos entrar em contato com nenhum representante do

Submundo,incluindoRaphael.—Jiacomeçouacaminharpelocorredor.As paredes eram de madeira, com a cor clara e o cheiro forte de ripas

recém-cortadas. Provavelmente era parte do Gard reconstruída depois daGuerraMortal.Claryestiveracansadademaisnanoiteanteriorparaperceber.Haviasímbolosdepoderangélicoentalhadosem intervalosali.Cadaumdelesbrilhavacomumaluzintensa,iluminandoocorredordesprovidodejanelas.

— O que você quer dizer com “não conseguimos entrar em contato”?—exigiusaberClary,apressando-seatrásdeJia.SimoneJaceacompanhavam.Ocorredortinhaumacurva,conduzindomaisparaocentrodoGard.Claryouviaumrugidoabafadocomoosomdooceano,poucoàfrentedeles.

—NemLukenemsuamãevoltaramdocompromissonacasadoPovodasFadas. — A Consulesa parou em uma enorme antecâmara. Havia grande

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quantidade de luz natural ali, atravessando as janelas feitas de quadradosalternados de vidro simples e colorido. Portas duplas erguiam-se diante deles,adornadascomotrípticodoAnjoedosInstrumentosMortais.

—Nãoentendo—disseClary,esuavozseelevou.—Entãoelesaindaestãolá?NacasadeMeliorn?

Jiabalançouacabeça.—Acasaestávazia.—Mas...equantoaMeliorn,equantoaMagnus?—Nãotemoscertezaainda—respondeuJia.—Nãoháninguémnacasa,e

nenhum dos representantes responde às mensagens. Patrick saiu e estárevistandoacidadeagoracomumaequipedeguardiões.

—Haviasanguenacasa?—perguntouJace.—Sinaisdeluta,algumacoisa?Jiabalançouacabeça.— Não. A comida ainda estava na mesa. Era como se eles simplesmente

tivessem...evaporado.—Temmaiscoisa,nãotem?—questionouClary.—Pelasuaexpressão,dá

paraverquetemmais.Jianãorespondeu,simplesmenteempurrouaportadasaladoConselho.O

barulho tomou conta da antecâmara. Aquele era o som que Clary estavaouvindo, como o quebrar do oceano. Ela correu e ultrapassou a Consulesa,entãofezumapausanaentrada,pairando,insegura.

AsaladoConselho,tãotranquilaháapenasalgunsdias,agoraestavalotadadeCaçadoresde Sombras gritando.Todos estavamdepé, alguns emgrupos eoutrosisolados.Amaioriadosgruposdiscutia.Clarynãoconseguiadistinguiraspalavras,mas via gestos irritados.Os olhos examinaram amultidão buscandorostosfamiliares;nadadeLukenemdeJocelyn,masláestavamosLightwood,RobertnostrajesdeInquisidor,aoladodeMaryse;láestavamAlineeHelen,eoamontoadodecriançasdosBlackthorn.

E lá, bem no centro do an teatro, estavam os quatro assentos demadeiraentalhada dos integrantes do Submundo, organizadas em um semicírculo emvoltadospúlpitos.Estavamvazios,e,diantedeles,bemnomeiodoassoalhode

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madeira,haviaumaúnicapalavra, rabiscadanumagra a torta,noquepareciaumatintadouradaegrudenta:

Veni.Jace passou por Clary e entrou na sala. Os ombros dele caram tensos

quandoviuorabisco.—Istoéicor—disseele.—Sanguedeanjo.Emumlampejo,ClaryviuabibliotecadoInstituto,ochãoescorregadiocom

sangueepenas,osossosocosdoanjo.Erchomai.Estouchegando.Eagoraumaúnicapalavra:Veni.Cheguei.Uma segunda mensagem. Ah, Sebastian andou ocupado.Idiota, pensou

Clary,tãoidiotadasuapartepensarqueeletinhavindoapenasporcausadela,que isso não era parte de algo maior, que ele não tinha querido mais, maisdestruição,mais terror,mais insurgência. Ela pensou no risinho dele quandomencionaraabatalhanaCidadela.Semdúvida,tinhasidomaisqueumataque;tinhasidoumadistração.VoltaraatençãodosNephilimparaforadeAlicante,fazê-los rodarpelomundoatrásdele edosCrepusculares, e entrar empânicopor causa dos feridos e mortos. E, nesse meio-tempo, Sebastian fora até ocoraçãodoGardepintaraochãocomsangue.

Próximoaoestradohaviaumgrupode IrmãosdoSilêncioemsuas túnicascordeosso,osrostosescondidospelocapuz.Comamemóriafaiscando,ClarysevirouparaJace.

— O Irmão Zachariah... Nunca tive a oportunidade de perguntar se vocêsabiaseeleestavabem.

Jacefitavaoqueestavaescritonoestrado,ostentandoumolhardoentio.—EuovinoBasilias.Eleestábem.Eleestá...diferente.—Diferentedeumjeitobom?— Diferente de um jeito humano — retrucou Jace, e antes que Clary

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pudesseperguntaroqueissosignificava,elaouviualguémchamarseunome.No centro da sala, Clary viu a mão se erguendo no meio da multidão,

acenandofreneticamenteparaela.Isabelle.ElaestavaempécomAlec,apoucadistância dos pais. Clary ouviu Jia chamá-la, mas já estava acotovelando aspessoas,comJaceeSimonemseuencalço.Elapercebeuosolharescuriososemsuadireção.Todossabiamquemelaera,a nal.Sabiamquemtodoseleseram.AfilhadeValentim,ofilhoadotivodeValentimeovampiroDiurno.

— Clary! — gritou Isabelle, quando Clary, Jace e Simon se livraram dosobservadores que os tavam e quase caíram sobre os irmãos Lightwood, osquaisconseguiramliberarumespacinhoparasinomeiodamultidão.

Isabelle deu uma olhadela irritada para Simon antes de se esticar paraabraçar Jace e Clary. Assim que soltou Jace, Alec o puxou pela manga e oagarrou, os nós dos dedos cando brancos ao redor do tecido. Jace pareceusurpreso,masnãodissenada.

—Éverdade?—perguntou IsabelleparaClary.—Sebastian estevena suacasaontemànoite?

—NacasadeAmatis,sim...comovocêsabia?—perguntouClary.—NossopaiéoInquisidor;claroquesabemos—disseAlec.—Osrumores

sobreSebastiannacidadeforamoassuntounânimeantesdeabriremasaladoConselhoeagentever...isto.

—É verdade— acrescentou Simon.—AConsulesa perguntou sobre issoquandome acordou... como se eu soubesse de alguma coisa. Dormi o tempotodo—emendou,quandoIsabellelançouumolharquestionadorparaele.

—AConsulesacontoualgumacoisaavocêssobreisto?—perguntouAlec,efezumgestocomobraçoparaacenasombriaabaixo.—Sebastiancontou?

—Não—disseClary.—Sebastiannãoexatamentepartilhadeseusplanos.—Elenãodeviaconseguir seaproximardos representantesdoSubmundo.

Não apenas Alicante está guardada, como cada uma das casas seguras tembarreiras—emendouAlec.Apulsaçãolatejavanopescoçofeitoummartelo;amão,ondeelaseapoiavanamangadeJace,tremialevemente.—Elesestavamnojantar.Deviamestaremsegurança.—ElesoltouJaceeen ouasmãosnos

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bolsos.—EMagnus...Magnusnemmesmodeveriaestarlá.EraCatarinaquemirianolugardele.—EolhouparaSimon.—EutevicomelenaPraçadoAnjo,nanoitedabatalha.EleexplicouporqueestavaemAlicante?

Simonbalançouacabeça.—Elesimplesmentememandoufazersilêncio.EstavacurandoClary.— Talvez tenha sido um blefe — disse Alec. — Talvez Sebastian esteja

tentando nos fazer pensar que causou alguma coisa aos representantes doSubmundoparanosjogar...

— Nós nãosabemos se ele fez alguma coisa com eles. Mas... eles estãodesaparecidos—falouJaceemvozbaixa,eAlecdesviouoolhar,comosenãoconseguissesuportaratrocadeolhares.

—Veni—murmurouIsabelle,olhandoparaoestrado.—Porque...?—Eleestánosdizendoquetempoder—disseClary.—Poderquenenhum

denóssequercomeçouaentender.—Elapensounomodocomoelesurgiranoquartoedepoisdesaparecera.NomodocomoochãoseabrirasobospésdelenaCidadela, comoseaTerraoestivesse recebendo, escondendo-odaameaçadomundoacima.

Um alerta breve soou pelo cômodo, o sino que chamava o Conselho àordem.Jiaestavanopúlpito,comumguardiãodaClavearmadousandotúnicasencapuzadasdecadaladodela.

— Caçadores de Sombras— disse, e a palavra ecoou tão claramente pelosalãoquantoseelativesseusadoummicrofone.—Porfavor,silêncio.

Asalafoi candogradativamentesilenciosa,embora,peloolharrebeldeemalgunsdosrostos,fosseumsilênciopoucocooperativo.

—Consulesa Penhallow!— gritouKadir.—Que respostas a senhora temparanós?Qualéosignificadodisto...destesacrilégio?

—Nãotemoscerteza—disseJia.—Aconteceuànoite,entreosturnosdosguardiões.

— Isso é vingança — falou um Caçador de Sombras magro, de cabelosescuros,aquemClaryreconheciacomoolíderdoInstitutodeBudapeste.LazloBalogh era o nome dele, supunha ela. — Vingança pelas nossas vitórias em

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LondresenaCidadela.—NósnãotivemosvitóriasemLondresenaCidadela,Lazlo—disseJia.—

OInstitutodeLondres,no mdascontas,foiprotegidoporumaforçadaqualnemtemosconhecimento,umaforçaquenãopodemosreplicar.OsCaçadoresdeSombrasdeláforamavisadoseretiradosemsegurança.Aindaassim,algunsforam feridos: nenhuma das forças de Sebastian foi ferida. Na melhor dashipóteses,poderiaserchamadaderetiradabem-sucedida.

— Mas o ataque à Cidadela — protestou Lazlo. — Ele não entrou naCidadela.Elenãochegouaoarsenal...

— Mas também não foi derrotado. Mandamos sessenta guerreiros, e elematoutrintae feriudez.Ele tinhaquarentaguerreiroseperdeu, talvez,15.Senão fosse pelo ocorrido quando ele feriu Jace Lightwood, os quarenta teriamexterminadonossossessenta.

— Nós somos Caçadores de Sombras — disse Nasreen Choudhury. —Estamosacostumadosadefenderoque temosquedefendercomnossoúltimofôlego,nossasúltimasgotasdesangue.

—Uma ideianobre—disse JosianePontmercy, doConclavedeMarselha—,mastalveznãototalmenteprática.

— Fomos extremamente conservadores em relação à quantidade queenviamos para enfrentá-los na Cidadela — disse Robert Lightwood, a vozressoandoatravésdasala.—Estimamos,desdeosataques,queSebastiantivessequatrocentosguerreirosCrepuscularesaoseulado.Deacordocomosnúmeros,uma batalha corpo a corpo entre as forças dele e todos os Caçadores deSombrassignificariaaderrotadele.

—Entãooqueprecisamosfazeréenfrentá-loassimqueforpossível,antesque ele Transforme mais um Caçador de Sombras — emendou DianaWrayburn.

—Vocênão pode enfrentar aquilo quenão consegue encontrar—disse aConsulesa. — Nossas tentativas de rastreá-lo continuam infrutíferas. — Elaelevouavoz.—OmelhorplanodeSebastianMorgensternagora énos atrairem pequenos números. Ele precisa que enviemos grupos de rastreadores para

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caçardemônios, oupara caçá-lo.Precisamos car juntos aqui, em Idris, ondeele não conseguenos enfrentar. Se nos separarmos, se deixarmosnossa casa,entãonósperderemos.

—Elevaiesperarpornósláfora—disseumaCaçadoradeSombrasloura,doConclavedeCopenhague.

—Temosqueacreditarqueelenãotempaciênciapara isso—falouJia.—Temos que presumir que ele atacará, e, quando zer isso, nossos númerossuperioresoderrotarão.

—Hámaisdoquepaciênciaaserconsiderada—ponderouBalogh.—Nósabandonamos nossos Institutos, viemos até aqui com a compreensão de queretornaríamos logo após uma reunião doConselho com os representantes doSubmundo.Semagenteláfora,quemvaiprotegê-lo?Temosummandato,ummandatocelestial,paraprotegeromundo,reprimirosdemônios.NãopodemosfazerissodaquideIdris.

— Todas as barreiras estão com força total— disse Robert.— A Ilha deWrangel está funcionando em tempo extra. E dada nossa cooperação comosmembros do Submundo, teremos que con ar neles paramanter os Acordos.IssoerapartedoqueíamosdiscutirnoConselhohoje...

—Ora,boasortecomisso—disseJosianePontmercy—,considerandoqueosrepresentantesdoSubmundoestãodesaparecidos.

Desaparecidos. A palavra caiu no silêncio como um seixo dentro da água,enviando ondas pelo cômodo.Clary sentiuAlec enrijecer por um instante aoladodela.Nãosepermitirapensarnaquilo,nãosepermitiraacreditarqueelesrealmente poderiam estar desaparecidos. Era uma peça que Sebastian estavapregandoneles,diziaparasi.Umapeçacruel,masnadamais.

—Nãosabemosisso!—protestouJia.—Osguardiõesestãoláforafazendoumabusca...

— Sebastian escreveu no chão diante dos assentos deles! — berrou umhomem comum braço enfaixado. Era o líder do Instituto doNovoMéxico eestivera na batalha da Cidadela. Clary supunha que o sobrenome dele fosseRosales.—Veni.“Cheguei”.Assimcomoelenosenviouumamensagemcoma

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mortedoanjoemNovaYork,agoraelenosatacanocoraçãodoGard...— Mas ele não nos atacou — interrompeu Diana. — Ele atacou os

representantesdoSubmundo.—Atacarnossosaliadosénosatacar—gritouMaryse.—Elessãomembros

doConselho,comtodososdireitosdeparticipantesqueissorepresenta.— Nem mesmo sabemos o que aconteceu a eles! — disse alguém, sem

rodeios,namultidão.—Elespodemestarperfeitamentebem...— Entãoonde eles estão ? — gritou Alec, e até Jace pareceu assustado ao

ouvi-lo elevar a voz. Alec franzia o cenho, os olhos azuis dilatados, e Clarysubitamenterecordou-sedogarotoirritadoqueelaconheceranoInstitutohaviamuitotempo,aoqueparecia.—Alguémtentourastreá-los?

— Nós tentamos — retrucou Jia. — Não funcionou. — Nem todos elespodemserrastreados.Vocênãopoderastrearumfeiticeiroouosmortos...—Jia parou de falar, arfando subitamente. Sem aviso, o guardião da Clave àesquerda viera por trás dela e a agarrara pela túnica. Um grito percorreu aassembleia quando ele a puxou e encostou a lâmina comprida de uma adagaprateadaemseupescoço.

— Nephilim! — rugiu o homem, e o capuz caiu, exibindo olhosinexpressivoseserpenteantesMarcasdesconhecidasdosCrepusculares.

Um urro começou a se elevar da multidão, interrompido rapidamentequandooguardiãopressionoualâminanagargantadeJiaaindamais.Osanguebrilhouaoredor,visívelmesmoaolonge.

—Nephilim!—rugiuohomemnovamente.AmentedeClary lutavaparalocalizá-lo; de alguma forma, ele parecia familiar. Era alto, cabelos castanhos,provavelmente tinha uns 40 anos. Os braços eram musculosos, as veias sedestacavam feito réstias conforme ele se esforçava paramanter Jia parada.—Fiquemondeestão!NãoseaproximemouaConsulesamorre!

Alinegritou.Helenaconteve,evitandonitidamentequeelacorresseparaafrente. Atrás das duas, as crianças Blackthorn se amontoavam em volta deJulian,quecarregavaomaisjovemdosirmãos;Drusillahaviaencostadoorosto

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nalateraldocorpodele.Emma,cujocabelobrilhavamesmoàdistância,estavaparadacomaCortanadesembainhada,protegendoosoutros.

—ÉMatthiasGonzales—disseAlec,comvozchocada.—EleeraolíderdoInstitutodeBuenosAires...

— Silêncio! — rugiu o sujeito atrás de Jia, Matthias, e um silênciodesconfortávelseinstalou.AmaioriadosCaçadoresdeSombrasestavaparada,como Jace e Alec, com as mãos a meio caminho das armas. Isabelle estavaagarrandoocabodochicote.—Ouçam-me,CaçadoresdeSombras!—gritouMatthias,osolhosardendocomumaluzfanática.—Ouçam-me,poissouumde vocês. Seguindo a regra da Clave de maneira cega, convencido de minhasegurança no interior das barreiras de Idris, protegido pela luz do Anjo!Masnãohásegurançaaqui.—Elevirouoqueixoparao ladoe indicouosrabiscosnochão.—Ninguémestáseguro,nemmesmoosmensageiroscelestes.EsseéoalcancedopoderdoCáliceInfernaledequemoporta.

Um murmúrio percorreu a multidão. Robert Lightwood avançou, o rostoansiosoaoolharparaJiaealâminaemsuagarganta.

—Oqueelequer?—questionou.—O lhodeValentim.Oqueelequerdenós?

—Ah,elequermuitascoisas—disseoCaçadordeSombrasCrepuscular.—Mas,porenquanto, elevai secontentar se receberdepresente sua irmãe seuirmãoadotivo.DeemClarissaMorgensterneJaceLightwoodaele,eodesastreseráevitado.

Clary ouviu Jace inspirar com força. Ela olhou para ele, em pânico; sentiatodosolhandoparaela,eeracomoseestivessesedissolvendo,feitosalnaágua.

—SomosNephilim—disseRobert, com frieza.—Nãonegociamososdenossaespécie.Elesabedisso.

—Nós,doCálice Infernal, temosemnossapossecincodeseusaliados.—Foiaresposta.—Meliorn,doPovodasFadas,RaphaelSantiago,dosFilhosdaNoite,LukeGarroway,dosFilhosdaLua,JocelynMorgenstern,dosNephilim,e Magnus Bane, dos Filhos de Lilith. Se vocês não entregarem Clarissa eJonathan, eles receberãomortes de ferro e prata, de fogo e sorveira-brava. E

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quando seus aliados do Submundo souberem que vocês sacri caram seusrepresentantes porque não queriam abandonar a própria espécie, eles sevoltarãocontravocês.Elessejuntarãoanós,evocêsvãose agrarlutandonãoapenascontraquemportaoCáliceInfernal,mascontratodooSubmundo.

Clarysentiuumaondadevertigem,tãointensaqueeraquaseumenjoo.Elasabia—claroquesabia,comumanoçãoincertaecrescente,impossíveldeserignorada—quesuamãe,LukeeMagnusestavamemperigo,masouvirissoeraoutra coisa. Ela começou a tremer, as palavras de uma oração incoerenteecoando em suamente sem parar:Mãe, Luke, quembem, por favor, quembem.EqueMagnusfiquebem,porAlec.Porfavor.

Ela ouvia a voz de Isabelle em suamente também, dizendo que Sebastiannãopoderiaenfrentá-losenematodooSubmundo.Maselehaviaencontradoummeioadequadode fazer issosevoltarcontraeles: sealgummal fosse feitoaosrepresentantesdoSubmundo,pareceriaculpadosCaçadoresdeSombras.

AexpressãodeJaceeravaga,maseleencontrouosolhosdelacomamesmacompreensão que se alojara como uma agulha no coração dela. Não podiamrecuaredeixarissoacontecer.IriamatéSebastian.Eraaúnicaopção.

Clarycomeçouaavançar,coma intençãodegritar,masseviucontidaporumapertofortenopulso.Virou-se,esperandoverSimon,e,parasuasurpresa,percebeuqueeraIsabelle.

—Nãofaçaisso—pediuagarota.—Vocêéumtoloeumseguidor—disseKadirsemrodeios,osolhoscheios

deraivaao tarMatthias.—NenhumintegrantedoSubmundonosculparáporpouparduasdenossascriançasàpiradecorposdeJonathanMorgenstern.

— Ora, mas ele não vai matá-las — alegou Matthias, com uma alegriasinistra.—VocêtemapromessadelesobreoAnjodequenenhummalrecairásobre a garotaMorgenstern ou o garoto Lightwood. São a família dele, e elequerquefiquemaoseulado.Portanto,nãohásacrifício.

Clary sentiu uma coisa tocar sua bochecha. Era Jace. Ele a tinha beijado,rapidamente,eelaserecordoudobeijodeJudasqueSebastianlhederananoiteanterior e girou para agarrá-lo,mas ele já tinha ido embora, afastando-se de

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todoseles,indoatéocorredordedegrausentreosbancos.— Eu irei! — gritou ele, e sua voz soou pelo cômodo. — Eu irei de boa

vontade.—Aespadaestavaemsuamão.Eleajogou,eelaretiniunosdegraus.—VoucomSebastian—disseparaosilêncioqueseseguiu.—ApenasdeixemClaryforadisso.Deixemquefique.Ireisozinho.

— Jace,não — falou Alec, mas sua voz foi abafada pelo clamor quepercorreuoambiente,comasvozesseerguendofeitofumaçaesecurvandoemdireção ao teto, e Jace parado ali calmamente, com as mãos esticadas, paramostrarquenãoportavaarmas,ocabelobrilhandosobaluzdossímbolos.Umanjosacrificial.

MatthiasGonzalesriu.—NãohaverábarganhasemClarissa—disseele.—Sebastianaquer,eeu

façooquemeumestrequer.— Você acha que somos tolos — rebateu Jace. — Na verdade, sou mais

esperto que isso. Você nãopensa, de modo algum. Você é um porta-voz dodemônio, é isso que todos vocês são.Não se importam commais nada.Nemcomfamília,nemcomsangueouhonra.Vocêsnãosãomaishumanos.

Matthiasfezumacaretairônica.—Porquealguémiriaquererserhumano?—Porquesuabarganhanãotemvalor—disseJace.—Bastaqueagentese

entregue eSebastiandevolveos reféns.Depois, oquê?Você fez tanto esforçoparanoscontarqueeleémelhorqueosNephilim,queeleémais forte,queémais inteligente.QuepodenosatingiraquiemAlicante,equetodasasnossasbarreirase todososnossosguardiõesnãosãocapazesdemantê-lo longe.Queelevaidestruirtodosnós.Sequiserbarganharcomalguém,ofereçaumachancedevitória.Sevocêfossehumano,saberiadisso.

Nosilêncioqueseseguiu,Claryachouserpossívelouvirumagotadesangueatingindoochão.Matthiasestavaimóvel,alâminaaindaencostadanopescoçodeJia,oslábiossearticulandocomoseeleestivessemurmurandoalgumacoisaourecitandoalgoquetinhaouvido...

Ouestivesseouvindo,percebeuela,ouvindoaspalavrassendosussurradasao

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seuouvido...— Você não pode vencer— disse Matthias nalmente, e Jace riu, o riso

agudo e amargopeloqualClary tinha se apaixonado.Nãoumanjo sacri cial,pensouela,masumanjovingador, tododourado, sanguee fogo,con anteatédiantedaderrota.

—Vocêentendeoquequerodizer—falouJace.—Entãoquediferençafazsemorremosagoraoudepois...

—Vocês não podem vencer— disseMatthias—,mas podem sobreviver.Aqueles que escolherem isso podem ser Transformados pelo Cálice Infernal;vocês se tornarão soldados da Estrela daManhã e governarão omundo comJonathanMorgensterncomo líder.Aquelesqueescolherempermanecercomolhos de Raziel podem fazê-lo, contanto que permaneçam em Idris. As

fronteiras de Idris carão seladas, isolando-a do restante do mundo, quepertencerá a nós. Esta terra doada a vocês peloAnjo serámantida desde quepermaneçamnointeriordesuasfronteiras,assimestarãoseguros.Issopodeserprometido.

Jaceolhoucomexpressãosevera.—AspromessasdeSebastiannãosignificamnada.— As promessas dele são tudo que vocês têm — disse Matthias. —

Mantenhamsuaaliançacomos integrantesdoSubmundo, quemno interiordas fronteiras de Idris e vocês sobreviverão.Mas esta oferta vigora apenas sevocês dois se entregaremde boa vontade para nossomestre.Você eClarissa.Nãohánegociação.

Claryolhoulentamenteaoredordocômodo.AlgunsdosNephilimpareciamansiosos, uns, assustados, outros, cheios de raiva. E o restante estavacalculando. Ela se recordou do dia em que tinha cado parada na Sala dosAcordos, diante daquelas mesmas pessoas e mostrado a elas o símbolo deligação capaz de vencer a guerra.Na época, caram gratos.Mas aquele era omesmoConselhoquetinhavotadoparaencerraremasbuscasporJacequandoSebastianolevara,poisavidadeumgarotonãovaliaseusrecursos.

Emespecial,quandoessegarotoerafilhoadotivodeValentim.

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Elapensaraumavezquehaviapessoasboasepessoasruins,queexistiaumladodeluzeumladodeescuridão,porémnãopensavamaisassim.Tinhavistoomal,noirmãoenopai,omaldeboasintençõesquederaerrado,eomaldepurodesejodepoder.Noentantotambémnãohaviasegurançanabondade:avirtudepoderiacortarcomoumafaca,eofogodoParaísoeraofuscante.

ElaseafastoudeAleceIsabelle,sentiuSimonagarrarseubraço.Deumeia-volta,olhouparaeleebalançouacabeça.Vocêtemquemedeixarfazerisso.

Osolhosescurosimploravamparaela.—Nãofaçaisso—murmurouele.— Ele falou nós dois — murmurou ela em resposta. — Se Jace for até

Sebastiansemmim,Sebastianvaimatá-lo.— Ele vai matar vocês dois, de qualquer forma. — Isabelle estava

praticamente chorando de frustração. — Você não pode ir, e Jace tambémnão...Jace!

Jace se virou e olhou para eles. Clary viu sua expressão mudar quandopercebeuqueelaestava seesforçandopara seaproximardele. Jacebalançouacabeçaepronunciouumapalavra,sememitirsom:

—Não.— Dê-nos tempo — gritou Robert Lightwood. — Dê-nos um pouco de

tempoparavotar,pelomenos.MatthiasafastoualâminadopescoçodeJiaeaergueu;ooutrobraçoainda

prendiaaconsulesa,agarrandoapartedafrentedatúnica.Eleergueualâminaatéoteto,ealuzfaiscounelacomogesto.

—Tempo.—Elefezumacareta.—PorqueSebastiandariatempoavocês?Umsilvoagudocortouoar.Claryviualgumacoisabrilhantepassarporela,

e ouviu um barulho retinir quando uma echa atingiu a lâmina deMatthias,erguida acima da cabeça de Jia, que se viu livre do aperto dele. Clary girou acabeçaeviuAlec,comabestaerguida,acordaaindavibrando.

Matthiasdeixouescaparumurroe cambaleoupara trás, amão sangrando.Jiacorreuparalongeenquantoelemergulhavaparapegaralâminacaída.Clary

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ouviuJacegritar“Nakir!”.Elehaviaretiradoumalâminasera mdocinto,esualuziluminavaosalão.

— Saia do meucaminho! — gritou ele, e começou a abrir passagem,empurrandocomosombros,escadaabaixo,emdireçãoaoestrado.

—Não!—Alecderrubouabestaeselançousobreapartedetrásda leirade bancos, mergulhando sobre Jace, derrubando-o enquanto o estrado seconsumia em chamas como uma fogueira apagada com gasolina. Jia gritou epulou da plataforma para a multidão; Kadir a amorteceu e a pôs no chãodelicadamenteenquantotodososCaçadoresdeSombrasseviravamparaolharaschamasqueseerguiam.

—Quediabos!—murmurouSimon,osdedosaindaapertadosaoredordobraçodeClary.

Ela podia ver Matthias, uma sombra preta no coração das chamas. Eraevidente que elas não o feriam; ele parecia rir, jogando os braços para cimacomo ummaestro regendo uma orquestra de fogo. A sala estava tomada porgritos e pelo odor e estalido de madeira queimada. Aline tinha corrido paraagarrar amãe, que sangrava, chorando; Helen estava observando, impotente,enquantotentava,juntamenteaJulian,protegerosjovensBlackthorndomotimabaixo.

Noentanto,ninguémprotegiaEmma.Elaestavaparada,distantedogrupo,orostinhobrancodechoqueenquanto,acimadossonshorríveisqueenchiamocômodo,osgritosdeMatthiassuplantavamobarulho.

—Dois dias, Nephilim! Vocês têm dois dias para decidir o seu destino! Eentãotodosarderão!VocêsvãoardernofogodoInferno,eascinzasdeEdomcobrirãoseusossos!

Avozdeleseergueuaumgritosobrenaturalesubitamentesecalouquandoas chamas diminuíram e ele desapareceu junto a elas. A última das brasaslambeuopiso, aspontas reluzentesmal tocandoamensagemainda rabiscadanoicoraolongodoestrado.

Veni.CHEGUEI.

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Maiaprecisourespirarfundodurantedoisminutosdiantedoapartamentoantesdeconseguirenfiarachavenafechadura.

Tudo no corredor parecia normal, sinistramente normal. Os casacos deJordan—edeSimon—penduradosnaentradaestreita.Asparedesdecoradascomplacasderuacompradasemmercadosdepulgas.

Elapassouparaasaladeestar,quepareciacongeladanotempo:aTVestavaligada,atela,comestática,osdoiscontrolesdovideogameaindanosofá.Elestinhamseesquecidodedesligaracafeteira.Eladesligouointerruptor,tentandoignoraraomáximotodasasfotogra asdelaedeJordanpresasnageladeira:osdois na ponte do Brooklyn, bebendo café no restaurante da Waverly Place,Jordan rindo e exibindo as unhas que Maia tinha pintado de azul, verde evermelho. Ela não percebera quantas fotogra as Jordan havia tirado deles,comoseestivessetentandorecordarcadasegundodesuasinterações,temendoquefossemescorreratravésdesuaslembrançasfeitoágua.

Maiatevequereassumiraposturaduronaantesdeentrarnoquarto.Acamaainda estava desarrumada e com os lençóis espalhados— Jordan nunca foraparticularmenteorganizado—,asroupas jogadaspelocômodo.Maiacruzouoquarto até a escrivaninha onde ela guardava os próprios pertences e tirou asroupasdeLeila.

Comalívio, vestiuum jeans euma camiseta.Esticou amãoparapegarumcasacoquandoacampainhatocou.

Jordanguardava suasarmas, enviadasa elepelaPraetor,nobaúaospésdacama. Ela abriu o baú e ergueu um frasco pesado de ferro com uma cruzentalhadanafrente.

Elavestiuocasacoeentrounasaladeestar,ofrasconobolso,osdedosaoredordele.Abriuaportadafrente.

A garota que estava de pé do outro lado tinha cabelo escuro na altura dosombros. Em contraste, a pele era branca como a de um cadáver, os lábiosvermelho-escuros.Vestiaumternopretocomcorteimpecável;eraumaBrancadeNevemoderna,emsangue,carvãoegelo.

— Você me chamou — disse ela. — A namorada de Jordan Kyle, estou

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certa?Lily.Umadasvampirasmaisinteligentesdoclã.Sabedetudo.ElaeRaphael

sempreforammuitounidos.—Não njaquevocênãosabe,Lily—falouMaiasemrodeios.—Você já

esteve aqui; tenho certeza de que sequestrou Simon deste apartamento paraentregá-loaMaureen.

—E?—Lily cruzou os braços, fazendo o terno caro farfalhar.—Vaimeconvidaraentrarounão?

—Nãovou—retrucouMaia.—Vamosconversaraqui,nocorredor.—Chata.—Lily se encostou na parede com tinta descascando e fez uma

careta.—Porquevocêmeinvocou,lobisomem?— Maureen está louca — falou Maia. — Raphael e Simon sumiram.

SebastianMorgensternestámatandoosmembrosdoSubmundoparareforçarseus argumentos aos Nephilim. E talvez seja hora de vampiros e licantropesconversarem.Atédesealiarem.

— Ora, você é muito lindinha — disse Lily, se aprumando. — Sabe,Maureenélouca,masaindaéalíderdoclã.Epossodizerumacoisa:elanãovaiconversar com um integrante qualquer do bando que perdeu o o dameadaporqueonamoradomorreu.

Maia apertoumais ainda o frasco em suamão. Sentiu vontade de jogar olíquidonorostodeLily,tantavontadequeissoaassustou.

— Podeme chamar quando você for a líder do bando.—Havia uma luzescuranosolhosdavampira,comoseelaestivesse tentandodizeralgoaMaiasemenunciar.—Aíconversaremos.

Lilysevirouesaiucaminhandopelocorredornossaltosaltos.Aospoucos,Maiafoisoltandooapertonofrascodeáguabentaemseubolso.

—Belotiro—comentouJace.— Não precisa me ridicularizar. — Alec e Jace estavam em um dos

vertiginososconjuntosdesalasdereuniões;nãoeraomesmocômodonoqualJaceestiveracomClary,masoutra sala,maisaustera, emumaparteantigado

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Gard. As paredes eram de pedra, e havia um banco comprido ao longo daparede a oeste. Jace estava ajoelhado nele, a jaqueta jogada de lado, amangadireitadacamisaarregaçada.

—Não estou ridicularizando— protestou ele, enquanto Alec encostava apontada estelanapelenuadobraço.Quandoas linhas escuras começaramaespiralar, saindo doadamas, Jace não conseguiu evitar a lembrança do outrodia,emAlicante,quandoAlecenfaixouamãodele,dizendocomraiva:Podesecurar como um mundano. Vagarosa e desagradavelmente . Jace tinha socadoumajanelanaqueledia;elemereceratudoqueAleclhedissera.

Alecsuspiroulentamente;sempreeramuitocuidadosocomossímbolos,emparticular com asiratzes. Ele parecia sentir o leve ardor, a picadana pele queJacesentia,emboraogarotonuncativessese importadocomador—omapade cicatrizes brancas que cobriam seus bíceps e desciam até o antebraçocomprovava isso. Havia uma força especial num símbolo desenhado peloparabatai.Foiporissoqueelesenviaramosdoisparaoutrolocal,aopassoqueorestanteda famíliaLightwoodseencontravanogabinetedaConsulesa,paraque Alec pudesse curar Jace da forma mais rápida e e ciente possível. Jacecaraumpoucoassustado; elemeioque tinhaachadoqueo fariamparticipar

dareuniãocomopulsoroxoeinchado.— Não estou ridicularizando — repetiu Jace, enquanto Alec terminava e

dava um passo para trás para examinar seu trabalho. Jace já podia sentir adormência dairatze se espalhando por suas veias, acalmando a dor no braço,selandooslábiosabertos.—VocêacertouafacadeMatthiasameioan teatrodedistância.Lançamentolimpo,nãoatingiuJia.Eeleestavasemexendo.

— Eu estava motivado.— Alec deslizou a estela de volta para o cinto. Ocabeloescurocaíabagunçadosobreosolhos;aindanãoohaviacortadodireitodesdequeeleeMagnusterminaram.

Magnus.Jacefechouosolhos.—Alec—disseele.—Euvou.Vocêsabequeeuvou.—Você está dizendo isso porque acha que vaime tranquilizar— rebateu

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Alec.—AchaqueeuqueroquevocêseentregueaSebastian?Ficoumaluco?—Acho que esse pode ser o único jeito de resgatarMagnus— respondeu

Jacedaescuridãoqueemanavadesuaspálpebras.—EvocêestádispostoatrocaravidadeClarytambém?—OtomdeAlec

eraácido.Jaceabriuosolhos;Alecestavaolhandoparaelecom rmeza,porémsemexpressão.

—Não—disseJace,ouvindoaderrotanaprópriavoz.—Eunãoseriacapazdisso.

—Eeunãopediriaquevocê zesseumacoisadessas—emendouAlec.—Éisso... É isso que Sebastian está tentando fazer. Afastar-nos uns dos outrosusando as pessoas que amamos como iscas para nos separar. Não devemospermitirisso.

—Quandofoiquevocêficoutãosábio?—perguntouJace.Alecriu,umarisadacurtaefrágil.—Odiaemqueeumetornarumsábioseráodiaemquevocêvaiprecisar

tercuidado.—Talvezvocêsempretenhasidosábio—comentouJace.—Eumelembro

quando teperguntei se queria serparabatai, e vocêdissequeprecisavadeumdiaparapensar.Eentãovocêvoltouedissesim,e,quandoeupergunteiporqueconcordou, você disse que era porque eu precisava de alguém para cuidar demim. Você estava certo. Eu nunca voltei a pensar no assunto porque nuncaprecisei.Eutinhavocê,evocêsemprecuidoudemim.Sempre.

AexpressãodeAlec coumaisséria;Jacequaseconseguiaenxergaratensãolatejandonasveiasdeseuparabatai.

—Não—disseAlec.—Nãofaleassim.—Porquenão?—Porque—disseAlec—éassimqueaspessoasfalamquandoachamque

vãomorrer.

—SeClarye Jace forementreguesaSebastian,elesestarãosendoentreguesàmorte—disseMaryse.

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Estavam no gabinete da Consulesa, provavelmente o cômodo maisluxuosamentedecorado em todooGard.Tinhaum tapete grossono chão, asparedes de madeira eram cobertas por tapeçarias, uma escrivaninha imensacavaemposiçãodiagonalnocômodo.EmumdosladosestavaJiaPenhallow,

o corte na garganta se fechando enquanto as iratzes faziam efeito. Atrás dacadeiradela,estavaPatrick,omarido,comamãonoombrodamulher.

Diantedeles, estavamMaryse eRobertLightwood.Para surpresadeClary,ela,IsabelleeSimontinhamsidoautorizadosa carnasalatambém.Supunhaque fossem discutir o destino dela e de Jace, mas daí, até então, decidir odestino das pessoas sem consultar a parte interessada nunca parecera ser umproblema.

—Sebastiandizquenãovaimachucá-los—disseJia.—A palavra dele não tem valor— emendou Isabelle sem rodeios.— Ele

mente.Eo fatode jurarpeloAnjonãosigni canada,poiselenãose importacomoAnjo.EleserveaLilith,seéqueserveaalguém.

Ouviu-seumcliquebaixo,eaportaseabriu,entãoAleceJaceentraram.Osdois tinhamtropeçadoemalgunsdegraus,e Jace levaraapior,estavacomumlábio cortado e um pulso quebrado ou torcido. Agora, porém, ele parecianormal outra vez; tentou sorrir para Clary quando entrou, mas seus olhosestavamassombrados.

—VocêtemqueentendercomoaClaveveráisso—disseJia.—Vocêlutoucontra Sebastian em Burren. Eles ouviram dizer, mas não viram, não até aCidadela, adiferençaentreguerreirosCrepusculares eCaçadoresdeSombras.NuncahouveumaraçadeguerreirosmaispoderosaqueosNephilim.Agorahá.

— Ele só atacou a Cidadela para reunir informações — rebateu Jace. Elequeria saber do que os Nephilim eram capazes: não apenas o grupo queconseguimos organizar de última hora noBurren,mas os guerreiros enviadospara lutar pela Clave. Ele queria ver como os guerreiros lutariam contra asforçasdele.

—Estavanos avaliando—completouClary.—Ele estavanospesandonabalança.

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Jiaolhouparaela.—Menemenetequelufarsim—murmurouela.—VocêestavacomarazãoquandofalouqueSebastiannãoquerlutaruma

grande batalha— disse Jace.— Seu interesse é lutar ummonte de pequenasbatalhas onde possa Transformar alguns Nephilim. Aumentar suas forças. Eisso poderia ter funcionado, car em Idris, deixá-lo trazer a batalha para cá,quebraraondadeseuexércitonasrochasdeAlicante.Noentanto,agoraqueele levou os representantes do Submundo, car aqui não vai funcionar. Semnossa vigilância, com o Submundo contra nós, os Acordos serão extintos. Omundo...seráextinto.

OolhardeJiafoiatéSimon.— O que você diz, integrante do Submundo? Matthias estava certo? Se

recusarmos a pagar pelos reféns de Sebastian, isso signi cará guerra com oSubmundo?

Simon parecia assustado por se dirigirem a ele num tom tão o cial.Conscientementeounão,suamãofoiatéomedalhãodeJordannopescoço;eleosegurouenquantofalava.

—Euacho—disseele,comrelutância—queemborahajaalgunsmembrosdoSubmundoqueseriamrazoáveis,osvampirosnãoseriam.ElesjácreemqueosNephilimestabeleceramumpreçobaixopor suasvidas.Feiticeiros...—Elebalançou a cabeça. — Eu realmente não compreendo os feiticeiros. Nem asfadas... quero dizer, a Rainha Seelie parece cuidar de si. Ela ajudou Sebastiancomeles.—Eleergueuamão,ondeoanelreluzia.

—PareceprovávelquetevemenosavercomumaajudaaSebastianemaiscom o desejo insaciável de saber tudo — disse Robert. — É verdade, elaespionavavocê,masnãosabíamosnaépocaqueSebastianeranossoinimigo.Omais impressionante é queMeliorn tinha jurado que a lealdade do Povo dasFadas era para conosco e que Sebastian é inimigo deles, e fadas não podemmentir.

Simondeudeombros.— De qualquer forma, não compreendo como eles pensam. Mas os

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lobisomensadoramLuke.Elesficarãodesesperadosparatê-lodevolta.—ElecostumavaserumCaçadordeSombras...—começouRobert.— Isso piora as coisas — disse Simon, mas não o Simon, o amigo mais

antigo de Clary; era outra pessoa, alguém bem informado sobre a política doSubmundo.—Para eles, omodo comoosNephilim tratamos integrantes doSubmundo que já foram Nephilim é uma evidência de que os Caçadores deSombrascreemqueosmembrosdoSubmundotêmsanguecontaminado.Umavez,Magnusmecontousobreumjantaraoqual foiconvidado,numInstituto,para membros do Submundo e Caçadores de Sombras; depois do evento, osCaçadoresdeSombras jogaramtodosospratos fora.PorqueosconvidadosdoSubmundotinhamtocadoneles.

—NemtodososNephilimsãoassim—retrucouMaryse.Simondeudeombros.—AprimeiravezquevimaoGardfoiporqueAlecmetrouxe—continuou

ele. — Eu con ei que a Consulesa queria apenas conversar comigo. Em vezdisso,fuijogadonaprisãoepasseifome.LukefoiestimuladoasesuicidarpelopróprioparabataidepoisquefoiTransformado.APraetorLupusfoiincendiadaporumCaçadordeSombras,aindaqueestefosseuminimigodeIdris.

—Entãovocêestádizendoquesim,haveráguerra?—perguntouJia.—Aguerrajáestáacontecendo,nãoé?—respondeuSimon.—Asenhora

não foi ferida numa batalha? Só estou dizendo: Sebastian está usando asbrechas em suas alianças para destruir vocês, e está fazendo isso direitinho.Talvez ele não compreenda os humanos, não estoudizendoque compreende,mas ele compreende omal, a traição e o egoísmo, e isso é uma coisa que seaplica a tudo que possua uma mente e um coração. — Ele fechou a bocaabruptamente,comosecommedodeterfaladodemais.

— Então acha que deveríamos fazer o que Sebastian pede: enviar Jace eClaryparaele?—perguntouPatrick.

—Não—respondeuSimon.—Achoqueelesempremente,eenviá-losnãoajudará emnada.Mesmo quando jura, elemente, como Isabelle falou.—EleolhouparaJace,depoisparaClary,—Vocêssabemdisso—disseele.—Vocêso

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conhecemmelhorquequalquerum, sabemque elenunca fala sério.Digamaeles.

Clarybalançouacabeça,muda.FoiIsabellequemrespondeuporela:— Eles não conseguem — emendou ela. — Era como se estivessem

implorandopelasprópriasvidas,enenhumdelesvaifazerisso.— Eu já me ofereci de boa vontade— completou Jace. — Falei que iria.

Vocêssabem por que ele me quer. — Ele abriu os braços. Clary não sesurpreendeu ao ver que o fogo celestial estava visível na pele dos antebraços,como arame dourado.—O fogo celestial feriu Sebastian emBurren. Ele temmedodisso,sendoassim,temmedodemim.Euviissonorostodele,noquartodeClary.

Fez-seumlongosilêncio.Jiaafundounacadeira.— Vocês têm razão. Não discordo de nenhum de vocês. Mas não posso

controlaraClave,eháalgunsentreaquelesquevãoescolheroqueconsideramseguro, e há outros que odeiam a ideia de sermos aliados dos membros doSubmundo, para começar, e que acolherão uma oportunidade de recusar. SeSebastian queria dividir a Clave em facções, e tenho certeza de que queria,escolheuumbommeiodefazerisso.—Elaolhouemvolta,paraosLightwood,para Jace e Clary, com o olhar rme pousando em cada um deles. — Euadorariaouvirsugestões—emendouela,umpoucosecamente.

— Poderíamos nos esconder — respondeu Isabelle de pronto. —DesapareceremumlugarondeSebastiannuncafossenosencontrar;vocêpodeinformar a ele que Jace e Clary fugiram, apesar das tentativas de mantê-losconosco.Elenãopodenosculparporisso.

—Uma pessoa sensata não culparia a Clave— rebateu Jace.— Sebastiannãoésensato.

—Enãoexistelugarondepossamosnosesconderdele—retrucouClary.—Eleme encontrou na casa deAmatis. Sebastian é capaz deme encontrar emqualquerparte.TalvezMagnuspudesseternosajudado,mas...

—Há outros feiticeiros—disse Patrick, eClary arriscou umolhar para o

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rostodeAlec,quepareciaentalhadonapedradetãorijo.—Nãodá para contar com a ajuda deles, não importa o quanto se pague,

pelomenosnãoagora—explicouAlec.—Esse éo intuitodo sequestro.Elesnãovirãonosajudar,nãoatéconstataremsevamosajudá-losprimeiro.

Ouviu-seumabatidaàporta,edoisIrmãosdoSilêncioentraram,astúnicasbrilhandocomopergaminhossobaluzenfeitiçada.

—IrmãoEnoch—dissePatrick,saudando-o—e...—IrmãoZachariah—completouosegundo,retirandoocapuz.Apesar do que Jace sugerira na sala do Conselho, ver o agora humano

Zachariah foi um choque.Mal dava para reconhecê-lo, somente os símbolosescuros nos arcos das maçãs do rosto, um lembrete do que ele fora. Ele eraesbelto,quaseesquelético,ealto,comumaelegânciadelicadaemuitohumananoformatodorosto,etinhacabeloescuro.Parecia,talvez,teruns20anos.

— Este é oIrmão Zachariah? — perguntou Isabelle em uma voz baixa,confusa.—Quandofoiqueeleficougato?

— Isabelle! —murmurou Clary, mas o Irmão Zachariah não a ouviu, ouentãotinhagrandeautocontrole.EstavaolhandoparaJia.Daí,parasurpresadeClary,faloualgonumidiomaqueelanãoconhecia.

OslábiosdeJiatremeramporuminstante.Entãosecontraíramnumalinharígida.Elasevirouparaosoutros:

—AmalricKriegsmesserestámorto—informou.Entorpecidaporumadezenade choquesnasúltimashoras,Claryprecisou

dealgunssegundosparase lembrardequemera:oCrepuscularcapturadoemBerlimelevadoaoBasiliasenquantoosIrmãosprocuravamumacura.

—Nadaquetentamosnele funcionou—disseIrmãoZachariah.Avozeramelodiosa. Ele tinha sotaque britânico, pensouClary, ela só ouvira a voz deleemsuamenteatéentão,eaparentementeacomunicaçãotelepáticaapagavaossotaques.—Nemumúnico feitiço,nemumaúnicapoção.Finalmente,nósofizemosbeberdoCáliceMortal.

Issoodestruiu,falouEnoch.Amortefoiimediata.—O corpo deAmalric deve ser enviado pelo Portal para os feiticeiros no

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Labirinto Espiral, para análise — disse Jia. — Talvez se agirmos depressa obastante, ela... eles consigam aprender alguma coisa a partir da morte dele.Encontraralgumapistaparaacura.

—Queinfelicidadeparaafamília—comentouMaryse.—ElesnemmesmoverãoocorposercremadoeenterradonaCidadedoSilêncio.

— Ele não é mais um Nephilim — disse Patrick. — Se tivesse que serenterrado,serianaencruzilhadadiantedaFlorestaBrocelind.

—Comominhamãe—emendouJace.—Porqueelasematou.Criminosos,suicidasemonstrossãoenterradosnolocalondetodasasviassecruzam,certo?

Ele ostentava uma voz falsamente alegre, aquela que Clary sabia queencobria raiva ou dor; ela queria se aproximar dele, mas a sala estava cheiademais.

— Nem sempre — disse Irmão Zachariah, baixinho. — Um dos jovensLongford estava na batalha da Cidadela. Ele se viu forçado a se suicidar,incentivado pelo próprioparabatai, que fora Transformado por Sebastian.Depoisdisso,virouaespadaparasiecortouospulsos.Eleseráenterradocomorestantedosmortoshoje,comtodasasdevidashonras.

ClaryselembroudojovemqueelaviranaCidadela,depésobreumCaçadorde Sombras morto, de uniforme vermelho, chorando enquanto a batalha seintensificavaàvoltadele.Claryseperguntavasedeveriaterparadoefaladocomele,seissoteriaajudado,sehaviaalgumacoisaquepudesseterfeito.

Jacepareciaprestesavomitar.— É por isso que vocês têm que me deixar ir atrás de Sebastian —

completou ele. — Isso não pode continuar acontecendo. Essas batalhas, oscombates contra os Crepusculares... ele encontrará coisas piores para fazer.Sebastiansempreencontra.SerTransformadoépiorquemorrer.

— Jace — disse Clary rispidamente, mas o garoto lhe ofereceu um olhardesesperadoe,aomesmotempo,suplicante.Umolharqueimploravaaelaparanão duvidar dele. Jace se inclinou para a frente, as mãos na escrivaninha daConsulesa.

—Enviem-meatéele—pediuJace.—Eeutentareimatá-lo.Tenhoofogo

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celestial.Énossamelhorchance.—Nãoéumaquestãodeenviarvocêaalgumlugar—disseMaryse.—Não

podemosmandarvocêaele;nãosabemosondeSebastianestá.Éumaquestãodepermitirqueeleocapture.

—Entãodeixemquemecapture...—Absolutamentenão.—IrmãoZachariahpareciasério,eClaryselembrou

doqueelelhedisseraumavez:Sereceboachancedesalvaroúltimonalinhadesucessão dos Herondale, considero isto algo de importância maior que minhadelidade à Clave. — Jace Herondale— disse ele. — A Clave pode escolher

obedeceroudesa arSebastian,masdeumjeitooudeoutro,vocênãopodeserentregue domodo como ele espera. Devemos surpreendê-lo. Caso contrário,simplesmenteestaremosenviandoaúnicaarmaquesabemosqueeleteme.

— Você tem outra sugestão? — perguntou Jia. — Nós devemos atraí-lo?UsarJaceeClaryparacapturá-lo?

—Vocêsnãopodemusá-loscomoisca—protestouIsabelle.—Talvezpudéssemossepará-lodesuasforças?—sugeriuMaryse.— Vocês não podem enganar Sebastian — explicou Clary, sentindo-se

exausta.—Elenãoseimportacomrazõesoupretextos.Háapenaseleeoqueelequer,eseficarementreessasduascoisas,Sebastianvaidestruirvocês.

Jiaseinclinousobreamesa.—Talvezpossamosconvencê-loaquereroutracoisa.Háalgoquepossamos

ofereceraeleparabarganhar?—Não—murmurou Clary.—Não há nada. Sebastian é...— Como ela

de niriao irmão?Comoexplicaroqueeraolharparaonúcleoescurodeumburaco negro?Imagine que você seja o últimoCaçador de Sombras na Terra,imagine toda sua família e todos seus amigosmortos, imaginenãohavermaisninguémcapazdeacreditarnoquevocêera.ImaginequeestivessenaTerraemumbilhão,umbilhãodeanos,depoisqueosoltivesseextinguidotodaavida,eestivessechorandoconsigoporumaúnicacriaturavivaqueaindarespirasseaoseu lado,masnãohouvessenada,apenasriosde fogoe cinzas. Imagine ser tãosolitário, e então imaginequehouvesseapenasummeiode resolver isso.Então

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imagineoquevocêfariaparaqueissoacontecesse .—Não.Elenãovaimudardeideia.Nunca.

Ummurmúrioirrompeu.Jiabateupalmasepediusilêncio.—Chega—disse.—Estamos andando emcírculos.Éhorade aClave eo

Conselhodiscutiremasituação.—Seeupuderdarumasugestão.—OsolhosdoIrmãoZachariahvarreram

ocômodo,pensativosdebaixodoscíliosescuros,antesdepousarememJia.—Os ritos fúnebres para os mortos da Cidadela estão prestes a começar. Apresença da senhora é esperada, Consulesa, assim como a do senhor,Inquisidor.EusugeririaqueClaryeJacepermanecessemnacasadoInquisidor,considerandoacontrovérsiaemtornodeles,equeoConselhosereunisseapósosritos.

— Temos direito de estar na reunião — disse Clary. — A decisão dizrespeitoanós.Ésobrenós.

—Vocês serão convocados— informou Jia, sempousar o olhar emClarynememJace,passandoporelese tandoapenasRobert,Maryse,IrmãoEnocheZachariah.—Até lá,descansem;vocêsprecisarãodeenergia.Podevira serumalonganoite.

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12OPesadeloFormal

Os corpos estavam ardendo em leiras de piras ordenadas e posicionadas aolongodaestradaatéaFlorestaBrocelind.Osolcomeçavaasepôremumcéucomnuvensbrancas,e,conformecadapiraseelevava,explodiaemfaíscascorde laranja. O efeito era estranhamente belo, embora Jia Penhallow duvidassequealguémdentreosquelamentavamreunidosnaplaníciepensasseassim.

Poralgumarazão,umversinhoqueelaaprenderanainfânciaserepetiaemsuamente.

Pretoparacaçardenoiteedarsorte,Poisobrancoéacordoprantoedamorte.

Douradoparaanoivaemseuvestido,Evermelhoparaacabarcomumfeitiço.

Sedabrancaquandonossoscorposqueimam;Bandeirasazuisaosperdidosqueretornam,poisteimam.

ChamasparaonascimentodeumNephilim,E,paraapagarnossospecados,ésumfim.

Cinzaparaoconhecimentoquenãodeveserdito;Cordeossoparaaquelequenãoenvelhece,bendito.

Açafrãoiluminaacordavitória,Verdeparaumcoraçãopartido,almejandoaglória.

Prataparaastorresdemoníacas,cordeadamas,Ebronzeparainvocarpoderesmalignos,nadamais.

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Corde ossoparaaquele quenão envelhece . IrmãoEnoch, na túnica cor deosso,caminhavanosarredoresda leiradepiras.HaviaCaçadoresdeSombrasde pé, ajoelhados ou lançando nas chamas alaranjadas punhados de ores deAlicante,brancasepálidas,quecresciamatémesmonoinverno.

— Consulesa.— A voz ao seu lado era baixa. Ela se virou e viu o irmãoZachariah, ou o garoto que um dia tinha sido o Irmão Zachariah, paradopróximo ao ombro dela. — Irmão Enoch disse que a senhora queria falarcomigo.

— Irmão Zachariah — começou ela, e então parou. — Há algum outronome pelo qual você gostaria de ser chamado? Seu nome antes de se tornarIrmãodoSilêncio?

— Zachariah está ótimo por enquanto— respondeu.— Ainda não estouprontoparareclamarmeuantigonome.

—Eusoube—disseela,efezumapausa,poisaparteseguinteeradifícil—que você conheceu uma das feiticeiras do Labirinto Espiral,eresa Gray, aqual foi importantedurante sua vidamortal. E, para alguémque foi IrmãodoSilênciopelotempoquevocêfoi,issodeveserraro.

— Ela é tudo que restou daquela época — declarou Zachariah. — Ela eMagnus.EugostariadeconversarcomMagnus,seeupudesse,antesdeele...

—VocêgostariadeiraoLabirintoEspiral?—interrompeuJia.Zachariahbaixouoolhar,comolhosassustados.Pareciateramesmaidade

da lha dela, pensou Jia, os cílios do garoto eram impossivelmente longos, osolhosaomesmotempojovensevelhos.

— Está me liberando de Alicante? Vocês não precisam de todos osguerreiros?

—VocêserviuàClavepormaisde130anos.Nãopodemos lhepedirmaisnada.

Elevirouacabeçaparaolharaspiras,afumaçapretapoluindooar.—QuantooLabirintoEspiralsabe?ArespeitodosataquesaosInstitutos,à

Cidadela,aosrepresentantes?— Eles estudam o conhecimento popular— disse Jia. — Nem guerreiros

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nempolíticos.SabemoqueaconteceuemBurren.Conversamossobreamagiade Sebastian, sobre possíveis curas para os Crepusculares, sobre meios defortalecerasbarreiras.Elesnãoperguntammaisqueisso...

—E a senhora não precisa contar— completouZachariah.—Então nãosabemdaCidadelanemdosrepresentantes?

Jiatrincouosdentes.—Suponhoquevocêvádizerqueeutenhoquecontaraeles.—Não—retrucouogaroto.Asmãosdeleestavamnosbolsos;arespiração

eravisívelnoarfriodanoite.—Nãovoudizerisso.Eles estavam parados lado a lado, na neve e no silêncio, até que, para

surpresadeJia,elevoltouafalar:—NãovouparaoLabirintoEspiral.FicareiaquiemIdris.—Masvocênãoquervê-la?— Eu quero ver Tessa mais que qualquer outra coisa no mundo —

respondeu Zachariah. — No entanto, se ela soubesse mais sobre o que estáacontecendo aqui, ia querer estar aqui e lutar aonosso lado, e eupercebi quenão quero isso.—O cabelo escuro caiu para a frente quando ele balançou acabeça.—Percebique,depoisdedeixardeserumIrmãodoSilêncio,soucapazde não querer isso. Talvez seja egoísmo. Não tenho certeza. Mas sei que osfeiticeiros no Labirinto Espiral estão seguros. Tessa está segura. Se eu for atéela, careisegurotambém,masestareimeescondendo.Nãosouumfeiticeiro;nãopossoserútilaoLabirinto.Possoserútilaqui.

—Vocêpoderia ir aoLabirinto e voltar. Seria complicado,mas eupoderiasolicitar...

—Não—murmurou.—Não vou conseguir encararTessa e omitir o queestáacontecendoaqui.E,maisisso,nãopossoiràTessaemeapresentaraelacomo um mortal, como um Caçador de Sombras, e mentir sobre o que eusentia por ela quando era...—Ele parou de falar.—Que o que eu senti nãomudou. Não posso dizer isso e depois voltar a um lugar onde eu poderia sermorto.Émelhorelaacharquenuncahouvechanceparanós.

—Émelhorvocêacharissotambém—disseJia,olhandoparaorostodele,

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paraaesperançaeodesejopintadosalinitidamenteparaqualquerumver.Elaolhou para Robert eMaryse Lightwood, um pouco distantes um do outro naneve.Nãomuito longe deles, estavaAline, com a cabeça inclinada no cabelolourodeHelenBlackthorn.—Nós,CaçadoresdeSombras,noscolocamosemperigootempotodo,todososdias.Achoquealgumasvezessomosimprudentescomnossoscoraçõesdomesmomodocomosomoscomnossasvidas.Quandonósosoferecemos,damostodosospedaços.E,senãoconseguimosoquetantoqueremos,comoviver?

— Acha que existe a possibilidade de ela não me amar? — questionouZachariah.—Depoisdetodoessetempo.

Jianãodissenada.Afinaldecontas,eraexatamenteoqueelapensava.—Éumadúvidarazoável—disseele.—Etalvezelanãoame.Enquantoela

estiver viva, bem e feliz neste mundo, vou encontrar um jeito de ser feliztambém,mesmoquenãosejaao ladodela.—Zachariaholhounadireçãodaspiras,paraas silhuetasestiradasdosmortos.—Qualdoscorposéodo jovemLongford?Aquelequematouseuparabatai?

—Ali—apontouJia.—Porquevocêquersaber?—Nãoconsigo imaginar alguémsendoobrigadoa fazernadapior.Eunão

teria tido coragem su ciente. Como alguém teve essa coragem, quero prestarmeus respeitos a ele — disse Zachariah, e caminhou pelo solo salpicado deneve,emdireçãoàsfogueiras.

—Ofuneralacabou—a rmouIsabelle.—Ou,pelomenos,afumaçaparoudesubir. — Ela estava apoiada no peitoril da janela do quarto, na casa doInquisidor.Ocômodoerapequenoepintadodebranco,comcortinas oridas.Não tinha muito a ver com Isabelle, pensou Clary, mas teria sido difícilreproduzir o quarto de Isabelle em Nova York, todo salpicado de glitter, deúltimahora.

—EuestavalendomeuCódexnooutrodia.—Claryterminoudeabotoarocardigãdelãazulquehaviaacabadodevestir.Elanãoconseguirasuportarnem

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maisumsegundousandoosuéterdavéspera,omesmocomoqualdormiraeno qual Sebastian tinha tocado.—E estava pensando.Mundanosmatamunsaosoutrosotempotodo.Nós...eles...têmguerras,todosostiposdeguerras,edestroem uns aos outros,mas esta é a primeira vez que osNephilim tiveramquemataroutrosCaçadoresdeSombras.QuandoJaceeeuestávamostentandoconvencerRobertanosdeixarentrarnaCidadela,eunãoconseguiaentenderateimosia dele. Mas acho que agora entendo. Acho que ele não conseguiaacreditarqueCaçadoresdeSombraspoderiamrealmenteserumaameaçaentresi.PormaisqueagentetivessecontadoaelessobreoBurren.

Isabelledeuumarisadinha.— Isto é muita generosidade da sua parte. — Ela dobrou os joelhos para

junto do peito. — Sabe, sua mãe me levou para a Cidadela Adamant. ElasdisseramqueeuteriasidoumaótimaIrmãdeFerro.

—Euasviemcombate—comentouClary.—AsIrmãs.Elaseramlindas.Eassustadoras.Eracomoolharparaofogo.

—Maselasnãopodemsecasar.Nãopodem carcomninguém.Elasvivemparasempre,masnão...nãotêmvida.—Isabellepousouoqueixonosjoelhos.

—Hátodotipodevida—disseClary.—EvejaoIrmãoZachariah...Isabelleergueuoolhar.— Ouvi meus pais conversando a respeito dele a caminho da reunião do

Conselhohoje—falouela.—Elesdisseramqueoqueaconteceuaele foiummilagre.NuncaouvifalardeninguémdeixardeserumIrmãodoSilêncioantes.Tipo,elespodemmorrer,masreverterosfeitiços,nãodeveriaserpossível.

—Hámuitascoisasquenãodeveriamserpossíveis—disseClary,passandoosdedospelocabelo.Elaqueriatomarumbanho,masnãosuportavaaideiadecar sozinha sob a água. Pensando na mãe. Em Luke. A ideia de perder

qualquerumdeles, quantomaisosdois, era tão terrível quando a ideiade serabandonadanomar:umcisquinhodehumanidadecercadoporquilômetrosdeáguaemvoltaeabaixo,eocéuvazioacima.Nadaparaancorá-laàterra.

Ela começou a dividir o cabelo em duas tranças de forma mecânica. Umsegundodepois,Isabellesurgiuatrásdela,noespelho.

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—Deixe-me fazer isso— disse ela bruscamente, e segurou asmechas docabelodeClary,osdedosmanipulandooscachoshabilmente.

Elafechouosolhosesedeixouperderporummomentonasensaçãodeteralguém mais tomando conta dela. Quando era pequena, a mãe trançava seucabelotodasasmanhãs,antesdeSimonirbuscá-laparalevá-laàescola.Elaserecordou do hábito dele de desamarrar as tas enquanto ela desenhava, e deescondê-las em algum lugar— nos bolsos, namochila—, esperando que elapercebesseejogasseumlápisnele.

Algumasvezeseraimpossívelacreditarquesuavidatinhasidotãocomum.—Ei—chamouIsabelle,cutucando-a.—Vocêestábem?—Estoubem—disseClary.—Estoubem.Estátudobem.— Clary. — Ela sentiu a mão de Isabelle na sua, abrindo seus dedos

lentamente.Amãodelaestavaúmida.Clarypercebeuqueestavaapertandoumdosgrampos com tanta forçaque as extremidades se enterraramnapalmadamão,eosanguecomeçouaescorrerpelopulso.—Eunão...eunemmelembrodeterpegadoisto—disse,entorpecida.

—Euficocomisto.—Isabelleretirouogrampo.—Vocênãoestábem.—Eutenhoque carbem—disseClary.—Eu tenhoque car.Tenhoque

mecontrolarenãodesmoronar.PorminhamãeeporLuke.Isabelle fezumbarulhobaixinho,evasivo.Claryestavaconscientedaestela

da outra passando pelas costas de sua mão e do o de sangue diminuindo.Mesmoassim,elanãosentiador.Haviaapenasaescuridãonolimitedavisão,aescuridãoqueameaçavasefecharsemprequeelapensavanospais.Eracomoseestivesse se afogando, chutando os limites da própria consciência para semanteralertaeacimadaágua.

Subitamente,Isabellearfouepulouparatrás.—Oquefoi?—perguntouClary.—Euviumrosto,umrostonajanela...ClarytirouHeosphorosdocinturãoecomeçouacruzarocômodo.Isabelle

estavabematrás,ochicotedouradoeprateadodesenrolandoemsuamão.Eleestalouàfrente,eapontaseenrolounopegadordajanela,abrindo-a.Ouviu-se

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umgritinho,eumvultoobscuroepequenocaiusobreotapete,aterrissandodequatro.

O chicote estaloude voltapara amãode Isabelle enquanto ela tava, comumraroolhardeespanto.Asombranochãosedesenrolouerevelouumvultodiminuto, vestido de preto, o borrão de uma face pálida e um tufo de cabelolouroecomprido,liberando-sedeumatrançadescuidada.

—Emma?—disseClary.

ApartesudoestedeLongMeadow,emProspectPark, cavadesertaànoite.Alua, em quarto crescente, iluminava os edifícios de tijolos do Brooklyn paraalémdoparque, o contornode árvoresnuas e o espaço abertopelobandonagramasecaporcausadofrio.

Era um círculo, com cerca de 5 metros de diâmetro, formado peloslobisomens.TodoobandodocentrodeNovaYorkestavalá:trintaouquarentalobos,jovensevelhos.

Leila,comocabeloescuropuxadonumrabodecavalo,paradanocentrodocírculo,bateupalmasumavezparachamaratenção.

—Lobosdobando—disse.—Umdesa ofoifeito.RufusHastingsdesa ouBartholomew Velasquez pela antiguidade e a liderança na ausência de LukeGarroway.AsubstituiçãodeLukecomolídernãoserádiscutidanestemomento—.Ela juntou asmãos atrás das costas.—BartholomeweRufus, umpasso àfrente,porfavor.

Morcego avançou para dentro do círculo, e, um instante depois, Rufus oacompanhou.Os dois estavam vestidos de forma inadequada: jeans, camiseta,coturnoseosbraçosnus,apesardoargélido.

—Eisasregrasdodesa o—anunciouLeila.—Lobodevelutarcontralobo,semarmas,salvodentesegarras.Porqueéumdesa opelaliderança,alutaseráuma lutaatéamorte, enãoatéhaver sangue.Quemsobreviver seráo líder, etodososoutroslobosjurarãolealdadeaelehoje.Entenderam?

Morcego assentiu. Ele parecia tenso, com o queixo rígido; Rufus estavasorrindo,osbraçosbalançandoaoladodocorpo.Fezumgesto,dispensandoas

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palavrasdeLeila.—Todosnóssabemoscomofunciona,criança.Elacontraiuoslábiosnumalinhafina.—Entãopodemcomeçar—disseela,noentanto,aoseafastaratéocírculo

para carcomosoutros,murmurou“Boasorte,Morcego”baixinho,porémaltoosuficienteparaquetodosaouvissem.

Rufus não parecia incomodado. Ele ainda sorria e, no momento em queLeilavoltouparaocírculo,juntoaobando,eleavançou.

Morcegosedesvioudele.Rufuseragrandeepesado;Morcegoeramaisleveemaiságil.Elegirouparaolado,eporpoucoasgarrasdeRufusnãooatingiram,eretornoucomumgolpenoqueixoquejogouacabeçadeRufusparatrás.Eleforçou sua vantagem rapidamente, dando golpes que zeram o outro lobocambalear; Rufus arrastou os pés quando um rosnado baixo começou nasprofundezasdesuagarganta.

As mãos pendiam para os lados, os dedos feito garras. Morcego girounovamente,dandoumsoconoombrodeRufusnomesmoinstanteemqueestegirou e deu um golpe com a mão esquerda. Suas garras estavam totalmenteestendidas,imensasereluzindosobaluzdalua.Pareciaclaroqueeleasa arade algummodo. Cada uma delas estava como uma navalha, e passaram pelopeito de Morcego, rasgando sua camisa e, com ela, a pele. O tom escarlatesurgiunascostelasdeMorcego.

— Primeiro sangue— gritou Leila, e os lobos começaram a bater os péslentamente,cadaumdeleserguendoopéesquerdoeabaixando-onumabatidaregular,detalmodoqueochãopareciaecoarcomoumtambor.

RufussorriumaisumavezeavançouemMorcego,quegirouerevidounumgolpe, aterrissando outro soco no queixo do oponente, fazendo-o sangrar.Rufus virou a cabeça para o lado e cuspiu vermelho na grama — e depoiscontinuou avançando. Morcego se manteve rme; com as garras expostasagora,osolhosemfendaeamarelos.Eleuivouedeuumchute;Rufusagarrouapernadeleea torceu,mandandoMorcegoparaochão.Ele se lançouatrásdeMorcego,mas o outro lobisomem já havia rolado para longe, e Rufus pousou

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agachadonosolo.Morcego cambaleou, cando de pé,mas era evidente que estava perdendo

sangue. O sangue que escorria pelo peito encharcava o cós do jeans, e suasmãos estavam úmidas com ele. Morcego esticou as garras; Rufus se virou,recebendo o golpe no ombro, quatro cortes super ciais. Com um rosnado,agarrou o pulso de Morcego e torceu. O som de osso estalando foi alto, eMorcegoarfouerecuou.

Rufusatacou.Opesodele levouMorcegoaochão,batendosuacabeçacomforçacontraumaraizdeárvore.Morcegoficoumole.

Os outros lobos ainda esperneavam. Alguns choramingavam abertamente,masnenhumavançouquandoRufussentou-seemcimadeMorcego,umadasmãosprendendo-ocontraagramaeaoutramãoerguida,asnavalhasdosdedosbrilhando.Elesepreparavaparadarogolpefatal.

—Pare.—AvozdeMaiasoouatravésdoparque.Osoutroslobosergueramoolhar,emchoque.Rufussorriu.

—Ei,garotinha—disseele.Maia não se mexeu. Estava no meio do círculo. De alguma forma, tinha

passadopela lade lobos semquepercebessem.Vestia calçadeveludoeumajaquetajeans,eocabeloestavabempuxadoparatrás.Suaexpressãoerasevera,quaseimpassível.

—Querolançarumdesafio—disseela.—Maia—começouLeila.—Vocêconhecealei!“Quandolutarescomum

lobodaalcateia,devesenfrentá-loapartadodogrupoesozinho,paraqueoutrosnão tomemparte na disputa, nemo bando seja diminuído pela guerra.”Vocênãopodeinterromperabatalha.

—Rufusestáprestesadarogolpefatal—disseMaiasememoção.—Vocêrealmente acredita que preciso aguardar estes cinco minutos antes de lançarmeu desa o? Vou lançá-lo, se Rufus tiver muito medo de lutar comigoenquantoMorcegoaindaestiverrespirando...

Rufus saiu de cima do corpo amolecido de Morcego com um rugido e

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avançounadireçãodeMaia.AvozdeLeilaseergueuempânico:—Maia, saia daqui! Quando há o primeiro sinal de sangue, não podemos

pararaluta...Rufus partiu para cima deMaia. Suas garras rasgaram a lateral da jaqueta

dela;Maiacaiudejoelhoserolou,daíseergueu,aindadejoelhos,comasgarraseretas.O coraçãodelabatia forte contraopeito e enviavaonda apósondadesangue quente e gelado pelas veias. Ela sentia o ardor do corte no ombro.Primeirosangue.

Os lobisomens começaram a espernear novamente, embora dessa vez nãohouvesse silêncio.Haviamurmúrios e arfares nas leiras.Maia fez o possívelparabloqueare ignorarobarulho.ElaviuRufusdarumpassoemsuadireção.Ele erauma sombradelineadapela lua, e,nessemomento, ela vianão apenasRufus,mas tambémSebastian, agigantando-se sobreelanapraia,umpríncipefrio,entalhadoemgeloesangue.

Seunamoradoestámorto.Opunhodelaestavacontrao solo.QuandoRufus se lançouemcimadela,

com as garras de navalha esticadas, Maia se ergueu e jogou um punhado deterraegramaemseurosto.

Elecambaleouparatrás,engasgandoecego.MaiaavançouechutouopédeRufus; ela percebeu os ossinhos se quebrando e ouviu o grito dele. Naquelemomento,quandoeleestavadistraído,elaenfiouasgarrasnosolhosdele.

Umgritorasgousuagarganta,interrompidorapidamente.Elecaiuparatráse desabou sobre a grama com uma pancada que a fez pensar numa árvorecaindo.Elabaixouosolhosparaamão.Estavacobertacomsangueemanchasdelíquido:massaencefálicaehumorvítreo.

Elacaiudejoelhosevomitounagrama.Asgarrasseretraíram,eelalimpouasmãosnochão,repetidasvezes,enquantoseuestômagosecontraía.Amãodealguém lhe tocou as costas, e Maia ergueu o olhar, agrando Leila inclinadabempertinho.

—Maia— disse ela delicadamente, a voz abafada pelo bando entoando onomedesuanovalíder:“Maia,Maia,Maia.”

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Os olhos de Leila estavam sombrios e preocupados. Maia se pôs de pé,limpandoabocanamangadajaqueta,ecorreupelagramaatéMorcego.Elaseagachouaoladodeleelhetocouorostocomamão.

—Morcego?—chamouela.Comumesforço,eleabriuosolhos.Haviasanguenaboca,maselerespirava

normalmente.MaiaimaginouqueelejáestivesseserecuperandodosgolpesdeRufus.

—Eunãosabiaquevocêlutavasujo—disseele,comummeio-sorriso.MaiapensouemSebastianeemseusorrisoreluzente,enoscorposnapraia.

Pensou no que Lily lhe dissera. Pensou nos Caçadores de Sombras atrás dasbarreirasenafragilidadedosAcordosedoConselho.Vaiserumaguerrasuja ,pensou,enãofoiissoqueelafalouemvozalta:

—EunãosabiaqueseunomeeraBartholomew.—Elaergueuamãodele,segurando-a em sua mão ensanguentada. Ao redor deles, o bando aindaentoava:“Maia,Maia,Maia.”

Elefechouosolhos.—Todomundotemsegredos.

—Quasenãoparece fazerdiferença—disseJace,sentadonobancode janelanoquartodeleedeAlec,nosótão.—Tudopareceumaprisão.

—Vocêachaque istoéumefeitocolateralporhaverguardasarmadosportodaacasa?—sugeriuSimon.—Querodizer,ésóumaideia.

Jacelançouumolharirritadoaele.—Qual éoproblemacomosmundanos e sua compulsão incontrolávelde

afirmaroóbvio?—perguntouJace.Eleseinclinouparaafrente,fitandoatravésdospainéisdajanela.TalvezSimonestivesseexagerandoumpouco,massóumpouco. Os vultos escuros de pé nos pontos cardeais ao redor da casa doInquisidortalvezfosseminvisíveisparaolhosnãotreinados,masnãoparaJace.

—Nãosouummundano—a rmouSimon,comfriezanavoz.—Equantoaos Caçadores de Sombras e sua compulsão incontrolável demorrer ematartodoscomquemseimportam?

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—Paredediscutir.—Alecestavaencostadonaparede,naclássicaposedepensador,oqueixonamão.—Osguardasestãoaliparanosproteger,nãoparanosmanteraquidentro.Coloquemascoisasemperspectiva.

—Alec,vocêmeconheceháseteanos—disse Jace.—Quando foique jácoloqueiascoisasemperspectiva?

Alecfezumacaretaparaoamigo.— Você ainda está com raiva porque quebrei seu telefone? — perguntou

Jace. — Porque você quebrou meu pulso, então, eu diria que estamosempatados.

—Eutorciseupulso—retrucouAlec.—Nãoquebrei.Torci.—Agoraquemestádiscutindo?—provocouSimon.—Nãofale.—Alecfezumgestoparaelecomumaexpressãodenojovago.

— Sempre que olho para você, eume lembro de ter agrado você agarrandominhairmã.

Jacesentouereto.—Eunãosabiadessahistória.—Ah,deixedisso...—falouSimon.— Simon, você está cando vermelho — observou Jace. — E você é um

vampiroequasenunca cavermelho,entãoémelhorque issosejapicantedeverdade.Eestranho.Issoenvolviaalgumabizarricecombicicletas?Aspiradoresdepó?Guarda-chuvas?

—Guarda-chuvas dos grandes ou aqueles pequenos que vêm enfeitando ocopodebebida?—perguntouAlec.

— Importa...? — começou Jace, e então parou quando Clary entrou noquartocomIsabelle,segurandoumagarotinhapelamão.

Depois de ummomento de silêncio chocado, Jace a reconheceu: Emma, agarotaaquemClarytinhaconsoladodepoisdefugirdareuniãodoConselho.Ameninaquetinhaolhadoparaelecomadmiraçãomaldisfarçadaporumherói.Não que ele se importasse com a admiração,mas era um pouco estranho veruma criança subitamente jogada nomeio de uma conversa que, sendomuitosincero,estavacomeçandoaficarexcêntrica.

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—Clary—disseele.—VocêsequestrouEmmaCarstairs?Clarydeuumaolhadelaexasperadaparaele.—Não.Elachegouaquisozinha.—Entreiporumadasjanelas—revelouEmma.—ComoemPeterPan.Alecesboçouumprotesto.Claryergueuamãolivreparaimpedi-lo;aoutra

mãoestavanoombrodeEmma.—Pessoal,quietossóporumsegundo,estábem?—pediuClary.—Seique

elanãodeviaestaraqui,masveioporumarazão.Elateminformações.—Issomesmo—disseEmmaemvozbaixa,determinada.Naverdade, ela

era um pouco mais baixa que Clary, mas daí Clary era minúscula. Um diaEmmaprovavelmenteseriaalta.Jacetentouselembrardopaidamenina,JohnCarstairs; ele tinha certeza de que o vira em reuniões do Conselho, e tinhaquasecertezadequese lembravadosujeitoaltoe louro.Ouseráqueocabeloeraescuro?EleserecordavadosBlackthorn,óbvio,masosCarstairshaviamseapagadodesuamemória.

Clary devolveu o olhar severo com outro que dizia:Seja bonzinho . Jacefechouaboca.Elenãosabiamuitobemsegostavadecrianças,emborasempretivessegostadodebrincarcomMax,oqualerasurpreendentementeadeptodeestratégias para um garotinho, e Jace sempre gostava de fazer quebra-cabeçasparaelesolucionar.OfatodeomeninovenerarochãoqueJacepisavatambémnãoeranadamau.

JacepensounosoldadodemadeiraquetinhadadoaMaxefechouosolhospor causa da dor repentina. Quando voltou a abrir os olhos, Emma o estavaencarando.NãodomodocomooolharaquandoeleaencontraracomClarynoGard, aquele olhar assustado, meio impressionado, meio apavorado, do tipoVocê é JaceLightwood ,mas sim com um pouco de preocupação.Na verdade,todaaposturadelaeraumamisturademedoevidenteecon ançadequeJacesabiaqueelaestava ngindo.Ospaisdelaestavammortos,pensouele,tinhammorrido há poucos dias. E ele se lembrou da época, sete anos antes, quandoenfrentouosLightwood,sabendoemseucoraçãoqueseupaihaviaacabadodemorrer,comotravoamargodapalavra“órfão”emseusouvidos.

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— Emma — disse ele, com a maior delicadeza possível. — Como vocêentroupelajanela?

—Eusubipelostelhados—con rmouela,eapontouparaajanela.—Nãofoi tão difícil assim. Lucarnas são quase como quartos, então eu subi naprimeirae...eraoquartodeClary.—Eladeudeombros,comoseseufeitonãofossearriscadonemimpressionante.

—Eraaminha,naverdade—disseIsabelle,queolhavaparaEmmacomoseelafosseumespécimefascinante.Isabellesentou-senobaúaospésdacamadeAlec,esticandoaspernascompridas.—ClarymoranacasadeLuke.

Emmapareciaconfusa.— Eu não sei onde ca isso. E todomundo disse que você estava cando

aqui.Foiporissoquevim.AlecbaixouosolhosparaEmma,metadede seuolharcontinhacarinho,e

metade,apreocupaçãodeumirmãomuitomaisvelho.—Nãotenhamedo—começouele.—Eunãotenhomedo—rebateuEmma.—Euvimporquevocêsprecisam

deajuda.Jacesentiuabocarepuxarinvoluntariamentenocanto.—Quetipodeajuda?—perguntouele.—Eureconheciaquelehomemhoje—disseela.—Aquelequeameaçoua

Consulesa.EleveiocomSebastianeatacouoInstituto.—Elaengoliuemseco.—Aquelelugarnoqualeledissequetodosíamosqueimar,Edom...

—Éoutronomepara “Inferno”—explicouAlec.—Não éum lugar real,vocênãoprecisasepreocupar...

— Ela não está preocupada, Alec — disse Clary. — Apenas ouça comatenção.

—É um lugar— a rmouEmma.—Quando eles atacaramo Instituto, euouvi.OuviumdelesdizendoquepoderiamlevarMarkparaEdomesacri cá-loali.E,quandonósescapamospeloPortal,ouviamulhergritandoatrásdenósqueíamosqueimaremEdom,quenãohaviafugareal.—Avozestremeceu.—

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Pelomodocomoeles falavamdeEdom,seiqueeraumlugarrealouumlugarrealparaeles.

— Edom — disse Clary, recordando-se. — Valentim chamou Lilith dealgumacoisaassim;eleachamoude“MiladydeEdom”.

Os olhos deAlec se xaramnos de Jace.Alecmeneou a cabeça e saiu doquarto sem fazer barulho. Jace sentiu seus ombros relaxando levemente; emmeio ao clamor geral, era bom ter umparabatai ciente do que você estavapensandosemquehouvesseanecessidadedeverbalizar.

—Vocêcontousobreissoamaisalguém?Emmahesitoueentãobalançouacabeça.— Por que não? — perguntou Simon, que tinha cado quieto até então.

Emma olhou para ele e piscou; tinha apenas 12 anos, pensou Jace, eprovavelmentemal vira integrantes do Submundo tão de perto antes.— PorquenãocontouàClave?

—PorqueeunãoconfionaClave—respondeuEmmaemvozbaixa.—Maseuconfioemvocês.

Claryengoliuemsecovisivelmente.—Emma...—Quandochegamosaqui,aClaveinterrogouatodosnós,emespecialJules,

eelesusaramaEspadaMortalparatercertezadequenãoestávamosmentindo.Ela causa dor,mas eles não deram amínima para isso.Usaram emTy e emLivvy.Usaram emDru.— Emma parecia ultrajada.— Provavelmente teriamusadoemTavvy se ele soubesse falar.E ela causador.AEspadaMortal causador.

—Eusei—disseClary,baixinho.—Ficamos comosPenhallow—explicouEmma.—Por causadeAline e

Helen,eporqueaClavequer cardeolhonagente.Porcausadoqueeuvi.Euestava no primeiro andar quando eles voltaram do funeral e ouvi a conversa,porisso...porissomeescondi.Umgrupointeirodeles,nãoapenasPatrickeJia,mas um monte de outros líderes do Instituto também. Eles estavamconversandosobreoquedeveriamfazer, sobreoqueaClavedeveria fazer, se

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deveriam entregar Jace e Clary para Sebastian, como se fosse escolha deles.Umadecisãodeles.Maseupenseiqueadecisãodeviaserdevocês.Algunsdelesdisseramquenãotinhaimportânciasevocêsqueriamirounão...

Simonestavadepé.—Mas Jace e Clary se ofereceram para ir, praticamente imploraram para

ir...— Nós teríamos contado a verdade a eles. — Emma afastou o cabelo

embaraçadodo rosto.Os olhos dela eram enormes, castanhos com toques deouro e âmbar. — Eles não precisavam usar a Espada Mortal, nós teríamoscontadoaverdadeaoConselho,maselesausarammesmoassim.UsaramemJules até asmãosdele... asmãosdele caremqueimadaspor causadela.—AvozdeEmmaestremeceu.—Entãopenseiquevocêsdeviam saberoque elesestavam dizendo.Não querem que vocês saibam que não é escolha de vocês,porquesabemqueClarypodecriarPortais.Sabemqueelapodesairdaquie,seelaescapar,achamquenãohaverámaisjeitodebarganharcomSebastian.

Aportaseabriu,eAlecvoltouparaoquarto,trazendoumlivroencadernadoemcouromarrom.Eleoseguravadetalmaneiraqueencobriaotítulo,masseusolhos encontraram os de Jace, e ele meneou a cabeça levemente, depois deuuma olhadela em Emma. Os batimentos cardíacos de Jace aceleraram; Alectinha encontrado alguma coisa. Alguma coisa da qual não tinha gostado, ajulgarpelaexpressãosombria,mas,dequalquerforma,eraalgumacoisa.

— Será que os representantes da Clave que você ouviu escondida deramalgumanoçãodequando iamdecidiroque fazer?—perguntou JaceaEmma,emparteparadistraí-la,enquantoAlecsentavanacamaedeslizavaolivroparatrásdesi.

Emmabalançouacabeça.— Eles ainda estavam discutindo quando saí. Engatinhei até a janela do

andardecima.Julesmedisseparanãofazerissoporqueeuiamorrer,massabiaque não ia porque sou uma boa escaladora — acrescentou ela, com umapontinhadeorgulho.—Eelesepreocupademais.

—Ébomterpessoasquesepreocupamcomvocê—disseAlec.—Signi ca

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queseimportam.Éassimquevocêficasabendoquesãobonsamigos.OolhardeEmmafoideAlecparaJace,curioso.—Vocêsepreocupacomele?—perguntouelaaAlec,fazendo-ogargalhar

desurpresa.—Otempotodo—disseele.—Jacepoderiaacabarsematandoaovestira

calçademanhã.Seroparabataideleétrabalhoemtempointegral.— Eu queria ter umparabatai— comentouEmma.—É como alguémda

sua família,masporquequerser,enãoporqueéobrigadoaser.—Elacorou,subitamenteconstrangida.—Dequalquerforma,nãoachoquealguémdevesseserpunidoporsalvaraspessoas.

—Éporissoquevocêcon anagente?—perguntouClary,emocionada.—Vocêachaquesalvamosaspessoas?

Emmacutucouocarpetecomapontadasbotas.Entãoergueuoolhar.— Eu sabia sobre você — disse Emma para Jace, corando. — Tipo,todo

mundo sabe sobre você. Que era lho de Valentim,mas que depois não eramais, que era JonathanHerondale. E eu não acho que isso tenha signi cadoalguma coisa para a maioria das pessoas... Muitas chamam você de JaceLightwood...Mas fez diferença parameu pai.Ouvimos ele dizer paramamãeque achava que os Herondale não existissem mais, que a família estivessemorta,mas que você era o último deles, e ele votou na reunião doConselhoparaaClavecontinuaracuidardevocêporque,naspalavrasdele“OsCarstairstêmumadívidacomosHerondale”.

—Porquê?—perguntouAlec.—OqueosCarstairsdevemaosHerondale?—Sei lá— retrucouEmma.—Mas vimporquemeupai ia querer que eu

viesse,mesmoquefosseperigoso.Jaceabafouumarisadabaixinha.—Algomedizquevocênãodáamínimaparaoperigo.—Eleseagachou,

os olhosnamesma alturadosdeEmma.—Temmais alguma coisa que vocêpossacontar?Algumaoutracoisamaisqueelesdisseram?

Ameninabalançouacabeça.— Eles não sabem onde Sebastian está. Não sabem sobre essa história de

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Edom...EuatémencioneiquandoestavasegurandoaEspadaMortal,masachoque simplesmente pensaram ser outra palavra para “Inferno”. Eles nuncameperguntaramseeraumlugarreal,porissonãofalei.

—Obrigadopornoscontar.Éumaajuda.Umaajudaimensa.Vocêdeve irembora agora — acrescentou ele, o mais gentilmente possível —, antes quepercebam que você saiu.Mas a partir de agora osHerondale têm uma dívidacomosCarstairs.Certo?Lembre-sedisso.

Jace se levantou quando Emma se virou para Clary, que acenou com acabeçaeaconduziuatéajanelaondeJaceestiverasentadomaiscedo.Claryseinclinou e abraçou a garotinha antes de esticar a mão e destravar a janela.Emma subiu com a agilidade de ummacaco. Ela se pendurou até somente asbotas caremvisíveis,e,uminstantedepois,elastambémseforam.Jaceouviuum leve barulho de raspagem acima, enquanto ela se lançava pelo telhado, edepoissilêncio.

—Eugostodela—disse Isabellepor m.—Elameioqueme lembra Jacequandoeleerapequeno,teimosoeagiacomosefosseimortal.

—Duasdessascaracterísticasaindavalem—falouClary,travandoajanela.Ela sentou-senobancode janela.—Achoque a grandepergunta é: devemoscontaraJiaouaoutrapessoadoConselhooqueEmmanosrevelou?

— Isso depende— falou Jace.— Jia tem que se submeter às vontades daClave;elamesmadisseisso.—Sedecidiremquequeremnosjogarnumajaulaaté Sebastian vir nos buscar... bem, isso elimina qualquer vantagem que essainformaçãopoderianosdar.

—Entãodependeseainformaçãoéounãorealmenteútil—disseSimon.—Certo—confirmouJace.—Alec,oquevocêdescobriu?Alecretirouolivrodetrásdesi.Eraumaencyclopediadaemonica,otipode

livroquetodabibliotecadeCaçadoresdeSombrasteria.—PenseiqueEdompudesseserumnomeparaumdosreinosdemoníacos...— Bem, todos têm teorizado que Sebastian poderia estar numa dimensão

diferente,poiselenãopodeserrastreado—disseIsabelle.—Masasdimensõesdemoníacas...hámilhõesdelas,easpessoasnãopodemsimplesmenteirlá.

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—Umassãomaisconhecidasqueoutras—a rmouAlec.—ABíbliaeostextos de Enoque mencionam algumas, disfarçadas e incluídas, claro, emhistóriasemitos.Edomémencionadocomoumlocaldesolado...—Eleleuemvozalta,avozcontrolada:—EosriosdeEdomsetransformarãoembetume,eo solo, emenxofre;a terra se transformaráembetumeardente.Noiteedia, elenão se apagará; sua fumaça subirá para sempre. De geração em geração,permanecerá desolado; ninguém passará por ele para todo o sempre . — Elesuspirou.—E,claro,temaslendassobreLilitheEdom,queelafoibanidadali,quegovernaolocalcomodemônioAsmodeus.ProvavelmentefoiporissoqueosCrepuscularesfalaramemsacrificarMarkBlackthornaelaemEdom.

—LilithprotegeSebastian—disseClary.—Seele estivesse indoparaumreinodemoníaco,iriaparaodela.

— Ninguém passará por ele para todo o sempre não parece muitoencorajador—comentouJace.—Alémdisso,nãohámeiodeentrarnosreinosdemoníacos.Viajarparaláeparacánestemundoéumacoisa...

—Ora,háummeio,acho—disseAlec.—UmatrilhaqueosNephilimnãopodem fechar porque ca fora da jurisdição de nossas Leis. É antiga, maisantigaqueosCaçadoresdeSombras...magiaantigaeprimitiva.—Elesuspirou.—FicanaCorteSeelieeéprotegidapeloPovodasFadas.Nenhumserhumanopôsospésnaquelatrilhaemmaisdecemanos.

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13CalcadoemBoasIntenções

Jacecaminhavapeloquartofeitoumgato.Osoutrosoobservavam,Simoncomumasobrancelhaarqueada.

—Não tem outro jeito de chegar lá?— perguntou Jace.—Não podemostentarumPortal?

—Não somos demônios. Só podemos atravessar um Portal no interior deumadimensão—explicouAlec.

—Eusei,masseClaryexperimentassecomossímbolosdoPortal...— Não vou fazer isso — interrompeu Clary, colocando a mão

protetoramentesobreobolsoondeaestelaseencontrava.—Nãovoucolocarvocês todos em perigo. Eu mesma passei pelo Portal com Luke para Idris equasenosmatei.Nãovouarriscar.

Jace ainda caminhava. Era o que ele fazia quando estava pensando. Clarysabia disso, mas o observava com preocupação mesmo assim. Ele fechava eabriaasmãos,emurmurava.Finalmente,eleparou.

—Clary—disse.—VocêpodecriarumPortalparaaCorteSeelie,certo?—Sim—respondeuela.—Issoeupoderiafazer...Jáestiveláemelembro.

Mas será que estaríamos seguros? Nós não fomos convidados, e o Povo dasFadasnãogostadeincursõesemseuterritório...

—Não tem “nós”— falou Jace.—Nenhum de vocês vai. Vou fazer issosozinho.

Alecficoudepécomumsalto.—Eusabia,eusabia,meleca,eabsolutamentenão.Semchance.Jace arqueou uma das sobrancelhas para Alec; aparentemente ele estava

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calmo,mas Clary notava a tensão nos ombros e nomodo como ele oscilavadevagarparaafrente,apoiadonoscalcanhares.

—Desdequandovocêfala“meleca”?—Desde quando a situação é umameleca.—Alec cruzouos braços.—E

penseiquefôssemosdiscutirsecontaríamosàClave.—Não podemos fazer isso—observou Jace.—Não se vamos chegar aos

domíniosdemoníacosatravésdaCorteSeelie.NãoécomosemetadedaClavepudessesimplesmenteinvadiraCorte;issopareceriaumadeclaraçãodeguerracontraoPovodasFadas.

— E se formos apenas nós cinco, podemos falar umas palavras bonitas econvencê-losanosdeixarpassar?—Isabelleergueuumasobrancelha.

— Nós já negociamos com a Rainha — disse Jace. — Você foi atrás daRainhaquandoeu...quandoSebastianestavacomigo.

—E elanos enganoupara levarmosos anéis de comunicaçãoparaque elapudesseescutar tudo—emendouSimon.—Euacreditonela tantoquantonaminhacapacidadedeerguerumelefantedetamanhomédio.

—Eunãofaleiemcon arnela.ARainhafaráqualquercoisaquesejadeseuinteressenomomento.Só temosque fazê-la se interessarpelonossoacessoàestradaparaEdom.

— Ainda somos Caçadores de Sombras — disse Alec —, ainda somosrepresentantesdaClave.Nãoimportaoqueagentefaçanoreinodasfadas,osCaçadoresresponderãoporisso.

—Entãousaremos tatoe inteligência— insistiu Jace.—Olhe, euadorariafazeraClavelidarcomaRainhaeacortepornós.Masnãotemostempo.Eles,Luke e Jocelyn, Magnus e Raphael, não têm tempo. Sebastian está sepreparando para entrar em ação; está acelerando seus planos, sua sede desangue.Vocênãosabecomoeleéquando caassim,maseusei.Eusei.—Elerecuperouofôlego;haviaumacortina nadesuornasmaçãsdorosto.—Porissoquerofazerissosozinho.IrmãoZachariahmedisse:Eusouofogocelestial.NãovamosconseguiroutraGloriosa.Nãopodemosexatamenteconvocaroutroanjo.Jájogamosessacarta.

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—Ótimo— rebateuClary—,masmesmoque você seja a única fonte dofogocelestial,nãosignificaquetenhaquefazerissosozinho.

—Ela tem razão— disseAlec.—Nós sabemos que o fogo celestial podeferirSebastian.Masnãosabemosseéaúnicacoisacapazdeferi-lo.

—Eissode nitivamentenãoquerdizerquevocêsejaaúnicapessoacapazdematartodososCrepuscularesqueSebastiantiveraoredordele—observouClary.—Ouquevocêpossapassar sozinho e em segurançapelaCorte Seelieou,depoisdisso,poralgumreinodemoníacoabandonadoondevocêtenhaqueencontrarSebastian...

— Não podemos rastreá-lo porque não estamos na mesma dimensão —disse Jace.Ele ergueuopulsoonde apulseirade Sebastianbrilhava.—Assimqueeuestivernomundodele,possorastreá-lo.Jáfizissoantes...

—Nóspodemosrastreá-lo—retrucouClary.—Jace,hámaiscoisasalémdesimplesmente encontrá-lo; isso é imenso, maior que qualquer coisa que jázemos.NãoéapenasmatarSebastian; temavercomosprisioneiros.Éuma

missãoderesgate.Éavidadeles,bemcomoanossa.—Avozdelafalhou.Jace fez uma pausa nas passadas pelo quarto; olhou para os amigos, um a

um,quaseimplorando.—Eusónãoqueroquealgoaconteçaavocês.—É,eusei,nenhumdenósquerquealgoaconteçaanóstambém—disse

Simon.—Maspensebem:oqueacontecesevocêforenósficarmos?SebastianquerClary,maisaindadoquequervocê,eeleécapazdeencontrá-laaquiemAlicante. Nada o impede de vir aqui, salvo uma promessa de que vai esperardoisdias.Edequevalemaspromessasdele?Sebastianpoderiaviratrásdenósaqualquermomento;eledemonstrouissocomosrepresentantesdoSubmundo.Estamossemaçãoaqui.Melhorirmosaalgumlugarondeelenãoimaginaqueiremos,ouondenãoestejaprocurandopornós.

—Nãovou carparadoaquiemAlicanteenquantoMagnusestáemperigo— falouAlec, comumavoz surpreendentemente adulta e fria.—Se você forsem mim, desrespeitará nossos juramentos deparabatai, me desrespeitarácomoCaçadordeSombras,alémdofatodequeestatambéméminhabatalha.

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Jaceficouchocado.— Alec, eu nunca desrespeitaria nossos juramentos. Você é um dos

melhoresCaçadoresdeSombrasqueconheço...— E é por isso que vamos com você— disse Isabelle.— Vocêprecisa da

gente.PrecisademimedeAlecparateajudar,domodocomosempre zemos.PrecisadospoderesdossímbolosdeClaryedaforçadevampirodeSimon.Essaluta não é só sua. Se nos respeita como Caçadores de Sombras e como seusamigos,atodosnós,entãoiremoscomvocê.Simplesassim.

—Eusei—concordouJace,emvozbaixa.—Seiqueprecisodevocês.JaceolhouparaClary,eelaouviuavozdeIsabelledizendo vocêprecisados

poderesdossímbolosdeClary ,entãose lembroudaprimeiravezemqueoviu,comAleceIsabelledecadalado,edecomoachouqueelepareciaperigoso.

Nuncalheocorreuqueelaeracomoele—queelatambémeraperigosa.—Obrigado—disseele,epigarreou.—Certo.Pessoal,vistamosuniformes

epeguemasbolsas.Arrumemascoisasparaumaviagempor terra:água, todacomida que conseguirem carregar, estelas extras, cobertores. E você —acrescentou,sedirigindoaSimon—,podeaténãoprecisardecomida,massetiver uma garrafa com sangue, leve. Pode não haver nada que você possa...consumirondevamos.

—Sempretemvocêsquatro—respondeuSimon,masesboçouumsorriso,eClarysoubequeeraporqueJaceoincluíraentreelessemhesitarumsegundo.Finalmente, Jace tinha aceitado que, aonde quer que fossem, Simon iriatambém,sendoounãoumCaçadordeSombras.

—Muitobem—disseAlec.—Vamosnosencontraraquiemdezminutos.Clary,prepare-separacriarumPortal.EJace...

—Sim?—ÉbomvocêterumaestratégiaparaquandochegarmosàCortedasFadas.

Porquevamosprecisardeuma.

OturbilhãonointeriordoPortalfoiquaseumalívio.Claryfoiaúltimaapassarpelaentradareluzente,depoisdeosoutrosquatroavançarem,epermitiuquea

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escuridão fria a levasse como água, puxando cada vez mais para baixo,roubando o ar de seus pulmões e fazendo-a se esquecer de tudo, menos doclamoredaqueda.

Acabourápidodemais,oapertodoPortalsoltando-aparaaquedabrusca,amochila rodopiando debaixo dela, no chão de terra batida de um túnel. Elaprendeu o fôlego e rolou para o lado, usando uma raiz pendente e compridaparaseendireitar.Alec,Isabelle,JaceeSimonestavamselevantandoaoredor,espanandoasroupascommãos.Elesnãotinhamcaídona terra,elapercebeu,masnumtapetedemusgo.Maismusgoseespalhavaaolongodasparedeslisasemarronsdotúnel,noentantoelereluziacomluzfosforescente.Pequenas oresbrilhantes,comomargaridaselétricas,cresciamentreomusgoesarapintavamoverdedebranco.RaízesserpenteantespendiamdotetodotúnelefaziamClaryse perguntar o que exatamente estava crescendo acima do solo.Vários túneismenores se rami cavam a partir do principal, alguns pequenos demais paracomportarumafigurahumana.

Isabelletirouumpedaçodemusgodocabeloefranziuatesta.—Ondeexatamentenósestamos?— Eumirei para chegarmos diante da sala do trono— disse Clary.— Já

estivemosaqui.Massempreparecediferente.Jace já tinha seguido pelo corredor principal. Mesmo sem o símbolo de

Silêncio, ele estava quieto como um gato no musgo fofo. Os outros oacompanhavam,Clarycomamãonocabodaespada.Estavameiosurpresapelopouco tempoque levarapara seacostumaraumaarmapairandona lateraldeseu corpo; caso ela esticasse a mão em busca de Heosphoros e não aencontrasseali,pensou,entrariaempânico.

—Aqui—murmurou Jace, e fez um gesto para o restante do grupo carcalado. Eles estavam na arcada, uma cortina os separava de uma sala maior,mais além. Da última vez em que Clary estivera ali, a cortina era feita deborboletasvivas,eseusesforçosnobaterdeasasafaziamfarfalhar.

Hoje eram espinhos, espinhos comoos que circundavamo castelo daBelaAdormecida, espinhos entrelaçados um ao outro de tal modo que formavam

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uma divisória que pendia do alto. Clary captava alguns lampejos do cômodoalém—umbrilhobrancoeprata—,mastodosouviamosomderisadas,vindodoscorredoresaoredor.

Os símbolosdeFeitiçonão funcionavamcomoPovodasFadas;nãohaviameio de se esconder da vista deles. Jace estava alerta, o corpo tenso.Cuidadosamente, ele ergueu a adaga e abriu a divisória de espinhos domodomaissilenciosopossível.Todoogruposeinclinou,observando.

Ocômodoalémdeleseraumaterrainvernaldecontosdefadas,dotipoqueClary raramente via, a não ser nas visitas ao sítio de Luke. As paredes eramdivisórias de cristal branco, e a Rainha estava reclinada no divã, que tambémerade cristal brancopara combinar, riscado comveiasprateadasna rocha.Ochão estava coberto com neve, e o teto parecia repleto de estalactitescompridas, todas amarradas com cordas de espinhos dourados e prateados.Haviapilhasderosasbrancasaoredordocômodo,espalhadasaospésdodivãdaRainha,alémdealgumasentrelaçadasnoscabelosruivos,comoumacoroa.Ovestidotambémerabrancoeprateado,tãodiáfanoquantoumaplacadegelo;davaparaentreverocorpodela,masnãoclaramente.Gelo,rosaseaRainha.Oefeitoeraofuscante.Elaestavajogadanodivã,comacabeçainclinada,falandocomumcavaleirofadacomarmadurapesada.Aarmaduraeramarrom-escura,da cor de um tronco de árvore; um dos olhos era preto, o outro azul-claro,quase branco. Por ummomento,Clary pensou que ele tivesse uma cabeça decervoen adasobobraçoimenso,masaoolharcomatençãopercebeuqueeraumcapacetedecoradocomchifres.

— E como foi a Caçada Selvagem, Gwyn?— perguntou a Rainha. — OsColetoresdosMortos?Imaginoqueosdespojostenhamsidoótimosparavocêsna Cidadela Adamant na outra noite. Ouvi dizer que os uivos dos Nephilimrasgavamocéuenquantoelesmorriam.

ClarysentiuatensãodosoutrosCaçadoresdeSombras.Elase lembravadeter cadodeitadaaoladodeJacenumbarcoemVeneza,observandoaCaçadaSelvagem acima deles; um turbilhão de gritos e comandos de batalha, cavalos

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cujoscascosbrilhavamemescarlate,martelandopelocéu.—Assimouvidizer,milady—disseGwyn,comumavoztãoroucaquemal

sepodiacompreender.Acriaturasoavacomoumalâminaarranhandoacascaásperadeumaárvore.—ACaçadaSelvagemvemquandooscorvosdocampodebatalhagrasnamepedemosangue:nósrecolhemosnossoscavaleirosentreosmortos.Mas não estávamosnaCidadelaAdamant.Os jogos de guerra dosNephilimedosCrepuscularessão intensosdemaisparanossosangue.OPovodasFadasnãocombinamuitobemcomdemônioseanjos.

—Vocêmedecepciona,Gwyn—comentouaRainha,comummuxoxo.—EsteéummomentodepoderparaoPovodasFadas;vencemos,noserguemos,chegamos ao mundo. Pertencemos aos tabuleiros do poder, tanto quanto osNephilim.Euesperavaseuconselho.

— Perdoe-me, milady— respondeu Gwyn.— Xadrez é um jogo delicadodemaisparanós.Nãopossoaconselhá-la.

—Maseu lhedeiumpresente.—ARainhaafundounodivã.—OgarotoBlackthorn.AcombinaçãodesanguedeCaçadordeSombrasedefadas;éraro.Elevaicavalgaràssuascostas,eosdemôniosotemerão.UmpresentemeuedeSebastian.

Sebastian. Ela falou o nome muito à vontade, com familiaridade. Haviacarinho na voz dela, se é que se podia dizer que a Rainha das Fadas eracarinhosa. Clary ouvia a respiração de Jace ao lado: forte e rápida; os outroscaramtensostambém,opânicosuplantandoacompreensãonorostodetodos

conformeassimilavamaspalavrasdaRainha.Clary sentiu Heosphoros cada vez mais fria em sua mão.Uma trilha aos

domíniosdemoníacosqueconduzatravésdasterrasdasfadas.Aterrarachandoe se abrindo aos pés de Sebastian, que contava vantagem e dizia que tinhaaliados.

A Rainha e Sebastian oferecendo o presente de uma criança Nephilimcapturada.Juntos.

—Osdemôniosjátêmmedodemim,beladama—disseGwyn,esorriu.Beladama.OsanguenasveiasdeClaryeraumriocongelado,descendoaté

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ocoração.Aobaixaroolhar,elaviuSimonsereposicionandoecobrindoamãode Isabelle com a dele, um gesto breve para oferecer conforto; Isabelle estavapálidaepareciadoente,assimcomoJaceeAlec.Simonengoliuemseco;oaneldeouronodedobrilhou,eelaouviuavozdeSebastianemsuamente:

Realmenteachaqueeladeixariaquevocêpusesseasmãos emalgumacoisaquepermitissequesecomunicassecomseusamiguinhossemqueelaconseguisseouvir?Desdequeotireidevocê,faleicomela,elafaloucomigo,vocêfoiumatolaemcon arnela,irmãzinha.Elagostade cardoladovencedor,aRainhaSeelie.Eesseladoseráonosso,Clary.Nosso.

— Você me deve um favor então, Gwyn, em troca do garoto — disse aRainha.—Sei que aCaçada Selvagem segue as próprias leis,mas solicito suapresençanapróximabatalha.

Gwynfranziuatesta.— Não tenho certeza se um garoto vale uma promessa com tantas

consequências. Como falei, a Caçada tem pouco desejo de se envolver nessahistóriadosNephilim.

—Vocênãoprecisa lutar—disse aRainha, comumavozdelicada.—Eupediria apenas sua ajuda com os corpos posteriormente. E haverá corpos. OsNephilimpagarãoporseuscrimes,Gwyn.Todosdevempagar.

AntesqueGwynpudesse responder,outra guraentrounocômodo,vindodotúnelescuroquefaziaumacurvaatrásdotronodaRainha.EraMeliorn,emsua armadura branca, com o cabelo preto em uma trança que descia pelascostas.As botas tinhamuma crosta do que parecia piche preto. Ele franziu atestaaoavistarGwyn.

—UmCaçadornuncatrazboasnotícias—disseele.— Acalme-se, Meliorn — disse a Rainha. — Gwyn e eu estamos apenas

discutindoumatrocadefavores.Meliorninclinouacabeça.—Tragonotícias,milady,masgostariadelhefalaremparticular.ElasevirouparaGwyn.—Estamosdeacordo?

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Gwyn hesitou, então assentiu brevemente e, com um olhar de desagradoparaMeliorn,desapareceupelotúnelescurodoqualocavaleirofadaviera.

ARainhadeslizounodivã,osdedospálidosfeitomármorecontraovestido.— Muito bem, Meliorn. Sobre o que você queria falar? São notícias dos

prisioneirosdoSubmundo?OsprisioneirosdoSubmundo .ClaryouviuAlec inspirarcom forçaatrásde

si, e a cabeça deMeliorn virar para o lado. Ela notou que ele semicerrou osolhos.

—Senãoestouenganado—disseele,esticandoamãoparapegaraespada—,milady,temosvisitantes...

Jace já estava deslizando a mão para o lado, murmurando “Gabriel”. Alâmina sera m ardeu, e Isabelle cou de pé de um salto, estalando o chicoteparaa frenteepartindoacortinadeespinhos,quedesmoronouruidosamentenochão.

Jacepassoucorrendopelosespinhoseavançouparaasaladotrono,Gabrielardendoemsuamão.Claryempunhousuaespada.

Elesinvadiramasalaeseorganizaramnumsemicírculo:Aleccomoarcojádeprontidão, Isabelle comochicote reluzindoeClary coma espada, alémdeSimon—Simonnão tinhaarmamelhorqueelemesmo,masestavaparadoesorriaparaMeliorn,aspresasreluzindo.

ARainhaselevantoucomumsibilo,esecobriurapidamente;foiaúnicavezqueClaryaviunervosa.

—ComoousamentrarnaCortesempermissão?—questionouela.—Esteéomaiordoscrimes,umaviolaçãodoPacto...

— Como a senhora ousa falar em violação do Pacto! — gritou Jace, e alâmina sera mqueimou em suamão.Clary imaginava que JonathanCaçadorde Sombras deve ter cado com essa mesma aparência tantos séculos atrás,quando conduziu os demônios de volta e salvou um mundo inocente dadestruição. — Você, que assassinou e mentiu, e prendeu os membros doConselhodoSubmundo.Vocêsealiouàsforçasdomalepagaráporisso.

—ARainhadaCorteSeelienãopaga—disseela.

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—Todospagam—rebateuJace,ederepenteeleestavadepénodivã,acimada Rainha, a ponta da lâmina encostada na garganta dela. A Rainha recuou,porém estava acuada, Jace acima dela, os pés apoiados no divã. — Como asenhorafezisso?—perguntouele.—Meliornjurouquevocêsestavamdoladodos Nephilim. Fadas não podem mentir. Por isso o Conselho confiou emvocês...

—Meliornémetadefada.Elepodementir—disseaRainha, lançandoumolhar divertido a Isabelle, que parecia em choque. Só mesmo a Rainhaconseguia parecer se divertir com uma lâmina no pescoço, pensou Clary. —Algumasvezes,arespostamaissimpleséacorreta,CaçadoradeSombras.

—Porisso vocêoquerianoConselho—declarouClary,recordando-sedofavorqueaRainha lhepediraequeagoraparecia ter sidohá tanto tempo.—Porqueeleconseguementir.

— Uma traição há muito planejada — disse a Rainha, sem se mexer. Apontadaespadacontraopescoço.—SetocaremnaRainhadaCorteSeelie,oPovodasFadasvaiserevoltarcontravocêsparasempre.

Jacearfavaenquantofalava,eseurostoestavatomadopelaluzardente.—Entãooquevocêssãoagora?—perguntouele.—Ouvimosasenhora.A

senhora faloudeSebastiancomoumaliado.ACidadelaAdamantseencontrasobreLinhasLey.LinhasLeysãoaprovínciadosseressobrenaturais.Asenhoraosconduziuatéali,abriuocaminhoepermitiuqueelenosemboscasse.Comoasenhorajánãoestavaorganizadacontranós?

UmolharfeiocruzouorostodeMeliorn.—Vocêpodeterouvidoaconversa,pequenoNephilim—disseele.—Mas

sematarmosvocêsantesquevoltemàClaveecontemsuashistórias,ninguémmaisprecisarásaber...

Ocavaleirocomeçouaavançar.Alecdisparouuma echa,eelaafundounapernadeMeliorn,quecaiuparatráscomumgrito.

Alecavançou, jápreparandooutra echanoarco.Meliornestavanochão,gemendo,aneveaoredordele candovermelha.Alecparouacimadele,abestadeprontidão.

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—DigacomochegaraMagnus...comoresgatarosprisioneiros—disseele.—Respondaouvoutetransformarnumaalmofadadealfinetes.

Meliorncuspiu.Aarmadurabrancapareciasemisturarnaneveaoredor.—Nãovoucontarnada.Metorture,memate,nãovoutrairminhaRainha.—Dequalquerforma,nãoimportaoqueelediz—declarouIsabelle.—Ele

conseguementir,lembra-se?Alecfechouacara.—Éverdade.Morraentão,mentiroso.—Edisparouaflechaseguinte.ElaafundounopeitodeMeliorn,eocavaleirofadacaiuparatrás,aforçada

echa fazendo o corpo deslizar na neve. A cabeça dele bateu na parede dacavernacomumapancadaúmida.

ARainhagritou.OsominvadiuosouvidosdeClaryeatiroudochoque.Elaouviaagritariadefadas,ouviapéscorrendodoladodefora.

—Simon!—gritouela,eeledeumeia-volta.—Venhacá!Elavoltouaen arHeosphorosnocinturão,agarrouaestelaedisparoupara

aportaprincipal, agora semas cortinas irregulares de espinhos. Simon estavabemnoencalçodela.

—Melevante—pediuClary,e,semperguntar,elepôsasmãosaoredordacinturadelaeaergueu,aforçadevampiroquasealançandoparaoteto.

Comamão livre, ela se agarrou com forçano alto da arcada e olhouparabaixo.Simonafitava,obviamenteconfuso,masoapertodeleerafirme.

—Fique rme—disseela,ecomeçouadesenhar.EraoopostodosímboloqueelahaviadesenhadonobarcodeValentim:esteeraumsímboloparafecharetrancar,paraisolartodasascoisas,paraumesconderijoesegurança.

LinhaspretassaíramdapontadaestelaenquantoClaryrabiscava,entãoelaouviuSimondizer“Depressa,elesestãovindo”,exatamentequandoterminoueretirouaestela.

Ochãoabaixodelessemoveu.Elescaíramjuntos,ClarypousouemcimadeSimon — não foi a aterrissagem mais confortável, ele era todo joelhos ecotovelos—erolouparao ladoquandoummurodeterracomeçouadeslizar

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pela arcada aberta, como uma cortina de teatro sendo puxada. Havia vultoscorrendo para as portas, vultos que começaram a tomar forma e revelaram oPovodasFadasàspressas, eSimonpuxouClaryexatamentenomomentoemque a entrada que dava para o corredor desapareceu com um estrondo nal,isolandoasfadasdooutrolado.

—PeloAnjo—disseIsabelle,comvozassustada.Clarydeumeia-volta,comaestelanamão.Jaceestavadepé,aRainhaSeelie

diante dele, a espada agora apontada para o coração dela. Alec estava paradoacimadocadáverdeMeliorn;elenãoesboçavaexpressãoalgumaquandoolhoupara Clary e, em seguida, para oparabatai. Atrás dele, a passagem por ondeMeliornentraraeGwynsaíraseabriu.

—Vocêvaifecharotúneldosfundos?—perguntouSimonaClary.Elabalançouacabeça.— Meliorn tinha piche nos sapatos — disse ela. —E os rios de Edom se

transformarãoempiche ,lembra?Achoqueeleveiodoreinodemoníaco.Creioqueocaminhoéporali.

—Jace—chamouAlec.—DigaàRainhaoquenósqueremoseque,seelaobedecer,nósadeixaremosviver.

ARainhariu,umsomagudo.—Pequenoarqueiro—disse.—Subestimeivocê.A adassãoas echasde

umcoraçãopartido.OrostodeAlecendureceu.—Asenhorasubestimouatodosnós;sempresubestimou.Asenhoraesua

arrogância.OPovodasFadaséumpovoantigo,umpovobom.Asenhoranãoéadequada para liderá-los. Se continuarem sob seu governo, todos vão acabarassim—disse,meneandooqueixoparaocadáverdeMeliorn.

—Foivocêquemomatou—disseaRainha—,nãoeu.—Todospagam—rebateuAlec, e oolhar emcimadela era rme, azul e

gélido.—DesejamosoretornosegurodosrefénsfeitosporSebastianMorgenstern

—disseJace.

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ARainhaabriuasmãos.—Elesnão estãonestemundo,nemaqui comoPovodasFadas, nemem

qualquerterritóriosobreoqualeutenhajurisdição.Nãohánadaqueeupossafazerpararesgatá-los,absolutamentenada.

—Muitobem—disse Jace, eClary teve a sensaçãodeque ele já esperavaaquela resposta. — Há outra coisa que a senhora pode fazer, uma coisa quepodenosmostrar,quemefarápoupá-la.

ARainhaficouimóvel.—Oqueé,CaçadordeSombras?— A estrada para o reino demoníaco — disse Jace. — Queremos uma

passagemseguraatéele.Seguiremosporelaesairemosdeseureino.Para surpresadeClary, aRainhapareceu relaxar.A tensãodesapareceude

suapostura, e um sorrisinho repuxouo cantodaboca—um sorriso quenãoagradouaClary.

— Muito bem. Vou guiá-los até a estrada para o reino demoníaco. — ARainha ergueu o vestido diáfano de modo que pudesse abrir caminho pelosdegraus que cercavam o divã. Os pés estavam descalços e eram tão brancosquantoaneve.Elacomeçouacaminharpelocômodoatéapassagemescuraqueseestendiaatrásdotrono.

AlecseguiubemnoencalçodeJace,comIsabelleatrásdele;ClaryeSimonforamnaretaguarda,umaestranhaprocissão.

—Eurealmente,realmenteodeiodizerisso—murmurouSimon,enquantoeles saíam da sala do trono e entravam na penumbra cheia de sombras dapassagemsubterrânea—,masissomeioquepareceufácildemais.

—Nãofoifácil—murmurouClaryemresposta.—Eusei,masaRainha...elaéinteligente.Poderiaterencontradoummeio

deescaparsequisesse.Elanãotemquenosdeixariraoreinodemoníaco.—Maselaquer—disseClary.—Achaquevamosmorrerlá.Simonlhelançouumolhardesoslaio.—Vamos?—Não sei— respondeu Clary, e acelerou o passo para se aproximar dos

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outros.

O corredor não era tão longo quanto Clary pensara. A escuridão fazia adistância parecer impossível, mas eles só precisaram caminhar por mais oumenosmeiahoraatésairdassombrasparaumespaçomaior,iluminado.

Acaminhadanaescuridãofoisilenciosa,Claryperdidaempensamentos—lembrançasdacasaqueela,SebastianeJacetinhamdividido,dosomdaCaçadaSelvagem rugindo no céu, do pedaço de papel com as palavras “minha beladama”.Aquilonãoerasinalderomance;erasinalderespeito.ARainhaSeelie,abeladama.ARainhagostade cardoladovencedor,Clary,eesseladoseráonosso,disseraSebastianaelacertavez;mesmoquandoinformaraissoàClave,Clary tomara este trecho como parte da arrogância dele. Havia acreditado,juntamenteaoConselho,queapalavradoPovodasFadasjurandolealdadeerasu ciente, que a Rainha ao menos esperaria para ver de que lado o ventosopravaantesderomperalianças.ClarypensouemJaceprendendoarespiraçãoquandoaRainha falouumatraiçãohámuitoplanejada. Talveznenhumdelestivesse cogitado isso porque a ideia era insuportável demais: a Rainha tinhatantacertezadavitóriadeSebastianquehaviatopadoescondê-lonoreinodasfadas, onde ele não poderia ser rastreado. Que concordara em ajudá-lo nabatalha. Clary pensou na terra se abrindo na Cidadela Adamant, engolindoSebastianeosCrepusculares;aquilotinhasidofrutodemagiadasfadas:a nalde contas, as Cortes cavam no subterrâneo. Por que outro motivo osCaçadoresdeSombrasmalignosquetinhamatacadooInstitutodeLosAngelespegaramMarkBlackthorn?TodospresumiramqueSebastiantemiaavingançado Povo das Fadas, no entanto ele não temia. Era aliado deles. Pegou Markporque tinha sangue fada e, por causa desse sangue, pensaram que Markpertenciaaeles.

Em toda a vida dela, Clary nunca pensara tanto em linhagens e seussigni cadosquantonosúltimosseismeses.OsangueNephilimerapuro;ClaryeraumaCaçadoradeSombras.OsanguedoAnjo:issoafaziaseroqueera,lhedavaopoderdossímbolos.FaziadeJaceoqueeleera,deixava-oforte,veloze

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brilhante. O sangue dos Morgenstern: Clary também o possuía, assim comoSebastian,eporessarazãoeleseimportavacomela.Issolhedavaumcoraçãosombriotambémounão?EraosanguedeSebastian—Morgensternedemôniomisturados — que fazia dele um monstro, ou ele poderia ter sido mudado,modi cado,melhorado,ensinadodeoutromodo,talqualosLightwoodtinhamfeitocomJace?

— Aqui estamos— disse a Rainha Seelie, e sua voz parecia divertida. —Vocêssãocapazesdeadivinharqualéaestradacorreta?

Elesestavamparadosnumacavernaimensa,comotetocamu adoemmeioàssombras.Asparedesreluziamcomumbrilhofosforescente,equatroviasserami cavamdopontoondeseencontravam:umaatrásdeles,emaistrês.Umaeralimpa,amplaeplana,econduziadiretamenteàfrente.Aoutra,àesquerda,brilhavacomfolhasverdese oresbrilhantes,eClarypensoutervistoobrilhodo céu azul ao longe. O coração dela desejava seguir aquele caminho. E aúltima,amaisescura,eraumtúnelestreito,aentradaerasinuosa,comlançasdemetaleespinheiroscobrindoaslaterais.Clarypensoutervistoaescuridãoeasestrelasnofim.

Alecdeuumarisadabreve.—NóssomosCaçadoresdeSombras—disse.—Conhecemosashistórias

antigas.EstassãoasTrêsVias.—ExplicouaonotaroolharconfusodeClary:— As fadas não gostam que seus segredos escapem, porém alguns músicoshumanos foram capazes de codi car antigos segredos das fadas em baladasantigas. Há uma chamada “omas, o poeta”, sobre um homem que foisequestradopelaRainhadasFadas...

— Ele não foi sequestrado — objetou a Rainha. — Ele veioespontaneamente.

— E ela o levou a um lugar onde havia três vias, e lhe disse que umaconduzia aoCéu, aoutra conduzia à terradasFadas, e a terceira conduzia aoInferno.Vês aquele caminho estreito, com densa cobertura de espinhos e desarças?Essaéatrilhadacorreçãomoral,emborapoucosperguntemporela. —Alecapontounadireçãodotúnelestreito.

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—Eleconduzaodomíniomundano—disseaRainha,comdoçura.—Seupovooconsideracelestialosuficiente.

— Foi assim que Sebastian chegou à Cidadela Adamant, auxiliado porguerreirosqueaClavenãopodiaver—disse Jace,comnojo.—Eleusouestetúnel. Os guerreiros caram no reino das fadas, onde não poderiam serrastreados.EpassaramporaquiquandoSebastianprecisoudeles.—JacelançouumolharsombrioàRainha.—MuitosNephilimmorreramporsuacausa.

—Mortais—alegouaRainha.—Elesmorrem.Alecaignorou.—Ali—falou,eapontouparaotúnelcheiodefolhas.—Vaimaislongeno

reino das fadas. E esse— apontou adiante— é o caminho para o Inferno. Éparaondevamos.

— Eu sempre ouvi dizer que ele era calcado em boas intenções — disseSimon.

—Coloque seuspésno caminho e vocêdescobrirá,Diurno—emendou aRainha.

Jacegirouapontadalâminanascostasdela.—OquevaiimpedirasenhoradecontaraSebastianqueviemosatrásdele

quandonósadeixarmosparatrás?A Rainha não emitiu qualquer ruído de dor; somente contraiu os lábios.

Naquelemomento,elapareceuvelha,apesardajuventudeebelezadorosto.—Você fez uma boa pergunta. Emesmo quemematasse, há aqueles em

minhaCorte que contarão a ele sobre vocês, e ele adivinhará suas intenções,pois é inteligente.Vocêsnãopodemevitarque ele saiba, amenosquematemtodooPovodasFadasemminhaCorte.

Jace fez uma pausa. Ele segurava a lâmina sera m, a ponta encostada nascostas daRainha Seelie.A luz iluminava seu rosto, entalhando sua beleza empicos e vales, as maçãs do rosto pronunciadas e o ângulo do queixo. Elaalcançou a ponta do seu cabelo e o lambeu com fogo, como se ele estivesseusandoumacoroadeespinhosemchamas.

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Clary o observava, e os outros faziam o mesmo, em silêncio, oferecendoconfiança.Nãoimportaqualfosseadecisão,elesaapoiariam.

— Ora, vamos — disse a Rainha. — Você não tem estômago para tantamatança. Sempre foi o lho mais delicado de Valentim. — Os olhos delapairaramummomentosobreClary,emjúbilo.Você temumcoraçãosombrio,filhadeValentim.

—Prometa— disse Jace.— Sei que promessas signi cammuito para seupovo. Sei que você não conseguementir. Jure que não dirá nada sobre nós aSebastian,nemquepermitiráquealguémdesuaCorteofaça.

—Eu juro— respondeu a Rainha.— Juro que ninguémnaminhaCorte,pormeiodepalavrasouatos,contaráaelequevocêsestiveramaqui.

JaceseafastoudaRainha,baixandoalâminajuntoàlateraldocorpo.—Seiquevocêachaqueestánosenviandoparaamorte—disseele.—Mas

não vamos morrer assim tão facilmente. Não vamos perder esta guerra. Equandoformosvitoriosos,faremosvocêeseupovosangrarpeloquefizeram.

O sorriso da Rainha abandonou seu rosto. Eles se afastaram dela e, emsilêncio, começarama seguiro caminhoparaEdom;Claryolhoupor cimadoombro assim que saíram e viu o esboço da Rainha, imóvel, observando-os irembora,osolhosardendo.

Ocorredor faziaumacurvaao longee era comose tivesse sidoescavadopelofogonarochaqueocercava.Conformeoscincoavançavam,emtotalsilêncio,asparedesdepedraclaraaoredorescureciam,manchadasaquiealipor letescordecarvão,comoseapedraemsitivessequeimado.Ochãolisocomeçouaceder lugaraummaisrochoso,abritasendoesmagadadebaixodossaltosdasbotas.A fosforescêncianasparedes começou adiminuir;Alec retirou a pedradeluzenfeitiçadadobolsoeaergueuacimadacabeça.

Quando a luz se ampliou entre os dedos dele, Clary sentiu Simon candotensoaoseulado.

—Oquefoi?—murmurouela.—Algumacoisaestásemexendo.—Eleapontouumdedoparaassombras

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maisadiante.—Ali.Clarysemicerrouosolhos,masnãoviunada;avisãodevampirodeSimon

era melhor que a de um Caçador de Sombras. Do modo mais silenciosopossível, eladesembainhouHeosphorosedeualgunspassos,mantendo-senassombrasdas lateraisdo túnel. JaceeAlecmergulharamnumaconversa.ClarybateunoombrodeIzzyemurmurouparaela:

—Temalguémaqui.Oualgumacoisa.Isabelle não respondeu, apenas se virou para o irmão e fez um gesto: um

movimento complicado dos dedos. Os olhos de Alec mostraram que elecompreendeu,entãoelesevoltouparaJaceimediatamente.Claryselembroudaprimeiravezqueviraostrês,naboatePandemônio,anosdepráticafundindo-os numa unidade que pensava, semovimentava, respirava e lutava unida. Elanão conseguia evitar se perguntar, independentemente do que acontecesse epormaisdedicadaqueelafossecomoCaçadoradeSombras,sesempre cariaàmargem...

Subitamente,Alec virou amão para baixo, diminuindo a luz.Um clarão eumacentelha,eIsabellefoiparaoladodeClary,quedeumeia-volta,segurandoHeosphoros; daí ouviu os sons de uma luta: uma pancada e, em seguida, umgritodedormuitohumano.

—Parem!—gritouSimon,ealuzexplodiuaoredordeles.Foicomoseo ashdeumacâmerativessesidodisparado.Claryprecisoude

um segundo para adaptar os olhos à nova claridade. A cena a invadiulentamente:Jaceseguravaapedradeluzenfeitiçada,obrilhoirradiavaaoredordele como a luz de um pequeno sol. Alec, o arco erguido e travado. Isabelleapertava o cabo do chicote com força, a tira enrolada nos tornozelos de umvulto pequeno curvado contra a parede da caverna: um garoto, com cabelolouro-claroquecacheavaporcimadasorelhasligeiramentepontudas.

—Ai,meuDeus—murmurouClary, en andoaarmadevoltanocintoeindoemfrente.—Isabelle,pare.Estátudobem—disseela,caminhandoatéogaroto.Asroupasdeleestavamrasgadase sujas,ospés,descalçosepretosporcausada sujeira.Os braços tambémestavamnus, e haviamarcas de símbolos

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neles.SímbolosdeCaçadoresdeSombras.—PeloAnjo.—Izzyrecolheuochicote.Alecbaixouabestajuntoaocorpo.

Ogarotoergueuacabeçaeolhoucomexpressãosevera.—VocêéumCaçadordeSombras?—perguntouJaceemtomincrédulo.Ogarotovoltouaolharcomexpressãoseveraeaindamaisferoz.Haviaraiva

em seus olhos, porém eramais que isso: havia angústia emedo. Não restavadúvidadequemele era.Tinhaosmesmos traçosdelicadosda irmã,omesmoqueixoanguloso,eocabeloeradacordetrigodescorado,cacheadonaspontas.Eletinhacercade16anos,recordouClary.Pareciamaisjovem.

—ÉMarkBlackthorn—informouClary.—OirmãodeHelen.Olhemparaorosto.Olhemparaamãodele.

Porummomento,Markpareceuconfuso.Clarytocounopróprioanel,eosolhosdele se iluminaramao compreender.Ele ergueu amãodireitamagrademenino. No dedo anelar reluzia o anel de família dos Blackthorn, com odesenhodeespinhosentrelaçados.

—Comovocêveiopararaqui?—perguntouJace.—Comosabiacomonosencontrar?

—EuestavacomosCaçadoresnosubterrâneo—disseMark,baixinho.—Ouvi Gwyn falando com alguns dos outros que vocês tinham aparecido nosaposentos da Rainha. Eu me esgueirei para longe dos Caçadores, eles nãoestavamprestandoatençãoemmim,aíprocureiporvocêseterminei...aqui.—Elefezumgestoparaotúnelemvolta.—Euprecisavafalarcomvocês.Tinhaque saber sobreminha família.—O rosto do garoto estava na sombra, masClarynotouostraçosenrijecendo.—Asfadasmedisseramqueestavamtodosmortos.Éverdade?

Houve um silêncio chocado, e Clary leu o pânico na expressão de Markenquanto ele ia dos olhos baixos de Isabelle, passando pela expressãoindiferentedeJaceatéaposturarígidadeAlec.

—Éverdade—disseMarkfinalmente—,nãoé?Minhafamília...— Seu pai foi Transformado. Mas seus irmãos e irmãs estão vivos —

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explicouClary.—EstãoemIdris.Elesescaparameestãobem.SeelaesperavaalgumalíviodapartedeMark, coudecepcionada.Ele cou

pálido.—Oquê?—Julian,Helen,osoutros...estãotodosvivos.—Clarypôsamãonoombro

dogaroto,noentantoelerecuou.—Estãovivosepreocupadoscomvocê.—Clary—disseJace,comumaadvertêncianavoz.Clarydeuumaolhadelaparaeleporcimadoombro; seráqueacoisamais

importanteasedizereraqueosirmãosdeMarkestavamvivos?—ComeuoubebeualgumacoisadesdequeoPovodasFadascapturouvocê?

—perguntouJace,avançandoparaexaminarorostodeMark.Marksedesviou,masnãoantesdeClaryouvirJaceinspirarcomforça.—Oquefoi?—perguntouIsabelle.— Os olhos dele — disse Jace, erguendo a pedra de luz enfeitiçada e

iluminandoorostodeMark.Maisumavez,Markfezumacareta,maspermitiuqueooutrooexaminasse.

Os olhos eram grandes, com cílios longos, como os de Helen; só que, aocontráriodosdela,ascoresdosolhosdogarotonãocombinavamentresi.UmeraazuldosBlackthorn,dacordaágua.Ooutroeradourado, enevoadopelassombras,numaversãomaisescuraqueodeJace.

Jaceengoliuemseco,visivelmente.—ACaçadaSelvagem—disseele.—Vocêéumdelesagora.Jaceexaminavaogaroto,comoseMarkfosseumlivroquepudesseserlido.—Estique asmãos—pediu en m, eMarkobedeceu. Jace as segurou e as

virouparamostrarospulsosdomenino.Clarysentiuagargantaapertar.Markvestia apenas uma camiseta, e os antebraços estavam riscados com marcasensanguentadasdechicote.ClarypensounomodocomoMarkrecuaraquandoela lhe tocou no ombro.Deus sabia quais eram os outros ferimentos debaixodasroupas.—Quandoistoaconteceu?

Markpuxouasmãos.Elastremiam.—Meliorn fez isso— respondeu.—Quando eleme pegou pela primeira

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vez.Dissequeparariaseeucomesseebebesseacomidadeles,entãoeucomi.Não achei que isso zesse diferença, seminha família estavamorta. E penseiqueasfadasnãoconseguissemmentir.

— Meliorn consegue — disse Alec sombriamente. — Ou, pelo menos,conseguia.

—Quandofoiqueaconteceuissotudo?—perguntouIsabelle.—Asfadassópegaramvocêhámenosdeumasemana...

Markbalançouacabeça.—EstoucomoPovodasFadashámuitotempo—respondeuele.—Nãosei

dizerquanto...—O tempo corre diferente no reino das fadas— disse Alec.—Algumas

vezes,maisrápido,outrasvezes,maisdevagar.Markfalou:—GwynmecontouqueeupertenciaàCaçadaequenãopoderiaabandoná-

los,amenosqueelesmedeixassemir.Éverdade?—Éverdade—disseJace.Markdesmoronoucontraaparededacaverna.ElevirouacabeçaparaClary.—Vocêosviu.Vocêviumeusirmãoseirmãs.EEmma?— Eles estão bem, todos eles. Emma também— respondeu Clary. Ela se

perguntava se aquilo ajudavadealgummodo.Ele tinha juradopermanecernoreinodas fadasporquepensavaquea família estivessemorta, e apromessa semantinha, apesar de se basear numa mentira. Seria melhor pensar que vocêhaviaperdidotudoecomeçardenovo?Ouseriamaisfácilsaberqueaspessoasquevocêamavaestavamvivas,mesmosenuncamaispudessevê-las?

Elapensounaprópriamãe,emalgumlugardomundoalémdo mdotúnel.Melhor saber que estavam vivos, pensou ela. Melhor que a mãe e Lukeestivessemvivosebem,equeelanuncaosvissenovamente,aestaremmortos.

—Helennãoconsegue tomarcontadeles.Nãosozinha—disseMark,umpoucodesesperado.—E Jules é jovemdemais.Não consegue tomar conta deTy;nãosabedoqueeleprecisa.ElenemsabefalarcomTy...—Markrespirou,trêmulo.—Deixemeuircomvocês.

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—Sabe quenãopode— respondeu Jace, emboranão conseguisse encararMark; ele tavao chão.—Sevocê jurou delidade àCaçadaSelvagem, agoravocêéumdeles.

— Me levem com vocês — repetiu Mark. Ele tinha o olhar assustado econfuso de alguém que havia sido mortalmente ferido, mas que ainda nãoconheciaaextensãodoferimento.—Nãoqueroserumdeles.Quero carcomminhafamília...

—NósvamosparaoInferno—disseClary.—Nãopoderíamos levarvocêconosco,mesmoquevocêpudessesairdoreinodasfadasemsegurança...

—Evocênãopode—repetiuAlec.—Setentarsair,vaimorrer.—Eupreferiamorrer—retrucouMark,eJacegirouacabeçarapidamente.

Osolhosdeleeramdouradosebrilhantes,quasebrilhantesdemais,comoseofogoemseuinteriorestivessejorrandoatravésdeles.

—Elespegaramvocê justamentepelosanguede fada,mas tambémporquevocê temsanguedeCaçadordeSombras.QuerempunirosNephilim—disseJace,comolhardeterminado.—MostreaelesdoqueumCaçadordeSombraséfeito;mostrequenãotemmedo.Vocêpodesobreviveraisso.

Nailuminaçãoondulantedapedradeluzenfeitiçada,MarkolhouparaJace.Lágrimastrilharampelasujeiraemseurosto,masosolhosestavamsecos.

—Nãoseioquefazer—disse.—Oquefaço?—Encontre um jeito de avisar osNephilim— respondeu Jace.—Vamos

para o Inferno, conformeClary já disse. Talvez a gente nunca volte. AlguémtemquecontaraosNephilimqueoPovodasFadasnãoéaliado.

— Os Caçadores me pegarão se eu tentar enviar uma mensagem. — Osolhosdogarotobrilharam.—Elesvãomematar.

—Nãosevocêforrápidoeinteligente—disseJace.—Vocêconseguefazerisso.Seiqueconsegue.

—Jace—chamouAlec,comoarcoaolado.—Jace,precisamosdeixarqueeleváantesqueaCaçadapercebaquedesapareceu.

—Muitobem—disseJace,ehesitou.ClarynotouqueJacesegurouamãodeMark;elepressionouapedradeluzenfeitiçadanapalmadamãodogaroto,

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onde ela bruxuleou e depois recuperou o brilho constante.— Leve isto comvocê — pediu Jace —, pois pode estar escuro no território debaixo damontanha,eosanospodemsermuitolongos.

Mark parou por um instante, a pedra de símbolos na mão. Parecia tãopequenonaluzondulantequeocoraçãodeClarybateusemquereracreditar—certamenteelespoderiamajudá-lo,eramNephilim,nãodeixariamosseusparatrás—,eentãoeledeumeia-voltaecorreu,seafastandodeles,ospésdescalçossilenciosos.

—Mark...—murmurouClary,eparou;eletinhaidoembora.Assombrasoengoliram,eapenasaluzquesedeslocavacompressadapedradosímboloeravisível,atéqueela tambémsemisturouàescuridão.ClaryergueuoolharparaJace. — O que você quis dizer com “o território debaixo da montanha”? —perguntouela.—Porquedisseisso?

Jacenãorespondeu;elepareciaconfuso.ElaimaginavaseMark,frágil,órfãoesolitário,dealgumaformafaziaJaceserecordardesimesmo.

—O território debaixodamontanha é o reinodas fadas—disseAlec.—Umnomemuitoantigoparaoreino.Elevai carbem—informoua Jace.—Vaificar.

— Você lhe deu sua pedra de luz enfeitiçada — falou Isabelle. — Vocêsempreteveaquelapedra...

—Dane-se a pedra de luz enfeitiçada— respondeu Jace, com violência, ebateu amão contra a parede da caverna; viu-se um breve clarão de luz e eleafastouobraço.Amarcadesuamãochamuscouapedradotúnel,esuapalmaaindabrilhava, como seo sanguenosdedos fosse fósforo.Eledeuuma risadaestranha,engasgada.—Eunãoprecisodela,dequalquerforma.

—Jace—disseClary,epôsamãonobraçodele. Jacenãoseafastou,mastambém não reagiu. Ela baixou o tom de voz.—Você não pode salvar todomundo—continuouela.

— Talvez não— retrucou Jace, enquanto a luz namão diminuía.—Masseriabomsalvaralguémparavariar.

— Pessoal — chamou Simon, que estivera estranhamente quieto durante

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todo o encontro com Mark, por isso Clary cou assustada por ouvi-lo falaragora.—Nãoseisevocêsconseguemenxergar,mastemalgumacoisa...algumacoisanofimdotúnel.

—Umaluz?—disseJace,avozcomumapontadesarcasmo.Osolhosdelebrilhavam.

—Ooposto.—Simonavançou,edepoisdehesitaruminstante,Clarytirouamãodo braço de Jace e o acompanhou.O túnel seguia retomais adiante, eentão se curvava demaneira sutil; na curva Clary viu o que Simon devia tervistoeparounomesmoinstante.

Escuridão.O túnel terminava emumvórtexde escuridão.Algumacoisa semexiadentrodoredemoinho,dandoformaàescuridãocomooventoquedavaformaàsnuvens.Ela tambémpodiaouvir aquilo,o ronronar eo ribombardoescuro,comoosomdemotores.

Osoutros se juntarama ela.Daí formaramuma la, observandoas trevas.Observando-asemover.Umacortinadesombrae,alémdela,odesconhecido.

Foi Alec quem falou, espantado, encarando as sombras que semovimentavam. O ar que soprava pelo corredor era quente e ardente, feitopimentajogadanocentrodeumafogueira.

—Isto—disseele—éacoisamaisdoidaquejáfizemos.—Esenãoconseguirmosvoltar?—perguntouIsabelle.Orubiaoredordo

pescoço estava pulsando, brilhando como um sinal de trânsito, iluminando orostodela.

— Então ao menos estaremos juntos — disse Clary, e olhou para oscompanheiros. Ela esticou amão e segurou amãode Jace e, do outro lado, amãodeSimon,apertandoambas.—Vamospassarpor isto juntose,dooutrolado,permaneceremosjuntos.Estábem?

Nenhumdelesrespondeu,masIsabellepegouaoutramãodeSimon,eAlec,adeJace.Todos caramparadosporummomento,observando.ClarysentiuamãodeJaceapertaradela,umapressãoquaseimperceptível.

Elesderamumpassoparaafrente,eassombrasosengoliram.

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—Espelho,espelhomeu—disseaRainha,colocandoamãosobreoespelho.—MostreminhaEstreladaManhã.

OespelhopendianaparededoquartodaRainha.Eracercadoporcoroasdeflores:rosasdasquaisninguémcortaraosespinhos.

A névoa no interior do espelho cou mais densa, e o rosto anguloso deSebastianapareceu.

—Minha bela dama—disse ele.A voz estava calma e composta, emborahouvessesangueemseurostoenasroupas.Eleseguravaaespada,easestrelasaolongodalâminaestavamescurecidascomacorescarlate.—Euestou...umpoucoocupadonomomento.

— Pensei que talvez você quisesse saber que sua irmã e irmão adotivoacabaram de sair deste lugar — avisou a Rainha. — Eles encontraram ocaminhoparaEdom.Estãoindoatévocê.

Orostodelesetransformoucomumsorrisocruel.—EelesnãofizeramvocêprometernãomecontarqueforamàsuaCorte?—Fizeram—disse aRainha.—Masnãodisseramnada sobre contarque

saíram.Sebastiandeuumagargalhada.—Elesmataramumdemeuscavaleiros—informouaRainha.—Respingou

sanguediantedomeutrono.Elesestãoalémdomeualcanceagora.Vocêsabequemeupovonão pode sobreviver às terras envenenadas.Terá que se vingarpormim.

AluznosolhosdeSebastianmudou.ARainhasemprehaviapercebidoqueoqueSebastian sentiapela irmã,epor Jace também,eraumtipodemistério,no entanto o próprio Sebastian era um mistério muito maior. Antes de eleaparecer para fazer sua oferta a ela, Seelie nunca teria cogitado uma aliançaverdadeira com os Caçadores de Sombras. O sentido peculiar de honra ostornava pouco con áveis. Foi a falta de honra de Sebastian que a fez con arnele. A delicada arte da traição era uma segunda natureza para o Povo dasFadas,eSebastianeraumartistadasmentiras.

—Servireiaosseus interessesdetodasasmaneiras,minhaRainha—disse

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ele.—Embreveseupovoeomeucontrolarãoasrédeasdomundo,e,quandonósfizermosisso,vocêpoderásevingardequalquerumqueatenhaafrontado.

Ela sorriu para ele. O sangue aindamanchava a neve na sala do trono, eSeelie ainda sentia o golpe da lâmina de Jace em seu pescoço. Não era umsorriso de verdade, mas ela era esperta o su ciente para deixar que algumasvezessuabelezafizessetodootrabalho.

—Euadorovocê—disseela.— Sim — falou Sebastian, e os olhos tremeluziram, a cor semelhante a

nuvensescuras.ARainhaseperguntoudistraidamenteseelepensavanosdoisdo mesmo modo que ela pensava: como amantes que, embora abraçados,seguravamumafacanascostasumdooutro,prontosparaferiretrair.—Eeugosto de ser adorado.— Ele sorriu.— Fico feliz por eles estarem chegando.Deixe-osvir.

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ParteDois

AqueleMundoInvertido

Equetodaaterradaíéenxofre,esal,eestáqueimando,quenãoésemeada,nemfértil,nemtemgramacrescendo.

—Deuteronômio29:23

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14OSonodaRazão

Claryestavaemumgramadosombrioqueseestendiaporumacolinaoblíqua.O céu jazia perfeitamente azul, pontuado por nuvens brancas aqui e ali. Aosseuspés,umcaminhodepedras seesticavaatéaentradadeumgrande solar,feitodepedrasdouradasbarrentas.

Elajogouacabeçaparatrás,olhandoparacima.Acasaeralinda:aspedrastinham cor de manteiga ao sol de primavera, coberta por treliças de rosasvermelhas, douradas e alaranjadas.Varandas de ferro se curvavam a partir dafachada, e havia duas imensas portas arqueadas demadeira cor de bronze, desuperfícieforjadacomdesenhosdelicadosdeasas.AsasparaosFairchild ,disseumavozsuave, tranquilizante,nofundodesuamente.Esteéo solarFairchild.Existeháquatrocentosanos,eexistiráporquatrocentosmais.

—Clary!—Suamãeapareceuemumadasvarandas, trajandoumelegantevestidocordechampanhe;oscabelosruivosestavamsoltos,eelapareciajovemebela.Os braços estavamexpostos,marcadospor símbolosnegros.—Oqueachou?Nãoélindo?

Clary seguiu o olhar damãe em direção ao gramado aplainado.Havia umarcoderosasarmadoao mdeumcorredor ladeadopor leirasdebancosdemadeira.Floresbrancasseespalhavamporali:asfloresbrancasquesócresciamemIdris.Oarestavacarregadopeloaromademel.

Elaolhounovamenteparaamãe,quenãoestavamais sozinhanavaranda.Luke encontrava-se atrás dela, com um braço em sua cintura. Ele usava umacamisa com mangas dobradas e calças formais, como se ainda estivesse searrumando para uma festa. Os braços dele também estavam marcados por

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símbolos:símbolosparaboasorte,perspicácia,força,amor.—Estápronta?—perguntoueleaClary.—Prontapara quê?— respondeu ela,mas eles nãopareceram ter ouvido.

Sorrindo, desapareceram para dentro da casa. Clary deu alguns passos pelatrilha.

—Clary!Eladeumeia-volta.Eleestavavindopelagramaemdireçãoaela—esguio,

comcabelosplatinadosquebrilhavamaosol,vestindoroupapretaformalcomsímbolos dourados no colarinho e nos punhos. Ele sorria, uma mancha desujeiranabochecha,elevantavaumamãoparabloquearobrilhodosol.

Sebastian.Estavaexatamenteigual,masaomesmotempototalmentediferente:eraele,

genuinamente,masaindaassimoformatoedisposiçãodasfeiçõespareciamtermudado, os ossosmenos proeminentes, a pele bronzeada pelo sol em vez depálida,eosolhos…

Osolhosbrilhavam,verdescomoagramadaprimavera.Elesempreteveolhosverdes,disseavoznamentedeClary.Aspessoassempre

seimpressionamcomoquantovocêssãoparecidos,ele,suamãeevocê.OnomedeleéJonathaneeleéseuirmão;elesempreprotegeuvocê.

—Clary—falouelenovamente—,vocênãovaiacreditar…— Jonathan!— disse uma vozinha, e Clary virou os olhos confusos para

agrarumagarotinhacorrendopelagrama.Ameninatinhacabelosruivos,nomesmo tom dos de Clary, que esvoaçavam atrás dela feito uma bandeira. Elaestava descalça, comumvestido verde de renda tão rasgadonos punhos e nabainhaquepareciaalfacepicada.Eladeviater4ou5anos,orostoestavasujoeera uma graça, e, quando alcançou Jonathan, estendeu os braços e ele seabaixouparacarregá-la.

Eladeuumgritinhoemdeleitequandoelealevantouacimadacabeça.—Ai, ai… pare com isto, diabinha— disse ele, enquanto ela puxava seu

cabelo.—Val,eudisseparaparar,ouvousegurá-ladecabeçaparabaixo.Estoufalandosério.

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—Val?— ecoou Clary.Mas é claro, o nomedela éValentina , disse a vozsussurrantenofundodesuamente.ValentimMorgensternfoiumgrandeheróide guerra;morreuembatalha contraHodgeStarkweather,masnão semantessalvaroCáliceMortale,juntamenteaele,aClave.QuandoLukesecasoucomsuamãe,elesfizeramumahomenagematravésdonomedafilha.

—Clary,façaelemesoltar,faça…aaaaii!—gritavaVal,enquantoJonathanaviravadecabeçaparabaixoeabalançava.Valexplodiaemrisadasquandoeleacolocounagrama,eelaolhouparaClarycomumpardeolhosazuiscomoosdeLuke.—Seuvestidoébonito—comentouela,comnaturalidade.

—Obrigada—respondeuClary,aindaentorpecida,eolhouparaJonathan,quesorriaparaairmãcaçula.—Issonoseurostoésujeira?

Jonathanesticouobraçoetocouaprópriabochecha.—Chocolate— explicou.—Você nunca vai imaginar o agrante que dei

emVal.Elaestavacomosdoispunhosen adosnobolodocasamento.Vouterque consertar.—Ele franziu o rosto paraClary.—Tudo bem, talvez eu nãodevesseterditoisto.Vocêpareceapontodedesmaiar.

—Estoubem—respondeuClary,puxandoumcachodecabelodemaneiratensa.

Jonathanlevantouasmãoscomosefosseapará-la.—Olhe,eufaçoumacirurgianobolo.Ninguémnuncavaisaberquealguém

comeu metade das ores. — Ele pareceu pensativo. — Posso comer a outrametade,sóparaigualar.

— Isso! — disse Val da grama, aos pés de Jonathan. Ela estava ocupadaarrancandodentes-de-leão,aspontasbrancasvoandoaovento.

—Alémdisso—acrescentouJonathan—,detestotocarnesteassunto,mastalvezvocêqueiracolocarossapatosantesdocasamento.

Claryolhoupara si.Ele tinharazão,elaestavadescalça.Descalçaeusandoum vestido dourado-claro. A bainha ao redor dos tornozelos parecia umanuvemcoloridapelopôrdosol.

—Eu…Quecasamento?Osolhosverdesdoirmãosearregalaram.

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—Seucasamento?Sabe,comJaceHerondale?Maisoumenosdestaaltura,alto,asmeninassãoloooucasporele…—Eleparou.—Vocêestáinsegura?Éisso?—Eleseinclinouparaela,emtomdeconspiração.—Porqueseforisso,posso passar você pela fronteira, para a França, clandestinamente. E nãocontareiseudestinoaninguém.Mesmoqueen empedaçosa adosdebambuporbaixodasminhasunhas.

—Eunão…—Claryoencarou.—Bambu?Eledeudeombroscomeloquência.—Pelaminhaúnica irmã, tirandoacriaturaquenomomentoseencontra

sentada no meu pé — Val deu um gritinho —, eu faria isso. Mesmo quesignifiquenãopresenciarIsabelleLightwoodemumvestidotomaraquecaia.

— Isabelle? Você gosta de Isabelle? — Clary sentia como se estivessecorrendonumamaratonaenãoconseguisserecuperarofôlego.

Elesemicerrouosolhosparaela.—Issoéumproblema?Elaéalgumacriminosaforagidaoucoisadotipo?—

Elepareceupensativo.—Issoseriasexy,naverdade.—Tudobem.Nãopreciso saberoquevocê acha sexy—respondeuClary

automaticamente.—Eca.Jonathansorriu.Umsorrisofelizedespreocupado;osorrisodealguémque

nuncativeramuitocomquesepreocuparalémdemeninas,ouseumadesuasirmãs havia comido o bolo de casamento da outra. Em algum lugar nasprofundezasdamentedeClary,elaviuolhosnegrosemarcasdechicote,masnãosabiaporquê.Eleéseuirmãoeelesemprecuidoudevocê.

— Certo — disse Jonathan. — Como se eu não tivesse passado pelosofrimentoduranteanos,comvocêdizendo“Ahhh,Jaceétãolindo.Vocêachaqueelegostademiiiim?”.

—Eu…—balbuciouClary, eparoude falar, sentindo-seumpouco tonta.—Sónãomelembrodelemepedindoemcasamento.

Jonathan se ajoelhou e puxou o cabelo de Val. Ela estava cantarolandosozinha,acumulandoumapilhademargaridas.Clarypiscou—tinhacertezadequeeramdentes-de-leão.

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— Ah, nem sei se ele pediu — respondeu Jonathan num tom casual. —Todosnóssimplesmentesabíamosquevocêsacabariamjuntos.Erainevitável.

— Mas eu devia ter o direito de escolher — protestou ela, quase numsussurro.—Eudeviaterpodidodizersim.

— Bem, você teria dito, não teria? — questionou ele, observando asmargaridasvoandopelagrama.—Porfalarnisso,vocêachaqueIsabellesairiacomigoseeuaconvidasse?

Claryprendeuarespiração.—MaseSimon?Eleolhouparaela,osolforteemseusolhos.—QueméSimon?Clary sentiu o chão desabar. Esticou o braço como se fosse se apoiar no

irmão, porém sua mão o atravessou. A grama verde, a mansão dourada, omenino e a menina na grama voaram para longe, e ela tropeçou, colidindocontraochãoviolentamente,machucandooscotoveloscomumadorquesubiupelosbraços.

Ela rolou para o lado, engasgando. Estava deitada em um pedaço de solovazio.Haviapedrasquebradasatravessandoochão;eosesqueletosdascasasdepedras incendiadas se assomavamsobrea guradela.Océu tinhaum tomdeaçocinza-esbranquiçado,marcadopornuvensnegras,comoveiasdevampiros.Era ummundomorto, ummundo desbotado, ummundo sem vida. Clary seencolheunochão,vendodiantedesinãoacascadeumacidadedestruída,masosolhosdoirmãoedairmãqueelajamaisteria.

Simonestavanafrentedajanela,assimilandoavistadeManhattan.Era uma visão impressionante. Da cobertura do Carolina, dava para ver o

CentralPark,oMetropolitanMuseum,osprédiosaltosdocentro.Anoitecaía,e as luzes da cidade começavam a brilhar, umapor uma, comouma camadefloreselétricas.

Flores elétricas. Ele olhou ao redor, franzindo o rosto de formacontemplativa.Eraumafrasebonita;talvezdevesseanotá-la.Ultimamentenão

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vinha tendo tempo nenhum para se esmerar em letras de música; o tempoestava sendo consumido por outras coisas: promoção, turnê, autógrafos,aparições. Às vezes era difícil lembrar que sua principal função era fazermúsica.

Mesmo assim. Era um bom problema para se ter. O céu do crepúsculotransformavaa janelaemumespelho.Simonsorriuparaopróprio re exonovidro. Cabelos desgrenhados, jeans, camiseta velha; dava para ver o cômodoatrásde si, hectaresdepisodemadeira, aço reluzente emóveisde couro,umquadrocommolduradouradasolitárioeelegantenaparede.UmChagall—ofavoritodeClary,todocheiodetonsrosados,azuiseverdes,incongruentecomamodernidadedoapartamento.

Havia umvasodehortênsias na ilha da cozinha, umpresente de suamãe,parabenizando-o por um show com a SteppingRazor na semana anterior. Teamo,diziaobilheteanexado.Tenhomuitoorgulhodevocê.

Elepiscou.Hortênsias;queestranho.Sehaviauma orfavoritaparaele,erarosa,eamãesabiadisso.Ele seafastouda janelaeobservouovasocommaiscuidado.Eram rosas. Simon balançou a cabeça para desanuviá-la. Rosasbrancas.Sempreforamrosasbrancas.Certo.

Ouviu um tilintar de chaves, e a porta foi aberta, permitindo a entrada deumameninapequena,comlongoscabelosruivoseumsorrisocontagiante.

—Ai,meuDeus—disseClary,meiorindo,meiosemfôlego.Ela fechouaportaatráse seapoioucontraela.—O lobbypareceumzoológico. Imprensa,fotógrafos;vaiserumaloucurasairhoje.

Elaatravessouocômodo,jogandoaschavesnamesa.Estavacomumvestidolongo, seda amarela estampada com borboletas coloridas, e uma presilha deborboleta no longo cabelo ruivo. Parecia calorosa, receptiva e amorosa, elevantouosbraçosaoseaproximar,entãoSimouabeijou.

Exatamentecomofaziatodososdiasquandoelachegavaemcasa.CheiravaaClary,perfumeegiz,eosdedosestavammanchadosdecor.Ela

passouosdedospelocabelodeleenquantosebeijavam,puxando-oparabaixo,

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rindodeencontroàsuabocaquandoSimonquasesedesequilibrou.— Você vai ter que começar a usar salto, Fray — disse ele, os lábios na

bochechadela.—Odeiosaltoalto.Vocêvaiterqueaprendera lidarcomisso,oucomprar

umaescadaportátilparamim—disseela,soltando-o.—Anãoserquequeirametrocarporumagroupiebemalta.

—Nunca—a rmouele, colocandoumcachodocabelodeClary atrásdaorelha.— Uma groupie bem alta saberia quais são todas as minhas comidasfavoritas?Iriase lembrardequandoeutinhaumacamaemformadecarrodecorrida? Saberia como me vencer sem dó no Scrabble? Se disporia a aturarMatt,KirkeEric?

—UmagroupiefariamaisdoqueaturarMatt,KirkeEric.— Seja boazinha— alertou ele, e sorriu para ela.—Você vai ter queme

aturar.—Vousobreviver—respondeuela,tirandoosóculosdeleeoscolocandona

mesa. Ela o encarou, olhos arregalados e escuros. Dessa vez o beijo foi maisquente. Ele a abraçou, puxando-a contra si enquanto ela sussurrava:—Eu teamo;sempreteamei.

—Eutambémteamo—ecoouele.—MeuDeus,euteamo,Isabelle.Ele a sentiu enrijecer em seus braços, e, em seguida, o mundo ao redor

pareceu ganhar linhas negras, como vidro estilhaçado. Ele ouviu um gemidoagudo e cambaleou para trás, tropeçando, caindo, sem atingir o chão, masgirandoeternamentenoescuro.

—Nãoolhe,nãoolhe…Isabelleriu.—Nãoestouolhando.Haviamãoscobrindoosolhosdela:asmãosdeSimon,esguiase exíveis.Os

braçosdeleaenvolviam,eelesestavamcaminhandoparaafrentejuntos,rindo.Ele a agarrouno instante emque ela atravessou a porta, abraçando-a quandoeladerrubouassacolasdecompra.

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—Tenhoumasurpresaparavocê—disseele,sorrindo.—Fecheosolhos.Semolhar.Não,ésério.Nãoestoubrincando.

— Detesto surpresas — protestava Isabelle agora. — Sabe disso. — Elaconseguia ver só a pontinha do tapete sob as mãos de Simon. Ela mesma ohaviaescolhido,eeraespesso,rosa intensoepeludo.Oapartamentodeleserapequeno e aconchegante, uma miscelânea de Isabelle e Simon: instrumentosmusicaisecatanas,pôsteresantigosecolchascor-de-rosa.Simontinhatrazidoseu gato, Yossarian, quando se mudaram, e Isabelle protestou por isso, masgostousecretamente:elasentiaafaltadeChurchdesdequedeixaraoInstituto.

O tapete rosadesapareceu, e agoraos saltosde Isabelle estalavamcontraopisodelajotasdacozinha.

—Tudobem—disseSimon,etirouasmãos.—Surpresa!—Surpresa!—Acozinhaestavacheiadegente:opai e amãede Isabelle,

Jace,AleceMax,Clary,JordaneMaia,Kirk,MatteEric.Magnusseguravaumavela de faíscas prateadas e acenava com ela de um lado a outro enquanto asfagulhas voavampor todos os lados, aterrissando nas bancadas de pedra e nacamiseta de Jace, fazendo-o uivar. Clary segurava uma faixa um poucodesajeitadaquedizia:Felizaniversário,Isabelle.Elalevantouafaixaeacenou.

IsabellesevirouparaSimoncomaresdeacusação.—Vocêplanejouisto!—Claroqueplanejei— justi cou ele, puxando-apara si.—Caçadoresde

Sombraspodemnãoseimportarcomaniversários,maseumeimporto.—Elebeijouaorelhadela,murmurando“Vocêmerecetudo,Izzy”,antesdesoltá-laedeafamíliaatacá-la.

Houveumarodadadeabraços,presentesebolo—preparadoporEric,quedefatotinhatalentoparaacriaçãodedoces,edecoradoporMagnuscomumacoberturaresplandecentecujosaboreramelhorqueaaparência.RobertestavacomosbraçosemtornodeMaryse,queseapoiavanele,parecendoorgulhosaecontente, aopassoqueMagnus,queacariciavaocabelodeAleccomumadasmãos, tentava convencer Max a usar um chapéu de festa. Max, com toda amarra de um menino de 9 anos, não iria concordar. Ele afastou a mão de

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Magnusimpacientementeedisse:—Izzy,eufizafaixa.Vocêviuafaixa?Elaolhouparaafaixafeitaamão,agoratodasujadecobertura,emcimada

mesa.ClarydeuumapiscadelaparaIzzy.—Ficoulinda,Max;obrigada.—Euiaescreversuaidade—disseele—,masJacefalouquedepoisdos20a

pessoaésimplesmentevelha,entãonãofazdiferença.Jacefreouogarfonotrajetoatéaboca.—Eufaleiisso?— Bela maneira de transformar todos nós em anciãos — disse Simon,

afastandooprópriocabeloparatrásparasorrirparaIsabelle.Elasentiuumapontadadedornopeito;eraovolumedoamorporele,por

fazer aquilo por ela, por sempre pensar nela. Não conseguia se lembrar denenhuma ocasião na qual não o tivesse amado, ou con ado nele, e Simonjamaisderaqualquermotivoparaocontrário.

Isabelle saiu do banco no qual estava sentada e se ajoelhou diante de seuirmãozinho. Dava para ver os re exos de ambos no aço inox da geladeira: ocabelo escuro de Izzie cortado na altura do ombro agora— ela se lembravavagamentedequando,háanos, seucabeloalcançavaacintura—,eoscachoscastanhosdeMax,eosóculos.

—Sabequantosanostenho?—perguntouela.—Vinteedois—respondeuMax,comumtomdevozqueindicavaqueele

nãoentendiaporqueelafaziaumaperguntatãoestúpida.Vinteedois ,pensouela.EraseteanosmaisvelhaqueMax,Maxasurpresa,

Maxoirmãozinhoinesperado.Max,quedeveriater15anosagora.Ela engoliu em seco, sentindo frio de repente. Todo mundo continuava

conversando e rindo ao redor, mas as risadas soavam distantes e ecoavam,como se viessem de muito, muito longe. Ela via Simon, apoiando-se nabancada, os braços cruzados, os olhos escuros ilegíveis enquanto ele aobservava.

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—Equantosanosvocêtem?—perguntouIsabelle.—Nove—respondeuMax.—Sempretive9anos.Isabelle o encarou. A cozinha começou a tremular. Dava para enxergar

atravésdela,comoseIsabelleestivesseolhandoporumtecidoestampado:tudosetornandotransparente,tãomutávelquantoágua.

—Meubebê—sussurrouela.—MeuMax,meuirmãozinho,porfavor,porfavor,fique.

—Semprevouter9anos—falouele,etocouorostodela.OsdedosdeMaxatravessaram a irmã, como se ele estivesse passando a mão por fumaça. —Isabelle?—disseele,comavozesmorecendo,esumiu.

Isabelle sentiu os joelhos cederem.Caiu no chão.Não haviamais risos aoredor, nem a cozinha com azulejos charmosos, apenas cinzas e pedrasescurecidas.Elaergueuasmãosparaconteraslágrimas.

O Salão dos Acordos estava cheio de estandartes azuis, cada qual estampadocomobrasãodouradodafamíliaLightwood.Quatromesaslongastinhamsidoarrumadasfrenteafrente.Nocentro,umpalanquecomespadaseflores.

Alecestavasentadoàmesamaislonga,nacadeiramaisalta.ÀsuaesquerdaestavaMagnus,eàdireita, sua famíliaseestendiaao longodamesa: IsabelleeMax,RoberteMaryse;Jace;eao ladodeJace,Clary.HaviaprimosLightwoodtambém, alguns dos quais ele não encontrava desde a infância; todostransbordandodeorgulho,masnenhum rostobrilhava tantoquantoode seupai.

—Meu lho— repetia ele para quemquisesse ouvir.Neste instante tinhacercadoaConsulesa,quepassavapelamesacomumataçadevinhonamão.—Meu lhovenceuabatalha;aquelealiémeu lho.OsangueLightwoodsempreaparece;nossafamíliasemprefoideguerreiros.

AConsulesariu.—Economizeparaodiscurso,Robert—advertiuela,dandoumapiscadela

paraAlecporsobreabordadataça.—Ai,meuDeus,odiscurso—falouAlec,horrorizado,escondendoorosto

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nasmãos.Magnuspassouas juntasdosdedosgentilmentepelascostasdeAlec,como

seestivesseafagandoumgato.Jaceolhouparaamboseergueuassobrancelhas.—Comosetodosnósjánãotivéssemosestadoemumsalãocheiodegente

dizendocomosomosincríveis—provocouele,equandoAlecoolhoufeio,elesorriu.—Ah,entãosóaconteceucomigo,mesmo.

—Deixemeunamoradoempaz—censurouMagnus.—Conheçofeitiçoscapazesdevirarsuasorelhasdoavesso.

Jace tocou as próprias orelhas com preocupação enquanto Robert selevantava,acadeirasendoarrastadaparatrás,ebateudeleveogarfonataça.Osomecooupelosalão,eosCaçadoresdeSombrascaíramnosilêncio,olhandoparaamesadosLightwoodcomexpectativa.

— Estamos aqui reunidos — disse Robert, esticando os braçosexpansivamente—parahomenagearmeu lho,AlexanderGideonLightwood,quedestruiusozinhoasforçasdosCrepuscularesederrotouembatalhao lhode Valentim Morgenstern. Alec salvou a vida de nosso terceiro lho, Max.Juntamente a seu parabatai, JaceHerondale, tenhoorgulhoemdizerquemeulhoéumdosmaioresguerreirosque jáconheci.—Elesevirouesorriupara

Alec e Magnus. — É preciso mais que um braço forte para ser um grandeguerreiro—prosseguiu.—Éprecisoumagrandementeeumgrandecoração.Porissotambémqueriacompartilharnossaoutraboanotícia.Ontemmeu lhoficounoivodeseuparceiro,MagnusBane…

Umcorodevibraçõesexplodiu.Magnusaceitoucomumacenomodestodegarfo. Alec deslizou pela cadeira, as bochechas ardendo. Jace olhoupensativamente.

— Parabéns — disse ele. — Tenho a sensação de que perdi umaoportunidade.

—O…oquê?—gaguejouAlec.Jacedeudeombros.—Sempre soubeque você gostavademim, e eumeioque gostavade você

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também.Acheiquedeviatecontar.—Oquê?—repetiuAlec.Clarysesentouereta.—Sabe—começouela—,achamqueexistealgumachancedevocês…—

ElagesticulouentreJaceeAlec.—Seriasexy.—Não—declarouMagnus.—Souumfeiticeiromuitociumento.— Somosparabatai — falou Alec, recobrando a voz. — A Clave iria…

digo…éilegal.—Ora, vamos—disse Jace.—AClavedeixaria você fazerqualquer coisa

que quisesse. Veja, todos te amam.— Ele gesticulou para o salão repleto deCaçadores de Sombras. Todos vibravam enquanto Robert discursava, algunslimpavam lágrimas. Uma menina em uma das mesas menores levantou umaplacaquediziaAlecLightwood,nósteamamos.

—Achoquevocêsdeveriamsecasarnoinverno—sugeriuIsabelle,olhandodesejosa para o enfeite de mesa oral branco. — Nada muito grandioso.Quinhentasouseiscentaspessoas.

—Isabelle—resmungouAlec.Eladeudeombros.—Vocêtemmuitosfãs.—Ah, pelo amordeDeus—disseMagnus, e estalouos dedosna cara de

Alec. Seus cabelos negros estavam arrepiados, e os olhos verde-douradosbrilhavamdeirritação.—ISTONÃOESTÁACONTECENDO.

—Oquê?—Alecseespantou.— É uma alucinação— falouMagnus—, ocasionada por sua entrada no

reinodemoníaco.Provavelmentecausadaporumdemônioà espreitapertodaentrada do mundo e que se alimenta dos sonhos de viajantes. Desejos têmmuito poder — acrescentou, examinando o próprio re exo na colher. —Principalmenteosdesejosmaisprofundosdenossoscorações.

Alecolhouemvoltadosalão.—Esteéodesejomaisprofundodomeucoração?—Claro—respondeuMagnus.—Seupaiorgulhosodevocê.Você,oherói

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domomento.Eu,amandovocê.Todomundoteaprovando.AlecolhouparaJace.—Certo,eacoisacomJace?Magnusdeudeombros.—Seilá.Essapartefoisóesquisita.— Então preciso acordar.— Alec pôs asmãos sobre amesa, esticadas; o

anel Lightwood brilhou em seu dedo. Tudo aparentava ser real, parecia real,mas ele não conseguia se lembrar das palavras de seu pai. Não conseguia selembrar de ter derrotado Sebastian, nem de ter vencido uma guerra. NãoconseguiaselembrardetersalvadoMax.

—Max—sussurrou.AspupilasdeMagnusdilataram.—Sintomuito—disseele.—Osdesejosdenossoscoraçõessãoarmasque

podemserusadascontranós.Lute,Alec.—EletocouorostodeAlec.—Nãoéisto que você quer, este sonho. Demônios não compreendem coraçõeshumanos, não muito bem. Enxergam como se fosse através de um vidrodistorcido e lhe mostram o que você deseja, mas de um jeito deformado eerrado. Use estes erros para se retirar do sonho. A vida é cheia de perdas,Alexander,masémelhorqueisso.

—Meu Deus— falou Alec, e fechou os olhos. Sentiu omundo ao redorrachar, como se estivesse se livrando de uma casca. As vozes ao redordesapareceram,assimcomoo tatodacadeiranaqualestava sentado,ocheiroda comida, o clamor dos aplausos e, nalmente, o toque deMagnus em seurosto.

Seus joelhosatingiramochão.Ele engasgoue abriuosolhos.Ao redor, sópaisagem cinza. O fedor de lixo atingiu suas narinas, e ele recuouinstintivamente quando uma coisa avançou em cima dele — um monte defumaça rudimentar, um aglomerado de olhos amarelos brilhantes penduradosnaescuridão.Olhavamparaeleenquantotentavapegaroarcoeprepararumaflecha.

A coisa rugiu e avançou, atacando-o como uma onda quebrando na praia.

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Alec soltou a echa marcada por símbolos — a qual esvoaçou no ar e seenterrou no demônio de fumaça. Um grito estridente rachou o ambiente, odemônio pulsando em torno da echa enterrada em seu corpo, tentáculos defumaçaseexpandindo,arranhandoocéu…

Eodemônioevaporou.Alecselevantou,armandomaisuma echa,egirou,examinando a paisagem. Parecia-se com as fotos que ele já tinha visto dasuperfície da lua, marcada e cinzenta, e no alto havia um céu chamuscado,cinzaeamarelo,semnuvens.Osolestavaalaranjadoebaixo,umabrasamorta.Nãohaviasinaldosoutros.

Lutandocontraopânico,elecorreuparaotopodacolinamaispróxima,aídesceupelooutrolado.Oalíviooatingiucomoumaonda.Haviaumadepressãoentreosdoismontesdecinzaepedra,eagachadanaquelepontoestavaIsabelle,lutandoparaselevantar.Alecdesceupeloladoíngremedacolinaeatomouemumapertodeumbraçosó.

—Iz—disseele.Ela emitiu um ruído suspeitosamente parecido com uma fungada e se

afastou.— Estou bem — disse ela. Tinha marcas de lágrimas no rosto; ele se

perguntava o que ela teria visto.Os desejos de nossos corações são armas quepodemserusadascontranós.

—Max?—perguntouele.Isabelle assentiu, os olhos brilhando de raiva e com lágrimas não

derramadas.Claroqueestariairritada.Eladetestavachorar.—Eutambém—falouele,eemseguidagirouaoouvirosomdeumpasso,

meioquepuxandoIsabelleparatrásdesi.EraClarye,ao ladodela,Simon.Ambospareciamespantados.Isabellesaiu

detrásdeAlec.—Vocêsdois…?— Estamos bem — respondeu Simon. — Nós… vimos coisas. Coisas

estranhas. — Simon não conseguiu encarar Isabelle, e Alec cou seperguntando o que ele teria imaginado. Quais eram os sonhos e desejos de

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Simon?Alecnuncatinhaparadoparapensararespeito.—Foiumdemônio—explicouAlec.—Dotipoquesealimentadesonhose

desejos.Euomatei—OolhardelefoideClaryeSimonparaIsabelle.—OndeestáJace?

Claryempalideceusobasujeiranorosto.—Achamosqueeleestivessecomvocês.Alecbalançouacabeça.—Eleestábem—falou.—Eusaberiasenãoestivesse…MasClaryjátinhadadomeia-voltaeestavapraticamentecorrendodevolta

pelo caminho de onde viera; após um instante, Alec a seguiu, e os outroszeramomesmo.Elasubiuaostropeçose,depois,subiumaisumpouco.Alec

percebeuque ela estavaprocurandoumpontomais alto,deonde a vista seriamelhor. Dava para escutá-la tossindo; os pulmões do próprio Alec tambémpareciamcobertosdecinzas.

Morto, pensou ele.Tudo nestemundo estámorto e queimado, reduzido apó.Oqueaconteceuaqui?

No topo da colina havia ummarco fúnebre— um círculo de pedras lisas,comoumpoço seco.Sentadonabeiradaspedras, estava Jace,olhandoparaochão.

—Jace!—Claryparounafrentedele,ajoelhouelhesegurouosombros.Elea encarou com o olhar vazio. — Jace — repetiu ela, desesperada. — Jace,acorde.Nãoéreal.Éumdemônionosfazendovercoisasquequeremos.Alecomatou.Tudobem?Nãoéreal.

—Eu sei.—Ele levantou a cabeça, eAlec sentiu o olhar comoumgolpe.Jacepareciaestarsofrendoumahemorragia,apesardeestarclaramenteinteiro.

—Oquevocêviu?—perguntouAlec.—Max?Jacebalançouacabeça.—Nãovinada.—Tudobem,oquequerquetenhavisto...Estátudobem—consolouClary.

Elase inclinou, tocouorostode Jace;Alec foi lembradode forma intensadosdedosdeMagnusemsuabochechanosonho.Magnusdeclarandoqueoamava.

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Magnus,quetalveznemestivessemaisvivo.—EuviSebastian—falouela.—EuestavaemIdris.OsolarFairchildcontinuavadepé.MinhamãeestavacomLuke.Eu… iahaverumcasamento.—Ela engoliu em seco.—E eu tambémtinha uma irmãzinha. Foi batizada em homenagem a Valentim. Ele era umherói. Sebastian estava lá, mas ele parecia bem, estava normal. Eme amava.Comoumirmãodeverdade.

—Que bagunça— comentou Simon. Ele se aproximou de Isabelle, e elescaram ombro a ombro. Jace esticou o braço e passou um dedo por um dos

cachosdeClary, cuidadosamente,deixando-o se enrolar em suamão.Alec selembroudaprimeiravezemquepercebeuque Jaceestavaapaixonadoporela:observava seuparabataidooutro ladoda sala, assistindoaosmovimentos.Eleselembravadeterpensado:elaétudoqueelevê.

—Todostemossonhos—disseClary.—Issonãosigni canada.Lembra-sedoqueeudisse?Vamosficarjuntos.

Jace a beijou na testa e se levantou, estendendo a mão; após um instanteClaryasegurou,eficoudepéaoladodele.

—Eunãovinada—justificou-seele,gentil.—Tudobem?Elahesitou,claramentenãoacreditando;ecomamesmaclareza,nãoqueria

insistirnoassunto.—Tudobem.— Detesto tocar no assunto — falou Isabelle —, mas alguém viu algum

caminhodevolta?Alec pensou na corrida pelas colinas do deserto, enquanto procurava os

outros, examinando o horizonte. Viu os companheiros empalideceremenquantoolhavamemvolta.

—Eu acho—disse ele—quenão temcaminhode volta.Nãodaqui, nãopelotúnel.Achoquefechoudepoisquepassamos.

—Então foiumaviagemsóde ida— falouClary, comum leve tremornavoz.

— Não necessariamente — interveio Simon. — Temos que chegar a

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Sebastian,sempresoubemosdisso.E,quandochegarmos,Jacepodetentarfazeramágicadelecomofogocelestial,sejaláoqueissofor…semofensa…

—Nãoofendeu—respondeuJace,voltandoosolhosparaocéu.—Eumavezqueresgatarmososprisioneiros—emendouAlec—,Magnus

podenosajudaravoltar.OupodemosdescobrircomoSebastianvaievem;estenãopodeseroúnicocaminho.

—Issoéumtantootimista—comentouIsabelle.—Esenãoconseguirmosresgatarosprisioneiros,ounãoconseguirmosmatarSebastian?

— Aí ele vai nos matar — disse Jace. — E não vai ter importância nãosabermoscomovoltar.

Claryaprumouosombrospequenos.—EntãoémelhoragenteencontrarlogoSebastian,não?Jace pegou sua estela e tirou a pulseira de Sebastian do pulso. Fechou os

dedos em torno da peça, usando a estela para desenhar um símbolo derastreamentonaparte de cimadamão.Ummomento se passou, em seguida,mais um; um olhar de concentração intensa passou pelo rosto de Jace, comoumanuvem.Elelevantouacabeça.

—Elenãoestátãolonge—informou.—Aumdiadedistância,talvezdoisdias caminhando a partir daqui. — Ele recolocou a pulseira no pulso. Alecencarouapulseira,depoisencarouJace.Senãopuderdobraroscéus,movereioinferno.

—Usarapulseiravaimeimpedirdeperdê-la—explicou-seJace,e,quandoAlecnãorespondeu,deudeombrosecomeçouadesceracolina.—Temosqueir—disseele.—Temosumlongocaminhoapercorrer.

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15EnxofreeSal

—Porfavor,nãoarranqueminhamão—disseMagnus.—Eugostodestamão.Precisodestamão.

—Humpf—disseRaphael, que estava ajoelhado ao ladodele, asmãosnacorrentequeseesticavaentreaalgemanamãodireitadeMagnusenocírculodeadamas enterrado no chão.— Só estou tentando ajudar.— Ele bateu nacorrente com força, eMagnusgritoudedor eo encarou.Raphael tinhamãosmagras,demenino,masissoerailusório:elepossuíaaforçadeumvampiroe,no momento, estava empregando essa força no propósito de arrancar ascorrentesdeMagnuspelaraiz.

A cela onde se encontravam era circular. O chão era feito de pedras degranito, sobrepostas.Bancosdepedraornavamos interioresdasparedes.Nãohaviaportaperceptível,apesardehaverjanelasestreitas—tãoestreitasquantoechas. Não tinham vidro, e pela profundidade delas dava para notar que as

paredestinhamnomínimo30centímetrosdeespessura.Magnus tinha acordado naquele recinto, com um círculo de Caçadores de

Sombrasmalignostrajandovermelhoaoredordele,prendendoascorrentesnochão.Antesdeaportasefecharatrásdeles,viuSebastiannocorredor lá fora,sorrindoparaelecomoumceifador.

Agora Luke estava diante de uma das janelas, olhando para fora.Nenhumdeles tinha recebidomuda de roupas, e ele continuava com a calça social e acamisa que usara para o jantar em Alicante. A frente estava marcada pormanchascordeferrugem.Magnustinhaque carlembrandoasiquesetratavade vinho. Luke parecia desvairado, o cabelo desgrenhado, uma das lentes dos

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óculosrachada.—Estávendoalgumacoisa?—perguntavaMagnusagora,enquantoRaphael

iaatéooutroladoparaverseseriamaisfáciltiraracorrentedamãoesquerda.Magnuseraoúnicoacorrentado.Quandoacordou,LukeeRaphael jáestavamconscientes,Raphael deitado emumdos bancos enquantoLuke chamavaporJocelynatéficarrouco.

—Não—respondeuLukesucintamente.Raphaelergueuumasobrancelhapara Magnus. Ele estava com o cabelo bagunçado e com aspecto jovial,enterrandoosdentesnolábioenquantoasjuntasembranqueciamaoredordascorrentes. Eram longas o bastante para queMagnus sentasse ereto, mas nãodava para car de pé. — Só fumaça. Fumaça cinza-amarelada. Talvezmontanhasaolonge.Édifícildizer.

—AchaqueaindaestamosemIdris?—perguntouRaphael.—Não—respondeuMagnussemrodeios.—NãoestamosemIdris.Posso

sentirnomeusangue.Lukeolhouparaele.—Ondeestamos?Magnus conseguia sentir o sangue fervendo, o início de uma febre.

Formigandoporseusnervos,secandosuaboca,fazendoagargantadoer.—EstamosemEdom—disse.—Umadimensãodemoníaca.Raphaelderrubouacorrenteepraguejouemespanhol.— Não consigo libertá-lo — falou, claramente frustrado. — Por que os

serviçaisdeSebastiansóacorrentaremvocê,enósnão?—PorqueMagnusprecisadasmãosparafazermágica—esclareceuLuke.RaphaelolhouparaMagnus,surpreso.Magnusmeneouassobrancelhas.—Não sabia disso, vampiro?— falou.— Achei que a essa altura já teria

percebido;estávivohátempoosuficiente.— Talvez. — Raphael sentou-se nos calcanhares. — Mas nunca me

relacioneimuitocomfeiticeiros.Magnusoencarou,comumolharquedizia:nósdoissabemosqueissonãoé

verdade.Raphaeldesviouoolhar.

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—Uma pena— disseMagnus.—Caso Sebastian tivesse feito o dever decasa,saberiaquenãopossofazermágicanestereino.Nãohánecessidadedisto.—ElebateuascorrentescomoofantasmadeMarley.

—EntãoéaquiqueSebastianvemseescondendoduranteessetempotodo— falou Luke. — Por isso não conseguíamos rastreá-lo. Esta é a base deoperações.

—Ou—disseRaphael—este aqui é sóum lugarnoqualnos abandonouparamorrermoseapodrecermos.

—Elenãosedariaotrabalho—emendouLuke.—Senosquisessemortos,jáestaríamosmortos,nóstrês.Eletemalgumplanomaior.Sempretem.Sónãoseiporquê...—Eleparou,olhandoparaasprópriasmãos,ederepenteMagnusse lembrou de Luke muito mais jovem, cabelos esvoaçantes, feiçõespreocupadasecoraçãoaberto.

—Elenãovaimachucá-la—afirmouMagnus.—Refiro-meaJocelyn.—Podemachucar—respondeuRaphael.—Eleémuitolouco.— Por que não a machucaria? — Luke parecia segurar um medo que

ameaçava explodir.— Porque émãe dele? Não é assim que funciona. Não éassimqueSebastianfunciona.

—Nãoporqueémãedele—explicouMagnus.—PorqueémãedeClary.Elaéumapeçadenegociação.Eelenãovaiabrirmãodelatãofacilmente.

Estavamandandopeloquepareciamhorasagora,eClarysesentiaexausta.Osoloacidentadodi cultavaacaminhada.Nenhumadascolinaseramuito

alta,masnãohaviatrilhaseeramcobertasporpedrasxistosasedenteadas.Àsvezeshaviaplaníciesgrudentasealcatroadas,eospésafundavamquaseatéoscalcanhares,arrastandoacaminhada.

Eles pararam para aplicar símbolos para força e rmeza nos pés, e parabeber água.O lugar era seco, todo cheio de fumaça e cinzas, com alguns riosbrilhantes de pedras fundidas passando pela terra queimada. Seus rostos jáestavammanchadosdesujeiraecinza,ouniformecobertodepó.

— Economizem a água— alertou Alec, fechando sua garrafa de plástico.

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Tinhamparadoàsombradeumapequenamontanha.Otoporecortadoerguia-seempicoseameiasquelembravamumacoroa.—Nãosabemosquantotempovamospassarviajando.

Jace tocou a pulseira e, em seguida, o símbolo de rastreamento. Franziu orostoparaaestampanapartedecimadamão.

—Estessímbolosqueacabamosdecolocar—disse.—Alguémmemostrealgum.

Isabelleemitiuumruído impaciente,emseguidaesticouopulso,ondeAlechaviadesenhadoumsímbolodeVelocidademaiscedo.ElapiscouparaaMarca.

—Estádesbotando—falou,comumasúbitaincertezanavoz.—Meusímboloderastreamentotambém,eosoutros—disseJace,olhando

para a própria pele. — Acho que os símbolos desbotam mais depressa aqui.Vamosterquetomarcuidadoaoutilizá-los.Veri carseprecisamseraplicadosnovamente.

—NossossímbolosdeVelocidadeestãodesvanecendo—observouIsabelle,soando frustrada. — Isso pode determinar a diferença de dois ou três diasandando.Sebastianpodefazerqualquercoisacomosprisioneiros.

Alecfranziuorosto.—Nãovaifazer—observouJace.—SãoagarantiadeledequeaClavevai

nosentregar.Nãovai fazernada,anãoserque tenhacertezadeque issonãovaiacontecer.

— Podíamos andar a noite inteira — disse Isabelle. — Poderíamos usarsímbolosdeVigília.Continuaraplicando-os.

Jace olhou em volta. Tinha manchas de sujeira abaixo dos olhos, nasbochechas e na testa, onde havia esfregado a palma da mão. O céu haviapassado de amarelo a laranja-escuro,marcado por nuvens negras turbulentas.Clarysupôsquefosseumindíciodaproximidadedanoite.Elaficouimaginandosediasenoiteseramamesmacoisanestelugar,ouseashoraseramdiferentes,seasrotaçõesdesteplanetaeramsutilmentedesalinhadas.

—Quandoos símbolosdeVigíliadesbotarem,você sucumbe—respondeuJace.—AívaiencararSebastianbasicamentederessaca...nãoéumaboaideia.

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AlecseguiuoolhardeJacepelapaisagemmorta.— Então temos que encontrar um lugar para descansar. Dormir. Não é

mesmo?ClarynãoescutounadadoqueJacefalouemseguida.Jáhaviaseafastadoda

conversa,escalandoo lado íngremedeumarocha.Oesforçoa fez tossir;oarestavapodre,carregadodefumaçaespessaecinzas,maselanãoestavaa mdecarparaassistiraumadiscussão.Sentia-seexausta,acabeçalatejando,enão

paravadeenxergaramãeemsuacabeça,otempotodo.AmãeeLuke, juntosnavaranda,demãosdadas,olhandocarinhosamenteparaela.

Arrastou-se para o topo da elevação e parou ali. A colina descia de formaíngreme do outro lado, dando em um platô de rocha acinzentada que seestendiapelohorizonte,compilhasaquieali,commontesdeentulhoexisto.O sol havia baixado, apesar de ainda apresentar a mesma cor de laranjaqueimado.

—Oqueestáolhando?—perguntouumavozaoseulado;elaseassustoueseviroupara agrarSimonali.Elenãoestavatãogordurentoquantoosoutros.A sujeira nunca parecia grudar em vampiros. Mas tinha o cabelo cheio depoeira.

Ela apontou para buracos escuros que marcavam a lateral de uma colinapróxima,comotirosdearmasdefogo.

—Sãoentradasdecavernas,acho—falou.— Parece até uma cena deWorld of Warcra , não é não? — disse ele,

gesticulando em volta, indicando a paisagem arrasada, o céu marcado porcinzas.—Sóqueaquinãodáparadesligaresair.

—Hámuito tempo que não consigo desligar.—Clary podia ver Jace e osoutrosLightwoodàdistância,aindadiscutindo.

—Você está bem?— perguntou Simon.—Não tive chance de conversarcomvocêdesdetudoqueaconteceucomsuamãe,eLuke...

—Não—respondeuClary.—Nãoestoubem.Masprecisocontinuar.Seeucontinuar,nãoficopensandonoassunto.

— Sintomuito.— Simon colocou asmãos nos bolsos, a cabeça abaixada.

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Seus cabelos castanhos voavam sobre a testa, sobre o ponto onde estivera aMarcadeCaim.

— Está brincando? Eu é que sinto muito. Por tudo. Por você ter viradovampiro,pelaMarcadeCaim...

—Quemeprotegeu—protestouSimon.—Aquilofoiummilagre.Foiumacoisaquesóvocêpodiafazer.

—Édissoquetenhomedo—sussurrouClary.—Dequê?—Denãotermaisnenhummilagreemmim—respondeu,epressionouos

lábiosenquantoosoutrossejuntavamaeles,JaceolhandocomcuriosidadedeSimonparaClary,comoseestivesseimaginandootemadaconversaentreeles.

Isabelleolhavaparaaplanície,paraoshectaresdevazioadiante,paraavistaengasgadadepó.

—Estávendoalgumacoisa?— E aquelas cavernas? — Perguntou Simon, apontando para as entradas

escurasnalateraldamontanha.—Podemserabrigo...—Boa ideia— respondeu Jace.—Estamos emumadimensãodemoníaca,

sóDeussabeoquemoraali,evocêquersearrastarporumburacoescuroe...—Tudobem—interrompeuSimon.—Foisóumasugestão.Nãoprecisase

irritar...Jace,queclaramenteestavademauhumor,lhelançouumolharfrio.—Issonãosoueuirritado,vampiro...Umpedaçoescurodenuvemsedestacoudocéuederepenteavançoupara

baixo,maisvelozquequalquerumdelesseriacapazdeacompanhar.Claryviuderelanceumaimagemterríveldeasasedentes,edúziasdeolhosvermelhos,eentãoJaceestavasubindoaocéu,presoàsgarrasdeumdemôniovoador.

Isabelle gritou. Amão de Clary foi para o cinto, mas o demônio já tinhavoadoparao céu,um turbilhãodeasasde couro, emitindoumgritoagudodetriunfo.Jacenãofezqualquerbarulho;Claryviaasbotaspenduradas, imóveis.Seráqueeleestavamorto?

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Avisão deClary cou branca. Ela se virouparaAlec, que já estava comoarconamãoeumaflechapreparada.

—Atire!—gritouela.Elerodoucomoumdançarino,examinandoocéu.—Nãoconsigomirar;estáescurodemais...possoacertarJace...Ochicotede Isabelle sedesenroloudamão,um obrilhantealcançandoo

céu,subindo,impossivelmentealto.Aluzbrilhanteiluminouocéunebuloso,eClaryouviuodemôniogritardenovo,destavezumuivoestridentededor.Acriatura estava girando pelo ar, vacilante, Jace preso às suas garras. As garrasestavam enterradas nas costas dele— ou ele estaria se segurando àcriatura?Clary teve a impressãode ter visto o brilhode uma lâmina sera m, ou talveztivesse sido apenas a luz do chicote de Izzy enquanto este se elevava, depoisdescianovamentecomoumaserpentinabrilhante.

Alec xingou e soltou uma echa. Ela voou, perfurando a escuridão; umsegundo depois, umamassa escura despencava para a terra, atingindo o chãocomumestrondoquelevantouumanuvemdecinzas.

Todos caram encarando. Esticado, o demônio era grande, quase dotamanho de um cavalo, comum corpo verde-escuro, parecido como de umatartaruga;asas ácidasquepareciamdecouro;seisapêndicescheiosdegarraseque lembravamcentopeias; eumpescoço longoqueculminavaemumcírculode olhos e dentes a ados e tortos. A cauda da echa de Alec se elevava dalateraldacriatura.

Jace estava ajoelhado nas costas do demônio, com uma lâmina sera m namão.Golpeavaanucadomonstrofuriosamente,semparar,liberandopequenosesguichos de icor negro que espirravam em suas roupas e em seu rosto. Odemôniogorgolejouesucumbiu,seusmuitosolhosvermelhos candovazioseapagados.

Jace saiu das costas da criatura, ofegante. A lâmina sera m já tinhacomeçado a se contorcer com icor; ele a limpou, jogandoo icor fora, e olhoupara o pequeno grupo de amigos, todos o encarando com expressões deespanto.

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—Isto—falou—soueuirritado.Alecresmungou,algoentreumgemidoeumaonomatopeia,ebaixouoarco.

Seuscabelosnegrosestavamgrudadosàtestaporcausadosuor.—Nãoprecisamparecer todos tãopreocupados—disse Jace.—Euestava

mesaindobem.Clary,tontadealívio,engasgou.—Bem?Sesuade niçãode“bem”incluivirarolanchinhodeumatartaruga

voadoraassassina,entãovamosprecisarterumaconversinha,JaceLightwood...— Ele não desapareceu — interrompeu Simon, tão assustado quanto o

restantedeles.—Odemônio.Nãodesapareceuquandovocêomatou.—Não,nãodesapareceu—disseIsabelle.—Oquesigni caqueadimensão

dele é esta.—Ela estava com a cabeça esticada para trás e examinava o céu.Clary viu o brilho de um símbolo deVisão de LongoAlcance recém-aplicadoemseupescoço.—Eaparentementeessesdemôniosconseguemcircularà luzdodia.Provavelmenteporqueosolaquiestáquasedesbotado.Precisamossairdestaárea.

Simontossiualto.—O que vocês estavam falando sobre o abrigo em uma caverna ser uma

ideiaruim?—Naverdade,foisóJace—disseAlec.—Pramimaideiapareceboa.Jaceencarouosdoise esfregouo rostocomumadasmãos, tendoêxitona

missãodesesujardeicornegro.—Vamos olhar as cavernas. Encontraremos umapequena e veri caremos

minuciosamenteantesdedescansar.Euficocomoprimeiroturnodevigilância.Alecassentiuefoiemdireçãoàentradamaispróxima.Orestantedogrupo

oseguiu;ClaryacompanhavaospassosdeJace.Eleestavaemsilêncio,perdidonosprópriospensamentos;sobacobertapesadadenuvens,seucabelobrilhavanum tom dourado, e Clary via os enormes rasgos nas costas do casaco douniforme de luta, onde as garras do demônio o haviamprendido.De repenteJacesorriu.

—Oquê?—perguntouClary.—Qualéagraça?

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—“Tartarugavoadoraassassina”?—falouele.—Sóvocêmesmo.— “Só eu mesmo”? Isso é bom ou ruim? — perguntou ela, enquanto

chegavam à entrada da caverna, que se erguia diante deles como uma bocaescuraaberta.

Mesmoàssombras,osorrisodeJacebrilhava.—Éperfeito.

Avançaram apenas alguns metros no túnel antes de descobrirem o caminhobloqueado por um portão metálico. Alec praguejou, olhando por cima doombro.Aentradadacavernaestavalogoatrás,eatravésdelaClaryenxergavaocéularanjaeformasescurasecirculares.

—Não... isso é bom— disse Jace, aproximando-se do portão.— Vejam.Símbolos.

Ede fatohavia símbolosnascurvasdometal: alguns familiares,outrosqueClarynãoconhecia.Mesmoassim,lhetransmitiammensagensdeproteção,delutascontraforçasdemoníacas,umsussurronosrecônditosdesuamente.

—Sãosímbolosdeproteção—disseela.—Proteçãocontrademônios.—Ótimo—declarouSimon, lançandomaisumolharansiosopor sobreo

ombro.—Porquedemôniosestãovindo...acelerados.Jace olhou para trás, em seguida agarrou o portão e o sacudiu. A tranca

explodiu,soltando ocosdeferrugem.Elepuxoudenovo,commaisforça,eoportãoseabriu;asmãosde Jacebrilhavamsoba luz fraca,eometalondeeletocouficoupreto.

Ele correu para a escuridão além, e os outros foram atrás, Isabellealcançando sua pedra de luz enfeitiçada. Simon foi em seguida, e Alec porúltimo, esticando a mão para fechar o portão. Clary levou um instante paradesenharumsímbolodefechamento,sóparagarantir.

AluzenfeitiçadadeIzzybrilhou,iluminandoofatodeestarememumtúnelqueavançavasinuosamentepelaescuridão.Asparedeseramlisas,demármore,marcadas incessantemente com símbolos de proteção, sacralidade e defesa.O

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chão era de pedra arenosa, fácil de caminhar. O ar se tornava mais limpo àmedida que penetravam a montanha, o veneno da bruma e dos demôniosretrocedendoaospoucosatéClaryrespirarcommaisfacilidadedoquedurantetodootempoemqueestiveranaquelereino.

Por m chegaram a um espaço circular amplo, claramente esculpido pormãoshumanas.Pareciaointeriordacúpuladeumacatedral:redondo,comumtetoenormearqueadoacima.Haviaumafogueiranocentrodosalão,hámuitoapagada.Haviapedrinhasbrancasnoteto.Brilhavamsuavemente,preenchendoorecintocomumailuminaçãofraca.Isabelleabaixousuapedra,deixando-aseapagarnamão.

—Achoqueesteeraumesconderijo—falouAlec,comavozsussurrada.—Umaespéciedebarricada nal,ondequemquerquemorasseaquipudesse carsegurocontraosdemônios.

—Quemquerquetenhamoradoaquiconheciamagiadesímbolos—disseClary. — Eu não reconheço todas as Marcas, mas consigo sentir o quesignificam.SãosímbolossagradoscomoosdeRaziel.

Jacetirouamochiladosombroseadeslizouparaochão.—Hojevamosdormiraqui.Alecpareceudesconfiado.—Temcertezadequeéseguro?—Vamosexaminarostúneis—disseJace.—Clary,venhacomigo.Isabelle,

Simon, quemcomo corredor leste.Vamos torcerparaque isto funcionenoreino demoníaco.— Ele bateu no símbolo de bússola no antebraço, que eraumadasprimeirasMarcasrecebidaspelosCaçadoresdeSombras.

Isabelle largou suamochila, pegou duas lâminas sera m e as guardou noscoldresnascostas.

—Tudobem.— Vou com vocês — disse Alec, tando Isabelle e Simon com olhos

desconfiados.— Se tem que ser assim — respondeu Isabelle, com uma indiferença

exagerada. — Devo alertá-lo de que vamos nos agarrar no escuro. Beijação

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caprichadaemolhada.Simonficouespantado.—Vamos...—começouSimon,masIsabellepisounopédele,eelesecalou.—“Beijação”?—perguntouClary.—Estapalavraexiste?Alecpareceunauseado.—Suponhoqueeupossaficaraqui.Jacesorriuejogouumaestelaparaele.— Faça uma fogueira— falou.— Prepare uma torta para a gente ou algo

assim.Essacoisadecaçardemôniosdáfome.Alec enterrou a estela no chão e começou a desenhar o símbolo de fogo.

PareceumurmuraralgosobrecomoJacenãogostariadeacordardemanhãcomacabeçaraspada.

JacesorriuparaClary.Soboicoreosangueestavaofantasmadeseuvelhosorriso endiabrado, mas isso era bom. Ela pegou Heosphoros em seu cinto.SimoneIsabelle játinhamdesaparecidopelocorredorleste;elaeJacevirarampara o caminho oposto, que se inclinava levemente para baixo. Enquantoadquiriamritmo,ClaryouviuAlecgritaratrásdeles:

—Eassobrancelhastambém!Jaceriusecamente.

Maianãosabiaaocertooquetinhapensadosobreserlíderdobando,masnãoimaginavaquefosseassim.

EstavasentadaàmesadosaguãodoprédiodaSegundaDelegacia,Morcegona cadeira atrás dela, explicando pacientemente vários aspectos daadministração de um bando de lobos: como se comunicavam com os outrosmembrosdaPraetorLupusna Inglaterra, comomensagens eram transmitidasde e para Idris, até mesmo como coordenavam pedidos no restaurante JadeWolf. Ambos levantaram as cabeças quando as portas se abriram e umafeiticeiradepele azul comuniformede enfermeira entrouno recinto, seguidaporumhomemaltodecasacopreto.

—CatarinaLoss—disseMorcego,deformaaapresentá-la.—Nossanova

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líderdobando,MaiaRoberts...Catarinaodispensoucomumaceno.Elaeramuitoazul,quasecordesa ra,

e tinha cabelosbrancos lustrosos arrumados emumcoque.Ouniforme tinhacaminhõesdesenhados.

—EsteéMalcolmFade—disseela,indicandoohomemaltoaoseulado.—AltoFeiticeirodeLosAngeles.

MalcolmFade inclinoua cabeça.Tinha feições angulares, cabeloda cordepapel, e olhos roxos.Muito roxos, de uma cor diferente de quaisquer olhoshumanos.Eraatraente,pensouMaia,sevocêgostassedessetipodecoisa.

—MagnusBanesumiu!—anunciouele,comoseesse fosseo títulodeumlivrinhoilustrado.

—Luketambém—falouCatarinasombriamente.—Sumiu?—ecoouMaia.—Comoassim,sumiu?— Bem, não sumiu, exatamente. Foi sequestrado — explicou Malcolm, e

Maia derrubou a caneta que estava segurando. — Quem sabe onde podemestar?—Ele soava como se a coisa fosse empolgante e ele estivesse tristepornãoestarmaisenvolvido.

—SebastianMorgensternéoresponsável?—perguntouMaiaaCatarina.— Sebastian capturou todos os representantes do Submundo. Meliorn,

Magnus,RaphaeleLuke.EJocelyntambém.Evaimantê-losreféns,diz,anãoserqueaClaveconcordeementregarClaryeJace.

—Esenãoo zerem?—perguntouLeila.AentradadramáticadeCatarinatinha atraído o bando, e estavam todos enchendo o recinto, ocupando aescadaria e se agrupando em volta da mesa, como licantropes curiosos queeram.

—Entãoelevaimatarosrepresentantes—disseMaia.—Certo?—AClavedeve saberque sepermitiremqueele faça isso,osmembrosdo

Submundovãoserebelar—declarouMorcego.—Seriaomesmoquedizerqueasvidasdequatro integrantesdoSubmundovalemmenosquea segurançadedoisCaçadoresdeSombras.

Não apenas dois Caçadores de Sombras, pensou Maia. Jace era difícil e

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irritadiço,eClarysemostrarareservadanocomeço,maseleslutaramporelaecomela;salvaramsuavida,eelasalvouasdeles.

—EntregarJaceeClaryseriaassassiná-los—disseMaia.—EsemgarantiasdequeteríamosLukedevolta.Sebastianémentiroso.

OsolhosdeCatarinabrilharam.—SeaClaveaomenosnão zeralgummovimentopararesgatarMagnuse

osoutros,nãoperderãoapenasos representantesdoSubmundonoConselho.PerderãoosAcordos.

Maia cou quieta por um momento; estava consciente de todos os olhosnela. Os outros lobos caram observando qual seria sua reação. A reação dalíder.

Elaseaprumou.—O que dizem os feiticeiros? O que vão fazer? E o Povo das Fadas e as

CriançasNoturnas?— Amaioria dos membros do Submundo não sabe— disseMalcolm.—

Acontecequetenhouminformante.CompartilheiasnotíciascomCatarinaporcausadeMagnus.Acheiqueelaprecisavasaber.Digo,essetipodesituaçãonãoacontecetododia.Sequestros!Resgates!Amorseparadoportragédia!

—Caleaboca,Malcolm—falouCatarina.—Épor issoqueninguémlevavocêasério.—ElasevoltouparaMaia.—Veja.AmaiorpartedoSubmundosabequeosCaçadoresdeSombras zeramasmalaseforamparaIdris,éclaro;mas não sabempor quê . Estão esperando notícias dos respectivosrepresentantes,asquais,claro,nãovieram.

—Masessasituaçãonãopodeesperar—declarouMaia.—OSubmundovaidescobrir.

—Ah,vãodescobrir—disseMalcolm,aparentementeseesforçandomuitopara soar sério. —Mas vocês conhecem os Caçadores de Sombras; eles sãoreservados. Todos sabem sobre Sebastian Morgenstern, é claro, e sobre osCaçadoresdeSombrasmalignos,masosataquesnosInstitutospermaneceramrelativamentebrandos.

—OsfeiticeirosdoLabirintoEspiralestãotrabalhandoemumacuraparaos

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efeitosdoCáliceInfernal,masmesmoelesdesconhecemaurgênciadasituaçãoe o que se passa em Idris— relatouCatarina.—Temo que osCaçadores deSombrasacabemseeliminandopelaprópriadiscrição.—Elaestavaaindamaisazulqueantes;acorpareciamudarcomohumor.

—Entãoporquevieramaténós,atémim?—questionouMaia.— Porque Sebastian já transmitiu o recado para você através do ataque a

Praetor—respondeuCatarina.—EsabemosquevocêéíntimadosCaçadoresde Sombras, dos lhos do Inquisidor, e da própria irmã de Sebastian, porexemplo.Sabetantoquantonós,talvezatémais,sobreoqueestásepassando.

—Não sei tanto assim—admitiuMaia.—Asbarreiras em tornode Idristêmdificultadooenviodemensagens.

—Podemosajudarcomisso—disseCatarina.—Nãopodemos,Malcolm?—Hum?—Malcolmvagavaociosamentepelo recinto,parandoparaolhar

coisas queMaia considerava cotidianas, um corrimão, um azulejo rachado naparede,umvitral,comosefossemcoisasreveladoras.Obandooobservavacomespanto.

Catarinasuspirou.—Nãoliguemparaele—faloubaixinhoparaMaia.—Eleébempoderoso,

maspassouporalgumasituaçãoesquisitanocomeçodoséculopassadoe,desdeentão,nuncamaisfoiomesmo.Ébeminofensivo.

— Ajudar? Claro que podemos ajudar — disse Malcolm, virando-se paraolhar para eles. — Precisa transmitir algum recado? Sempre existem osgatinhos-correio.

—Vocêquerdizerpombos—corrigiuMorcego.—Pombos-correio.Malcolmbalançouacabeça.— Gatinhos-correio. São tão bonitinhos que ninguém resiste. E resolvem

problemascomratostambém.—Não temosproblemascomratos—disseMaia.—Temosumproblema

demegalomania.—ElaolhouparaCatarina.—Sebastianestádeterminadoacriar um afastamento entre o Submundo e os Caçadores de Sombras.

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Sequestrandorepresentantes,atacandoaPraetor,elenãovaipararporaí.Logo,logo todo o Submundo vai saber o que está acontecendo. A questão é: queposiçãotomarão?

— Ficaremos bravamente ao seu lado! — anunciou Malcolm. Catarina oolhoudeformasombria,eelehesitou.—Bem, caremosbravamentepertodevocês.Ou,pelomenos,aoalcancedosouvidos.

Maiaoolhou,séria.—Então,basicamente,semgarantias?Malcolmdeudeombros.— Feiticeiros são independentes. E é difícil fazer contato conosco. Como

gatos,mascommenosrabos.Bem,existemalgunsrabos.Eunãotenho...—Malcolm—disseCatarina.—Aquestãoé—continuouMaia—,ouosCaçadoresdeSombrasvencem,

ouSebastianvence,eseeleganhar,vaiviratrásdenós,de todososmembrosdo Submundo. Tudo que ele quer é transformar este mundo em um terrenobaldiodecinzaseossos.Ninguémvaisobreviver.

Malcolm pareceu ligeiramente alarmado, embora nem perto do grau dealarme que deveria apresentar, pensouMaia. O aspecto predominante era dealegriainocenteeinfantil;nãotinhanadadasabedoriatravessadeMagnus.Elaficouseperguntandoqualeraaidadedele.

—Nãoachoquevamosconseguir entrar em Idrispara lutar ao ladodeles,comojá zemos—continuouMaia.—Maspodemostentardifundiranotícia.Chegar a outros integrantes do Submundo antes de Sebastian. Ele vai tentarrecrutá-los;temosquefazê-losentenderoquesignificarásejuntaraele.

—Adestruiçãodestemundo—disseMorcego.—ExistemAltosFeiticeirosemváriascidades;provavelmentevãocogitara

questão. Mas somos lobos solitários, como Malcolm disse — respondeuCatarina. — O Povo das Fadas di cilmente conversará com qualquer um denós;nuncaofazem...

—E quem se importa como que os vampiros fazem?— rebateu Leila.—Elesseviramsozinhos,dequalquerforma.

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—Não—disseMaiaapósuminstante.—Não,elessabemserleais.Temosquenosencontrarcomeles.JáéhoradeoslíderesdobandodeNovaYorkedoclãdevampirosformaremumaaliança.

Ummurmúriodechoquepercorreuorecinto.Lobisomensevampirosnãose relacionavam, a não ser que fossem reunidos por forças externasmaiores,comoaClave.

ElaesticouamãoparaMorcego.—Caneta epapel—pediu, e eleobedeceu.Ela rabiscouumbilhetebreve,

arrancoua folhaeaentregouaumdos lobosmais jovens.—Leve istoaLily,noDumort—instruiu.—DigaquequeromeencontrarcomMaureenBrown.Elapodeescolherumlocalneutro;nósaprovaremosantesdareunião.Digaquetem que ser o quanto antes. As vidas de nossos representantes e dos delesdependemdisso.

— Quero car brava com você — falou Clary. Eles atravessavam o túnelsinuoso; Jace segurava a pedra de luz enfeitiçada dela, o brilho atuava comoguia.Elaselembroudaprimeiravezemqueelepressionaraumadessaspedraslisas na mão.Todo Caçador de Sombras deve ter a própria pedra de luzenfeitiçada.

—Ahé?—disseJace,lançandoumolharcautelosoaela.Ochãoeralisoepolido,easparedesdocorredorsecurvavamgraciosamentepordentro.Havianovossímbolos,marcadosemintervalos.—Porquê?

—Porarriscarsuavida—retrucouela.—Sóque,naverdade,nãoarriscou.Só coualiparadoeodemônio teagarrou.Eé fato,vocêestavasendogrossocomSimon.

—SeumdemôniomeagarrassetodavezqueeufossegrossocomSimon,euteriamorridonodiaemquevocêmeconheceu.

—Eusó...—Elabalançouacabeça.Suavisãoestava candoturvadetantaexaustão,eopeitodoíadesaudadedamãe,deLuke.Decasa.—Nãoseicomochegueiaqui.

— Provavelmente posso refazer nossos passos— disse Jace. — Passamos

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pelo corredor das fadas, viramos à esquerda na vila dizimada, à direita naplaníciedosamaldiçoados,curvaacentuadasobreodemôniomorto...

—Você entendeu.Não sei comocheguei aqui.Minhavidaeranormal.Eueranormal...

—Vocênuncafoinormal—disseJace,comavozmuitocalma.Clary couimaginando se algum dia deixaria de car tonta com as transformaçõesrepentinasdehumoraseriedade,depoisahumordenovo.

—Euqueriaser.Queria terumavidanormal.—Elaolhouparasi, sapatosempoeirados e uniformemanchado, as armas brilhando no cinto.— Estudararte.

—Casar comSimon?Ter seis lhos?—Avozde Jace estava ligeiramenteirritadaagora.Ocorredortinhaumacurvaaguda,eeledesapareceunela.Claryapressouopassoparaalcançá-lo...

E arfou. Tinham saído do túnel e chegado a uma caverna enorme,semipreenchidaporumlagosubterrâneo.Acavernaseestendiapelassombras.Era linda. A primeira coisa linda que Clary via desde a chegada ao reinodemoníaco.Otetodacavernaeradepedra,esculpidoagolpesdeáguaduranteanos, e brilhava comumazul intenso.O lago abaixo era tão azul quanto, umcrepúsculoprofundoluminoso,compilaresdequartzoseprojetandoaquieali,comohastesdecristal.

Atrilhadesembocavaemumapequenapraiadeareiamuito na,quasetãodelicadaquantocinzas,que levavaàágua. Jacecaminhoupelapraiaeagachouperto da água, en ando as mãos nela. Clary chegou logo depois, as botaslevantandonuvensdeareia,e seajoelhouenquantoele jogavaáguanorostoenopescoço,esfregandoasmanchasdeicor.

—Cuidado...—Elaopegoupelobraço.—Podeservenenosa.Elebalançouacabeça.—Nãoé.Vejaabaixodasuperfície.O lago era cristalino, vítreo. O fundo era de pedra lisa, marcado por

símbolos que emitiam um brilho fraco. Eram símbolos de pureza, cura eproteção.

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— Desculpe — disse Jace, arrancando-a do devaneio. Ele estava com oscabelos molhados, grudados nas curvas proeminentes das bochechas etêmporas.—EunãodeviaterfaladoaquilosobreSimon.

Clary en ouasmãosnaágua.Pequenasondulações se espalharamapartirdomovimentodeseusdedos.

—Quero te dizer que eu não desejaria ter outra vida— disse ela.—Estavida me trouxe você. — Ela posicionou as mãos em concha, levando água àboca.Estavafriaedoce,revitalizandosuaenergiafragilizada.

Elelançouaelaumdeseussorrisosverdadeiros,nãoapenasumrepuxardelábios.

—Esperoquenãosóeu.Clarybuscavapalavras.— Esta vida é real— disse ela.— A outra eramentira. Um sonho. É só

que...— Há muito tempo você não desenha — completou ele. — Desde que

começouatreinar.Nãoseriamente.—Não—respondeuelabaixinho,porqueeraverdade.—Às vezes co imaginando...Meu pai... Valentim, quero dizer... adorava

música.Elemeensinouatocar.Bach,Chopin,Ravel.Emelembrodeumavezter perguntado por que os compositores eram todosmundanos. Não existemCaçadores de Sombras que tenham feito música. E ele falou que, nas almasdeles,mundanospossuemumafaíscacriativa,masnossasalmassãoguerreiras,easduascoisasnãoconseguemexistirnomesmoespaço,nãomaisdoqueumachamaconseguesedividir.

—EntãovocêachaqueaCaçadoradeSombrasemmim...estáafastandoaartista?— perguntou Clary.—Masminhamãe pintava... digo, pinta.— ElasufocouadorporterpensadoemJocelynnopassado,aindaquebrevemente.

— Valentim dizia que foi isso que o Céu deu aos mundanos, qualidadeartística e domde criação—disse Jace.—Era isso que os tornava dignos deproteção.Nãoseiseeraverdade—acrescentou.—Masseaspessoastêmumfogodentrodelas,entãooseuéomaisbrilhantequeconheço.Vocêconsegue

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lutaredesenhar.Evaifazerosdois.Impulsivamente, Clary se inclinou para beijá-lo. Ele estava com os lábios

frios.ComgostodeáguadoceedeJace,eelateriaseentregadomaisaobeijo,no entanto algo intenso como eletricidade estática se passou entre eles;Clarysentou-separatrás,oslábiosardendo.

—Ai—queixou-seelapesarosamente. Jacepareciaarrasado.Elaesticouamãoparatocá-lonocabelomolhado.—Maiscedo,comoportão.Visuasmãosbrilharem.Ofogocelestial...

—Nãoconsigocontrolaraqui,nãocomocontrolavaemcasa—disse Jace.—Temalgumacoisanestemundo.Parecequeempurraofogomaisparapertoda superfície. — Ele olhou para as próprias mãos, cujo brilho já estavadesbotando.—Acho que nós dois precisamos ter cuidado. Este lugar vai nosafetarmaisqueaosoutros.Maiorconcentraçãodesangueangelical.

— Então teremos cuidado. Você consegue controlar. Lembre-se dosexercíciosqueJordanfezcomvocê...

—Jordanestámorto.—AvozdeJacesaiurígidaenquantoeleselevantava,espanando a areia das roupas. Ele estendeu a mão para ajudar Clary a selevantar.—Vamos—disse.—VamosvoltarparaAlecantesqueelepensequeIsabelleeSimonestãotransandonascavernasecomeceasurtar.

—Vocêsabequetodomundoachaqueestamostransando—disseSimon.—Provavelmenteestãosurtando.

—Humpf— respondeu Isabelle.Obrilhode sua luz enfeitiçadabateunasparedesdacaverna.—Comosefôssemostransaremumacavernacercadapormontes de demônios. Esta é a realidade, Simon, e não sua imaginaçãofervorosa.

— Fique sabendo que houve uma época naminha vida em que a ideia detransar um dia me pareciamais provável que a ideia de estar cercado pordemônios—falou,contornandoumapilhadepedrasderrubadas.

Todo o lugar lembrava um passeio às Cavernas Luray naVirgínia, que ele

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tinhafeitocomamãeeRebeccaduranteoensinofundamental.Davaparaverobrilhodemicanaspedrascomsuavisãodevampiro;nãoprecisavadapedrade luz enfeitiçada de Isabelle para guiá-lo, mas supunha que ela precisasse,entãonãofalounadaarespeito.

Isabellemurmurou alguma coisa; ele não entendeu exatamente o quê,masteveasensaçãodequenãofoinadaelogioso.

— Izzy—disse ele.—Existe algummotivo para estar com tanta raiva demim?

As palavras seguintes saíram em uma onda de suspiros que soaram como“cênãodeviatáqui”. Mesmo com a audição aguçada, Simon não conseguiuentender.

—Oquê?Elasevirouparaele.— Você não devia estar aqui!— disse ela, a voz ecoando das paredes do

túnel.—QuandoodeixamosemNovaYork,foiparavocêficaremsegurança...—Nãoqueroficaremsegurança—protestouele.—Queroficarcomvocê.—VocêquerficarcomClary.Simon fez uma pausa. Estavam se encarando pelo túnel, ambos parados

agora,Isabellecomasmãoscerradas.—Éesseoproblema?Clary?Elaficouemsilêncio.—NãoamoClarydessa forma—disseele.—Ela foimeuprimeiroamor,

minhaprimeirapaixonite.Masoquesintoporvocêétotalmentediferente...—Elelevantouamãoquandoelacomeçouabalançaracabeça.—Ouça,Isabelle— falou. — Se está me pedindo para escolher entre você e minha melhoramiga, então sim, não vou escolher. Porque ninguém que me amasse meobrigariaafazerumaescolhatãosemsentido;seriacomoeupediravocêparaescolherentremimeAlec.FicoincomodadoporverClaryeJacejuntos?Não,dejeitonenhum.Deumjeitoincrivelmenteestranho,elessãoótimosumparaooutro.Pertencemumaooutro.Meu lugarnãoécomClary,nãodesse jeito.Meulugarécomvocê.

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—Estásendosincero?—Elaestavacorada.Eleassentiu.—Venhacá—pediuela,eeleadeixoupuxá-loparasi,atégrudarocorpo

ao dela, a rigidez da parede atrás deles a forçando a curvar o próprio corpocontraodele.SimonsentiuamãodeIsabellesubirporsuascostas,porbaixodacamiseta, os dedosmornos contornando a espinha gentilmente. A respiraçãodelaagitouocabelodele,eocorpodele tambémseagitou,sódechegarpertodela.

—Isabelle,euamo...Elabateunobraçodele,masnãofoiumtapaderaiva.—Agoranão.Eleaninhouonariznopescoçodela,noaromaadocicadodapeledeIsabelle

esangue.—Quando,então?Ela recuoude repente,deixando-ocomadesagradável sensaçãode ter tido

umcurativoarrancadosemcerimônia.—Ouviuisso?Eleestavaprestesabalançaracabeçaquandodefatoouviu—oquepareceu

serumsussurroeumgrito,vindodaparteaindainexploradadotúnel.Isabellecorreu, a pedra de luz enfeitiçada re etindo das paredes aos solavancos, eSimon, praguejando por Caçadores de Sombras serem, acima de tudo,CaçadoresdeSombras,foiatrás.

O túnel só tinha mais uma curva antes de desembocar nos restos de umportãodestruídodemetal.Alémdosrestosdoportãohaviaumplatôdepedraque descia para uma paisagem maldita. Era áspero, marcado por rochasdenteadasegastas.No limitedaareia,abaixo,odesertorecomeçava,marcadoaqui e ali por árvores negras e retorcidas. Algumas nuvens desapareceram, eIsabelle,olhandoparacima,arfoulevemente.

—Vejaalua—disseelaSimonolhou—e se espantou.Nãoerabemuma lua,mas luas, como se a

luativessesidocortadaemtrêspedaços.Eles utuavam,combordasrecortadas,

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como dentes de tubarão espalhados pelo céu. Cada pedaço emitia um brilhofastidioso, e, sob o luar quebrado, a visão vampiresca de Simon identi cou omovimento circular decriaturas.Algumaspareciamacoisavoadoraque tinhacapturado Jace mais cedo; outras se assemelhavam mais a um inseto. Todaseramhorríveis.Eleengoliuemseco.

— O que está vendo? — perguntou Isabelle, sabendo que mesmo umsímbolodeVisãodeLongoAlcancenão lhedariaumavisãomelhorque adeSimon,principalmenteali,ondesímbolosdesbotavamtãodepressa.

—Estácheiodedemôniosali.Muitos.Quasetodosvoadores.OtomdeIsabellefoisombrio:—Entãoelesconseguemsairduranteodia,porémsãomaisativosànoite.—Isso—Simonforçouavista.—Temmais.Háumplanaltodepedraque

avançaumpoucoe, emseguidadesce, e temalgumacoisa atrás, algumacoisabrilhando.

—Umlago,talvez?—Talvez—respondeuSimon.—Quaseseparececom...—Oquê?—Umacidade—respondeuelerelutantemente.—Umacidadedemoníaca.— Ah.— Ele viu Isabelle assimilar as implicações, e por um instante ela

empalideceu; em seguida, no seu jeito Izzy de ser, ela se ajeitou e meneou acabeça,virando-sedecostas,paralongedasruínasdestroçadasdaquelemundo.—Émelhorvoltarmoseavisarmosaosoutros.

Estrelas de granito se penduravam do teto em correntes de prata. Jocelynencontrava-se deitada no palete de pedra que servia de cama, observando asestrelas.

Ela já havia gritado até car rouca, arranhado a porta — grossa, feita decarvalho com dobradiças de aço e parafusos — até as mãos sangrarem,remexidoemsuascoisasparatentaracharumaestela,ebatidotãofortecontraaparedequemachucouoantebraço.

Nada aconteceu. Ela também não esperava que acontecesse. Se Sebastian

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fossecomoopai—eJocelynimaginavaqueelefossemuitoparecidocomopai—,entãoeleseriamuitodetalhista.

Detalhista e criativo. Ela encontrara os pedaços da sua estela em um doscantos, destruída e inútil. Continuava com as mesmas roupas da paródia dejantardeMeliorn,masseussapatostinhamsidoremovidos.Oscabelosestavamcortados abaixo dos ombros, as pontas tortas, como se tivessem usado umalâminacega.

Pequenas crueldades pitorescas que demonstravam uma natureza terrível,paciente.Tal comoValentim,Sebastian sabiaesperarparaobteroquequeria,mastornariaaesperadolorosa.

A porta se abriu. Jocelyn levantou de um pulo, mas Sebastian já estava ládentro, aporta fechadaemsegurançaatrásde si comoestalodeuma tranca.Elesorriuparaela.

—Finalmenteacordou,mãe?— Já estava acordada—disse Jocelyn. Ela colocou umpé cuidadosamente

atrásdooutro,ganhandoequilíbrioevantagem.Eledesdenhou.—Nãoseincomode.Nãotenhoqualquerintençãodeatacá-la.Ela não disse nada, apenas o observou enquanto ele se aproximava. A luz

queentravapelasjanelasestreitaseraforteosu cienteparare etirnoscabelosbrancosdele e iluminarosplanosde seu rosto. Jocelynenxergavapoucode siali. Ele era todo Valentim. O rosto de Valentim, os olhos negros, osmovimentosdeumdançarinooudeumassassino.Apenassuaestruturafísica,altaeesguia,eraherançadela.

—Seulobisomemestáseguro—disseele.—Porenquanto.Jocelyn ignorou o salto de seu coração.Não demonstre nada no rosto .

Emoçõeseramsuafraqueza—essaforaaliçãodeValentim.—EClary—falouele.—Clarytambémestásegura.Casovocêseimporte,

é lógico. — Ele a contornou, um círculo lento, contemplativo. — Jamaisconsegui saber ao certo. A nal, uma mãe sem coração o su ciente paraabandonarumdeseusfilhos...

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— Você não era meu lho — soltou, e em seguida fechou a bocaapressadamente.Nãocaiano jogodele, pensou.Nãodemonstre fraqueza.Nãodêoqueelequer.

—Noentanto,vocêguardouacaixa—provocouele.—Vocêsabedequalcaixa estou falando. Eu a deixei na cozinha de Amatis para você; umpresentinho,algoparase lembrardemim.Comosesentiuaoencontrá-la?—Ele sorriu, e em seu sorriso também não havia qualquer traço de Valentim.Valentimforahumano;ummonstrohumano.MasSebastianeraoutracoisa.—Euseiquevocêpegavaacaixatodososanosechoravaemcimadela—falou.—Porquefaziaisso?

Ela permaneceu calada, e ele esticou o braço sobre o ombro para tocar ocabodalâminaMorgenstern,presaàssuascostas.

—Sugiroquemeresponda—incitou.—Eunãoteriaqualquerremorsoemcortarseusdedos,umporum,eutilizá-loscomofranjasdeumtapetinho.

Elaengoliuemseco.—Euchoravasobreacaixaporquemeufilhofoiroubadodemim.—Umfilhocomoqualvocênuncaseimportou.—Istonãoéverdade—falou.—Antesdevocênascer,euoamava,aideia

de tê-lo. Amei você quando senti seu coração dentro de mim. Então vocênasceuederepenteera...

—Ummonstro?—Suaalmaestavamorta—disseela.—Davaparaenxergaremseusolhos

quandoeuolhavaparavocê.—Elacruzouosbraços,reprimindooimpulsodetremer.—Porqueestouaqui?

Osolhosdelebrilharam.—Euéquepergunto,considerandoquevocêmeconhecetãobem,mãe.—Meliorn nos drogou— falou ela.— Pelas atitudes dele, eu diria que o

PovodasFadaséseualiado.Equeoéháalgumtempo.Acreditamquevocêvaivencer a guerra dosCaçadores de Sombras e querem estar do lado vencedor;alémdisso, elesdetestamosNephilimhámais tempoe commais intensidade

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que a qualquer outro grupo do Submundo. Eles ajudaram você a atacar osInstitutos;aumentaramseuexércitoenquantovocêrecrutavanovosCaçadoresde Sombras com o Cálice Infernal. No m, quando você estiver poderoso osu ciente,vaitraí-losedestruí-los,poisnaverdadeosdespreza.—Fez-seumalongapausaenquantoelaofitavanosolhos.—Acertei?

JocelynnotavaapulsaçãonagargantadeSebastianenquantoele exalava, esoubeentãoqueestavacorreta.

—Quandoadivinhouissotudo?—perguntoueleentredentes.—Não adivinhei. Conheço você. Conheci seu pai, e você é como ele, na

criação,senãonanatureza.Elecontinuavaaencará-la,osolhosinsondáveisenegros.—Sevocênãoachassequeeuestavamorto—disseele—,sesoubesseque

eutinhasobrevivido,teriaprocuradopormim?Teriaficadocomigo?— Teria — respondeu. — Teria tentado criá-lo, ensinar as coisas certas,

mudá-lo.Eumeculpopeloquevocêé.Sempremeculpei.—Teriamecriado?—Elepiscou,quasesonolento.—Teriamecriado,me

odiandocomoodiava?Elaassentiu.—Achaqueeuteriasidodiferente?Maisparecidocomela?Jocelynlevouuminstanteparaperceber.— Clary— disse ela.— Está falando de Clary.—Doía dizer o nome da

lha; ela sentia muita saudade de Clary e, ao mesmo tempo, temia por ela.Sebastianaamava,pensou;seeleeracapazdeamaralguém,estapessoaeraairmã,e,seexistiaalguémquesabiaoquantoeramortalseramadaporalguémcomoSebastian,eraJocelyn.—Nuncasaberemos—faloua nal.—Valentimtirouissodenós.

—Vocêdeveriatermeamado—falouele,eagorasoavapetulante.—Souseu lho.Vocêdeveriameamaragora, independentementedoquesou,sesoucomoelaounão...

—Mesmo?—Jocelynointerrompeunomeiodafrase.—Vocêmeama?Sóporquesousuamãe?

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—Vocênão éminhamãe— respondeu, um sorriso sutil.—Venha.Vejaisto.Deixe-memostraroqueminhaverdadeiramãemedeuopoderdefazer.

Ele retirou uma estela do cinto. Jocelyn se espantou— esquecia, às vezes,queeleeraumCaçadordeSombrasepodiausarasferramentasdeumCaçadorde Sombras. Com a estela, ele desenhou na parede de pedra do recinto.Símbolos,umdesenhoqueela reconhecia.Umacoisaque todososCaçadoresde Sombras sabiam fazer.A pedra começou a car transparente, e Jocelyn sepreparouparaoqueveriaalémdasparedes.

Mas o que viu foi a sala da Consulesa no Gard, em Alicante. Jia estavasentada atrás de suamesa imensa coberta por pilhas de arquivos. Ela pareciaexausta, seus cabelos negros generosamente marcados por mechas brancas.Haviaumapastaabertasobreamesa.Jocelynconseguiaenxergarfotosdeumapraia:areia,céuazul-cinzento.

—JiaPenhallow—disseSebastian.A cabeça de Jia levantou. Ela coude pé, a pasta caindono chão emuma

zorradepapeis.—Quemé?Quemestáaí?—Nãomereconhece?—perguntouSebastian,umsorrisonavoz.Jia olhoudesesperadamente para a frente. Ficou claro que, o que quer que

elaestivesseenxergando,aimagemnãoeraclara.—Sebastian—arfouela.—Masaindanãosepassaramdoisdias.Jocelynpassouporele.—Jia—falouela.—Jia,nãodêouvidosanadadoqueeledisser.Eleéum

mentiroso...— Ainda é cedo demais — falou Jia, como se Jocelyn não tivesse se

pronunciado, e Jocelyn percebeu, para seu horror, que Jia não conseguiaenxergá-lanemescutá-la.Eracomoseelanãoestivesselá.—Épossívelqueeunãotenhasuaresposta,Sebastian.

—Ah,euachoquetem—disseSebastian.—Nãotem?Jiaendireitouosombros.— Se insiste — disse ela friamente. — A Clave discutiu seu pedido. Não

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vamoslheentregarnemJaceLightwoodnemClarissaFairchild...—ClarissaMorgenstern—corrigiuSebastian,ummúsculodesuabochecha

pulsando.—Elaéminhairmã.— Eu a chamo pelo nome que ela prefere, assim como faço com você—

disseJia.—Nãofaremosumabarganha.Nãoporacharmosquenossosangueémais valioso que o sangue do Submundo. Não por não querermos nossosprisioneiros de volta. Mas porque não podemos ceder às suas táticas deintimidação.

—Como se eubuscasse a sua aprovação—desdenhouSebastian.—Vocêentendeoque isto signi ca?Posso enviar a cabeçadeLukeGarrowayen adaemumespeto.

Jocelynsentiucomosealguémativessesocadonoestômago.— Poderia— disse Jia. —Mas se machucar algum dos prisioneiros, será

umadeclaraçãodeguerraatéamorte.Eacreditamosquevocêtemtantomedodeumaguerracontranósquantonóstemosdeumacontravocê.

—Acreditam errado— respondeu Sebastian.— E acho que, se procurar,você vai descobrir que sua decisão de não me entregar Jace e Clary,embrulhadoscomoumpresentedenatal,nãotemamenorimportância.

—Oquequerdizer?—AvozdeJiaficoumaisaguda.— Ah, teria sidoconveniente se você tivesse resolvido entregá-los —

explicou Sebastian. — Menos aporrinhação para mim. Menos aporrinhaçãoparatodosnós.Masagoraétarde,vejabem:elesjáseforam.

Elegirouaestela,ea janelaqueabriuparaomundodeAlicantese fechouno rosto espantado de Jia. A parede era uma tela branca de pedra lisanovamente.

— Bem — disse ele, guardando a estela no cinto de armas. — Istofoidivertido,nãoacha?

Jocelynengoliuemseco.— Se Jace e Clary não estão em Alicante, onde estão? Onde estão,

Sebastian?Eleaencarouporuminstanteeemseguida,riu:umarisadatãopurae fria

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quanto água gelada. Ele continuava a rir quando seguiu para a porta e saiu,deixando-asefecharatrásdesi.

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16OHorroresdaTerra

Anoite jáhavia caído sobreAlicante, e as estrelasbrilhavamcomo sentinelasluminosos, reluzindo as torres demoníacas e as águas nos canais —semicongeladas agora. Emma estava sentada no parapeito do quarto dosgêmeos,olhandoacidade.

Ela sempre acharaque iria aAlicantepelaprimeiravez comospais, que amãelhemostrariaoslugaresqueconheceraduranteainfânciaeadolescência,aAcademia agora fechada, onde tinha estudado, a casados avós.Queopai lhemostraria o monumento da família Carstairs, da qual sempre falara comorgulho. Nunca havia imaginado que seu primeiro olhar sobre as torresdemoníacas deAlicante seria como coração tão inchadode dor que às vezespareciasufocá-la.

Oluarentravapelasjanelasdosótão,iluminandoosgêmeos.Tiberiustinhapassadoodiadandoumataque,chutandoasbarrasdoberçoquandolhediziamquenãopoderiasairdecasa,berrandoporMarkquandoJuliantentavaacalmá-lo, e por m socou e quebrou o vidro de uma caixinha de joias. Era jovemdemais para receber símbolos de cura, então Livvy o abraçou para mantê-loparado enquanto Julian tirava o vidro damão sangrenta do irmãomais novocomumapinça,fazendoumcurativocomcuidadoemseguida.

Ty nalmente caíra na cama, apesar de não ter dormido até Livvy, calmacomosempre, sedeitar ao ladodele e seguraramãomachucada.Ele agora seencontrava adormecido, com a cabeça no travesseiro, virado para a irmã. SóquandoTydormiaerapossívelvercomoeraumacriançaextraordinariamentelinda,quandoaraivaeodesesperoeramvencidospelocansaço.

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Desespero,pensouEmma.Eraapalavraadequada,pelasolidãodosgritosdeTavvy, pelo vazio no cerne da raiva de Ty e pela calma assustadora de Livvy.Ninguémcom10anosdeidadedeveriasentirdesespero,maselaconcluiuquenão havia outra forma de descrever as palavras que pulsavam por seu sanguequando pensava nos pais, cada batimento era uma ladainha lúgubre: adeus,adeus,adeus.

— Ei. — Emma levantou o olhar ao som da voz tranquila que veio daentrada,eviuJulianàporta.Seuscachosescuros,umpoucomaisclarosqueoscabelos negros de Ty, estavam desgrenhados, e ele exibia um rosto pálido ecansado ao luar. Parecia muito magro, pulsos nos saindo dos punhos docasaco.Traziaalgopeludonamão.—Elesestão...

Emmaassentiu.—Dormindo.É,estão.Julianolhouparaacamadosgêmeos.DepertoEmmaconseguiaenxergaras

digitais ensanguentadasdeTynacamisade Jules; elenãohavia tido tempodetrocarderoupa.EstavaagarrandoumaabelhadepelúciaqueHelenrecuperarado Instituto quando a Clave voltou para revistar o local. Pertencia a Tiberiusdesde que Emma conseguia se lembrar. Ty estava gritando por causa dobrinquedoantesde cairno sono. Julian atravessouoquarto e se abaixouparacolocar o bicho aconchegado no peito do irmãozinho, em seguida pausougentilmenteparadesembaraçarumdoscachosdeTyantesderecuar.

Emma pegou a mão de Jules enquanto ele se movimentava, gesto que ogarotoaceitou.Eleestavacomapele fria, comose tivesse cadona janela,nabrisa da noite. Ela virou amão dele e desenhou na pele do antebraço com odedo. Era uma coisa que faziam desde pequenos quando não queriam seragrados conversando durante as aulas. Ao longo dos anos caram tão bons

nisso que conseguiammapear recados detalhados nasmãos, nos braços e atémesmonosombros,atravésdascamisasumdooutro.

V-O-C-Ê-C-O-M-E-U?,soletrouela.Julian balançou a cabeça, ainda observando Livvy e Ty. Os cachos dele

estavam levantados em tufos, como se tivesse passado asmãos no cabelo. Ela

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sentiuosdedosdele,bemdeleve,napartesuperiordeseubraço.S-E-M-F-O-M-E.

—Quepena.—Emmasaltoudoparapeito.—Vamos.Elaoretiroudoquarto,paraocorredordoandar.Eraumespaçopequeno,

comescadasíngremesquedesciamparaacasaprincipal.OsPenhallowtinhamdeixado claroque as criançaspodiamcomernahoraquequisessem,masnãohavia horáriosmarcados para refeições, e certamente não havia refeições emfamília.Tudoeracomidosemformalidadeàsmesasdosótão,comTavvyeatémesmo Dru se cobrindo de comida, e Jules como o único responsável pelalimpezadepois,porlavarasroupaseatéporsecerti cardequetinhamcomidotudo.

No instanteemqueaportase fechouatrásdeles, Julianseapoioucontraaparede,jogandoacabeçaparatrás,osolhosfechados.Seupeitomagroin avaedesin ava rapidamente embaixo da blusa. Emma cou parada, incerta quantoaoquefazer.

—Jules?—chamouela.Eleaencarou.Aspupilasestavamdilatadasàluzbaixa,osolhoscontornados

porcíliosespessos.Davaparaperceberqueelelutavaparanãochorar.Julian fazia parte das primeiras lembranças de Emma. Foram colocados

juntosnoberçopelospaisquandobebês;aparentementeelasaíraemorderaolábioaocairnochão.Nãochorou,masJuliangritouaoverosangue,atéospaischegaremcorrendo.Deramosprimeirospassosjuntos:primeiroEmma,comosempre, Julian em seguida, agarrando a mão dela com determinação.Começaramatreinaraomesmotempo,receberamasprimeirasMarcasjuntos:Clarividência na mão direita dele, e na esquerda dela. Julian não gostava dementir,masseEmmaseencrencasse,mentiaporela.

Agora tinhamperdido os paismais oumenos namesma época.Amãe deJulianmorreradoisanosantes,everosBlackthornpassaremporaquelaperdatinhasidohorrível,masestaeraumaexperiênciacompletamentediferente.Eradevastadora, e Emma conseguia sentir a ruptura, conseguia senti-los sendodestruídos e tendo os cacos colados de um jeito novo e diferente. Estavam se

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tornando algo mais, ela e Julian, algo maior que melhores amigos, mas nãochegavaaserfamília.

—Jules—repetiuela,epegouamãodele,queporuminstante couparadaefrianadela;emseguidaeleapegoupelopulsoeaagarroucomforça.

—Nãoseioquefazer—disseele.—Nãopossotomarcontadeles.Tavvyésóumbebê,Tymeodeia...

—Eleéseuirmão.Esótem10anos.Elenãoteodeia.Juliansuspiroudemaneiratrêmula.—Talvez.—Elesvãodarumjeito—consolouEmma.—Seutiosobreviveuaoataque

deLondres.Entãoquandotudoacabar,vocêvaimorarcomele,eelevaicuidardevocêedosoutros.Nãoseráresponsabilidadesua.

Juliandeudeombros.—EumalmelembrodotioArthur.Elenosmandalivrosemlatim;àsvezes

vemdeLondresparaoNatal.OúnicodenósquesabeleremlatiméTy,eelesóaprendeuparairritartodomundo.

—Edaíqueeledápresentesruins?Elese lembroudevocêsnoNatal.Eseimporta o su ciente para cuidar de vocês. Eles não vão ter quemandar vocêsparaumInstitutoqualquerouparaIdris...

Juliansevirouparaencará-la.— Não é isso que acha que vai acontecer com você, é?— perguntou.—

Porquenãovai.Vocêvaificarconosco.—Nãonecessariamente—falouEmma.Eracomoseseucoraçãoestivesse

sendoesmagado.AideiadeabandonarJules,Livvy,Dru,Tavvy,atémesmoTy,a deixava nauseada e perdida, como se estivesse à deriva em um oceano,sozinha. — Depende do seu tio, não é mesmo? Se ele vai me querer noInstituto.Seestarádispostoameacolher.

A voz de Julian soou feroz. Julian raramente era feroz, mas quandoacontecia,seusolhos cavamquasenegros,eeletremiatodo,comoseestivessecongelando.

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—Nãodependedele.Vocêvaificarconosco.—Jules...—começouEmma,econgelouquandovozesvieramládebaixo.

Jia ePatrickPenhallow estavampassandopelo corredor abaixo.Elanão sabiaao certo por que estava nervosa; não era como se eles não pudessem passearpela casa, mas a ideia de ser agrada pela Consulesa, acordada tão tarde, adeixavadesconfortável.

—...odesgraçadoestavacerto,éclaro—diziaJia.Elasoavadesgastada.—NãosóJaceeClarydesapareceram,masIsabelleeAlectambém.OsLightwoodestãocompletamenteenlouquecidos.

AvozgrossadePatrickresmungouumaresposta:—Bem,Alecéadulto,tecnicamente.Esperoqueestejacuidandodorestante

deles.Jia bufoudemaneira abafada e impaciente em resposta.Emma se inclinou

paraafrente,tentandoouvi-la.— ... podiam ter pelomenos deixado um bilhete— dizia.—Obviamente

estavamfuriososquandofugiram.—Provavelmenteacharamqueiríamosentregá-losaSebastian.Jiasuspirou.— Irônico, considerando o quanto lutamos contra isso. Presumimos que

Clary tenha feito um Portal para tirá-los daqui, mas como bloquearam orastreamento,nãotemoscomosaber.Nãoestãoemlugarnenhumdomapa.Écomosetivessemdesaparecidodafacedaterra.

— Exatamente como Sebastian — falou Patrick. — Não faz sentidopresumirqueestãonomesmo lugarque ele?Queo lugar emsiosbloqueia, enãoossímbolosouqualqueroutrotipodemagia?

Emma se inclinou mais ainda, porém o restante das palavras desvaneceucomadistância.Ela tevea impressãode terouvidoumamençãoaoLabirintoEspiral,masnão tinhacerteza.Quando se ajeitououtravez,notouoolhardeJulian.

—Vocêsabeondeelesestão—disseele—,nãosabe?Emmacolocouodedonoslábiosebalançouacabeça.Nãopergunte.

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Julianarfouumarisada.—Sóvocê,mesmo.Como...Não,nãomediga,nemquero saber.—Ele a

olhou, investigando-a, do jeito que fazia às vezes quando tentava descobrir seela estava mentindo ou não. — Sabe — disse ele —, tem um jeito de nãomandaremvocêparalongedonossoInstituto.Teriamquedeixá-laficar.

Emmaergueuumasobrancelha.—Vamosouvir,gênio.— Poderíamos... — começou ele, depois parou, engoliu em seco, e

recomeçou:—Poderíamosnostornarparabatai.Elefaloutimidamente,meioquedesviandoorostododela,demodoqueas

sombrasencobrissemparcialmentesuaexpressão.—Aínãopoderiamnosseparar—acrescentouele.—Nunca.Emmasentiuseucoraçãorevirar.—Jules,serparabataiéumacoisaimportantíssima—censurouela.—É...é

parasempre.Eleaencarou,orostosinceroeinocente.Nãohaviatruquesnanaturezade

Jules,nemmaldade.—Nósnãosomosparasempre?—perguntouele.Emma pensou. Não conseguia imaginar sua vida sem Julian. Era só uma

espécie de buraco negro de solidão terrível: ninguém seria capaz decompreendê-lacomoele,deentenderaspiadascomoeleentendia,deprotegê-la como ele fazia— não sicamente,mas protegê-la de seus sentimentos, deseucoração.Nãohaverianinguémpara carfelizcomela,ouirritado,ouparater ideias ridículas. Ninguém para completar suas frases, ou tirar todos ospepinosdasaladaporqueeladetestavapepino,ouparacomerascascasdassuastorradas,ouparaencontraraschavesquandoelaasperdia.

—Eu...—começouela, ede repentehouveumbarulhonoquarto.Emmatrocouolharesdepânico com Julianantesde correremparaoquartodeTy eLivvy, e encontrarem Livia sentada, sonolenta e confusa. Ty estava à janela,com um atiçador namão. A janela tinha um buraco no centro e sua vidraçabrilhavapelochão.

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—Ty!—reprimiuJulian,claramenteapavoradopeloscacosacumuladosaoredordospésdescalçosdoirmão.—Nãosemexa.Voubuscarumavassoura...

Tyolhouparaosdoisporbaixodoscabelosescuros.Tinhaalgumacoisanamãodireita.Emmasemicerrouosolhosaoluar—seriaumanoz?

—Éumrecado—disseTy,deixandooatiçadorcair.—Fadasnormalmenteescolhemobjetosdanaturezaparaenviarrecados:nozes,folhas,flores.

—Estádizendoqueéumrecadodasfadas?—perguntouJulian,cético.—Nãosejaburro—respondeuTiberius.—Claroquenãoéumrecadodas

fadas.ÉumrecadodeMark.EestáendereçadoàConsulesa.

Deveserdiaaqui,pensouLuke,poisRaphaelestavaencolhidoemumcantodacela de pedra, o corpo tenso mesmo enquanto dormia, os cachos escurosformandoummontinhonobraço.Eradifícildizer,considerandoquedavaparaenxergarmuitopoucoalémdebrumaespessaatravésdajanela.

—Eleprecisasealimentar—disseMagnus,olhandoparaRaphaelcomumagentilezatensaquesurpreendeuLuke.

Elenãoachavaqueexistissemuitoamorentreofeiticeiroeovampiro.Elespareciam se encarar com cautela desde que Luke os conhecia; educados,ocupando as respectivas diferentes esferas de poder no Submundo de NovaYork.

— Vocês se conhecem — disse Luke, perspicaz. Ele continuava apoiadocontra a parede, perto da janela estreita de pedras, como se a vista lá fora,nuvensevenenoamarelado,pudessemdizeralgumacoisa.

Magnusergueuumasobrancelha,comofaziaquandoalguémlheperguntavaalgoclaramenteestúpido.

—Digo—esclareceuLuke—,vocêsseconheciam.Antes.— Antes de quê? Antes de você nascer? Deixe-me esclarecer uma coisa,

lobisomem; quase tudonaminha vida aconteceu antes de você nascer.—OsolhosdeMagnus se xaramnumRaphael adormecido; apesarda asperezadotom,suaexpressãoeraquasegentil.—Hácinquentaanos—falou—,emNova

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York, uma mulher veio até mim e me pediu para salvar seu lho de umvampiro.

—EovampiroeraRaphael?—Não— respondeuMagnus.—O lho dela era Raphael. Não consegui

salvá-lo.Era tardedemais.Ele já tinhasidoTransformado.—Elesuspirou,derepente Luke enxergou nos olhos dele sua idade muito, muito avançada, asabedoria e a tristezade séculos.—Ovampiro tinhamatado todosos amigosdele.NãoseiporqueresolveuTransformarRaphael.Achoqueviualgumacoisanele.Determinação, força,beleza.Nãosei.Eleeraumbommeninoquandooencontrei,umanjodeCaravaggiopintadoemsangue.

— Ele continua parecendo uma criança— disse Luke. Raphael sempre olembrava um coroinha rebelde, com seu rosto meigo e jovem, e seus olhosnegrosmaisvelhosquealua.

—Nãoparamim—disseMagnus.Esuspirou.—Esperoqueelesobrevivaaisto—completou.—OsvampirosdeNovaYorkprecisamdealguémcombomsensoparagovernaroclã,eMaureenestálongedisso.

— Você espera que Raphael sobreviva a isto? — disse Luke. — Ora...quantaspessoaselejámatou?

Magnusvoltouosolhosfriosparaele.— Quem de nós não tem sangue nas mãos? O que você fez, Lucian

Graymark,paraconquistarumbando,doisbandos,delobisomens?—Aquilofoidiferente.Eranecessário.—OquevocêfaziaquandoestavanoCiclo?—perguntouMagnus.Com isso, Luke se calou. Ele detestava se lembrar de tal época. Dias de

sangue e prata. Dias comValentim ao seu lado, lhe dizendo que estava tudobem,calandosuaconsciência.

— Estou preocupado com minha família agora — falou. — Estoupreocupado com Clary, Jocelyn e Amatis. Não posso me preocupar comRaphaeltambém.Evocê...acheiquefosseficarpreocupadocomAlec.

Magnussuspirouatravésdedentescerrados.—NãoquerofalarsobreAlec.

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—Tudobem.—Lukenãodissemaisnada,apenasrepousoucontraaparedefria de pedra e assistiu aMagnus remexendo as correntes. Um instantemaistarde,Magnusfaloudenovo:

— Caçadores de Sombras — começou. — Eles entram no seu sangue,penetramsuapele.Jáestivecomvampiros, lobisomens,fadas, feiticeiroscomoeuemundanos, tantosmundanos frágeis.Mas eu sempredisseparamimquenãoentregariameucoraçãoaumCaçadordeSombras.Jáquaseosamei,jámeencantei por eles: Edmund,Will, James, Lucie... os que salvei, e os que nãoconsegui salvar. — A voz dele cou embargada por um segundo, e Luke,encarando-o com espanto, percebeu que aquele era o máximo de emoçãogenuína que já presenciaraMagnusBane expressar.—EClary também, eu aamei,poisavicrescer.MasnuncameapaixoneiporumCaçadordeSombras,não até Alec. Pois eles têm sangue de anjo, e o amor dos anjos é uma coisagrandeesagrada.

—Issoétãoruimassim?—perguntouLuke.Magnusdeudeombros.—Àsvezeséumaquestãodeescolha—falou.—Entresalvarumapessoae

salvar omundo inteiro. Já vi acontecer, e sou egoísta o su ciente para quererqueapessoaquemeamameescolha.MasosNephilimsemprevãoescolheromundo. Olho para Alec e me sinto como Lúcifer em Paraíso Perdido .“EmbaraçadooDiabo cou,Esentiucomoobeméopressor. ”Elequeriadizernosentidoclássico.“Opressor”nobomsentido.Eopressãopodeserbom,masparaoamoréumveneno.Oamorprecisaserentreiguais.

—Eleésóummenino—disseLuke.—Alec...nãoéperfeito.Evocênãoéterrível.

—Somostodosterríveis—respondeuMagnus,daíseenrolounascorrenteseficouemsilêncio.

—Vocêsópodeestarbrincando—disseMaia.—Aqui?Sério?Morcegoesfregouanucacomosdedos,levantandoseuscabeloscurtos.—Istoéumaroda-gigante?

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Maia virou em um círculo lento. Eles estavam dentro da enorme loja debrinquedos da Rua 44. Do lado de fora, o brilho neon da Times Squareiluminavaanoite com tonsdeazul, vermelhoeverde.A loja se estendiaparacima, andares e andares de brinquedos: super-heróis de plástico, ursinhos depelúcia, Barbies cor-de-rosa e brilhantes. A roda-gigante se assomava sobreeles, cada peça de metal carregando uma cabine de plástico decorada comdecalques.Maia tinha uma vaga lembrança de suamãe levando o irmão e elapara uma volta na roda-gigante quando tinham 10 anos. Daniel tentouempurrá-lanabordadacabineeafezchorar.

—Istoé...umaloucura—sussurrouela.— Maia — disse um dos lobos mais jovens, magro e nervoso, com

dreadlocks.Maia treinaraa todospara se livraremdohábitodechamarem-nade “dama” ou “senhora”, ou qualquer coisa diferente de Maia, ainda que elafosse a líder temporáriadobando.—Vasculhamos todoo território. Sehaviaseguranças,alguémjádeuumjeitoneles.

— Ótimo. Obrigada. — Maia olhou para Morcego, que deu de ombros.Havia mais ou menos outros 15 lobos do bando com eles, parecendoincongruentesentreasbonecasdeprincesasdaDisneyeasrenasdepelúcia.—Vocêpoderia...

Aroda-gigantedeuapartidaderepente,comumchiadoeumrangido.Maiapulou para trás, quase trombando emMorcego, que a segurou pelos ombros.Ambos caram se encarando enquanto a roda-gigante girava e a músicacomeçavaatocar—It´saSmallWorld —,Maiatinhaquasecerteza,apesardenãoterletra,apenasinstrumental.

— Lobos! Ooooh! Loooobos! — entoou uma voz, e Maureen, parecendoumaprincesadaDisneycomumvestidocor-de-rosaeumacoroadearco-íris,desceu descalça de ummostruário de bengalinhas doces de natal. Foi seguidapormaisoumenosvintevampiros, tãopálidosquantobonecasoumanequinssobaluzdébil.Lilyveiologoatrás,oscabelosnegrosperfeitamentearrumados,ossaltosestalandonochão.ElaolhouMaiadacabeçaaospés,comosejamaisativessevisto.—Olá,olá!—disseMaureen.—Queprazeremconhecê-la.

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— O prazer é meu — respondeu Maia, tensa. Estendeu a mão para queMaureenaapertasse,maselaapenasriuepegouumavarinhabrilhantedeumacaixapróxima.Abanou-anoar.

—SintomuitoporsaberqueSebastianmatoutodososseusamigoslobos—disseMaureen.—Eleéummeninomalvado.

Maia se encolheu com a visão do rosto de Jordan, a lembrança do pesomortodeleemseusbraços.

Elaenrijeceu.—Ésobreissoquequeroconversar—falou.—Sebastian.Eleestátentando

ameaçar os integrantes do Submundo... — Ela pausou quando Maureen,cantarolando, começou a subir em uma pilha de caixas de Barbies de Natal,cada uma comumaminissaia vermelha e branca de papaiNoel.—Tentandonos jogar contra os Caçadores de Sombras — prosseguiu Maia, ligeiramenteconfusa. Será que Maureen sequer estava prestando atenção? — Se nosunirmos...

— Ah, sim — disse Maureen, acocorando-se sobre a caixa mais alta. —TemosquenosunircontraosCaçadoresdeSombras.Definitivamente.

—Não,eudisse...— Eu ouvi o que você disse. — Os olhos de Maureen brilharam. — Foi

bobagem. Vocês, lobisomens, vivem cheios de ideias tolas. Sebastian não émuito gentil, mas os Caçadores de Sombras são piores. Eles inventam regrasidiotasenosfazemsegui-las.Elesroubamdenós.

—Roubam?—MaiaesticouacabeçaparaverMaureen.—RoubaramSimondemim.Euotinha,eagoraelesefoi.Seiquemlevou.

CaçadoresdeSombras.MaiaencontrouoolhardeMorcego.Eleencarava.Elapercebeuquetinhase

esquecidodecontara ele sobreapaixonitedeMaureenporSimon.Teriaqueexplicar mais tarde — se houvesse um mais tarde. Os vampiros atrás deMaureenpareciammaisdoqueumpoucofamintos.

—Pediparaquevocêviessemeencontrarpara formarmosumaaliança—disse Maia da forma mais gentil possível, como se estivesse tentando não

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assustarumanimal.—Adoroalianças—respondeuMaureen,epuloudoaltodascaixas.Tinha

pegadoumpirulitoenormeemalgumlugar,dotipocomespiraismulticoloridas.Ela começou adesembrulhá-lo.—Se formarmosuma aliança, podemos fazerpartedainvasão.

—Dainvasão?—Maiaergueuassobrancelhas.— Sebastian vai invadir Idris— explicouMaureen, jogando o plástico no

chão.—Ele vai lutar e vai vencer.Depois então dividiremos omundo, todosnós,eelevainosdartodasaspessoasquequisermoscomer...—Elamordeuopirulitoefezumacareta.—Urgh.Eca.—Cuspiuodoce,masjáestavacomoslábiosmanchadosdevermelhoeazul.

—Entendi—rebateuMaia.—Nessecaso...absolutamente,vamosnosaliarcontraosCaçadoresdeSombras.

ElasentiuMorcegoficartensoaoseulado.—Maia...Maiaoignorou,dandoumpassoparaafrente.Ofereceuseupulso.—Osanguefazumpacto—disseela.—Éoquedizemasleisantigas.Beba

meusangueparaselarnossoacordo.— Maia, não — exclamou Morcego. Ela lançou a ele um olhar de

repreensão.—Écomotemqueserfeito—disseMaia.Maureensorria.Descartouopirulito,quedespedaçounochão.—Ah,quelegal—falouela.—Comoirmãsdesangue.—Exatamente—respondeuMaia,sepreparandoenquantoameninamais

jovemapegavapelobraço.OsdedinhosdeMaureenseentrelaçaramaosdela.Estavam frios e grudentos de açúcar. Fez-se um clique quando as presas deMaureensurgiram.—Exatamen...

OsdentesdeMaureenseenterraramnopulsodeMaia.Elanãofezqualqueresforçoparasergentil:umadorsubiupelobraçodeMaia,eelaarfou.Oslobosatrás se mexeram desconfortavelmente. Ela ouvia Morcego respirando de

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maneira ofegante, por causa do esforço para não avançar em Maureen earrancá-ladelá.

Maureenengoliuemseco,sorrindo,osdentesaindaenterradosnobraçodeMaia.OsvasossanguíneosnobraçodeMaialatejavamdedor;elaencontrouosolhosdeLilyacimadacabeçadeMaureen.Lilysorriufriamente.

De repente, Maureen engasgou e recuou. Levou a mão à boca; os lábiosestavaminchando,comoosdealguémtendoumareaçãoalérgicaaabelhas.

— Está doendo — queixou-se ela, e em seguida ssuras começaram a seespalhar pelo seu rosto, começando a partir da boca. Seu corpo sofreuespasmos.—Mamãe—sussurroucomavozpequena,ecomeçouasucumbir:ocabelosereduziuacinzas,emseguidaapele,descascandoatéosossos.Maiadeu um passo para trás, o pulso latejando enquanto o vestido deMaureen seamontoavanochão,rosa,brilhantee...vazio.

—Meu...Oqueaconteceu?—indagouMorcego,esegurouMaiaenquantoelatropeçava.Seupulsorasgadojáestavacomeçandoasecurar,maselapareciaumpouco tonta.Obandode lobosmurmurava ao redor.Omais perturbadorfoi ver os vampiros se juntando, sussurrando, os rostos pálidos venenosos,cheiosdeódio.

—O que você fez?— perguntou um deles, ummenino louro, com a vozestridente.—Oquefezcomnossalíder?

MaiaencarouLily.Aexpressãodesta estava fria evazia.Pelaprimeiravez,Maiasentiuaameaçadopânicoseexpandirpeloseucorpo.Lily...

—Águabenta—disseLily.—Nasveias.Ela aplicoumais cedo, comumaseringa,paraqueMaureenfosseenvenenada.

Ovampirolouroexibiuosdentes,aspresascrescendo.—Atraiçãotemconsequências—alertouele.—Lobisomens...—Pare—disseLily.—Elafezporqueeupedi.Maia exalou, quase surpresa pelo alívio que a atingiu. Lily estava olhando

paraosoutrosvampiros,queaencaravam,confusos.—SebastianMorgensternénosso inimigo, assimcomoé inimigode todos

os habitantes do Submundo— explicou Lily.— Se destruir os Caçadores de

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Sombras,logodepoiselevoltaráaatençãoparanós.SeuexércitodeguerreirosCrepuscularesmatariaRaphael edepois acabaria como restantedasCriançasda Noite. Maureen jamais teria enxergado isso. Ela teria levado todos nós àdestruição.

Maiasacudiuopulsoesevoltouparaobando.—EueLily zemosumacordo—informou.—Estafoiaúnicamaneira.A

aliança entre nós foi sincera. Esta é a nossa chance, quando os exércitos deSebastian estão pequenos e os Caçadores de Sombras ainda são poderosos;agoraéahoraemquepodemosfazerdiferença.ÉomomentoemquepodemosvingarosquemorreramnaPraetor.

—Quemvainoscomandar?—resmungouovampirolouro.—Quemmataoantigolíderéqueassumealiderança,masnãopodemosserlideradosporumalicantrope.—EleolhouparaMaia.—Semofensas.

—Nãoofendeu—murmurouela.—FuieuquemateiMaureen—disseLily.—Maia foiaarmaqueutilizei,

masoplanofoimeu,minhamãoéqueestavaportrás.Eusereia líder.Anãoserquealguémseoponha.

Os vampiros se entreolharam, confusos. Morcego, para a surpresa edivertimentodeMaia,estalavaasjuntasdosdedossonoramentenosilêncio.

OslábiosvermelhosdeLilysorriram.—Acheimesmoquenão iriamseopor.—Eladeuumpassoemdireçãoa

Maia,evitandoovestidoeapilhadecinzasquerestavamdeMaureen.—Agora—disse—,porquenãodiscutimosestaaliança?

—Nãoprepareinenhumatorta—anunciouAlecquandoJaceeClaryvoltaramparaagrandecâmaracentraldacaverna.Eleestavadeitadodecostas,sobreumcobertor esticado, a cabeça apoiada em um casaco amassado. Havia umafogueira produzindo fumaça, as chamas projetando sombras alongadas nasparedes.

Ele tinha espalhado suprimentos: pão e chocolate, castanhas e barras decereal, águaemaçãsmachucadas.Clary sentiuo estômagoenrijecer, só então

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percebendo o quanto estava faminta. Havia três garrafas plásticas perto dacomida:duasdeáguaeumamaisescuracomvinho.

— Não preparei nenhuma torta — repetiu Alec, gesticulandoexpressivamente com uma das mãos —, por três motivos. Um, porque nãotenhonenhumingredientedetorta.Dois,porquenãoseifazertorta.

Elepausou,claramenteaguardando.Removendo a espada e se apoiando contra a parede da caverna, Jace

perguntou,exaurido:—Etrês?— Porque não sou sua empregada — disse Alec, claramente satisfeito

consigo.Clarynãoconseguiuconterosorriso.Desatouocintodearmaseorepousou

cautelosamente perto da parede; Jace, retirando o próprio cinto, revirou osolhos.

— Você sabe que o vinho é para motivos antissépticos — disse Jace, seespalhandoelegantementepelochão,pertodeAlec.Clarysentouaoladodele.Todos os músculos do corpo dela protestaram: nem mesmo os meses detreinamentoaprepararamparaacaminhadadodiapelaareiaardente.

—Nãotemálcoolsu cientenovinhoparaquepossaserutilizadocom nsantissépticos— respondeuAlec.—Alémdisso, não estou embriagado. Estoucontemplativo.

—Certo.— Jace pegou umamaçã, cortou-a em dois e ofereceumetade aClary.Elamordeuafruta,lembrando.OprimeirobeijocomJacetevegostodemaçã.

—Então—falouela.—Oqueestácontemplando?— O que está acontecendo em casa — disse Alec. — Agora que

provavelmentejáperceberamqueagentesaiuetudoomais.EstoumesentindomalporAlineeHelen.Queriateravisadoaelas.

—Nãosesentemalporseuspais?—perguntouClary.—Não—respondeuAlecapósuma longapausa.—Eles tiveramachance

de fazer a coisa certa.— Ele rolou para o lado e olhou para eles. Seus olhos

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cavammuito azuis à luz do fogo.— Sempre achei que ser um Caçador deSombras signi cava ter que aprovar tudo que a Clave decidia — falou. —Achava que, de outra forma, eu não seria leal. Procurava pretextos para eles.Sempreprocurei.Mas sintoque sempreque temosque lutar, estamos lutandoumaguerraemduasfrentes.Combatemoso inimigoetambémcombatemosaClave.Eunão...Simplesmentenãoseimaiscomomesinto.

Jacesorriudocementeparaeleatravésdafogueira.—Rebelde—falou.Alecfezumacaretaeseapoiousobreoscotovelos.—Nãofaçapiadacomigo—irritou-se,comvigorsu cienteparadeixarJace

surpreso.AsexpressõesdeJaceeramilegíveisparaamaioriadaspessoas,masClaryo

conheciabemobastanteparareconhecerorápido lampejodedorquepassouporseurosto,eaansiedadeaoseinclinarparaafrentepararesponderaAlec...exatamentequandoIsabelleeSimonentraramnorecinto.Isabelleestavarubra,mas o rubor de alguém que estava correndo, e não se entregando à paixão.Pobre Simon, pensou Clary, entretida; um entretenimento que passou quaseinstantaneamentequandonotouosolharesdosdois.

— O corredor a leste termina em uma porta — anunciou Isabelle sempreâmbulos. — Um portão, como o que atravessamos na entrada, mas estáquebrado.E temmuitosdemônios,do tipovoador.Nãoestãoseaproximandodaqui,masdáparavê-los.Provavelmentealguémdeveria cardeolho,sóparagarantir.

—Eufico—disseAlec,levantando-se.—Nãovoudormirmesmo.— Nem eu. — Jace se levantou, cambaleando. — Além do mais, alguém

precisa te fazer companhia.—Ele olhouparaClary, que ofereceuum sorrisoanimador.ElasabiaqueJacedetestavaquandoAlec cavacomraivadele.Clarynãosabiaaocertoseeleconseguiasentirodesacordopelolaçoparabatai,ouseeraapenasempatianormal,ouumpoucodosdois.

—Temtrês luas—falouIsabelle,esentou-sepertodacomida,alcançandouma barra de cereais.— E Simon teve a impressão de ter visto uma cidade.

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Umacidadedemoníaca.—Nãodeuparatercerteza—acrescentouSimonrapidamente.— Nos livros Edom tem uma capital, chamada Idumeia— disse Alec.—

Podeseralgumacoisa.Vamos cardeolho.—Eleseabaixouparapegaroarcoefoiparaocorredorleste.Jacepegouumalâminasera m,deuumrápidobeijoem Clary e o seguiu; Clary sentou-se ao lado de Izzy, olhando para o fogo,permitindo que o suave murmúrio da conversa entre Isabelle e Simonembalasseseusono.

Jacesentiaostendõesnascostasenopescoçoestalaremdeexaustãoenquantoseabaixavaentreaspedras,deslizandodeencontroaumadasrochasaté carsentado, recostado em uma das maiores, tentando não inalar demais o arpungente. Ouviu Alec se ajeitando ao seu lado, o material resistente douniformearranhandocontraochão.Aluzdoluarre etiadeseuarcoenquantoeleorepousavasobreoprópriocoloeobservavaapaisagem.

As três luas estavam baixas no céu; cada fragmento parecia inchado eenorme,cordevinho,etingiaapaisagemcomumbrilhosangrento.

—Vocêvaifalar?—perguntouJace.—Ouestaéumadaquelasocasiõesemqueestátãoirritadocomigoquenãodiznada?

—Nãoestouirritadocomvocê—disseAlec,epassouamãoenluvadasobreoarco,batendoosdedosociosamentesobreamadeira.

—Achei que pudesse estar— falou Jace.— Se eu tivesse concordado emprocurarabrigo,nãoteriasidoatacado.Coloqueitodosnósemperigo...

Alec respirou fundo e exalou devagar. As luas estavam ligeiramente maisaltasnocéueprojetavamumbrilhoescuronorostodele.Alecparecia jovem,oscabelossujosebagunçados,acamisarasgada.

—Sabíamosdosriscosqueestávamoscorrendoquandoviemosparacácomvocê. Nos candidatamos amorrer. Digo, é óbvio que pre ro sobreviver.Mastodosnósescolhemos.

—Naprimeira vez emqueme viu—disse Jace, olhandopara as próprias

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mãos,queabraçavamosjoelhos—,apostoquenãopensou:Elevaiseracausadaminhamorte.

—Naprimeira vez emqueo vi, desejei que voltasse a Idris.— Jace olhouincrédulo para Alec, que deu de ombros. — Você sabe que não gosto demudanças.

—Maspassouagostardemim—declarouJace,confiante.—Em algummomento, sim— concordouAlec.—Comomusgo ou uma

doençadepele.—Vocêmeama.—Jace inclinouacabeçapara trás,deencontroàpedra,

admirando a paisagem morta através de olhos cansados. — Acha quedeveríamosterdeixadoumbilheteparaMaryseeRobert?

Alecdeuumarisadaseca.—Achoque vão acabar descobrindopara onde viemos.Nodevido tempo.

Talvez eu nãome importe semeu pai vai descobrir ou não.— Alec jogou acabeçaparatrásesuspirou.—Ai,Deus,eusouumclichê—disse,desesperado.— Por que me importo? Se papai concluir que me odeia porque não souheterossexual,elenãovalemeusofrimento,certo?

—Nãoolheparamim—falouJace.—Meupaiadotivofoiumassassinoemmassa. E eu continuava preocupado com o que ele pensava. É o que somosprogramadosparafazer.Seupaisempremepareceuexcelenteemcomparaçãoaomeu.

— Claro, ele gosta de você— disse Alec.— Você é heterossexual e temexpectativasbaixasemrelaçãoafiguraspaternas.

— Acho que provavelmente vão colocar isso na minha lápide. “EraHeterossexualeTinhaExpectativasBaixas”.

Alec sorriu—umlampejobrevee forçadodeumsorriso. Jaceo toucomolhossemicerrados.

—Temcertezadequenãoestáirritado?Vocêmepareceumpoucoirritado.Alec olhou para o céu. Não havia estrelas visíveis através da coberta de

nuvem,sóumamanchinhapreto-amarelada.—Nemtudogiraemtornodevocê.

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— Se você não está bem, deveria me contar — incitou Jace. — Estamostodosestressados,mastemosquenosmantertãofirmesquanto...

Alecvirou-separaele.Seusolhosestavamdescrentes.—Estarbem?Comovocê estaria?—perguntou.—Comoestaria seClary

tivesse sido levada por Sebastian? Se fosse ela que estivéssemos indo resgatar,semsaberseestariavivaoumorta?Comovocêestaria?

Jace sentiu como se tivesse levado um tapa de Alec. Também sentiu quemerecia. Precisou de diversas tentativas antes de conseguir dizer as palavrasseguintes:

—Eu...Euestariaumcaco.Alecselevantou.Umasilhuetacontraocéucordehematoma,obrilhodas

luas quebradas re etindo do chão; Jace conseguia enxergar cada faceta daexpressão deAlec, tudo que este vinha guardando. Pensou namaneira comoAlecmataraaquelecavaleirofadanaCorte;deformafria,rápidaeimplacável.Nada daquilo correspondia a Alec. No entanto, Jace nem tinha parado parapensarnoassunto,pensarnoquehaviaprovocadoaquelafrieza:ador,araiva,omedo.

—Isto—disseAlec,gesticulandoparasi.—Istosoueusendoumcaco.—Alec...— Não sou como você — justi cou Alec. — Eu... Não consigo criar a

fachada perfeita o tempo todo. Consigo contar piadas, consigo tentar, masexistemlimites.Nãoconsigo...

Jaceselevantou,cambaleando.— Mas não precisa criar uma fachada — retrucou, espantado. — Não

precisafingir.Vocêpode...—Posso sucumbir?Nós dois sabemos que isso não é verdade. Precisamos

nosmanter rmes, e, durante todos aqueles anos euobservei você, euo vi sesegurando, vi quando achou que tinha perdido seu pai, vi quandopensou queClary fosse sua irmã,observeivocê, e foi assimquevocê sobreviveu, então, seeutenhoquesobreviver,fareiomesmo.

—Mas você não é como eu— disse Jace, e sentiu como se o solo rme

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estivesserachandosobseuspés.Quandotinha10anosdeidade,eleconstruírasua vida sobre o alicerce dos Lightwood, principalmente de Alec. Sempreachara que comoparabatai estariam lado a lado, pensara ter estado presenteparaAlectantoquantoAlecestiveraparaele,masagorapercebia,horrorizado,que pouco tinha pensado em Alec desde que os prisioneiros haviam sidolevados, enãopensaraemcomocadahorae cadaminutodeviamestar sendoparaele,semsaberseMagnusestavavivooumorto.—Vocêémelhor.

Alecoencarou,opeitoinflandoedesinflandorapidamente.— O que você imaginou? — perguntou bruscamente. — Quando viemos

paraestemundo?Euvisuaexpressãoquandoencontramosvocê.Nãodigaquenãopreviu“nada”.Um“nada”nãoteriadeixadovocêcomaquelacara.

Jacebalançouacabeça.—Oquevocêviu?—Vi o Salão dos Acordos. Havia um enorme banquete da vitória, e todo

mundoestavalá.Maxestavalá.Evocê,eMagnus,etodomundo,epapaiestavafazendoumdiscursosobrecomoeueraomelhorguerreiroqueeleconhecera...—Avoz falhou.—Nuncaacheiqueeu iriaquerer seromelhorguerreiro—falou.—Sempreacheique cariafelizsendoaestrelaescuradasuasupernova.Digo, você tem o dom do anjo. E eu poderia treinar e treinar... jamais sereicomovocê.

—Vocêjamaisiriaquerersercomoeu—disseJace.—Vocênãoéassim.ArespiraçãodeAlecdesacelerou.—Eusei—disseele.—Nãotenhoinveja.Sempresoube,decara,quetodos

achavamvocêmelhorque eu.Meupai achava.AClave achava. Izzy eMaxoolhavam como o grande guerreiro emquemqueriam se espelhar.Mas no diaemquevocême chamoupara ser seuparabatai, eu soubeque isso signi cavaque con ava emmimobastanteparamepedir ajuda.Estavamedizendoquenão era o guerreiro solitário e autossu ciente. Você precisava demim. Entãopercebiqueexistiaumapessoaquenãooachavamelhorqueeu.Vocêmesmo.

— Existem muitas formas de ser o melhor — completou Jace. — Desdeaquelaépocaeu jásabiadisso.Eupodiaser sicamentemais forte,noentanto

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você tem o coraçãomais verdadeiro dentre todos que conheço, é o quemaistem fé nos outros, e por esse aspecto você émuitomelhor do que eu jamaispoderiaser.

Alecoencaroucomsurpresa.—AmelhorcoisaqueValentimfezpormimfoimemandarparavocês—

acrescentou Jace. — Para os seus pais também, é claro, mas principalmentepara vocês. Você, Izzy e Max. Se não fossem vocês, eu teria sido... comoSebastian.Iriaquereristo.—Eleapontouparaoterrenobaldionafrentedeles.— Iria querer ser o rei deuma terrade esqueletos e corpos.— Jaceparoudefalar,semicerrandoosolhosparaadistância.—Viuisso?

Alecbalançouacabeça.—Nãovejonada.— Luz, re etindo de algum lugar. — Jace procurou entre as sombras do

deserto.Tirouuma lâmina sera mdo cinto. Sobo luar,mesmodesativado, oadamasbrilhoucomofulgordeumrubi.—Espereaqui—disseele.—Fiquedeguardanaentrada.Vouolhar.

—Jace...—começouAlec,masJacejáestavacorrendopelodeclive,pulandodepedraempedra.

Aoseaproximardosopé,aspedrassetornarammaisclarasecomeçaramasucumbirassimqueeleaterrissounelas.Por mderamlugaràareia,marcadaporpedrasarqueadasenormes.Haviaalgumascoisasquecresciampontuandoapaisagem: árvores que pareciam fossilizadas por uma explosão súbita, umachamasolar.

AtrásdeleestavaAleceaentradadostúneis.Adiantehaviadesolação.Jacecomeçouacaminharcuidadosamenteporentreaspedraseasárvoresmortas.Aosemexer,viudenovo,uma faíscaavançando,algovivoentre tantamorte.Elesevirouemdireçãoàquilo,colocandocadapécuidadosamentenafrentedooutro.

—Quem está aí?— perguntou, em seguida franziu o rosto.— É claro—acrescentou,seendereçandoàescuridãoaoredor—,mesmoeu,comoCaçadorde Sombras, já vi lmes o su ciente para saber que qualquer um que grita

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“Quemestáaí?”vaisermortoautomaticamente.Um barulho ecoou pelo ar — um arquejo, um engulho de respiração

entrecortada. Jace cou tenso e avançou velozmente. Lá estava: uma sombra,evoluindo do escuro para uma forma humana. Uma mulher, encolhida,ajoelhada,vestindoumatúnicapálidamanchadadesujeiraesangue.Elapareciachorar.

Jace cerrou o punho em volta do cabo da lâmina. Ele já havia abordadodemônios ngindo estar desamparados ou disfarçando a verdadeira naturezaem ocasiões su cientes, demodo que aprendera a sentirmenos compaixão emaisdesconfiança.

—Dumah—sussurrouele,ealâminabrilhoucomaluz.Conseguiaenxergaramulhercommaisclarezaagora.Tinhacabeloslongos

que caíam para o chão e semisturavam à terra chamuscada, e um círculo deferroaoredordocenho.Tinhacabelosruivosàssombras,cordesangueseco,eporuminstante,antesdeelase levantaresevirarparaele,pensounaRainhaSeelie...

Masnãoeraela.EstamulhereraumaCaçadoradeSombras.Eramaisqueisso.UsavaastúnicasbrancasdeumaIrmãdeFerroamarradaabaixodosseios,os olhos no tom alaranjado nítido de uma chama. Símbolos escurosdes guravam suas bochechas e testa. Estava com as mãos fechadas sobre opeito.Agoraasrelaxava,deixandoquecaíssemjuntoàslateraisdocorpo,eJacesentiuoargelarnospulmõesaoveroferimentomassivoemseupeito,osangueseespalhandopelotecidobrancodovestido.

—Vocêmeconhece,nãoconhece,CaçadordeSombras?—perguntouela.—SouaIrmãMagdalenadasIrmãsdeFerro,aquelaquevocêassassinou.

Jaceengoliuemseco.—Nãoéela.Vocêéumdemônio.Elabalançouacabeça.—FuiamaldiçoadaportertraídoaClave.Quandovocêmematou,vimpara

cá. Este é meu Inferno, e co vagando por aqui. Sem nunca me curar,

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sangrandoeternamente.—Elaapontouparatrás,eeleviuaspegadasatrásdamoça, que traziam a este local, as marcas de pés descalços contornadas emsangue.—Foiistoquevocêfezcomigo.

—Nãofuieu—falouele,rouco.Elainclinouacabeçaparaolado.—Nãofoi?—questionouela.—Nãoselembra?E ele se lembrava, o pequeno estúdio em Paris, o Cálice deadamas,

Magdalena sendopegade surpresapelo ataquequando ele sacou a lâmina e agolpeou;oolhardelaenquantocaíasobreamesadetrabalho,morrendo...

Sanguena lâmina,nasmãos,nas roupas.Nãoera sanguededemônionemicor.Nãoerasangueinimigo.ErasanguedeumCaçadordeSombras.

—Vocêselembra—disseMagdalena,inclinandoacabeçaparaoladocomum sorrisinho. — Como um demônio saberia das coisas que sei, JaceHerondale?

—Não...émeunome—sussurrouJace.O sangue corria quente em suas veias, apertando sua garganta,

estrangulando as palavras. Ele pensou na caixa de prata com a estampa depassarinhos,emgarçasgraciosasnoar,nahistóriadeumadasgrandesfamíliasdeCaçadoresdeSombrasexpostaemlivros,cartaseheranças,eemcomonãosesentiamerecedordetocaraqueleconteúdo.

Aexpressãodela tremeu,comosenão tivesseentendidoexatamenteoqueJacedissera,porémcontinuousuavemente,caminhandoemdireçãoaelepelochãorachado.

— Então o que você é? Não possui qualquer legitimidade para se chamarLightwood.ÉumMorgenstern?ComoJonathan?

Jacerespiroufundo,esuagargantaqueimoucomofogo.Estavacomocorpogrudentodesuor,asmãostrêmulas.Tudonelegritavaparaavançar,perfuraracriatura Magdalena com sua lâmina sera m, no entanto ele não parava deenxergá-lacaindo,morrendo,emParis,easimesmoacimadela,assimilandooque tinha feito, que era umassassino, e comopoderiamatar amesmapessoaduasvezes...

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— Você gostou, não gostou? — sussurrou ela. — De ter sido ligado aJonathan, vocêsdois sendoum? Isso libertouvocê.Podedizer a si, agora,quetudooque fez foiobrigado,quenãoestavanocontrole,quenãomeperfuroucomalâmina,masnósdoissabemosaverdade.OlaçodeLilithfoiapenasumpretextoparavocêfazeroquejádesejava.

Clary, pensou ele, dolorosamente. Se ela estivesse aqui, ele teria suaconvicção inexplicável para se apoiar, a crença dela de que Jace eraintrinsecamente bom, uma crença que servia como fortaleza, que nenhumadúvida atravessava.Mas ela não estava ali e ele estava sozinho em uma terraqueimada,morta,amesmaterramorta...

—Você viu,não viu?— sussurrouMagdalena, e ela estavaquase emcimadele agora, os olhos saltando e ardendo em laranja e vermelho.— Esta terraqueimada, todaadestruição,evocênocomando?Essa foi suavisão?Odesejodeseucoração?—Elapegouopulsodele,eavozseelevou,exultante,nãomaishumana.—Acha que seu segredo sombrio é querer ser como Jonathan,masvoulhecontaroverdadeirosegredo,omaissombriodetodos.Vocêjáé.

—Não!—gritouJace,elevantoualâmina,umarcodefogopelocéu.Magdalenadeuumpuloparatrás,e,poruminstante,Jacepensouqueofogo

da lâmina tivesse acendido a ponta da túnica da criatura, pois uma chamaexplodiu diante dos olhos dele. Sentiu a ardência e a contorção de veias emúsculos em seus braços, ouviu o grito de Magdalena se tornar gutural edesumano.Elecambaleouparatrás...

Epercebeuqueofogotransbordavadele,quetinhaexplodidodesuasmãosedaspontasdosdedosemondasquecorriamodeserto,explodindotudoadiante.EleviuMagdalenasecontorceregirar,setransformaremalgohorrendo,cheiode tentáculos e repulsivo, antes de de nhar em cinzas, dando um grito nal.Jace viu o chão escurecer e brilhar enquanto ele caía de joelhos, a lâminasera m derretendo em chamas que subiam e o cercavam. Ele pensou:Vouqueimaratéamorteaqui,enquantoofogorugiapelaplanície,riscandoocéu.

Elenãoestavacommedo.

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17OfertasArdentes

Clary sonhou com fogo, um pilar de fogo varrendo uma paisagem desértica,queimandotudopelafrente:árvores,mato,pessoasgritando.Oscorposficavampretos aodesmoronaremdianteda forçadas chamas, e acimadeles havia umsímbolo,pairandocomoumanjo,uma gura comoduas asasunidasporumabarrasolitária...

Umgritocortoua fumaçaeasombra,arrancandoClarydeseuspesadelos.Elaabriuosolhoseviuofogo,brilhanteequente,eselevantou,paraalcançarHeosphoros.

Com a lâmina namão, os batimentos cardíacos dela foram desacelerandoaos poucos.O fogo não estava violento nemdescontrolado. Estava contido, afumaça utuando em direção ao enorme teto da caverna. Iluminava o espaçoemvolta.Ela via Simon e Isabelle sobobrilho, Izzy se levantandodo colodeSimonepiscando,confusa.

—Oque...Claryjáestavadepé.—Alguém gritou—disse ela.—Vocês dois quem aqui...Vou ver o que

aconteceu.— Não... não.— Isabelle se levantou exatamente quando Alec entrou na

câmara,arfando.— Jace—alertou ele.—Aconteceu algumacoisa...Clary,pegue a estela e

vamos.—Elesevirouecorreudevoltaparaotúnel.Claryen ouHeosphorosnocintoefoiatrás.Elaaceleroupelocorredor,as

botasarrastandoporpedrasirregulares,eirrompeupelanoite,comaestelana

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mão.A noite queimava. O planalto acinzentado de pedras se inclinava para o

deserto,ehaviafogoondeaspedrasencontravamaareia—fogoardendopeloar,deixandoocéudourado,queimandoochão.ElaolhoufixamenteparaAlec.

—OndeestáJace?—gritousobreoestalardaschamas.Eledesviouoolhardelaparaofogo.—Ali—respondeu.—Alidentro.Viofogosairdeleeengoli-lo.Ela sentiu um aperto no peito; cambaleou para trás, para longe de Alec,

comoseeleativessegolpeado,eemseguidaeleaalcançou,dizendo:—Clary.Elenãoestámorto.Seestivesse,eusaberia.Eusaberia...Isabelle e Simon irromperam da entrada da caverna atrás deles; Clary viu

ambos reagirem ao fogo celestial, Isabelle com olhos arregalados e Simon seencolhendo de pavor — fogo e vampiros não se misturavam, mesmo comSimonsendoumDiurno.Isabelleopegoupelobraço,comoqueparaprotegê-lo;Claryouviaosgritos,aspalavrasperdidascontraaferocidadedaschamas.Obraço de Clary ardia e doía. Ela olhou para baixo e percebeu que tinhacomeçadoadesenharnaprópriapele,ore exoassumindoocontroleemlugarda consciência. Observou enquanto um símbolopyr, para proteger do fogo,apareciaemseupulso,espessoenegrocontraapele.Tratava-sedeumsímboloforte:Claryeracapazdesentiropoderirradiando.

Elacomeçouadesceracolina,virando-seaosentirAlecemseuencalço.— Fique para trás — gritou para ele, e levantou o pulso, mostrando o

símbolo.—Nãoseisevaifuncionar—berrou.—Fiqueaqui;cuidedeSimonede Izzy, o fogo celestial deve manter os demônios afastados, mas só paragarantir.—E em seguida ela se voltou à corrida, disparando entre as pedras,diminuindo a distância entre ela e a lâmina, enquanto Alec cava parado natrilha,asmãoscerradasjuntoàslateraisdocorpo.

De perto o fogo era uma parede dourada, se movimentando e setransformando, cores piscando em seu núcleo: vermelho ardente, línguasalaranjadas e verdes. Clary não enxergava nada senão chamas; o calor queirradiava fazia sua pele formigar e os olhos lacrimejarem. Ela inspirou e

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queimouagarganta,daíentrounofogo.Foienvolvidacomosefosseumabraço.Omundo couvermelho,douradoe

laranja,etremulandodiantedeseusolhos.Seucabelolevantou,esvoaçandoaovento quente, e Clary não sabia ao certo diferenciar suasmechas quentes dofogo em si. Ela avançou cuidadosamente, cambaleando como se estivessecaminhandocontraumventomuitoforte—davaparasentirosímboloCorta-Fogo latejando em seu braço a cada passo— enquanto as chamas subiam eespiralavamaoredor.

Ela aspirou o fogomais uma vez e avançou, os ombros curvados como seestivesselevantandoumpeso.Nãohavianadaalémdefogoemvolta.Iamorreremmeio às chamas, pensou, queimando como uma pena, sem deixar sequerumapegadanaquelemundoalienígenapararegistrarquetinhapassadoporali.

Jace, pensou ela, e deu um último passo. As chamas se partiram em voltacomoumacortinaseabrindo,eelaengasgou,caindoparaa frente,os joelhosbatendonaterracomforça.OsímboloCorta-Fogonobraçoestavadesbotando,cando branco, sugando sua energia juntamente ao seu poder. Ela levantou a

cabeçaeolhou.O fogo se erguia em um círculo, chamas buscando o céu demoníaco

chamuscado.Aocentroencontrava-seJace,ajoelhado;elepróprioeraintocadopelofogo,acabeçalouraparatrás,osolhossemifechados.Estavacomasmãosno chão, e um rio do que parecia ouro derretido escorria de suas palmas.Costuravapelaterracomopequenascorrentesdelava,iluminandoosolo.Não,pensou ela, estava fazendomais do que iluminar. Estavacristalizando a terra,transformando-aemummaterialsólidoedouradoquebrilhavacomo...

Comoadamas.ElasearrastouemdireçãoaJace,ochãoabaixodeixandodeser um solo acidentado e virando uma substância vítrea escorregadia, comoadamas,porémdecordouradaemvezdebranca. Jacenãosemexeu:comooAnjoRazielseerguendodoLagoLynepingandoágua,elepermaneciaparadoenquanto o fogo saía de seu corpo, e o solo endurecia ao redor, setransformandoemouro.

Adamas. O poder daquilo subiu por Clary, fazendo seus ossos tremerem.

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Imagens oresciam em sua mente: símbolos, se elevando e em seguidadesaparecendocomofogosdeartifício,eelalamentouaperdadetodos,tantossímboloscujossigni cadose funçõesela jamaisconheceria,masdaíelaestavapróximaaJaceeoprimeirosímboloqueimaginou,osímbolocomoqualvinhasonhando nos últimos dias, surgiu em sua cabeça.Asas, ligadas por umabarra…não,não eramasas…o cabodeumaespada…sempre forao cabodeumaespada...

—Jace!—gritouela,eeleabriuosolhos.Maisdouradosatémesmoqueofogo.Eleaolhou,totalmenteincrédulo,eelaimediatamentepercebeuoqueelepensavaestarfazendo:ajoelhado,aguardandoparamorrer,aguardandoparaserconsumidopelofogocomoumsantomedieval.

Elaqueriaestapeá-lo.—Clary,como...Elaseesticouparasegurá-lopelopulso,porémelefoimaisvelozedesviou.—Não!Nãometoque.Nãoéseguro...— Jace, pare. — Ela levantou o braço, com o símbolopyr brilhando,

prateado naquele fulgor sobrenatural.— Eu atravessei o fogo para chegar atévocê—disseelasobreochiadodaschamas.—Estamosaqui.Nósdoisestamosaquiagora,entendeu?

Osolhosdeleestavamcomumtommaníaco,desesperados.—Clary,saia...— Não! — Ela o segurou pelos ombros, e dessa vez ele não recuou. Ela

agarrouaroupadele.—Euseicomoconsertaristo! —gritou,eseinclinouparapressionaroslábiosnosdele.

A boca de Jace estava quente e seca, a pele ardia enquanto ela passava asmãospelopescoçodeleparaseguraraslateraisdeseurosto.Elasentiagostodefogo,carvãoesanguenabocadele,eseperguntavaseelesentiaomesmogostonela.

—Con eemmim—sussurroueladeencontroaoslábiosdele,eapesardeas palavras terem sido engolidas pelo caos ao redor, ela o sentiu relaxarminimamente e assentir, inclinando-separa ela, deixandoo fogopassar entre

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elesenquantorespiravamohálitoumdooutro,saboreandoasfaíscasnoslábiosumdooutro.

—Confieemmim—sussurrouelaoutravez,ealcançousualâmina.

IsabelleestavacomosbraçosemtornodeSimon,detendo-o.Elasabiaqueseosoltasse, ele correria para o fogo, onde Clary desaparecera, e se jogaria alidentro.

Equeimariacomoumpavio, comoumpavioensopadodegasolina.Eleeraumvampiro.Isabelleosegurou,prendendo-opelopeitocomasmãos,eteveaimpressão de que podia sentir o vazio sob as costelas dele, no local onde seucoraçãonãobatia.Odelaestavaacelerado.Seucabeloesvoaçavacomoventoquente da imensa fogueira que ardia ao pé do planalto. Alec tinha descidometadedatrilhaeestavaali,inquieto;eraumasilhuetanegracontraaschamas.

E as chamas… saltavam em direção ao céu, riscando a lua quebrada.Mudando e se transformando, uma parede de ouro mortalmente linda.Conforme as chamas tremiam, Isabelle conseguia identi car sombras semovimentandoalidentro—asombradeumapessoaajoelhada,edepoisoutra,menor, abaixada e engatinhando.Clary, pensou, se arrastando para Jace nocoraçãodoincêndio.SabiaqueClaryhaviaaplicadoumsímbolopyrnobraço,masIsabellenuncatinhaouvidofalaremumsímboloCorta-Fogoquepudessesuportaraqueletipodechama.

—Iz—sussurrouSimon.—Eunão...—Shhh.—Elaoseguroucommaisforça,comoseaquilofosseimpedirela

mesmadesucumbir. Jaceestavaali,nocentrodo fogo,eelanãopodiaperderoutro irmão,nãopodia...—Eles estãobem—avisouela.—Se Jace estivesseferido,Alecsaberia.Eseeleestábem,entãoClarytambémestá.

—Elesvãoqueimaratéamorte—respondeuSimon,soandoperdido.Isabellegritouquandoaschamasseelevarammaisaltoderepente.Alecdeu

umpassoparaafrenteeemseguidacaiudejoelhos,epôsasmãosnochão.Acurvadesuascostasformavaumarcodedor.Océusetransformaraemespiraisdefogo,rotatóriosevertiginosos.

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IsabellesoltouSimonecorreupelatrilha,paraoirmão.Curvou-sesobreele,agarrando-opelocasaco,puxando-oparaqueselevantasse.

—Alec,Alec...Alec coudepé,cambaleando,orostointeiramentepálido,excetoporonde

estavamanchadocomfuligempreta.Eledeumeia-volta, candodecostasparaIsabelle,tirandoajaqueta.

—Meusímbolodeparabatai...conseguevê-lo?Isabelle sentiu um aperto no estômago; por um instante pensou que fosse

desmaiar. Ela agarrouAlec pela gola da camisa, puxou-o para baixo e exalou,aliviada.

—Continuaaí.Alecvestiuajaquetanovamente.— Senti alguma coisa mudar; foi como se algo dentro de mim tivesse se

contorcido.—Elelevantouavoz.—Vouatélá.—Não!—Isabelleopegoupelobraço,eemseguidaSimongritou,ao lado

dela:—Vejam.Eleestavaapontandoparaofogo.Isabelleolhou,semcompreenderporum

instante,atéquepercebeuoqueelemostrava.Aschamastinhamcomeçadoadiminuir.Elabalançouacabeçacomosequisesseclarearasideias,amãoaindano braço deAlec,mas não era ilusão.O fogo estava diminuindo. As chamasencolheram,passandodepilareslaranjasaumamarelodesbotado,securvandoparadentrocomodedos.ElasoltouAlec,eostrêsficaramenfileirados,ombroaombro, enquanto o fogo abaixava, revelando um círculo de terra ligeiramenteescurecidoondeaschamasqueimaram,ealidentro,duasfiguras.ClaryeJace.

Eradifícilenxergá-losatravésdafumaçaedobrilhovermelhodasbrasasqueaindaqueimavam,mas couclaroqueestavamvivose inteiros.Clarydepé,eJace ajoelhado diante dela, segurando suas mãos, quase como se estivesserecebendootítulodecavaleiro.Haviaalgoritualísticonaquelaposição,algoqueremetia aum feitiço estranho e antigo.Quando a fumaça sedissipou, Isabelle

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viu o brilho claro do cabelo de Jace, que se levantava. Ambos começaram acaminharpelatrilha.

Isabelle, Simon e Alec romperam a la e correram para eles. Isabelle sejogouemJace,queaabraçou,aomesmotempoesticando-separaagarraramãodeAlecmesmoenquantoeleseguravaIsabellecom rmeza.Apeledeleerafriacontraadela,quasegelada.Ouniformenãoapresentavaqualquerqueimaduraoumarca,assimcomoaterradesérticaatrásdelesnãoapresentavasinaldeterpassadoporumincêndiomassivohápoucosinstantes.

IsabelleapoiouacabeçanopeitodeJaceeviuSimonabraçandoClary.Eleasegurava com rmeza, balançando a cabeça, e quando Clary ofereceu umsorrisoradianteparaele,Isabellepercebeuquenãosentianenhumafagulhadeciúme.Nãohavia qualquer diferença entre o abraço de Simon eClary para odelaedeJace.Tinhaamorali,claramente,maseraumamorfraterno.

Ela se afastou de Jace e sorriu paraClary, que retribuiu timidamente.Alectomou a iniciativa de abraçar Clary, e Simon e Jace se entreolharamcautelosamente.DerepenteSimonsorriu—aquelesorrisosúbitoeinesperadoque surgia atémesmo nas piores circunstâncias, o qual Isabelle adorava— eestendeuosbraçosparaJace.

Jacebalançouacabeça.— Não me importo se acabei de me incendiar — falou. — Não vou te

abraçar.Simonsuspiroueabaixouosbraços.—Piorparavocê—disseele.—Setivesseabraçado,euteriadeixado,mas

sinceramente,teriasidoumabraçodepena.JacesevoltouparaClary,quenãoestavamaisabraçandoAlec,esimparada,

parecendo entretida, com a mão no cabo de Heosphoros. A lâmina pareciabrilhar,comosetivesseabsorvidopartedaluzdofogo.

—Ouviramisso?—perguntouJace.—Umabraçodepena?Aleclevantouamão.Surpreendentemente,Jacesecalou.— Reconheço que estamos tomados pela alegria da sobrevivência, o que

explica este comportamento estúpido — disse Alec. — Mas primeiro —

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levantou um dedo—, acho que nós três merecemos uma explicação. O queaconteceu?Comovocêperdeuocontroledofogo?Foiatacado?

—Foiumdemônio—respondeuJaceapósumapausa.—Assumiuaformadeumamulherque...alguémqueeumachuqueiquandoSebastianmepossuiu.Meprovocouatéeuperderocontrolesobreofogocelestial.Clarymeajudouarecuperá-lo.

—Eéisso?Vocêsdoisestãobem?—perguntouIsabelle,meioincrédula.—Achei...quandovioquesepassava...PenseiquefosseSebastian.Queeletivessevindoaténósdealguma forma.Quevocê tivesse tentado incendiá-loe tivesseacabadosequeimando...

—Issonãovaiacontecer.—JacetocouorostodeIzzydelicadamente.—Jáestou com o fogo controlado. Sei como usar, e como não usar. Comodirecionar.

—Como?—perguntouAlec,impressionado.Jacehesitou.SeusolhosdesviaramparaClary,easpupilaspareceramdilatar,

comoseumacortinativessedescidosobreeles.—Vocêsterãosimplesmentequeconfiaremmim.—É isso?—Simonsemanifestou, incrédulo.—Simplesmentecon arem

você?—Nãoconfiam?—perguntouJace.—Eu...—SimonolhouparaIsabelle,queolhouparaoirmão.Apósuminstante,Alecassentiu.—Con amososu cienteparaviratéaqui—falou.—Vamoscon aratéo

fim.— Se bem que seria incrível conhecer seu plano, tipo, um pouco antes—

disse Isabelle.—Antes do m, quero dizer.—Alec ergueu uma sobrancelhapara ela. Izzy deu de ombros inocentemente. — Só um pouquinho antes —continuou.—Queropodermepreparar.

Os olhos do irmão encontraramos dela, e, em seguida, ele começou a rir,umpoucorouco—quasecomosetivesseseesquecidodecomofazê-lo.

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ÀConsulesa:OPovodasFadasnãoé seualiado.Eles sãoseus inimigos.Odeiamos

Nephilim e planejam traí-los e destruí-los. Colaboraram com SebastianMorgenstern nos ataques e nas destruições dos Institutos.Não con e emMeliornnememqualquerconselheirodenenhumaCorte.ARainhaSeelieé sua inimiga.Não tente responder estamensagem.Estou comaCaçadaSelvagemagora,eelesvãomematarseacharemqueconteialgumacoisa.

MarkBlackthorn

Jia Penhallow olhou por cima dos óculos de leitura para Emma e Julian, queestavamparados, tensos,na frentedaescrivaninhadabibliotecadacasa.Umagrandejanelaretangularencontrava-seabertaatrásdaConsulesa,eEmmaviaapaisagemdeAlicante seestendendo:casascolinasabaixo,canaiscorrendoemdireçãoaoSalãodosAcordos,aColinadeGardseerguendocontraocéu.

Jiaolhouparabaixonovamente,paraopapelquehaviamlhetrazido.Tinhasido dobrado com uma esperteza quase diabólica dentro da noz, e foramnecessáriosséculos,alémdosdedoshábeisdeTy,parasoltá-lo.

— Seu irmão escreveu mais alguma coisa além disto? Algum recadoparticularparavocê?

—Não—respondeuJulian,edeveterdemonstradoalgumacoisanatensãodolorosadesuavoz,poisJiaacreditouneleenãoinsistiunoassunto.

—Vocêentendeoque istosigni ca—questionouela.—OConselhonãovaiquereracreditar.Vãoafirmarqueéumtruque.

— É a letra deMark— disse Julian.— E a forma como assinou...— Eleapontouparaamarcanabasedopapel:umaimpressãonítidadeespinhos,feitacomoquepareciaserumatintamarrom-avermelhada.—Elepassouoaneldefamíliaemsangueeoutilizouparafazeristo—explicouJulian,orostorubro.— Uma vez me mostrou como fazer. Mais ninguém teria o anel da famíliaBlackthorn,nemtampoucosaberiafazerestamarcacomele.

Jiaolhoudospunhoscerradosde Julianparaaexpressão rmedeEmmaeassentiu.

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—Vocêsestãobem?—perguntouelamaisgentilmente.—SabemoqueéaCaçadaSelvagem?

Ty tinha oferecido um discurso extenso sobre o assunto, mas Emmadescobria que agora, sob o olhar sombrio e solidário da Consulesa, não eracapazdeencontraraspalavras.FoiJulianquesepronunciou:

—Fadascaçadoras—explicou.—Cavalgampelocéu.Aspessoasacreditamquesevocêsegui-las,elaspodemguiá-loatéaterradosmortos,ouaFaerie,oreinodasfadas.

—Gwyn apNudd lidera o bando—disse Jia.—Ele não tem aliança; fazpartedeumamagiamaisselvagem.ÉchamadodeColetordosMortos.Apesarde ser uma fada, ele e seus cavaleirosnão estão envolvidosnosAcordos.Nãotêm qualquer entendimento com os Caçadores de Sombras, não reconhecemnossajurisdiçãoenãoseguemleis,nenhumalei.Compreendem?

Elesaolharam,confusos.Elasuspirou.—SeGwynpegouseuirmãoparasetornarumdeseusCaçadores,podeser

impossível...—Vocêestádizendoquenãovaiconseguirtrazê-lodevolta?—perguntou

Emma,eviualgumacoisasedespedaçarnosolhosdeJulian.Aquelavisãoafezdesejar pular sobre a mesa e espancar a Consulesa com sua pilha de pastasetiquetadas,cadaumacomumnomediferente.

Uma delas saltou aos olhos de Emma, como um letreiro aceso em neon.CARSTAIRS: FALECIDO. Tentou não permitir que o reconhecimento de seusobrenomeficasseexpressoemseurosto.

— Estou dizendo que não sei. — A Consulesa espalmou as mãos nasuperfíciedamesa.—Tem tanta coisaquenão sabemosagora—disse, e suavozsooubaixaequasearrasada.—PerderoPovodasFadascomoaliadoséumgolpeforte.DentretodososintegrantesdoSubmundo,elessãonossosinimigosmais sutis, e os mais perigosos. — Ela se pôs de pé. — Esperem aqui uminstante.

Elaseretirouporumaportacamu adanopainele,apósalgunsinstantesde

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silêncio,Emmaouviuo ruídodepés eomurmúriodavozdePatrick.Captoupalavrasisoladas—“julgamento”,“mortal”e“traição”.

Dava para sentir Julian ao seu lado, tão tenso quanto a corda de um arcoarmado.Esticouobraçoparatocarascostasdele,ecomodedodesenhouentreosombros:V-O-C-Ê-E-S-T-Á-B-E-M?

Ele balançou a cabeça, sem olhar para ela. Emma olhou para a pilha depastassobreamesa,depoisparaaporta,emseguidapara Julian,caladoesemexpressão,edecidiu.Lançou-seàmesa,passandoamãopelapilhadepastas,epuxouaquediziacarstairs.

Era uma pasta de capa dura, leve, e Emma esticou o braço para puxar acamisade Julian,que teve seugritode surpresaabafadopelamãodela.Emmausou a outramão para en ar a pasta na traseira da calça jeans dele. Puxou acamisadoamigoparabaixoexatamentequandoaportaseabriueJiavoltou.

— Vocês dois estariam dispostos a depor diante do Conselho uma últimavez? — perguntou ela, olhando de Emma, que imaginava estar corada, paraJulian,quepareciatersidoeletrocutado.Oolhardeleendureceu,eEmma couimpressionada.Julianeratãogentilqueelaàsvezesseesqueciadequeaquelesolhosda cordomarpodiam se tornar tão frios quanto as ondasdo litoralnoinverno. — Sem Espada Mortal — esclareceu a Consulesa. — Só quero quecontemaelesoquesabem.

—SevocêprometerquevaitentartrazerMarkdevolta—disseJulian.—Enãoapenasprometer,mastentardefato.

Jiaoolhousolenemente.—PrometoqueosNephilimnãovãoabandonarMarkBlackthornenquanto

eleviver.OsombrosdeJulianrelaxaramminimamente.—Tudobem,então.

Brotou como uma or contra o céu negro e nebuloso: uma explosão súbita esilenciosade chamas. Luke, parado à janela, recuou com surpresa antes de seencostarnaaberturaestreita,tentandoidentificarafontedoresplendor.

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—Oqueé?—RaphaelolhoudeondeestavaajoelhadoparaMagnus.Magnuspareciaadormecido,osolhosprojetandosombrasemformade lua

crescente contra a pele. Estava desconfortavelmente encolhido em torno dascorrentesqueoprendiam,epareciadoente,ounomínimoexausto.

— Não tenho certeza — disse Luke, e cou parado enquanto o meninovampirovinhasejuntaraelenajanela.

Ele nunca se sentira completamente confortável perto de Raphael. OvampiropareciaLokioualgumoutrodeustraiçoeiro,àsvezestrabalhandoparaobem,àsvezesparaomal,massempredeacordocomosprópriosinteresses.

Raphael murmurou alguma coisa em espanhol e passou por Luke. Aschamasrefletiramnaspupilasdeseusolhosescuros,vermelho-douradas.

—AchaqueéobradeSebastian?—perguntouLuke.—Não.—OolhardeRaphaelestava longe,eLuke foi lembradodequeo

menino diante dele, embora parecesse um anjo atemporal de 14 anos, naverdadeeramaisvelhoqueele,maisvelhoqueseuspaisseriamcasoestivessemvivos,ou,nocasodesuamãe,seelativessepermanecidomortal.—Háalgodesagrado neste fogo. A obra de Sebastian é demoníaca. Esta é a forma comoDeusapareceuparaandarilhosnodeserto.“DuranteodiaDeusiaàfrentedelesem um pilar nebuloso para guiá-los, e à noite em um pilar de fogo que lhesfornecialuz,demodoquepudessemviajardediaoudenoite.”

Lukeergueuumasobrancelhaparaele.Raphaeldeudeombros.—Fuicriadoemumambientecatólico—inclinouacabeçaparaolado.—

AchoquenossoamigoSebastiannãovaigostarmuitodisto,sejaláoquefor.—Consegue enxergarmais alguma coisa?— perguntou Luke; a visão dos

vampiroseramaispoderosaatémesmoqueavisãoaguçadadeumlobisomem.— Alguma coisa... ruínas, talvez, como uma cidade morta... — Raphael

balançouacabeçaemfrustração.—Vejaondeofogoacaba.Estámorrendo.Houveummurmúriosuavevindonochão,eLukeolhouparabaixo.Magnus

tinharoladodecostas.Ascorrenteseramlongas,lhedandoaomenosliberdadede movimento o su ciente para curvar as mãos sobre o estômago, como se

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estivessecomdor.Osolhosestavamabertos.—Porfalaremmorrer...Raphaelvoltouparaseulugar,aoladodeMagnus.—Precisanoscontar,feiticeiro—incitouele—seexistealgumacoisaque

possamosfazerporvocê.Nuncaovitãodoente.— Raphael... — Magnus passou a mão pelos cabelos negros suados. A

corrente tilintou.—Émeupai— falouabruptamente.—Este éo reinodele.Bem,umdeles.

—Seupai?— Ele é um demônio— respondeuMagnus sucintamente.— O que não

deveriaserumagrandesurpresa.Nãoesperemaisinformaçõesalémdesta.—Tudobem,masporqueestarnoreinodeseupaiodeixariadoente?—Ele está tentandome fazer chamá-lo—disseMagnus, apoiando-senos

cotovelos. — Ele poderia vir até mim facilmente. Não consigo fazer mágicanestereino,portantonãopossomeproteger.Eleconseguemedeixarsaudáveloudoente.Masestámedeixandodoenteporacharque,seeumedesesperarosuficiente,voupediraajudadele.

—Evai?—perguntouLuke.Magnusbalançouacabeçaefranziuorosto.—Não.Nãovaleriaopreço.Quandomeupaiestáenvolvido, sempreháum

preço.Luke sentiu o próprio corpo car tenso. Ele eMagnus não eram íntimos,

maselesempregostaradofeiticeiro,sempreorespeitara.RespeitavaMagnusefeiticeiros tanto quanto respeitava Catarina Loss e Ragnor Fell, e os outros,aqueles que trabalharam comCaçadores de Sombras por várias gerações. ElenãoestavagostandodosomdodesesperonavozdeMagnus,nemdeseuolharecoante.

—Nãopagaria?Seaescolhafossesuavida?MagnusolhouparaLuke,exaurido,esejogounovamentenochãodepedra.— Pode ser que não seja eu a pessoa a pagar — respondeu, e fechou os

olhos.

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—Eu...—começouLuke,masRaphaelbalançouacabeçaparaele,umgestorepreensivo.Ele tinha se encolhidopertodoombrodeMagnus, abraçandoosjoelhos.Asveiasescurasemsuastêmporasenopescoçoeramvisíveis,sinaisdeque faziamuito tempoquenão se alimentava. Luke só podia imaginar a cenaestranha que compunham: o vampiro faminto, o feiticeiro moribundo e olobisomemobservandopelajanela.

—Vocênãosabenadasobreopaidele—disseRaphael,comavozbaixa.Magnusestavaparado,obviamentedormindooutravez,arespiraçãoofegante.

—EsuponhoquevocêsaibaqueméopaideMagnus?—provocouLuke.—Jápagueimuitodinheiroumavezparadescobrir.—Porquê?Dequeadiantaparavocêsaberisso?— Gosto de saber das coisas — explicou Raphael. — Pode ser útil. Ele

conhecia minha mãe; me pareceu justo que eu conhecesse seu pai. Magnussalvouminhavidaumavez—acrescentouRaphael,comavozsememoção.—Assimquemetorneiumvampiro,euquismorrer.Achavaquefosseumacoisamaldita. Ele me impediu de me jogar à luz do sol... Magnus me ensinou acaminhar por território sagrado, a pronunciar o nome de Deus, a usar umcruci xo. Ele não me deu mágica, apenas paciência, mas ainda assim salvouminhavida.

—Entãovocêdeveaele—disseLuke.Raphaeltirouajaquetae,emummovimentoúnicoerápido,acolocousoba

cabeçadeMagnus.Eleseremexeu,masnãoacordou.—Entendacomoquiser—falou.—Nãovouentregarossegredosdele.—Responda-me uma coisa— disse Luke, com a parede de pedra fria em

suascostas.—OpaideMagnuséalguémquepodenosajudar?Raphaelriu:umarisadaaguda,vociferada,semqualquerdivertimento.—Você émuito engraçado, lobisomem— falou.—Volte para a janela, e

você, se for do tipo que reza, então talvez deva rezar para que o pai dele nãoresolvaquerernosajudar.Senãocon aemmimemrelaçãoanada,entãoaomenosconfieemmimquantoaisso.

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— Você acabou de comertrês pizzas? — Lily encarava Morcego com umamisturadenojoeespanto.

— Quatro — respondeu Morcego, colocando uma caixa de pizza, agoravazia, da Joe’s Pizza no topo de uma pilha de outras caixas e sorrindoserenamente.

MaiasentiuumaondadeafetoporMorcego.Elanãocontarasobreoplanopara o encontro comMaureen, e ele não reclamara nem uma vez, apenas aparabenizaraporterdisfarçadotãobem.EleconcordouemsesentarcomelaeLilyparadiscutiraaliança,apesardeMaiasaberqueelenãogostavamuitodevampiros.

Eeleguardaraparaelaapizzaquesótinhaqueijo,poissabiaqueeraaúnicadaqual ela gostava.Maia estava em suaquarta fatia. Lily, apoiadana beira damesanosaguãodadelegacia,fumavaumcigarrolongo(Maiasupôsquecâncerdepulmãonãofosseumapreocupaçãodequemjáestavamorto)eolhavaparaapizza,descon ada.NãoseimportavacomaquantidadequeMorcegocomia—alguma coisa tinha que sustentar todos aqueles músculos — desde que eleparecessefelizemlhefazercompanhiaduranteareunião.LilyhaviarespeitadootratoquetinhamfeitoemrelaçãoaMaureen,maselaaindacausavacalafriosemMaia.

—Sabe—disseLily,balançandoospésenvoltosembotas.—Devoadmitirqueesperavaalgomais...animado.Emenosburocrático.—Elafranziuonariz.

Maia suspirou e olhou em volta. O saguão da delegacia de polícia estavacheio de lobisomens e vampiros, provavelmente pela primeira vez desde suaconstrução.HaviapilhasdepapellistandocontatosdemembrosimportantesdoSubmundo, todos obtidos através de súplicas, empréstimos, furtos einvestigações—osvampirostinhamregistros impressionantesdequemestavano comando e onde —, e todos estavam nos celulares ou computadores,telefonandooumandandomensagensdetextoee-mailsparaoslíderesdeclãsematilhas,eparatodososfeiticeirosqueconseguiamrastrear.

— Ainda bem que as fadas são centralizadas — falou Morcego. — UmaCorteSeelie,umaCorteNãoSeelie.

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Lilysorriu.—Aterraembaixodacolinaémuitoextensa—disse.—AsCortessãotudo

quepodemosalcançarnestemundo,sóisso.— Bem, este é o mundo com o qual estamos preocupados agora —

comentouMaia,seespreguiçandoeesfregandoanuca.Elamesmatinhapassadoodiafazendoligaçõeseenviandoe-mails,porisso

estavaexausta.Osvampirossósejuntaramaelesaocairdanoite,eesperava-sequetrabalhassematéoamanhecer,enquantooslobisomensdormiam.

—Você tem noção do que SebastianMorgenstern vai fazer conosco se olado dele vencer?— perguntou Lily, olhando contemplativamente para a salalotada.—Duvidoqueváserindulgentecomquemtrabalhacontraele.

— Talvez ele nos mate antes— respondeuMaia.—Mas nos mataria dequalquer jeito. Sei que os vampiros adoram a ideia de racionalidade, lógica,inteligência,aliançasmeticulosas,masnãoéassimqueele funciona.Sebastianquerreduziromundoacinzas.Ésóoquequer.

Lilysoprouafumaça.— Bem— falou.— Isso seria inconveniente, considerando nossa relação

comofogo.—Nãoestáarrependida,está?—perguntouMaia,seesforçandoaomáximo

paramanter a voz despreocupada.—Você pareciamuito segura quanto a secolocarcontraSebastianquandoconversamosantes.

—Estamosnoscolocandoemumasituaçãomuitoperigosa,sóisso—disseLily.—Vocêjáouviuaexpressão“quandoogatosai,osratosfazemafesta”?

—Claro—respondeuMaia,olhandoparaMorcego,quemurmuroualgumacoisaemespanhol.

— Durante centenas de anos, os Nephilim mantiveram suas regras e secerti caramde que nós também asmantivéssemos— continuou Lily.—Porisso sãomuito detestados.Agora foram se esconder em Idris, e não podemosngir que os habitantes do Submundo não gostam de certas... vantagens

trazidaspelaausênciadeles.—Tipopoderdevorarpessoas?—perguntouMorcego,dobrandoumafatia

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depizzaaomeio.—Não sãoapenasos vampiros—argumentouLily friamente.—As fadas

adoramprovocareatormentarhumanos;somenteosCaçadoresdeSombrasasimpedem. Eles vão começar a pegar bebês humanos outra vez. Os feiticeirosvenderãosuamágicapelamelhorofertacomo...

— Prostitutasmágicas?—Todos ergueram o olhar em surpresa;MalcolmFade tinha aparecido na entrada, limpando os ocos brancos de neve do seucabelotambémbranco.—Éissoquevocêiadizer,nãoé?

—Eunão—respondeuLily,claramentepegadesurpresa.—Ah,digaoquequiser.Nãomeimporto—falouMalcolmalegremente.—

Nada contra prostituição. É o que mantém a civilização funcionando.— Elesacudiuanevedocasaco.Trajavaumternopretoeumsobretudovelho;elenãotinhanadadoecleticismobrilhantedeMagnus.—Emqueposiçãovocêsestãoagora,meupovo?—indagou.

—“Povo”?—Morcegoseeriçou.—Estáfalandodoslobisomens?—Estou falandodopovodaCostaLeste—esclareceuMalcolm.—Quem

enfrentariaesteclimasepudesseevitar?Neve,granizo,chuva.EumemudariaparaLosAngelesemuminstante.Sabiaqueinstanteédefatoumamedidadetempo? É um sessenta avos de segundo. Não dá para fazer nada em uminstante,nãomesmo.

—Sabe—disseMaia—,Catarinacomentouquevocêeraumabelezuradeinofensivo...

Malcolmpareceusatisfeito.—Catarinadissequesouumabelezura?— Podemos nos ater ao foco? — perguntou Maia. — Lily, se o que a

preocupa éo fatodeosCaçadoresdeSombrasdescontaremnosmembrosdoSubmundocasoalgumdenósserebeleenquantoelesestiverememIdris,bem...é por isso que estamos fazendo o que estamos fazendo. Garantindo aosintegrantes do Submundo que os Acordos são válidos, que os Caçadores deSombras estão tentando recuperar nossos prisioneiros e que Sebastian é o

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verdadeiroinimigo,minimizaremosaschancesdeocaosforadeIdrisafetarosacontecimentosemcasodeumabatalha,ouquandotudoissoacabar...

—Catarina!—anunciouMalcolmsubitamente,comoselembrandodealgoagradável.—Euquasemeesqueciporquepareiaqui.Catarinamepediuparaprocurá-la.ElaestánonecrotériodohospitalBethIsraelequerquevocêváatéláomaisrápidopossível.Ah,eleveumajaula.

Umdos tijolosnaparedepertoda janelaestava solto. Jocelynpassouo tempotodousandoapartedemetalde seuprendedorde cabelopara tentar soltá-lo.Nãoeratolaobastanteparaacharquepodiacriarumespaçopeloqualpudesseescapar, mas tinha a esperança de que, liberando um tijolo, teria uma arma.AlgoquepudesseusarparabaternacabeçadeSebastian.

Seconseguissefazerisso.Senãovacilasse.Elahesitaraquandoeleerabebê.Tomou-onosbraços,percebeuquehavia

algo de errado com ele, algo incorrigível, mas não conseguiu fazer nada arespeito. Em algum recôndito da mente acreditava que ele ainda poderia sersalvo.

Houve um barulho à porta, e ela girou, colocando a presilha de volta nocabelo. Era a presilha de Clary, a qual Jocelyn pegara na mesa da lha paramanter o cabelo longe da tinta. Não devolveu porque o acessório a fazia selembrarda lha,masparecia errado sequerpensar emClary ali, na frentedeseuoutrofilho,apesardesentirtantasaudadedelaquechegavaadoer.

Aportaseabriu,eSebastianentrou.Estava com uma camisa branca tricotada e mais uma vez lembrava o pai.

Valentimgostavadevestirbranco.Faziacomqueparecesseaindamaispálido,ocabelo mais branco, um tiquinho menos humano ainda, e causava o mesmoefeito em Sebastian. Seus olhos pareciam gotas de tinta negra em uma telabranca.Elesorriuparaela.

—Mãe—saudou.Elacruzouosbraços.—Oqueestáfazendoaqui,Jonathan?

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Ele balançou a cabeça, ainda com omesmo sorriso, e tirou uma adaga docinto.Eraestreita,comumalâminafinacomoadeumasovela.

— Seme chamar assim outra vez—disse ele—, arranco seus olhos comisto.

Ela engoliu em seco.Ah,meubebê .Lembrou-sede segurá-lo, frioeparadoemseusbraços,bemdiferentedeumacriançanormal.Elenãochorava.Nunca.

—Foiissoqueveiomedizer?Eledeudeombros.—Vimfazerumapergunta.—Olhouemvolta,aexpressãoentediada.—E

paramostrarumacoisa.Venha.Venhacomigo.Ela se juntou a ele quando Sebastian saiu do quarto, com umamistura de

relutânciaealívio.Detestavasuacela,ecertamenteseriamelhorconhecermaisdolugarondeestavasendomantida...Otamanho,assaídas?

O corredordiantedoquarto era de pedra, grandes blocos de pedra ligadosporconcreto.Ochãoera liso,gastoporpassos.Noentanto,haviaumaspectoempoeiradonolocal,comoseninguémpassasseporalihádécadas,atémesmoséculos.

Haviaportasnasparedes,dispostasemintervalosaleatórios.Jocelynsentiuocoração acelerar mais uma vez. Luke podia estar atrás de uma delas. Queriaavançarnelas,abri-las,masaadagacontinuavanamãodeSebastian,eelanãotinhaamenordúvidadequeeleestavamaisatentoaestefatodoqueela.

Ocorredorcomeçouasecurvar,eSebastiansepronunciou:—Eseeudissessequeteamava?Jocelynfechouasmãosfrouxamentenafrentedoprópriocorpo.—Creio—respondeucomcuidado—queeudiriaquevocênãoeracapaz

meamarmaisdoqueeupoderiateamar.Chegaramaumpardeportasduplas.Pararamdiantedelas.—Vocênãotemaomenosquefingir?Jocelynrespondeu:—Vocêconseguiria?Vocêépartedemim,esabe.Osanguededemônioo

transformou,masvocêachaque,foraisso,todasassuascaracterísticasvêmde

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Valentim?Semresponder,Sebastianabriuasportascomoombroeentrou.Apósum

instanteJocelynoseguiu—eparouondeestava.A sala era imensa e semicircular.Umchãodemármore se estendia auma

plataformaconstruídaempedraemadeira,seerguendocontraaparedeoeste.Nocentrodaplataformahaviadoistronos.Nãotinhaoutrapalavraparade nir— cadeiras imensas demar m com camadas de ouro; ambas com o encostoarredondadoeseisdegrausnabase.Eatrásdecadatrono,umajanelaenorme,o vidro re etindo apenas negritude. Alguma coisa naquele recinto eraestranhamentefamiliar,masJocelynnãosabiaexatamenteoquê.

Sebastian foi até a plataforma e gesticulou para que ela o seguisse. Jocelynsubiu os degraus lentamente para se juntar ao lho, que estava diante dostronosostentandoumolharde triunfo.Ela já tinhavistoaquelemesmoolharnopaidorapazquandoesteviraoCáliceMortal.

— “Ele será notável ”— entoou Sebastian— “e será chamado de Filho doMaioral, e oDemônio lhe dará o trono de seu pai. E ele vai governar sobre oInfernoeternamente,eseureinonãoteráfim.”

—Nãoentendo—disseJocelyn,esuavozsooufriaemortaatémesmoaospróprios ouvidos.— Você quer governar este mundo? Ummundomorto dedemôniosedestruição?Querdarordensacadáveres?

Sebastianriu.TinhaarisadadeValentim:ásperaemusical.—Ah,não—disseele.—Vocêentendeutudoerrado.—Elefezumgesto

rápido com os dedos, algo que ela já havia visto Valentim fazer quandoaprenderamágica,ederepenteasimensasjanelasatrásdostronosnãoestavammaisvazias.

Umamostrava uma paisagemmaldita: árvores secas e terra queimada, viscriaturas aladas circulando em frente a uma lua quebrada. Um planalto depedras se estendia diante das janelas. Era habitado por guras sombrias, cadaqual a uma curta distância da outra, e Jocelyn percebeu que se tratava deCrepuscularesemvigília.

AoutrajanelamostravaAlicante,dormindopaci camenteaoluar.Umalua

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minguante,umcéucheiodeestrelas,obrilhodaáguanoscanais.Eraumavistaque Jocelyn já conhecia, e, com um sobressalto, ela percebeu por que a salaondeseencontravapareciafamiliar.

Era o salão doConselho emGard— transformado de an teatro a sala detronos,mascomomesmotetoabobadado,omesmotamanho,amesmavistadaCidadedeVidro,antesaparecendoemduas janelasenormes.Sóqueagoraumajaneladavavistaparaomundoqueelaconhecia,aIdrisdeondeviera.Eaoutramostravaomundoemqueestava.

— Esta minha fortaleza tem entrada para os dois mundos — informouSebastian,comotomarrogante.—Estemundoestásecoeesgotado,sim.Umcadáverexangue.Ah,masoseumundoestáprontoparasergovernado.Sonhocomistodiaenoite.Sedevoarruiná-lo lentamentecompestee fome,ouseadestruiçãodeveserrápidaeindolor...Todaaquelavida,destruídatãodepressa,imagine comoqueimaria!— Seus olhos estavam febris.— Imagine as alturasque eu poderia alcançar, transportado até o alto pelos gritos de bilhões depessoas, erguido pela fumaça de milhões de corações em chamas! — Ele sevoltouparaela.—Agora—disse.—Diga-mequeherdeiissodevocê.Digaquealgumadestascaracterísticasésua.

AquiloficoureverberandonacabeçadeJocelyn.—Hádoistronos—apontouela.Umaruguinhaapareceunatestadele.—Oquê?—Doistronos—repetiuela.—Enãosoutola;seiquemvocêpretendeque

senteaoseulado.Vocêprecisadelaali;aquerali.Seutriunfonãosignificanadaseelanãoestiverpresenteparaver.Eisso,essanecessidadedeteralguémqueoame,issovemdemim.

Ele a encarou.Estavamordendoo lábio com tanta forçaque Jocelyn tinhacertezadequeiasangrar.

—Fraqueza—falouele,emparteparasi.—Éumafraqueza.—Éhumano—retrucouela.—Masvocê realmente achaqueClary seria

capazdesentaraoseuladoaquieserfelizousolícita?

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Poruminstanteelapensoutervistoalgobrilharnosolhosdo lho,masumsegundodepoisjáestavamnegrosegélidosnovamente.

—Pre ro tê-la feliz, solícita e aqui,mas aceito simplesmente tê-la aqui—afirmou.—Nãoligotantoassimparasolicitude.

Algopareceu explodirno cérebrode Jocelyn.Ela avançou, visandoa adaganamãodele;Sebastianrecuou,desviando,egiroucomummovimentovelozegracioso, passando uma rasteira nela. Jocelyn atingiu o chão, rolou e seagachou.Antesquepudesse levantar, viu amãodele a agarrandopelo casaco,puxando-aparacima.

—Vacamaldita—rosnouSebastian,apoucoscentímetrosdeseurosto,osdedos damão esquerda enterrando na pele abaixo da clavícula.— Acha quepodemeferir?Ofeitiçodaminhamãeverdadeirameprotege.

Jocelynchegouparatrás.—Mesolte!A janela da esquerda explodiu com muita luz. Sebastian recuou, o rosto

surpresoenquantoencarava.Apaisagemmalditadomundomortode repentese acendeu com fogo, ardendo com fogo dourado, erguendo-se numpilar emdireção ao céu rachado. Os Caçadores de Sombras malignos corriam de umlado para o outro como formigas. As estrelas reluziam, re etindo o fogo,vermelho,dourado,azulelaranja.Eratãolindoetãoterrívelquantoumanjo.

Jocelyn sentiu um esboço de sorriso nos cantos da boca. Seu coração seencheu com a primeira ponta de esperança que sentia desde que acordaranaquelemundo.

—Fogocelestial—sussurrou.—Defato.—UmsorrisotambémbrincoupelabocadeSebastian.Jocelyno

encarou,espantada.Esperavaqueelefosse carhorrorizado,masemvezdissoparecia in amado.—ComooBomLivrodiz:“Estaéa leidaofertaardente: éna oferta ardente, por causa do fogo sobre o altar por toda a noite até oamanhecer,eofogodoaltardeveardernela ”—gritouele,eergueuosbraços,comosealmejandoabraçarofogoqueardiatãoaltoetãofortealémdajanela.

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—Desperdice seu fogonoardodeserto,meu irmão!—berrou.—Deixequeentornepelasareiascomosangueouágua,equevocênãodeixedevir,nuncadeixedeviratéestarmoscaraacara.

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18PelasÁguasdaBabilônia

Os símbolos de energia eram todosmuito bons, pensouClary, exausta, assimquechegouaotopodemaisumaelevaçãodeareia,maseram chinhapertodeumaxícaradecafé.Clarytinhacertezadequepoderiaencararmaisumdiadecaminhada,comospésafundandoatéostornozelosemcinzasocasionalmente,casosimplesmentetivesseadocecafeínapulsandonasveias...

—Estápensandonoqueeuestoupensando?—perguntouSimon,surgindoaoladodela.

Elepareciaesgotadoecansado,ospolegaresen adosnasalçasdamochila.Todospareciammuitoextenuados.AleceIsabelletinhamassumidoasfunçõesde vigias depois do incidente com o fogo celestial e não reportaram nenhumdemônio ou Caçador de Sombras maligno nos arredores do esconderijo.Mesmo assim estavam todos inquietos, e nenhum deles dormira mais quealgumashoras.Jacepareciafuncionaràbasedetensãoeadrenalina,seguindoatrilhadofeitiçoderastreamentonapulseiraqueusava,àsvezesseesquecendode parar e esperar pelos outros em meio a sua pressa louca de correr atéSebastian,atéqueelesgritavamoucorriamparaalcançá-lo.

—UmcafécomleiteenormedoMudTruckalegrariatudoagora.— Tem um lugar para vampiros não muito longe da Union Square onde

colocamaquantidadeidealdesanguenocafé—disseSimon.—Nãoficamuitodoce,nemmuitosalgado.

Claryparou;umgalhosecoecontorcido ncadonaterratinhaprendidoemseuscadarços.

—Lembra-sedequandoconversamossobrenãodividirinformações?

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—Isabellemeouvesobreassuntosvampirescos.ClarypegouHeosphoros.Aespada,comonovosímbolomarcadoempreto

nalâmina,pareciabrilharemsuamão.Elautilizouapontaparacortarogalhoduroeespinhento.

—Isabelleé suanamorada—disseClary.—Elatemqueouviroquevocêdiz.

—Elaé?—Simonpareceuespantado.Claryjogouasmãosparaoaltonumgestodeimpaciênciaeentãocomeçou

adesceracolina.Osoloera íngreme,marcadoaquiealiporrachaduras, tudocoberto por uma camada in nita de poeira. O ar continuava acre, o céuesverdeado.DavaparaverAlece Isabellepróximosa Jaceaopédacolina; eletocavaapulseiraemseubraçoeolhavaparaohorizonte.

De soslaio, Clary notou alguma coisa brilhando, e parou de repente.Semicerrou os olhos, tentando enxergar o que era. O brilho de alguma coisaprateadaaolonge,bemdepoisdaspedrasedosmontesdodeserto.Elapegouaestela e desenhou rapidamente um símbolo de Visão de Longo Alcance nobraço, a ardência e a picada da ponta da estela irrompendo na névoa deexaustãoemsuamente,potencializandoomodocomovia.

—Simon!—falouela,quandoeleaalcançou.—Estávendoaquilo?EleseguiuoolhardeClary.—Viontemànoite.Lembra-sedequandoIsabelledissequeeupensavater

vistoumacidade?—Clary!—EraJace,olhandoparaeles,orostopálidoeinexpressivonoar

empoeirado. Ela fez um gesto para ele se aproximar. — O que estáacontecendo?

Elaapontououtravez,emdireçãoaoquede nitivamenteeraumbrilho,umaglomeradodeformasaolonge.

—Temalgumacoisaali—comentou.—Simonachaqueéumacidade...Elaparoudefalar,poisJacejáhaviacomeçadoacorreratéopontoindicado.

Isabelle e Alec caram espantados antes de disparar atrás dele; Clary bufou,exasperada,e,comSimonaolado,seguiutambém.

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Eles começaram a descer o declive, que estava coberto por seixos, meiocorrendo,meiodeslizando,permitindoqueaspedrinhasoscarregassem.Claryagradeceuverdadeiramenteporestarusandoouniformedecombate,enãoeraaprimeiravezqueofazia:só cavaimaginandocomoosestilhaçosdecascalhorasgariamsapatosecalçasnormais.

Chegouàbasedamontanhacorrendo.Jaceestavamaisadiantado,comAleceIsabellelogoatrás,acelerando,saltandoporpedraseriachosdelavaderretida.EnquantoClaryseaproximavadostrês,reparouquesedirigiamaolocalondeodesertopareciacair—abordadeumplatô?Umpenhasco?

Claryacelerou, tropeçandosobreasúltimaspilhasdepedraequasecaindonaúltima.Aterrissoudepé—Simonmuitomaisgraciosoàfrentedela—eviuque Jace estava na beira de um enorme penhasco, cuja borda descia como oGrandCanyon.AleceIsabellejáohaviamalcançado,umdecadalado.Ostrêsencontravam-seassustadoramentecalados,olhandoparaaluzfracaadiante.

Algo na postura de Jace, na forma como estava, disse a Clary, mesmoquandochegoupertodele,quehaviaalgumacoisaerrada.Emseguida,elanotoua expressão dele e corrigiu mentalmente o “errada” para “extremamenteerrada”.

Eleolhavaparaovaleabaixocomoseestivesseobservandootúmulodeumapessoa amada.Havia ruínasdeumacidadenovale.Umacidadeantiga,muitoantiga,queoutroraforaconstruídaaoredordeumacolina.Otopodacolinaeracercado por nuvens cinzentas e bruma. As antigas casas agora eram apenasmontesdepedras,easruaspareciamcobertasdecinzasederuínaschanfradasde prédios.Dentre os destroços, jogados comopalitos de fósforo descartados,havia pilares quebrados, feitos de pedra clara, brilhante, uma coisa linda quedestoavanaquelaterraarruinada.

—Torresdemoníacas—sussurrouela.Jaceassentiusombriamente.—Nãoseicomo—falou—,masdealgumjeito...estaéAlicante.

—Éumfardohorroroso, terumaresponsabilidadedessas, tão jovens—dizia

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Zachariah, enquantoaportadoSalãodoConselho se fechavaatrásdeEmmaCarstairseJulianBlackthorn.

AlineeHelentinhamidocomelesparaacompanhá-losdevoltaparaacasaonde estavam hospedados. Ambas as crianças estavam caindo de sono deexaustãoaofimdointerrogatóriodoConselho,exibindoolheirasfundas.

RestavampoucosmembrosdoConselhonorecinto:JiaePatrick,MaryseeRobert Lightwood,Kadir Safar,DianaWrayburn,TomasRosales e um grupodeIrmãosdoSilêncioe líderesdeInstitutos.Amaioriadelesconversavaentresi,masZachariahestavapertodoatrildeJia,olhandoparaelacomumatristezaprofundanosolhos.

— Enfrentaram muitas perdas — disse Jia. — Mas somos Caçadores deSombras;muitosdenóssuportamosgrandesdorescompoucaidade.

— Eles têm Helen e o tio— falou Patrick, não muito longe de Robert eMaryse, ambos pareciam tensos e esgotados. — Vão cuidar bem deles, alémdisso,EmmaCarstairsclaramenteconsideraosBlackthorncomofamiliares.

— Frequentemente aqueles que nos criam, que são nossos guardiões, nãosãodonossosangue—observouZachariah.JiapensoutervistoumasuavidadeespecialemseusolhosquandorepousaramemEmma,quaseumlamento.Mastalvez tivesse imaginado.—Aqueles que nos amam e a quem amamos. Foi oque aconteceu comigo. O mais importante é que ela não seja separada dosBlackthorn,ou,acimadetudo,domeninoJulian.

Jiaouviuao longeomaridotranquilizandooantigoIrmãodoSilêncio,massuamente estava emHelen. Nas profundezas de seu coração, Jia às vezes sepreocupavacoma lha,quehavia entregado seucoraçãocompletamenteparaumameninaqueerapartefada,umaespécieconhecidapornãosercon ável.Eela sabia que Patrick não gostava de saber que Aline havia escolhido umameninaemvezdeummenino,queelesofria—deformaegoísta,naconcepçãodela — pelo que enxergava como o m da perpetuação dos Penhallow. Elaprópria na verdade se preocupava mais com a possibilidade de HelenBlackthornpartirocoraçãodesuafilha.

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—Quantocréditovocêdáàacusaçãodeumatraiçãoporpartedasfadas?—perguntouKadir.

—Todoocrédito—respondeu Jia.—Explicamuitacoisa.Comoas fadasconseguiramentraremAlicanteeocultarosprisioneirosdacasadestinadaaorepresentantedoPovodasFadas;comoSebastianconseguiuescondertropasnaCidadela; por que ele poupou Mark Blackthorn... não por medo de fadasfuriosas, mas por respeito à aliança. Amanhã vou confrontar a Rainha dasFadase...

—Comtodorespeito—disseZachariah,comavozsuave.—Nãoachoquevocêdevafazerisso.

—Porquenão?—perguntouPatrick.Porque vocês agora dispõem de informações que a Rainha das Fadas não

querquetenham ,disseoIrmãoEnoch.Émuitoraroissoacontecer.Naguerra,existemvantagensnopoder,mas tambémhávantagensnoconhecimento.Nãodesperdicemavantagemquetêm.

Jiahesitou.— As coisas podem estar piores do que você sabe— rebateu ela, e tirou

alguma coisa do bolso do casaco. Era uma mensagem de fogo dela para oLabirintoEspiral.Entregou-aaZachariah.

Ele pareceu congelar. Por um instante simplesmente olhou para ela; emseguidapassouumdedosobreopapel,eJiapercebeuqueelenãoestavalendo,masacariciandoaassinaturadoautor,umaassinaturaqueclaramenteoatingiracomoumaflechanocoração.

TheresaGray.—Tessadiz—começouelea nal,eemseguidapigarreou,poissuavozsaiu

rouca e entrecortada. — Ela diz que os feiticeiros do Labirinto Espiralexaminaramo corpodeAmalricKriegsmesser.Que ele estava como coraçãomurcho, os órgãos dissecados. Ela diz que lamentam, mas não há nada quepossaserfeitoparacurarosCrepusculares.Anecromanciapodefazercomqueoscorposvoltemasemexer,masasalmasseforamparasempre.

—Apenas o poder doCálice Infernal osmantém vivos— disse Jia, a voz

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latejandodetristeza.—Estãomortospordentro.—SeoCáliceInfernalpudesseserdestruído...—devaneouDiana.—Aípodeserquetodosmorram,sim—declarouJia.—Masnãotemoso

CáliceInfernal.EstácomSebastian.— Matar todos eles com um único golpe parece errado — disse Tomas,

parecendohorrorizado.—SãoCaçadoresdeSombras.—Não são— respondeuZachariah, comuma vozmuitomenos suave do

queJiaassociavaaele.Elaoolhou,surpresa.—Sebastiancon aquepensamosneles como Caçadores de Sombras. Conta com nossa hesitação, com nossaincapacidadedematarmonstrosostentandorostoshumanos.

—Contacomnossapiedade—concluiuKadir.—Seeu tivesse sidoTransformado, iriaquerer ser libertadodo sofrimento

—disseZachariah.—Isso épiedade.Foi issoqueEdwardLongforddeua seuparabataiantesdevoltaraespadaparasi.Porissopresteiminhashomenagensaele.—Zachariahtocouosímbolodesbotadonopescoço.

— Então devemos pedir ao Labirinto Espiral para desistir? — perguntouDiana.—Queparedeprocurarumacura?

— Eles já desistiram. Não viu o que Tessa escreveu? — respondeuZachariah.—Umacuranemsemprepodeserencontrada,nãoatempo.Eusei,digo, aprendi, que não se pode contar com isso. Não pode ser nossa únicaesperança.TemosquesofrerpelosCrepuscularescomosejáestivessemmortos,econ arnoquesomos:CaçadoresdeSombras,guerreiros.Temosquefazeroquefomosmoldadosparafazer.Lutar.

— Mas como nos defendemos de Sebastian? Já estava ruim o bastantequando era só com os Crepusculares; agora temos que combater o Povo dasFadastambém!—retrucouTomas.—Evocêésóummenino...

—Tenho146anos—rebateuZachariah.—Eestanãoéaminhaprimeiraguerra invencível. Acredito que podemos transformar a traição das fadas emumavantagem.ParaissoprecisaremosdaajudadoLabirintoEspiral,massemeescutarem,direicomofazer.

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Clary, Simon, Jace, Alec e Isabelle caminharam em silêncio pelas ruínasmisteriosasdeAlicante.PoisJacetinharazão: eraAlicante, inconfundível.Elesse depararam commuita coisa familiar para que pudesse ser outro lugar. Osmuros em torno da cidade, agora desmoronados; os portões corroídos pormarcasdechuvaácida.APraçadaCisterna.Oscanaisvazios,cheiosdemusgopretoeesponjoso.

A colina estava destruída, tendo sobrado apenas uma pilha de pedras. Asmarcas de onde outrora havia passagens agora estavam claramente visíveiscomocicatrizespelas laterais.ClarysabiaqueoGarddeviaestarnotopo,masseeramesmoocaso,estavainvisível,escondidosobanévoacinzenta.

Finalmente passarampor uma colina de cascalhos e se agraramnaPraçado Anjo. Clary respirou, surpresa — apesar de a maioria dos prédios que acercavam terem desabado, a praça estava surpreendentemente preservada,paralelepípedos se estendendo à luz amarelada. O Salão dos Acordos aindaencontrava-sedepé.

Masnãoerapedrabranca.Nadimensãohumana,pareciaumtemplogrego,masnestemundoerametallaqueado.Umprédioaltoequadrado,seéquealgosemelhanteaourofundidocaídodocéupudesseserdescritocomoumprédio.Gravuras imensas percorriam a estrutura, como um laço embrulhando umacaixa;acoisatodabrilhavafracamenteàluzlaranja.

—OSalãodosAcordos.—Isabelleestavaparadacomochicoteenroladonopulso,olhandoparaaestrutura.—Inacreditável.

Eles começaram a subir os degraus, dourados e marcados por cinzas ecorrosão.Pararamnoaltodaescadariaparaencararasportasduplasenormes.Eramcobertasporquadradosdemetalmartelado.Cadaumaeraumpainelcomumaimagem.

—Éumahistória—disseJace,seaproximandoetocandoasgravurascomumdedoenluvado.Haviaescritosemumalínguadesconhecidanabasedecadailustração.EleolhouparaAlec.—Consegueler?

—Seráquesouaúnicapessoaqueprestouatençãonasaulasdeidiomas?—perguntouAlec,fatigado,noentantoseaproximouparaolharosrabiscosmais

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deperto.—Bem,primeiroospainéis—começouele.—Sãoumahistória.—Apontou para o primeiro, que mostrava um grupo de pessoas descalças evestindotúnicas,seencolhendoenquantoasnuvensnocéuseabriamexpondoamãocheiadegarrasqueseesticavaparaeles.—Humanosviveramaqui,oualguma coisa parecida com humanos — explicou Alec, apontando para asguras.—Viviamempaz,eentãoosdemôniosvieram.Eaí...—Parou,amão

sobre um painel cuja imagem era tão familiar a Clary quanto as costas daprópria mão. O Anjo Raziel, ascendendo do Lago Lyn, empunhando osInstrumentosMortais.—PeloAnjo.

— Literalmente — disse Isabelle. — Como... Este é onosso Anjo? Nossolago?

—Nãosei.AquidizquedemôniosvieramequeosCaçadoresdeSombrasforamcriadosparacombatê-los—prosseguiuAlec,continuandopelasparedesàmedidaqueasgravurasprogrediam.Apontouodedoparaaescritura.—Estapalavra aqui signi ca “Nephilim”.Mas osCaçadores de Sombras recusaram aajuda dos integrantes do Submundo. Os feiticeiros e o Povo das Fadas sejuntaram a seus genitores infernais. Ficaram ao lado dos demônios. OsNephilimforamderrotadoseabatidos.Emseusúltimosdias,criaramumaarmacomaintençãodeconterosdemônios.—Eleindicouumpainelquemostravauma mulher empunhando uma espécie de haste de ferro com uma pedraardentenaponta.—Nãodispunhamdelâminassera m.Aindanãoastinhamdesenvolvido.E tambémnãomeparecequetinhamIrmãsdeFerroouIrmãosdoSilêncio.Tinhamferreirosedesenvolveramumaespéciedearma,algoqueimaginaram que pudesse auxiliar. A palavra aqui é “skeptron”, mas não querdizernadaparamim.En m,oskeptronnãofoisu ciente.—Eleseguiuparaagravuraseguinte,queilustravadestruição:osNephilimmortos,amulhercomahastede ferroencolhidanochão,ahastecaídade lado.—Osdemônios,aquisão chamados deasmodei, arderamao sol e preencheramo céu com cinzas enuvens. Arrancaram fogo da terra e assolaram cidades.Mataram tudo que semovia e respirava. Secaram osmares até que tudo na água também estivessemorto.

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—Asmodei—ecoouClary.—Jáouviisso.FoialgumacoisaqueLilithdisse,sobre Sebastian.Antes de ele nascer. “A criançanascida com este sangue terámais poder que osDemôniosMaiores dos abismos entre osmundos. SerámaispotentequeAsmodei.”

—AsmodeuséumdosDemôniosMaioresdosabismosentreosmundos—disse Jace, encontrando o olhar de Clary. Ela sabia que ele se lembrava dodiscursodeLilithtãobemquantoela.Ambostinhamcompartilhadodamesmavisão,apresentadaaelespeloanjoIthuriel.

—ComoAbbadon?—perguntouSimon.—EleeraumDemônioMaior.— Muito mais poderoso que isso. Asmodeus é um Príncipe do Inferno;

existem nove deles. OsFati. Os Caçadores de Sombras nem sonham emderrotá-los.Elessãocapazesdedestruiranjosemcombate.Conseguemrefazermundos—explicouJace.

— Osasmodei são lhos de Asmodeus. Demônios poderosos. Drenaramestemundoaté secá-lo e odeixaramparademôniosmais fracos varrerem.—Alecsoounauseado.—EstenãoémaisoSalãodosAcordos.Éummausoléu.Ummausoléuparaavidadestemundo.

—Masesteéonossomundo?—AvozdeIsabelleseelevou.—Avançamosnotempo?SeaRainhanospregouumapeça...

—Nãopregou.Pelomenosnãoemrelaçãoao localondeestamos—disseJace. — Não avançamos no tempo; desviamos para um lado paralelo. Esta éuma dimensão espelho do nosso mundo. Um local onde a história sedesenvolveu um pouco diferente. — Ele enganchou os polegares no cinto eolhouemvolta.—UmmundosemCaçadoresdeSombras.

—É comooPlanetadosMacacos —observouSimon.—Sóque lá eranofuturo.

—Bem, este pode ser nosso futuro se Sebastian conseguir o quedeseja—emendouJace.Eledeuumabatidinhanopainelemqueamulherempunhavaoskeptronemchamas,efranziuorosto,emseguidaempurrouaporta.

Ela abriu com um chiado de dobradiças que cortou o ar como uma faca.

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Claryfezumacareta.Jacesacouaespadaeespioucautelosamentepelafendanaporta.Haviaumasala,preenchidaporumaluzcinzenta.Jaceempurrouaportacomoombroeentrou,gesticulandoparaosoutrosesperarem.

Isabelle, Alec, Clary e Simon trocaram olhares e, sem uma palavra, foramimediatamente atrás dele. Alec foi na frente, o arco preparado; em seguida,Isabellecomochicote,ClarycomsuaespadaeSimoncomosolhosbrilhandocomoosdeumgatonapenumbra.

OinteriordoSalãodosAcordoseraaomesmotempofamiliareestranho.Opisoerademármore,rachadoequebrado.Emmuitospontos,grandesmanchasnegrasseespalhavampelapedra,resquíciosdemanchasdesangue.Oteto,quena Alicante deles era de vidro, já tinha há muito desaparecido, e restavamapenascacos,comofacasemcontrastecomocéu.

A sala em si estava vazia, exceto por uma estátua ao centro. O recintopreenchia-sedeumaluzpálidaamarelo-acinzentada.Jace,queestavadefrenteparaaestátua,girouquandoseaproximaram.

— Falei para esperarem— irritou-se com Alec. — Não conseguem fazernadadoquefalo?

—Tecnicamentevocênãofalounada—disseClary.—Sógesticulou.—Gesticulartambémconta—argumentouJace.—Eugesticulocommuita

expressividade.—Vocênãoestánocomando—rebateuAlec, abaixandooarco.Parteda

tensão abandonou sua postura. Claramente, não havia demônios escondidosnas sombras: nada bloqueava a visão das paredes corroídas, e a única coisapresentealieraaestátua.—Nãoprecisanosproteger.

Isabelle revirou os olhos para os dois e se aproximou da estátua, olhandoparacima.Eraa guradeumhomemdearmadura;ospéscalçadoscombotasestavamapoiadosemumpedestaldourado.Usavaumacotademalhaelaboradafeitadepequenoscírculosdepedrariaentrelaçados,decoradacomumtemadeasasdeanjonopeito.Trazianamãoumaréplicadeferrodeumskeptron,comumornamentocircularmetáliconaponta,contornandoumajoiavermelha.

Quem quer que fosse o escultor, era talentoso. O rosto era bonito, com

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queixoacentuadoeumolharlímpidoedistante.Masoartistaregistroumaisdoqueaboaaparência:haviaumarigideznaapresentaçãodosolhosedomaxilar,umacurvanabocaquetraduziaegoísmoecrueldade.

Havia palavras escritas no pedestal, e, apesar de estarem num idiomadiferente,Claryconseguiuler.

jonathancaçadordesombras.primeiroeúltimonephilim.—Primeiroeúltimo—sussurrouIsabelle.—Estelugaréummausoléu.Alec se abaixou. Havia mais palavras no pedestal, abaixo do nome de

JonathanCaçadordeSombras.Eleasleuemvozalta:— “E aquele que triunfar, que mantiver meus feitos até o m, a ele irei

conferirautoridadesobreasnações;eeleasgovernarácomumbastãodeferro,eaeledareiaEstreladaManhã.”

—Oqueistoquerdizer?—perguntouSimon.—AchoqueJonathanCaçadordeSombras couarrogante—sugeriuAlec.

— Acho que pensou que esse talskeptron fosse não apenas salvá-los comotambémpermitirqueelegovernasseomundo.

—“Ea ele darei aEstrela daManhã”—disseClary.— Isto é bíblico.DanossaBíblia.E“Morgenstern”significa“EstreladaManhã”.

— “A estrela damanhã” signi camuitas coisas— declarouAlec.—Podesigni car “a estrela mais brilhante do céu”, ou “fogo celestial”, ou podesigni car“ofogoquecaicomanjosquandosãoderrubadosdoCéu”.ÉtambémonomedeLúcifer,oportadordaluz,odemôniodoorgulho.—Eleselevantou.

—Sejacomofor,signi caqueessacoisaqueaestátuaestásegurandoéumaarmadeverdade—observouJace.—Comonasgravurasdaporta.Vocêdissequeoskeptronfoidesenvolvidoaqui,emvezdelâminassera m,paracombaterosdemônios.Vejaasmarcasnocabo.Esteveembatalha.

Isabelletocouopingenteemseupescoço.—Eapedravermelha.Parecefeitadomesmomaterialquemeucolar.Jaceassentiu.—Achoqueéamesmapedra.—Clarysabiaoqueeleiafalarantesmesmo

queeledissesse.—Aquelaarma.Euaquero.

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—Bem,vocênãopodetê-la—respondeuAlec.—Estápresaàestátua.—Nãoesta—apontouJace.—Veja,aestátuaestásegurando,massãoduas

peças independentes. Esculpiram a estátua e depois colocaram o cetro nasmãos.Éparaserremovível.

—Nãoseiseébemisso...—começouClary,masJacejáestavapisandonopedestal, se preparando para subir. Ele tinha o brilho no olhar que ela aomesmo tempo amava e temia, aquele que diziaeu faço o que quero, e que sedanemasconsequências.

—Espere!—Simoncorreuparabloquear Jace e impedirque subissemais.—Desculpem,masninguémmaispercebeoqueestáacontecendoaqui?

—Nããão—entoouJace.—Porquenãonoscontatudo?Digo,temostodootempodomundo.

Simoncruzouosbraços.—Jáparticipeidecampanhasosuficiente...—Campanhas?—ecoouIsabelle,espantada.—EleestáfalandodejogosdeRPGtipoDungeonsandDragons —explicou

Clary.—Jogos?—repetiuAlec,incrédulo.—Casonãotenhareparado,istonãoé

umjogo.—A questão não é essa— disse Simon.—A questão é que quando você

jogaDungeons andDragons e sua equipe encontra ummonte de tesouro, ouuma pedra grande e luminosa, ou um esqueleto douradomágico, vocênuncadevepegar. Sempre éumaarmadilha.—Eledescruzouosbraços e gesticulouenlouquecidamente.—Istoéumaarmadilha.

Jace couemsilêncio.OlhavapensativamenteparaSimon,comosenuncaotivessevisto,oupelomenosnuncativesseprestadotantaatençãoassimnele.

—Venhacá—disse.Simonobedeceu,assobrancelhaserguidas.—Oque...uuf!JacecolocouaespadanasmãosdeSimon.—Segureistoenquantosubo—ordenouJace,epulounopedestal.

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Os protestos de Simon foram abafados pelo ruído dos sapatos de Jacebatendocontraapedraenquantoelesubianaestátua,seerguendocomaajudadasmãos.Alcançouomeiodaestátua,ondeacotademalhaentalhadaofereciaapoioparaospés,e sepreparou,esticandoobraçoparapegaroskeptron pelocabo.

Pode ter sido uma ilusão, mas Clary teve a impressão de ter visto a bocasorridente da estátua se curvar em um sorriso ainda mais cruel. A pedravermelhaardeuderepente;Jacerecuou,masasalajáestavapreenchidaporumbarulhoensurdecedor,acombinaçãoterríveldeumalarmedeincêndioedeumgritohumano,searrastandoindefinidamente.

— Jace! — Clary correu para a estátua; ele já tinha caído no chão, seencolhendo com aquele barulho horrível. A luz da pedra vermelha sóaumentava,preenchendoasalacomumailuminaçãosangrenta.

—Maldição—gritou Jace acimado barulho.—Odeio quando Simon temrazão.

Comumolhar,SimonjogouaespadadeJacedevoltaparaele,examinandoemvoltaatentamente.Alecergueuoarcomaisumavez;Isabelleestavaprontacomochicote.Clarysacouumaadagadocinto.

—Émelhorsairmosdaqui—disseAlec.—Podenãosernada,mas...Isabelleberrouelevouamãoaopeito.Opingentetinhacomeçadoabrilhar,

pulsaçõeslentas,firmesereluzentes,comoumcoraçãobatendo.—Demônios!—gritou ela, exatamente quandoo céu se encheude coisas

voadoras.E eramcoisas, tinham corpos rotundos e pesados, como vermes pálidos

imensos, com leirasde sugadores.Não tinhamrosto: ambasas extremidadesterminavam em enormes bocas rosadas circulares apinhadas com dentes detubarão. Fileiras de asas atarracadas percorriamos corpos, cada asa comumagarraafiadacomoadaganaponta.Ehaviamuitosdeles.

AtéJaceempalideceu.—PeloAnjo...corram!Correram,mas as criaturas, apesar do tamanho, eramais velozes: estavam

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aterrissandoaoredordetodoseles,comruídoshorríveisesedentos.ParaClary,soavam como bolas de fogo gigantes caindo do céu. A luz irradiada peloskeptrondesapareceuassimqueelessurgiram,eagoraorecintoestavabanhadopelobrilhoamareladoefeiodocéu.

—Clary!—gritouJace,quandoumadascriaturasselançouparacimadela,abocacircularaberta.Cordasdesalivaamareladapendiamdela.

Pow.Uma echaseenterrounocéudabocadodemônio.Acriaturarecuou,cuspindosangue.ClaryviuAlecprepararoutra echa,apontareatirar.Outrodemônio recuou, e logo Isabelle já estavanele, golpeandodeum lado aoutro,reduzindo-oatrapos.Simontinhaagarradooutrodemônioeestavaenterrandoasmãosnocorpocinzentodacriatura,entãoJacecravouaespada.Odemôniodesabou, derrubando Simon: ele aterrissou sobre a mochila. Clary teve aimpressão de ter ouvido um som como vidro se quebrando,mas um instantemais tarde Simon estava de pé outra vez, Jace se ajeitando com a mão nopróprioombroantesdeambosvoltaremàluta.

Clary sentiu o corpo gelar: a frieza silenciosa da batalha. O demônio queAlec atingira estava se contorcendo, tentando cuspir a echa alojada em suaboca; ela passou por cima e en ou a adaga em seu corpo, sangue negroesguichando dos ferimentos, ensopando a roupa de Clary. O recinto estavapreenchidopelo fedordedemônios,envolvidopelo icorácido;elasentiuânsiadevômitoquandoodemôniodeuumúltimoespasmoedesmoronou.

Alec estava recuando, disparando echas sem parar, fazendo os demôniosrecuarem, feridos. Enquanto se debatiam, Jace e Isabelle avançavam neles,destruindo-os com a espada e o chicote. Clary os acompanhou, pulando emoutrodemônioferido,rasgandoacarnemaciasobaboca,amãodela,cobertapelosanguegorduroso,escorregavanocabodaadaga.Odemôniodesaboucomumchiado,levandoClaryconsigoparaochão.Alâminacaiudamãodela,eelasejogoupararecuperá-la,pegou-aerolouparaoladoexatamentequandooutrodemônioaatacoucomumgolpedeseucorpopoderoso.

Atingiuoespaçoemqueelaestiveracaída,eseencolheu,sibilando,demodo

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queClary coucaraacaracomduasbocasescancaradas.Elapreparoualâminaparaarremessá-laquandoviuum ashdourado-prateadoeochicotedeIsabellesurgiu,partindoacriaturaaomeio.

Odemôniocaiuemdoispedaços,umabagunçadeórgãosinternosvazando.Mesmo tomada pela frieza da batalha, Clary quase passou mal. Demôniosnormalmente morriam e desapareciam antes que você pudesse ver asentranhas. Aquele ali continuava se contorcendo, mesmo cortado ao meio,estremecendo. Isabelle fez uma careta e ergueu o chicote novamente — e atremedeira de repente se transformou em uma convulsão violenta quandometadedomonstrogirouparatráseenterrouosdentesnapernadeIsabelle.

Izzygritou,manejandoochicote, ea criaturaa soltou; elacaiupara trás, aperna erguida. Clary pulou para a frente, apunhalando a outra metade dacriatura,en andoaadagaemsuascostasatéobichosucumbireelase agrarajoelhada em uma poça de sangue de demônio, ofegante, com a lâminaensopadanamão.

Fez-sesilêncio.Oalarmesilenciou,eosdemôniospararamdevir.Estavamtodosdestruídos,masnãohaviaaalegriadavitória. Isabelle estavanochão,ochicote enrolado no pulso, sangue jorrando do entalhe em forma de luacrescentenapernaesquerda.Elaestavaengasgando,aspálpebrastremendo.

— Izzy!—Alec largou o arco e correu pelo chão sangrento em direção àirmã.Entãocaiudejoelhos,pegando-anocolo.Tirouaesteladocintodela.—Iz,Izzy,aguentefirme...

Jace,quehaviapegadooarcocaídodeAlec,pareciaapontodevomitaroudesmaiar;Clarynotou,surpresa,queSimonestavacomamãonobraçodeJace,osdedosafundando,comoseeleestivessemantendoJacedepé.

Alec rasgou o tecido da roupa de Isabelle, abrindo a perna da calça até ojoelho.Claryabafouumgrito.ApernadeIsabelleestavadestruída:pareciacomaquelas fotosdemordidasde tubarãoqueClary já tinhavisto, sanguee tecidoaoredordeentalhesprofundos.

Aleccolocouaestelanapeledojoelhoedesenhouum iratze,edepoismaisum, um pouco abaixo. Seus ombros tremiam,mas amão estava rme. Clary

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segurouamãodeJaceeaapertou.Adeleestavagelada.—Izzy—sussurrouAlec, enquantoosiratzes desbotavame se enterravam

napeledairmã,deixandolinhasbrancas.ClaryselembroudeHodge,decomodesenharam símbolos e mais símbolos nele; no entanto os ferimentos eramprofundosdemais:os símbolosdesbotaram,eele sangrouemorreu,apesardopoderdasmarcas.

Alec levantouo olhar. Seu rosto estava estranho, contorcido; tinha sanguenabochecha:sanguedeIsabelle,pensouClary.

—Clary—disseele.—Talvezsevocêtentasse...DerepenteSimonenrijeceu.—Temosque sair daqui— falou.—Estououvindobarulhos de asas.Vão

chegarmais.Isabelle não estava mais engasgando. O sangramento do machucado na

perna estancou, mas Clary ainda via, com o coração em frangalhos, que osferimentosaindaestavamlá,vermelhos,inchadosefuriosos.

Alec se levantou, o corpo ácido da irmã nos braços, os cabelos negrospenduradoscomoumabandeira.

— Irpara onde? — perguntou duramente. — Se corrermos, eles nosalcançarão...

Jacegirou.—Clary...Ele estava comolhos suplicantes.Clary estava como coraçãodespedaçado

por pena dele. Jace, que quase nunca suplicava por nada. Por Isabelle, amaiscorajosadetodos.

Alec olhou da estátua para Jace, para o rosto pálido de sua irmãinconsciente.

—Alguém—disseele,avozfalhando—façaalgumacoisa...Clarydeumeia-voltaecorreuatéaparede.Daípraticamentesejogoucontra

ela, arrancando a estela da bota, e foi para a pedra. O contato da ponta doinstrumentocomomármore lheenviouumaondadechoquepelobraço,masela continuou, os dedos vibrando enquanto desenhava. Linhas negras se

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espalharampelapedra,formandoumaporta;asbordasdaslinhascomeçaramabrilhar. Atrás de si, Clary ouvia os demônios: o grito das vozes, a batida dasasas, os chamados sibilantes evoluindo para gritos enquanto a porta ardia emluz.

Era um retângulo prateado, tão raso quanto água, mas não era água,emoldurado por símbolos de fogo. Um Portal. Clary esticou a mão, tocou asuperfície.Todos os pontos de suamente se concentraramna visualização deumúnicolugar.

— Vamos! — gritou ela, os olhos xados no portal enquanto Alec,carregandoairmã,passavaporeleedesaparecia,sumindocompletamente.

Simonfoiatrás,depoisJace,agarrandoamãolivredeClaryaopassar.Elasóteve um segundo para virar, olhar para trás e agrar uma asa negra imensapassandopor seusolhos, umavisão aterrorizantededentespingandoveneno,antesdeatempestadedoPortallevá-laetirá-ladocaos.

Clary bateu violentamente no chão, machucando os joelhos. O Portal ahaviaseparadodeJace;elarolou, coudepéeolhouemvolta,arfando—eseoPortalnãotivessefuncionado?Eseostivesselevadoparaolugarerrado?

Mas o teto da caverna se erguia sobre eles, alto e familiar, marcado pelossímbolos. Lá estava a fogueira, as marcas no chão onde tinham dormido nanoiteanterior.Jace,seerguendo,oarcodeAleccaindodamãodele,Simon...

E Alec, ajoelhado ao lado de Isabelle. Qualquer satisfação de Clary com osucesso do Portal estourou como um balão. Isabelle estava deitada, comaparência esgotada, engasgando fracamente. Jace ajoelhou ao lado de Alec etocouocabelodeIsabellecomternura.

ClarysentiuSimonagarrá-lapelopulso.Avozfalhando.—Sevocêpuderfazeralgumacoisa...Elaavançou,comoemumsonho,eseajoelhoudooutroladodeIsabelle,em

frente a Jace, com a estela escorregando por seus dedos ensanguentados. Elacolocou a ponta no pulso de Izzy, lembrando-se do que havia feito noscontornosdaCidadelaAdamant,decomosedoaraparacurarJace.Cure,cure,cure,rezou,e nalmenteaestelaganhouvida,easlinhasnegrascomeçarama

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girarpeloantebraçode Izzy,quegemeue estremeceunosbraçosdeAlec.Eleestavacomacabeçaabaixada,orostoenterradonoscabelosdairmã.

—Izzy,porfavor—sussurrou.—NãodepoisdeMax.Izzy,porfavor, quecomigo.

Isabelleengasgou,aspálpebrastremendo.Earqueouocorpo—emseguidacaiu quando oiratze desapareceu de sua pele. Uma pulsação fraca de sangueescorria do ferimento na perna: o sangue parecia tingido de preto.Amão deClaryapertavaaestelacomtanta rmezaqueela tevea impressãodesentiroinstrumentodobrando.

— Não consigo — sussurrou. — Não consigo fazer algo que seja forte osuficiente.

—Nãoévocê,éoveneno—disseJace.—Venenodedemônio.Nosanguedela.Àsvezessímbolosnãodãoconta.

—Tenteoutravez—pediuAlecaClary.Osolhosdeleestavamsecos,mastinhamumbrilhoterrível.—Como iratze.Ouumsímbolonovo;vocêpoderiacriarumsímbolo...

A boca de Clary estava seca. Ela nunca desejara tanto conseguir criar umsímbolo,masaestelanãopareciamaisumaextensãodeseubraço;pareciaumobjetomortoemsuamão.Nuncasentira-setãodesamparada.

Isabellerespiravacomdificuldade.—Algumacoisatemqueservir!—gritouSimonderepente,avozecoando

dasparedes.—VocêssãoCaçadoresdeSombras,combatemdemôniosotempotodo.Têmqueconseguirfazeralgumacoisa...

— E morremos o tempo todo! — berrou Jace para ele, e em seguida seencolheusobreocorpodeIsabelle,curvando-secomosetivesselevadoumsoconoestômago.—Isabelle,meuDeus,medesculpe,sintotanto...

— Afaste-se— disse Simon, e de súbito ele estava de joelhos ao lado deIsabelle,todosagrupadosaoseuredor,eClaryselembroudaquelequadrovivoterrível no SalãodosAcordos, quandoosLightwood se reuniramao redordocorpodeMax,enãopodiaestaracontecendodenovo,nãopodia...

—Deixa-aempaz—rosnouAlec.—Vocênãoédafamíliadela,vampiro...

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— Não — respondeu Simon —, não sou. — E suas presas apareceram,a adasebrancas.Claryrespirou fundoquandoSimon levouoprópriopulsoàbocaeorasgou,abrindoasveias,eosanguecomeçouaescorrerem letesporsuapele.

Jace arregalou os olhos. Ele se levantou e recuou; as mãos estavam empunhos,maselenãosemexeuparaimpedirSimon,quesegurouopulsoacimado entalhe na perna de Isabelle e permitiu que seu sangue escorresse pelosdedos,respingandonela,cobrindoomachucado.

—O que... você... está... fazendo?— rosnou Alec entre dentes, mas Jacelevantouamão,comosolhosemSimon.

—Deixe-o— disse Jace, quase num sussurro.— Pode funcionar, já ouvifalaremcasosquederamcerto...

Isabelle, ainda inconsciente, arqueou novamente nos braços do irmão. Aperna tremia.Ocalcanhardabotaseenterrounochãoquandoapelerasgadacomeçouaserestaurar.OsanguedeSimonentornavaemum uxouniforme,cobrindoo ferimento,masmesmoassimClaryconseguiaverumapelenovaerosadacobrindoorasgodacarne.

Isabelle abriu os olhos. Estavam arregalados e escuros. Os lábios tinhamcadoquasebrancos,masacorcomeçavaavoltar.ElaolhouparaSimonsem

entendernada,eemseguidaparaaperna.A pele que tinha sido rasgada parecia limpa e pálida, apenas a meia lua

desbotada com cicatrizes brancas em intervalos regulares delatava onde osdentesdodemônio tinhamcravado.O sanguedeSimoncontinuavapingandolentamente dos dedos, embora omachucado no pulso já tivesse praticamentedesaparecido. Ele estava pálido, Clary percebeu, ansiosa, mais pálido que onormal, easveias sedestacavamcontraapele.Ele levouopulsoàbocaoutravez,osdentesexpostos...

— Simon, não!—disse Isabelle, se esforçando para sentar-se, apoiada emAlec,queolhavaparaelacomolhosazuisassustados.

ClarysegurouopulsodeSimon.

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—Tudobem—disseela.Osanguemanchavaamanga,acamisaeoscantosdabocadeSimon.Apeledeleestava friaao toque,opunhosempulsação.—Tudobem... Isabelleestábem—falou,epuxouSimonparaque cassedepé.—Vamosdarumminuto a eles— sugeriu suavemente, e o levoupara longe,ondeelepudesseseapoiarnela,pertodaparede.JaceeAlecestavamcurvadossobreIsabelle,asvozesbaixasemurmurantes.ClarysegurouSimonpelopulsoquandoeledesaboucontraapedra,osolhossefechandodeexaustão.

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19NaTerradoSilêncio

A mulher Crepuscular tinha pele pálida e longas mechas cor de cobre. Seucabelodevetersidobonitoumdia,masagoraestavaembaraçadocomsujeiraegravetos. E ela não parecia se importar, simplesmente colocou no chão ospratosdecomida—mingaudeaveiaraloecinzentoparaMagnuseLukeeumagarrafadesangueparaRaphael—evirouascostasparaosprisioneiros.

NemLukenemMagnus zerammençãodepegaracomida.Magnusestavaenjoadodemaisparaterapetite.Alémdisso,tinhaumaligeiradescon ançadequeSebastianhaviaenvenenadooubatizadoomingaucomdrogas,ouambos.Raphael,noentanto,pegouagarrafaebebeu,sedento,engolindoatéosangueescorrerpeloscantosdaboca.

— Ora, ora, Raphael — disse uma voz vinda das sombras, e SebastianMorgenstern apareceu à entrada.AmulherCrepuscular fez uma reverência epassouporele,apressada,entãosaiuefechouaportaatrásdesi.

Ele era mesmo espantosamente parecido com o pai nesta idade, pensouMagnus. Aqueles olhos negros estranhos, totalmente negros, sem qualquerindício de castanho ou âmbar, o tipo de atributo que era lindo por serincomum. A mesma contração fanática no sorriso. Jace nunca tivera taiscaracterísticas — ele possuía a imprudência e a alegria anárquica de umaautoaniquilaçãoimaginada,masnãoeraumfanático.Porisso,pensouMagnus,precisamente por isso Valentim o mandou embora. Para destruir seus rivaisvocêprecisadeummartelo,eJaceeraumaarmamuitomaisdelicadaqueisso.

— Onde está Jocelyn? — Foi Luke quem perguntou, é claro, a voz umrosnado.Magnus couimaginandocomoseriaparaLukeolharparaSebastian,

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se a semelhança comValentim, que outrora fora seu parabatai, era dolorosa,ouseaquelaperdajátinhadesbotadohátempos.—Ondeelaestá?

Sebastian riu, e aquilo foi peculiar; Valentim não era um homem que riafacilmente.Ohumorsarcásticode Jacepareciaestaremseusangue,umtraçobastantecaracterísticodeumHerondale.

—Ela está bem— respondeu—, apenas bem, e com issoquerodizer queaindaestáviva.Oqueéomelhorquevocêpodeesperar,naverdade.

—Querovê-la—declarouLuke.—Hum— respondeu Sebastian, como se estivesse pensando no caso.—

Não,nãovejoquevantagemissopoderiametrazer.—Elaésuamãe—disseLuke.—Vocêpoderiasergentilcomela.— Não é da sua conta, cachorrinho. — Pela primeira vez se ouviu um

vestígio de juventudena voz de Sebastian, umaponta de petulância.—Você,botandosuasmãossujasemminhamãe,fazendoClaryacreditarquefazpartedafamíliadela...

— Sou mais da família dela que você — respondeu Luke, e Magnus lhelançouumolharde alerta enquanto Sebastian empalidecia, osdedos trêmulosindoparaocinto,ondeocabodaespadaMorgensterneravisível.

—Não—disseMagnus,comavozbaixa,eemseguida,maisalto:—VocêsabequeseencostaremLuke,Claryvaiodiá-lo.Jocelyntambém.

Sebastianafastouamãodaespadacomumesforçovisível.—Faleiquenuncativeaintençãodemachucá-la.— Não, só de mantê-la como refém — retrucou Magnus. — Você quer

algumacoisa... algumacoisadaClave,oudeClary e Jace. Suponhoque seja asegundaopção;aClavenuncalheinteressoumuito,masvocêseimportacomoquesuairmãpensa.Eueelasomosmuitopróximos,aliás—acrescentou.

—Nãosãotãopróximosassim.—OtomdeSebastianestavaseco.—Nãovoupouparavidadetodomundoqueelajáconheceu.Nãosoutãoloucoassim.

— Você parece bem louco — comentou Raphael, que tinha cado emsilêncioatéentão.

—Raphael—disseMagnusemtomdealerta,masSebastiannãopareceuse

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irritar.OlhavaparaRaphaelpensativamente.—RaphaelSantiago—começouele.—LíderdoclãdeNovaYork...ounão

é?Não,estecargoeradeCamilleeagorapertenceàquelagarotamaluca.Deveser muito frustrante para você. Parece-me que os Caçadores de Sombras deManhattan já deveriam ter feito alguma coisa. Nem Camille nem a pobreMaureen Brown eram líderes adequadas. Violaram os Acordos, não deramqualquer importância à Lei.Mas você dá. Tenho a impressão de que, dentretodos os grupos do Submundo, os vampiros foram osmaismaltratados pelosCaçadoresdeSombras.Bastaolharparaasuasituação.

—Raphael — repetiu Magnus, e tentou avançar para encarar o vampiro,masascorrentesdeMagnusestavamapertadas, tilintando.Ele franziuorostodiantedadornospulsos.

Raphaelestavasentadosobreosprópriospés,asbochechasrubrasportersealimentadorecentemente.Cabelosdesgrenhados;pareciatãojovemquantoeraquandoMagnusoconhecera.

—Nãoentendoporquevocêestámedizendoestascoisas—falou.—Vocênãopodedizerqueeuomaltrateimaisdoqueseuslíderesvampiros

— argumentou Sebastian. — Eu o alimentei. Não o coloquei em uma jaula.Vocêsabequevousairvencedor;todosvocêssabem.Enessedia careifelizemgarantirquevocê,Raphael,lideretodososvampirosdeNovaYork;aliás,todosos vampiros daAmérica doNorte. Pode controlar todos. Só preciso que vocêtragaoutrasCriançasNoturnasparaomeulado.OPovodasFadasjásejuntoua mim. A Corte sempre escolhe o lado vencedor. Você não deveria fazer omesmo?

Raphael se pôs de pé. Tinha sangue nas mãos; franziu o rosto para elas.Raphaelnãoeranadasenãoexigente.

—Issomeparecerazoável—disse.—Ficareiaoseulado.Lukeapoiouacabeçanasmãos.EntãoMagnusdisseentredentes:— Raphael, você realmente correspondeu às minhas mais baixas

expectativasaseurespeito.— Magnus, não importa — emendou Luke; ele estava sendo protetor,

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Magnussabia.RaphaeljátinhaidoparapertodeSebastian.—Deixe-oir.Nãoperdemosnada.

Raphaelriu.—Nãoperdemnada,vocêdiz—falouele.—Jácanseidevocêsdoisidiotas,

debatendosobreestacela, resmungandosobreamigoseamantes.São fracosesempreforam...

—Eudeviatê-lodeixadocaminharparaosol—disseMagnus,avozgelada.Raphaelvacilou—umgestomuitosutil,masMagnusnotou.Nãoquetenha

lhetrazidoalgumasatisfação.Sebastian percebeu o vacilo, no entanto, e o olhar em suas íris escuras se

intensi cou. Então levou amão ao cinto e sacou uma faca— na, com umalâminaestreita.Umamisericórdia,uma“assassina-clemente”,otipodelâminafeitaparaperfurarasfendasdeumaarmaduraedarumgolpefatal.

Raphael, vendo o lampejo do metal, recuou rapidamente, mas Sebastianapenas sorriu e girou a faca na mão. Ofereceu-a a Raphael, segurando pelalâmina.

—Pegue—disseele.Raphael esticou amão, comolhos descon ados. Pegou a faca e a segurou,

timidamente—vampirosnão tinhamo costumedeusar armas.Elespróprioseramasarmas.

—Muito bem— disse Sebastian.— Agora vamos selar nosso acordo emsangue.Mateofeiticeiro.

A lâminacaiudamãodeRaphaelebateunochãoruidosamente.ComumolhardeirritaçãoSebastianseinclinoueapegou,colocandodevoltanamãodovampiro.

— Não matamos com facas — disse Raphael, olhando da lâmina para aexpressãofriadeSebastian.

—Agoramatam—respondeuSebastian.—Nãovouquererquedestruaagarganta dele; faz muita bagunça, é muito fácil errar. Faça como estoumandando. Vá até o feiticeiro e o apunhale até a morte. Corte a garganta,perfureocoração...comoquiser.

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Raphaelvirou-separaMagnus.Lukecomeçouaavançar;Magnuslevantouamão,emalerta.

—Luke—disseele.—Não.—Raphael,se zerissonãohaverápazentreobandoeosFilhosdaNoite,

nemagora,nemnuncamais—avisouLuke,osolhosiluminadosporumbrilhoesverdeado.

Sebastianriu.— Você não está achando que vai voltar a liderar o bando, está, Lucian

Graymark?Quandoeuvencerestaguerra,evouvencer,governareicomminhairmãaomeulado,eomantereiemumajaulaparaqueelalhedêossosquandoquisersedivertir.

Raphael deu mais um passo em direção a Magnus. Estava com os olhosmuito arregalados. Sua garganta tinha sido beijada tantas vezes pelo cruci xoqueacicatrizjamaissumia.Alâminabrilhavanamão.

— Se você acha que Clary vai tolerar... — começou Luke, e em seguidavirou. Foi em direção a Raphael, mas Sebastian já estava na frente dele,bloqueandoapassagemcomalâminaMorgenstern.

Com um desprendimento estranho, Magnus assistiu a Raphael seaproximando dele. O coração de Magnus batia forte, ele tinha consciênciadisso,masnão sentiamedo algum.Havia cadopertodamortemuitas vezes;tantasqueaideianãooassustavamais.Àsvezesachavaquepartedeledesejavaaquilo, aquele país desconhecido, o único lugar em que jamais havia estado,aquelaúnicaexperiênciaaindanãovivida.

A ponta da faca o tocou no pescoço. A mão de Raphael tremia; Magnussentiuaferroadadalâminafurarovãodagarganta.

—Issomesmo—disseSebastian,comumsorrisocruel.—Corteagargantadele.Deixeosanguecorrerpelochão.Elejáviveutempodemais.

Magnus então pensou em Alec, nos olhos azuis e no sorriso constante.Lembrou-sedequandoseafastaradelenostúneissubterrâneosdeNovaYork.Lembrou-se do motivo que o levara a fazê-lo. Sim, a disposição de Alec emencontrarCamilleoenfurecera,porémforamaisqueisso.

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Lembrou-sedeTessa chorandoemseusbraços emParis, ede terpensadoquenuncahaviaexperimentadoaperdasofridaporela,poisnuncaamaracomoela,equetemiaumdiaamare,talcomoTessa,perderseuamormortal.Equeeramelhorseromortoaosobrevivente.

Mais tarde descartou aquilo comouma fantasiamórbida e não se lembroumaisdoassuntoatéconhecerAlec.Masoamordeumimortalporummortalfoiacausadadestruiçãodosdeuses,e, seatédeuseseramdestruídospor isso,Magnus não poderia esperar coisa melhor. Olhou para Raphael através doscílios.

— Você se lembra — disse o feiticeiro, com a voz baixa, tão baixa queduvidavaqueSebastianpudesseouvi-lo.—Sabeoquemedeve.

—Vocêsalvouminhavida—falouRaphael,masavozsoouentorpecida.—Umavidaqueeununcaquis.

—Provequeestáfalandosério,Santiago—disseSebastian.—Mate-o.AmãodeRaphaelapertouocabodafaca.Asjuntasestavambrancas.Elese

voltouparaMagnus:—Nãotenhoalma—disse.—Maslhe zumapromessaàportadacasada

minhamãe,eelaerasagradaparamim.—Santiago...—começouSebastian.— Eu era uma criança naquelemomento. Agora não soumais.—A faca

caiu no chão. Raphael virou e olhou para Sebastian, seus olhos escuros earregalados estavam muito límpidos. — Não posso — disse. — Não o farei.Tenhoumadívidademuitosanoscomele.

Sebastianficoumuitoquieto.— Você me decepciona, Raphael — a rmou, e guardou a espada

Morgenstern.Então avançou epegou a faca aospésdeRaphael, virando-anamão. Uma luz breve brilhou pela lâmina, uma lágrima cantante de fogo. —Vocêmedecepcionamuito—declarou,eemseguida,rápidodemaisparaqueoolharpudesseacompanhar,enfioualâminanocoraçãodeRaphael.

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Estavacongelandonointeriordonecrotériodohospital.Maianãotremia,maspodiasentir,comopontadasdeagulhaemsuapele.

Catarina estava apoiada na bancada de compartimentos metálicos queguardavamoscorpos,aqualocupavaumaparedeinteira.Asluzes uorescentesamareladas faziam com que ela parecesse esgotada, um borrão azul claro nasroupasmédicasverdes.MurmuravaemumalínguaestranhaquefezMaiasentircalafriospelaespinha.

—Ondeestá?—perguntouMorcego.Ele traziauma facadecaçaemumadasmãoseumajauladotamanhodeumcachorronaoutra.Largouajaulanochãocomumestrondo,oolharvarrendoorecinto.

Haviaduasmesasdemetal vaziasnocentrodonecrotério.EnquantoMaiaolhava,umadelascomeçouaarredarparaafrente.Asrodassearrastavampelochãodeazulejos.

Catarinaapontou.—Ali—disse.Oolharestava xadonajaula;fezumgestocomosdedos,e

ajaulapareceuvibrarefaiscar.—Embaixodamesa.— Nãome diga— enunciou Lily, os saltos estalando no piso quando ela

avançou. Lily se inclinou para olhar embaixo da mesa, em seguida recuou,dando um grito. Voou pelo ar e aterrissou em uma das bancadas, onde seempoleirou comoummorcego, seus cabelosnegros caindodo rabode cavalo.—Éhorrível—disse.

— É um demônio, oras— observouCatarina. Amesa tinha parado de semexer.—ProvavelmenteumDantalionoualgumoutrodotipo ghoul.Elessãonecrófagos.

—Ai,peloamordeDeus—disseMaia,dandoumpassoàfrente;antesdeelachegarpertodamesa,Morcegochutouestacomabota.Amesavooucomumruídometalizado,revelandoacriaturaabaixo.

Lily tinha razão:era horrível. Tinha mais ou menos o tamanho de umcachorrogrande,maslembravaumaboladeintestinocinzentoepulsante,comrins malformados e nódulos de pus e sangue. Um olho amarelo solitárioencaravaatravésdoemaranhadodeórgãos.

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—Eca—disseMorcego.—Euavisei—comentouLily,exatamentequandoumacordadeintestinose

lançoudodemônioeseenrolounocalcanhardeMorcego,puxandocomforça.Elecaiuruidosamentenochão.

— Morcego! — gritou Maia, mas antes que ela precisasse tomar algumaatitude,elesecurvouecortoucomsuafacaamatériapulsantequeosegurava.Arrastou-separatrásenquantooicordemoníacoseespalhavapelochão.

— Quenojo—disse Lily. Ela estava sentadana bancada agora, segurandoum objeto retangular de metal, seu celular, como se aquilo fosse espantar odemônio.

Morcego se levantou, cambaleando, enquanto o demônio ia em direção aMaia. Ela lhe deu um chute, e ele rolou para trás, guinchando, irritado.Morcegoolhouparaafaca.Ometalestavaderretendo,dissolvidopeloicor.Elelargouafacacomummuxoxodedesgosto.

—Armas—falou,olhandoemvolta.—Precisodeumaarma...Maia pegou um bisturi de uma mesa próxima e arremessou. Atingiu a

criatura, causando um barulho gosmento. O demônio chiou. Um instantedepois, o bisturi saltou como se tivesse sido expelido por uma torradeiraparticularmentepotente.Quicoupelochão,derretendoechiando.

—Armas normais não funcionamneles!—Catarina avançou, erguendo amãodireita.Estavacercadaporumachamaazul.—SólâminasMarcadas...

— Então vamos arrumar algumas! — disse Morcego, ofegante, recuandoenquantoacriaturaavançavaemdireçãoaele.

—SóCaçadoresdeSombraspodemusá-las!—gritouCatarina,eumraiodefogoazulpartiudesuamão,atingindoacriaturaemcheio,fazendo-arolarparatrás. Morcego pegou a jaula e a colocou na frente do demônio, abrindo aportinholaexatamentequandoacriaturarolouparadentro.

Maia fechou a porta, e a cadeado, trancando o demônio. Todos recuaram,encarandohorrorizadosenquantoelechiavaesedebatianoscon nsdaprisãoreforçadapelopoderdafeitiçaria.TodosmenosLily,quecontinuavaapontandootelefoneparaacena.

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—Vocêestáfilmandoisso?—perguntouMaia.—Talvez—respondeuLily.Catarinapassouasmangasdaroupanatesta.—Obrigada pela ajuda— disse.—Nem amagia dos feiticeiros consegue

matarDantalions;sãodurões.—Porqueestáfilmandoisso?—perguntouMaiaaLily.Avampiradeudeombros.—Quando o gato sai, os ratos fazem a festa... É sempre bom lembrar aos

ratosquenessecaso,quandoogatosai,osratosserãodevoradospordemônios.VouenviaressearquivodevídeoparatodososnossoscontatosdoSubmundo.Só um lembrete de que há demônios a serem destruídos pelos Caçadores deSombras.Éparaissoqueexistem.

— Não vão existir por muito tempo — sibilou o demônio Dantalion.Morcegodeuumberroesobressaltou-separatrás.Maianãooculpou.Abocado bicho estava aberta. Parecia um túnel negro com dentes en leirados. —Amanhãànoiteseráoataque.Amanhãànoiteseráaguerra.

—Que guerra?—perguntouCatarina.—Conte-nos, criatura, ou quandolevá-loparacasavoutorturá-lodetodasasformasqueconseguirconceber...

— SebastianMorgenstern— disse o demônio.—Amanhã à noite ele iráatacarAlicante.AmanhãànoiteosCaçadoresdeSombrasdeixarãodeexistir.

Um fogo ardeunomeioda caverna, a fumaça espiralando emdireção ao tetoabobadado,perdidonasombra.Simonsentiaocalor,umestalotensocontraapele,maisfortequeaverdadeirasensaçãodecalor.Supôsqueestivessefrionacaverna, baseando-se no fato de que Alec estava encolhido em um casacopesadoequehaviaenroladoumcobertoremvoltadeIsabellecuidadosamente;agarotadormiaesticadapelochão,acabeçanocolodoirmão.MasSimonnãoconseguiasentir,nãodefato.

Clary e Jace tinham ido veri car os túneis para certi car-se de que aindaestavamlivresdedemônioseoutraspossíveiscriaturasdesagradáveis.Alecnão

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quisdeixar Isabelle sozinha, e Simon estava fraco e tontodemaispara cogitarqualquermovimentação.Nãoqueele tivessedito issoaalguém.Tecnicamenteestavavigiando,tentandoescutarqualquercoisanassombras.

Alecencaravaachama.Aluzamarelaofaziaparecercansado,maisvelho.—Obrigado—disseelesubitamente.Simonquasedeuumpulo.Alecnão tinhaditoumapalavradesdeoO que

vocêestáfazendo?.—Peloquê?— Por salvarminha irmã— esclareceuAlec, e passou amão nos cabelos

escurosde Isabelle.—Eu sei— falou,umpoucohesitante.—Digo, eu sabia,quando viemos para cá, que esta podia ser uma missão suicida. Sei que éperigoso.Seiquenãopossoesperarquetodossaiamosvivosno nal.Masacheiqueseriaeu,nãoIzzy...

— Por quê? — perguntou Simon. Estava com a cabeça latejando, a bocaseca.

— Porque pre ro que seja eu — respondeu Alec. — Ela é... Isabelle. Éinteligente, forte e uma boa guerreira.Melhor que eu.Merece car bem, serfeliz.—Alec olhou para Simon através do fogo.—Você temuma irmã, nãotem?

Simon se espantou com a pergunta—Nova York parecia a ummundo, aumavidadedistânciadali.

—Rebecca—falou.—Éesteonomedela.—Eoquevocêfariacomalguémqueamagoasse?SimonolhouparaAleccautelosamente.—Conversariacomapessoa—disse.—Discutiria.Talvezdesseumabraço

compreensivo.Alec riu e pareceu a ponto de responder; então virou a cabeça, como se

tivesse ouvido alguma coisa. Simon ergueu uma sobrancelha. Era raro umhumano escutar alguma coisa antes de um vampiro.Um segundomais tarde,ele mesmo reconheceu o som e entendeu: era a voz de Jace. Viu umailuminaçãonotúnel,eClaryeJaceapareceram,elasegurandoumapedradeluz

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enfeitiçada.Mesmodebota,ClarymalbatianoombrodeJace.Nãoestavamsetocando,

masavançavamjuntosemdireçãoaofogo.SimonpensouqueapesardeosdoispareceremumcasaldesdeaprimeiravezquevoltaramdeIdris,agorapareciamalgomais.Pareciamumaequipe.

—Algumacoisainteressante?—perguntouAlec,enquantoJaceiasentaraoladodofogo.

—Clarycolocousímbolosdefeitiçonasentradasdacaverna.Ninguémdeveconseguirenxergarqueexisteumaentrada.

—Quantotempovãodurar?— A noite toda, provavelmente até amanhã— respondeu Clary, olhando

para Izzy. — No entanto, com o problema dos símbolos desbotarem rápidoaqui,tereiqueverificá-lasmaistarde.

— E eu estou com uma noção melhor da nossa posição em relação aAlicante.TenhoquasecertezadequeolixãodepedrasondeestivemosontemànoitedávistaparaoqueachoseraFlorestaBrocelind.—Jaceapontouparaotúneldaextremadireita.

Alecsemicerrouosolhos.—Issoédeprimente.Aflorestaera...linda.—Nãomais.— Jace balançou a cabeça.— Só terreno baldio, até onde a

vistaalcança.—Entãoabaixou-seetocouocabelodeIsabelle,eSimonsentiuumapontada inútil de ciúme por ele poder tocá-la tão naturalmente,mostrarseuafetosempensar.—Comoelaestá?

—Bem.Dormindo.—Achaqueelavaiestarbemosu cienteparaandaramanhã?—Otomde

Jaceestavaansioso.—Agentenãopode caraqui. Jádemossinaisdemaisdeque estamos presentes. Se não pegarmos Sebastian, ele vai nos encontrarprimeiro.Eestamosficandosemcomida.

SimonnãoouviuarespostamurmuradadeAlec,eumadorsúbitaoatingiu,e ele se encolheu. Sentiu-seprivadode ar, excetopelodetalhedeque ele nãorespirava.Mesmoassim,seupeitodoeu,comosealgotivessesidoarrancado.

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— Simon. Simon! — gritou Clary, com a mão no ombro dele, e ele aencarou, os olhos entornando lágrimas tingidas de sangue. — Meu Deus,Simon,oquehouve?—perguntouela,preocupada.

Ele voltou a sentar-se ereto, lentamente. A dor já estava começando adiminuir.

—Nãosei.Foicomosealguémtivesseenfiadoumafacanomeupeito.Jace rapidamente se ajoelhou na frente dele, os dedos sob o queixo de

Simon.Seuolhardourado-claroanalisavaorostodeSimon.—Raphael—disse Jacea nal,avozseca.—Eleé seugerador,ovampiro

cujosangueotransformou.Simonassentiu.—Edaí?Jacebalançouacabeça.—Nada—murmurou.—Quandofoiaultimavezquevocêsealimentou?—Estoubem—disseSimon,masClaryjáhaviaagarradoamãodireitadele

e a erguido. A mão em si estava completamente branca, as veias sob a peleaparecendonegras,comoumarededefissurasnomármore.

—Vocênãoestábem...nãosealimentou?Perdeutodoaquelesangue!—Clary...—Ondeestãoasgarrafasquetrouxe?—Elaolhouemvolta,procurandoa

mochila, e a encontrouapoiadanaparede.Puxou-apara si.—Simon, senãocomeçarasecuidarmelhor...

—Não.—EleagarrouaalçadamochilaeatiroudasmãosdeClary;elaoencarou. — Elas quebraram — disse ele. — As garrafas quebraram quandoestávamoslutandocontraosdemôniosnoSalãodosAcordos.Osanguejáera.

Claryselevantou.—SimonLewis—falou,furiosa.—Porquevocênãoavisou?—Avisarsobreoquê?—JaceseafastoudeSimon.—Simonestáfaminto—explicouClary.—PerdeusangueparacurarIzzy,

eoestoquedelefoidestruídonoSalão...— Por que não disse alguma coisa? — perguntou Jace, levantando e

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afastandoumcachodecabelolourodorosto.— Porque não— respondeu Simon.—Não é como se houvesse animais

aquiparaeumealimentar.—Temagente—lembrouJace.—Nãoqueromealimentardosanguedosmeusamigos.—Porquenão?—JacepassoupelafogueiraeolhouparaSimon;ostentava

umaexpressãoacessível ecuriosa.—Jápassamospor isso,nãopassamos?Naúltima vez em que estava faminto, eu dei meu sangue. Foi um poucohomoeróticotalvez,massousegurodaminhasexualidade.

Simonsuspirou internamente;davaparaperceberque, sobasbrincadeiras,Jaceofereciadeverdade.Provavelmentemenosporser sensualdoquepor terumdesejodemorrerdotamanhodoBrooklyn.

— Não vou morder alguém cujas veias estão cheias de fogo celestial —afirmouSimon.—Nãotenhoomenordesejodetorrardedentroparafora.

Claryjogouocabeloparatrás,exibindoopescoço.— Ouça, beba meu sangue. Eu sempre disse que quando precisasse, você

podia...—Não— falou Jace imediatamente, e Simon se agrou lembrando-se do

navio deValentim, damaneira comoSimondissera Euo teriamatado e Jacerespondera,contemplativo,Euteriadeixado.

— Ah, por Deus. Deixem por minha conta. — Alec se levantou,reposicionandoIzzycuidadosamentenocobertor.Ajeitouabordaemvoltadelaeselevantou.

Simondeixouacabeçacairparatráscontraaparededacaverna.—Vocêsequergostademim.Agoraestámeoferecendoseusangue?— Você salvou minha irmã. Devo isso a você.— Alec deu de ombros, a

sombralongaeescuraàluzdaschamas.—Certo.—Simonengoliuemseco,desconfortável.—Tudobem.Claryesticouamãoparabaixo.Apósuminstante,Simonaceitouepermitiu

queelao levantasse.Elenãoconseguiadeixardeolharpara Isabelle,dooutrolado,dormindo,semienroladanocobertorazuldeAlec.Elaestavarespirando,

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lentaeconstantemente.Izzy,aindarespirando,porcausadele.Simon deu um passo em direção a Alec e cambaleou. Alec o segurou e o

aprumou.Amãono ombro de Simon estava rme. Simon sentia a tensão deAlec, e de repente percebeu o quão bizarra era aquela situação: Jace e Claryboquiabertosparaeles,Alecagindocomosefosselevarumbaldedeáguageladanacabeça.

Alecvirouacabeçaumpoucoparaaesquerda,exibindoopescoço.Olhavaxamenteparaaparedeoposta.Simonconcluiuqueeleseassemelhavamenos

a alguém prestes a levar um balde d’água gelada na cabeça e mais a alguémprestesapassarporumexamemédicoconstrangedor.

—Nãovoufazeristonafrentedetodomundo—anunciouSimon.—Istonãoéjogodeverdadeouconsequência,Simon—disseClary.—Ésó

comida.Nãoquevocêsejacomida,Alec—acrescentou,quandoeleolhoufeioparaela.Claryergueuasmãos.—Deixeparalá.

—Ah,peloAnjo...—começouAlec,esegurouobraçodeSimon.—Vamos—disse,daí arrastouSimonpelo túnelque levavaaoportão, longeobastanteparaqueosoutrossumissemdevista,desaparecendoatrásdeumpedregulho.

EmboraSimontivesseescutadoaúltimacoisaditaporJace,poucoantesdesaíremdoalcanceauditivo:

—Oquê?Elesprecisamdeprivacidade.Éummomentoíntimo.—Achoquevocêdeviasimplesmentemedeixarmorrer—declarouSimon.—Caleaboca—respondeuAlec,eoempurroucontraaparededacaverna.

Entãooencarou,pensativo.—Temquesernopescoço?—Não—respondeuSimon, sentindocomose tivesseentradonumsonho

bizarro.—Pulsostambémservem.Aleccomeçouaarregaçaramangadocasaco.Tinhaobraçopálido,exceto

peloslocaisondehaviaMarcas,eSimonenxergouasveiassobapele.Apesardesuaresistência,sentiuumapontadadefome,despertando-odaexaustão:sentiaocheirodesangue,suaveesalgado,enriquecidocomluz.SanguedeCaçadordeSombras,comoodeIzzy.Passoualínguapelosdentessuperiorese cousóum

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poucosurpresoaosentiroscaninosenrijecendoesea ando,transformando-seempresas.

—Sóqueroque saiba—disseAlec, enquanto estendiaopulso—,que seique para vocês vampiros essa coisa de alimentação às vezes se iguala amomentossexuais.

Simonarregalouosolhos—Épossívelqueminhairmãtenhamecontadomaisdoqueeugostariade

saber— admitiuAlec.—En m, o que quero dizer é que não sinto amenoratraçãoporvocê.

—Certo—respondeuSimon,esegurouamãodeAlec.Tentouumapegadafraterna,masnãodeumuitocerto,considerandoqueprecisavacurvaramãodeAlecparatrásparaexibirapartevulneráveldopulso.—Vocêtambémnãomedesperta nada, então acho que empatamos.Mas você poderia ter ngido porcinco...

—Não,nãopoderia—respondeuAlec.—Detestoquandoheterospensamque todosos gays se sentematraídospor eles.Não sinto atraçãopor todososcaras,assimcomovocêtambémnãosenteportodasasgarotas.

Simonrespiroufundo,propositalmente.Erasempreumasensaçãoestranha,respirarquandonãoprecisava,masaquilooacalmava.

—Alec—disseele.—Acalme-se.Nãoachoquevocêestejaapaixonadopormim.Aliás,namaiorpartedotempotenhoaimpressãodequevocêmeodeia.

Alecfezumapausa.—Nãooodeio.Porqueodiaria?—PorquesoudoSubmundo?Porquesouumvampiroapaixonadopelasua

irmã,aqualvocêachaboademaisparamim?—Você não acha? — disse Alec, mas sem rancor; após um instante, ele

sorriu, aquele sorrisinho Lightwood que iluminava seu rosto e fazia Simonpensar em Izzy.—Ela éminha irmãzinha.Achoque éboademaispara todomundo.Masvocê...vocêéumaboapessoa,Simon. Independentementedeserumvampiro.Éleal,inteligentee...efazIsabellefeliz.Nãoseiporquê,masfaz.Sei que não gostei de você quando nos conhecemos. Mas isso mudou. E eu

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nuncajulgariaminhairmãpornamorarumintegrantedoSubmundo.Simonficouimóvel.Alecsedavabemcomfeiticeiros,pensouele.Issoestava

su cientemente claro. Mas feiticeiros nasciam feiticeiros. Alec era o maisconservador dos Lightwood— não adorava o caos e nem corria riscos comoJace e Isabelle —, e Simon sempre sentira em Alec aquela noção de quevampiroseramhumanostransformadosemumacoisaerrada.

—Vocênãoaceitariaservampiro—disseSimon.—Nemmesmopara carcomMagnusparasempre.Certo?Vocênãoquisviverparasempre;quistiraraimortalidadedele.Foiporissoqueeleterminoucomvocê.

Alecvacilou.—Não—disse.—Não.Eunãoaceitariaserumvampiro.—Entãoachaquesoupiorquevocê—concluiuSimon.AvozdeAlecfalhou.—Estoutentando—confessou,eSimonsentiu,sentiuoquantoAlecqueria

ser sincero, e talvezatéestivesse sendoumpouco.A nal, seSimonnão fosseum vampiro, ainda seria mundano, continuaria a ser inferior. Ele sentiu apulsaçãodeAlecacelerar.—Váemfrente—falouAlec,exalandoaspalavras,claramenteemumaagoniadeespera.—Apenas...morda.

— Prepare-se— disse Simon, e levou o pulso de Alec à boca. Apesar datensão entre eles, seu corpo, faminto e em abstinência, reagiu. Os músculosenrijeceram, e as presas surgiram espontaneamente. Viu os olhos de Alecdilatarem de surpresa e medo. A fome se espalhou como um incêndio pelocorpodeSimon,eeleentão faloucomtodaasinceridade, lutandopara tentardizer alguma coisa humana para Alec. Torceu para que tivesse saído alto obastante para ser compreendido por causa das presas: — Sinto muito porMagnus.

—Eutambém.Agoramorda—disseAlec,eSimonobedeceu.Aspresasperfuraramvelozmenteapele,osangueexplodindoemsuaboca.

OuviuAlecengasgar,entãooagarroucommaisforça,involuntariamente,comosequisesseimpedirAlecdetentarsairdali.MasAlecnãotentou.Suapulsaçãoacelerada estava audível para Simon, latejando nas veias como um sino.

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JuntamenteaosanguedeAlec,Simonsentiuogostometálicodomedo,afaíscadedoreachamaansiosadealgumaoutracoisa,algoqueelesentiranaprimeiravez em que bebera o sangue de Jace no chão metálico imundo do navio deValentim. Talvez todos os Caçadores de Sombras tivessem um desejo demorrer,afinal.

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20AsSerpentesdoPó

QuandoAlec e Simonvoltaramà caverna central, encontraram Isabelle aindadormindo,enroladaemumapilhadecobertores. Jaceestava sentadopertodofogo, apoiado nas mãos, o jogo de luz e sombra dançando pelo rosto. Claryestava deitada com a cabeça no colo dele, embora Simon pudesse notar, pelobrilho nos olhos dela enquanto os observava se aproximando, que ela nãoestavadormindo.

Jaceergueuassobrancelhas.—Eaí,rolou?Foibompravocês,meninos?Alec o olhou ameaçadoramente. Estava com o pulso esquerdo virado para

dentro, escondendo asmarcas de perfuração, apesar de estarempraticamentedesbotadasgraçasaoiratzequeelehaviacolocadonopulso.NãoafastaraSimonemmomentoalgum,deixouquebebesseseusangueenquantoquisessee,comoresultado,pareciaumpoucopálido.

—Nãofoisexy—disse.— Foi um pouco sexy — retrucou Simon, que estava se sentindo muito

melhor após ter se alimentado e não pôde deixar de cutucar Alec umpouquinho.

—Nãofoi—rebateuAlec.—Eusentialgumacoisa—provocouSimon.—Sinta-se livreparasetorturarsobre issoquandoestiversozinho—falou

Alec,eseabaixouparapegaraalçadamochila.—Voufazerumturnodevigia.Clarysentou-se,dandoumbocejo.—Temcerteza?Precisadeumsímbolodereposiçãosanguínea?

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— Já apliquei dois — respondeu Alec. — Vou car bem. — Ajeitou-se eolhouparaairmãadormecida.—ApenascuidemdeIsabelle,estábem?—SeuolharsevoltouparaSimon.—Principalmentevocê,vampiro.

Alec saiu pelo corredor, a pedra de luz enfeitiçada projetando sua sombra,longa e esticada contra a parede da caverna. Jace e Clary trocaram um olharbreve antes de Jace se levantar, cambaleante, e seguirAlec pelo túnel. Simonouvia as vozes deles—murmúrios suaves ressoando nas rochas, embora nãoconseguisseidentificaraspalavras.

AspalavrasdeAlececoaramemsuamente.CuidemdeIsabelle .PensouemAlecnotúnel.Vocêéleal,inteligentee...efazIsabellefeliz.Nãoseiporquê,masfaz.

A ideia de fazer Isabelle feliz o encheu de entusiasmo. Simon sentou-secalado ao lado dela— Izzy estava como um gato, encolhida em uma bola decobertores,acabeçadeitadanoprópriobraço.Eleseabaixougentilmenteparadeitar ao ladodela. Estava viva graças a ele, e o irmãodela tinha feito omaispróximoqueumdiafariadedarabênçãoaonamorodosdois.

EleouviuClary,dooutroladodafogueira,rindosuavemente.—Boanoite,Simon—disseela.SimonsentiuocabelodeIsabellemaciocomosedasobseurosto.— Boa noite — respondeu, e fechou os olhos, as veias cheias de sangue

Lightwood.

JacealcançouAlec facilmente; eleestavaparadonopontoondeocorredordacaverna se curvava em direção ao portão. As paredes eram lisas, como setivessemsidodesgastadasporanosdeáguaouvento,enãoporcinzéis,emboraJacetivessecertezadequeaquelaspassagenseramfrutodemãoshumanas.

Alec,queestavaapoiadocontraaparededacaverna,claramenteaguardandoporJace,ergueusuapedradeluzenfeitiçada.

—Aconteceualgumacoisa?Jacedesacelerouaoseaproximardoparabatai.—Sóqueriatercertezadequevocêestavabem.

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Alecdeudeombros.—Estou,namedidadopossível,creio.—Sintomuito—disseJace.—Maisumavez.Euassumoriscosidiotas.Não

consigoevitar.—Nós permitimos que você faça isso— respondeu Alec.— Às vezes os

riscos valem a pena. Permitimos porque precisamos permitir. Porque se nãopermitíssemos nada nunca seria feito. — Ele esfregou o rosto com a mangarasgada.—Isabellediriaomesmo.

—Acabamos não concluindo a conversa de antes— lembrou Jace.— Sóquerodizerquevocênãoprecisa tersemprerazão.Eupediparavocêsermeuparabatai porqueprecisavade você,mas você tambémpodeprecisardemim.Isto—indicousuaMarcadeparabatai—signi caquevocêéminhametade,amelhor demim, e eume importomais com você do que comigo. Lembre-sedisto. Sinto muito por não ter percebido o quanto estava sofrendo. Nãoenxergueiantes,masagoraenxergo.

Alec cou completamente parado por um instante,mal respirando. Então,para surpresade Jace, esticouobraço e afagouo cabelodele,do jeitoqueumirmãomaisvelhofariacomoirmãomaisnovo.Seusorrisofoicauteloso,porémrepletodeafeto.

—Obrigadopormeenxergar—falou,eseguiupelotúnel.

—Clary.Ela acordou lentamente,despertandode sonhosalegres envolvendocalor e

fogo, cheiro de feno e maçãs. No sonho, ela estava na fazenda de Luke,penduradadecabeçaparabaixoemumgalhodeárvore,rindoenquantoSimonacenava lá de baixo. Lentamente, foi cando ciente da pedra dura sob seusquadrisesuascostas,dacabeçadeitadanaspernasdeJace.

— Clary — repetiu ele, ainda sussurrando. Simon e Isabelle estavamesparramados, juntos, a alguma distância, ummontinho escuro nas sombras.Osolhosde Jacebrilhavamparaela,douradosedançandocoma luz re etidadofogo.—Queroumbanho.

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—Sim, bem, e eu quero ummilhão de dólares—disse ela, esfregando osolhos.—Todomundoqueralgumacoisa.

Eleergueuumasobrancelha.— Vamos, pense nisso — falou. — Aquela caverna? A que tem o lago?

Poderíamos.Clarypensounacaverna,nabelaáguaazul, intensacomocrepúsculo, ede

repente sentiu como se estivesse coberta por uma casca de sujeira — pó,sangue,icoresuor,ocabelopresoemumemaranhadogordurento.

OsolhosdeJacedançaram,eClarysentiuaqueleimpulsofamiliardentrodopeito,aquelemesmopuxãoquesentiradesdeaprimeiravezemqueovira.Elanão sabia dizer o instante exato em que se apaixonou por Jace, mas sempreexistira alguma coisa nele que a fazia se lembrar de um leão, de um animalselvagemquedesconheceregras,apromessadeumavidade liberdade.Nunca“nãoposso”,massempre“euposso”.Sempreoriscoeacerteza,nuncaomedoouadúvida.

Elaselevantouaostrancos,omaissilenciosamentepossível.—Tudobem.Ele se levantou instantaneamente, pegando-a pela mão e puxando-a pelo

corredoroestequesaíadacavernacentral.Seguiramemsilêncio,apedradeluzenfeitiçadadelailuminandoocaminho,umsilêncioqueClaryquasetevemedoderomper,comosefossequebraracalmailusóriadeumsonhooufeitiço.

A imensa caverna se abriu diante deles repentinamente, e ela guardou apedra, apagando a luz. A bioluminescência da caverna era su ciente: luzbrilhando das paredes, das estalactites brilhantes que se penduravam do tetocomopingenteseletri cados.Facasdeluzperfuravamassombras.Jacesoltouamão dela e caminhou os últimos passos da trilha até a beira da água, onde aareiaera naemacia,brilhandocommica.Elefezumapausaaalgunsmetrosdaáguaefalou:

—Obrigado.Elaolhouparaele,surpresa.

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—Peloquê?—Porontemànoite—disse.—Vocêmesalvou.Ofogocelestialteriame

matado,euacho.Oquevocêfez...—Mesmoassimnãopodemoscontarparaosoutros—falouela.—Não contei ontem, contei?— perguntou ele. Era verdade. Jace e Clary

sustentaram a versão de que Clary simplesmente o ajudara a controlar e adissiparofogo,equenadamaishaviamudado.

— Não podemos arriscar revelar, até mesmo através de um olhar ouexpressão errados — disse ela. — Você e eu, nós temos alguma prática emesconder coisas de Sebastian,mas eles não. Isso não seria justo com eles. Euquasegostariaqueagentenãosoubesse...

Eladeixouafrasesolta,enervadapelaausênciaderesposta.Jaceolhavaparaaágua,azulerasa,decostasparaela.Clarydeuumpassoàfrenteeocutucoulevementenoombro.

—Jace—disse.—Sevocêquiserfazeralgodiferente,seachaquedevemosseguiroutroplano...

Ele virou, e de repente ela estava nos braços dele. Aquilo provocou umchoque por todo o corpo dela.Asmãos de Jace lhe envolviam os ombros, osdedos acariciavam levemente o tecido da camisa. Clary estremeceu, ospensamentosvoaramdacabeçacomopenasespalhadaspelovento.

—Quandovocêsetornoutãocautelosa?—Não sou cautelosa— respondeu ela, enquanto ele lhe tocava a têmpora

comos lábios.Ohálitomorno remexeuos cachospertodaorelha.—Sónãosouvocê.

Elaosentiurir.Asmãosdeledeslizarampelaslateraisdocorpodelaeentãoaagarrarampelacintura.

—Issovocêdefinitivamentenãoé.Vocêémuitomaisbonita.—Vocêdevemeamar—comentouela,arespiraçãofalhandoenquantoos

lábiosdeleroçavamprovocativamenteporsuamandíbula.—Nuncapenseiquevocê fosse admitir que existe alguém mais bonito que você. — Ela sesurpreendeuquandoabocade Jaceencontroua sua,os lábiosdele seabrindo

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para sentir o gostodosdela, daí ela se ofereceu a ele, aobeijo, determinada arecuperarumpoucodocontrole.Levouosbraçosaopescoçodele,entreabrindoabocaparaele,emordeugentilmenteolábioinferiordeJace.

Fezmaisefeitodoqueelaesperava;asmãosdeleapertaramacinturadela,eele gemeu baixinho de encontro à boca de Clary. Um instante depois ele seafastou,vermelho,osolhosbrilhando.

—Vocêestábem?—perguntouele.—Vocêqueristo?Ela assentiu, engolindo em seco. O corpo todo parecia vibrar como uma

cordaestimuladadeuminstrumentomusical.—Sim,euquero.Eu...—Éque queitantotemposempodertetocardeverdade,eagoraeuposso

—falouele.—Mastalvezestenãosejaolugar...—É,istoébemsujo—admitiuela.—“Bemsujo”pareceumpoucocríticoprasituação.Clary levantou as mãos, as palmas para cima. Tinha sujeira na pele e

embaixodaunha.Elasorriuparaele.—Estou falandoliteralmente—explicou,emeneouoqueixoemdireçãoà

água.—Nãoíamosnoslavar?Naágua?Obrilhodosolhosdeleescureceuparaumatonalidadeâmbar.—Claro—disseele,ecomeçouaabrirozíperdocasaco.ClaryquaseganiuOquevocêestáfazendo? ,masoqueeleestavafazendoera

perfeitamenteóbvio.Eladissera“naágua”,enãoeracomosepudessementrarcomuniformede combate. Só que ela não tinhapensadono assunto até esseponto.

Eletirouocasacoeacamisa;ocolarinhoprendeuporuminstante,eClarysimplesmente cou olhando, de repente muito consciente do fato de queestavamsozinhos,edocorpodele:dapelemorenamapeadaporMarcasnovase antigas, deuma cicatriz desbotando abaixoda curvadomúsculodopeitoralesquerdo.Dabarrigalisaede nidadescendoatéosquadrisestreitos;eletinhaemagrecido,eocintodearmasestavafrouxo.Daspernasedosbraços,comumcharmecomoosdeumdançarino;eleselivroudacamisaesacudiuoscabelos

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brilhosos,eClarypensou,comumsúbitofrionabarriga,quesimplesmentenãoerapossívelqueelefossedela;Jacenãoeraotipodepessoadequemaspessoascomuns costumavamse aproximar, quantomais tocar, e então eleolhouparaela,asmãosnocinto,elançouseufamiliarsorrisotorto.

—Vai carderoupa?—perguntou.—Eupoderiaprometernãoolhar,masestariamentindo.

Claryabriuozíperdajaquetadecombateeajogouparaele.Jaceapegouedeixoucairsobreapilhaderoupas,sorrindo.Eleafrouxouocintoetambémojogounochão.

—Pervertido—disseela.—Masganhapontospelahonestidade.—Tenho17anos;somostodospervertidos—falouele,tirandoossapatose

acalça.Estavadecuecasamba-cançãopretae,paraalívioedecepçãodeClary,seguiuparaaáguasemtirarapeça,entrandoatéaalturadojoelho.—Ou,pelomenos,terei17daquiaalgumassemanas—disse,olhandoparatrás.—FizascontascomascartasdomeupaieaépocadaAscensão.Nasciemjaneiro.

Alguma coisa na total normalidade do tom deixou Clary confortável. Elatirouasbotas,depoisacamisaeacalça,efoiparaabeiradaágua.Estavafresca,masnãofria,lambendoseustornozelos.

Jaceolhouparaelaesorriu.Entãoosolhosviajaramdorostoparaocorpo,para a calcinha e o sutiã lisos de algodão. Ela gostaria de ter vestido algumacoisamaisbonita,masnãoeracomose“lingeriechique”fosseumitemdalistadecoisasaselevarparaoreinodemoníaco.Osutiãeraazul-claro,dotipobemmonótono,vendidoemhipermercados,emboraJaceestivesseolhandoparaelecomosefossealgumacoisaexóticaeincrível.

De repente ele enrubesceu,desviouoolhar, recuandodemodoque a águasubiueocobriuatéosombros.Elemergulhoueressurgiu,menosruborizado,porém muito mais molhado, os cabelos dourados escurecidos e escorrendofiletesdeágua.

—Émaisfácilseentrardeumavezsó—avisouele.Claryrespiroufundoemergulhou,aáguacobrindoatéacabeça.Eeralinda

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— azul-escura, com os de prata por causa da luz vinda do alto. O pó dasrochashaviasemisturadoàágua, lheconferindoumatexturapesadaemacia.Era fácil boiar; assim que Clary relaxou o corpo, ela voltou à superfície,sacudindoáguadocabelo.

Suspirou,aliviada.Nãohaviasabonete,entãoelaesfregouasmãos,vendoaspartículas de sujeira e sangue derreterem na água. O cabelo utuava nasuperfície,vermelhomisturadoaazul.

Umesguichodegotículasdeáguaafezolharparacima.Jaceestavaaalgunsmetrosdedistância,sacudindoocabelo.

—Achoque isso fazdemimumanomais velhoque você—disse ele.—Soupapa-anjo.

—Seismeses—corrigiuClary.—Evocêédecapricórnio,hum?Teimoso,inconsequente,desrespeitaasregras...parececorreto.

Jace a pegou pelos quadris e a puxou para si através da água. Era funda osu cienteparaqueele cassedepé,maselanão.Clarysesegurounosombrosdeleparasemantereretaenquantoelepuxavaaspernasdelaparasuacintura.Elaolhoudecimaparaele,comumcalornoestômago,paraaslinhasmolhadasdopescoço,dosombrosedopeito,asgotículasdeáguacomoestrelasnoscíliosdeJace.

Eleseesticouparacimaparabeijá-laexatamentequandoelaseinclinouparabaixo;oslábiossechocaramcomumaforçaqueenviouumchoquedeprazeredorpelocorpodela.AsmãosdeJacedeslizarampelapeledeClary;elaencaixoua mão na nuca dele, entrelaçando os dedos nos cachos molhados. Eleentreabriuos lábiosdela e acariciou-lhe aboca coma língua.Ambos estavamtrêmulos,eelaestavaofegante,arespiraçãosemisturandoàdele.

Jaceesticouumadasmãosparatrás,tocandoaparededacavernaembuscade rmeza, mas ela estava escorregadia por causa da água e ele deslizou umpouco; Clary interrompeu o beijo enquanto ele recuperava o equilíbrio, semsoltar o braço esquerdo dela, pressionando os corpos um contra o outro. Aspupilasdeledilataram,eocoraçãobatiafortedeencontroaodela.

— Isto foi — arfou ele, e pressionou o rosto na junção do pescoço e do

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ombrodeClary,inspirandocomoseaestivessesorvendo.Eletremiaumpouco,emboraoapertonobraçodelafossefirme.—Istofoi...intenso.

— Já fazia um tempinho — murmurou ela, tocando o cabelo de Jacegentilmente—,que,vocêsabe,nãopodíamosrelaxar.

—Não consigo acreditar— disse ele.—Ainda não consigo acreditar quepossotebeijar,tetocar,tocardeverdade,semmedo...—Elelhedeuumbeijonopescoçoeelasesobressaltou;elerecuouparaolharparaela.Aáguaescorriapelo rosto de Jace como se fossem lágrimas, contornando as bordasproeminentesdasmaçãs,acurvadamandíbula.—Imprudente—falouele.—Sabe, quando cheguei ao Instituto pela primeira vez, Alec me chamou deimprudente tantasvezesque fuiaodicionáriopesquisaroqueera.Nãoqueeunão soubesse o que signi cava, mas... eu sempre achei um pouco quesigni cassecorajoso.Naverdade signi ca“alguémquenão se importacomasconsequênciasdesuasações”.

ClarysofreupelopequenoJace.—Masvocêseimporta.—Talveznãoosu ciente.Nãootempotodo.—Avozdeleestremeceu.—

Porexemploaformacomoteamo.Teameidemaneiraimprudentedesdequeteconheci.Nuncameimporteicomasconsequências.Eudiziaamimquemeimportava, dizia que você queria, então tentei, mas jamais consegui. Queriavocêmaisdoquequeria ser bom.Queria vocêmais quequalquer outra coisa,que jamais quis. — Os músculos dele estavam rijos, o corpo tremendo detensão.ElaseinclinouparatocaroslábiosdeJacecomospróprios,paraapagaraquelatensãocomumbeijo,noentantoelerecuou,mordendoolábioinferiorcomforçasuficienteparadeixarapelebranca.

—Clary—falouele,asperamente.—Espere,apenas...espere.Clary sentiu-se momentaneamente atordoada. Jace adorava beijar; podia

passar horas beijando, e erabom nisso. E não estava desinteressado. Estavamuito interessado. Ela apertou os joelhos em torno dos quadris de Jace e,insegura,perguntou:

—Estátudobem?

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—Precisocontarumacoisa.—Ah,não.—Elaapoiouacabeçanoombrodele.—Tudobem,oqueé?—Lembraquandoentramosnoreinodemoníacoetodomundoviualguma

coisa?—perguntou.—Eeudissequenãovinada?—Nãoprecisamecontaroqueviu—falouClarygentilmente.—Éassunto

seu.— Preciso — insistiu ele. — Você tem que saber. Vi uma sala com dois

tronos, tronos dourado emar m, e eu enxergava omundo pela janela, e erafeitodecinzas.Era igualaestemundo,masadestruiçãoeramais recente.Asfogueiras ainda ardiam, e o céu estava cheio de criaturas voadoras horríveis.Sebastian estava sentado emumdos tronos, e eu, no outro.Você estava lá, eAlec, Izzy eMax...—Ele engoliu em seco.—Mas estavam todos enjaulados.Uma jaula grande comuma tranca enormena porta. E eu sabia que os tinhacolocado lá e fechado a tranca.Mas não sentia arrependimento. Sentia-me...triunfante.—Eleexaloupesadamente.—Podemeempurrardedesgostoagora.Nãotemproblema.

Mas é claro que tinha problema; tudo no tom dele — seco e morto,desprovidodeesperança—tinhaproblema.Claryestremeceunosbraçosdele;nãodehorror,masdepena,epelatensãodesaberquãopoucaféJacetinhaemsi,edoquãocuidadosateriaquesersuarespostaaele.

— O demônio nos mostrou o que ele achava que queríamos — disse elaa nal.—Nãooquequeremosde fato.Eleerrouemalgumascoisas; foiassimqueconseguimosnoslibertar.Quandooencontramos,vocêjáhaviaconseguidose libertar sozinho. Então aquilo que ele mostrou a você não era seu desejogenuíno. Quando Valentim te criou, ele controlava tudo, nada era seguro, enada que você amasse estava seguro. Então o demônio olhou para dentro devocê e viu isso, aquela fantasia infantil de controlar omundo totalmenteparaque nada demal pudesse acontecer às pessoas que ele ama, e tentou lhe darisso,masnão era o que você queria, nãomesmo.Então você acordou.—Elatocouabochechadele.—Partedevocêaindaéaquelegarotinhoqueachaqueamarédestruir,masestáaprendendo.Vocêaprendetodososdias.

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Porum instante ele aolhou, espantado,os lábios levemente abertos;Clarysentiuasbochechascorando.Eleaolhavacomoseelafosseaprimeiraestrelaasurgirnocéu,ummilagrenoqualelemalconseguiaacreditar.

—Deixesóeu...—disseele,eparou.—Possobeijá-la?Emvezdefazerquesimcomacabeça,elaseinclinouparaele,paraoslábios

se tocarem. Se o primeiro beijo na água foi uma espécie de explosão, este foicomo o sol em supernova. Foi um beijo forte, quente, entorpecente, umamordiscadano lábio inferiordeClary e o choquede línguas e dentes, os doispressionando o máximo possível para se aproximarem ainda mais. Estavamgrudados,peleetecido,umamisturadofriodaáguacomocalordoscorposeodeslizardesprovidodeatritodaspelesmolhadas.

OsbraçosdeJaceaenvolveramcompletamente,ederepenteeleestavacomelanosbraços,saindodolago,aáguaescorrendodeambos.Eleseajoelhounaareia, colocando-a o mais gentilmente possível sobre a pilha de roupasamassadas. Ela tentou se ajeitar por um instante e então desistiu, deitando epuxando-oparasi,beijando-ofuriosamenteatéelegemeresussurrar:

—Clary,nãoconsigo...vocêprecisamefalar...nãoconsigopensar...Ela passou asmãos nos cabelos dele, afastando-os apenas o bastante para

conseguir olhar o rosto de Jace. Ele estava ruborizado, os olhos dilatados dedesejo, o cabelo começando a cachear à medida que secava, caindo sobre osolhos.Clarytomouosfiosgentilmenteentreosdedos.

—Tudobem—sussurroueladevolta.—Tudobem,nãoprecisamosparar.Euquero.—Elaobeijou,lentaeintensamente.—Euquerosevocêquiser.

—Seeuquiser?—Houveumanotadeferocidadeemseurisobaixinho.—Nãodáparanotar?—Eentãoeleaestavabeijandonovamente,sugandoolábioinferior,beijando-anopescoçoenaclavículaenquantoelapassavaasmãosportodo o corpo dele, livre por saber que podia tocá-lo o quanto quisesse, comoquisesse.

Clarysentiacomoseoestivessedesenhando,asmãosmapeandoocorpo,acurvatura das costas, a barriga lisa, os entalhes dos quadris, osmúsculos nosbraços. Era como se, tal como uma pintura, ele estivesse ganhando vida sob

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suasmãos.Quando asmãosdeledeslizaram sobo sutiã, ela ofegou coma sensação e,

quando ele congelou, a dúvida no olhar, ela fez que sim com a cabeça.Continue. Eleparava a todo instante; parou antesde tirar cadapeçade roupadeles,perguntandocomolharesepalavrassedeveriacontinuar,eemtodasasvezeselaassentiraedisseraSim,continue,sim .Equando nalmentenãohavianadaalémdepeleentreeles,asmãosdeClarypararam,eelapensouquenãohavianenhumaformadeestarmaisíntimadeoutrapessoadoqueesta,quedarmaisumpassoseriacomoabrirseupeitoeexporocoração.

Clary sentiu os músculos de Jace exionando quando ele se esticou parapegaralgumacoisaatrásdela, eentãoouviuo farfalhardepapel-alumínio.Derepente tudo pareceu muito real; ela sentiu uma onda súbita de tensão.Realmenteestavaacontecendo.

Jaceparou.Amãolivreacariciavaoscabelosdela,oscotovelosenterradosnaareia, um de cada lado de Clary, aliviando o próprio peso de cima dela. Jaceestava totalmente tenso e trêmulo, as pupilas dilatadas, as íris erampequenoscírculosdourados.

—Algumproblema?Ao ouvir a insegurança na voz dele... ela achou que talvez seu coração

estivessedefatopartindo,quebrandoempedaços.—Não—sussurrou,eopuxouparabaixonovamente.Ambosestavamcom

gostodesal.—Mebeije—pediu,eeleofez,beijosquenteselentosqueforamacelerando juntamente ao coração de Jace, juntamente aos movimentos doscorpos.

Cada beijo era diferente, cada ummais intenso que o outro, como faíscasnuma fogueira crescente: beijos breves e suaves, que diziam que ele a amava;beijos longos e lentos, repletos de idolatria, que diziam que ele con ava nela;beijos leves ebrincalhões,quediziamqueele ainda tinhaesperança;beijosdeadoraçãoquediziamqueeletinhanelaumaféquenãotinhaemmaisninguém.Claryseperdeunosbeijos,nalinguagemdeles,nodiscursomudoentreosdois.

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AsmãosdeJaceestavamtremendo,maspercorriamocorpodeClaryrápidaehabilidosamente, toques leves que a enlouqueceram até ela se contorcer deencontroaele,incentivando-ocomoapelosilenciosodosdedos,lábiosemãos.

E mesmo naquele último instante, quando vacilou, ela o estimulou acontinuar, se enroscando nele, impedindo-o de se afastar. Clarymantinha osolhosbemabertosenquantoJaceestremecia,orostonopescoçodela,repetindoseu nome sem parar, e, quando ela nalmente fechou os olhos, teve aimpressãodeveracavernaarderemdouradoebranco,envolvendoosdoisemfogocelestial,acoisamaislindaquejátinhavisto.

Simon cou vagamente consciente deClary e Jace se levantando e saindo dacaverna,sussurrandoumparaooutroenquantocaminhavam.Nãosãotãosutisquanto pensam , pensou, meio entretido, mas também condenou um pouco,considerandooqueteriamqueencararnodiaseguinte.

—Simon.—Malfoiumsussurro,masSimonseapoiounocotoveloeolhoupara Isabelle. Ela se deitou de costas para olhar para ele. Os olhos estavamgrandeseescuros,asbochechasruborizadas,opeitoapertadodeansiedade.

—Tudobem?—perguntouele.—Estáfebril?Elabalançouacabeçaesaiuumpoucodocasulodecobertas.—Sóumpoucoquente.Quemmeenroloucomoumamúmia?—Alec— respondeuSimon.—Querodizer, talvez... vocêdeva continuar

enrolada.— Pre ro não car — respondeu Isabelle, abraçando-o pelos ombros e

puxando-oparaperto.—Nãopossoaquecê-la.Nãotenhocalorhumano.—AvozdeSimonsoou

pequena.Elaaconchegouacabeçanoombrodele.— Acho que já estabelecemos de muitas maneiras que eu sou quente o

suficientepranósdois.Semconseguirseconter,Simonesticouobraçoparaacariciarascostasdela.

Isabelle tinha tiradoouniformedecombateeestava sócomacamisa térmica

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preta, o material espesso e macio sob os dedos dele. Era substancial e real,humana e respirava, e ele agradeceu silenciosamente ao Deus cujo nome eleagorapodiapronunciarporelaestarbem.

—Temmaisalguémaqui?—JaceeClaryescaparamsorrateiramente,eAlecassumiuoprimeiroturno

devigilância—disseSimon.—Estamosasós.Digo,nãoasós, a sós,digo,eunão faria...—Simonengasgouquando ela roloupara cimadele, prendendo-oaochão.Isabellecolocouobraçodelicadamentesobreopeitodele.—Eutalveznãofariaisto—avisouele.—Nãoquevocêdevesseparar.

—Vocêsalvouminhavida—falouela.— Eu não... — Ele parou quando ela semicerrou os olhos. — Sou um

salvadorcorajosoeheroico?—arriscou.—A-hã.—Elaroçouoqueixonodele.— Nada de coisas de LordeMontgomery— alertou ele. — Qualquer um

podeaparecer.—Quetalbeijosnormais?— Tudo bem — respondeu, e Isabelle o beijou imediatamente, os lábios

quase insuportavelmente macios. Simon en ou as mãos por baixo da camisadela,acariciandoaespinha,delineandoosombros.Quandoelasedesvencilhou,estava com os lábios vermelhos e ele notou o sangue pulsando na gargantadela...OsanguedeIsabelle,doceesalgado,eapesardenãoestarcomfome,elequeria...

—Podememorder—sussurrouela.—Não.—Simonse contorceupara trás levemente.—Não... vocêperdeu

muito sangue.Nãoposso.—Davapara sentir opeitodele se enchendode ardesnecessário.—Você estava dormindo quando conversamos a respeito,masnão podemos car aqui. Clary colocou símbolos de feitiço nas entradas, masnãovãodurarmuito,eestamos candosemcomida.Aatmosferaestádeixandotodomundoenfraquecidoedoente.ESebastianvainosencontrar.Temosqueir até ele, amanhã, noGard.— Ele passou os dedos pelos cabelosmacios deIsabelle.—Eissosignificaquevocêprecisadetodaasuaforça.

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Elacontraiuoslábios,osolhosalvejando-o.—QuandoviemosdaCortedasFadasparaestemundo,oquevocêviu?Ele a tocou levementeno rosto, nãoquerendomentir,mas a verdade—a

verdadeeraduraedesconfortável.—Iz,nãoprecisamos...— Eu vi Max — disse ela. — Mas também vi você. Era meu namorado.

Morávamos juntos, e toda minha família aceitava você. Posso até tentar meconvencer de que não quero que você seja parte da minha vida, mas meucoraçãosabequenãoéverdade—falou.—Vocêentrounaminhavida,SimonLewis, e não sei como, nem por quê, e nemmesmo quando aconteceu, e eumeioqueodeioisso,masnãoconsigomudar,eéisso.

Eleemitiuumpequenoruídoengasgado.—Isabelle...—Agorameconteoqueviu—falou,eseusolhosbrilharamcomomica.Simoncolocouasmãoscontraochãodepedradacaverna.—Eume vi famoso, um astro do rock— declarou lentamente.— Eu era

rico, minha família estava junto, e eu estava com Clary. Ela era minhanamorada. — Simon sentiu Isabelle car tensa em cima dele, a sentiucomeçandoarolarparalonge,easeguroupelosbraços.—Isabelle,ouça.Ouça.Elaeraminhanamorada,e,quandoveioatémimparadizerquemeamava,eufalei“Eutambémteamo,Isabelle”.

Elaoencarou.— Isabelle — repetiu ele. — Quando falei seu nome, despertei da visão.

Porqueeusabiaqueavisãoestavaerrada.Nãoeraaquiloqueeuqueria.— Porque você só diz queme ama quando está bêbado ou sonhando?—

perguntouela.—Meutimingéhorroroso—explicouSimon.—Masnãosigni caquenão

seja verdade. Existem coisas que queremos, por baixo do que sabemos, porbaixoatémesmodoquesentimos.Existemcoisasquenossasalmasdesejam,eaminhadesejavocê.

ElesentiuIsabelleexalar.

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—Diga—pediuela.—Digaagoraqueestásóbrio.—Euteamo—falouSimon.—Nãoqueroquevocêdigaomesmo,anão

serquesejaverdade,maseuteamo.Elaseinclinouemcimadeleetocouaspontasdosdedosdelecomassuas.—Estoufalandosério.Eleseapoiounoscotovelosenquantoelaseinclinavaparabaixo,eoslábios

se encontraram. Eles se beijaram, longa, suave, doce e gentilmente, e entãoIsabellerecuoucomdelicadeza,arespiraçãoofegante,eSimondisse:

—EntãoacabouderolarumaDR?Isabelledeudeombros.—Nãofaçoideiadoqueissosignifique.Simonescondeuofatodeterficadomuitosatisfeitocomadeclaraçãodela.— Somos namorados o cialmente? Existe algum ritual de Caçadores de

Sombras? Devo mudar meu status do Facebook de “em um relacionamentocomplicado”para“emumrelacionamentosério”?

Isabellefranziuonarizdeumjeitoadorável.—Humm,mudarstatusdoFacebook?Facebook…?Vocêtemumlivroque

tambéméumrosto?Simon riu, e Isabelle se inclinou para beijá-lo novamente. Desta vez ele

esticou os braços para puxá-la para si, e eles se enroscaram um no outro,envolvidos em cobertores, se beijando e sussurrando. Ele se perdeunoprazerdo sabordabocade Izzy,na curvadosquadris em suasmãos,napelemornadas costas. Esqueceu que estavam em um reino demoníaco, que iriam para abatalha no dia seguinte, que talvez nunca mais voltassem para casa: tudodesbotouesórestouIsabelle.

—PORQUEISTONÃOPARADEACONTECER?—Fez-seumbarulhode vidro se estilhaçando, e ambos sentaram para agrar Alec encarando-os.Tinha derrubado a garrafa de vinho que estava segurando, e pedacinhos devidrobrilhantesseespalharamportodoochãodacaverna.—PORQUENÃOPODEMIRPARAOUTROLUGARFAZERESTASCOISASHORRÍVEIS?AI,MEUSOLHOS.

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—Éumreinodemoníaco,Alec—disse Isabelle.—Nãoexisteoutro lugarparaagenteir.

— E você disse que eu deveria cuidar dela... — começou Simon, entãopercebeuquenãoseriaumalinhaprodutivadediálogo,daísecalou.

Alecsentoudooutroladodafogueiraeolhouparaeles.—EondeestãoJaceeClary?—Ah—respondeuSimondelicadamente.—Quempodesaber...—Heterossexuais—declarouAlec.—Porquenãoconseguemsecontrolar?—Éummistério—concordouSimon,esedeitounovamenteparadormir.

JiaPenhallowestavasentadaàmesadeseuescritório.Pareciatãocasualqueelanão conseguia evitar imaginar se seria condenável: a Consulesa sentada demaneirairreverenteàantigamesadepoder.Maselaestavasozinhanorecintoecansadaalémdetodasasmedidasdecansaço.

SeguravaobilhetequetinharecebidodeNovaYork:umamensagemdefogode um feiticeiro, poderosa o su ciente para ultrapassar as barreiras quecercavamacidade.Reconheceraa letra comosendodeCatarinaLoss,masaspalavrasnãoeramdeCatarina.

ConsulesaPenhallow,Quem lhe escreve é Maia Roberts, líder temporária do bando de

licantropesdeNovaYork.Entendemosquevocêsestão fazendoopossívelpara trazerLuke eosoutrosprisioneirosdevolta.Agradecemospor isso.Como sinal de nossa boa-fé, gostaria de lhe transmitir um recado.SebastianeseussoldadosvãoatacarAlicanteamanhãànoite.Porfavor,faça o possível para se preparar. Gostaria de estar lá, lutando junto avocês, mas sei que não é possível. Às vezes só resta alertar, aguardar etorcer.Lembre-sedequeaClaveeoConselho—CaçadoresdeSombraseintegrantesdoSubmundojuntos—sãoaluzdomundo.Comesperança,

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MaiaRoberts

Comesperança.Jiadobrouamensagemnovamenteeguardouopapelnobolso.Pensouna cidade lá fora, sobo céunoturno, oprateadodesbotadodas torresdemoníacas que em breve ganhariam o tom vermelho da guerra. Pensou nomarido ena lha.Pensounas caixas e caixasquehavia recebidohápoucodeeresaGray, se elevandoda terranaPraçadoAnjo, cadaqual selada comosímboloespiraldoLabirinto.Sentiuumaagitaçãonocoração—umpoucodemedo, mas também algum alívio, nalmente a hora estava chegando,nalmente teriam sua chance. Ela sabia que os Caçadores de Sombras de

Alicante lutariam até o último homem: com determinação, coragem,obstinação,vingançaeglória.

Comesperança.

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21AsChavesdaMorte

edoInferno

—MeuDeus,minhacabeça—disseAlec,enquantoeleeJaceseajoelhavamaoladodeumcumedepedraquecoroavaumacolinacinzaecobertaporseixos.Apedralhesofereciaabrigo,e,alémdela,utilizandosímbolosdeVisãodeLongoAlcance, eles conseguiam enxergar a fortaleza semidestruída. Ao redor,CaçadoresdeSombrasmalignosseacumulavamcomoformigas.

EracomoumespelhodeformadodaColinadeGarddeAlicante.AestruturanotopolembravaoGardqueconheciam,mascomummuroenormeaoredor,afortalezafechadacomoumjardimemumcastelo.

—Talvezvocênãodevesseterbebidotantoontemànoite—censurouJace,inclinando-separaafrenteecerrandoosolhos.

Ao redor do muro, os Crepusculares se dispunham em círculosconcêntricos, um grupo fechado diante dos portões que davam para dentro.Haviagruposmenoresdelesempontosestratégicosdacolina.AlecnotavaJacecomputando os números do inimigo, considerando e descartando estratégiasmentalmente.

—Talvezvocêdevessetentarparecerumpoucomenospresunçosopeloquevocêfezontem—disseAlec.

Jacequasecaiudapedra.— Não estou sendo presunçoso. Bem — corrigiu-se —, não mais que o

normal.—Porfavor—falouAlec,pegandoaestela.—Dáparalerseurostocomo

umlivromuitoabertoemuitopornográfico.Quemderanãodesse.

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—Estaésuamaneiradememandarfecharacara?—Lembraquandovocêzomboudemimporeu terdadoumaescapadinha

comMagnusemeperguntouseeutinhabatidoopescoço?—perguntouAlec,posicionando a ponta da estela no antebraço e começando a desenhar umiratze.—Esteémeutroco.

JaceriuepegouaesteladeAlec.—Dê isto aqui—disse, e nalizou oiratze para o amigo, com seu oreio

desordenadohabitual.Alec sentiu as pontadasdadorde cabeça começando adiminuir,eJacevoltouaatençãoparaacolina.

— Sabe o que é interessante? — comentou ele. — Vi alguns demôniosvoadores,masestãobemlongedaGuardaMaligna...

Alecergueuumasobrancelha.—GuardaMaligna?— Tem um nome melhor? — Jace deu de ombros. — En m, estão

mantendo distância daGuardaMaligna e da colina. Servem a Sebastian,masparecemrespeitaroespaçodele.

— Bem, não podem estar muito longe — disse Alec. — Chegaram bemdepressaaoSalãodosAcordosquandovocêacionouoalarme.

—Elespoderiamestardentrodafortaleza—ponderouJace,verbalizandooqueambosestavampensando.

—Queriaquevocêtivesseconseguidopegaroskeptron—falouAlec,avozresignada. — Tenho a sensação de que ele poderia destruir muitos dosdemônios.Seaindafuncionasse,claro,apóstantosanos.—Jaceostentavaumaexpressão esquisita. Alec se apressou em acrescentar: — Não que alguémpudesseterpegado.Vocêtentou...

—Nãotenhotantacerteza—respondeuJace,aexpressãoaomesmotempocalculistaedistante.—Vamos.Vamosvoltaratéondeosoutrosestão.

Não houve tempo para resposta; Jace já estava recuando. Alec o seguiu,engatinhandopara trás, saindodoalcancevisualdaGuardaMaligna.Umavezquepercorreramumadistânciasegura,elesselevantaramedescerammeioquedeslizandopelodeclivedeseixos,indoparaondeosoutrosaguardavam.Simon

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estava com Izzy, e Clary segurava seu caderno e uma caneta, desenhandosímbolos.Ajulgarpelamaneiracomobalançavaacabeça,arrancandopáginaseamassando-as,elanãoestavaindotãobemquantogostaria.

—Estásujandoochão?—perguntouJace,enquantoeleeAleccorriamparaficaraoladodosoutrostrês.

Clary lançou a ele o que provavelmente era para ser umolhar fulminante,massaiubemmeloso. Jaceretribuiucomoutroolhar tãomelosoquanto.Aleccou imaginandooque aconteceria se ele zesseumsacrifícioparaosdeuses

dodemôniomalignodestemundoemtrocadenão carselembrandootempotodoqueestavasolteiro.Enãoapenassolteiro.NãosentiasaudadedeMagnusapenas; temia imensamente por ele, com um pavor doloroso profundo econstantequenuncaoabandonavaporcompleto.

— Jace, este mundo foi incinerado e reduzido a cinzas, todas as criaturasvivas estãomortas—disseClary.—Tenho quase certeza de que não sobrouninguémparareciclar.

—Então,oquevocêsviram?—perguntouIsabelle.Elanãoestavanemumpouco satisfeita por ter sido deixada para trás enquantoAlec e Jace faziam oreconhecimento da área,mas Alec insistira que ela precisava poupar energia.Ela vinha dando ouvidos a eles commais frequência, pensou Alec, e Izzy sóobedeciaàspessoascujasopiniõesrespeitava.Issoerabom.

—Aqui.—Jacepegouaestelanobolsoe seajoelhou, tirandoocasacodaroupadecombate.Osmúsculosdesuascostassemovimentavamsobacamisaenquantoeleusavaapontaa adadaestelaparadesenharnapoeiraamarelada.— Aqui está a Guarda Maligna. Tem uma entrada, pelo portão do muroexterno.Estáfechada,masumsímbolodeAberturadeveresolver.Aquestãoécomochegaraoportão.Ospontosmaisprotegidosestãoaqui,aquieaqui.—Aestelafaziarabiscosrápidosnaterra.—Entãotemosquedaravoltae irpelosfundos.Seageogra adaquiforcomoadeAlicante,eparecequeé,existeumatrilhanaturalpelapartede trásda colina.Depoisquenos aproximarmos,nosdividimos aqui e aqui. — A estela criava curvas e estampas enquanto Jace

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desenhava, uma mancha de suor se formando entre os ombros dele. — Etentamos arrebanhar demônios ou Crepusculares para o centro. — Ele sesentou,mordendoolábio,preocupado.—Consigoabaterváriosdeles,masvouprecisar de ajuda paramantê-los contidos enquanto faço isso. Entenderam oplano?

Todos o encararam durante alguns instantes silenciosos. Então Simonapontou:

—Oqueéessacoisatrêmulaaqui?—perguntouele.—Éumaárvore?—Estessãoosportões—respondeuJace.—Ahh—disseIsabelle, irônica.—Entãooquesãoaspartescurvas?Tem

umfosso?—Sãolinhasdetrajetória...Sinceramente,eusouaúnicapessoaquejáviu

ummapadeestratégia?—perguntouJace,jogandoaestelanochãoepassandoamãopelocabelolouro.—Entenderamalgumacoisadoqueacabeidefalar?

—Não—respondeuClary.—Suaestratégiaprovavelmenteéincrível,massuacapacidadededesenharépéssima;todososCrepuscularesparecemárvores,eafortalezapareceumsapo.Temquehaverumjeitomelhordeexplicar.

Jaceagachouecruzouosbraços.—Bem,euadorariaouvir.— Tenho uma ideia— pronunciou-se Simon.— Lembram de quando eu

estavafalandosobreoRPGDungeonsandDragons?—Vividamente—respondeuJace.—Foiumaépocasombria.Simonoignorou.— Todos os Caçadores de Sombras malignos se vestem de vermelho —

falou.—Enãosãomuitointeligentesoudotadosdelivre-arbítrio.Asvontadesdelesparecemsubmetidas,pelomenosemparte,àsdeSebastian.Certo?

—Certo—respondeuIsabelle,eolhourepreensivamenteparaJace.— EmDungeons and Dragons , meu primeiro passo quando estou

enfrentandoumexércitoassiméatrairumgrupo,digamos,unscinco,epegarasroupasdeles.

—Issoéparaelesteremquevoltarnusparaafortalezaeavergonhaterum

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efeitomoralnegativo?—perguntouJace.—Porquemeparececomplicado.—Tenhocertezadequeelequerdizerquedevemospegarasroupasevesti-

las paranosdisfarçarmos— respondeuClary.—Parapodermospassar pelosportões semsermosnotados. SeosoutrosCrepuscularesnão estiveremmuitoatentos, podem não perceber.— Jace olhou para ela, surpreso. Clary deu deombros.—Aconteceemtodososfilmes,tipo,detodosostempos.

—Nósnãoassistimosafilmes—explicouAlec.— Acho que a questão é seSebastian assiste— falou Isabelle.— Falando

nisso,quandooencontrarmosaestratégiavaiser“confieemmim”?—Aindaé“confieemmim”—respondeuJace.—Ah, ótimo— disse Isabelle.— Por um segundo quei preocupada que

pudesse haver um plano, de fato, com etapas que pudéssemos seguir. Vocêssabem,algumacoisasquenostranquilizasse.

—Existeumplano.—Jaceguardouaestelanocintoese levantouemummovimento uido.— A ideia de Simon para entrarmos na fortaleza. Vamosfazer.

Simonoencarou.—Sério?Jacepegouocasaco.—Éumaboaideia.—Maséumaideiaminha—disseSimon.—Efoiboa,entãovamosexecutar.Parabéns.Vamossubiracolinadojeito

que tracei,depoisvamos seguir seuplanoquandochegarmospertodo topo.Equandochegarmos...—ElesevoltouparaClary.—Aquelacoisaquevocê feznaCorteSeelie.Ojeitocomopulouedesenhouosímbolonaparede;conseguefazerdenovo?

—Nãovejoporquenão—respondeuClary.—Porquê?Jacecomeçouasorrir.

Emmaestavasentadanacamanoquartinhodosótão,cercadadepapéis.Finalmente os tirara da pasta que havia surrupiado do escritório da

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Consulesa.Estavamespalhadossobreocobertor,iluminadospelaluzdosolqueentravapelapequena janela, embora elamal conseguisse reunir coragemparatocá-los.

Eramfotosgranuladas,tiradassobumcéuclarodeLosAngeles,doscorposde seus pais. Agora dava para entender porque os corpos não haviam sidolevadosparaIdris.Estavamdespidos,aspelesdacordascinzasdeumincêndio,excetonospontosondeestavammarcadasporrabiscospretosfeios,nãocomoMarcas, e sim horrendos. A areia em volta deles parecia molhada, como setivesse chovido; estavam longe da linha da rebentação. Emma lutava contra oimpulso de vomitar enquanto tentava se forçar a absorver as informações:quando os corpos foram encontrados, quando foram identi cados e como sedes zeram empedacinhos quando osCaçadores de Sombras tentaram erguê-los...

—Emma.—EraHelen,naentrada.Aluzqueentornavapelajaneladeixavaos cabelosdelaprateados, como sempre acontecia comMark.Ela estavamaisparecida com ele que nunca; inclusive, o estresse a deixara mais magra,destacandomais claramente as curvas delicadas dasmaçãs do rosto, os topospontiagudosdasorelhas.—Ondeconseguiuisso?

Emmaempinouoqueixodesafiadoramente.—PegueidoescritóriodaConsulesa.Helensentou-seàbeiradacama.—Emma,vocêprecisadevolverisso.Emmaapontouumdedoparaospapéis.—Nãovãoinvestigarparadescobriroqueaconteceucommeuspais—disse.

—EstãofalandoquefoisóumataquealeatóriodosCrepusculares,masnãofoi.Seiquenão.

—Emma,osCrepusculareseseusaliadosnãomataramapenasosCaçadoresdeSombrasdoInstituto.VarreramoConclavedeLosAngeles.Fazsentidoquetenhamidoatrásdosseuspaistambém.

—PorquenãoosTransformariam?—questionouEmma.—Precisavamdetodososguerreirosquepudessemconseguir.Quandovocêdizquevarreramo

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Conclave,nãodeixaramcorpos.Transformaramtodos.—Todosexcetoosjovenseosmuitovelhos.—Bem,meuspaisnãosãoumacoisanemoutra.—PreferiaquetivessemsidoTransformados?—murmurouHelen,eEmma

soubequeelaestavapensandonoprópriopai.—Não—respondeu.—Masvocêrealmenteestádizendoquenãoimporta

quemosmatou?Queeunãodeverianemquerersaberporquê?—Porqueoquê?—Tiberiusestavaàporta,oscachosnegrosdesgrenhados

caindo nos olhos. Parecia mais jovem que seus 10 anos, uma impressãoalimentada pelo fato de sua abelha de pelúcia estar pendurada em uma dasmãos.Orostodelicadoestavamanchadodecansaço.—OndeestáJulian?

— Na cozinha pegando comida — respondeu Helen. — Você está comfome?

—Eleestácomraivademim?—perguntouTy,olhandoparaEmma.—Não,mas sabequeele sechateiaquandovocêgritacomele,ouquando

você semachuca— respondeuEmma cautelosamente. Era difícil saber o quepodia assustar Ty ou fazê-lo ter um ataque. Sua experiência dizia que eramelhor sempre contar a verdade a ele, sem censura. As mentiras quenormalmente se contava a crianças, do tipo “essa vacina não vai doer nada”,eramdesastrosasquandoditasaTy.

NodiaanteriorJuliantinhapassadoumbomtempocatandovidroquebradodospésdoirmãoeexplicadocombastantevigorqueseelevoltasseacaminharsobre vidro quebrado, o fato teria de ser reportado aos adultos e ele teria queenfrentar qualquer castigo que recebesse. Ty respondeu lhe dando um chute,deixandoumapegadasangrentanacamisadeJulian.

— Jules quer que você que bem— dizia Emma agora.— É só o que elequer.

HelenesticouosbraçosparaTy…Emmanãoaculpou.Typareciapequenoeencolhido,eamaneiracomoseagarravaàabelhaapreocupava.Elatambémquereria abraçá-lo. Mas ele não gostava de ser tocado por ninguém além deLivvy.Esquivou-sedameia-irmãefoiatéajanela.Apósuminstante,Emmase

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juntouaele,comcuidadoparalhedarespaço.—Sebastianconsegueentraresairdacidade—disseTy.—Sim,mas ele é um só, e não está tão interessadona gente.Alémdisso,

achoqueaClavetemumplanoparanosmanteremsegurança.—Achoomesmo—murmurouTy,olhandopela janela,edepoisapontou

paraalgumacoisa.—Sónãoseisevaifuncionar.Emmalevouumsegundoparaperceberoqueeleindicava.Asruasestavam

lotadas,enãodepedestres.EramNephilimemuniformesdaGuarda,ealgunsem uniforme de combate, indo e voltando pelas ruas, carregando martelos,pregosecaixasdeobjetosque zeramEmmaencararcomsurpresa—tesouras,ferraduras,facas,adagasediversasarmas,atémesmocaixascomoquepareciaserterra.Umhomemtraziadiversossacosdepanoquediziamsal.

Todasascaixasesacostinhamumsímbolomarcado:umespiral.EmmajáotinhavistoemseuCódex:osigilodoLabirintoEspiraldosfeiticeiros.

—Ferrofrio—disseTy,pensativo.—Forjado,enãoaquecidoemoldado.Saleterradecemitério.

Helen estava comumaexpressão, aqueleolharque adultos tinhamquandosabiamdealgumacoisa,masnãoqueriamcontaroquê.EmmaolhouparaTy,quietoe recomposto,osolhoscinzentos sériosmirandoas ruas láde fora.Aolado dele estava Helen, que havia se levantado da cama, com a expressãoansiosa.

— Encomendaram munição mágica — observou Ty. — Do LabirintoEspiral.Outalveztenhasidoideiadosfeiticeiros.Édifícilsaber.

Emmaolhoupela janela,depoisparaTy,queolhouparaelaatravésdeseuslongoscílios.

—Oqueissoquerdizer?—perguntouela.Tyemitiuseurarosorrisoinexperiente.—SignificaqueoqueMarkdissenobilheteeraverdade—respondeu.

Clary não se lembrava de ter visto tantasMarcas em si, ou de já ter visto os

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Lightwoodcobertosportantossímbolosmágicoscomoagora.Elamesmatinhafeito todos, doando-se ao máximo neles — todo seu desejo de que todosficassememsegurança,todavontadedeencontrarsuamãeeLuke.

OsbraçosdeJacepareciamummapa:símbolosseespalhavampelaclavículae pelo peito, pelas costas dasmãos.A pele deClary lhe pareceu estranha aospróprios olhos. Lembrou-se de uma vez ter visto um menino que tinha aelaboradamusculaturahumanatatuadanapele,edeterpensadoqueeracomose ele tivesse cado transparente. Agora ela estava um pouco assim também,pensou enquanto tava os companheiros que subiam a colina em direção àGuardaMaligna: omapa da coragem e das esperanças, dos sonhos e desejos,marcadosclaramenteemseuscorpos.CaçadoresdeSombrasnemsempreeramaspessoasmaisacessíveis,porémsuaspeleseramhonestas.

Claryhavia se cobertode símbolosde cura,masnão eramsu cientesparaimpedirqueseuspulmõesdoessemcomapoeiraconstante.Lembrou-sedoqueJace havia falado sobre eles dois sofrendo mais que os outros em função daconcentraçãomais intensade sanguede anjo.Elaparoupara tossir e virou-sede costas, cuspindo uma secreção preta. Passou rapidamente amão na boca,antesqueJacepudessevirarever.

As capacidades artísticas de Jace para desenho podiam ser fracas, mas aestratégia era perfeita. Estavam subindo em uma espécie de formação emziguezague,correndodeummontedepedraescurecidaparaoutro.Comonãohaviamaisfolhagem,aspedraseramasúnicascoberturasqueacolinaoferecia.A colinabasicamentenão tinha árvores, só alguns cotocosde troncosmortosaqui e ali. Encontraram apenas um Crepuscular, rapidamente despachado, osangue ensopando a terra cheia de cinzas. Clary lembrou-se da trilha para aGuardaemAlicante,verdeebela,eolhoucomódioparaadestruiçãoaoredor.

Oarestavapesadoequente,comoseosolalaranjadoospressionasse.Claryse juntou aos outros atrás de uma pilha alta de pedras. Tinham enchido asgarrafasnolagonacavernanaquelamanhã,eAlecestavapartilhandoáguacomoscompanheiros,orostoausteromanchadodefuligem.

— Esta é a última— falou, e entregou a garrafa a Isabelle. Ela bebeu um

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golinhoepassouparaSimon,quebalançouacabeça,elenãoprecisavadeágua,eentãoarepassouparaClary.

Jace olhou para Clary. Ela conseguia enxergar-se re etida nos olhos dele,parecendopequena, pálida e suja. Ficou imaginando se parecia diferente a eledepois da noite anterior. Ela quase esperara que ele lhe parecesse diferentequandoacordaramnamanhã seguintepertodos restos já friosda fogueira, asmãosdelenasdela.MaseraomesmoJace,oJacequeelasempreamara.Eeleolhavapara ela como sempre, como se ela fosseumpequenomilagre,do tipoquevocêguardapertodocoração.

ClarytomouumgolecaprichadoepassouagarrafaparaJace,queinclinouacabeçaparatráseengoliu.Comumbrevefascínio,elaobservouosmúsculosnagargantadelesemovimentando,eemseguidadesviouoolharparanãocorar—tudobem,talvezalgumascoisastivessemmudado,masaquelerealmentenãoeraomomentoparapensarnesseassunto.

— Pronto— disse Jace, e jogou fora a garrafa agora vazia. Todos caramolhando enquanto ela rolava pelas pedras.Acabou a água . — Uma coisa amenosparacarregar—acrescentou,tentandosoarleve,masavozsaiutãosecaquantoapoeiraqueoscercava.

Seuslábiosestavamrachadosesangrandolevementeapesardosiratzes.Alectinha olheiras e um tique nervoso na mão esquerda. Os olhos de Isabelleestavam vermelhos por causa da poeira, e ela piscava e os esfregava quandoachava que ninguém estava olhando. Todos estavam péssimos, pensou Clary,sendoSimonapossívelexceção:elebasicamentepareciaomesmo.

Simon encontrava-se perto do monte de pedras, os dedos apoiados nasaliênciadeumarocha.

—Sãotúmulos—falouelesubitamente.Jacelevantouoolhar.—Oquê?—Essas pilhas de pedras. São túmulos.Antigos.As pessoas eram abatidas

emcombate,easenterravamcobrindooscorposcompedras.—CaçadoresdeSombras—disseAlec.—QuemmaismorrerianaColina

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deGard?Jace tocouaspedrascomamãocobertaporuma luvadecouroe franziuo

rosto.—Nóscremamosnossosmortos.—Talveznãonestemundo—rebateuIsabelle.—Ascoisassãodiferentes.

Talveznãotivessemtempo.Talvezfosseoúltimorecur...— Parem — disse Simon. Estava com um olhar congelado e de intensa

concentração.—Temalguémvindoaí.Alguémhumano.—Comosabequeéhumano?—Clarybaixouavoz.— Sangue — respondeu sucintamente. — Sangue de demônio tem um

cheirodiferente.Sãopessoas:Nephilim,masnão.Jace fez um gesto breve pedindo silêncio, e todos caram quietos. Ele

pressionouascostascontraomontedepedraseespioupelolado.Clarynotouamandíbuladeleenrijecendo.

—Crepusculares—falou,comavozbaixa.—Cincodeles.—O número perfeito— disse Alec, com um sorriso surpreendentemente

cruel.OarcojáestavanamãodeleantesmesmoqueClarypudesseenxergaromovimento,eeleseafastouparaolado,saindodoabrigodaspedras,edeixouaflechavoar.

Clary percebeu a expressão surpresa de Jace— ele não esperava queAlecfosse fazer o primeiromovimento—, então em seguida ele agarrou uma daspedrasdomonteeselançouparacima.Isabellepulouatrásdelecomoumgato,eSimonseguiu,velozeseguro,asmãosvazias.Eracomoseaquelemundofossefeitoparaosquejáestavammortos,pensouClary,entãoouviuumgritolongogorgolejado,oqualfoiencurtadoabruptamente.

AlcançouHeosphoros,pensoumelhore,emvezdisso,pegouumaadagadocinto de armas antes de correr para o lado do monte de pedras. Havia umainclinação atrás, a Guarda Maligna erguendo-se sombria e extenuada acimadeles.QuatroCaçadores de Sombras vestidos de vermelho olhavam em volta,em choque e surpresa.Um deles, umamulher loura, estava caída no chão, ocorpoapontandoparaasubida,umaflechaatravessadanagarganta.

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Issoexplicaobarulhogorgolejado ,pensouClary,umpoucotontaenquantoAlec preparava o arco novamente e soltava mais uma echa. Um homemmorenoebarrigudocambaleoupara trás,dandoumgrito, a echa en adanaperna; Isabelle chegou nele em um instante, seu chicote cortando-o nagarganta.Enquantoosujeitocaía, Jacesaltoueterminoude levarocorpodeleao chão, usando a força da queda para se lançar para a frente. Suas lâminasbrilharamcomummovimentode tesoura, arrancandoa cabeçadeumsujeitocarecacujaroupavermelhaestavamarcadapormanchasdesangueseco.Maissangue jorrou, ensopando o uniforme escarlate com outara camada devermelho enquanto o corpo decapitado ia ao chão. Ouviu-se um grito, e amulherque estava atrásdele ergueuuma lâmina curvapara atacar Jace;Claryarremessouaadagaparaa frente.Aarmaseenterrounatestadamulher,quecaiusilenciosamentenochão,semdarmaisumgrito.

O último dos Crepusculares começou a fugir, tropeçando colina acima.Simon passou por Clary correndo, um movimento rápido demais para sernotado, epulou comoumgato.OCrepuscular caiu comumarfardepavor, eClaryviuSimonsaltandoemcimadeleeatacandocomoumacobra.Fez-seumruídoparecidocompapelserasgando.

Todos desviaram os olhares. Após alguns longos segundos, Simon selevantou do corpo imóvel e desceu a colina em direção ao restante do grupo.Haviasanguenacamisa,nasmãosenorosto.Virouacabeçaparaolado,tossiuecuspiu,parecendoenjoado.

—Amargo—falou.—Osangue.TemgostoparecidocomodeSebastian.Isabelle pareceu nauseada, de um jeito que não tinha cado nem quando

cortaraagargantadoCaçadordeSombrasmaligno.—Odeioele—disseeladerepente.—Sebastian.Oquefezcomelesépior

que assassinato. Nem são mais pessoas. Quando morrerem, não poderão serenterrados na Cidade do Silêncio. E ninguém vai car de luto por eles. Jácaram.SeeuamassealguémeessealguémfosseTransformadoassim... caria

felizsemorresse.Ela estava arfando;ninguémdissenada.Finalmente Jaceolhouparao céu,

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olhosdouradosbrilhandonaquelerostosujodepoeira.—Émelhor irmos, o sol já está se pondo, e, além disso, alguém pode ter

ouvidonossamovimentação.Eles tiraram as roupas dos corpos, silenciosa e rapidamente. Havia algo

nauseante na tarefa, algo que não tinha soado tão ruim quando Simondescrevera a estratégia, mas que agora parecia terrível. Ela já tinha matado;demônioseRenegados; teriamatadoSebastianse tivesse sidocapazde fazê-losemferir Jace.MashaviaalgocruelecarniceironoatodedespiroscorposdeCaçadores de Sombras,mesmo daquelesMarcados com símbolos demorte eInferno.ClarynãoconseguiuevitarolharparaorostodeumdosCaçadoresdeSombrasmortos,umhomemdecabeloscastanhos,eimaginarsepoderiaseropaideJulian.

Vestiu o casaco e a calça do uniforme da menor das mulheres, mascontinuaram grandes demais. Um rápido trabalho com sua faca encurtou asmangas e bainhas, e o cinto segurou as calças. Não houvemuito o que Alecpudesse fazer: acabou pegando omaior casaco, que por sua vez o engolia.Asmangas de Simon carammuito curtas e apertadas; ele cortou a costura nosombros para se permitirmaismobilidade. Jace e Isabelle conseguiram roupasque cabiam, apesar de a de Isabelle estar manchada de sangue. Jace aindaconseguiuficarbonitocomovermelhoescuro,oqueeramuitoirritante.

Eles esconderam os corpos atrás domorro de pedras e voltaram a subir acolina.Jacetinharazão,osolestavasepondo,banhandooreinocomascoresde fogo e sangue. Ganharam ritmo à medida que foram se aproximando dagrandesilhuetadaGuardaMaligna.

De repente o aclive acabou e o solo couplano, e lá estavam eles, emumplatô em frente à fortaleza. Era como ver um negativo de fotogra asobrepondo-seaoutro.ClaryenxergavamentalmenteoGarddeseumundo,acolinacobertaporárvoreseverde,os jardinscercandoa torredemenagem,obrilho da pedra de luz enfeitiçada iluminando todo o local. O sol brilhandoduranteodia,easestrelasànoite.

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Ali o topo da colina era nu e varrido por um vento frio o bastante paraatravessar omaterial do casaco roubadodeClary.Ohorizonte era uma linhavermelha como uma garganta cortada. Tudo era banhado por aquela luzsangrenta,damultidãodeCrepuscularesquecirculavampeloplanaltoàGuardaMaligna em si. Agora que estavam próximos, eles podiam ver o muro quecercavaaáreaeosportõesrobustos.

— Émelhor você levantar o capuz— disse Jace por trás dela, puxando-osobreacabeçadeClary.—Seucabeloestáreconhecível.

— Para os Crepusculares? — perguntou Simon, que, para Clary, estavamuito estranho com uniforme vermelho. Elanunca tinha imaginado Simoncomuniformedecombate.

—ParaSebastian—respondeuJacesucintamente,epuxouoprópriocapuz.Tinham sacado as armas: o chicotede Isabelle brilhava à luz vermelha e o

arcodeAlecestavaempunho.JaceolhavaparaaGuardaMaligna.Claryquaseesperavaqueelefossedizeralgumacoisa,quefossefazerumdiscurso,marcaraocasião.Não fez.Elanotavaoânguloagudodasmaçãsdo rostode Jace sobocapuz,afirmezadamandíbula.Eleestavapronto.Todoselesestavam.

—Vamosatéosportões—disseele,eavançou.Clarysentiuofriotomarseucorpo—friodebatalha,mantendoaespinha

reta e a respiração constante. A terra ali era diferente, percebeu ela, quasedistraída. Ao contrário do restante da areia do mundo deserto, tinha sidoremexida pela passagem de pés. Um guerreiro trajando vermelho passou porela, um homem de pele morena, alto e musculoso. Não prestou a menoratenção a eles.Parecia caminhar emum ritmo, assimcomováriosdosoutrosCrepusculares, uma espécie de bando que seguia uma espécie de rota, de umlado a outro. Uma mulher caucasiana com cabelos grisalhos vinha algunscentímetrosatrásdele.Clary sentiu seusmúsculosenrijecerem—Amatis?—,porém quando a outra passou mais perto, cou claro que o rosto não erafamiliar.Clary tevea impressãode sentirosolhosdamulherneles, todavia, eficoualiviadaquandosumiramdevista.

AGuardaagoraseerguiadiantedeles,osportões imensose feitosdeferro.

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Eram marcados por uma estampa de mão empunhando uma arma — umskeptroncompontaesférica.Claramenteosportõestinhamsidosubmetidosaanos de profanação. As superfícies estavam lascadas e marcadas, manchadasaqui e ali com icor e algo perturbadoramente semelhante a sangue humanoseco.

Clary se adiantou para colocar a estela contra os portões, pronta, comumsímbolodeAberturajámentalizado—noentanto,osportõesseabriramaoseutoque.Elalançouumolharsurpresoaosoutros.Jacemordiaolábio;elaergueuuma sobrancelha interrogativa para ele, que apenas deu de ombros como sedissesse:Vamoscontinuar.Oquemaispodemosfazer?

Então prosseguiram. Após o portão havia uma ponte sobre um barrancoestreito.No fundodoabismo, a escuridão turvava,mais espessaquenévoaoufumaça. Isabelle foiaprimeiraaatravessar,comochicote,eAlec foioúltimoda la, comoarcoe a echaemriste.Enquantoatravessavamaponte,Claryarriscouumolharparabaixo,paraafenda,equasecaiudesusto—aescuridãotinhamembros,longosecurvos,comoaspatasdeumaaranha,ealgosimilaraolhosamarelosbrilhantes.

—Nãoolhe—disseJacebaixinho,eClarydesviouoolharparaochicotedeIsabelle,douradoebrilhandoàfrentedeles.Ochicoteiluminavaaescuridãodemodo que, quando chegaram às portas da frente da torre de menagem, Jaceconseguiuacharatrancacomfacilidade,eentãoabriuaporta.

Adentraramna escuridão.Todos se entreolharam,umabreveparalisia quenenhum deles conseguiu quebrar. Clary percebeu que estava encarando osoutros, tentando memorizá-los; os olhos castanhos de Simon, a curva daclavícula de Jace sob o casaco vermelho, o arco das sobrancelhas de Alec, acarrancapreocupadadeIsabelle.

Pare,disseelaasi.Estenãoéofim.Vocêvaivê-losnovamente.Olhoupara trás.Osportões cavamdepoisdaponte,escancarados,ealém

deles estavam os Crepusculares, parados. Clary tinha a sensação de que elestambém estavam observando, tudo parado como aquelemomento no qual seprendearespiração,queprecedeaqueda.

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Agora. Ela deu um passo adiante, para a escuridão; ouviu Jace falar seunome,muitobaixo,quaseumsussurro,eentãoelaatravessouaentrada,ehavialuz por todos os lados, cegando em seu surgimento repentino. Clary ouviu omurmúrio dos outros enquanto sentavam-se ao seu lado, e em seguida atorrentefriadearquandoaportasefechouatrásdeles.

Elaergueuoolhar.Todosestavamemumaenormeentrada,dotamanhodointeriordoSalãodosAcordos.Umaescadariaduplaimensaemespiralconduziaaoandardecima, serpenteandoerodando,duasescadasqueseentrelaçavam,mas jamais se encontravam.Ambas eram cercadas por corrimãos de pedra, eSebastianestavaapoiadoemumdoscorrimãospróximos,sorrindoparaeles.

De nitivamente,umsorrisocruel:cheiodedeleiteeexpectativa.Estavacomumaroupadecombatevermelha impecável, e seucabelobrilhavacomo ferro.Balançouacabeça.

—Clary,Clary—falou.—Realmenteacheiquevocêfossemaisespertaqueisto.

Clarypigarreou.Pareciacongestionadapelapoeiraebloqueadapelomedo.Apeleformigavacomoseelativesseengolidoadrenalina.

—Maisespertaqueoquê?—perguntou,equaseseencolheucomoecodaprópria voz, saltando das paredes lisas de pedra. Não havia tapeçarias, nempinturas,nadaparasuavizaraaspereza.

Embora ela não soubesse o que mais deveria esperar de um mundodemoníaco.Claroquenãohaviaarte.

—Estamosaqui—disseela.—Dentrodasuafortaleza.Somoscincoevocêéum.

—Ah,certo—zombouele.—Eudeveriaparecersurpreso?—Retorceuorostonumsorrisosarcásticode falsoespantoquefezasentranhasdeClarysecontraírem. — Quem iriaacreditar? — falou, debochado. — Digo, seignorarmos o fato de que obviamente descobri pela Rainha que vocês viriamparacá,masdesdequevocêschegaram,criaramumincêndioimenso,tentaramroubar um artefato que possui proteção demoníaca... digo, zeram de tudo,

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excetocolocarumaenorme echaluminosaapontandodiretamenteparaondeestavam — suspirou. — Eu sempre soube que a maioria de vocês eraimensamente burra. Até mesmo Jace, bem, você é bonito, mas não é muitointeligente,é?TalvezseValentimtivessetidomaisalgunsanoscomvocê...masnão, provavelmente nem assim. Os Herondale sempre foram mais notóriospelas belas mandíbulas do que pela inteligência. Sobre os Lightwood, quantomenostocarmosnoassunto,melhor.Geraçõesdeidiotas.MasClary...

—Vocêseesqueceudemim—disseSimon.SebastianarrastouoolharparaSimon,comoseelefosseumhorror.—Vocêrealmentenãoparadeaparecer, comoumaavedemauagouro—

disse.—Vampirinhotedioso.Eumateiovampiroquecriouvocê,sabia?Acheique vampiros sentissem esse tipo de coisas, mas vocême parece indiferente.Terrivelmenteinsensível.

ClarysentiuSimonenrijecerminimamenteaoladodela,lembrou-sedelenacaverna,securvandocomoseestivessecomdor.Dizendoquetinhaasensaçãodeestaremlheenfiandoumafacanopeito.

—Raphael—sussurrouSimon;Alecficoumuitopálidoaoladodele.—Equantoaosoutros?—perguntou,avozrouca.—Magnus...Luke...— Nossa mãe — falou Clary. — Certamente nem mesmo você a

machucaria.OsorrisodeSebastiansetornouirritadiço.— Ela não éminha mãe— disse, e em seguida deu de ombros com uma

espécie de exasperação exagerada.—Ela está viva—declarou.—Quanto aofeiticeiro e o lobisomem, não sei. Já faz um tempinho que não veri co. Ofeiticeironãopareciamuitobemnaúltimavezemqueovi—acrescentou.—Acho que essa dimensão não tem feito bem a ele. Pode estar morto a essaaltura.Masvocêrealmentenãopodeesperarqueeutivesseprevistoisso.

Aleclevantouoarcoemummovimentofluido.—Prevejaisto—falou,esoltouumaflecha.Voou diretamente para Sebastian, que se movimentou como um raio,

agarrandoa echanoar,osdedossefechandoemvoltadelaenquantovibrava

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emsuasgarras.Claryouviu Isabelle respirar fundosubitamente, sentiuaondadesangueepavornasprópriasveias.

Sebastianapontoua extremidadea adada echaparaAlec, comose fosseumprofessorbrandindoumarégua,eemitiuumcacarejodereprovação.

— Que coisa feia — falou. — Tentando me ferir aqui na minha própriafortaleza,nonúcleodomeupoder?Comofalei,vocêéumtolo.Vocêssãotodosuns tolos. — Fez um gesto repentino, um giro com o pulso, e a echa sequebrou,obarulhosimilaraodeumtiro.

Asportasduplasdasduasextremidadesseabriram,edemôniosentraram.Claryjáesperava,játinhasepreparado,masnãohaviacomoseprepararde

fatoparaalgoassim.Elajáhaviavistodemônios,grandesquantidades,emesmoassim, enquanto a enxurrada deles entrava pelos dois lados — criaturassemelhantesaaranhas,comcorposgordosevenenosos;monstroshumanoidessempele,pingandosangue;coisascompresas,dentesegarras,enormeslouva-a-deuscommandíbulasqueseabriamcomosenãopossuíssemarticulações—,a pele deClary pareceu querer se desgrudar e fugir do corpo. Ela se forçou aficarparada,amãoemHeosphoros,eolhouparaoirmão.

Ele encontrou o olhar dela, sombrio, e ela se lembrou domenino em suavisão, o que tinha olhos verdes como os dela. Viu uma ruga surgir entre osolhosdeSebastian.

Elelevantouamão;estalouosdedos.—Parem—disseele.Os demônios congelaram nomeio damovimentação, ladeando Clary e os

outros. Ela ouvia a respiração entrecortada de Jace, o sentia pressionando osdedosnamãoqueelamantinhajuntoàscostas.Umsinalsilencioso.Osoutrosestavaimóveis,cercando-a.

—Minha irmã—disse Sebastian.—Não amachuquem.Tragam-naparamim.Matemosoutros.—SemicerrouosolhosparaJace.—Seconseguirem.

Os demônios avançaram. O colar de Isabelle pulsava como uma luzestroboscópica, irradiando línguas ardentes em vermelho e dourado, e àquelaluzluminosaClaryviuosoutrosviraremparaconterosdemônios.

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Era a chance dela. Girou e correu para a parede, sentindo a Marca daAgilidade arder em seu braço enquanto se lançava até lá, se apoiavana rochaáspera com amão esquerda e se impulsionava, batendo a ponta da estela nogranitocomosefosseummachadogolpeandoumtroncodeárvore.Elasentiuapedra tremer: pequenas ssuras apareceram,mas ela continuou severamente,arrastando a estela pela superfície da parede, veloz e determinada. Sentiuvagamente a trituração e a resistência. Tudo parecia ter recuado, mesmo osgritosegolpesda luta,ofedoreouivodedemônios.Elasóconseguiasentiropoder dos símbolos familiares ecoando enquanto desenhava, desenhava edesenhava...

Algumacoisaapegoupelotornozeloepuxou.Umraiodedorsubiuporsuaperna; Clary olhou para baixo e viu um tentáculo parecido com uma cordaenrolado em sua bota, arrastando-a para baixo. Pertencia a um demônio quepareciaumpapagaiodepenadoenormecomtentáculosondedeveriahaverasas.Clary se agarrou na parede commais força,movimentando a estela, a rochatremendoenquantolinhasnegraspenetravamnapedra.

Apressãono tornozelo aumentou.Comumgrito,Clary se soltou, a estelaescapandoenquantoelacaía,batendocomforçanochão.Elaengasgouerolouparaoladoexatamentequandouma echapassouvoandoacimadesuacabeçaeseenterrounacarnedodemônio.ElalevantouoolhareviuAlec,alcançandooutra echa,exatamentequandoossímbolosnaparedeatrásdelacomeçaramareluzircomoummapadefogocelestial.JaceestavaaoladodeAlec,aespadanamão,osolhosfixosemClary.

Elameneouacabeça,minimamente.Váemfrente.O demônio que estava segurando a perna de Clary rugiu; o tentáculo

diminuiuapressão,eClarylevantou-se,cambaleando,e coudepé.Nãotinhaconseguido desenhar uma entrada retangular, por isso o portal rabiscado naparedebrilhavaemumcírculoirregular,comoaaberturadeumtúnel.Elaviaobrilhodoportalnaquelefulgor—ondulavacomopratacoloidal.

Jace passou correndo por ela e se jogou na abertura. Ela conseguiu ver derelance o que havia além — o Salão dos Acordos destruído, a estátua de

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JonathanCaçadordeSombras—antesdeselançarparaafrente,pressionandoamãoaoPortal,mantendo-oabertoparaqueSebastiannãoconseguissefechá-lo.Jacesóprecisavadealgunssegundos...

Clary ouviu Sebastian atrás de si, gritando em um idioma que eladesconhecia.Haviafedordedemôniosportodososlados;Claryouviuumsibiloeumachocalhadaevirou, agrandoumRavenercorrendoparacimadela,comacaudadeescorpiãolevantada.Elaseesquivouexatamentequandoodemôniosucumbiuemdoispedaços,ochicotemetálicodeIsabellecortandoacriaturaaomeio. A linfa fedorenta inundou o chão; Simon agarrou Clary e a puxou devoltabemnomomentoemqueoPortal in oucomuma luz súbita, incrível eJaceatravessou.

Clary respirou fundo. Jace jamais cara tão parecido quanto um anjovingador, emergindo através de névoa e fogo. Seus cabelos claros pareciamqueimarenquantoeleaterrissavagentilmenteeerguiaaarmaqueempunhava.Era oskeptronde JonathanCaçadordeSombras.Aesferanocentrobrilhava.PeloPortal,atrásdeJace, logoantesdeaquelese fechar,Claryviuassombrasescuras de demônios voadores, ouviu os gritos de decepção e raiva quandochegaram e notaramque a arma tinha desaparecido e o ladrão estava fora devista.

QuandoJaceergueuoskeptron,osdemôniosaoredorcomeçaramarecuar.Sebastian estava apoiado no corrimão, as mãos agarradas com força a ele,totalmentebrancas.EleencaravaJace.

— Jonathan— disse ele, e a voz se elevou e se projetou.— Jonathan, euproíbo...

Jace ergueu oskeptron, e a esfera ardeu em chamas. Era uma chamabrilhante, contida e fria,mais luz que calor, ainda assim, uma luz penetrantequeseespalhouportodoorecinto,pintandotudocomseubrilho.Claryviuosdemônios se transformando em silhuetas ardentes antes de estremecerem eexplodirem em cinzas.Osmais próximos de Jace caíram primeiro,mas a luzpassouporelescomouma ssuraseabrindonaterra,eumporumgritaramesedissolveram,deixandoumacamadaespessadecinzasescurasnochão.

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A luz se intensi cou, ardendo mais até Clary fechar os olhos, aindaenxergandoaexplosãodoúltimobrilhoatravésdaspálpebras.Quandoosabriunovamente, a entrada estava quase vazia. Apenas ela e os companheirospermaneciam. Os demônios tinham ido embora — Sebastian continuava ali,pálidoechocadonaescadaria.

—Não—resmungoueleatravésdedentescerrados.Jace ainda estava com oskeptron na mão; a esfera parecia preta e morta,

como uma lâmpada queimada. Olhou para Sebastian, o peito in ando edesinflandorapidamente.

—Achouquenãosoubéssemosquevocêestavanosesperando—disseele.—Mascontávamoscomisso.—Eledeuumpassoàfrente.—Euconheçovocê— continuou, ainda sem fôlego, os cabelos esvoaçados e os olhos douradosardendo.—Vocêmepossuiu,mecontrolou,meobrigouafazertudoquevocêqueria,mas aprendi com você . Esteve na minha cabeça, e eu me lembro.Lembro-medecomopensa,decomoplaneja.Lembro-medetudo.Eusabiaquevocêirianossubestimar,queachariaquenãoestávamosimaginandoquefosseuma armadilha, acharia que não teríamos nos planejado para isso. Você seesquecedequeeuoconheço;atéoúltimocantodasuacabecinhaarrogante,euoconheço...

—Caleaboca —sibilouSebastian.Apontouparaelescomamãotrêmula.—Vocêsvãopagarporissocomsangue—avisou,eentãovirouecorreupelasescadas,desaparecendo tãodepressaquenema echadeAlecquevoouatrásdele foi capaz de alcançá-lo. Em vez disso, atingiu a curva da escadaria e sequebroucomoimpactonarocha,caindonochãoemdoispedaços.

— Jace — disse Clary. Tocou o braço dele. Parecia congelado. — Jace,quandoelefalaempagarcomsanguenãoestásereferindoaonosso.Massimaodeles.Luke,Magnusemamãe.Temosqueencontrá-los.

—Concordo.—Alec abaixou o arco; a roupa de combate vermelha tinhasidorasgadadurantealuta,eabraçadeiraestavamanchadadesangue.—Cadaescadalevaaumandardiferente.Vamosterquenosdividir.Jace,Clary,vocês

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pegamaescadarialeste;orestantedenósvaiparaaoutra.Ninguém protestou. Clary sabia que Jace jamais teria concordado em

separar-sedela,eAlecnãoteriadeixadoairmã,eIsabelleeSimonnãoteriamseseparadoumdooutro.Jáqueprecisavamseseparar,aqueleeraoúnicojeito.

—Jace—falouAlecnovamente,edestavezapalavrapareceudespertarJacede seu estado de devaneio. Ele descartou oskeptron morto, o deixou cair nochãoelevantouacabeça,assentindo.

— Certo — falou, e a porta atrás deles se abriu. Caçadores de Sombrasmalignos em roupas vermelhas começaram a entrar na sala. Jace agarrou opulso de Clary, e eles correram, Alec e os outros também aceleraram, atéchegaremàescadariaesesepararem.

ClaryteveaimpressãodeterouvidoSimonchamarseunomeenquantoelae Jacese lançavamparaaescadaria leste.Elavirouparaprocurá-lo,masele játinhasumido.AsalaestavacheiadeCrepusculares,váriosdeleselevandoarmas— echas, e até mesmo estilingues — para mirar. Ela abaixou a cabeça econtinuoucorrendo.

JiaPenhallowestavanavarandadoGard,observandoacidadedeAlicante.A varanda raramente era usada. Houve um tempo em que o Cônsul

frequentemente falava com a população dali, bem acima deles, mas o hábitocaiu em desuso no século XIX, quando a Consulesa Fairchild concluiu queaquiloseassemelhavamuitoaocomportamentodeumpapaoudeumrei.

O crepúsculo havia chegado, e as luzes de Alicante tinham começado aarder: havia uma pedra de luz enfeitiçada nas janelas de todas as casas efachadas de lojas, luz enfeitiçada iluminando a estátua na Praça doAnjo, luzenfeitiçada jorrando das construções. Jia respirou fundo, segurando na mãoesquerdaobilhetedeMaiaRobertsquefalavasobreesperançaenquantoelasepreparava.

Astorresdemoníacasbrilharamemazul,eJiacomeçouafalar.Avozecooudeumatorreparaaoutra,sedifundindopelacidade.Elaviupessoasparandonarua, cabeças inclinadas para cima para olharem para as torres demoníacas,

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pessoaspresasnaentradasdesuascasas,ouvindoaspalavrasqueasbanhavamfeitoumamaré.

— Nephilim — disse ela. — Filhos do Anjo, guerreiros, hoje nospreparamos, pois estanoite SebastianMorgenstern lançará forças contranós.— O vento que vinha das colinas ao redor de Alicante estava frio; Jiaestremeceu.— SebastianMorgenstern está tentando destruir o que somos—falou.— Ele trará ao nosso combate guerreiros que usam nossos rostos,masnão são Nephilim. Não podemos hesitar. Quando os encararmos, quandovirmos um Crepuscular, não podemos enxergar irmão, mãe, irmã ou esposa,masumacriaturaemsofrimento.Umhumanodequemtodaahumanidadefoiextraída. Somosoque somosporque temos livre-arbítrio.Temos liberdadedeescolher. Escolhemos encarar e lutar. Escolhemos derrotar as forças deSebastian.Elestêmaescuridão;nóstemosaforçadoAnjo.Ofogotestaoouro.Nestefogoseremostestados,enossobrilhoserámaior.Conhecemoprotocolo;sabemoquefazer.Avante,filhosdoAnjo.

“Avanteeacendamasluzesdaguerra.”

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22AsCinzasdeNossosPais

O som de uma sirene súbita e aguda cortou o ar, e Emma levou um susto,derrubandoospapéisnochão.Seucoraçãoestavaacelerado.

Através das janelas abertas do quarto, ela conseguia enxergar as torresdemoníacas,brilhandoemdouradoevermelho.Ascoresdaguerra.

Emma se levantou cambaleando, alcançando suas roupas de combate, queestavam emum cabide perto da cama.Tinha acabado de se vestir e estava seabaixando para amarrar as botas quando a porta de seu quarto se abriuviolentamente.EraJulian.Elederrapouatéomeiodoquartoantesdeconseguirseaprumar.Olhoufixamenteparaospapéisnochão,eemseguidaparaEmma.

—Emma...nãoouviuoanúncio?—Euestava cochilando—disse, enquantoprendiao arreioquemantinha

Cortanaàscostas,enfiandoalâminanabainhaemseguida.—Acidadeestásofrendoumataque—alertouele.—Temosquenosdirigir

ao Salão dosAcordos.Vãonos trancar lá dentro, todas as crianças, é o lugarmaissegurodacidade.

—Eunãovou—respondeuEmma.Julianaencarou.Estavavestindojeans,umcasacodouniformedecombate

e tênis; tinha uma espada curta pendurada no cinto. Seus cachos castanho-clarosestavamdesgrenhados.

—Comoassim?—NãoqueromeescondernoSalãodosAcordos.Querolutar.Julianpassouasmãospeloscabelosembaraçados.—Se você lutar, eu luto— falou.—E issoquerdizer queninguém levará

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TavvyparaoSalãodosAcordos,eninguémprotegeráLivvy,TyouDru.—EHeleneAline?—perguntouEmma.—OsPenhallow...—Helenestánosesperando.TodososPenhallowestãonoGard, inclusive

Aline.NãotemninguémalémdeHelenedagenteaquinacasa—disseJulian,estendendoamãoparaEmma.—Helennãopodeprotegeratodosnóssozinhaecarregarobebê;elaéumasó.—Eleaencarou,eEmmanotouomedonosolhosdele,omedoqueJuliannormalmenteescondiadosmaisnovos.

—Emma.Vocêéamelhor,amelhorlutadoradetodosnós.Nãoésóminhaamiga,eeunãosousóoirmãomaisvelhodeles.Souopai,ouomaispróximodisso, e eles precisam demim, e eu de você.—Amão que estava estendidatremia. Os olhos da cor do mar estavam imensos no rosto pálido: ele nãopareciapaideninguém.—Porfavor,Emma.

Lentamente,elaesticouobraçoepegouamãodele,entrelaçandoosdedosaosdele.Emmaoviu soltarumarespiraçãomínimadealívio, e sentiuopeitoapertar. Atrás dele, pela porta aberta, podia vê-los: Tavvy e Dru, Livia eTiberius.Responsabilidadedela.

—Vamos—disseEmma.

No alto da escadaria Jace soltou a mão de Clary. Ela agarrou o corrimão,tentandonãotossir,apesardeseuspulmõesestivessemparecendoquererrasgaropeitoparasair.Eleolhouparaela—Oquehouve?—,masdaíenrijeceu.Logoatrás,obarulhodepéscorrendo.OsCrepuscularesestavamnoencalçodeles.

—Vamos—disseJace,ecomeçouacorrerdenovo.Clary se obrigou a segui-lo. Jace parecia saber para onde estava indo, sem

hesitar; ela supunha que ele estivesse utilizando o mapa mental do Gard emAlicante,penetrandoocentrodatorre.

Dobraram em um longo corredor, onde Jace parou, diante de um par deportas metálicas. Estavam marcadas por símbolos desconhecidos. Claryesperavasímbolosdemorte,que falassemde Infernoeescuridão,masaqueleseramsímbolosdetristezae lutoporummundodestruído.Quemosteria feitoali?,seperguntouela,eemquetipodeluto?Elajátinhavistosímbolosdeluto

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emoutrasocasiões.CaçadoresdeSombrasosvestiamcomomedalhasquandoalguém que amavam morria, apesar de não fazerem nada para diminuir osofrimento.Masexisteumadiferençaentrelutoporumapessoaelutoporummundo.

JacevirouacabeçaebeijouClarynaboca,breveeintensamente.—Estápronta?Elaassentiu,eeleabriuaportaeentrou.Elaoseguiu.AsalaalémeratãograndequantoasaladoConselhonoGarddeAlicante,

quiçámaior.Otetoseerguiaaltoacimadeles,eemvezdehaveruma leirasdeassentos, um piso amplo demármore se estendia até um palanque no m dasala.Atrás dele havia duas janelas enormes separadas.A luz do pôr do sol asatravessava, embora umdeles fosse umpôr do sol dourado, e o outro, cor desangue.

Sebastian estava ajoelhado ao centro, sob a luz dourada sangrenta. Estavamarcandosímbolosnochão,ocírculodesigilossóbriosqueseconectavam.Aoperceberoqueseuirmãoestavafazendo,Claryavançouatéele—eemseguidaseesquivoucomumgritoenquantoaformacinzentaenormeseergueudiantedela.

Parecia uma larva enorme, e o único buraco naquele corpo cinza eescorregadio era a boca cheia de dentes a ados. Clary reconheceu. Já tinhavisto um daqueles em Alicante, rolando o corpo sobre uma pilha de sangue,vidroeglacê.UmdemônioBehemoth.

Ela alcançou a adaga, mas Jace já estava saltando para o bicho, a espadaempunhada. Ele voou e aterrissou nas costas do demônio, apunhalando-o nacabeçasemolhos.ClaryrecuouenquantooBehemothsedebatia,esguichandoum icor pungente, um grito alto e uivante saindo da garganta aberta. Jacecontinuou agarrado às costas da criatura, o icor esguichando nele enquantogolpeava sem parar até o demônio sucumbir ruidosamente ao chão, com umgrito gorgolejante. Jace continuou rme, montado na criatura, até o últimomomento.Roloudecimadomonstroecaiudepénochão.

Porum instante, fez-se silêncio. Jace olhou emvolta como se esperando a

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vindadeoutrodemôniodas sombras eumnovoataque,masnadaaconteceu,apenas o movimento de Sebastian, que havia se levantado no centro de seucírculodesímbolosagoracompleto.

Elecomeçouabaterpalmaslentamente.—Belo trabalho— falou.—Excelente despacho de demônio.Aposto que

papailhedariaumaestrelinhadourada.Agora.Vamospularasgentilezas?Vocêreconheceondeestamos,nãoreconhece?

Osolhosde Jacepercorreramo recinto, eClary seguiuoolhardele.A luzexternahaviadiminuídoumpoucoeagoradavaparaveropalanquecommaisclareza.Nele,haviadoisenormes...bem,aúnicapalavraparaelesera“tronos”.Eram demar m e ouro, comdegraus dourados ao redor. Cada um tinha umencostocurvomarcadoporumaúnicachave.

—“Souaquelequeviveeestavamorto ”—disseSebastian—,“e veja, estouvivoparasempre,edetenhoaschavesdoinfernoedamorte.”—Fezumgestodevarreduraemdireçãoaostronos,eClarypercebeucomumsustorepentinoquehavia alguém ajoelhado ao lado do trono da esquerda, uma Caçadora deSombras maligna com uniforme vermelho. Uma mulher de joelhos, com asmãosfechadasdiantedesi.—Estassãoaschaves,feitasemformatodetronose entregues a mim pelos demônios que controlam este mundo, Lilith eAsmodeus.

SeusolhosescurossedirigiramaClary,eelasentiuaqueleolharcomodedosfriossubindoporsuaespinha.

—Nãoseiporqueestámemostrandoisso—declarouela.—Oqueespera?Admiração?Não vai ter. Podeme ameaçar se quiser; sabe que não ligo. NãopodeameaçarJace,eletemofogocelestialnasveias;nãopodeferi-lo.

—Não posso?Quem sabe quanto fogo celestial ainda resta nas veias deledepoisdaexibiçãodefogosqueelefeznaquelanoite?Aquelamulher-demônioopegoude jeito,não foi,maninho?Eu sabiaquevocê jamais suportaria saberdaquilo,quematousuaprópriaespécie.

—Vocêmeforçouacometerassassinato—rebateuJace.—NãoeraminhamãoempunhandoafacaquematouIrmãMagdalena;eraasua.

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— Se prefere que seja assim. — O sorriso de Sebastian cou frio. —Independentemente, existem outros que posso ameaçar.Amatis, levante-se, etragaJocelynaqui.

Clary sentiupequenasadagasdegelonasveias; tentou impedirqueo rostodemonstrassequalquerexpressãoenquantoamulherajoelhadapertodotronose levantava.EraAmatis,de fato, comseusolhosazuisdesconcertantes comoosdeLuke.Elasorriu.

—Comprazer—disse,eseretirou,abainhadolongocasacovermelhosearrastandoatrás.

Jacedeuumpassoparaafrentecomumrugidodesarticulado—eparounocaminho, a muitos centímetros de Sebastian. Estendeu as mãos, mas elaspareceramatingiralgotransparente,umaparedeinvisível.

Sebastianriu.—Comoseeu fossedeixá-lochegarpertodemim...você,como fogoque

ardeemvocê.Umavezfoisuficiente,muitoobrigado.—Entãovocêsabequepossomatá-lo—respondeuJace,olhandoparaele,e

Clarynãoconseguiuevitarpensarnoquantoeramparecidos,enoquantoeramdiferentes:comogeloefogo,Sebastiantodopretoebranco,eJaceardendoemvermelho edourado.—Nãopode se esconder aí para sempre.Vaimorrerdefome.

Sebastian fezumgestobrevecomosdedos,deum jeitoqueClary já tinhavistoMagnusgesticularquando fazia algum feitiço—e Jacevooupara cimaeentãoparatrás,ebateunaparedeatrásdeles.Elaarfouquandodeumeia-voltaparavê-locaídonochão,comumcortesangrandonalateraldacabeça.

Sebastiancantarolouemdeleiteeabaixouamão.— Não se preocupe — disse em tom de conversa, e voltou o olhar para

Clary. — Ele vai car bem. Em algummomento. Se eu não mudar de ideiaquantoaoquefazercomele.Tenhocertezadequevocêentende,agoraqueviudoquesoucapaz.

Clary continuou parada. Sabia o quanto era importante manter o rostoinexpressivo, não olhar para Jace empânico, não demonstrar a Sebastian sua

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raivaeseumedo.Nofundodocoração,elasabiaoqueelequeria,melhorqueninguém;sabiacomoeleera,eestaerasuamelhorarma.

Bem,talvezasegundamelhor.—Eusempre soubequevocêpossuíapoder— falou,deliberadamente sem

olhar para Jace, sem analisar sua imobilidade, o rastro espesso de sangue queescorria pela lateral do rosto. Isto sempre iria acontecer; sempre seria elaencarandoSebastianemaisninguém,nemmesmoJace,aoseulado.

— Poder — ecoou ele, como se fosse uma ofensa. — É assim que vocêchama?Aqui eu tenhomais que poder, Clary.Aqui eu possomoldar o que éreal.— Ele começou a caminhar pelo círculo que havia desenhado, as mãosentrelaçadas casualmente junto às costas, como um professor dando umapalestra.— Estemundo é ligado aomundo onde nascemos apenas pelos osmais tênues. A estrada por Faerie é um dos os. Estas janelas são outro.Atravesseaquelaali.—Apontouparaa janeladadireita,pelaqualClaryviaocéu crepuscular azul-escuro, e as estrelas.—E voltará a Idris.Mas não é tãosimples.—Eleolhouparaasestrelas lá fora.—Vimparaestemundoporqueeraumesconderijo.E então comecei aperceber.Tenho certezadequenossopaidisseestaspalavrasparavocêmuitasvezes—falouparaJace,comoseJacepudesseouvi-lo—,masémelhorgovernarnoInfernodoqueservirnoCéu.Eestou aqui para governar. Tenho meus Malignos e meus demônios. Tenhominha torre e minha cidadela. E quando as fronteiras deste mundo foremseladas, tudo aqui será minha arma. Rochas, árvores mortas, o próprio chãovirá àsminhasmãos e entregará amim seu poder. E os Grandes, os antigosdemônios,vãoolharparaminhaobraemerecompensarão.Vãomeelevaremglória,eeugovernareiosabismosentreosmundoseosespaçosentretodasasestrelas.

—“Eeleosgovernarácomumbastãodeferro ”—disseClary,lembrando-sedas palavras de Alec no Salão dos Acordos —, “e a ele darei a Estrela daManhã.”

Sebastiansevirouparaela,osolhosiluminados.

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—Sim!—falou.—Sim,muitobem,agoravocêestáentendendo.Eupenseique eu quisesse o nosso mundo, que quisesse derrotá-lo em um banho desangue,porémqueromaisqueisso.QueroolegadodonomeMorgenstern.

— Quer ser o demônio? — questionou Clary, meio espantada, meioapavorada.—QuergovernaroInferno?—Elaabriuasmãos.—Váemfrente,então — falou. — Nenhum de nós vai impedi-lo. Deixe-nos ir para casa,prometaquedeixaránossomundoempaz,epodeficarcomoInferno.

—Aidemim—disseSebastian.—Poisdescobrioutracoisaquetalvezmedestaque de Lúcifer. Não quero governar sozinho. — Estendeu o braço, umgestoelegante,eapontouparaosdoisgrandestronosnopalanque.—Umdelesémeu.Eooutro...ooutroéparavocê.

AsruasdeAlicanteserpenteavamesecurvavamentreelascomoascorrentesde um oceano; se Emma não estivesse seguindo Helen, que carregava umapedra de luz enfeitiçada em uma das mãos e o arco na outra, estariacompletamenteperdida.

Osresquíciosdosoldesapareciamdocéu,eas ruasestavamescuras. Juliancarregava Tavvy, o bebê agarrado ao pescoço dele; Emma segurava Dru pelamão,eosgêmeosestavamjuntos,emsilêncio.

Drunão era rápida e cava tropeçando; caiudiversas vezes, eEmma tinhaque carcolocando-adepé. JulesgritouparaqueEmmativessecuidado,eelaestava tentando ter cuidado. Não conseguia imaginar como Julian fazia,segurandoTavvycomtantocuidado,murmurandotãoreconfortantementequeomenininho sequer chorava.Dru soluçava silenciosamente; Emma limpou aslágrimasdasbochechasdameninaenquantoaajudavaaselevantarpelaquartavez, murmurando palavras de conforto que não faziam o menor sentido domesmojeitoquesuamãeoutrorafaziaquandoelatropeçavaecaía.

Emma nunca havia sentido uma saudade tão agonizante dos pais quantoagora;eracomoterumafacasobascostelas.

—Dru—começou,eemseguidaocéuseacendeuemvermelho.Astorresdemoníacas brilharam puramente na cor escarlate, todo o ouro de alerta

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desaparecido.—Osmurosdacidade se romperam—disseHelen,olhandoparaoGard.

Emma sabia que ela estava pensando emAline.O brilho vermelhodas torresdeixavaseuscabelosclaroscomacordosangue.—Vamos...depressa.

Emmanãotinhacertezaseconseguiamirmaisdepressa;segurouopulsodeDrusilla com mais força e puxou a garotinha, quase a arrancando do chão,murmurandopedidosdedesculpasenquantoseapressava.Osgêmeos,demãosdadas, aceleraram,mesmo enquanto corriampor uma escadaria emdireção àPraçadoAnjo,lideradosporHelen.

EstavamquasenotopoquandoJulianengasgou:—Helen,atrásdagente!E Emma virou e agrou um cavaleiro fada em armadura branca se

aproximandodabasedaescadaria.Eletraziaumarcofeitodeumgalhocurvo,etinhacabeloslongosdacordecascadeárvore.

Por um instante, os olhos dele encontraramos deHelen.A expressão emseu rosto mudou, e Emma não conseguiu evitar imaginar se ele estariareconhecendooPovodasFadasemseusangue.EentãoHelenergueuobraçodireitoeatirounelecomabesta.

Elegirou, se esquivando.A echaatingiuaparedeatrásdele.O fada riu, esaltou o primeiro degrau, em seguida o segundo — daí gritou. Emma couobservando,emchoque,enquantoaspernasdelesecurvaram;elecaiueuivouquandosuapeleentrouemcontatocomabordadodegrau.Pelaprimeiravez,Emma notou que havia saca-rolhas, pregos e outros pedaços de ferro forjadofrio a xados às bordas dos degraus. O guerreiro fada recuou e Helen atirounovamente.Aflechaatravessouaarmaduraeoperfurounopeito.Elecaiu.

—Elesdeixaramtudoàprovadefadas—disseEmma,lembrando-sedeterolhadopelajanelacomTyeHelennacasadosPenhallow.—Todoometal,oferro.— Apontou para um prédio próximo, onde havia uma longa leira detesouraspenduradasporcordasnabordadotelhado.—Eraissoqueosguardasestavamfazendo...

De repente Dru gritou. Outra gura corria pela rua. Uma segunda fada

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guerreira,umamulhercomarmaduraverde-clara,empunhandoumescudodefolhassobrepostasentalhadas.

Emmasacouumafacadocintoeatirou. Instintivamente,a fada levantouoescudo para bloquear a lâmina, que voou por cima de sua cabeça e cortou acorda que prendia um par de tesouras do telhado acima. A tesoura caiu, alâminaparabaixo,e sealojouentreosombrosda fada.Elacaiunochãocomumgrito,ocorpoemespasmos.

—Bomtrabalho,Emma—disseHelencomavoz rme.—Vamos, todosvocês...

Ela parou e deu um grito quando três Crepusculares surgiram de uma rualateral. Trajavam a roupa vermelha de combate que tanto aparecia nospesadelos de Emma, tingidas por um vermelho ainda mais forte pelas torresdemoníacas.

As crianças estavam silenciosas como espectros. Helen ergueu a besta eatirou uma echa. Atingiu um dos Crepusculares no ombro, e ele girou,cambaleando,mas não caiu. Ela procurou uma echa para recarregar o arco;JulianseesforçavaparasegurarTavvyenquantoalcançavaa lâminana lateral.EmmapôsamãoemCortana...

Um círculo giratório de luz cortou o ar e se enterrou na garganta doprimeiroCrepuscular,osangueesguichandonaparedeatrás.Elelevouamãoàgarganta e caiu. Mais dois círculos voaram, um após o outro, e cortaram ospeitosdosoutrosCrepusculares.Elessucumbiramsilenciosamente,maissangueseespalhandoemumapiscinasobreosparalelepípedos.

Emma girou e olhou para cima. Havia alguém no topo da escadaria: umjovem Caçador de Sombras com cabelos escuros, umchakram brilhante namãodireita.Tinha váriosoutrospresos ao cintode armas.Eleparecia brilharsob a luz vermelhadas torresdemoníacas—uma gura esguia com roupadecombate escura de encontro ao negrume da noite, o Salão dos Acordos seerguendocomoumaluaclaraatrásdele.

—IrmãoZachariah?—disseHelen,impressionada.

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— O que está acontecendo? — perguntou Magnus, com a voz rouca. Nãoconseguiamaissentar,eporissoestavadeitado,semiapoiadonoscotovelos,nochão da cela. Luke estava aos seus pés, o rosto pressionado contra a janelaestreita. Estava com os ombros tensos, e mal tinha se mexido desde que osprimeirosberrosegritoscomeçaram.

—Luz—respondeuLukea nal.—Temalgumaespéciedeluzjorrandodatorre, está afastando a bruma. Dá para ver o planalto abaixo, e alguns dosCrepuscularescorrendoemvolta.Sónãoseioqueprovocouisso.

Magnusriuquasesilenciosamente,esentiugostodemetalnaboca.—Ora—falou.—Quemvocêachaquecausou?Lukeolhouparaele.—AClave?—AClave?—respondeuMagnus.—Detestoterquedaressanotícia,mas

elesnãoseimportamosu cienteconoscoparavirematéaqui.—Eleinclinouacabeça para trás. Não se lembrava de nenhum momento no qual se sentirapior... bem, talvez não. Houve um incidente com ratos e areia movediça naviradadoséculo.—Suafilha,noentanto—disseele.—Elaseimporta.

Lukepareceuhorrorizado.—Clary.Não.Elanãodeviaestaraqui.—Elanãoviveaparecendoondenãodeve?—argumentouMagnus,comum

tommoderado. Pelomenos, ele pensou ter soadomoderado. Era difícil saberquandosesentiatãotonto.—Eorestantedeles.Oscompanheirosconstantes.Meu...

A porta se abriu.Magnus tentou sentar, não conseguiu, e caiu novamentesobreos cotovelos. Sentiuumdesgosto estúpido.Caso Sebastian tivesse vindomatá-los, ele preferiamorrer de pé a estar apoiado sobre os cotovelos.Ouviuvozes:Luke, exclamando, e emseguidaoutrasvozes, e entãoumrosto surgiu,pairandosobreodele,olhoscomoestrelasemumcéuclaro.

Magnus exalou — por um instante parou de se sentir doente, temeroso,moribundo,ousequerdesgostosoouamargo.Foivarridoporumasensaçãodealívio, tãoprofundaquantoa tristeza, eesticouobraçopara tocarabochecha

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domeninoqueseinclinavaparaele.OsolhosdeAlecestavamenormes,azuisecheiosdeangústia.

—Ah,meuAlec—disse.—Vocêtemestadotãotriste.Eunãosabia.

Enquanto abriam caminhomais para o centro da cidade, a multidão crescia:maisNephilim,maisCrepusculares,maisguerreirosfada—apesardeas fadasestaremsemovimentandocomo lesmas,dolorosamente,muitas enfraquecidaspelocontatocomoferro,oaço,amadeiradesorveiraeosalquetinhamsidoespalhadospelacidadecomoproteçãocontraelas.Aforçadossoldadosfadaeralendária,masEmmaviramuitosdeles—quedocontráriopoderiam ter saídovitoriosos — caírem sob as espadas dos Nephilim, o sangue correndo pelaspedrasbrancasdaPraçadoAnjo.

Os Crepusculares, no entanto, não se enfraqueceram. Pareciamdespreocupadoscomosproblemasdoscompanheirosfada,golpeandoeabrindocaminhoviolentamentepelaPraçadoAnjo repletadeNephilim. Julian estavacomTavvypresodentrodozíperdocasaco;agoraomenininhoseesgoelava,osberrosperdidosentreosgritosdebatalha.

— Temos que parar! — gritou Julian. —Vamos acabar nos separando!Helen!

Helenestavapálidaepareciadoente.QuantomaisseaproximavamdoSalãodosAcordos,agoraseassomandosobreeles,maisfortes cavamosfeitiçosdeproteção contra fadas; mesmo Helen, com sua herança parcial, estavacomeçando a sentir. Foi o Irmão Zachariah — só Zachariah agora, Emmalembrouasi,sóumCaçadordeSombras,comoeles—quetomoua iniciativadeorganizá-losemuma la,osBlackthorneosCarstairs,todosdemãosdadas.Emma segurou no cinto de Julian, considerando que a outra mão estavaapoiandoTavvy.MesmoTyfoiobrigadoaseguraramãodeDrusilla,apesardeterfeitoumacaretaparaelanoprocesso,fazendo-achoraroutravez.

ForamatéoSalão,juntos,Zachariahnafrente;eletinha cadosemlâminaspara arremesso e havia sacadouma lançade lâmina longa.Varreu amultidãocomaarmaenquantoatravessavam,abrindocaminhodeformafriaee ciente

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entreosCrepusculares.EmmaestavadesesperadaparapegarCortana, correr egolpearos inimigos

que tinhammatado seuspais, quehaviam torturado eTransformadoopai deJulian,que levaramMarkpara longedeles.Mas isso signi caria largar JulianeLivvy,e issoelanãofaria.DeviamuitoaosBlackthorn,principalmenteaJules,que a mantivera viva, que lhe dera Cortana quando ela pensava que fossemorrerdedor.

Finalmente chegaram aos degraus da frente do Salão e subiram atrás deHelen eZachariah, chegandoàs enormesportasduplasda entrada.Haviaumguarda de cada lado, um empunhando uma enorme barra demadeira. Emmareconheceu um deles: amulher da tatuagem de carpa que às vezes falava emreuniões:DianaWrayburn.

—Estamosprestesafecharasportas—disseoguardaqueseguravaabarrademadeira.—Vocêsdois:vãoterquedeixá-losaí;sócriançaspodementrar...

—Helen— falouDru, com a voz trêmula. Então a la se desfez, com ascrianças Blackthorn correndo para Helen; Julian um pouco de lado, o rostoinexpressivoepálido,amãolivreacariciandooscachosdeTavvy.

—Tudobem—disseHelen,comavozembargada.—Esteéo lugarmaissegurodeAlicante.Vejam,temsaleterradecemitérioportodososladosparamanterasfadaslonge.

— E ferro frio sob as pedras — acrescentou Diana. — As instruções doLabirintoEspiralforamseguidasàrisca.

AoouviramençãosobreoLabirintoEspiral,Zachariahrespiroufundoeseajoelhou,encarandoosolhosdeEmma.

— Emma Cordelia Carstairs — falou. Parecia ao mesmo tempo muitojovem,emuitovelho.Tinhasanguenagargantaondeseusímbolodesbotadosedestacava,masnãoeradele.ZachariahpareciaexaminarorostodeEmma,masela não sabia por quê. — Fique com seuparabatai — falou ele a nal, tãobaixinhoquemaisninguémconseguiuescutar.—Àsvezesémaiscorajosonãolutar.Protegê-los,eguardaravingançaparaoutrodia.

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Emmasentiuosolhosarregalarem.—Maseunãotenhoumparabatai...ecomovocê...Umdosguardasdeuumberroecaiu,umaflechavermelhaenfiadanopeito.—Entrem!—gritouDiana,pegandoascriançasepraticamentejogando-as

paradentrodoSalão.Emmasentiualguémlheagarrarelhejogarparadentro;elagirouparadarmaisumaolhadaemZachariaheemHelen,porémeratardedemais.Asportasduplas já tinhamse fechadoatrásdela, a enorme trancademadeiracaindonolugarcomumsomderradeiroecoante.

— Não — disse Clary, olhando do trono apavorante para Sebastian, enovamenteparao trono.Esvazieamente ,diziaelaa si.AtençãoemSebastian,noqueestáacontecendoaqui,noquevocêpodefazerparacontê-lo.Nãopenseem Jace. — Você já deve saber que não vou car aqui. Talvez você pre ragovernar o Inferno a servir ao Céu, mas eu não quero nem uma coisa nemoutra:sóqueroirparacasaeviverminhavida.

— Isso não é possível. Já fechei a entrada que a trouxe até aqui.Ninguémmais pode voltar por ela. Tudo que resta é isto, aqui.— Ele apontou para ajanela.—Eempoucotempoissotambémseráfechado.Nãovaitervoltaparacasa,nãoparavocê.Seulugaréaqui,comigo.

—Porquê?—sussurrouela.—Porqueeu?— Porque eu te amo— respondeu Sebastian. E pareceu... desconfortável.

Tenso e esgotado, como se estivesse tentando alcançar algo intocável.—Nãoqueroquevocêsemachuque.

—Vocênão...vocêmemachucou.Tentou...—Nãofazdiferençase foreuamachucá-la—interrompeuele.—Porque

vocêmepertence.Eupossofazeroquequisercomvocê.Masnãoquerooutraspessoaslhetocando,lhepossuindo,oumachucando.Queroquevocêestejaporperto,parameadmirareveroquefiz,oqueconquistei.Issoéamor,nãoé?

—Não—respondeuClary,comavozsuave,triste.—Nãoé.—Eladeuumpasso em direção a ele e a bota bateu contra o campo de força invisível docírculo de símbolos. Ela não conseguia ir além.— Se você ama alguém, quer

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queapessoaoamedevolta.Sebastiansemicerrouosolhos.—Nãotentemeamparar.Seioquevocêpensaqueéoamor,Clarissa;acho

queestáerrada.Vocêvaiascenderaotronoereinaraomeulado.Vocêtemumcoração sombrio, e esta é uma escuridãoque compartilhamos.Quando eu fortudo que existe em seu mundo, quando eu for tudo que restar, vocêvai meamardevolta.

—Nãoentendo...—Nãoimaginoqueentenda—riuSebastian.—Vocêaindanãodispõede

todas as informações necessárias. Deixe-me adivinhar, você não sabe nadasobreoqueaconteceuemAlicantedesdequepartiu?

UmasensaçãofriaseespalhoupeloestômagodeClary.—Estamosemoutradimensão—disseela.—Nãohácomosaber.—Nãoexatamente—continuouSebastian, comavoz cheiade satisfação,

comoseela tivessecaídoprecisamentenaarmadilhaqueelequeria.—Vejaajanelaacimadotronoleste.OlheevejaAlicanteagora.

Clary olhou.Quando entrouna sala, viu só o que parecia um céunoturnoestreladoatravésda referida janela,masagora, assimqueela se concentrou, asuperfíciedovidrobrilhouetremeu.DerepentepensounahistóriadaBrancade Neve, o espelho mágico, a superfície brilhando e se transformando pararevelaromundoláfora...

Elaestavavendoo interiordoSalãodosAcordos.Estavacheiodecrianças.CriançasCaçadorasdeSombras sentadas edepé, todas juntas.LáestavamosBlackthorn,ascriançasagrupadas,Juliansentadocomobebênocolo,obraçolivre esticado, como se para englobar os outros e mantê-los próximos, paraprotegê-los. Emma estava ao lado dele, a expressão dura, a espada douradabrilhandoatrásdoombro...

AcenapassouparaaPraçadoAnjo.AoredordoSalãodosAcordoshaviauma massa de Nephilim, e lutando contra eles via-se os Crepusculares, comsuas roupas vermelhas, brandindo armas— e não apenasCrepusculares,masgurasqueClaryreconhecera,comocoraçãoapertado,comosendoguerreiros

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fada. Uma fada alta de cabelos com mechas azuis e verdes combatia AlinePenhallow, a qual estavana frente damãe, a espada empunhada, pronta paralutar até amorte. Do outro lado da praça, Helen tentava abrir caminho pelamultidão para chegar aAline, porém havia gente demais. A luta a obrigava apermaneceralibemcomooscorpos:corposdeguerreirosNephilim,abatidosemorrendo, muito mais os vestidos de preto que os de vermelho. Estavamperdendoabatalha,perdendo...

ClarygirouparaSebastianquandoacenacomeçouadesbotar.—Oqueestáacontecendo?—Acabou—disseele.—PediqueaClaveentregassevocêparamim;não

entregaram.Éverdadequevocêhaviafugido,mastodavia,elesdeixaramdeserúteisparamim.Minhasforçasinvadiramacidade.AscriançasNephilimestãoescondidasnoSalãodosAcordos,masquandotodosestiveremmortos,oSalãoserá tomado. Alicante será minha. Os Caçadores de Sombras perderam aguerra...nãoquetenhasidoexatamenteumaguerra.Acheiquefossemresistirmais.

—Essesestão longede ser todososCaçadoresdeSombrasqueexistem—disseClary.—SãosóosqueestavamemAlicante.AindahámuitosNephilimespalhadospelomundo...

— Todos os Caçadores de Sombras que você vê ali beberão do CáliceInfernal em breve. Aí serão meus serventes, e vou enviá-los pelo mundo, àprocura de irmãos, e os que restarem serão mortos ou Transformados. VoudestruirasIrmãsdeFerroeosIrmãosdoSilêncioemsuasrespectivascidadelasdepedrae silêncio.Emummêsa raçade JonathanCaçadordeSombras serávarridadomundo.Eentão...—Elesorriuaquelesorrisohorrorosoegesticulouparaajanelaaoeste,quetinhavistaparaomundodestruídodeEdom.—Vocêviuoqueacontece comummundo semproteção—gabou-se.—Seumundovaimorrer.Mortesobremorte,esanguenasruas.

ClarypensouemMagnus.Viumacidadetodadesangue,comtorresfeitasdeossos,esanguecorrendocomoáguapelasruas.

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—Não pode achar que— disse ela, com uma vozmorta—, se seu planofuncionar, se isto que você está me dizendo realmente acontecer, haveráalgumachancedeeumesentaremumtronoaoseulado.Pre rosertorturadaatéamorte.

— Ah, não acho — respondeu ele alegremente. — Por isso esperei,entende?! Para lhe dar uma escolha. Todos do Povo das Fadas que sãomeusaliados,todososCrepuscularesquevocêvêaí,aguardampelosmeuscomandos.Se eu sinalizar, eles recuam. Seumundo será salvo. Você nuncamais poderávoltar para lá, é claro... vou fechar as fronteiras entre este e aquelemundo, enuncamaisninguém,demônioouhumano,iráviajardeumparaooutro.Masficaráseguro.

—Umaescolha—disseClary.—Vocêdissequemedariaumaescolha?—Claro—respondeuele.—Governeaomeulado,eeupouposeumundo.

Recuse, e ordenarei queo aniquilem.Escolha amim e poderá salvarmilhões,bilhões de vidas, minha irmã. Você poderia salvar um mundo inteirocondenandoumaúnicaalma.Asua.Então,diga-me,qualéasuadecisão?

—Magnus— falou Alec desesperadamente, esticando o braço para sentir ascorrentes deadamas enterradas no chão que se conectavam às algemas nospulsosdofeiticeiro.—Vocêestábem?Estámachucado?

IsabelleeSimonestavamveri candoLuke,paraverseestavaferido.IsabellenãoparavadeolharparaAlec,orostoansioso;Alecaignoroupropositalmente,não querendo que ela notasse o medo em seus olhos. Ele tocou o rosto deMagnuscomascostasdamão.

Magnusestavamagroepálido,oslábiossecos,olheirasacentuadas.MeuAlec,disseraMagnus,vocêtemestadotãotriste.Eunãosabia .Edepois

voltouparaochão,comoseoesforçodefalarotivesseexaurido.—Fiqueparado—falavaAlecagora,sacandoumalâminasera mdocinto.

Abriu a boca para lhe dar um nome, então sentiu um toque súbito no pulso.MagnusenrolaraosdedosmagrosemtornodopulsodeAlec.

— Chame de Raphael — disse Magnus, e quando Alec o tou, confuso,

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Magnus olhou para a lâmina na mão de Alec. Estava com os olhossemicerrados, e Alec se lembrou do que Sebastian tinha dito para Simon naentrada:Mateiaquelequecriouvocê .Magnussorriusutilmente.—Éumnomedeanjo—falou.

Alecassentiu.— Raphael — repetiu suavemente, e quando a lâmina se acendeu, ele

golpeou com força a corrente deadamas, que partiu sob o toque da faca. Ascorrentes caíram, e Alec, jogando a lâmina no chão, segurou o ombro deMagnuseoajudouaselevantar.

MagnusseesticouparaAlec,masemvezdeselevantar,puxouAlecparasi,amãodeslizandopelascostasdooutroeseenredandoemseuscabelos.Magnuso beijou, com força, estranheza e determinação, e Alec congelou por uminstante, mas em seguida se entregou ao beijo, coisa que achou que jamaisconseguiria fazerdenovo.AlecdeslizouasmãospelosombrosdeMagnusatéchegaraopescoço,ondeparou,beijandoatéperderofôlego.

Finalmente Magnus recuou, os olhos brilhando. Deixou a cabeça cair noombrodeAlec,osbraçosenvolvendo-o,mantendo-osunidos.

—Alec...—começousuavemente.— Sim?— perguntou Alec, desesperado para saber o que Magnus queria

perguntar.—Vocêsestãosendoperseguidos?—Eu... ah... algunsdosCrepusculares estãonosprocurando— respondeu

cautelosamente.—Umapena—disseMagnus,fechandoosolhosnovamente.—Seriabom

sevocêpudessesimplesmente caraquideitadoumpoucocomigo.Só...porumminutinho.

— Bem, não vai rolar— falou Isabelle, sem grosseria.— Temos que sairdaqui. Os Crepusculares chegarão a qualquer instante, e já achamos o queviemosprocurar...

— Jocelyn. — Luke se afastou da parede, aprumando-se. — Estão seesquecendodeJocelyn.

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Isabelleabriuaboca,emseguidafechounovamente.—Tem razão—disse.Amão foi para o cintode armas, e ela pegouuma

espada; dando umpasso pelo recinto, entregou-a a Luke, em seguida abaixouparapegaralâminaaindaardentedeAlec.

Luke pegou a espada e a empunhou com a competência descuidada dealguém que manejara lâminas a vida inteira; às vezes era difícil para Alecrecordar que Luke já tinha sido um Caçador de Sombras, mas agora ele selembrava.

— Consegue car de pé? — perguntou Alec a Magnus gentilmente, eMagnusassentiu,permitindoqueAlecolevantasse.

Durouquasedezsegundos,atéqueosjoelhosdelefalharameelecaiuparaafrente,tossindo.

—Magnus!—exclamouAlec,esejogouaoladodofeiticeiro,masMagnusodescartoucomumacenoelutouparaseajoelhar.

—Vão semmim—disse, comuma voz agravada pela rouquidão.—Vouacabaratrasandovocês.

—Não entendo.—Alec sentia como se um torno estivesse comprimindoseucoração.—Oqueaconteceu?Oqueelefezcomvocê?

Magnusbalançouacabeça;foiLukequemrespondeu:— Esta dimensão está matando Magnus — falou, a voz seca. — Alguma

coisanela...emrelaçãoaopaidele...oestádestruindo.AlecolhouparaMagnus,queapenasbalançouacabeçaoutravez.Aleclutou

contrauma explosão irracional de raiva—ainda guarda coisas,mesmoagora—erespiroufundo.

— Encontrem Jocelyn— falou.—Vou car comMagnus. Vamos para ocentrodatorre.Quandoaencontrarem,procurempelagentelá.

Isabellenãogostou.—Alec...—Por favor, Izzy— disseAlec, e viu Simon colocar amão nas costas de

Isabelleesussurraralgumacoisaaoouvidodela.

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Izzy fezque simcoma cabeça, nalmente, e virou-separa aporta;Luke eSimon foram atrás, ambos pausando para olhar paraAlec antes de seguirem,masfoiaimagemdeIzzyque counamentedele,carregandoalâminasera mbrilhantenafrentedocorpo,comoumaestrela.

—Aqui— falou ele paraMagnus omais gentilmente possível, e esticou obraçoparalevantá-lo.

Magnus cou de pé aos trancos, e Alec conseguiu colocar um dos braçoslongosdofeiticeirosobreseuombro.Magnusestavamaismagroquenunca;acamisa larga sobre as costelas, e as bochechas encovadas, mas mesmo assimainda tinhamuito feiticeiro para apoiar:muitos braços e pernas nas, e umaespinhalongaeossuda.

—Apoie-seemmim—disseAlec,eMagnusdeuo tipodesorrisoque fezAlecsentircomosealguémtivesse lheen adoumafacanocoraçãoe tentadoescavarocentro.

—Sempremeapoio,Alexander—falou.—Sempre.

Obebê nalmentedormiunocolodeJulian.EleseguravaTavvycom rmeza,com cuidado, e ambos apresentavam olheiras imensas. Livvy e Ty estavamabraçadosumdoladodooutro,Dru,encolhidacontraeledooutrolado.

Emma estava sentada atrás dele, com as costas nas dele, oferecendo apoiopara que ele pudesse equilibrar o peso do bebê. Não havia pilares livres nosquaisseapoiar,nemparedes;haviadezenas,centenasdecriançasaprisionadasnoSalão.

Emma apoiou a cabeça na de Jules. Ele estava com o cheiro de sempre:sabão,suoreoceano,comosecarregasseaqueleodornasveias.Eraconfortanteedesconfortanteemsuafamiliaridade.

—Estououvindoalgumacoisa—disseela.—Evocê?O olhar de Julian se desviou imediatamente para os irmãos e irmãs. Livvy

estava meio dormindo, o queixo apoiado na mão. Dru olhava em volta, osgrandes olhos verde-azulados assimilando tudo. Ty batucava com o dedo nochãodemármore, contandoobsessivamentedeuma cem, e depois de cema

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um.TinhaberradoeesperneadoquandoJuliantentaraexaminarumvergãonobraçodelequandoTylevaraumtombo.JulesdeixouparaláepermitiuqueTyvoltasse a contar e sebalançar. Issoo acalmava aopontodaquietude, e eraoqueimportava.

—Oque está ouvindo?—perguntou Jules, e a cabeçadeEmma caiuparatrás enquanto o som aumentava, um som como uma grande ventania ou osestalos de uma fogueira enorme. As pessoas começaram a correr e a gritar,olhandoparaotetodevidronoaltodoSalão.

Asnuvensestavamvisíveisatravésdoteto,movendo-sesobreasuperfíciedalua—e então,daquelasmesmasnuvens,umavariedadede cavaleiros eclodiu:cavaleiros de cavalos negros, cujos cascos eram de fogo, cavaleiros sobreenormes cachorros pretos com olhos de fogo alaranjado. Havia formas maismodernas de transportemisturadas também— carruagens pretas conduzidasporesqueletosdecorcéis,emotosbrilhandoemcromo,ossoeônix.

—ACaçadaSelvagem—sussurrouJules.Oventoeraumacoisaviva,chicoteandoasnuvensempicosevalesqueos

cavaleirossubiamedesciam,osgritosaudíveismesmocomaventania,asmãoscheiasdearmas:espadas,bastões,lançasebestas.AsportasdafrentedoSalãocomeçaram a tremer e sacudir; a barra de madeira que tinha sido colocadasobre elas explodiu em farpas. Os Nephilim encararam as portas, com olhosapavorados.Emmaouviuavozdeumadasguardasemmeioàmultidão,falandoemumsussurrosevero:

—ACaçadaSelvagemestáafastandonossosguerreirosdoSalão—disseela.— Os Crepusculares estão limpando o ferro e a terra de cemitério. Vãoarrombarasportasseosguardasnãoselivraremdeles!

— O An trião Furioso chegou — disse Ty, interrompendo brevemente acontagem.—OsColetoresdosMortos.

—MasoConselhoprotegeuacidadecontraasfadas—protestouEmma.—Porque...

—Nãosãofadascomuns—respondeuTy.—Osal,aterradecemitério,oferrofrio;nãofuncionarãocontraaCaçadaSelvagem.

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Drugiroueolhouparacima.—ACaçadaSelvagem?—disse.—IssoquerdizerqueMarkestáaqui?Ele

veionossalvar?— Não seja tola — falou Ty num tom murcho. — Mark está com os

Caçadoresagora,eaCaçadaSelvagemquerquebatalhasaconteçam.Elesvêmreunirosmortos,quandotudoacabar,eosmortosirãoserviraeles.

Dru fez uma careta, confusa. As portas do Salão estavam tremendoviolentamenteagora,asdobradiçasameaçandoarrebentardasparedes.

—MasseMarknãovemnossalvar,quemvem?—Ninguém— respondeuTy, e somente o batuquenervoso dos dedos no

mármoredemonstravaquetalideiaoincomodava.—Ninguémviránossalvar.Vamosmorrer.

Jocelynselançoumaisumavezcontraaporta.Seuombrojáestavamachucadoesangrando,haviapedaçosdeunhasgrudadosnopontoondetinhaarranhadoa tranca. Já estava ouvindo ruídos de batalha há 15 minutos, os sonsinconfundíveisdecorreria,demôniosgritando...

Amaçanetadaportacomeçouagirar.Elarecuouepegouotijoloquetinhaconseguidoarrancardaparede.NãopodiamatarSebastian,dissoelasabia,massepudesseferi-lo,atrasá-lo...

Aportaseabriu,eotijolovooudesuamão.A guranaentradadesviou;otijoloatingiuaparede,eLukeseaprumoueaolhou,curioso.

—Esperoquequandonoscasarmosvocênãomerecebaassimtodososdiasquandoeuvoltarparacasa—disseele.

Jocelyn se jogou em cima dele. Luke estava sujo, sangrando e empoeirado,com a camisa rasgada, uma espada na mão direita, mas o braço esquerdo aenvolveueapuxou.

—Luke—disseelagrudadaaopescoçodele,eporuminstanteachouquepudesse sucumbirdealivio,delírio emedo, assimcomosucumbiranosbraçosdele aodescobrirque ele tinha sidomordido. Se ela tivessepercebidonaquele

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momento, se tivesse entendido que a maneira como o amava era a maneiracomoseamavaaalguémcomquemsequeriapassarorestodavida,tudoteriasidodiferente.

MasaíelanuncateriatidoClary.Elarecuou,olhandonorostodele,osolhosazuisfirmesnosdela.

—Nossafilha?—perguntouJocelyn.—Elaestáaqui—informouele,edeuumpassoparatrásparaqueJocelyn

pudesse enxergar atrás dele, onde Isabelle e Simon aguardavam no corredor.Ambos pareciam muito desconfortáveis, como se olhar dois adultos seabraçando fosse o pior agra do mundo, mesmo nos reinos demoníacos. —Venhaconosco...vamosencontrá-la.

— Não há certeza nisso — respondeu Clary desesperadamente. — OsCaçadoresdeSombraspodemnãoperder.Podemresistir.

Sebastiansorriu.—Éumriscoquevocêpodeassumir—falouele.—Masouça.Elesjáforam

paraAlicante, aqueles que cavalgam os ventos entre osmundos. São atraídosporlugaresondehácarnificina.Compreende?

EleapontouparaajanelaquedavavistaparaAlicante.AliClaryviaoSalãodosAcordos sobo luar; ao fundo,nuvens semovendo inquietasdeum ladoaoutro — e então as nuvens ganharam forma e se transformaram em outracoisa.Algoque ela já tinha vistouma vez, com Jace, deitadano fundodeumbarco emVeneza. A Caçada Selvagem, correndo pelo céu: guerreiros usandoroupas escuras e rasgadas, brandindo armas, uivando enquanto seus corcéisfantasmagóricoscavalgavampelocéu.

—ACaçadaSelvagem—disseela,entorpecida,ederepenteselembroudeMarkBlackthorn,dasmarcasdechicotenocorpodele,dosolhosquebrados.

—OsColetoresdosMortos—declarouSebastian.—Oscorvoscarniceirosdamagia,vãoparaondeestáomassacre.Ummassacrequesóvocêpodeevitar.

Claryfechouosolhos.Teveasensaçãodeestarboiando, utuandoemáguaescura, vendo as luzes da costa retrocederem e retrocederem ao longe. Logo

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estaria sozinha no oceano, o céu gelado acima e 13 quilômetros de escuridãovaziaabaixo.

—Váeassumaotrono—disseele.—Seofizer,podesalvaratodos.Elaolhouparaele.—Comoseiquevocêvaicumprircomapalavra?Eledeudeombros.— Eu seria um tolo se não cumprisse. Você saberia imediatamente que

menti, e aí lutaria contra mim, coisa que não quero. E não é só. Para obterplenamentemeu poder aqui, preciso selar as fronteiras entre estemundo e onosso. Uma vez que as fronteiras forem fechadas, os Crepusculares do seumundo serão enfraquecidos, isolados de mim, a fonte de força deles. OsNephilim poderão derrotá-los. — Ele sorriu, um sorriso branco gélido quecegava.—Seráummilagre.Ummilagreexecutadoparaeles,pornós,pormim.Irônico,nãoacha?Queeusejaoanjosalvador?

—Etodosqueestãoaqui?Jace?Minhamãe?Meusamigos?—Todospoderãoviver.Nãofazdiferençaparamim.Nãopodemmeferir,

nemagora,emuitomenosdepois,quandoasfronteirasestiveremfechadas.—Etudoquetenhoquefazeréascenderaotrono—confirmouClary.— E prometer car aomeu lado enquanto eu viver. Que, vale dizer, será

muito tempo. Quando este mundo for isolado, não me tornarei apenasinvulnerável;vouviverparasempre.“Eveja,estouvivoparasempre,edetenhoaschavesdoinfernoedamorte.”

— Está disposto a fazer isso? Abrir mão do mundo inteiro, dos seusCaçadoresdeSombrasmalignos,dasuavingança?

— Estava começando a me entediar — disse Sebastian. — Isto é maisinteressante.Parasersincero,vocêtambémestácomeçandoameentediarumpouco.Decidasevaisubiraotronoounão,sim?Ouprecisadepersuasão?

ClaryconheciaosmétodosdepersuasãodeSebastian.Facassobunhas,mãonagarganta.Partedelaqueriaqueeleamatasse,tirassedelaopesodadecisão.Ninguémpodiaajudá-la.Nessecaso,estavacompletamentesozinha.

— Não serei o único a viver eternamente — falou Sebastian, e, para a

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surpresadeClary,comavozquasegentil.—DesdequedescobriuoMundodasSombras,vocênãodesejousecretamenteserumaheroína?Seramaisespecialdentre os especiais? De certa forma, nós queremos ser os heróis da nossaespécie.

—Heróissalvammundos—disseClary.—Nãoosdestroem.— E eu estou lhe oferecendo esta chance — argumentou Sebastian. —

Quandosubiraotrono,vocêsalvaráomundo.Salvaráseusamigos.Terápoderilimitado. Estou lhe dando um presente incrível, porque te amo. Você podeabraçar a própria escuridão e aomesmo tempo sempre repetir a si que fez acoisacerta.Issonãoétudoquevocêdeseja?

Clary fechou os olhos durante um segundo, e depois mais um. Apenas obastante para ver os rostos piscando sob suas pálpebras: Jace, Jocelyn, Luke,Simon, Isabelle, Alec. E tantos outros: Maia e Raphael e os Blackthorn, apequena Emma Cartairs, as fadas da Corte Seelie, os rostos da Clave, atémesmoalembrançafantasmagóricadeseupai.

Elaabriuosolhosecaminhouemdireçãoao trono.OuviuSebastian,atrásdesi,erespiroufundo.Então,apesardetodaacertezanavoz,eletevedúvida,não teve?Nãocon avaplenamentenadecisãodela.Atrásdos tronos,asduasjanelas piscavam como telas de TV: uma mostrando a destruição, a outramostrandoAlicantesendoatacada.ClaryviulampejosdointeriordoSalãodosAcordosaoalcançarosdegrausesubi-los.Seguiucom rmeza.Tinhatomadosuadecisão;nãopodiahesitar agora.O tronoera enorme; era como subir emumaplataforma.Oouroerageladoaotato.Elasubiuoúltimodegrauesentou-se.

Pareciaestarolhandoparabaixo,aquilômetrosdotopodeumpicodeumamontanha. Viu o Salão do Conselho se espalhar diante de si; Jace, deitadoimóvel perto da parede. Sebastian, olhando para ela com um sorriso que seabria.

—Muitobem—falouele.—Minhairmã,minharainha.

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23OBeijodeJudas

AsportasdoSalãoexplodiramcomumachuvadefarpas;cacosdemármoreemadeiravoandoparadentrocomoossoestilhaçado.

Emma olhou entorpecida enquanto guerreiros vestidos de vermelhocomeçavama invadiroSalão, seguidospor fadasdeverde,brancoeprateado.Depois vieram os Nephilim: Caçadores de Sombras com roupas pretas decombate,desesperadosparaprotegersuascrianças.

Uma onda de guardas correu para encontrar os Crepusculares na porta.Foramtodoscontidos.Emmaosobservoucaindonoquepareciacâmeralenta.Ela sabia que tinha se levantado, assim como Julian, colocando Tavvy nosbraçosdeLivia;amboscorreramparaprotegerosBlackthornmais jovens,pormaisinútilqueEmmasoubessequeogestofosse.

Éassimqueacaba,pensouela.TinhamescapadodosguerreirosdeSebastianemLosAngeles,fugidoparaacasadosPenhallow,edacasadestesparaoSalãoe agora se encontravam presos como ratos e iriam morrer ali; sendo assim,talvezelesnemprecisassemterfugido.

ElaalcançouCortana,pensandonopai,noqueelediriacasoeladesistisse.Carstairs. Carstairs não desistiam. Sofriam e sobreviviam, oumorriam de pé.Aomenossemorresse,pensou,veriaospaisnovamente.Aomenosteriaisso.

OsCrepusculares invadiramo recinto, dividindoosCaçadores de Sombrasque lutavam desesperadamente como lâminas cortando um campo de trigo,correndoparaocentrodoSalão.Pareciamumborrãosanguinário,noentantoavisãodeEmmaentrouemfocoderepentequandoumdelessedesvencilhoudamultidãoefoidiretamenteparaondeosBlackthornestavam.

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EraopaideJulian.Seu período como servo de Sebastian não lhe zera bem. A pele parecia

desgastada e cinzenta, o rosto marcado por cortes sangrentos, no entantoavançavacomdeterminação,osolhosnosfilhos.

Emmacongelou. Julian, ao seu lado, tinhavistoopai; pareciahipnotizado,comoseseupaifosseumacobra.ElehaviatestemunhadoopaisendoobrigadoabeberdoCáliceInfernal,Emmasedeuconta,porémnãooviradepois,nãooviraergueruma lâminacontraopróprio lho,ourircoma ideiadamortedofilho,ouobrigarKaterinaaseajoelhar,asertorturadaeTransformada...

—Jules—disseela.—Jules,essenãoéseupai...Julianarregalouosolhos.—Emma,cuidado...Elagirouegritou.Umguerreirofadaseassomavadiantedela,trajandouma

armadura prateada; seus cabelos não eram cabelos, mas um emaranhado degalhos espinhosos.Metade do rosto estava queimado e borbulhante, onde eleprovavelmente fora atacado com pó de ferro ou halita. Um de seus olhosrevirava, branco e cego, mas o outro encontrava-se xo em Emma, comintençõesassassinas.EmmaviuDianaWrayburn,oscabelosescurossacudindoenquanto ela girava em direção a eles, a boca aberta em um grito de alerta.DianafoiparacimadeEmmaedoguerreirofada,masnãotinhacomochegaratempodejeitonenhum.Oguerreirofadaergueusuaespadadebronzecomumrosnadoselvagem...

Emmaavançou,enterrandoCortananopeitodele.O sangue do fada era como água verde. Esguichou namão dela enquanto

soltava a espada, em choque. Ele caiu comouma árvore, atingindo o chão demármore do Salão com uma batida pesada. Emma pulou para a frente,alcançandoocabodeCortana,eouviuJuliangritar:

—Ty!Elagirou.EmmeioaocaosdoSalão,Emmaconseguiuveropequenoespaço

onde estavam os Blackthorn. Andrew Blackthorn parou na frente dos lhos,comumsorrisoestranho,eestendeuamão.

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E Ty — justamente Ty, dentre todos, o que menos con ava, o menossentimental — estava avançando, com os olhos xos no pai, a mãozinhaesticada.

—Pai?—disseele.—Ty?—Liviatentoualcançarseuirmãogêmeo,massegurouapenasar.—

Ty,não...—Nãodêouvidosaela—disseAndrewBlackthorn,e sehaviadúvidasde

que ele não era mais o homem que tinha sido pai de Julian, tal dúvida foisolucionadaquandoEmmaouviuavozdele.Nãohaviaqualquerbondadenela,apenas gelo, e um tom selvagem de satisfação cruel. — Venha aqui, meumenino,meuTiberius...

Tydeumaisumpasso,eJulianpuxouaespadacurtadocinto,entãoaatirou.A espada chiou pelo ar, reta e determinada, e Emma se lembrou com umaclarezabizarradaqueleúltimodiano Instituto,deKaterinaensinandoaatiraruma lâmina tão direta e graciosa quanto um verso de poesia. Ensinando aarremessarumalâminademodoqueestajamaiserrasseoalvo.

AfacapassouporTiberiuseseenterrounopeitodeAndrewBlackthorn.Osolhosdelesearregalaramemchoque,amãocinzatateandoembuscadocaboressaltadode suascostelas—eemseguidaele caiu, sucumbindoaochão.SeusanguemanchavaochãodemármorequandoTiberiussoltouumgrito,girandoparaatacaroirmão,socandoopeitodeJulian.

—Não—arfouTy.—Porquefezisso,Jules?Euteodeio,euteodeio...Julianmal pareceu sentir. Estava olhando para o local onde seu pai havia

caído;osoutrosCrepuscularesjáestavamavançando,pisoteandoocorpodeseucamarada abatido. Diana Wrayburn estava um pouco distante dali: tinhacomeçadoacorreremdireçãoàscrianças,mas logoparou,osolhoscheiosdetristeza.

MãosseelevarameagarraramascostasdacamisadeTiberius,puxando-odecimadeJulian.EraLivvy,comorostorígido.

— Ty. — Ela abraçou o irmão gêmeo, prendendo os punhos do meninojuntoàs lateraisdocorpodele.—Tiberius,pareagora.—Typarouedesabou

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emcimada irmã; emborapequena, ela aguentouopeso.—Ty— falououtravez,suavemente.—Eleprecisavafazerisso.Nãoentende?Eleprecisava.

Julian deu um passo para trás, o rosto branco como papel, daí continuourecuando, até atingir um dos pilares de pedra e deslizar por ele, caindo, osombrostremendocomsoluçossilenciosos.

Minhairmã.Minharainha.Clary sentou-se ereta no trono de ouro e mar m. Sentiu-se como uma

criança em uma cadeira de adulto: aquilo tinha sido construído para alguémenorme,entãoseuspés cavampendurados,pairandosobreodegrausuperior.Suas mãos agarraram os braços do trono, os seus dedos estavam longe dealcançar os apoios entalhados — embora, como cada um era esculpido emformadecrânio,elanãotivesseomenordesejodetocá-los.

Sebastiancaminhavademaneirainquietadentrodeseucírculodesímbolosprotetores;devezemquandoparavaparaolharparaelae sorria,umaespéciedesorrisodesinibidoealegre,oqualelaassociavaaoSebastiandesuavisão,omeninodeolhosverdesinocentes.Elesacouumaadagalongaea adadocintoenquantoClaryoassistiaepassoualâminanapalma.Suacabeçacaiuparatrás,osolhossemicerradosenquantoeleesticavaamão;sangueescorreupelosdedosecaiusobreossímbolos.

Ao serematingidospelo sangue, eles começaramabrilhar comuma faíscado alvorecer. Clary pressionou o corpo contra o encosto sólido do trono. OssímbolosnãoeramsímbolosdoLivroGray;eramdesconhecidoseestranhos.

A porta do cômodo se abriu, e Amatis entrou, seguida por duas las deguerreiros Crepusculares. Os rostos eram vazios enquanto eles se postavamsilenciosamenteao longodasparedesdasala,masAmatispareciapreocupada.SeuolharpassouporJace,imóvelnochãoaoladodocorpododemôniomorto,paraseconcentraremseumestre.

—LordeSebastian—disseela.—Suamãenãoestánacela.Sebastianfranziuorostoecerrouamãosangrenta.Àsuavolta,ossímbolos

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ardiamfuriosamenteagora,comumachamafriaeazul.—Vergonhoso—falou.—Osoutrosdevemtê-lasoltado.Clary sentiu uma onda de esperança misturada com pavor; forçou-se a

permaneceremsilêncio,masviuosolhosdeAmatissevoltaremparaela.NãopareceusurpresaemverClarynotrono:pelocontrário,seuslábiossecurvaramemumsorriso.

— Gostaria que eu enviasse o restante do exército para procurá-los? —perguntouaSebastian.

—Nãohánecessidade.—EleolhouparaClarye sorriu;de repentehouveumruídoexplosivoeajanelaatrásdela,aquelacomvistaparaAlicante,rachouemuma teiadearanhade linhasconfusas.—As fronteirasestãose fechando—disseSebastian.—Voutrazê-losamim.

—Asparedesestãosefechando—comentouMagnus.AlectentoulevantarMagnusmaisainda;ofeiticeiropesava,acabeçaquase

no ombro de Alec, que não fazia a menor ideia de para onde estavam indo.Tinhaseperdidonoscorredorescurvosháoqueparecia séculos,maselenãoestava comamenor vontade de comunicar isto aMagnus, que por sua vez jáparecia mal o su ciente como estava — a respiração ofegante, o pulsoacelerado.Eagoraisto.

—Estátudobem—acalentouAlec,passandoobraçoemtornodacinturadeMagnus.—Sótemosquechegara...

—Alec—repetiuMagnus, a voz surpreendentemente rme.—Não estoutendoalucinações.Asparedesestãosemexendo.

Alecencarou—esentiuumaondadepânico.Ocorredorestavacarregadocomumarpesadoeempoeirado;asparedespareciambrilharetremer.Ochãosedeformavaàmedidaqueasparedessefechavam,ocorredorseestreitandoapartirdeumapontacomoumcompressordelixosefechando.Magnusdeslizoueatingiuumadasparedescomumsibilodedor.Empânico,Alecopegoupelobraço,puxando-o.

— Sebastian— arfouMagnus, enquanto Alec começava a arrastá-lo pelo

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corredor,paralongedapedraemqueda.—Eleestáfazendoisto.Alecconseguiufazerumaexpressãoincrédula.—Comoissoseriapossível?Elenãocontrolatudo!— Ele poderia... se selasse as fronteiras entre as dimensões. — Magnus

tomoufôlegoasperamentequandocomeçouacorrer.—Poderiacontrolarestemundotodo.

Isabellegritouquandoochãoseabriuatrásdela;jogou-separaafrente,bematempodeevitarcairnoabismoquedividiaocorredor.

—Isabelle!—gritouSimon,eseesticouparapegá-lapelosombros.Ele às vezes se esquecia da força que seu sangue de vampiro fazia circular

pelo corpo. Pegou Isabelle com tanta força que ambos caíram para trás, Izzycaindo bem em cima dele. Em outro contexto talvez ele tivesse gostado,masnãocomapedraquenãoparavadedesmoronaraoredordeles.

Isabelle se levantou, puxando-o em seguida. Tinham se perdido de Luke eJocelynemumdosoutroscorredoresenquantoaparedesedividia,derramandopedras de argamassa em sequência. Tudo que veio a seguir foi uma loucura,desviodepedrasemadeirasa adas,eagoraabismosseabrindonochão.Simonlutava contra o desespero—não conseguia deixar de pensar que aquilo era om;afortalezairiasucumbiraoredor,etodosmorreriameseriamenterrados

ali.—Não—falouIsabelle,semfôlego.Seuscabelosescurosestavamcheiosde

terra,o rosto sangrandonospontosonde tinhasidocortadoporestilhaçosderocha.

—Nãoo quê?—O chão tremeu e Simonmeio desviou,meio caiu para afrente em outro corredor.Não conseguia se livrar do pensamento de que, dealgum jeito, a fortaleza os estavaarrebanhando. Parecia haver um propósitonaqueladissolução,comosedealgumjeitoosestivessedirecionandopara...

—Nãodesista—arfouela,lançando-secontraumpardeportasenquantoocorredor atrás deles começava a ruir; as portas se abriram, e ela e Simontropeçaramparaasalaseguinte.

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Isabelle engoliu em seco, engasgando, gesto rapidamente interrompidoquando as portas se fecharam atrás deles, bloqueando o barulho explosivo datorre.PoruminstanteSimonapenasagradeceuaDeuspelochãosobseuspésestarfirmeeasparedesnãosemoverem.

Entãoregistrouondeestava,eoalíviodesapareceu.Encontravam-seemumasala enorme, com formato semicircular, com uma plataforma elevada naextremidadecurva semi-imersaemsombra.Asparedesestavamalinhadasporguerreiros Crepusculares trajando vermelho, como uma leira de dentesescarlates.

Asala fediaapichee fogo,enxofreeoveneno inconfundíveldesanguededemônio.Ocorpodeumdemônioinchadoestavaesticadocontraumaparedee,aoladodeste,maisumcorpo.Simonsentiuabocasecar.Jace.

Sebastianestavaemumcírculodesímbolosbrilhantesdesenhadonochão.Ele sorriuquandoIsabelle soltouumgrito, correupara Jaceeagachouao ladodele. Izzy colocou os dedos no pescoço dele, para sentir a pulsação; Simonnotouosombrosdelarelaxandodealívio.

—Eleestávivo—disseSebastian,soandoentediado.—OrdensdaRainha.Isabelle levantou o olhar. Alguns chumaços do seu cabelo escuro estavam

grudadosnorostocomsangue.Elaestavaferozelinda.—ARainhaSeelie?DesdequandoelaseimportacomJace?Sebastianriu.Pareciaemumbomhumorenorme.—NãoaRainhaSeelie—disseele.—ARainhadestereino.Talvezvocêa

conheça.Comum oreioelegesticulouparaaplataformanaextremidadeopostado

salão, e Simon sentiu seu coração que não batia se contrair. Ele mal tinhaolhado para o palanque quando entrara. Agora percebia que ali havia doistronosdeosso,marfimeourofundido,enotronodireitoestavaClary.

Oscabelosruivoscontrastavamcontraobrancoeodourado,extremamentevívidos, como uma bandeira de fogo. Seu rosto estava pálido e parado, semexpressão.

Simon deu um passo involuntário para a frente — e foi imediatamente

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bloqueadoporumadúziadeguerreirosCrepusculares, comAmatisnocentro.Ela segurava com uma lança enorme e ostentava uma expressão venenosaassustadora.

— Pare onde está, vampiro— ordenou.—Você não vai se aproximar dasenhoradestereino.

Simon cambaleou para trás; havia notado Isabelle olhando, incrédula, deClaryparaSebastian,eparaele.

—Clary— gritou Simon. Ela não vacilou nem semexeu,mas o rosto deSebastianescureceucomoumatempestade.

— Não dirás onome da minha irmã — sibilou. — Você achava que elapertenciaavocê;elaagorapertenceamim,enãovoudividir.

—Vocêélouco—disseSimon.—Evocêestámorto—respondeuSebastian.—Issofazdiferençaagora?—

SeusolhospercorreramSimon.—Queridairmã—disseele,elevandoavozobastante para que toda a sala pudesse escutar. — Tem certeza de que quermanterestesujeitinhointacto?

Antes que ela pudesse responder, a porta de entrada da sala se abriu eMagnuseAlecchegaram,seguidosporLukeeJocelyn.Asportasbateramatrásdeles, e Sebastian aplaudiu.Uma dasmãos sangrava, e uma gota caiu aos pésdele,chiandoaoatingirossímbolos,comoáguaemumachapaquente.

—Agoraestãotodosaqui—declarou,comavozemdeleite.—Éumafesta!

Clary já tinha vistomuitas coisasmaravilhosas e lindas em sua vida, emuitascoisas terríveis também.Masnenhumatão terrívelquantooolhardesuamãequandoaencarou,sentadanotronoaoladodoassentodeSebastian.

—Mãe—arfouClary,tãosuavementequeninguémconseguiuouvi-la.Todosaencaravam;MagnuseAlec,Lukeesuamãe,Simone Isabelle,que

agora tinha Jaceemseucolo,os cabelos escuros caindoemcimadele comoafranjadeumxale.EratãohorrívelquantoClary imaginaraqueseria.Pior.Elaesperava choque e horror; não tinha pensado em dor e traição. Sua mãecambaleouparatrás;osbraçosdeLukeaenvolveram,paramantê-ladepé,mas

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eleestavacomosolhosemClary,epareciaolharparaumaestranha.—Bem-vindos,cidadãosdeEdom—disseSebastian,os lábiossecurvando

paracimacomoumarcosendosacado.—Bem-vindosaoseunovomundo.E saiu do círculo de fogo que o protegia. Amão de Luke foi para o cinto;

Isabellecomeçouaselevantar,masfoiAlecquemsemovimentoumaisrápido:umadasmãosnoarcoeaoutranaaljavanascostas,a echaarmadaevoandoantesqueClarypudessegritarparaqueeleparasse.

A echa voou diretamente para Sebastian e se enterrou em seu peito. Elecambaleoucoma forçado impacto, eClaryouviuumarfar coletivona ladeCaçadores de Sombras malignos. Um instante depois, Sebastian recobrou oequilíbrio e, com um olhar de irritação, arrancou a echa do peito. Estavamanchadadesangue.

—Tolo—berrou.—Nãopodemeferir;nadasoboParaísopode.—JogouaflechaaospésdeAlec.—Achouquevocêfosseumaexceção?

OsolhosdeAlecdesviaramparaJace;foiumacoisamínima,masSebastiancaptouoolharesorriu.

— Ah, sim— falou.— Seu herói com o fogo celestial. Mas acabou, nãoacabou?Gastouemumataquedefúrianodesertocontraumdemônioenviadopormim.—Eleestalouosdedos,eumafaíscaazulselançoudele,seerguendocomoumabruma.

Por um instante, a visão de Clary de Jace e Isabelle foi obscurecida; umsegundomaistarde,elaouviuumatossidaeumengasgo,eosbraçosdeIsabelleestavamseafastandodeJaceenquantoelesesentavae,emseguida, levantava.Atrás de Clary, a janela continuava rachando, lentamente; dava para ouvir atrituraçãodovidro.Atravésdovidroagora rachadopenetravaumacamadadeluzesombra,odesenhosemelhantearenda.

— Bem-vindo de volta, irmão — disse Sebastian, calmo, enquanto Jaceolhavaemvolta comumrostoqueempalidecia rapidamenteàmedidaqueeleabsorvia a sala cheia de guerreiros, seus amigos horrorizados ao redor, enalmente:Clarynotrono.—Você gostariadetentarmematar?Temarmaso

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su cienteaqui.Sequisertentarmedestruircomofogocelestial,suachanceéagora.

Jace cou de pé, encarando Sebastian. Tinham a mesma altura, quase omesmo biotipo, embora Sebastian fosse mais magro, mais rijo. Jace estavaimundo e manchado de sangue, a roupa rasgada, os cabelos emaranhados.Sebastian estava elegante de vermelho; mesmo a mão que sangrava pareciaintencional.OspulsosdeSebastianestavamnus;aoredordopulsoesquerdodeJace,umcírculodepratabrilhava.

— Está usando minha pulseira — observou Sebastian. — “Se não possoalcançaroCéu,erguereioInferno”.Adequado,nãoacha?

—Jace—sibilouIsabelle.—Jace,váemfrente.Dêumapunhaladanele.Váemfrente...

Mas Jace balançava a cabeça. Estava com a mão no cinto de armas;lentamente,aabaixouparaolado.Isabellesoltouumgritodedesespero;oolharno rosto de Alec foi tão gélido quanto, muito embora ele tivesse cado emsilêncio.

Sebastianabaixouosbraçosparaaslateraiseestendeuamão.—Achoqueéhoradedevolverminhapulseira,irmão.HoradedaraCésar

oqueédeCésar.Devolvaoqueémeu, inclusiveminha irmã.Renunciaa elaemmeufavor?

— Não! — Não foi Jace; foi Jocelyn. Ela se afastou de Luke e avançou,esticandoasmãosparaSebastian.—Vocêmeodeia...entãomemate.Torture.Façaoquequisercomigo,masdeixeClaryempaz!

Sebastianrevirouosolhos.—Euestoulhetorturando.—Elaésóumamenina—arfouJocelyn.—Minhacriança,minhafilha...SebastianesticouamãoeagarrouoqueixodeJocelyn,meiolevantando-ado

chão.—Euerasuacriança—falou.—Lilithmedeuumreino;vocêmedeuuma

maldição.Vocêéumapéssimamãeevai carlongedaminhairmã.Vocêestáviva pelo sofrimento dela. Todos vocês estão. Entenderam? — Ele soltou

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Jocelyn; ela cambaleou para trás, a impressão sangrenta damão de Sebastianmarcadaemseurosto.Lukeasegurou.—EstãotodosvivosporqueClarissaosquervivos.Pornenhumoutromotivo.

—Vocêdisse a ela quenãonosmataria caso ela subisse ao trono—disseJace,tirandoapulseiraprateadadobraço.Semqualquerentonaçãonavoz.NãotinhaolhadonosolhosdeClary.—Nãofoi?

—Não exatamente— disse Sebastian.—Ofereci a ela algomuitomais...substancialqueisso.

—Omundo—disseMagnus.Elepareciadepéporpuraforçadevontade.Suavozsoavacomocascalhorasgandoagarganta.—Estáselandoasfronteirasentre o nosso mundo e este, não está? É para isso que fez esse círculo desímbolos,nãoapenasparaproteção.Parapoderexecutarseufeitiço.Éissoqueestá fazendo. Se fechar a passagem, não estará mais dividindo seus poderesentre doismundos. Toda sua força cará concentrada aqui. Com todo o seupoderconcentradonestadimensão,vocêseráquaseinvencívelaqui.

— Se fechar as fronteiras, como ele voltará para o nosso mundo? —perguntou Isabelle. Ela estavadepé agora; seu chicote brilhavanopulso,maselanãofezqualquermençãodeutilizá-lo.

—Ele não vai voltar—disseMagnus.—Nenhumde nós vai.Os portõesentreosmundossefecharãoparasempre,eficaremospresosaqui.

—Presos— re etiuSebastian.—Umapalavra tão feia. Serão... hóspedes.—Elesorriu.—Hóspedespresos.

—Foiissoquevocêofereceuaela—falouMagnus,erguendoosolhosparaClary.—Dissequeseelaconcordasseemgovernarestemundo,vocêfechariaas fronteiras edeixarianossomundoempaz.GoverneEdom, salveomundo.Certo?

—Vocêémuitoperceptivo—observouSebastianapósumabrevepausa.—Issoéirritante.

—Clary,não!—gritouJocelyn;Lukeapuxoudevolta,maselanãoestavaprestandoatençãoemnadaalémdafilha.—Nãofaçaisso...

—Tenhoque fazer— respondeuClary, falandopela primeira vez.Coma

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voz embargada e arrastada, incrivelmente alta na sala de pedra. De repentetodos estavamolhandopara ela.Todos exceto Jace.Eleolhavapara apulseirapresaentreseusdedos.

Elaseaprumou.—Preciso fazer.Não entende? Se não zer, ele vaimatar todos no nosso

mundo. Destruir tudo. Milhões, bilhões de pessoas. Vai transformar nossomundonisto. — Ela gesticulou para a janela com vista para as planíciesqueimadas deEdom.—Vale a pena.Temque valer.Vou aprender a amá-lo.Elenãovaimemachucar.Acreditonisso.

— Acha que pode mudá-lo, moldá-lo, torná-lo melhor, porque você é aúnica coisa com a qual ele se importa — falou Jocelyn. — Euconheço oshomensMorgenstern.Nãofunciona.Vocêvaisearrepender...

— Você nunca teve a vida de ummundo inteiro nas mãos, mãe— disseClary, com uma doçura e uma tristeza in nitas.— Existe um limite para osconselhosquevocêpodemedar.—ElaolhouparaSebastian.—Escolhooqueeleescolhe.Opresentequeelemedeu.Aceito.

Ela viu Jace engolir em seco. Ele derrubou a pulseira na mão aberta deSebastian.

—Claryésua—disse,edeuumpassoparatrás.Sebastianestalouosdedos.— Vocês ouviram — falou. — Todos vocês. Ajoelhem-se diante da sua

rainha.Não!, pensou Clary, mas se obrigou a car parada, em silêncio. Assistiu

enquanto os Crepusculares começavam a se ajoelhar, um por um, as cabeçasabaixadas;aúltimaaseajoelharfoiAmatis,noentantoelanãobaixouacabeça.Luke encarava a irmã, com o rosto destruído. Era a primeira vez que a viaassim,percebeuClary,apesardeelejátersidoinformado.

AmatisviroueolhouparaosCaçadoresdeSombras.Oolhardelacapturouodoirmãoporapenasumsegundo;elasorriu.Umolharvil.

—Faça—disseela.—Ajoelhe-seouvoumatá-los.Magnusfoioprimeiroaseajoelhar.Setivessedepalpitar,Claryjamaisdiria

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que ele seria o primeiro a fazê-lo.Magnus era tão orgulhoso,mas, pensandobem, eraumorgulhoque transcendiaovaziodosgestos.Eladuvidavaque elefosseseenvergonhardeseajoelharquandoparaeleaquilonãosigni cavanada.Eleseajoelhougraciosamente,eAlecseguiuogesto;depoisIsabelle,Simon,emseguidaLuke,puxandoamãedeClaryaoseulado.Eporúltimo,Jace,acabeçalouraabaixada;entãoClaryouviuajanelaatrásdesiestilhaçar.Sooucomoseucoraçãosepartindo.

Choveuvidro;portrásdestehaviaapenaspedra.NãomaisumajanelacomvistaparaAlicante.

— Está feito. Os caminhos entre osmundos estão fechados.— Sebastiannãoestavasorrindo,masparecia...incandescente.Comosebrilhasse.Ocírculodesímbolosnochãoreluziacomfogoazul.Elecorreuparaaplataforma,subiudois degraus de cada vez e esticou o braço para pegar as mãos de Clary; elapermitiu que ele a conduzisse, descendo do trono, até car diante dele.Sebastiancontinuavasegurandoamãodela.Asmãosdelepareciampulseirasdefogoao redordospulsosdeClary.—Você aceita—disse ele.—Você aceitasuaescolha?

—Aceito—respondeu,seforçandoaolhardiretamenteparaele.—Aceito.—Entãomebeije—falouele.—Beijecomosemeamasse.OestômagodeClary se contraiu.Esperavapor isso,masera comoesperar

umsoconacara:nãotemjeitodesesentirpreparado.Orostodelainvestigouodele;emoutromundo,outraépoca,outro irmãosorriapelogramadoparaela,comolhostãoverdesquantoaprimavera.Elatentousorrir.

—Nafrentedetodomundo?Nãoachoque...— Temos que mostrar a eles — falou, e seu rosto estava tão impassível

quantoodeumanjopronunciandouma frase.—Que somosunidos.Proveaeles,Clarissa.

Elaseinclinouparaele;Sebastianestremeceu.—Porfavor—disseela.—Ponhaosbraçosemvoltademim.Ela captou um lampejo de alguma coisa nos olhos dele— vulnerabilidade,

surpresapelopedido—antesdeSebastianerguerosbraçoseenvolvê-la.Elea

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puxoupara si; elacolocouamãonoombrodele.Aoutramãodeslizouparaacintura, onde Heosphoros estava guardada na bainha, no cinto da roupa decombate. Seus dedos se curvaramnanuca do irmão. Sebastian estava comosolhos arregalados; dava para ver as batidas do coração dele, pulsando nagarganta.

—Agora,Clary—disseele,enquantoelasearqueava,roçandooslábiosnorosto dele. Clary o sentiu estremecer enquanto ela sussurrava, os lábiosacariciandoabochechadele.

— Saudações, mestre — falou ela, e viu os olhos dele arregalaremexatamente quando sacou Heosphoros e a levantou em um arco brilhante, alâminatocandoascostelasdele,apontaposicionadaparaperfurarseucoração.

Sebastian arfou e convulsionou nos braços dela; cambaleou, o cabo dalâmina ressaltando de seu peito. Estava com os olhos arregalados, e por uminstanteClaryviuochoquedatraiçãoneles,choquee dor,edefatodoeu;doeuem algum lugar profundo que ela pensara já estar enterradohámuito tempo,umlugaremlutopeloirmãoqueelepoderiatersido.

— Clary — arfou ele, começando a se ajeitar, e agora o olhar de traiçãoestavadesvanecendo,eelaviua faísca inicialde fúria.Não funcionou,pensouela, horrorizada; não funcionou, emesmo que as fronteiras entre osmundosestivessemfechadasagora,eledescontarianela,emseusamigos,emsuafamília,em Jace. — Vocêémais esperta que isso — falou ele, esticando o braço parasegurar o cabo da espada.—Não posso ser ferido por nenhuma arma sob oCéu...

Ele engasgou e parou de falar. As mãos envolviam o cabo, logo acima doferimentonopeito.Nãohavia sangue,masum lampejo vermelho, uma faísca—fogo.Oferimentoestavacomeçandoaqueimar.

—Oque...é...isto?—perguntouentredentes.—“E a ele darei a Estrela daManhã”— disse Clary.—Não é uma arma

feitapeloCéu.Éfogocelestial.Comumgrito,Sebastianpuxouaespada.Deuumaolhadaincrédulaparao

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cabocomaestampadeestrelasantesdeardercomoumalâminasera m.Clarydeu alguns passos vacilantes para trás, tropeçou na beira dos degraus para otronoecobriuorostoparcialmentecomumbraço.Eleestavaardendo,ardendocomo o pilar de fogo diante dos israelitas. Ela ainda conseguia ver Sebastiandentrodaschamas,maselasestavamemvoltadele,consumindo-oemsua luzbranca, transformando-o em um contorno de carvão escuro dentro de umachamatãobrilhantequelheferiaosolhos.

Clarydesviouoolhar,enterrandoorostonobraço.AmenteacelerouparaanoiteemquefoiaoencontrodeJaceatravésdaschamas,obeijouepediuqueele con assenela.E ele con ou,mesmoquando ela se ajoelhoudiantedele een ouapontadeHeosphorosnochão.Clary tinhadesenhadocomaestelaomesmosímbolorepetidasvezesaoredor—osímboloqueviraumavez,equeagoraparecia ter sidohá tanto tempo, emum telhado emManhattan:o caboaladodaespadadeumanjo.

Um presente de Ithuriel, supôs ela, o qual lhe dera tantos presentes. Aimagem couguardadaemsuamenteatéqueprecisassedela.O símboloparamoldarofogocelestial.Naquelanoite,naplaníciedemoníaca,achamaaoredordeles evaporou, absorvida pela lâmina de Heosphoros, até o metal queimar,brilhar e cantar ao toque dela, o som dos corais angelicais. O fogo deixouapenasumcírculolargodeareiafundidaemvidro,umasubstânciaquebrilhavacomoasuperfíciedolagocomoqualelasonharatantasvezes,olagocongeladoondeJaceeSebastianlutavamatéamorteemseuspesadelos.

EstaarmapoderiamatarSebastian ,disseraela. Jace,porsuavez, foramaiscauteloso,maisdescon ado.Eleatétentaratiraraarmadela,noentantoaluznalâminamorreuassimqueeleatocou.Reagiasomenteaela,acriadora.Claryconcordaraqueteriamquesercautelososcasonãofuncionasse.PareciaoápicedahúbrisimaginarqueelahaviaprendidofogosagradonalâminadaGloriosa...

Masoanjo lhedeuestedomde criar , dissera Jace.Enão temos seu sangueemnossasveias?

Qualquer que tivesse sido o cântico da lâmina, agora já havia passado,entradono irmão.ClaryouviuSebastiangritandoe,acimadeste,osgritosdos

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Crepusculares.Umventoardentesoprouporela,carregandoconsigoocheirode desertos antigos, de um lugar onde milagres eram comuns e o divino semanifestavaemfogo.

O ruídoparou tão súbitoquanto começou.Opalanquebalançou sobClaryenquantoumpesocaíaemcimadele.Clarylevantouacabeçaeviuqueofogohavia se extinguido, e embora o chão estivesse marcado e ambos os tronosparecessemqueimados,oouronelesnãoeramaisbrilhante,esimcarbonizado,queimadoederretido.

SebastianestavadeitadoaalgunscentímetrosdeClary,decostas.Haviaumgrande buraco enegrecido em seu peito. Ele virou a cabeça para ela, o rostotensoepálidodedor,eocoraçãodeClarycontraiu.

Osolhosdeleestavamverdes.Aspernasdelabambearam.Clarycaiudejoelhosnopalanque.— Você — sussurrou ele, e ela o encarou com um fascínio horrorizado,

incapaz de desviar o olhar do que havia forjado. O rosto dele estavacompletamente semcor, comopapel esticadosobreosso.Elanãoousouolharparaopeitodele,ondeocasacohaviacaído;davaparaveramanchanegranacamisa,comoumaqueimaduradeácido.—Vocêcolocou...ofogocelestial...nalâminadaespada—falou.—Foi...inteligente.

—Foiumsímbolo,sóisso—respondeuela,ajoelhandopertodele,osolhosinvestigandoosdeSebastian.Elepareciadiferente,nãosóosolhos,mastodooformato do rosto, a mandíbula mais suave, a boca sem o sorriso cruel. —Sebastian...

—Não.Nãosouele.Sou...Jonathan—sussurrou.—SouJonathan.— Vão até Sebastian! — Amatis gritou se levantando, com todos os

Crepusculares em seu encalço. Havia dor no rosto dela, e raiva.—Matem agarota!

Jonathanseesforçavaparasentar.—Não!—gritou,rouco.—Paratrás!Os Caçadores de Sombras malignos, que tinham começado a avançar,

congelaram,confusos.Emseguida,passandoporeles,veioJocelyn;passoupor

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Amatis, empurrando-a, semsequerolhá-la, e subiuas escadas atéopalanque.FoiemdireçãoaSebastian—Jonathan—eemseguidaparou,depépertodele,encarando-ocomumolhardeassombro,misturadoaumpavorhorroroso.

—Mãe?— disse Jonathan. Ele estava olhando xamente, quase como senãoconseguissefocaroolharnela.Começouatossir.Osanguelheescorriadaboca.Arespiraçãoruidosanospulmões.

Àsvezes sonho comummeninodeolhosverdes,ummeninoque jamais foienvenenadocomsanguedemoníaco,ummeninocapazderir,deamaredeserhumano,efoiporessemeninoquechorei,masessemeninonuncaexistiu.

OrostodeJocelynenrijeceu,comoseelaestivessesepreparandoparafazeralguma coisa.Ajoelhou-se ao lado da cabeça de Jonathan e o puxou para seucolo.Clary couolhando;nãoacreditavaqueelafossecapazdaquilo.Detocá-lodaquelejeito.Mas,pensandobem,suamãesempreseculparapelaexistênciadeJonathan.Haviaalgoemsuaexpressãodeterminadaquediziaqueelaotinhatrazidoaomundo,eelaomandariaembora.

AssimqueJonathanfoi levantado,arespiraçãodeleseacalmou.Haviaumaespumacheiadesangueemseuslábios.

—Sintomuito—disseele,comumengasgo.—Sintotanto...—Desviouosolhos paraClary.—Sei quenãohá nada que eu possa fazer ou falar quemepermitamorrer comqualquer resquíciode graça—continuou.—E eunão aculparia se cortasse minha garganta. Mas eu... Eu me arrependo. Eu... sintomuito.

Clary perdeu a fala.O que poderia dizer?Tudobem? Mas não estava tudobem.Nadadoqueelehaviafeitoestavabem,nemcomomundonemcomela.Algumascoisaseramimpossíveisdeseperdoar.

Noentantoelenãohaviafeitotaiscoisas,nãoexatamente.Aquelapessoa,omeninoquesuamãeseguravacomoseelefosseseucastigo,nãoeraSebastian,o sujeito que havia torturado, assassinado e causado destruição. Clary selembrou do que Luke lhe dissera, que parecia ter sido há anos: aAmatis queserveaSebastian é tãominha irmãquantoo Jaceque serviaaSebastian eraomeninoquevocêamava.TãominhairmãquantoSebastianerao lhoquesua

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mãedeveriatergerado.—Não—disseele,e semicerrouosolhos.—Vejoquevocêestá tentando

entender,minhairmã.SedevoserperdoadocomoLukeperdoariaairmãcasoo Cálice Infernal a libertasse agora. Mas veja, elafoi irmã dele um dia. Foihumana.Eu...—Etossiu,maissanguesurgindonoslábios.—Nuncaexisti.Ofogocelestialqueimaoqueémau.JacesobreviveuàGloriosaporqueeleébom.Restavaumbemsu cienteneleparaqueconseguisseviver.Maseunasciparaser inteiramente corrompido. Não resta de mim o bastante para que eusobreviva.Vocêestávendoapenasoespectrodealguémquepoderiatersido,sóisso.

Jocelyn estava chorando, lágrimas caindo silenciosamente pelo rostoenquantoelacontinuavasentava,parada.Estavacomacolunaereta.

— Preciso lhes dizer — sussurrou ele. — Quando eu morrer, osCrepuscularesvãocorrerparacimadevocês.Nãoconseguireicontê-los.—EledesviouoolharparaClary.—OndeestáJace?

—Aqui—falouJace.Ejáestavanopalanque,aexpressãodura,confusaetriste.Claryencontrou

oolhardele.Sabiaoquantodeviatersidodifícilparaeleencenarjuntocomela,entregá-la a Sebastian,permitirque ela se arriscasseno m.E sabiaoquantoissodeviaestarsendodifícilparaele,Jace,quequeriatantosevingar,olharparaJonathan e perceber que a parte de Sebastian que poderia, que deveria serpunida tinha desaparecido. Havia outra pessoa ali, completamente diferente,alguémquenuncativerachancedeviver,equeagoranuncamaisteria.

—Pegueminhaespada—disse Jonathan, a respiração saindoaos trancos,indicandoPhaesphoros,quetinhacaídoaalgunspassosdedistância.—Corte...abra.

—Abraoquê?—perguntouJocelyn,confusa,masJacejáestavaagindo,seabaixandoparapegarPhaesphoros,descendodopalanque.Atravessouosalão,passoupelosCrepusculares agrupados,pelo anelde símbolos, indo atéondeodemônioBehemothseencontravamortoemmeioaoicor.

—Oqueeleestáfazendo?—questionouClary,emboratenha cadoóbvio

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quandoJaceergueuaespadaecortouocorpododemônio.—Comoelesabia...—Ele...meconhece—arfouJonathan.Umatorrentedeentranhasfedorentasdedemônioentornoupelochão.Jace

fez uma careta de desgosto— depois de surpresa e, em seguida, demonstroupercepção.Ele seabaixouepegoualgumacoisarugosa,brilhandocomicor—ergueueClaryreconheceucomooCáliceInfernal.

Ela olhou para Jonathan. Os olhos dele estavam revirando, tremoresconvulsionavamseucorpo.

—D-digaaele—gaguejou.—Digaaeleparajogarnocírculodesímbolos.Clarylevantouacabeça.—Joguenocírculo!—gritouClaryparaJace,eAmatisgirouemalerta.—Não!—gritouela.—SeoCálicefordestruído,nóstambémseremos!—

Virou-se para o palanque.— Lorde Sebastian! Não permita que seu exércitosejadestruído!Somosleais!

Jace olhou para Luke, que por sua vez olhava para a irmã com umaexpressão de total tristeza, uma tristeza tão profunda quanto a morte. Luketinhaperdidoairmãparasempre,eClaryhaviaacabadodeganharoirmãodevolta,oirmãoquenuncativera,emesmoassimeraamorteemambososlados.

Jonathan,meioapoiadocontraoombrodeJocelyn,olhouparaAmatis;seusolhosverdeseramcomoluzes.

—Sintomuito—disse.—Nuncadeveriatê-loscriado.Evirouorosto.LukeassentiuumavezparaJace,quearremessouoCálicecomtodaaforça

possívelnocírculodesímbolos.Ocálicebateunochãoeseestilhaçou.Amatis engasgoue colocouamãonopeito.Porum instante—sóporum

instante — encarou Luke com um olhar de reconhecimento: um olhar dereconhecimento,eatédeamor.

—Amatis—sussurrouele.O corpo dela desabou no chão. O mesmo sucedeu com os outros

Crepusculares,umporum,ruindoaochão,atéasalaestarcheiadecorpos.

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Luke virou para o outro lado, os olhos expressando dor demais para queClaryfossecapazdesuportarolhá-los.Elaouviuumgrito—distanteeduro—e por um momento cou imaginando se seria Luke, ou mesmo algum dosoutros, horrorizados em verem tantos Nephilim caindo, mas o grito só fezcrescer,atésetransformarnumuivoquerachouovidroefezgirarapoeiradoladodeforadajanelacomvistaparaEdom.Océuficouvermelhocordesanguee o grito prosseguiu, daí começou a diminuir, virandoumbufar engasgadodetristeza,comoseouniversoestivessechoramingando.

—Lilith—sussurrou Jonathan.—Elachorapelos lhosmortos,os lhosdeseusangue.Estáchorandoporelesepormim.

EmmaretirouCortanadocorpodoguerreiro fadamorto, ignorandoo sangueque escorria em suasmãos. Seu único pensamento era chegar a Julian— elavira o olhar terrível quando ele deslizara para o chão, e se Julian estivessedestruído,entãoomundointeiroestariadestruídoenadavoltariaatersentido.

A multidão girava ao seu redor; ela mal os enxergava enquanto abriacaminhopelamassaemdireçãoaosBlackthorn.Druestavaencolhidanopilarao ladode Jules, o corpoprotetoramente emvolta deTavvy; Livia continuavasegurandoTy pelo pulso,mas agora olhava alémdele, boquiaberta. E Jules—Jules continuava abaixado contra o pilar, porém tinha começado a levantar acabeça,e,quandoEmmanotouqueeleestavacomoolhar xo,virouparaveroqueeleestavaencarando.

Aoredordo salão,osCrepusculares começarama sucumbir.Caíramcomopeçasdexadrez,silenciosos.CaíramduranteabatalhacontraosNephilim,eosirmãos fada também começaram a encarar enquanto os corpos dosCrepuscularesdesabavamnochão,umporum.

Umgrito roucode vitória se elevoude algumas gargantas deCaçadores deSombras,masEmmamalescutou.CorreuaostropeçosatéJulianeseajoelhouao seu lado; ele a encarou, os olhos verde-azulados do menino repletos detristeza.

—Em—falouele,rouco.—Penseiqueaqueleguerreirofadafossematá-la.

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Achei...—Estoubem—sussurrouela.—Vocêestábem?Elebalançouacabeça.—Euomatei—falou.—Mateimeupai.—Aquelenãoeraseupai.—AgargantadeEmmaestavasecademaispara

continuarfalando;emvezdisso,eladesenhounascostasdamãodele.Nãoumapalavra,masumsímbolo:osímbolodecoragem,edepoisumcoraçãotorto.

ElebalançouacabeçacomosedizendoNão,não,nãomereçoisto ,mas eladesenhou novamente, e em seguida se inclinou para ele, mesmo coberta desanguecomoestava,eapoiouacabeçanoombrodoamigo.

As fadas estavam fugindo do Salão, abandonando as armas pelo caminho.Mais emaisNephilim entravamno recinto, vindodapraça lá de fora. EmmaviuHelen correndo na direção deles, comAline ao lado, e pela primeira vezdesde que saíram da casa dos Penhallow, Emma se permitiu acreditar quepoderiamsobreviver.

— Estão mortos — disse Clary, olhando com assombro para os restos doexércitodeSebastian.—Estãotodosmortos.

Jonathansoltouumrisomeioengasgado.—“Gostariadefazeralgumbem,apesardeminhanatureza ”—murmurou

ele, e Clary reconheceu a citação da aula de inglês.Rei Lear. A mais trágicadentretodasastragédias.—Quecoisa.OsCrepuscularesseforam.

Claryseinclinousobreele,avozdesesperada.— Jonathan — falou ela. — Por favor. Diga-nos como abrir a fronteira.

Comovoltarparacasa.Temquehaverumjeito.—Não... não tem jeito— sussurrou Jonathan.— Destruí a passagem. O

caminhoparaaCorteSeelie está se fechando; todososcaminhosestão.É... éimpossível.—Opeitodeletremeu.—Sintomuito.

Clary não disse nada. Só conseguia sentir amargura na boca. Ela havia searriscado, salvado o mundo, mas todos os que amava iriam morrer. Por uminstante,seucoraçãoseencheudeódio.

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—Ótimo—disse Jonathan,oolharno rostodela.—Meodeie.Alegre-sequandoeumorrer.Aúltimacoisaquequeroagoraélhetrazermaisdor.

Claryolhouparaamãe;Jocelynestavaparadaeereta,suas lágrimascaindosilenciosamente.Claryrespiroufundo.Lembrava-sedeumapraçaemParis,detervistoSebastiandooutroladodeumamesinha,dizendo:Achaqueconsegueme perdoar?Digo, acha que o perdão é possível para alguém como eu?O queteria acontecido se Valentim a tivesse levado junto comigo? Você teria meamado?

— Não o odeio — disse ela a nal. — Odeio Sebastian. Já você, não oconheço.

OsolhosdeJonathansefecharamdemaneiratrêmula.— Uma vez sonhei com um lugar verde— sussurrou.— Um solar, uma

garotinha de cabelos ruivos e preparativos para um casamento. Se existiremoutros mundos, então talvez haja algum onde fui um bom irmão e um bomfilho.

Talvez,pensouClary,esofreuporessemundoduranteuminstante,porsuamãe,eporsi.TinhaconsciênciadeLukeao ladodopalanque,observando-os;ciente de que havia lágrimas no rosto dele. Jace, os Lightwood e Magnusestavambematrás,eAlecseguravaamãodeIsabelle.Emvoltadeles,estavamoscorposdosguerreirosCrepusculares.

— Não achei que você fosse capaz de sonhar — disse Clary, e respiroufundo. — Valentim encheu suas veias de veneno e o criou para odiar; vocênunca teve escolha. Mas a espada queimou isso tudo. Talvez este seja quemvocêdefatoé.

Eleinspiroudeformaásperaeimpossível.—Seriaumalindamentiranaqualseacreditar—falou,e,incrivelmente,o

espectro de um sorriso doce e amargo passou pelo rosto dele. — O fogo daGloriosaqueimouosanguedemoníaco.Durantetodaminhavidaelecausticouminhas veias e cortou meu coração feito lâminas, e me fez pesar comochumbo...portodaminhavida,eeununcasoube.Jamaisconheciadiferença.

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Nuncamesentitão...leve—falousuavemente,entãosorriu,fechouosolhosemorreu.

Clary se levantou lentamente, olhando para baixo. Suamãe estava ajoelhada,segurandoocorpodeJonathanesticadoemseucolo.

—Mãe—sussurrou,masJocelynnãolevantouacabeça.UminstantemaistardealguémpassouporClary:Luke.Eledeuumapertonamãodamenina,eem seguida se ajoelhou ao lado de Jocelyn, colocando a mão suavemente noombrodela.

Clary virou; não suportava mais. A tristeza parecia um peso compressor.OuviaavozdeJonathannacabeçaenquantodesciaasescadas:Nuncamesentitãoleve.

Ela avançoupelos corpos e pelo icorno chão, entorpecida e pesada comanoção de seu fracasso. Depois de tudo que zera, não havia como salvá-los.Estavamesperandoporela:Jace,SimoneIsabelle,AleceMagnus,quepareciadoente,pálidoemuito,muitocansado.

—Sebastianestámorto—informouela,etodosaolharam,comseusrostoscansados e sujos, como se estivessem exaustos e esgotados demais para sentirqualquercoisaemrelaçãoàquelanotícia,atémesmoalívio. Jacedeuumpassopara a frente e pegou asmãos dela, as ergueu e as beijou rapidamente; Claryfechou os olhos, sentido como se apenas uma fração de luz e calor tivesseretornado.

—Mãosdeguerreira—disseelebaixinho,easoltou.Ela couolhandoparaos próprios dedos, tentando enxergar o que ele via. Suas mãos eram apenasmãos,pequenasecalejadas,manchadascomterraesangue.

— Jace estava nos contando — falou Simon. — O que você fez, com aespadaMorgenstern.QueestavafingindocomSebastianotempotodo.

— Agora no m, não — respondeu. — Não quando ele voltou a serJonathan.

—Gostariaquetivessenoscontadosobreoplano—censurouIsabelle.— Desculpem— sussurrou Clary.— Tive medo de que não funcionasse.

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Queficassemdecepcionados.Acheimelhor...nãocriarmuitasesperanças.—Àsvezes a esperança é tudoquenosmantém—disseMagnus, embora

nãosoassemagoado.—Euprecisavaqueeleacreditasse—explicouClary.—Entãoprecisavaque

vocês tambémacreditassem.Eleprecisavaveras reaçõesdevocêseacharquetinhavencido.

— Jace sabia — rebateu Alec, olhando para ela, mas também sem soarmagoado,apenasconfuso.

—Eemnenhummomentoolheiparaela,desdequesesentounotronoatéahoraemqueapunhalouSebastiannocoração—disseJace.—Nãoconsegui.Aoentregarapulseiraparaele,eu...—Eleparoudefalar.—Desculpe.Eunãodeviatê-lochamadodedesgraçado.Sebastianera,masJonathannãoé,nãoeraamesmapessoa...esuamãe...

—Écomosetivesseperdidoum lhoduasvezes—disseMagnus.—Achoquepoucascoisaspodemserpiores.

—Quetal carpresoemumreinodemoníacosemtercomosair?—sugeriuIsabelle.—Clary, precisamos voltar para Idris. Detesto perguntar,mas Seb...Jonathandissealgumacoisasobrecomoreabrirasfronteiras?

Claryengoliuemseco.—Eledissequenãotemcomo.Queestãofechadasparasempre.—Entãoestamospresosaqui—disse Isabelle, seusolhosescuros tomados

dechoque.—Parasempre?Nãopodeser.Devehaverumfeitiço...Magnus...— Ele não mentiu — falou Magnus. — Nós não temos como reabrir os

caminhosdaquiparaIdris.Fez-seumsilêncioterrível.EntãoAlec,cujoolharrepousavasobreMagnus,

perguntou:—Nósnãotemoscomofazer?— Foi o que eu disse — respondeu Magnus. — Não há como abrir as

fronteiras.—Não—insistiuAlec,comumtomperigosonavoz.—Vocêdissequenós

nãotemoscomofazer,nosentidodequepodehaveralguémquepossa.

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Magnusafastou-sedeAleceolhouemvolta,para todoseles.Estavacomaexpressãoaberta,despidadaqueledistanciamentohabitual,epareciaaomesmotempo muito novo e muito, muito velho. Tinha o rosto de um jovem, masaqueles olhos já haviam visto séculos correrem, e Clary nunca tivera tantaconsciênciadissocomoagora.

—Existemcoisaspioresqueamorte—falouMagnus.—Talvezvocêdevessedeixarquenósjulgássemosisso—argumentouAlec,

eMagnuspassouamãodesesperadanorostoedisse:—MeuDeus,Alexander,eupasseiavidainteirasemterquerecorreraisso,

exceto por uma ocasião, quando aprendi minha lição. Não é uma lição quequeroquevocêsaprendam.

—Masvocêestávivo—disseClary.—Sobreviveuàlição.Magnussorriu,umsorrisohorrível.—Nãoteriasidoumaliçãoseeunãotivessesobrevivido—falou.—Masfui

devidamenteavisado.Jogardadoscomminhaprópriavidaéumacoisa;brincarcomadetodosvocês...

— Morreremos aqui de qualquer jeito — disse Jace. — É um jogodesvantajoso.Deixequearrisquemos.

— Concordo — falou Isabelle, e os outros engrossaram o coro. Magnusolhou para o palanque, onde Luke e Jocelyn continuavam ajoelhados, esuspirou.

— Voto da maioria — falou. — Sabiam que existe um velho ditado noSubmundosobrecachorrosloucoseNephilimnãoouviremconselhos?

—Magnus...—começouAlec,masMagnusapenasbalançouacabeçaeselevantoufracamente.

Continuavavestindoos farraposque tinhausadono jantarhá tanto tempono refúgiodoPovodas Fadas em Idris: os rasgos incongruentes de umpaletóformaleumagravata.Osanéisbrilharamemseusdedosquandoele juntouasmãos,comoseestivesseemoração,daífechouosolhos.

—Painosso—recitou,eClaryouviuAlecrespirarfundoeentãoofegar.—Painossoque estaisno Inferno, ímpio seja vossonome.Venhaanósovosso

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reino,sejafeitaavossavontade,assimemEdomcomonoInferno.Nãoperdoaios meus pecados, pois naquele fogo dos fogos não haverá nem gentilezaamorosa,nemcompaixão,nemredenção.Meupai,quecausaguerrasportodosos cantos, venha a mim agora; chamo-lhe como seu lho, e assumo aresponsabilidadeporvossainvocação.

Magnus abriu os olhos. Estava sem expressão. Cinco faces chocadas oencaravam.

—PeloAnjo...—disseAlec.—Não—falouumavozlogoalémdogrupo.—Definitivamentenãoépelo

seuAnjo.Clary encarou. Inicialmentenãoviunada, sóumpedaçode sombraque se

mexia, e em seguida uma gura se formou da escuridão. Um homem alto,pálido como ossos, em um terno totalmente branco; abotoaduras prateadasbrilhavam em seus pulsos, esculpidas em forma de moscas. Tinha uma facehumana,peleclaraesticada,maçãsdorostoa adascomolâminas.Nãopossuíacabelos,masumacoroabrilhantedearamefarpado.

Seusolhoseramverde-dourados,etinhapupilasemfendas,comoasdeumgato.

— Pai— disseMagnus, e a palavra foi uma exalação de tristeza.—Vocêveio.

Ohomemsorriu.Osdentesda frenteerama ados,pontudoscomodentesfelinos.

— Meu lho — falou. — Faz muito tempo que não me chama. Estavacomeçandoamedesesperar,achandoquevocênuncamaisofaria.

— Não estava nos meus planos — respondeu Magnus secamente. —Chamei-lhe uma vez para me certi car de que era meu pai. Aquela vez foisuficiente.

—Assimmemachuca—disseohomem,evoltouseusorrisoa adoparaosoutros. — Sou Asmodeus — disse. — Um dos Nove Príncipes do Inferno.Talvezconheçammeunome.

Alecemitiuumruídocurto,rapidamenteabafado.

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— Já fui sera m uma vez, um dos anjos de fato— continuou Asmodeus,parecendo satisfeito consigo. — Parte de uma companhia inumerável. Entãoveio a guerra, e todos nós caímos como estrelas doCéu. Segui o Portador daLuzparabaixo,aEstreladaManhã,poisfuiumdeseusconselheiros-chefe,e,quando ele caiu, eu caí junto.Eleme criouno Inferno eme fezumdosnovegovernantes.Caso tenhamdúvida, épreferívelgovernarnoInfernoaservirnoParaíso:jáfizasduascoisas.

—Você é... opaideMagnus?—disseAlec, comavoz sufocada.Virou-separaMagnus.—Quandovocêseguroualuzenfeitiçadanotúneldometrô,elaardeuemcores...éporcausadele?—ApontouparaAsmodeus.

—Sim—respondeuMagnus.Pareciamuitocansado.—Avisei,Alexander,queeraalgodequevocênãoiriagostar.

—Nãoentendoo frenesi.Fuipaidemuitos feiticeiros—disseAsmodeus.—Magnusfoiquemmaismeorgulhou.

— Quem são os outros? — perguntou Isabelle, os olhos escurosdesconfiados.

—Oque ele está dizendo é que amaioria jámorreu— retrucouMagnus.Encontrou brevemente o olhar do pai, em seguida desviou, como se nãosuportasseocontatoprolongado.Oslábios nosesensíveisdeMagnusestavamrijos. — Ele também não está contando que todos os príncipes do Infernopossuemumreinoquegovernam;esteéodele.

— Como este lugar, Edom, é oseu reino — disse Jace —, então você éresponsávelpelo...peloqueaconteceuaqui?

—Émeu reino, apesarde eu raramente virpara cá—explicouAsmodeuscomumsuspiromartirizado.—Eraumlugarótimo.OsNephilimdestereinolutaram muito. Quando inventaram oskeptron, achei que pudessem sairvitoriosos no último segundo, mas o Jonathan Caçador de Sombras destemundoeraumdivisor,nãoumagregador,eno melessedestruíram.Todossedestróem,vocêssabem.Nósdemônioslevamosaculpa,massóabrimosaporta.Éahumanidadequeatravessa.

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— Não venha com desculpas — irritou-se Magnus. — Você assassinouminhamãe...

—Elaeraumacriaturinhabemdisposta,garantoavocê—disseAsmodeus,e Magnus enrubesceu. Clary sentiu uma pontada de choque por ser possívelfazer aquilo com Magnus, machucá-lo com relação à própria família. Faziamuitotempo,eeleeratãoreservado.

Mas daí, pais sempre eram capazes de mexer com os lhos,independentementedaidade.

—Vamosdiretoaoponto—disseMagnus.—Vocêpodeabrirumaporta,certo?Mandar-nosparaIdris,devoltaaonossomundo?

— Gostaria de uma demonstração?— perguntou Asmodeus, estalando osdedos em direção ao palanque, onde Luke estava de pé, olhando para eles.Jocelyn parecia prestes a se levantar também. Clary notava a expressão depreocupaçãodeambos,poucoantesdedesaparecerem,levandoconsigoocorpode Jonathan. Exatamente quando sumiram, por um instante, Clary viu ointeriordoSalãodosAcordos,ochafarizdesereiaeochãodemármore,eemseguida a visão desapareceu, como um rasgo no universo se costurando outravez.

UmgritoirrompeudagargantadeClary.—Mãe!—Eu os enviei de volta ao seumundo—disseAsmodeus.—Agora você

sabequeconsigo.—Examinouasprópriasunhas.Claryestavaarfando,empartepânico,emparteraiva.—Comoousa...—Bem,eraoquequeriam,nãoera?—disseAsmodeus.—Pronto,osdois

primeiros foramdegraça.Orestante,bem, teráquepagar.—Suspirouaoveros olhares ao redor. — Sou umdemônio — falou, mordaz. — Sério, o queensinamaosNephilimhoje?

—Seioquequer—falouMagnus,comavozesgotada.—Epode car.MasprecisajurarpelaEstreladaManhãqueenviarátodososmeusamigosdevoltaaIdris,todos eles, e nunca mais voltará a incomodá-los. Eles não lhe deverão

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nada.Alecdeuumpassoadiante.— Pare. Não... Magnus, o que quer dizer, o que ele quer? Por que está

falandocomosenãofossevoltarconosco?—Chega ummomento— começouAsmodeus— em que todos devemos

voltaramorarnascasasdenossospais.EsteéomomentodeMagnus.—“Nacasademeupaihámuitasmoradas ”—sussurrouJace;estavamuito

pálido,comosefossevomitar.—Magnus.Elenãopode...nãoquerlevá-locomele?Devoltaa...

— Ao Inferno? Não precisamente — disse Asmodeus. — Como Magnusdisse,Edomémeureino.EuocompartilhavacomLilith.Entãoopestinhadelatomoutudoearrasouoterreno,destruiuminhatorre,estátudoaospedaços.Evocê dizimou metade da população com oskeptron. — A parte nal foiendereçadaaJace,bempetulante.—Éprecisomuitaenergiaparaabastecerumreino. Extraímos do poder do que abandonamos, a grande cidade dePandemônio, o fogo em que caímos,mas chega ummomento em que a vidadevenosabastecer.Eavidaimortaléamelhordetodas.

OpesoentorpecentequepuxavaosbraçosdeClaryparabaixodesapareceuquandoela couatentadesúbito,colocando-senafrentedeMagnus.Elaquasecolidiucontraosoutros.Todos zeramomesmomovimento,visandobloquearofeiticeirodeseupaidemônio,atémesmoSimon.

—Quertiraravidadele?—perguntouClary.—Issoécrueletolo,mesmoquevocêsejaumdemônio.Comopodequerermatarseuprópriofilho...

Asmodeusriu.—Queótimo!— comentou ele.—Veja só,Magnus, estesmeninos que o

amam e querem protegê-lo! Quem poderia imaginar! Quando você forenterrado, certi car-me-ei de que gravem no seu túmulo:Magnus Bane,adoradopelosNephilim.

— Não vai tocá-lo — disse Alec, com a voz dura como ferro. — Talveztenhaseesquecidodoquefazemos,nós,osNephilim,masmatamosdemônios .AtémesmoPríncipesdoInferno.

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— Ah, sei bem o que fazem; destruíram meu compatriota Abbadon edisseminaramnossaprincesaLilithpelosventosdovazio,emboraelavávoltar.Ela sempre terá lugar em Edom. Foi por isso que permiti que seu lho seestabelecesse aqui, mas admito que não imaginei a bagunça que ele faria. —Asmodeus revirouosolhos;Clary suprimiuumcalafrio.Em tornodaspupilasverde-douradas, as escleras dos olhos eram comoóleonegro.—Não tenho aintençãodematarMagnus.Seriadesordeiroetolo,e,alémdisso,eupoderiaterprovidenciadosuamorteemqualquertempo.Oquequeroéavidadelecedidavoluntariamente,poisavidadeumimortal tempoder,grandepoder,evaimeajudaraabastecermeureino.

—Maseleéseufilho—protestouIsabelle.— E vai permanecer comigo— falou Asmodeus, com um sorriso.— Em

espírito,porassimdizer.Alec girou paraMagnus, que estava com asmãos nos bolsos, franzindo o

rosto.—Elequertirarsuaimortalidade?—Exatamente—respondeuMagnus.— Mas... você sobreviveria? Só não seria mais imortal? — Alec parecia

arrasado, e Clary não conseguia evitar sentir-se péssima por ele. Depois domotivopeloqualAleceMagnusterminaram,Alecnãoprecisavaser lembradodequeumdiajádesejaraqueaimortalidadedeMagnusfosseretirada.

—Minha imortalidade teria m—explicouMagnus.—Todosos anosdaminha vida me alcançariam de uma só vez. Seria muito improvável que eusobrevivesse.Quase quatrocentos anos sãomuita coisa para assimilar,mesmoquevocêsempreusehidratante.

—Não pode—disseAlec, e tinha uma súplica na voz.—Ele disse “umavidacedidavoluntariamente”.Diganão.

Magnus levantou a cabeça e olhou para Alec; foi um olhar que fez Claryenrubescer e desviar a cara. Tinha tanto amor, misturado a exasperação,orgulhoedesespero.Umolharsemreservas,quepareciaerradotestemunhá-lo.

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— Não posso negar, Alexander — falou. — Se o zer, todospermaneceremosaqui;morreremosdequalquerjeito.Passaremosfome,nossascinzassetransformarãoempóparaatormentaremosdemôniosdestereino.

—Tudobem—disseAlec.—Nenhumdenósdaria suavidaem trocadanossa.

Magnus olhou em volta, para os rostos dos companheiros, sujos, exaustos,brutalizadosedesesperados,eClaryviuaexpressãodeMagnusmudarquandoelenotouqueAlecestavacerto.NenhumdelestrocariaavidadeMagnuspelaprópria,nempeladetodos.

—Euvivipormuitotempo—argumentouMagnus.—Tantosanos,enão,nãoparecesu ciente.Nãovoumentiredizerqueparece.Querocontinuar;emparte por sua causa, Alec. Jamais quis viver tanto quanto nos últimosmeses,comvocê.

Alecpareceuarrasado.—Morreremos juntos— falou.—Permita que pelomenos eu que, com

você.—Precisavoltar.Vocêprecisavoltarparaomundo.—Nãoqueroomundo.Querovocê—suplicouAlec, eMagnus fechouos

olhos,comoseaspalavrasquasemachucassem.Asmodeusobservavaenquantofalavam, ávidos, quase famintos, e Clary se lembrou de que demônios sealimentavamdeemoçõeshumanas:medo,alegria,amoredor.Sobretudodor.

—Você não pode car comigo— disseMagnus após uma pausa.—Nãohaverámaiseu;odemônio tomaráminha forçadevida, emeucorpo irá ruir.Quatrocentosanos,lembre-se.

— “O demônio” — reclamou Asmodeus, e fungou. — Poderia ao menosdizermeunomeenquantomeentedia.

ClaryconcluiuentãoquetalvezodiasseAsmodeusmaisqueaqualqueroutrodemônioquejáhaviaconhecido.

—Váemfrente,meumenino—acrescentouAsmodeus.—Nãotenhotodaaeternidadeparaesperar;nemvocê,nãomais.

—Tenhoquesalvá-lo,Alec—disseMagnus.—Vocêetodosquevocêama;

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éumpreçopequenoasepagar,nãoé,nofimdascontas?Portudoisso?— Nãotodos que eu amo — sussurrou Alec, e Clary sentiu lágrimas

acumuladas nos olhos. Ela havia se esforçado tanto, tanto para se tornar apessoa a pagar o preço por aquilo tudo. Não era justo que Magnus pagasse;Magnus, quem menos tinha participação na história de Nephilim, anjos,demôniosevingançaemcomparaçãoaorestante;Magnus,queeraapenaspartedaquiloporqueamavaAlec.—Não—disseAlec.EmmeioalágrimasClaryosviu agarrados; havia carinho até mesmo na curva dos dedos de Magnus emtorno do ombro deAlec enquanto ele se abaixava para beijá-lo.Um beijo dedesesperoeapego,maisquepaixão;MagnuschegouacravarosdedosnobraçodeAlec,masnofimrecuou,evirou-separaopai.

—Certo— falouMagnus, e Clary percebeu que ele estava se preparandocomoseestivesseprestesaselançaremumafogueira.—Certo,leve-me.Dou-lheaminhavida.Eusou...

Simon— que tinha permanecido em silêncio até aquele instante; Simon,queClaryquaseesqueceraqueestavaali—deuumpassoparaafrente.

—Euestoudisposto.AssobrancelhasdeAsmodeusseergueram.—Oquefoiisso?Isabellepareceuentenderantesdetodomundo.Empalideceuedisse:—Não,Simon,não!MasSimonprosseguiu,ascostaseretas,oqueixoempinado.—Tambémtenhovidaimortal—falou.—Magnusnãoéoúnico.Peguea

minha;pegueminhaimortalidade.—Ahhh— respirou Asmodeus, com os olhos subitamente brilhantes.—

Azazel me falou a seu respeito. Um vampiro não é interessante, mas umDiurno!Vocêcarregaopoderdosolemsuasveias.Luzdosolevidaeterna,éumpoderetanto.

— Sim — disse Simon. — Se aceitar minha imortalidade em vez da deMagnus,dareiavocê.Estou...

—Simon!—protestouClary,porémjáeratardedemais.

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—Estoudisposto—concluiu,ecomumaolhadaemvoltaparaorestantedogrupo,tensionouomaxilar,comumolharquesignificavaEstádito.Estáfeito.

—Meu Deus, Simon, não— interveioMagnus, com uma voz de terríveltristeza,efechouosolhos.

—Só tenho17anos— falouSimon.—Se ele retirarminha imortalidade,vouviverminhavida,nãomorrereiaqui.Eujamaisquisserimortal,jamaisquisservampiro,jamaisquisnadadisso.

—Vocênãovaiviverasuavida!—HavialágrimasnosolhosdeIsabelle.—Se Asmodeus tirar sua imortalidade, você será um cadáver Simon. Você émorto-vivo.

Asmodeusemitiuumruídogrosseiro.—Vocêéumameninamuitoburra—falou.—SouumPríncipedoInferno.

Possoderrubarparedesentreosmundos.Possoconstruirmundosedestruí-los.VocêachaquenãopossoreverteraTransformaçãoquetornaumhumanonumvampiro? Acha que não posso fazer com que o coração dele volte a bater?Brincadeiradecriança.

—Masporquevocêfariaisso?—questionouClary,espantada.—Porqueofariaviver?Vocêéumdemônio.Nãoseimporta...

—Nãomeimporto.Masquero—respondeuAsmodeus.—Temmaisumacoisaquedesejodevocês.Maisumitemparaadoçaroacordo.—Sorriu,eseusdentesbrilharamcomocristaisafiados.

—Oquê?—AvozdeMagnustremeu.—Oquequer?—Aslembrançasdele—respondeuAsmodeus.—Azazel pegou uma lembrança de cada umde nós como pagamento por

umfavor—disseAlec.—Qualéarelaçãoentredemônioselembranças?—Lembranças humanas, cedidas livremente, são como alimento para nós

— explicou Asmodeus. — Demônios vivem dos gritos e da agonia dosamaldiçoados em tormenta. Imagine então que belamudança de ritmo é umbanquetedeboas lembranças.Ficamdeliciosasquandomisturadas,odoceeoamargo.—Olhouemvolta,osolhosdegatobrilhando.—Ejádáparaperceber

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quehaverámuitaslembrançasboasparaextrair,vampirinho,poisvocêémuitoamado,nãoé?

Simonpareceuarrasado.Falou:—Massevocêretirarminhaslembranças,quemeuserei?Eunão...—Bem—disseAsmodeus.—Eupoderia tirar todas as suas lembranças e

deixá-lo como um idiota babão, suponho, mas, sinceramente, quem quer aslembranças de um bebê? Chatice, chatice. A questão é: o que seriamaisdivertido?Lembrançassãodeliciosas,masadortambémé.Oquecausariamaisdoraosseusamigos,aqui?Oqueoslembrariadetemeropodereainteligênciadosdemônios?—Eleentrelaçouasmãos juntoàscostas.Cadaumdosbotõesdoternobrancotinhaformatodemosca.

—Prometiminhaimortalidade—disseSimon.—Nãominhaslembranças.Vocêdisse“cedidasvoluntariamente”...

—Deus do Inferno, a banalidade— falou Asmodeus, e se moveu, rápidocomo uma chama, para pegar Simon pelo braço. Isabelle avançou, como sefosse segurar Simon, e então recuou com um arfar. Um vergão vermelhoapareceunabochechadela.Izzycolocouamão,parecendochocada.

—Deixe-aempaz—disparouSimon,edesvencilhouobraçodasgarrasdodemônio.

— Membro do Submundo — arfou o demônio, e tocou os longos dedosaracnídeosno rostode Simon.—Vocêdevia ter umcoraçãoquebatiamuitoforte,quandobatia.

—Deixe-oempaz—disseJace,sacandoaespada.—Eleénosso,nãoseu;osNephilimprotegemoqueédeles...

—Não!—protestouSimon.Estavatremendocompletamente,masacolunasemantinhaereta.—Jace,não.Éoúnicojeito.

— De fato é — concordou Asmodeus. — Pois nenhum de vocês podecombater um Príncipe do Inferno em seu reino de poder; nemmesmo você,JaceHerondale, lhodosanjos,ouvocê,ClarissaFairchild,comseustruquesesímbolos.—Eleremexeuosdedos,sutilmente;aespadadeJacecaiunochão,eeste puxou a mão, se contorcendo de dor, como se tivesse sofrido uma

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queimadura.Asmodeuslheconcedeuapenasumolharantesdelevantaramãooutravez.

—Láestáoportal.Vejam.—Gesticulouparaaparede,quebrilhoue couclara.Atravésdela,ClaryviaoscontornosdoSalãodosAcordos.LáestavamoscorposdosCrepusculares,caídosnochãoemmontesescarlate,eláestavamosCaçadores de Sombras, correndo, tropeçando, se abraçando: vitória depois dabatalha.

E lá estavam suamãe eLuke, olhando emvolta, espantados.Continuavamnamesmaposiçãoemqueestavamnopalanque.Lukedepé,Jocelynajoelhadacom o corpo do lho nos braços. Outros Caçadores de Sombras estavamcomeçandoaolharparaeles,surpresos,comosetivessemsurgidodonada—oqueeraocaso.

— Aí está tudo que vocês desejam— disse Asmodeus, enquanto o portalpiscavaeescurecia.—Emtroca careicomaimortalidadedoDiurno,e,alémdisso, com as lembranças que ele tem do Mundo das Sombras: todas aslembrançasdetodosvocês,detudoqueaprendeu,detudoquepassou.Éomeudesejo.

Simon arregalou os olhos;Clary sentiu seu coração saltar.Magnus pareciatersidoapunhalado.

—Aíestá—sussurrou.—Otruquenocoraçãodojogo.Sempretemalgum,comosdemônios.

Isabellepareceuincrédula.—Estádizendoquequerqueeleseesqueçadenós?— Tudo sobre vocês, e que um dia os conheceu — disse Asmodeus. —

Ofereçoistoemtroca.Elevaiviver.Teráavidadeummundano.Teráafamíliadevolta;amãe,airmã.Amigos,colégio,todososaspectosdeumavidahumananormal.

ClaryolhoudesesperadamenteparaSimon.Eleestava tremendo,abrindoefechandoasmãos.Nãodissenada.

—Dejeitonenhum—disseJace.—Tudobem.Então todosmorrerãoaqui.Vocênão temmuitas condições

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de negociar, Caçadorzinho de Sombras. O que são as lembranças emcomparaçãoaestecustodevida?

— Você está falando sobre quem Simon é — argumentou Clary. — Estáfalandoemtirá-lodenósparasempre.

—Sim.Nãoéótimo?—Asmodeussorriu.— Isso é ridículo — declarou Isabelle. — Digamos que você tire as

lembrançasdele.Oquenosimpededeencontrá-loecontarsobreoMundodasSombras?Deapresentá-loàmagia?Jáfizemosisso,podemosfazerdenovo.

— Antes, ele conhecia você, conhecia Clary e con ava nela — disseAsmodeus.—Agoranãoconheceránenhumdevocês.Todos serãoestranhosparaele,eporqueeledariaouvidosaestranhosloucos?Alémdisso,conhecema Lei do Pacto tão bem quanto eu.Vocês a estão violando ao contar sobre oMundo das Sombras sem qualquer motivo, colocando a vida dele em risco.Antesascircunstânciaseramespeciais.Agoranãoserãomais.AClaveretirarátodasassuasMarcas,setentarem.

— Por falar em Clave— falou Jace.—Não carãomuito felizes se vocêjogarummundanoemumavidaondetodosqueoconhecempensamqueeleéumvampiro.TodososamigosdeSimonsabem!Afamíliasabe!Airmã,amãe.Elescontarão,mesmoquenósnãocontemos.

—Entendo.—Amadeus pareceu desagradado.— Isso complica as coisas.TalvezsejamelhorpegaravidadeMagnus,afinal...

—Não — berrou Simon. Estava chocado, nauseado, mas sua voz pareciadeterminada.Asmodeusolhouparaele,cheiodecobiça.

—Simon,caleaboca—interrompeuMagnusdesesperadamente.—Leveamim,pai...

—Quero o Diurno— disse Asmodeus.—Magnus,Magnus. Você nuncaentendeudireitooque é serdemônio, entendeu?Alimentar-sededor?Masoqueéador?Tormentofísico,issoétãotedioso;qualquerdemôniodejardimécapaz de fazer isso. Ser umartista da dor, criar agonia, escurecer a alma,transformar motivos nobres em sujeira, amar cobiçar e depois odiar,transformar uma fonte de alegria em uma fonte de tortura, é para isso que

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existimos!—A voz dele ressoou.—Vou até o universomundano. Tirarei aslembrançasdaquelesquesãopróximosdoDiurno.Vãoselembrardeleapenascomomortal.NãoselembrarãodeClary.

—Não!— gritouClary, eAsmodeus lançou a cabeça para trás e riu, umarisadadeslumbrantequeafezselembrardequeeleumdiaeleforaanjo.

— Você não pode tirar nossas lembranças — falou Isabelle, furiosa. —SomosNephilim.Seriaequivalenteaumataque.AClave...

—As lembranças de vocês podem car— cortouAsmodeus.—Nada doque se recordam sobre Simon vaime causar problemas com aClave, e, alémdisso, vocês serão atormentados por isso, o que só aumentarámeu júbilo.—Sorriu.—Vouabrirumburaconocoraçãodoseumundo,e,quandosentirem,pensarão emmim, e se lembrarão de mim. Lembrarão!— Asmodeus puxouSimon,suamãodeslizandoparapressionaropeitodeSimon,comosepudessealcançarocoraçãodeleatravésdascostelas.—Começamosaqui.Estápronto,Diurno?

—Pare!—Isabelledeuumpassoàfrente,comochicotenamão,osolhosemchamas.—Sabemosseunome,demônio.Achaquetenhomedodeacabaraté mesmo com um Príncipe do Inferno? Eu colocaria sua cabeça na minhaparede como um troféu, e, se ousar tocar em Simon, vou caçá-lo. Passareiminhavidacaçando-o...

Alecpassouosbraçosemvoltadairmãeaseguroufirme.—Isabelle—dissebaixinho.—Não.—Comoassim,não?—protestouClary.—Nãopodemospermitirqueisso

aconteça...Jace...— É uma escolha de Simon. — Jace continuava em choque; estava

completamentepálidoe imóvel.Osolhosse xaramnosdeSimon.—Temosquehonrá-la.

Simon olhou para Jace e inclinou a cabeça. Seu olhar estava passeandolentamenteportodoseles,deMagnusparaAlec,eIsabelle,ondeparoue cou,e estava tão cheio de possibilidades arruinadas que Clary sentiu o própriocoraçãopartir.

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EntãoseuolharfoiparaClary,eelasentiuorestantedesiruir.Haviatantona expressão dele, tantos anos de tanto amor, tantos segredos sussurrados,promessasesonhoscompartilhados.Elaoviuesticarobraço,eemseguidaalgobrilhantevoouemdireçãoaela.Clarylevantouamãoepegou,re exivamente.Era o anel dourado que tinha dado a ele. Fechou a mão em volta da peça,sentindoaespetadadometalnapalmadamão,amãoacolhendoador.

—Basta—disseAsmodeus.—Detestodespedidas.—EapertouSimon,queengasgou,arregalandoosolhos;elevouamãoaopeito.

—Meucoração...—Engasgou-se,eClarysoube,soubepeloolhardele,queseucoraçãotinhavoltadoabater.

Ela piscou contra as lágrimas enquanto uma bruma branca explodia emtorno deles. Ouviu Simon gritar de dor; os pés dela começaram a semovimentar espontaneamente, e ela correu para a frente, apenas para sercontida, como se tivesse batido em uma parede invisível. Alguém a segurou;Jace,pensouela.Haviabraçosemvoltadela,mesmoenquantoabrumacercavaSimoneodemôniocomoumpequenotornado,bloqueando-osparcialmentedavista.

Formas começaram a aparecer na bruma conforme ela cavamais densa.ClaryseviucomSimonquandocrianças,demãosdadas,atravessandoumaruano Brooklyn; ela usava velas no cabelo, e Simon estava adoravelmentedesgrenhado, os óculos caindo no nariz. Lá estavam os dois novamente,atirando bolas de neve no Prospect Park; e na fazenda de Luke, bronzeadospeloverão,penduradosdecabeçaparabaixoemgalhosdeárvores.ElaosviunoJavaJones,ouvindoapoesiaterríveldeEric,enagarupadeumamotovoadoraqueaterrissava emumestacionamento, com Jaceali, olhandopara eles,olhossemicerrados contrao sol.ESimoncom Isabelle, comasmãosno rostodela,beijando-a, e Clary enxergou Isabelle pelos olhos de Simon: frágil e forte, emuito,muitolinda.EláestavaonaviodeValentim,SimonajoelhadoemJace,sanguenabocaenacamisa,sanguenagargantadeJace,acelaemIdris,orostoesgotadodeHodge,eSimoneClarynovamente,ClarydesenhandoaMarcade

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Caimemsuatesta.Maureencomseusanguenochão,eochapeuzinhorosa,eotelhadodeManhattanondeLilithdespertaraSebastian,eClarypassandoparaeleumanel sobreumamesa, e umAnjo saindodeum lagodiantedele, e elebeijandoIsabelle...

Todas as lembrançasde Simon, as lembrançasdemagia, as lembrançasdetodoseles,sendoextraídaserodandoemumturbilhão.Brilhavamnumtomdeourobrancotãoreluzentequantoaluzdodia.Haviaumruídoemtornodeles,como uma tempestade se formando, mas Clary mal ouvia. Esticou as mãos,rogando,apesardenãosaberpeloqueimplorava.

—Porfavor...SentiuosbraçosdeJaceaapertarem,eemseguidaabeirada tempestadea

capturou. Ela foi elevada e carregada. Viu o salão de pedra se afastar a umavelocidadeterrível,eatempestadelevouseusgritosporSimoneostransformounos sons de uma ventania impetuosa. Asmãos de Jace foram arrancadas dosombros dela. Clary estava sozinha no caos, e por um instante achou queAsmodeus tivesse mentido a nal, que não havia passagem, e que utuariamnaquelenadaparasempre,atémorrer.

Então veio o chão, rápido. Ela viu o piso do Salão dos Acordos,mármoredurocomveiasdouradas,antesdeatingi-lo.Acolisãofoiforte,fazendo-abaterosdentes;elarolouautomaticamente,conformeaprendera,eparouaoladodochafarizdesereianocentro.

Sentou-seeolhouemvolta.Osalãoestavapreenchidoporrostossilenciososqueaencaravam,masnenhumdelesimportava.Elanãoestavaprocurandoporestranhos. Viu Jace primeiro; ele tinha aterrissado agachado, em posição decombate.Clarynotouosombrosdelerelaxaremenquantoeleolhavaemvolta,percebendoondeestavam,queestavamemIdris,equeaguerratinhaacabado.E lá estava Alec; ainda segurando amão deMagnus, que parecia nauseado eexausto,maspelomenosestavavivo.

E Isabelle. Foi a que pousou mais perto de Clary, a mais ou menos 30centímetros.Elajáestavadepé,seuolharpercorrendoasalauma,duas,eumaterceiravez,desesperada.Estavamtodosali,todos,excetoum.

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ElaolhouparaClary;osolhosbrilhavamdelágrimas.—Simonnãoestáaqui—disseela.—Elerealmentesefoi.OsilêncioquedominouosCaçadoresdeSombrasreunidospareceuromper

comoumaonda:derepentehaviaváriosNephilimcorrendoparaeles.Claryviuamãe e Luke, Robert eMaryse, Aline eHelen, e até EmmaCarstairs, vindocercá-los, abraçá-los, curá-los e ajudá-los. Clary sabia que todos tinham boasintenções,queestavamcorrendoparaobem,masnãosentiualívio.Apertandoo anel dourado na palma, ela se encolheu no chão e nalmente se permitiuchorar.

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24EChamamIssodePaz

—Quem, então, será o representante dasCortes das Fadas?—perguntou JiaPenhallow.

O Salão dos Acordos estava decorado com as bandeiras de cor azul davitória.Pareciamrecortesdocéu.Todastinhamosímbolodouradodotriunfo.Láforaestavaumdiaclarodeinverno,ealuzqueentravapelasjanelasbrilhavapelas longas las de cadeiras colocadas de frente para o palanque no centro,ondeaConsulesaeoInquisidorseencontravam,sentadosàumamesalonga.Amesatinhasidodecoradacommaisdouradoeazul:enormescastiçaisdouradosque quase impediam Emma de enxergar os integrantes do Submundo quetambém estavam à mesa: Luke, representando os lobisomens, uma jovemchamada Lily, representando os vampiros; e o famosíssimo Magnus Bane,representantedosfeiticeiros.

Não havia assento para um representante das fadas. Lentamente, dentre amultidão sentada, uma jovem se levantou. Tinha olhos completamente azuis,semqualquerpartebranca,eorelhaspontudascomoasdeHelen.

—SouKaelieWhitewillow—disse.—RepresentoaCorteSeelie.— Mas não a Unseelie? — perguntou Jia, a caneta pairando sobre um

pergaminho.Kaelie balançou a cabeça, os lábios contraídos. Um burburinho tomou o

salão.Apesarda clarezadasbandeiras, o climano recinto estava tenso, enãoalegre.Na leiradeassentosemfrenteaosBlackthornestavamosLightwood:Marysecomacolunaereta,eaoseulado,IsabelleeAlec,cujascabeçasestavamabaixadasenquantoambossussurravam.

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JocelynFairchildestavaaoladodeMaryse,masnãohaviasinaldeClaryFrayoudeJaceLightwoodemlugarnenhum.

—ACorteUnseelie recusaumrepresentante—disse Jia,anotandocomacaneta.Depois olhou paraKaelie sobre a armação dos óculos.—Que recadonostrazdaCorteSeelie?Concordamcomnossascondições?

Emma ouviu Helen respirando fundo, de lá da ponta de sua leira deassentos. Dru, Tavvy e os gêmeos foram considerados jovens demais paracompareceràreunião;tecnicamente,ninguémcommenosde18anospodiair,mas exceções especiais foram abertas para aqueles que, como ela e Julian,tinham sido afetados diretamente pelo que estava passando a se chamar deGuerraMaligna.

Kaelie foi até a passagem entre as las de assentos e começou a caminharemdireçãoaopalanque;RobertLightwoodselevantou.

—Éprecisopedir permissãopara se aproximardaConsulesa— informouele,comvozgrave.

— Permissão não concedida— declarou Jia, com rmeza. — Fique ondeestá,KaelieWhitewillow.Estououvindoperfeitamentebem.

Emmasentiuumaondarepentinadepiedadepelafada—todosafuzilavamcom o olhar. Exceto Aline e Helen, que estavam sentadas grudadas uma naoutra, de mãos dadas, com as juntas dos dedos até brancas em função doaperto.

—ACortedasFadaspedesuaclemência—disseKaelie,apertandoasmãosna frente do corpo. — As condições que vocês determinaram são severasdemais. As fadas sempre mantiveram a soberania, nossos próprios reis erainhas. Sempre tivemos guerreiros. Somos um povo ancião. O que estãopedindovainosdestruircompletamente.

Umleveburburinhopercorreuosalão.Nãofoiumruídoamistoso.Jiapegouopapelqueestavasobreamesanafrentedela.

— Vamos revisar?— sugeriu ela. — Solicitamos que as Cortes das Fadasaceitem toda a responsabilidade pelas baixas e pelos danos sofridos porCaçadoresdeSombrase integrantesdoSubmundoduranteaGuerraMaligna.

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OPovodasFadas caráresponsávelpeloscustosdereconstruçãodasbarreirasquebradas, pelo restabelecimento da Praetor Lupus em Long Island e pelareconstrução do que foi destruído emAlicante. Gastarão as próprias riquezascomisso.QuantoaosCaçadoresdeSombrasqueforamtiradosdenós...

— Se está se referindo a Mark Blackthorn, ele foi levado pela CaçadaSelvagem — disse Kaelie. — Não temos jurisdição sobre eles. Terão quenegociardiretamentecomeles,masnãovamosimpedir.

— Ele não foi o único tirado de nós— insistiu Jia.—Há aquilo que nãopodeserreparado:aperdadevidasdeCaçadoresdeSombrase licantropesnabatalha,aquelesqueperdemospeloCáliceInfernal...

—IssofoiSebastianMorgenstern,nãoasCortes—protestouKaelie.—EleeraumCaçadordeSombras.

— E é por isso que não estamos punindo vocês com uma guerra queinevitavelmente perderiam — respondeu Jia, com frieza. — Em vez disso,insistimos para quemeramente desmontem seus exércitos, pela extinção dosguerreiros fada. Não podem mais carregar armas. Qualquer fada encontradaarmadasemlicençadaClaveseráexecutadaimediatamente.

— As condições são severas demais — protestou Kaelie. — O Povo dasFadasnãopodesesujeitaraelas!Senãotivermosarmas,nãoteremoscomonosdefender!

— Colocaremos em votação, então — disse Jia, repousando o papel. —QualquerumquediscordedascondiçõesapresentadasaoPovodasFadas,porfavor,faleagora.

Fez-se um longo silêncio. Emma notou os olhos de Helen percorrendo asala, a boca contraída; Aline a segurava pelo pulso, com força. Finalmenteouviu-seosomdeumacadeirasearrastando,ecoandonosilêncio,euma gurasolitáriaselevantou.

MagnusBane.AindaestavapálidoporcontadoocorridoemEdom,masosolhosverde-douradosbrilhavamcomumaintensidadequeEmmaeracapazdeenxergardooutroladodasala.

— Sei que essa história mundana não interessa muito à maioria dos

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Caçadores de Sombras — disse ele. — Mas houve uma época anterior aosNephilim. Uma época na qual Roma lutou contra a cidade de Cartago, e aolongodemuitas guerras foi vitoriosa.Apósumadasguerras,RomaexigiuqueCartago lhe pagasse tributos, que se des zesse do exército e que a terra deCartagofossecobertadesal.OhistoriadorTácitodisseoseguintedosromanos:“Eles fazem umdeserto e chamam isso de paz.”—Voltou-se para Jia:—Oscartaginesesnunca se esqueceram.OódioaRomasuscitououtraguerra, e talguerraterminouemmorteeescravidão.Aquilonãofoipaz.Istonãoépaz.

Comisso,vieramgritosdaassembleia.—Talveznãoqueiramospaz,feiticeiro!—gritoualguém.—Entãoqualéasuasolução?—questionououtrapessoa.—Clemência—respondeuMagnus.—OPovodasFadashámuitoodeiaos

Nephilim por sua severidade. Mostrem a eles algo além de severidade e emtrocareceberãoalgoalémdeódio!

Umnovoburburinhoseirrompeu,porémdessavezmaisaltoquenunca;Jialevantouamão,eamultidãoseaquietou.

—MaisalguémaquifalaemnomedoPovodasFadas?—perguntouela.Magnus, sentando-se novamente, olhou de soslaio para os colegas do

Submundo, mas Lily sorria e Luke encarava a mesa xamente. Era deconhecimento geral que a irmã dele tinha sido a primeira a ser levada eTransformada em Crepuscular por Sebastian Morgenstern, que muitos doslobos daPraetor eram amigos dele, inclusive JordanKyle— e,mesmo assim,haviadúvidanorostodeLuke...

—Luke—falouMagnus,comumavozsuavequedealgumjeitoconseguiraecoarpelosalão.—Porfavor.

Adúvidadesapareceu.Lukebalançouacabeçadeformasombria.— Não peça o que não posso dar — respondeu. — Toda a Praetor foi

destruída, Magnus. Como representante dos lobisomens, não posso mepronunciarcontraoquetodoselesquerem.Seeu zesseisso,elessevoltariamcontraaClave,enadadebomsairiadisso.

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—Pronto,então—disseJia.—Fale,KaelieWhitewillow.Concordarácomascondiçõesouhaveráumaguerraentrenós?

Ameninafadabaixouacabeça.—Concordamoscomascondições.A assembleia explodiu em aplausos. Apenas alguns não bateram palmas:

Magnus, a la dos Blackthorn, os Lightwood e a própria Emma. Ela estavaocupadademaisobservandoKaelieenquantoafadasesentava.Acabeçapodiaestar abaixada em submissão, mas o rosto parecia carregado de fúriaincandescente.

—Então está feito—disse Jia, claramente satisfeita.—Agorapassaremosaotópicosobre...

—Espere.—UmCaçadordeSombrasmagroedecabelosescurostinhaselevantado. Emma não o reconhecera. Poderia ser qualquer um. Talvez umCartwright? Um Pontmercy? — A questão de Mark e Helen Blackthornpermanece.

Helenfechouosolhos.Pareciaumréunumtribunal—meioqueàesperadeumacondenação,meioquetorcendoporumindulto—,bemnoatoemqueacondenaçãoeradecretada.

Jiapausou,acanetanamão.—Oquequerdizer,Balogh?Baloghselevantou.— Já se discutiu o fato de que as forças de Morgenstern penetraram o

InstitutodeLosAngelescomgrandefacilidade.TantoMarkquantoHelentêmsanguede fada,Sabemosqueomenino jáestácomaCaçadaSelvagem,entãonãopodemosfazernada,masameninanãodevepermanecerentreCaçadoresdeSombras.Nãoéaceitável.

Alineselevantou.—Issoéridículo!—disparou.—HelenéCaçadoradeSombras;semprefoi!

ElatemsanguedoAnjo,vocênãopodeignorarisso!— E sangue de fada— argumentou Balogh.— Ela conseguementir. Para

nossodesgosto, já fomosenganadosporumdaespéciedela.Edigoque temos

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queremoversuasMarcas...Lukebateunamesa,causandoumestrondo;Magnusestavainclinadoparaa

frente,asmãoscomdedoslongoscobrindo-lheorosto,osombrosencolhidos.—Ameninanãofeznada—disseLuke.—Vocênãopodepuni-laporum

acasocongênito.— Acasos congênitos fazem de nós o que somos— rebateu Balogh, com

teimosia.—Vocênãopodenegaro sanguede fadanela.Nãopodenegarqueela conseguementir. Se umanova guerra acontecer, de que lado sua lealdadeestará?

Helenselevantou.—Domesmoladoemqueesteveagora—refutouela.—LuteiemBurren,

naCidadelaeemAlicante,paraprotegerminhafamíliaeprotegerosNephilim.Jamaisdeiqualquermotivoparaquealguémquestionasseminhalealdade.

— É assim que acontece — enfatizou Magnus, levantando-se. — Nãoconseguemenxergarqueéassimquecomeça,denovo?

—Helentemrazão—disseJia.—Elanãofeznadadeerrado.OutraCaçadoradeSombras se levantou,umamulher comcabelos escuros

amontoadosnacabeça.—Com sua licença, Consulesa,mas a senhora não é imparcial— opinou

ela. — Todos nós sabemos da relação de sua lha com a menina fada. Asenhoradeveriaseabsterdadiscussão.

— Helen Blackthorn é necessária, senhora Sedgewick — disse DianaWrayburn, levantando-se. Parecia revoltada; Emma se lembrou dela no Salãodos Acordos, da maneira como tentou ajudá-la. — Os pais dela foramassassinados;elatemcincoirmãosmaisnovosparacuidar...

— Ela não é necessária — disparou Sedgewick. — Estamos reabrindo aAcademia; as crianças podem ir para lá, ou podem se dividir por diferentesInstitutos...

—Não—sussurrouJulian.Asmãosestavamcerradas,apoiadasnosjoelhos.—Dejeitonenhum—berrouHelen.—Jia,vocêdeve...Jiaencontrouosolhosdelaeassentiu,lentaerelutantemente.

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—ArthurBlackthorn—ordenou.—Porfavor,levante-se.EmmasentiuJuliancongelandoemchoqueaoseuladoquandoumhomem

dooutroladodorecinto,oqualestavaocultoemmeioàmultidão,selevantou.Era uma versão magra, mais pálida e menor do pai de Julian, com cabeloscastanhos ralos e os olhos dosBlackthorn semiescondidos por trás de óculos.Estava pesadamente apoiado em uma bengala demadeira, demonstrando umdesconforto que a fez imaginar que o ferimento que requeria a bengala erarecente.

— Gostaria de esperar até depois desta reunião para que as criançasconhecessemo tio adequadamente—disse Jia.—Chamei-o assimque soubedos ataques ao InstitutodeLosAngeles, é claro,mas ele tinha sido ferido emLondres. Só chegou a Idris hoje de manhã. — Ela suspirou. — SenhorBlackthorn,podeseapresentar.

O homem tinha um rosto redondo e simpático, e parecia extremamentedesconfortávelaoserencaradoportantaspessoas.

— Sou Arthur Blackthorn, irmão de Andrew Blackthorn — falou. Seusotaque era britânico; Emma sempre se esquecia que o pai de Julian era deLondresoriginalmente.Eletinhaperdidoosotaqueháanos.—Voumemudarpara o Instituto de Los Angeles assim que possível, e levareimeus sobrinhoscomigo.Ascriançasficarãosobminhaproteção.

—Aqueleérealmenteseutio?—sussurrouEmma,encarandoosujeito.—Sim,éele—sussurrouJuliandevolta,claramenteagitado.—Ésóque...

euimaginava...querodizer,euestavarealmentecomeçandoaacharqueelenãoviria.Eu...eupreferiaqueHelencuidassedenós.

— Ao mesmo tempo em que tenho certeza de que estamos todosincomensuravelmente aliviados por você cuidar das crianças Blackthorn —disse Luke —, Helen é uma delas. Está dizendo que, ao assumir aresponsabilidadepelosirmãosmaisnovos,concordaqueasMarcasdeladevamserremovidas?

ArthurBlackthornpareceuhorrorizado.

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—De jeito nenhum— falou. —Meu irmão pode não ter sido sábio emseus... galanteios...mas todosos registros a rmamqueos lhosdeCaçadoresde Sombras são Caçadores de Sombras. Como dizem,ut incepit delis sicpermanent.

Juliandeslizounoassento.—Maislatim—murmurou.—Exatamentecomopapai.—Oqueissoquerdizer?—perguntouEmma.— “Ela começa leal e termina leal”... algo assim. — Os olhos de Julian

percorreram o salão; todos estavam murmurando e encarando. Jia em umaconversa em surdina com Robert e os representantes do Submundo. Helencontinuavadepé,masAlinepareciaseraúnicacoisaasustentá-la.

Ogruponopalanque se separou, eRobertLightwooddeuumpassoparaafrente.Suaexpressãoeraameaçadora.

—ParaquenãohajaqualquerdiscussãodequeaamizadepessoalentreJiaeHelenBlackthornin uenciousuadecisão,elaseabsteve—informouele.—Orestantedenósdecidiuque,comoHelen tem18anos,a idadeemquemuitosjovensCaçadoresdeSombrassãocolocadosemoutrosInstitutosparaestudar,elairáparaaIlhaWrangelparaestudarasbarreiras.

—Porquantotempo?—manifestou-seBaloghimediatamente.— Por tempo indeterminado — respondeu Robert, e Helen sentou-se na

cadeira,comAlineaolado,orostoexpressandodorechoque.A Ilha Wrangel podia ser o berço de todas as barreiras que protegiam o

mundo,umpostodemuitoprestígiosobmuitosaspectos,maseratambémumailha minúscula no congelado mar Ártico ao norte da Rússia, a milhares dequilômetrosdeLosAngeles.

— Está bom para vocês? — perguntou Jia, com a voz gélida. — SenhorBalogh? Senhora Sedgewick? Vamos votar? Todos a favor de enviar HelenBlackthorn para a IlhaWrangel até que sua lealdade seja determinada, digam“sim”.

Umcorodizendo“sim”eummaisdiscretodizendo“não”atravessouasala.Emmanãodissenada,nemJules;amboseramjovensdemaisparavotar.Emma

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esticou a mão e pegou a de Julian, apertando-a com força; os dedos delepareciam gelo. Ele tinha o olhar de alguém que já havia apanhado tanto quenemqueriamaislevantar.HelensoluçavabaixinhonosbraçosdeAline.

—PermaneceaquestãodeMarkBlackthorn—disseBalogh.—Qualquestão?—perguntouRobertLightwood,soandoexasperado.—O

menino foi levado pela Caçada Selvagem! Na improbabilidade de conseguirnegociar a liberação dele, este não deveria ser um problema com o qualdevamosnospreocuparquandoforahora?

— É justamente isso — disse Balogh. — Desde que não negociemos asoltura, oproblema se resolve sozinho.Omeninoprovavelmente estámelhorcomseussemelhantes.

OrostoredondodeArthurBlackthornempalideceu.—Não—falou.—Meu irmãonãoquereria isso.Ele iriaquereromenino

em casa, com a família. — Ele apontou para onde Emma e Julian estavamsentados.—Tantascoisasjáforamtiradasdeles.Comopodemostirarmais?

—Estamosprotegendo-os.—Sedgewick se irritou.—Contraum irmão eumairmãque,comotempo,provavelmentesóirãotraí-los,eelesvãoperceberque a lealdade deles está com as Cortes. Todos em favor do abandonopermanentedasbuscasporMarkBlackthorndigam“sim”.

Emmaesticouobraçopara segurar Julian enquanto ele se inclinavapara afrente na cadeira. Ela estava desajeitadamente agarrada a ele. Todos osmúsculos de Julian pareciam duros como ferro, como se ele estivesse sepreparando para uma queda ou um golpe. Helen se inclinou para ele,sussurrandoemurmurando,orostodelamarcadoporlágrimas.QuandoAlineesticouo braçopor cimadeHelenpara afagar o cabelode Jules, Emmaviu oanel Blackthorn brilhando no dedo dela. Enquanto o coro dizendo “sim”percorriaorecintoemumaterrívelsinfonia,obrilhodajoiafaziaEmmapensarna luzdo sinalde alertanooceano, ondeninguémpodia ver, ondenãohavianinguémparaseimportar.

Se aquilo era paz e vitória, pensou Emma, talvez guerra e luta fossemmelhores,afinal.

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JacedeslizoudascostasdocavaloeesticouamãoparaajudarClaryadescer.—Chegamos—disseele,virandoparaolharolago.Estavamemumapraia rasana costaoestedoLagoLyn.Nãoera amesma

praia emqueValentim sepostara ao invocaroAnjoRaziel,não era amesmapraiaondeJacesangraraatéamorteedepoisressuscitara,masClarynãovinhaaolagodesdeentão,eavisãodeleaindalhecausavacalafrios.

Era um local adorável, semdúvida.O lago se estendia, tingido pela cor docéude inverno,delineadoemprata,asuperfícieescovadaeonduladademodoque lembravaumpedaçodepapel-alumíniodobrandoedesdobrandoao toquedovento.Asnuvenserambrancasealtas,eascolinasaoredor,semvegetação.

Clary avançou até a beira da água.Tinha achado que amãe viria com ela,masnaúltimahoraJocelynrecusara,alegandojátersedespedidodo lhohaviamuitotempoea rmandoqueestaeraavezdeClary.AClavetinhacremadoocorpo—apedidodeClary.Acremaçãoeraumahonra,eosquemorriamemdesgraça eram enterrados em cruzamentos, intactos e sem cremação, assimcomo acontecera àmãe de Jace. A cremação eramais que um favor, pensouClary;eraumagarantiaparaaClave,acertezaabsolutadequeeleestavamorto.Mas,mesmo assim, as cinzas de Jonathan jamais poderiam ser levadas para acasa dos Irmãos do Silêncio. Jamais fariam parte da Cidade dos Ossos; elejamaisseriaumaalmaentreoutrasalmasNephilim.

Elenuncaseriaenterradoentreaquelescujasmorteshaviaprovocado,eisso,pensouClary,eramuitojusto.OsCrepuscularesforamcremados,esuascinzasenterradasnocruzamentopróximoaBrocelind.Ergueriamummonumentoali,umanecrópoleparaqueserecordassemdaquelesqueumdiaforamCaçadoresde Sombras, no entanto não haveria monumento para recordar JonathanMorgenstern, de quem ninguém queria se lembrar. Até Clary queria poderesquecer,masnadaeratãofácil.

Aáguadolagoestavalímpida,comumligeirobrilhodearco-íris,comoumalustrada de óleo.A água lambeu as botas deClary enquanto ela abria a caixa

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prateada que segurava. Lá dentro estavam as cinzas, nas e cinzentas,pontilhadas com pedaços de ossos queimados. Entre as cinzas estava o anelMorgenstern, brilhante e prateado.O anel estivera pendurado emum cordãono pescoço de Jonathan quando ele fora cremado, e permanecera intacto eintocadopelofogo.

—Nuncativeumirmão—disseela.—Nãodeverdade.ClarysentiuJacecolocandoamãoemsuascostas,entreosombros.—Teve, sim—corrigiu ele.—Teve Simon.Ele foi seu irmãode todas as

maneirasqueimportam.Viuvocêcrescer,defendeuvocê,lutoucomeporvocê,se importoucomvocêavidatoda.Foio irmãoquevocêescolheu.Mesmoqueele...nãoestejamaisaqui,nadanemninguémpodetirarissodevocê.

Claryrespiroufundoejogouacaixaomaislongepossível,aqualvooulonge,sobreaáguabrilhantecomoarco-íris,cinzaspretasdeixandoumrastro,comoa coluna de fumaça de um jatinho, e o anel caiu junto, girando sem parar,irradiandofaíscasprateadasenquantocaíaecaíaedesapareciasobaágua.

— Ave atque vale — disse ela, recitando os versos completos do antigopoema.—Aveatquevaleinperpetuum,frater .Saudaçõeseadeusparasempre,meuirmão.

A brisa que vinha do lago era fria; Clary a sentia no rosto, gelada nasbochechas,esóentãopercebeuquechorava,equeseurostonaverdadeestavafrio por estar molhado pelas lágrimas. Após saber que Jonathan estava vivo,couimaginandoporqueamãechoravatodososanosnoaniversáriodele.Por

que chorar se o odiava? Mas agora Clary compreendia. A mãe chorava pelolhoquenunca teria, por todos os sonhosperdidosna imaginaçãode ter umlho, na ideia de como o menino seria. E chorava pelo acaso amargo que

destruíraaquelacriançaantesmesmodeseunascimento.Então,comoJocelynhaviafeitodurantetantosanos,Clary couaoladodoEspelhoMortalechoroupeloirmãoquejamaisteria,pelomeninoquenuncativeraachancedeviver.EtambémchorouportodososquemorreramnaGuerraMaligna,echoroupelamãe,pelaperdaqueelasofrera,porEmmaepelosBlackthorn,lembrando-sedecomoseesforçaramparaseguraraslágrimasquandoelalhescontaraquetinha

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vistoMark nos túneis de Faerie, e de como ele agora era parte da Caçada, echoroupor Simon e pelo buracono coraçãoonde ele habitara, e pelo quantosentiriasaudadedeletodososdiasatémorrer,echorouporelamesmaepelasmudanças que aconteceramdentro dela, pois às vezesmesmomudanças paramelhorseassemelhavamumpoucoàmorte.

Jace cou ao lado de Clary enquanto ela chorava, segurando sua mãosilenciosamente, até as cinzas de Jonathan acabarem de afundar sem deixarrastros.

—Nãofiqueouvindoaconversaalheia—disseJulian.Emma o encarou. Tudo bem, então ela conseguia ouvir as vozes elevadas

atravésdamadeiraespessadaportadoescritóriodaConsulesa,portaqueestavafechada,excetoporumarachadura.Etalvezestivesseseinclinandoemdireçãoàporta,atormentadapelo fatodepoderouvirasvozes,quase identi cá-las,masnãocomprecisão.Edaí?Nãoeramelhorsaberdascoisasdoquenãosaber?

Elaarticulouabocasememitirsom:—Edaí?Julianergueuassobrancelhas.NãosepodiadizerparticularmentequeJulian

gostavaderegras,maseleasobedecia.Emmaachavaqueregrasexistiamparaseremquebradas,ounomínimocontornadas.

Além disso, estava entediada. Ambos tinham sido conduzidos à porta edeixadosaliporumdosmembrosdoConselho,ao mdo longocorredorqueseestendiaporquasetodaaextensãodoGard.Haviatapeçariaspenduradasportoda a entrada do escritório, gastas pela passagem do tempo.Amaioria delasilustravapassagensdahistóriadosCaçadoresdeSombras:oAnjoascendendodo lago com os Instrumentos Mortais, o Anjo entregando o Livro Gray aJonathanCaçador de Sombras, os PrimeirosAcordos, a Batalha de Xangai, oConselhodeBuenosAires.Haviatambémoutratapeçaria,estaparecendomaisnovaerecém-pendurada,queilustravaoAnjosaindodolago,destavezsemosInstrumentosMortais. Havia um homem louro à beira do lago e, perto dele,quase invisível, a gura de uma menina magrinha com cabelos ruivos,

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empunhandoumaestela...—Umdiavaiexistirumatapeçariasobrevocê—disseJules.Emmadesviouoolharparaele.— É preciso fazer alguma coisa muito grande para ganhar uma tapeçaria.

Tipovencerumaguerra.—Vocêpodevencerumaguerra—afirmouele,confiante.Emmasentiuumligeiroapertonocoração.QuandoJulianaolhavadaquele

jeito, como se ela fosse brilhante e incrível, diminuía um pouco a dor pelaausênciadospais.Teralguémgostandodevocêdaquele jeitoeraumagarantiadequenuncasesentiriatotalmentesó.

AnãoserqueelesdecidissemtirarEmmadeJules,éclaro.Queaobrigassema se mudar para Idris, ou para algum dos Institutos onde tinha parentesdistantes—Inglaterra,ChinaouIrã.Subitamenteempânico,elapegouaestelaemarcouumsímbolodeaudiçãonobraçoantesdeencostaraorelhacontraamadeiradaporta,ignorandooolhardeJulian.

As vozes imediatamente se tornaram claras. Ela reconheceu primeiro a deJia, e em um instante, a segunda: a Consulesa estava conversando com LukeGarroway.

—...Zachariah?ElenãoémaisumCaçadordeSombrasativo—falavaJia.— Ele foi embora hoje antes da reunião, dizendo que tinha algumas pontassoltasparaatar,eemseguidaumcompromissourgenteemLondresnocomeçodejaneiro,algoquenãopodiaperder.

Luke murmurou uma resposta que Emma não ouviu; ela não sabia queZachariahiaembora,egostariadeterpodidoagradecerpelaajudaqueelederananoitedabatalha.EdeterperguntadocomoelesabiaqueseunomedomeioeraCordelia.

ElaseinclinoumaisparaaportaeouviuLukenomeiodeumafrase:— ... tinha que contar primeiro a você — dizia. — Estou planejando

renunciaraminhaposiçãoderepresentante.MaiaRobertsficaránomeulugar.Jiaemitiuumruídosurpreso.—Elanãoéumpoucojovem?

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—Émuitocapaz—respondeuLuke.—Nãoprecisadomeuaval...— Não precisa mesmo — concordou Jia. — Sem o aviso dela de que

Sebastianiriaatacar,teríamosperdidomuitomaisCaçadoresdeSombras.—EelaseráalíderdobandodeNovaYorkapartirdeagora,entãofazmais

sentidoqueela sejaa representante,enãoeu.—Ele suspirou.—Alémdisso,Jia, perdiminha irmã. Jocelyn perdeu o lho... outra vez. E Clary ainda estáarrasadapeloqueaconteceuaSimon.Queroestarpresenteparaminhafilha.

Jiaemitiuumruídodescontente.—Talvezeunãodevessetê-ladeixadotentarligarparaele.—Elaprecisavasaber—disseLuke.—Éumaperda.Elatemqueassimilar.

Temquepassarpeloluto.Gostariadeestarporpertoparaajudá-la.Gostariademecasar.Gostariadeestarpresenteparaminhafamília.Precisorenunciar.

—Bem, você temminha bênção, é claro— falou ela.—Embora eu fossegostar de sua ajuda na reabertura da Academia. Perdemos tanta gente. Faziamuito tempo que amorte não levava tantosNephilim. Precisamos fazer umabuscanouniversomundano, encontrar aquelesquepodemAscender, ensiná-losetreiná-los.Teremosmuitotrabalho.

—Emuitaspessoasparaajudar.—OtomdeLukeerainflexível.Jiasuspirou.—VoureceberMaiabem,nãoháoque temer.PobreMagnus, cercadode

mulheres.—Duvido que ele vá se importar, ou notar—disse Luke.—No entanto,

devo dizer, ele tem razão, Jia. Abandonar as buscas por Mark Blackthorn,enviarHelenBlackthornparaaIlhaWrangel...Foiumacrueldadedesmedida.

Fez-seumapausa,eentão:—Eusei—concordouJia,comavozbaixa.—Achaquenãoseioque z

comminhaprópria lha?MaspermitirqueHelen casse...vioódionosolhosde meus próprios Caçadores de Sombras e temi por Helen. Temi porMark,casooencontremos.

— Bem, já eu notei a desolação nos olhos das crianças Blackthorn —argumentouLuke.

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—Criançassãofortes.—Eles perderamo irmão e o pai, e agora você os está deixando para que

sejamcriadosporumtioquesóviramalgumasvezesnavida...— Vão passar a conhecê-lo; ele é um homem bom. Diana Wrayburn

também já solicitouo cargode tutora deles, e estou inclinada a conceder. Elaficouimpressionadacomacoragemdeles...

—Masnãoémãedeles.Minhamãemeabandonouquandoeueracriança—disseLuke.—ElasetornouumaIrmãdeFerro.Cleophas.Nuncamaisavi.Amatismecriou.Nãoseioqueteriafeitosemela.Era...tudoqueeutinha.

EmmaolhourapidamenteparaJulian,paraverseeletinhaescutado.Achouque não; ele não estava olhando para ela, mas encarando o nada, os olhosverde-azulados tão distantes quanto o oceano ao qual se assemelhavam. Elacou se perguntando se ele estaria se lembrando do passado ou temendo o

futuro; desejou que pudesse rebobinar o relógio, recuperar os pais, devolver opaiaJules,HeleneMark,consertaroqueestavaquebrado.

— Sinto muito por Amatis — disse Jia. — E estou preocupada com ascrianças Blackthorn, acredite. Mas sempre tivemos órfãos; somos Nephilim.Vocêsabedissotãobemquantoeu.QuantoàmeninaCarstairs,serátrazidaaIdris;temoqueelafiqueumpoucoresistente...

Emmaempurrouaportadoescritório,aqualcedeucommais facilidadedoque ela esperava, e ela meio que caiu lá dentro. Ouviu Jules soltar umaexclamaçãodeespantoeemseguida ir atrásdela,puxandoa traseiradocintoparacolocá-ladepé.

—Não!—exclamouela.Tanto Jia quanto Luke a encararam, surpresos; a boca de Jia parcialmente

aberta,Lukecomeçandoaesboçarumsorriso.—Umpouco?—disseele.—EmmaCarstairs—começouJia,levantando—,comovocêousa...—Comovocêousa.—EEmma coucompletamentesurpresapor tersido

Julianadizeraquelafrase,seusolhosverdesqueimando.Emcincosegundosele

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passoudemeninopreocupadoajovemfurioso,oscabeloscastanhosarrepiados,comosetambémestivessemirritados.—ComoousagritarcomEmmaquandofoivocêquemfezpromessas?VocêprometeuqueaClave jamaisabandonariaMarkenquantoeleestivessevivo,vocêprometeu!

Jiateveadecênciadeparecerenvergonhada.—EleagorafazpartedaCaçadaSelvagem—justi couela.—Elesnãosão

mortosnemvivos.—Entãovocêsabia—disseJulian.—Quandofezsuapromessa,sabiaque

nãosignificavanada.—Signi cavasalvarIdris—respondeuJia.—Sintomuito.Precisávamosde

vocêsdois,eeu...—Elasooucomoseestivesseengasgandocomaspalavras.—Euteriacumpridoapromessacasopudesse.Sehouvesseumjeito...sepudesseserfeito...eufaria.

— Então você tem uma dívida conosco— disse Emma, plantando os péscom rmeza diante damesa da Consulesa.— Você nos deve uma promessaquebrada.Entãotemquefazeristoagora.

—Fazeroquê?—Jiapareceuespantada.—NãovoumemudarparaIdris.Nãovou.MeulugaréemLosAngeles.EmmasentiuJulescongelaratrásdela.—ClaroquevocênãovaisemudarparaIdris—interrompeuele.—Doque

estáfalando?EmmaapontouumdedoacusatórioparaJia.—Eladisseisso.—Dejeitonenhum—falouJulian.—EmmamoraemLosAngeles;éacasa

dela.Pode carnoInstituto.ÉoqueCaçadoresdeSombras fazem.OInstitutoéumabrigo.

—SeutiovaicontrolaroInstituto—disseJia.—Elevaidecidir.—Eoqueeledisse?—perguntouJulian,eportrásdaquelaspalavrashavia

uma enormidade de sentimentos. Quando Julian amava alguém, amava parasempre; quando odiava, também era para sempre. Emma tinha a sensação dequeadúvidasobreodiarouamarotioparasempreseriarespondidanesteexato

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momento.—Ele disse que a receberia— respondeu Jia.—Mas, sinceramente, acho

quehálugarparaEmmanaAcademiadeCaçadoresdeSombrasaquiemIdris.Ela é excepcionalmente talentosa, estaria cercada pelos melhores instrutores,hámuitosalunosquesofreramperdasepodemajudá-lacomsuador...

Suador .DerepenteamentedeEmmanavegouporumasériede imagens:asfotosdoscorposdeseuspaisnapraia,cobertospormarcas.AclarafaltadeinteressedaClavenoqueaconteceracomeles.Seupaiabaixandoparabeijá-laantesdeirparaocarro,ondesuamãeesperava.Arisadadelesaovento.

—Eusofriperdas—falouJulian,entredentes.—Possoajudá-la.—Vocêtem12anos—afirmouJia,comoseissorespondessetudo.— Não terei 12 para sempre! — gritou Julian. — Eu e Emma nos

conhecemosdesdesempre.Elaécomo...elaécomo...— Nós vamos serparabatai — declarou Emma subitamente, antes que

Julianpudesse falarqueelaeracomose fossesua irmã.Poralgummotivo,elanãoqueriaouvirisso.

Osolhosdetodossearregalaram,inclusiveosdeJulian.— Julian me pediu, e eu disse sim — esclareceu ela. — Temos 12 anos;

temosidadesuficienteparafazeressaescolha.OsolhosdeLukebrilharamaoolharparaela.—Vocênãopodesepararparabatai—falouele.—ÉcontraaLeidaClave.—Precisamospodertreinarjuntos—alegouEmma.—Fazerprovasjuntos,

passarpeloritualjuntos...—Sim,sim,compreendo—disseJia.—Muitobem.Seutionãoseimporta,

Julian, se Emmamorar no Instituto, e a instituiçãoparabatai supera todas asoutras considerações.—Ela olhoudeEmmapara Julian, cujos olhos estavambrilhando.Elepareciafeliz,felizdeverdade,pelaprimeiravezemtantotempoqueEmmaquasenãoconseguia se lembrardaúltimavezemqueovira sorrirassim.—Temcerteza?—acrescentouaConsulesa.—Tornar-se parabatai éalgomuitosério,nadaparaserencaradocom leviandade.Éumcompromisso.Terãoquecuidarumdooutro,protegerumaooutro,seimportarcomooutro

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maisqueconsigo.—Jáfazemostudoisso—respondeuJulian,confiante.Emmademorouumpoucomaisparafalar.Aindaenxergavaospaisemsua

mente.LosAngelestinhatodasasrespostassobreoquehaviaacontecidocomeles. Respostas das quais ela precisava. Se ninguém vingasse as mortes deles,seriacomosenuncativessemvivido.

EnãoeracomoseelanãoquisesseserparabataideJulian.Aideiadepassara vida inteira semnunca se separar dele, umapromessa de que jamais estariasozinha,superavaavoznofundodesuamentequesussurrava:espere...

Elaassentiucomfirmeza.—Absoluta—falou.—Temoscertezaabsoluta.

Idris era verde, dourada e castanho-avermelhada no outono, quando Claryesteve lá pela primeira vez. Tinha um esplendor forte no mdo inverno, tãopertodonatal:asmontanhasseerguiamaolonge,oscumescobertospornevebranca,easárvorescercandoaestradaquelevavadevoltaaAlicanteapartirdolago estavam nuas, os galhos desfolhados formavam estampas semelhantes arendacontraocéubrilhante.

Cavalgaramsempressa,Wayfarergalopandolevementepelocaminho,Claryatrás de Jace, os braços segurando-o pelo tronco. Às vezes ele desacelerava ocavalo para apontar para as casas das famílias deCaçadores de Sombrasmaisricas,que cavamescondidasdaestradaquandoasárvoresestavamcarregadas,no entanto estavam visíveis agora. Ela sentiu os ombros dele enrijeceremquandopassaramporumacujaspedrascobertasporheraquasesecamu avamnaflorestaaoredor.Obviamentetinhasidoincendiadaereconstruída.

—OsolarBlackthorn—disseele.—Oquesigni caquedepoisdestacurvaestá...—ElepausouquandoWayfarersubiuumpequenomonte,eentãoJaceocontrolouparaquepudessemolharparaondeaestradasebifurcava.Umadasdireções levava a Alicante. Clary achou estar vendo as torres demoníacas aolonge, enquanto a outra se curvava em direção a uma enorme construção depedrasdouradas,cercadaporummurobaixo.—OsolarHerondale—concluiu

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Jace.O vento aumentou; gelado, soprou os cabelos de Jace. Clary estava com o

capuz levantado,mas Jace estava com a cabeça e asmãos desprotegidas, apósdeclararquedetestavausar luvasquandomontava.Gostavadesentirasrédeasnamão.

—Querdesceredarumaolhada?—perguntouela.Arespiraçãodelesaiuemumanuvembranca.—Nãotenhocerteza.Elaseaconchegoumaispertodele,tremendo.—EstácommedodeperderareuniãodoConselho?—Elaestava,apesarde

que fossem voltar para Nova York no dia seguinte e não fosse haver outromomentonoqualelapoderiapensaremrepousarsecretamenteascinzasdeseuirmão;foraJacequemsugerirapegarocavalonoestábuloecavalgaratéoLagoLyn quando quase todomundo em Alicante estivesse no Salão dos Acordos.Jace entendia o que signi cava para Clary a ideia de enterrar o irmão,muitoemborafosseserdifícilexplicarparaqualqueroutrapessoa.

Elebalançouacabeça.—Somosjovensdemaisparavotar.Alémdisso,achoqueelessevirambem

semnósdois.—Elefranziuatesta.—Teríamosqueinvadir.AConsulesadissequeenquantoeuquisermechamarLightwood,nãotereiqualquerdireitolegalsobre as propriedades Herondale. Sequer tenho um anel Herondale. Nemexiste.AsIrmãsdeFerroteriamqueforjarumnovo.Inclusive,quandoeu zer18anos,perdereitotalmenteodireitoaonome.

Clary cou sentada, parada, segurando levemente a cintura dele. Haviamomentosemqueelequeriaserestimuladoequeriaque zessemperguntas,emomentos em que não queria. Este se encaixava na segunda opção. Jacechegaria aumaconclusão sozinho.Elao abraçou, respirandobaixinhoaté eleficartensoderepenteebaterospésnaslateraisdeWayfarer.

O cavalo trotou pela trilha que levava ao solar. Os portões baixos —decorados em ferro commotivos de pássaros voando— estavam abertos, e atrilha levava a uma entrada circular de cascalhos, ao centroda qual havia um

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chafariz de pedra, agora seco. Jace foi até a frente dos amplos degraus quelevavamàportaprincipaleficouolhandoparaasjanelasvazias.

—Foiaquiquenasci—informou.—Aquiqueminhamãemorreu,eondeValentimmearrancoudocorpodela.EondeHodgemepegouemeescondeu,paraqueninguémsoubesse.Tambémerainverno.

—Jace...—Elaabriuasmãossobreopeitodele,sentindoocoraçãocomosdedos.

—AchoquequeroserumHerondale—disseelesubitamente.—EntãosejaumHerondale.—NãoquerotrairosLightwood—falou.—Sãominhafamília.Maspercebi

queseeunãoassumironomeHerondale,estemorrerácomigo.—Nãoéresponsabilidadesua...—Eusei—respondeu.—Nacaixa,aquelaqueAmatismedeu,tinhauma

cartadomeupaiparamim.Eleescreveuantesdeeunascer.Lialgumasvezes.Nas primeiras vezes em que li, simplesmente o odiei, apesar de ele ter faladoque me amava. Mas havia algumas frases que não consegui tirar da minhacabeça. Ele disse “quero que você seja um homemmelhor do que eu fui. Nãodeixequeninguém lhedigaquemvocêéoudeve ser ”.—Ele inclinoua cabeçaparatrás,comosecapazdelerofuturonacurvadascalhasdosolar.—Mudaro nome não muda a natureza. Veja só Sebastian... Jonathan. Chamar-seSebastian não fez a menor diferença no m. Eu queria me livrar do nomeHerondale porque achava que odiavameu pai,mas não o odeio. Ele pode tersidofracoefeitoasescolhaserradas,masestavacientedisso.Nãotenhorazãoparaodiá-lo.EhouvegeraçõesdeHerondaleantesdele;éumafamíliaque fezmuitascoisasboas,entãodeixarestacasainteiraruirsóparamevingardemeupaiseriaumdesperdício.

—Estaéaprimeiravezqueouçovocêchamá-lodepai,equesoacomotal—disseClary.—NormalmentevocêsófalaassimdeValentim.

Elao sentiu suspirar, e entãocobriuasmãosdela comadele,queestavamemseupeito.Osdedoslongoseesguiosestavamgelados,tãofamiliaresqueela

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seriacapazdereconhecê-losnoescuro.—Podemosmoraraquiumdia—disseele.—Juntos.Elasorriu,sabendoqueelenãopodiavê-la,massemconseguirseconter.— Acha que me ganha com uma casa chique?— brincou ela.— Não se

precipite,Jace.JaceHerondale—acrescentou,eoabraçounofrio.

Alec estava sentado na beira do telhado, balançando os pés. Supunha que sealgum dos pais retornasse para casa e olhasse para cima, eles o veriam ali egritariamcomele,masduvidavaqueMaryseouRobertfossemvoltartãocedo.ForamchamadosaoescritóriodaConsulesadepoisdareuniãoeprovavelmenteaindaestavamlá.OnovotratadocomoPovodasFadasseriaacertadoaolongodasemanaseguinte, eduranteesteperíodoeles cariamemIdris, enquantoorestantedosLightwoodvoltaria aNovaYork e comemoraria o ano-novo semeles. Alec tecnicamente iria administrar o Instituto naquela semana. Ficousurpresoemdescobrirqueestavaansiosoporisso.

Talresponsabilidadeeraumaboaformadedistrairamentedeoutrascoisas.CoisascomooestadodeJocelynquandoseu lhomorrera,ouamaneiracomoClary abafara seus soluços silenciosos contra o chão ao perceber que tinhamvoltadodeEdomsemSimon.AexpressãodeMagnus,carregadadedesespero,enquantodiziaonomedeseupai.

AperdaerapartedavidadosCaçadoresdeSombras,eraalgoesperado,masisso não ajudara Alec em nada ao ver a expressão de Helen no Salão doConselhoquandoelafoiexiladaparaaIlhaWrangel.

—Não havia nada que você pudesse fazer.Não se condene.—A voz erafamiliar; Alec cerrou os olhos, tentando regular a respiração antes deresponder.

— Como chegou aqui em cima?— perguntou. Fez-se um ruído de tecidofarfalhando enquanto Magnus se acomodava ao lado de Alec na beira dotelhado.

Alec arriscou uma olhada de soslaio para ele. Só tinha vistoMagnus duasvezes,brevemente,desdeavoltadeEdom;umaquandoos IrmãosdoSilêncio

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os liberaramdaquarentena, e outrano SalãodoConselho.Emnenhumadasocasiões conseguiram conversar.Alec o olhava agora comuma ansiedade quedescon avaestarmaldisfarçada.Magnusjárecuperaraacorsaudáveldepoisdaaparência desgastada que adquirira em Edom; os hematomas estavampraticamente curados, os olhos tinham recuperado a luz, brilhando sob o céucrepuscular.

Alec se lembrou de ter abraçado Magnus no reino demoníaco, quando oencontrou acorrentado, e cou imaginando por que essas coisas eram maisfáceisquandovocêachavaqueestavaprestesamorrer.

—Eudeveria ter faladoalgumacoisa—comentouAlec.—Voteicontraoexílio.

—Eusei—disseMagnus.—Vocêemaisoumenosoutrasdezpessoas.AvotaçãofoiimensamentefavorávelaoexíliodeHelen.—Elebalançouacabeça.— As pessoas se assustam e descontam em qualquer um que julgam serdiferente.Éamesmahistóriaquejávimilvezes.

—Fazcomqueeumesintatãoinútil.—Vocêétudomenosinútil.—Magnusinclinouacabeçaparatrás,osolhos

vasculhandoocéuenquantoasestrelascomeçavamaaparecer,umaauma.—Salvouminhavida.

—EmEdom?—perguntouAlec.—Ajudei,masnaverdade...vocêsalvouaprópriavida.

—Não só em Edom— falouMagnus.— Eu tinha... eu tenho quase 400anos de idade, Alexander. Feiticeiros, à medida que envelhecem, começam acalci car.Paramdeconseguirsentircoisas.Deseimportar,deseanimar,desesurpreender.Eu sempredisse amimque isso jamais aconteceria comigo.QueeutentariasercomoPeterPan,quenãocresceria,sempreconservariaosensodesurpresa.Quesempremeapaixonaria,mesurpreenderia,medisporiaamemachucartantoquantomedisporiaaserfeliz.Masaolongodosúltimosvinteanosmaisoumenos,sentiaidademealcançarassimmesmo.Antesdevocê,eunão tinhaninguémhámuito tempo.Ninguémqueeu tenhaamado.Ninguémque tenha me surpreendido ou me tirado o fôlego. Até você entrar naquela

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festa,euachavaquenuncamaisvoltariaasentircomtantaintensidade.Alecprendeuarespiraçãoeolhouparaasprópriasmãos.—Oqueestádizendo?—Avozsaiutrêmula.—Quequerreatar?—Sevocêquiser—falouMagnus,edefatosoouinseguro,osu cientepara

Alec encará-lo, surpreso. Magnus parecia muito jovem, olhos arregalados,verde-dourados,ocabelotocandoastêmporasemcachosnegros.—Sevocê...

Alec cou paralisado.Há semanas vinha sonhando acordado comMagnusfalando aquelas exatas palavras, mas agora que estava acontecendo, não sesentiacomoimaginara.Nãohouvefogosdeartifícionopeito;sentia-sevazioefrio.

—Nãosei—respondeu.AluznosolhosdeMagnusseapagou.Eledisse:—Bem,consigoentenderquevocê...nãofuimuitogentil.—Não—respondeuAlecbruscamente.—Não foi,massuponhoqueseja

difícilterminarcomalguémdemodogentil.Aquestãoéquerealmente lamentopeloque z.Errei.Erreifeio.Masomotivopeloqualerreinãovaimudar.Nãopossopassar a vida coma sensaçãodequenãoo conheço.Você cadizendoquepassadoépassado,masopassadofezdevocêquemé.Euquerosabersobrea sua vida. E, se não estiver disposto ame contar, então não devo car comvocê.Porqueeumeconheço,enuncavouaceitar issonaboa.Entãonãodevosubmeternósdoisatudooutravez.

Magnus puxou os joelhos para o peito. No crepúsculo, ele pareciadesengonçadocontraas sombras, compernasebraços longosededosesguiosbrilhandoporcausadosanéis.

—Euteamo—disseelebaixinho.—Não...— retrucouAlec.—Não faça isso.Não é justo.Alémdisso...—

Eledesviouoolhar.—Duvidoqueeusejaoprimeiroapartirseucoração.—MeucoraçãojáfoipartidomaisvezesqueaLeidaClavesobreCaçadores

de Sombras não poderem se envolver romanticamente com integrantes doSubmundo foi violada— falouMagnus,mas a voz soou frágil.—Alec... vocêtemrazão.

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Alec olhou de esguelha para ele. Descon ava que provavelmente nuncatinhavistoumfeiticeirotãovulnerável.

—Nãoéjustocomvocê—disseMagnus.—Eusempredisseamimmesmoque iameabriranovasexperiências,entãoquandocomeceia...aendurecer...quei surpreso. Achei que tivesse feito tudo certo, que não tivesse fechado o

coração. E aí pensei no que você falou, e percebi que estava começando amorrer por dentro. Se jamais conta a ninguém a verdade sobre si, em algummomentocomeçaaesquecê-la.Oamor,ador,aalegria,odesespero,ascoisasboas que z, as vergonhosas... se eu guardasse todas para mim, minhaslembrançascomeçariamadesaparecer.Eeudesapareceria.

—Eu...—Alecnãosabiaaocertooquedizer.—Tivemuitotempoparapensardesdequeterminamos—falouMagnus.—

Eescreviisto.—Eletirouumcadernodobolsointernodopaletó:umcadernonormal, em espiral e com folhas pautadas, mas quando o vento bateu, Alecnotouqueaspáginasestavampreenchidasporumaletracursivabemdelicada.AletradeMagnus.—Escreviaminhavida.

Alecarregalouosolhos.—Avidatoda?— Não toda — respondeu Magnus cautelosamente. — Mas alguns dos

incidentes que me moldaram. Como conheci Raphael, quando ele era bemjovem— falouMagnus, e soou triste.—Comome apaixonei porCamille.Ahistória doHotelDumort, emboraCatarina tenha precisadome ajudar nessaparte. Alguns dos meus primeiros amores, e alguns dos últimos. Nomes quevocêtalvezconheça:Herondale...

—Will Herodale— disse Alec.— Camille o mencionou.— Ele pegou ocaderno; as páginas nas pareciam irregulares, como se Magnus tivessepressionadoacanetacommuitaforçaenquantoescrevia.—Vocêesteve...comele?

Magnusriuebalançouacabeça.—Não...mashámuitosHerondalenessaspáginas.O lhodeWill, James

Herondale,eraincrível,assimcomoairmãdeJames,Lucie.Masdevodizerque

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Stephen Herondale me fez perder o encanto pela família, até Jace aparecer.Aquelesujeitoeraumsaco.—MagnusnotouAlecencarando-oeacrescentourapidamente:—NenhumHerondale.NenhumCaçadordeSombras,aliás.

—NenhumCaçadordeSombras?— Nenhum está em meu coração como você está — disse Magnus. E

tamborilou levemente no caderno.—Considere esta uma primeira edição detudoquequerolhecontar.Eunãotinhamuitacerteza,mastorciparaque...sevocê quisesse car comigo, do mesmo jeito que quero car contigo, vocêencarasseistocomoumaprova.Provadequequerodaravocêalgoquenuncadei a ninguém: meu passado, a verdade a meu respeito. Quero compartilharminhavidacomvocê,eissosigni cahoje,ofuturoetodomeupassado,sevocêquiser.Semequiser.

Alec baixou o caderno. Havia algo escrito na primeira página, umadedicatória:QueridoAlec...

Ele via o caminho diante de si muito claramente: poderia devolver ocaderno, afastar-se de Magnus, encontrar outra pessoa, um Caçador deSombras para amar, car com ele, compartilhar a previsibilidade de dias enoites,apoesiadiáriadeumavidacomum.

OupoderiadarumpassoparaonadaeescolherMagnus, suapoesiamuitomaisestranha,seubrilhoesuafúria,seusmaus-humoresealegrias,asincríveishabilidadesdesuamagiaeamagianãomenosincríveldaformaextraordináriacomoeleamava.

Eissomalcon guravaumaescolha.Alecrespiroufundoemudoudeatituderepentinamente.

—Tudobem—falou.Magnus correupara ele no escuro, todo enérgico agora, olhos brilhantes e

maçãsdorostoacentuadas.—Sério?—Sério—respondeuAlec,queesticouamãoeentrelaçouosdedosnosde

Magnus.

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HaviaumaanimaçãosendodespertadanopeitodeAlec,ondeatéentãotudoestiveraescuro.MagnussegurouorostodeAleceobeijou,seutoqueleve:umbeijolentoesuave,umbeijoqueprometiaquehaviamaisporvir,quandonãoestivessem mais em um telhado e pudessem ser vistos por qualquer um quepassasse.

— Então sou seu primeiro Caçador de Sombras, hein?— perguntou Alecquandofinalmenteseafastaram.

—Vocêémeuprimeiromuitacoisa,AlecLightwood—respondeuMagnus.

OsolestavasepondoquandoJacedeixouClarynacasadeAmatis,abeijouevoltoupelocanalparaacasadaInquisidora.Clary couobservando-oseafastarantes de virar para casa com um suspiro. Sentia-se feliz por estarem indoemboranodiaseguinte.

Havia coisas que ela amava em Idris. Alicante continuava sendo a cidademais charmosaque já vira: acimadas casas, agora, davapara ver opôrdo solfazendofaíscasirradiaremdostoposdastorresdemoníacas.As leirasdecasaspelo canal eram suavizadas pela sombra, como silhuetas de veludo. Mas eraextremamentetristeentrarnacasadeAmatis,sabendoagora,comcerteza,queadonajamaisvoltaria.

Pordentroacasaestavaaconcheganteepoucoiluminada.Lukeencontrava-se no sofá, lendo um livro. Jocelyn dormia ao lado dele, encolhida e coberta.LukesorriuparaClaryassimqueelaentrou,eapontouparaacozinha,fazendoumgestobizarroqueClaryentendeucomoumaindicaçãodequehaviacomida,casoelaquisesse.

Ela balançou a cabeça a rmativamente e subiu as escadas nas pontas dospés, com cuidado para não acordar a mãe. Foi para o quarto, já tirando ocasaco,elevouuminstanteparaperceberquehaviamaisalguémali.

Oquarto estava frio,o argeladoentrandopela janela semicerrada. Isabelleestava sentada no parapeito, com botas de cano alto cobrindo a calça jeans ecom os cabelos soltos, esvoaçando singelamente ao vento. Olhou para Claryquandoelaentrou,esorriufracamente.

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Clary foiatéa janelaesentouao ladodeIzzy.Haviaespaçosu cienteparaasduas,masno limite; apontado sapatodeClary tocou apernade Izzy.Elaabraçouosjoelhoseesperou.

—Desculpe— falou Isabelle, a nal.— Eu provavelmente devia ter vindopelaportadafrente,masnãoqueriaterquelidarcomseuspais.

—FoitudobemnareuniãodoConselho?—perguntouClary.—Aconteceualgumacoisa...

Isabelledeuumarisadacurta.—AsfadasconcordaramcomascondiçõesimpostaspelaClave.—Bem,issoébom,certo?— Talvez. Magnus não pareceu achar. — Isabelle exalou. — É só que...

Houveummontedeal netadascheiasdemágoaeraivaespetandopara todososlados.Nãopareceuumavitória.EvãomandarHelenBlackthornparaaIlhaWrangelpara“estudarasbarreiras”.Vaientender.Queremafastá-laporqueelatemsanguedefada.

—Quehorror!EAline?—Alinevai junto.ElacontouparaAlec—relatouIsabelle.—Temumtio

qualquerque vai vir para cuidardospequenosBlackthorn edamenina, a quegostadevocêedeJace.

—OnomedelaéEmma—disseClary,cutucandoapernadeIsabellecomopé.—Vocêpodiaaomenostentarselembrar.Elanosajudou,afinal.

—É,estáumpoucodifícilsentirgratidãonomomento.Isabellepassouasmãospelaspernasenvoltasnojeanserespiroufundo.—Seiquenãotinhaoutrasolução.Ficotentandoimaginaralguma,masnão

consigopensaremnada.TínhamosqueiratrásdeSebastian,tínhamosquetersaído de Edom, ou todos teríamosmorrido de qualquer jeito,mas estou comsaudades de Simon. Sinto falta dele o tempo todo e vim aqui porque você é aúnicapessoaquesentetantasaudadequantoeu.

Clarycongelou.Isabelleestavabrincandocomapedravermelhanopescoço,olhandopela janela,otipodeolhar xoqueClaryconheciabem.Oolharquediziaestoutentandonãochorar.

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—Eu sei— falouClary.—Também sinto saudade dele o tempo todo, sóquedeumjeitodiferente.Écomoacordarsemumbraçoouumaperna,comosefosseumacoisaqueeusempretive,enaqualsempremeapoiei,eagoranãotenhomais.

Isabellecontinuavaolhandopelajanela.—Contesobreotelefonema—pediuela.— Não sei — hesitou Clary. — Foi horrível, Iz. Não acho que você

realmentequeira...—Conte—Isabellerepetiuentredentes,eClarysuspiroueassentiu.Não era como se não se lembrasse; todos os segundos daquele telefonema

ardiamemseucérebro.Fazia trêsdiasquetinhamvoltado, trêsdiasduranteosquais todos caram

emquarentena.NuncanenhumCaçadordeSombrashavia sobrevividoaumaviagemaumadimensãodemoníaca,eosIrmãosdoSilêncioqueriamtercertezaabsolutadequeogruponãoestavatrazendomagianegraconsigo.ClarypassouostrêsdiasgritandocomosIrmãosdoSilêncioquequeriasuaestela,queriaumPortal,queriaverSimon,queriaquealguémapenasverificassecomoeleestava,secerti cassedequeestavabem.NãoviuIsabellenemosoutrosnaquelesdias,nem mesmo a mãe ou Luke, mas eles provavelmente caram aos berrostambém,poisnoinstanteemqueforamliberadospelosIrmãosdoSilêncio,umguardaapareceuelevouClaryatéoescritóriodaConsulesa.

Dentro do escritório da Consulesa, no Gard, no topo da Colina de Gard,situava-seoúnicotelefoneativoemAlicante.

Tinha sido enfeitiçadopelo feiticeiroRagnorFellpara funcionar emalgummomentonaviradadoséculo,poucoantesdodesenvolvimentodasmensagensde fogo.Sobreviveraadiversas tentativasde remoçãosoboargumentodequepoderia comprometer as barreiras de proteção, considerando que nuncademonstraraqualquersinaldisto.

A única outra pessoa no recinto era Jia Penhallow, e ela gesticulou paraClarysentar.

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—MagnusBanemeinformousobreoqueaconteceucomseuamigoSimonLewis no reino demoníaco — disse. — Gostaria de apresentar meussentimentosporsuaperda.

—Ele nãomorreu— respondeuClary através dedentes cerrados.—Pelomenosnãodeveriatermorrido.Alguémsedeuotrabalhodeveri car?Alguémfoiinvestigarseeleestábem?

— Sim — respondeu Jia, um tanto inesperadamente. — Ele está bem,morandoemcasacomamãeeairmã.Parecetotalmentebem:nãoémaisumvampiro, é claro,mas simplesmente ummundano levando uma vida normal.Peloquepudemosobservar,elenãoparece terqualquer lembrançadoMundodasSombras.

Claryseencolheu,emseguidaseaprumou.—Querofalarcomele.Jiacontraiuoslábios.—VocêconheceaLei.NãopodecontaraummundanosobreoMundodas

Sombras, a não ser que o mundano em questão esteja correndo perigo. Nãopode revelar a verdade, Clary. Magnus disse que o demônio que os libertouavisouavocêssobreisso.

Odemônio que os libertou . EntãoMagnus não revelara que tinha sido seupai;nãoqueClaryoculpasseporisso.Elatambémnãorevelariaosegredodele.

— Não vou revelar nada a Simon, tudo bem? Só quero ouvir a voz dele.Precisosaberqueeleestábem.

Jiasuspiroueempurrouotelefoneparaela.Clarypegou, imaginandocomosediscavadeIdris—comopagavamacontadetelefone?—,entãodeixouparalá, ia ligar como se estivesse no Brooklyn. Se não desse certo, pediriaorientações.

Para sua surpresa o telefone tocou, e foi atendido quase imediatamente, avozfamiliardamãedeSimonecoandopelalinha.

—Alô?— Alô. — O fone quase escorregou da mão de Clary; estava com a mão

ensopadadesuor.—Simonestá?

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—Como?Ah,sim,eleestánoquarto—respondeuElaine.—Quemfala?Claryfechouosolhos.—ÉClary.Fez-seumsilênciobreve,eemseguidaElainefalou:—Desculpe,quem?—ClaryFray.—Sentiuumgostoamargodemetalnofundodagarganta.—

Eu...euestudonaSaintXavier.Ésobrenossodeverdeinglês.—Ah!Sim,muitobem,então—respondeuElaine.—Vouchamá-lo.—Ela

apoiou o fone, e Clary aguardou enquanto amulher que expulsara Simon decasa e o chamara de monstro, abandonando-o ajoelhado enquanto vomitavasangue numa vala, fosse chamá-lo para atender o telefone como umadolescentecomum.

Não foi culpa dela. Foi a Marca de Caim, atuando sem que ela tivesseconhecimento, transformando Simon em um viajante, cortando-o da família ,disse Clary a si, no entanto sem conseguir fazer com que o ardor de fúria eansiedade parasse de correr por suas veias. Ouviu os passos de Elaine seafastando,murmúrios,maispassos...

—Alô?—EraavozdeSimon,eClaryquasederrubouotelefone.Ocoraçãodela batia violentamente. Conseguia visualizá-lo com tanta clareza, magro ecomcabelos castanhos, se apoiandonamesano corredor estreito logo após aportadeentradadosLewis.

—Simon—disseela.—Simon,soueu.Clary.Fez-seumapausa.Quandofalounovamente,elepareceuespantado.—Eu...agenteseconhece?Cadapalavrafoicomoumpregosendomarteladoemsuapele.— Fazemos aula de inglês juntos — disse ela, o que de certa forma era

verdade; ambos faziam quase todas as aulas juntos quando Clary aindafrequentavaocolégiomundano.—SenhorPrice.

— Ah, certo. — Ele não soou antipático; foi alegre o su ciente, porémespantado. — Sinto muito. Sou péssimo com nomes e rostos. Tudo bem?Minhamãe falou alguma coisa sobre dever de casa,mas acho que não temos

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nenhumhoje.—Possofazerumapergunta?—disseClary.— SobreUmcontodeduas cidades ?—Ele soou entretido.—Olhe, ainda

não li. Gosto de coisas mais modernas.Ardil 22 ,O apanhador no campo decenteio, essas coisas. — Estava ertando um pouco, pensou Clary. Ele deviapensar que ela havia telefonado do nada por tê-lo achado bonitinho. Umagarotaqualquerdaescolaqueelesequerconhecia.

—Queméapessoaquevocêmaisconsiderasuaamiga?—perguntouela.—Nomundointeiro?

Eleficouemsilêncioporuminstante,emseguidariu.—DeviaterimaginandoqueerasobreEric—disseele.—Sabe,sequisesse

otelefonedele,bastavaterpedido...Clarydesligoue cou sentadaolhandoparao aparelho como se fosseuma

cobra venenosa. Teve consciência da voz de Jia, perguntando se estava bem,perguntandooquetinhaacontecido,maselanãorespondeu,apenasenrijeceuamandíbula,absolutamentedeterminadaanãochorarnafrentedaConsulesa.

—Nãoachaqueele talvez sóestivesse ngindo?—dizia Isabelleagora.—Fingindoquenãosabiaquemvocêera,sabe,porquepodiaserperigoso?

Clary hesitou. A voz de Simon tinha soado tão jovial, tão banal, tãocompletamentecomum.Ninguémseriacapazdefingiraquilo.

—Tenho total certeza— respondeu.— Ele não se lembra da gente.Nãoconsegue.

Izzydesviouoolhardajanela,eClaryenxergoucomclarezaaslágrimasemseusolhos.

—Quero contar uma coisa—disse Isabelle.—E não quero que vocêmeodeie.

—Eunãoseriacapazdeodiarvocê—respondeuClary.—Impossível.— É quase pior— disse ela— do que se ele tivessemorrido. Se estivesse

morto,eupoderia carde luto,masnãoseioquepensar;eleestáseguro,estávivo,eudeveriasergrata.Elenãoémaisumvampiro,eeleodiavaservampiro.

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Eu deveria estar feliz.Mas não estou. Ele disse queme amava.Disse quemeamava, Clary, e agora nem sabe quem eu sou. Se eu estivesse na frente deSimon, ele não reconheceria meu rosto. Parece que nunca tive a menorimportância.Quenada teve importância, ou que sequer aconteceu. Ele nuncame amou. — Ela passou a mão no rosto furiosamente. —Odeio isso! —disparou subitamente. — Odeio essa sensação, como se tivesse uma coisapesandonomeupeito.

—Saudadedealguém?—É—respondeuIsabelle.—Nuncapenseique fossemesentirassimpor

causadeumgaroto.—Nãofoiumgaroto—disseClary.—FoiSimon.Eeleamouvocêdefato.

Efoiimportante.Talvezelenãoselembre,masvocêlembra.Eumelembro.OSimon que agora mora no Brooklyn é o mesmo Simon que ele era há seismeses. E isso não é uma coisa horrível. Ele eramaravilhoso.Mas elemudouquandovocêoconheceu: coumaisforte,foiferidoe coudiferente.Eesse foio Simonpor quem você se apaixonou, e o qual se apaixonou por você, entãovocêestáde luto,porqueelese foi.Maspodemantê-loumpoucovivoatravésdaslembranças.Nósduaspodemos.

Isabelleemitiuumruídoengasgado.—Odeio perder as pessoas— falou, e havia um aspecto selvagem em sua

voz: o desespero de alguém que tinha perdido muita coisa, muito jovem. —Odeio.

ClarysegurouamãodeIzzy—amãodireitamagra,aquepossuíaosímbolodaClarividênciaseespalhandopelasjuntas.

— Eu sei— disse Clary.—Mas lembre-se também das pessoas que vocêganhou.Euganheivocê.Sougratapor isso.—ElaapertouamãodeIzzycomforça, e por um instante não houve reação. Então os dedos de Isabelle sefecharam sobre os dela. Ficaram sentadas em silêncio no parapeito, demãosdadasatravésdadistânciaqueasseparava.

Maiaestava sentadanosofádoapartamento—agoraeraoapartamentodela.

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Ser líder do bando garantia um pequeno salário, e ela resolvera usá-lo parapagarumaluguel,paramanteroqueumdiaforaacasadeJordaneSimon,paraimpedirque as coisasdeles fossem jogadasnas ruasporumsenhorio irritado.Em algum momento ela reviraria os pertences, empacotaria o que pudesse,garimpariaaslembranças.Exorcizariaosfantasmas.

Mas por ora, contudo, estava satisfeita em sentar e olhar o que tinharecebidodeIdrisemumpacotinhoenviadoporJiaPenhallow.AConsulesanãoagradecerapeloalerta,emboratenhalhedadoasboas-vindascomoamaisnovae permanente líder do bandodeNovaYork. Seu tom fora frio e distante.Nacartahaviaumselodebronze,o selodo líderdaPraetorLupus,o selocomoqualafamíliaScottsempreassinavasuascartas.ForarecuperadodasruínasemLongIsland.Haviaumpequenobilheteanexo,comduaspalavrasescritascomaletracuidadosadeJia.

Comecenovamente.

—Vocêvaificarbem.Prometo.Provavelmente era a seiscentésima vez que Helen dizia a mesma coisa,

pensouEmma.E provavelmente teria ajudadomais se ela não parecesse estartentandoconvencerasi.

Helen praticamente havia terminado de empacotar os pertences quetrouxera a Idris. Tio Arthur (ele tinha dito a Emma que o chamasse assimtambém)prometeraenviaro restantedepois.Eleestava láembaixoesperandocom Aline para levar Helen até Gard, onde pegaria o Portal para a IlhaWrangel;Alineirianasemanaseguinte,apóso mdostratadosedasvotaçõesemAlicante.

Tudosoavamuitochato,complicadoehorrívelparaEmma.TudoquesabiaeraquelamentavaumdiaterachadoHeleneAlinesentimentaisdemais.Helenagoranãoparecianemumpoucosentimental,sótriste,osolhosvermelhoseasmãostrêmulasenquantofechavaamalaesevoltavaparaacama.

Era uma cama enorme, grande o bastante para seis pessoas. Julian estavasentado apoiado no encosto de um lado, e Emma do outro. Daria para ter

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colocadoorestantedafamíliaentreeles,pensouEmma,masDru,osgêmeoseTavvydormiamnosrespectivosquartos.DrueLivvyjátinhamchoradoaténãopoder mais; Tiberius recebera a notícia sobre a partida de Helen com olhosarregalados de assombro, como se não soubesse o que estava acontecendo oucomodeveriareagir.No m,eleapertouamãodelasolenementeelhedesejouboasorte,comoseela fosseumacolegapartindoemumaviagemdenegócios.Elacomeçouachorar.

—Ah,Ty—dissera,eeleseesquivou,horrorizado.Helen estava ajoelhadaagora, cara a cara com Jules, que estava sentadona

cama.—Lembre-sedoquefalei,tudobem?—Vamosficarbem—repetiuJulian.Helenapertouamãodele.—Detesto deixá-los— falou.—Cuidaria de vocês se pudesse. Você sabe

disso,nãosabe?EuassumiriaoInstituto.Amomuitotodosvocês.Julianseencolheudojeitoquesóummeninode12anoseracapazdefazer

aoouvirapalavra“amo”.—Eusei—conseguiuresponder.—Aúnica razãopelaqualposso ir éporque seiqueos estoudeixandoem

boasmãos—explicouela,olhandonosolhosdele.—EstáfalandodotioArthur?—Estoufalandodevocê—respondeu,eJulesarregalouosolhos.—Seique

épedirmuito—acrescentou.—Mas tambémseiqueposso con ar emvocê.SeiquepodeajudarDrucomospesadelos,ecuidardeLiviaeTavvy,etalvezatéo tio Arthur possa fazer isso também. Ele é um homem bom. Um poucodistraído, mas parece disposto a tentar... — Ela se calou. — Mas Ty é... —Suspirou. — Ty é especial. Ele... traduz o mundo de um jeito diferente dorestantedenós.Nemtodomundofalaalínguadele,masvocêfala.Cuidedelepormim, tudo bem? Ele vai ser alguém incrível. Só temos que impedir que aClave entenda o quanto ele é especial. Não gostam de pessoas diferentes —concluiu,ehouveumaamarguraemseutom.

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Julianestavasentandobemeretoagora,parecendopreocupado.—Tymeodeia—disseele.—Brigacomigootempotodo.—Tyamavocê—corrigiuHelen.—Eledormecomaquelaabelhaquevocê

lhedeu.Eleobservavocêotempotodo.Quersercomovocê.Elesóé...édifícil—concluiu,semsaberaocertocomodizeroquequeria:queTytinhainvejadaforma como Julian navegava pelo mundo com tanta facilidade, de comoconquistavafacilmenteoamordosoutros,daformacomoosgestoscotidianosdeJuliannãopareciamnadademais, soandocomoumtruquedemágicaparaTy.—Àsvezesédifícilquandovocêquersercomoalguémenãosabecomo.

Uma carranca expressiva de confusão apareceu entre as sobrancelhas deJulian,maseleolhouparaHeleneassentiu.

—VoucuidardeTy—falou.—Prometo.— Ótimo. — Helen se levantou e beijou Julian rapidinho na cabeça. —

Porqueeleé incríveleespecial.Todosvocêssão.—ElasorriuparaEmma.—Você também, Emma— disse, e a voz apertou ao dizer o nome damenina,comosefossecomeçarachorar.Fechouosolhos,abraçouJulianmaisumaveze saiu do quarto, pegando a mala e o casaco ao passar. Emma pôde ouvi-lacorrendo para baixo e, em seguida, a porta da frente se fechando entremurmúrios.

Emmaolhoupara Julian.Eleestava sentadoreto, rijo, comopeitoarfante,como se tivesse corrido.Ela esticouobraço rapidamente e pegou amãodele,desenhandonapalmadoamigo:O-Q-U-E-H-O-U-V-E?

—VocêouviuoqueHelendisse—faloucomavozbaixa.—Elacon aemmim para cuidar deles. Dru, Tavvy, Livvy, Ty. Minha família inteira,basicamente.Euvou...tenho12anos,Emma,evoutertrêsfilhos!

Ansiosamente,elacomeçouaescrever:N-Ã-O-V-A-I-N-Ã-O...— Não precisa fazer isso — interrompeu ele. — Não é como se tivesse

algumpaiaquiparaouvir.—AquelaeraumacoisaestranhamenteamargaparaJulesdizer,eEmmaengoliuemseco.

—Eusei—declarouelaa nal.—Masgostodeterumalinguagemsecretacomvocê.Querodizer,comquemmaispodemosconversarsobreessascoisas,

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senãoumcomooutro?Eleserecostounacabeceira,virando-separaolharparaela.—AverdadeéquenãoconheçonadasobreotioArthur.Sóovinasfestas

de mdeano.SeiqueHelendizqueoconhece,equeeleélegaletudoomais,noentantoeles sãomeus irmãos.Euosconheço.Elenão.—Cerrouasmãos.—Voucuidardeles.Voumecerti carparaquetenhamtudoquedesejamequenadanuncasejatiradodelesoutravez.

Emmaesticouamãoparapegarobraçodele, edesta vez ele foi receptivo,deixandoosolhossefecharemenquantoelaescrevianaparteinternadopulsodelecomoindicador.

E-U-V-O-U-A-J-U-D-A-R.ElesorriuparaEmma,maselanotouatensãonosolhosdele.—Seiquevaiajudar—respondeu,eesticouamãoefechousobreadela.—

Sabe qual foi a última coisa que Mark me disse antes de o levarem? —perguntou, apoiando-se contra o encosto. Parecia absolutamente exausto. —Ele falou “ que com Emma”. Então vamos car juntos. Porque é isso queparabataifazem.

Emma sentiu como se o ar tivesse sido arrancado de seus pulmões.Parabatai. Era uma palavra grande— para Caçadores de Sombras, uma dasemoções mais fortes, mais intensas e mais envolventes que se podia ter, ocompromisso mais signi cativo que se podia ter com alguém sem envolveramorromânticooucasamento.

ElaqueriatercontadoaJulesquandovoltaramparacasa,queriaterditoaelede algum jeito que, quando disparou as palavras no escritório da Consulesa,sobre o plano de assumirem o compromissoparabatai, tinha sido mais quequererserparabatai.Digaaele,ecoavaumavozinhaemsuamente.Digaqueéporquevocêprecisava caremLosAngeles;digaquefalouaquiloporqueprecisaestarláparadescobriroqueaconteceucomseuspais.Parasevingar.

— Julian — falou ela suavemente, mas ele não se mexeu. Estava com osolhosfechados,oscíliosescurostocandoorosto.

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Oluarqueadentravapela janelaocontornavaembrancoeprata.Osossosda face já estavam começando a car proeminentes, a perda da suavidade dainfância.Derepenteelaconseguiaimaginarcomoseriaaaparênciadelequandocassemaisvelho,mais largoe forte,umJuliancrescido. Ia sermuitobonito,

pensou ela. As meninas iam car loucas por ele, e uma delas o levaria parasempre, porque Emma era suaparabatai, e isso signi cava que ela jamaispoderiaserumadessasmeninas.Jamaispoderiaamá-loassim.

Julesmurmuroueseremexeuemseusonoinquieto.Obraçoestavaesticadopara Emma, os dedos não chegando a tocá-la no ombro. A manga estavaarregaçadaatéocotovelo.Elaesticouamãoeescreveucuidadosamenteemseuantebraço,ondeapeleeramaisclaraemacia,aindaimaculada,semnenhumacicatriz.

S-I-N-T-O-M-U-I-T-O-J-U-L-E-S, escreveu, e se recostou, prendendo arespiração,maselenãosentiu,enãoacordou.

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EpílogoABelezadeMilEstrelas

Maio,2008

Oarestavacomeçandoaapresentaraprimeirapromessatépidadeverão:osolbrilhava,quenteeclaro,sobreaesquinadaCarrollStreetcomaSextaAvenida,easárvoresquecercavamoquarteirãodeprédiosbaixosestavamcarregadasdefolhasverdes.

Clarytirouocasacoleveacaminhodometrôe coudejeansecamisetaemfrenteàentradadaSaintXavier,vendoasportasseabrindoeosalunossaindoparaarua.

IsabelleeMagnusencontravam-seapoiadoscontraaárvoreemfrenteaela,Magnus comcasacode veludo e jeans, e Isabelle comumvestidoprateadodefesta,curto,quemostravasuasMarcas.ClarysupunhaqueasprópriasMarcastambémestivessembastante visíveis: pelosbraços,nabarrigaonde a camisetasubia, nanuca.Algumaspermanentes, outras temporárias.Todasmarcando-acomo diferente— não apenas diferente dos alunos agrupados na entrada docolégio,sedespedindounsdosoutros,fazendoplanosparairatéoparqueoudese encontraremmais tarde no Java Jones,mas diferente de quem elamesmahaviasidoumdia.Diferentedameninaqueforaumadeles.

Umamulhermais velha com um poodle e um chapéu casamata assobiavaenquantocaminhavaaosol.OpoodlepuxouadonaparaaárvoreondeIsabellee Magnus estavam apoiados; a senhora pausou, assobiando. Isabelle, Clary eMagnuseramcompletamenteinvisíveisparaela.

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Magnus lançouumolhar ferozparaopoodle, que recuou comumganido,meioquearrastandoadonapelarua.Magnusficouolhandoparaeles.

—Feitiçosdeinvisibilidadetêmsuasdesvantagens—observou.Isabelle sorriu, um sorriso que desapareceu quase imediatamente. Quando

elafalou,avozestavacarregadadesentimentosreprimidos.—Aliestáele.Clary levantou a cabeça de repente. Os portões da escola tinham sido

abertos novamente, e três meninos desceram pelos degraus da frente. Ela osreconheceumesmoestandodooutroladodarua.Kirk,EriceSimon.NãohavianadadediferenteemEricouemKirk;elasentiaosímbolodeVisãodeLongoAlcance brilhar em seu braço enquanto seus olhos passavam por eles. DaíencarouSimon,sorvendocadadetalhe.

Aúltimavezemqueoviraforaemdezembro,pálido,sujoeensanguentadono reino demoníaco. Agora tinha voltado a envelhecer, a crescer, não estavamaispresonotempo.Ocabeloestavamaiscomprido.Caíasobreatestaepelanuca.Asbochechas tinhamvoltado a ter cor.Estava comumpénoprimeirodegrau da escada, o corpomagro e anguloso como sempre, talvez um poucomais encorpado do que ela se lembrava. Vestia uma camiseta azul desbotadaque tinha há anos. Ele ajeitou a armação quadrada dos óculos, gesticulandoanimadamentecomaoutramão,naqualtraziaumboloenroladodepapéis.

Semtirarosolhosdele,Clarypegouaestelanobolsoedesenhounobraço,cancelando os símbolos de invisibilidade.OuviuMagnusmurmurando algumacoisa sobre ter mais cuidado. Se alguém estivesse olhando, ela seria vistasurgindodonadaentreasárvores.Masninguémpareciaolharparalá,eClaryguardouaesteladevoltanobolso.Suamãotremia.

— Boa sorte— disse Isabelle sem perguntar o que a outra ia fazer. Clarysupôsquefosseóbvio.

Isabelle continuava apoiada na árvore; parecia esgotada e tensa, a colunatotalmente ereta.Magnus estava ocupado girando um anel de topázio azul namão esquerda; ele simplesmente deu uma piscadela para Clary enquanto eladesciadomeio-fio.

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IzzyjamaisiriaconversarcomSimon,pensouClary,começandoaatravessara rua. Jamais arriscaria receber o olhar vazio, a ausência de reconhecimento.Jamais suportariaaprovadeque tinhasidoesquecida.Clary cou imaginandoseelapróprianãoseriaalgumtipodemasoquista,porselançarnessecaminho.

Kirk já tinha saído,masEric a viu antesde Simon; ela cou tensaporuminstante,masdaí couclaroquealembrançadelearespeitodelatambémtinhasido apagada. Ele a olhou de um jeito confuso e apreciativo, claramenteimaginando se ela estaria indo em direção a ele. Clary balançou a cabeça eapontouoqueixoparaSimon;EricergueuasobrancelhaedeuumtapinhanoombrodeSimonquediziaatémais,cara,antesdeseretirar.

SimonvirouparaolharClary,eelasentiucomoumsoconoestômago.Eleestava sorrindo, os cabelos castanhos esvoaçando sobre o rosto. Usou amãolivreparaafastarasmechas.

—Oi—disseela,parandonafrentedele.—Simon.Osolhoscastanho-escurosencobertosporconfusãoaencararam.—Eu...agenteseconhece?Elaengoliuemseco,osúbitogostoamargonaboca.— Éramos amigos— disse ela, e em seguida esclareceu: — Foi há muito

tempo.Nojardimdeinfância.Simonergueuumasobrancelha,duvidando.—Eudevia serummeninomuitocharmosoaos6anosparavocêaindase

lembrardemim.— Lembro— falou.—Tambémme lembro de suamãe, Elaine, e de sua

irmã,Rebecca.Elanosdeixavajogarseujogo,odoshipopótamoscomilões,masvocêcomiatodasasbolinhas.

Simonficouumpoucopálidosobseubronzeadosutil.— Como você... isso aconteceu, mas eu estava sozinho — falou, a voz

passandodeespantadaparaalgumaoutracoisa.— Não, não estava. — Ela investigou os olhos dele, tentando fazê-lo se

lembrar,selembrardealgumacoisa.—Estoufalando,éramosamigos.— Eu... Acho que não... me lembro — respondeu lentamente, apesar de

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haversombras,umaescuridãonosolhosjáescurosdeSimon,quefezClaryseperguntarsobreaslembrançasdele.

—Minhamãevaisecasar—disseela.—Hojeànoite.Estouindoparalá,naverdade.

Eleesfregouatêmporacomamãolivre.—Evocêprecisadeumparparaocasamento?—Não.Játenho.—Nãodeuparasaberseeletinha cadodecepcionadoou

apenasmais confuso, como se aúnica explicação lógicapara ela estar falandocom ele tivesse acabado de desaparecer. Clary sentia as próprias bochechasardendo.De algum jeito, se constranger daquele jeito pareciamais difícil queencarar um grupo de demônios Husa no Glick Park (e disso ela sabia bem;tinha acontecido na véspera). — Eu só... você e minha mãe eram muitopróximos. Achei que você devesse saber. É um dia importante, e se as coisastivessemdadocerto,vocêestariapresente.

—Eu...—Simonengoliuemseco.—Desculpe?—Nãoéculpa sua—continuouela.—Nunca foi culpa sua.Nada.—Ela

counapontadospés,osolhosardendo,eobeijounabochechabrevemente.—Sejafeliz—disse,edeumeia-volta.Conseguiaenxergaras gurasborradasdeIsabelleeMagnus,aguardandoporeladooutroladodarua.

—Espere!Clary se virou. Simon tinha corrido atrás dela. Estava estendendo alguma

coisa.Umafilipetaquetinhapuxadodoroloquecarregava.—Minhabanda...—disseele,meiosedesculpando.—Vocêdeviairaum

show,talvez.Algumdia.Elapegoua lipetaeassentiuemsilêncio,entãocorreuparaooutroladoda

rua. Sentiu o olhar de Simon, mas não conseguia suportar a ideia de virar eflagraraquelemesmoolhar:meioconfuso,meiocompena.

Isabelle se desgrudou da árvore enquanto Clary corria até eles. Clarydesacelerou o su ciente para pegar a estela e redesenhar o símbolo deinvisibilidadenobraço;doeu,maselaacolheuador.

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—Tinharazão—falouelaparaMagnus.—Nãoadiantounada.—Eunãodissequenãoadiantaria.—Eleabriuasmãos.—Faleiqueelenão

selembrariadevocê.Faleiquesódeviafazerissoseaceitassebemofato.— Nunca vou aceitar — rebateu Clary, e em seguida respirou fundo. —

Desculpe — falou. — Sinto muito. Não é culpa sua, Magnus. E, Izzy... Issotambémnãodevetersidodivertidoparavocê.Obrigadaportervindocomigo.

Magnusdeudeombros.—Nãoprecisasedesculpar,querida.Os olhos escuros de Isabelle examinaramClary rapidamente; ela esticou a

mão.—Oqueéisso?— Filipeta da banda — falou Clary, e entregou a Isabelle. Izzy pegou, a

sobrancelha arqueada. — Não consigo olhar. Eu o ajudava a fazer cópias edistribuir...—Fezumacareta.—Deixeparalá.Talvezmaistardeeu quefelizportervindo.—Entãodeuumsorrisotorto,botandoocasacodevolta.—Vouindo.Vejovocêsnosítio.

Isabelle observouClary indo embora, caminhando pela rua, imperceptível aosoutrospedestres.Emseguida,olhouparaafilipetanamão.

SIMONLEWIS,ERICHILLCHURCH,KIRKDUPLESSEEMATTCHARLTON

“OSINSTRUMENTOSMORTAIS”

19DEMAIO,BANDSHELLNOPROSPECTPARKTRAGAESTAFILIPETAEGANHE5DÓLARES

DEDESCONTONAENTRADA!

ArespiraçãodeIsabelleficoupresanagarganta.—Magnus.

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Eletambémtinha cadoobservandoClary;agoraolhavaparaIzzy,eoolharbaixouparaafilipeta.Ambosficaramencarando.

Magnusassobiou.—OsInstrumentosMortais?—Onomedabanda.—OpapeltremianamãodeIsabelle.—Muitobem,

Magnus,temosque...vocêdissequeseeleselembrassedequalquercoisa...MagnusolhouparaClary,maselajáhaviadesaparecido.—Tudobem—falouele.—Massenãofuncionar,seelenãoquiser,nunca

podemoscontarparaela.Isabelleestavaamassandoopapel,jáalcançandoaestelacomaoutramão.—Comoquiser.Masprecisamosaomenostentar.Magnus assentiu, sombras perseguindo sombras em seus olhos verde-

dourados.Isabellenotavaqueeleestavapreocupadocomela,commedodeelasemachucar,sedecepcionar,edesentirraivaegratidãoemrelaçãoaele.

—Tentaremos.

Tinha sido mais um dia estranho, pensou Simon. Primeiro a moça atrás dobalcãodoJavaJones,queperguntousobreaamigadele,ameninabonitinhaquesempreoacompanhavaepediacafépreto.Simon couencarando—nãotinhanenhumaamigaíntima,certamentenenhumacujaspreferênciassobrecaféeleconhecia. Quando ele disse para a moça que ela provavelmente o estavaconfundindocomalguém,elaoencaroucomoseelefosselouco.

EemseguidaaruivaqueoabordounaportadaSaintXavier.Afrentedaescolaestavadesertaagora.EricdeveriadarcaronaparaSimon,

masdesapareceraquando a tal ruiva se aproximara, enão ressurgiumais.Eralegal da parte de Eric achar que Simon conseguia arrumar garotas com tantafacilidade, pensou ele, mas irritante quando isso signi cava ter que pegar ometrôparacasa.

Simonsequerpensaraemtentardaremcimadela,nãomesmo.Elapareciatão frágil, apesar das tatuagens que decoravam seus braços e sua clavícula.Talvez fosse louca— as provas indicavam que sim—,mas seus olhos verdes

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estavamenormesetristesquandoelaoolhou;aquiloofezselembrardecomoele estava no dia do enterro do pai. Como se alguma coisa tivesse aberto umburacoemsuascostelaseesmagadoseucoração.Umaperdaassim—não,elanão estava dando em cima dele. A garota realmente acreditava que os doistinhamsidoimportantesumparaooutroemalgummomento.

Talvez ele tivesse conhecido aquela menina, pensou. Talvez se tratasse dealgo que houvesse esquecido — quem se lembrava dos amigos de jardim deinfância?No entanto não conseguia se livrar da imagemdela, não triste,massorrindosobreoombro,segurandoalgumacoisa—umdesenho?Elebalançoua cabeça em frustração. A imagem desapareceu como um peixe velozescorregandodoanzol.

Ele vasculhava o fundo damente, tentando desesperadamente se lembrar.Ultimamente vinha se agrando fazendo isso com frequência. Pedacinhos delembrançasquesurgiam,fragmentosdepoesiasqueelenãoselembravadeteraprendido,lembrançasdevozes,sonhosdosquaisacordavatremendoesuando,incapaz de se lembrar do que havia se passado neles. Sonhos de paisagensdesérticas, ecos, gosto de sangue, arco e echa nas mãos (tinha aprendido aatirar com arco e echa no acampamento de verão,mas nunca se importaratanto assim com aquilo, então por que estaria sonhando com isso agora?). Equase nunca voltava a dormir, a sensação dolorosa de que estava faltandoalgumacoisa,eelenãosabiaoquê,masalgumacoisa,comoumpesonomeiodo peito. Atribuía o fato a muitas campanhas noturnas deDungeons &Dragons, ao estresse do terceiro ano do ensino médio, à preocupação comfaculdades. Como suamãe dissera, uma vez que se começava a se preocuparcomofuturo,secomeçavaaterobsessãopelopassado.

—Temalguémsentadoaqui?—disseumavoz.Simonlevantouoolhareviuumhomemaltodecabelosnegrosespetados.Trajavaumpaletódeveludocomumbrasãobordadoem osbrilhanteseusavanomínimoumadúziadeanéis.Haviaalgodeestranhoemsuasfeições...

—Quê?Eu,hum.Não—respondeuSimon,imaginandoquantosestranhos

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oabordariamhoje.—Podesentar,sequiser.Ohomemolhouparabaixoefezumacareta.— Vejo que muitos pombos sujaram estes degraus — observou. — Vou

permanecerdepésenãoformuitogrosseiro.Simonbalançouacabeçasemdizernada.— Sou Magnus — sorriu, mostrando dentes extremamente brancos. —

MagnusBane.—Poracasosomosamigosdelongadataquesedistanciaramcomotempo?

—perguntouSimon.—Sóestouimaginando.—Não,nuncanosdemosmuitobem—respondeuMagnus.—Conhecidos

delongadataquesedistanciaram?Compadres?Meugatogostavadevocê.Simonpassouasmãosnorosto.—Achoqueestouenlouquecendo—falou,paraninguémemparticular.—Bem,entãoachoquevaireceberbemoqueestouprestesalhecontar.—

Magnusvirouacabeçaparaoladosingelamente.—Isabelle?Donada,umagarotaapareceu.TalvezagarotamaislindaqueSimonjávira.

Tinhacabelosnegroselongosquecaíamsobreumvestidoprateadoqueofaziaquererescrevermúsicassobrenoitesestreladas.Elatambémtinhatatuagens:asmesmas da outra menina, pretas e curvilíneas, cobrindo os braços e pernasnuas.

—Oi,Simon—disseela.Simon simplesmente a encarou. Era completamente fora dos domínios de

qualquer coisa que ele já tivesse imaginado, que uma menina comaquelaaparênciapudessedizeronomedeledaquelejeito.Comosefosseoúniconomequeimportassenomundo.Océrebrodeleparoucomoumcarrovelho.

—Humm?—resmungouele.Magnusestendeuamãocomdedoslongos,eameninacolocoualgumacoisa

ali. Um livro, de capa branca com o título estampado em ouro. Simon nãoconseguiaenxergaraspalavrasdireito,masestavamescritascomumacaligra aelegante.

—Isto—falouMagnus—éumlivrodefeitiços.

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Nãopareciahaverumarespostaparaisso,entãoSimonnemtentou.—Omundoécheiodemagia—declarouMagnus,eseusolhosbrilhavam.

— Demônios e anjos, lobisomens, fadas e vampiros. Um dia você conheceutudoisso.Vocêpossuíamagia,maselafoitiradadevocê.Aideiaeraquevivesseorestantedavidasemisso,semselembrar.Queseesquecessedaspessoasqueamava, seelas soubessemsobreamagia.Quevocêpassasseo restantedavidasendonormal.—Elegirouo livroemseusdedos nos,eSimonviuumtítuloem latim. Alguma coisa naquela imagem enviou uma onda de energia pelocorpodeSimon.—Eháalgoaserditosobreisso,sobreseraliviadodofardodagrandeza.Porquevocêeragrande,Simon.EraumDiurno,umguerreiro.Salvouvidasedestruiudemônios,eosanguedeanjoscorriaporsuasveiascomoaluzdosol.—Magnusagoraestavasorrindo,parecendoumpoucolouco.—Enãosei,massimplesmentemepareceumpoucofascistatirarissotudodevocê.

Isabelle jogou os cabelos negros para trás. Alguma coisa brilhava em seupescoço.Umrubivermelho.Simonsentiuamesmaondadeenergia,dessavezmaisforte,comoseseucorpoquisesseumacoisaqueamentenãolembrava.

—Fascista?—ecoouela.—Sim—falouMagnus.—Clarynasceuespecial.Simonsetornouespecial.

Adaptou-se. Porque omundonão é dividido entre especiais e comuns.Todostêmpotencialparaseremextraordinários.Contantoquevocêtenhaumaalmaelivre-arbítrio, pode ser qualquer coisa, fazer qualquer coisa, escolher qualquercoisa.Simondeveriapoderescolher.

Simonengoliuemseco.—Desculpe—disse.—Masdoquevocêestáfalando?Magnusdeuumabatidinhanolivro.—Andei pesquisando uma forma de escapar desse feitiço, dessamaldição

que lhe impuseram—explicou,eSimonquaseprotestoudizendoquenãoeraamaldiçoado,porémdesistiu.—Estacoisaqueofezesquecer.Entãodescobri.Deveria terdescobertomuitoantes,massempre fuimuitorígidoemrelaçãoaAscensões. Muito especí co. Mas aí Alec mencionou: eles estãodesesperadospor novos Caçadores de Sombras. Perderam tantos na GuerraMaligna, seria

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fácil.Vocêtemtantaspessoasparavotaremseufavor.PoderiaserumCaçadordeSombras,Simon.ComoIsabelle.Posso fazerumpoucocomeste livro;nãodáparaconsertarcompletamente,enãopossofazercomquevolteaseroqueera,maspossoprepará-loparaAscender,edepoisqueo zer,umavezquesetornar Caçador de Sombras,ele não pode tocá-lo. Você terá a proteção daClave, e as regras sobre não lhe contar sobre o Mundo das Sombras, estasdesaparecerão.

Simon olhou para Isabelle. Era um pouco como olhar para o sol, mas amaneira como ela retribuía aquele olhar facilitava as coisas. Ela o encaravacomosesentissesaudade,emboraSimonsoubessequeissonãoerapossível.

—Existemágicamesmo?—perguntou.—Vampiros,lobisomensemagos...—Feiticeiros—corrigiuMagnus.—Etudoisso?Existe?— Existe— respondeu Isabelle. A voz dela era doce, um pouco rouca e...

familiar.Derepenteeleselembroudocheirodesole ores,esentiuumgostometálico.Viupaisagensdesérticasseestendendosobumsoldemoníaco,eumacidadecomtorresquebrilhavamcomosefossemfeitasdegeloevidro.—Nãoé um conto de fadas, Simon. Ser Caçador de Sombras signi ca ser umguerreiro.Éperigoso,mas se for a coisa certapara você, é incrível.Eu jamaisquereriaseroutracoisa.

—A decisão é sua, Simon Lewis— disseMagnus.— Permaneça em suaexistênciaatual,váparaafaculdade,estudemúsica,case-se.Vivasuavida.Ou...podeterumavidaincertadesombraseperigos.Podedesfrutardaalegriadelerhistórias sobreacontecidos incríveis,oupode fazerpartedahistória.—Eleseinclinou para perto, e Simon viu a luz se apagar nos olhos de Magnus,percebendoenfimporqueeramestranhos.Eramverde-douradosetinhapupilasemfenda,comoasdeumgato.Nãoeramolhosnadahumanos.—Aescolhaésua.

Era sempre uma surpresa que os lobisomens tivessem tanta destreza comarranjos orais, pensou Clary. O velho bando de Luke — agora de Maia —

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tinhaseoferecidoparadecoraroterrenoemvoltadacasa,ondeaconteceriaarecepção, e o velho celeiro onde a cerimônia seria realizada. O bandoinspecionoutodaaestrutura.ClaryselembravadeterbrincadocomSimonnovelho palheiro que rangia, da tinta descascada, dos tacos desiguais no piso.Agoratudohaviasido lixadoereformado,eo lugarprontobrilhavacoma luzsuave de madeiras antigas. Alguém também tinha senso de humor: as vigasforamdecoradascomtremoçosdogêneroLupinus.

Grandesvasosdemadeirasustentavamarranjosdetaboas,solidagoselírios.O buquê de Clary era de ores silvestres, apesar de ter sofrido um pouco asconsequências por estar sendo segurado por ela durante tantas horas. Acerimônia todapassouemumaespéciedeborrão:votos, ores, luzdevelas,orosto felizdesuamãe,obrilhonosolhosdeLuke.No m, Jocelynevitouumvestidoexageradoeusouumbrancosimplesdeverão,comocabelopresoemum coque bagunçado rematado por, sim, um lápis de cor. Luke, que estavamuitobonitodecinza,nãopareceuseimportar.

Os convidados estavam todos reunidos agora.Vários licantropes recolhiamas leirasdecadeiraseempilhavamospresentesrecebidosdemaneirae cienteemumamesalonga.OpresentedeClary,umretratodamãeedeLukepintadopor ela, estava pendurado na parede. Ela adorara desenhá-lo; havia adoradovoltar a segurar pincel e tintas — desenhado não para criar símbolos, masapenasumacoisabonitaquealguémumdiapoderiaapreciar.

Jocelyn estava ocupada abraçando Maia, que pareceu se divertir com oentusiasmodanoiva.MorcegoconversavacomLuke,quepareciaentorpecido,masdeumjeitopositivo.Clarysorriuparaelesesaiudoceleiro,rumoàtrilhaláfora.

A lua estava alta, brilhando sobre o lago ao pé da propriedade, fazendo orestante do sítio reluzir. Havia lanternas penduradas nas árvores, e todasbalançavam com a brisa suave. As trilhas estavam contornadas por pequenoscristais brilhantes — uma das contribuições de Magnus, mas onde estavaMagnus?Clarynãooviranamultidãoduranteacerimônia,apesardetervistoquase todo mundo: Maia e Morcego, Isabelle vestida de prata, Alec com um

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terno preto muito sério, e Jace sem a gravata, a qual fora desa adoramentedescartada em algum lugar, provavelmente em algum arbusto próximo. AtéRoberteMaryseestavamali,adequadamentecorteses;Clarynãofaziaideiadoqueestava sepassandono relacionamentodosdois, enemqueriaperguntaraninguém.

Claryfoiparaamaiordastendasbrancas;aestaçãodeDJestavapreparadapara Morcego, e alguns dos membros do bando e outros convidados abriamespaço para dançar. As mesas estavam cobertas por longos panos brancos etinham sido postas com louças antigas do sítio, obtidas através de anos debuscasemmercadosdepulgasemcidadezinhasdasredondezas.Nenhumapeçacombinava,oscoposerampotesdegeleiaantigos,eosenfeitesdecentroeramásteres azuis colhidos à mão e trevos utuando em vasilhas de cerâmica quetambém não combinavam entre si, no entanto Clary considerou aquele ocasamentomaisbonitoquejátinhavisto.

Umamesacompridaforaarrumadacomtaçasdechampanhe;Jaceestavaaliperto,eaoverClaryergueuumataçaedeuumapiscadela.Eletinhaescolhidoaopção desgrenhada: blazer amassado e cabelos despenteados, e agora semgravata;masestavatãolindoqueocoraçãodeClarychegavaadoer.

EleestavacomIsabelleeAlec;Izzyestavalindacomocabeloarrumadoemumpenteadomais solto. Clary sabia que ela própria não conseguiria ostentartoda aquela elegância nem em ummilhão de anos, porém não se importava.Isabelle era Isabelle, eClary era grata por ela existir, por fazer domundoumlugar mais impetuoso com cada um de seus sorrisos. Isabelle agora dava umassovio,lançandoumolharatravésdatenda.

—Vejamsóaquilo.Claryolhou—eolhououtravez.Viuumameninadeuns19anos;cabelos

castanhossoltoseumrostomeigo.Usavaumvestidoverde,umpoucodémodéem estilo, e um colar de jade. Clary já a tinha visto antes, em Alicante,conversandocomMagnusnafestadaClavenaPraçadoAnjo.

Estava de mãos dadas com um menino muito familiar, muito bonito, de

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cabelos negros despenteados; ele parecia alto e esguio em um terno pretoelegante eumacamisabrancaquedestacavaasmaçãsdo rostoproeminentes.Enquanto Clary observava, ele se inclinou para sussurrar alguma coisa aoouvidodela,eelasorriu,iluminandoorosto.

— Irmão Zachariah — falou Isabelle. — De janeiro a dezembro noCalendáriodosIrmãosdoSilênciogatos.Oqueeleestáfazendoaqui?

—ExisteumcalendáriodeIrmãosdoSilênciogatos?—perguntouAlec.—Estáàvenda?

—Parecomisso.—Isabellelhedeuumacotovelada.—Magnusvaichegaraqualquermomento.

—OndeestáMagnus?—perguntouClary.Isabellesorriu,abocadentrodataçadechampanhe.—Eleteveumassuntopararesolver.ClaryolhounovamenteparaoIrmãoZachariaheparaamenina,maselesjá

haviamsemisturadoàmultidão.Elagostariaquenãotivessem—algumacoisanamenina a deixara fascinada—, entretanto, no instante seguinte amão deJace lhe segurou o pulso, e ele estava repousando a própria taça em umamesinha.

—Venhadançarcomigo—chamou.Claryolhouparaopalco.MorcegohaviaassumidoopostonacabinedeDJ,

mas ainda não havia música. Alguém tinha colocado um piano no canto, eCatarinaLoss,comapelebrilhandoemazul,dedilhavaasteclas.

—Masnãotemmúsica—argumentouClary.Jacesorriuparaela.—Nãoprecisa.—Eeeee,essaéanossadeixaparasairmos—disse Isabelle,puxandoAlec

pelocotoveloelevando-oparaamultidão.Jacesorriuparaela.— Isabelle tem urticária com sentimentalismo — brincou Clary. — Mas,

sério,nãopodemosdançarsemmúsica.Todomundovaificarolhando...—Vamosparaondeninguémconseguenosver—disseJace,eaafastouda

tenda. Aquele era o momento do dia que Jocelyn chamava de “a hora azul”,

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comtudobanhadopelocrepúsculo,atendabrancaparecendoumaestrela,eagramamacia,cadalâminabrilhandocomoprata.

Jaceapuxouparasi,encaixandoocorpodeClaryaodele,abraçando-apelacintura,oslábiosroçandoanuca.

—Podemosentrarnacasa—disseele.—Temquartoslá.Elasevirounosbraçosdeleeocutucounopeito,comforça.—Esteéocasamentodaminhamãe—falou.—Nãovamostransar.Você

estálouco.—Mas“louco”émeujeitopreferidodetransar.—A casa está cheia de vampiros— respondeu ela alegremente.—Foram

convidadosevieramontemànoite.Estãoládentroesperandoosolsepôr.—Lukeconvidouvampiros?—Maiaconvidou.Umgestodepaz.Estãotentandoseentender.—Certamenteosvampirosrespeitariamnossaprivacidade.—Certamentenão—retrucouClary,eoarrastoucom rmezapara longe

datrilhaquelevavaatéacasa,rumoaumbosque.Alieracobertoeescondido,ochãocheiodeterraeraízes,folhascompequenas oresbrancascrescendoaoredordostroncosemramos.

Ela recuou contra um tronco, puxando Jace, demodo que ele se apoiassecontra ela, com uma dasmãos de cada lado dos ombros de Clary, daí ela seaconchegouentreosbraçosdele.Passouasmãosnotecidomaciodopaletó.

—Euteamo—disseela.JaceolhouparaClary.—AchoqueseioqueMadameDorotheaquisdizer—falou.—Quandoela

dissequeeuiameapaixonarpelapessoaerrada.Claryarregalouosolhos.Ficouimaginandoseeleiriaterminarcomela.Em

casopositivo,elateriaalgumascoisasadizersobreotimingdeJace,depoisqueoafogassenolago.

Elerespiroufundo.—Você fazeumequestionar—disseele.—Otempotodo, todososdias.

Fui criadopara acreditarque eudevia serperfeito.Umguerreiroperfeito, um

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lhoperfeito.MesmoquandofuimorarcomosLightwood,pensavaquetinhaque ser perfeito, pois do contrário me mandariam embora. Não achava queamorvinhacomperdão.Entãovocêsurgiuedestruiutudoqueeuacreditava,ecomeceiaenxergar tudodiferente.Vocêpassava... tantoamor, tantoperdãoetantafé.Queeunãoprecisavaserperfeito; tinhaquetentar,e issobastava.—Ele baixou o olhar; Clary notou a leve pulsação na têmpora dele, sentiu atensão.—EntãoachoquevocêeraapessoaerradaparaoJacequeeuera,masnão para o Jace que sou agora, o Jace que você ajudou a construir. Que, porsinal,éumJacedequemgostomuitomaisemrelaçãoaoantigo.Vocêmefezmudarparamelhor,emesmoquemeabandonasse, euainda teria isso.—Elefezumapausa.—Nãoquevocêdevamelargar—acrescentouapressadamente,e inclinou a cabeça contra a dela, demodo que as testas se tocaram.—Digaalgumacoisa,Clary.

As mãos dele estavam nos ombros dela, quentes contra a pele fria; elaconseguia senti-las tremendo. Os olhos de Jace eram dourados,mesmo à luzazuladadocrepúsculo.Elaselembroudequandoosachavafriosedistantes,atémesmo assustadores, antes de perceber que o que enxergava era o bloqueioexperientede17anosdeescudo.Dezesseteanosprotegendoocoração.

—Vocêestátremendo—disseela,comumpoucodeassombro.—Évocêquemcausa isso—respondeuele, respirandocontraabochecha

dela,eentãodeslizouasmãossobreosbraçosnusdeClary—,todavez...todavez.

—Possorevelarumfatocientí cotedioso?—sussurrouela.—ApostoquevocênãoaprendeunaauladehistóriadosCaçadoresdeSombras.

— Se está tentandome distrair de falar sobremeus sentimentos, não estásendo nada sutil.— Ele tocou o rosto dela.—Você sabe que faço discursos.Tudobem.Nãoprecisaretribuir.Sódigaquemeama.

—Nãoestoutentandodistraí-lo.—Ela levantouamãoeabanouosdedos.—Existemcemtrilhõesdecélulasnocorpohumano—falou.—Ecadaumadasminhas células te ama.Nossas célulasmorrem, e novas células nascem, eminhascélulasnovas teamammaisqueasantigas,epor isso teamocadadia

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mais.Éciência.Equandoeumorrerecremaremmeucorpo,eeuvirarcinzasque se misturam ao ar, parte da terra, das árvores e das estrelas, todos querespiraremessearouenxergaremas oresquecresceremdochãoouolharemparaasestrelasvãoselembrardevocêeamarvocê,porqueesseéoquantoeuteamo.—Elasorriu.—Quetalessediscurso?

Ele a encarou, sem palavras, pela primeira vez na vida.Antes que pudesseresponder,Claryseesticouparabeijá-lo—inicialmenteumtoquecomportadodelábios,masquerapidamenteseaprofundou,elogoeleestavaentreabrindooslábios de Clary com os dele, acariciando a boca delicada com a língua, e elasentiu o gosto de Jace: a doçura comum toque de champanhe.Asmãos delepercorriamascostasdeClary, febris, sobreosnódulosdaespinha,asalçasdesedadovestido,osombros,pressionando-acontrasi.Eladeslizouasmãossobopaletódele,imaginandosetalvezdevessemteridoparaacasa,a nal,mesmoqueestivessecheiadevampiros...

— Interessante — disse uma voz entretida, e Clary se afastou de Jacerapidamentepara agrarMagnus,paradoemumintervaloentreasárvores.Agura alta estava contornada pelo luar; ele não vestia nada particularmente

escandaloso e trajava um terno preto perfeito que parecia umborrão de tintaentornadacontraocéuqueescurecia.

—Interessante?—ecoouJace.—Magnus,oquevocêestáfazendoaqui?—Vimbuscá-los—respondeu.—Temumacoisaque achoqueprecisam

ver.Jacefechouosolhos,comoserezandoporpaciência.—ESTAMOSOCUPADOS.—Obviamente—comentouMagnus.—Sabe,dizemqueavidaécurta,mas

nãoétãocurtaassim.Podeserbemlonga,eterãoorestantedadevocêsparaficarjuntos,entãorealmentesugiroquevenhamcomigo,poisvãosearrependersenãovierem.

Claryseafastoudaárvore,comamãoaindanadeJace.—Tudobem—falouela.—Tudobem?—rebateuJace,indoatrásdela.—Sério?

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—ConfioemMagnus—disseClary.—Seéimportante,éimportante.— E se não for, vou afogá-lo no lago — respondeu Jace, ecoando o

pensamentonãoverbalizadoqueClarytiveramaiscedo.Elaescondeuosorrisosobaescuridão.

Alec estava à beira da tenda, observando a dança. O sol já estava baixo obastante, e agora era simplesmente uma listra vermelha pintada em um céudistante.Osvampiros tinhamsaídodacasae se juntadoà festa.Umadiscretaacomodação havia sido preparada de acordo com os gostos deles, e eles semisturaramaosoutrosconvidados,segurandotaçasesguiasdemetal,obtidasnamesadechampanhe,cujaopacidadeescondiaolíquidodentrodelas.

Lily, a líder do clã de vampiros deNova York, estava às teclasmar m dopiano,preenchendoorecintocomossonsdojazz.UmavozfalouaoouvidodeAlec,sobrepondo-seàmúsica:

—Acheiumacerimôniaadorável.Alec virou e viu o pai, a mão grande envolvendo uma taça frágil de

champanhe, observando os convidados. Robert era um homem grande, deombroslargos,quenunca cavamuitobemdeterno:pareciaumgarotograndedemaisemidadeescolareoqualforaobrigadoasevestirdaquelejeitoporumpaiirritado.

—Oi— cumprimentouAlec.Viu amãe do outro lado, conversando comJocelyn.Marysetinhamaismechasgrisalhasnoscabelosescurosdoqueeleserecordava; estava elegante, como sempre. — Foi gentileza sua vir —acrescentouacontragosto.Seuspais caramquasedolorosamenteagradecidosporeleeIsabelleteremvoltadoparaelesapósaGuerraMaligna,gratosdemaispara carem com raiva ou censurarem.Gratos demais a ponto deAlec poderfalar o que quisesse sobre Magnus; quando a mãe voltou a Nova York, elejuntou o resto de suas coisas no Instituto e as levou para o lo no Brooklyn.AindaiaaoInstitutoquasetodososdias,aindaviaamãecomfrequência,masRobert tinha cado emAlicante, e Alec não tentara contatá-lo.— Fingir ser

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civilizadocommamãe,essacoisatoda...muitogentil.Alecviuopaiseencolher.Pretendiasercortês,masessenuncafoiseuforte.

Sempresoavafalso.—Nãoestamos ngindocivilidade—disseRobert.—Aindaamosuamãe;

gostamos um do outro. Só... não conseguimos car casados. Devíamos terterminado há mais tempo. Pensávamos estar fazendo a coisa certa. Nossasintençõeseramboas.

— De boas intenções... — disse Alec de forma sucinta, e olhou para aprópriataça.

—Às vezes— falouRobert— você escolhe comquemquer car quandoaindaémuitojovem,aívocêmuda,masapessoanãomudacomvocê.

Alecrespiroufundo lentamente;derepentesuasveiasestavamfervendoderaiva.

—SeforumaindiretaparamimeMagnus,podeesquecer—falou.—Vocêabriumãodequalquer jurisdiçãosobremimeminhasrelaçõesquandodeixouclaro que, até onde você sabia, um Caçador de Sombras gay não era umverdadeiro Caçador de Sombras.— Ele pousou a taça em uma caixa de sompróxima.—Nãoestouinteressado...

— Alec. — Alguma coisa na voz de Robert fez Alec virar; ele não soouirritado, apenas... arrasado.—Eu z, falei... coisas imperdoáveis. Sei disso—explicou-se.—Mas sempre tiveorgulhodevocê, enão tenhomenosorgulhoagora.

—Nãoacreditoemvocê.—Quandoeu tinhasua idade,maisnovoaté, tiveumparabatai—contou

Robert.—Sim,MichaelWayland—disseAlec, sem se importar se soara amargo,

sem ligar para a expressão no olhar do pai.— Eu sei. Foi por isso que vocêacolheu Jace. Sempre achei que vocês dois não fossem particularmentepróximos.Vocênãopareciasentirtantoafaltadele,ouseimportarcomofatodeeleestarmorto.

—Eunãoacreditavaqueeleestivessemorto—explicouRobert.—Seique

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deve parecer difícil imaginar; nosso laço foi rompido pela sentença de exíliodecretadapelaClave,masmesmoantesdisso,nosdistanciamos.Porémhouveum tempo,no entanto, emque fomospróximos,melhores amigos;houveumtempoemqueeledissequemeamava.

Alguma coisa no peso que seu pai colocara nas palavras pegou Alec desurpresa.

—MichaelWaylandfoiapaixonadoporvocê?—Eunãofui...gentilcomeleemrelaçãoaisso—explicouRobert.—Falei

paraelenuncamaisrepetiraquelaspalavras.Tivemedo,odeixeisozinhocomosprópriospensamentos,sentimentosemedos,enuncamaisfomospróximoscomoantes.Acolhi Jaceparacompensaroque z,mesmoquedeuma formasutil,masseiquenão tinhacomocompensar.—EleolhouparaAlec,comosolhosazul-escuros rmes.—Vocêpensaquetenhovergonhadevocê,masnaverdadetenhovergonhademim.Olhoparavocêeenxergooespelhodaminhafalta de generosidade com alguém que nunca mereceu. Enxergamos a nósmesmosemnossos lhos,quepodemsermelhoresdoquesomos.Alec,vocêéumhomemtãomelhordoquefui,oudoqueumdiaserei.

Alec cou congelado. Lembrou-se do sonhonas terras demoníacas, dopaicontandoatodossobrecomoseufilhoeracorajoso,comoeraumbomCaçadorde Sombras e guerreiro,mas nunca imaginara seu pai lhe chamando de bomhomem.

Dealgumjeito,issoeramuitomelhor.Robertolhavaparaelecomasrugasdetensãoevidentesemtornodosolhos

edaboca.AlecnãoconseguiuevitarimaginarseseupaijátinhacontadosobreMichaelamaisalguém,eoquãodifícilhaviasidofalarneleagora.

Ele tocou levemente o braço do pai. Era a primeira vez que o tocavaespontaneamenteemmeses,eemseguidaabaixouamão.

—Obrigado—falou.—Pormecontaraverdade.Nãoeraumperdão,nãoexatamente,maseraumcomeço.

A grama estava úmida devido ao frio da noite que caía; Clary sentia o frio

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ensopando suas sandálias enquantovoltavaà tendacomJace eMagnus.Claryviu as leiras de mesas sendo postas, louças e talheres brilhando. Todos seofereceram para ajudar, mesmo as pessoas que normalmente ela consideravainabaláveisemsuareserva:Kadir,Jia,Maryse.

Amúsicairradiavadatenda.MorcegoestavanaestaçãodoDJ,masalguémtocava jazz ao piano.ViuAlec como pai, conversando seriamente, e então amultidão se dividiu e ela viu um borrão de rostos familiares: Maia e Alineconfabulando,IsabelleaoladodeSimon,parecendodesconfortável...

Simon.Claryparou.Seucoraçãofalhouporumsegundo,emaisum;elasentiufrioe

calor, como se estivesse prestes a desmaiar. Não podia ser Simon; devia seroutra pessoa. Algum outro menino magro, o mesmo cabelo castanhodespenteado e óculos, mas ele estava com a mesma camiseta desbotada damanhã,eocabelocontinuavacompridodemaissobreorosto,eelesorriaparaela através damultidão, um pouco inseguro, e era Simon, e era Simon, e eraSimon.

Nemmesmose lembravade ter começadoacorrer,masde repenteamãodeMagnusestavaemseuombro,umagarrafortecomoferro,contendo-a.

—Tenha cuidado—disseMagnus.—Elenãoselembradetudo.Conseguisuscitar algumas lembranças, não muitas. O resto vai ter que esperar, mas,Clary...lembre-sedequeelenãoserecorda.Nãoesperenada.

Ela deve ter feito que sim com a cabeça, porque ele logo a soltou, e entãoClary estava avançando pela grama e para a tenda, e atirou-se em cima deSimon com tanto ímpeto que ele chegou a cambalear, quase caindo.Ele nãotemmaisaforçadeumvampiro;vácomcalma,vácomcalma,diziasuamente,masorestantedelanãoqueriaouvir.Estavacomosbraçosemvoltadomenino,eestavameioabraçando,meiochorandoaninhadanocasacodele.

Tinha noção de Isabelle, Jace eMaia ao lado deles, e de Jocelyn, também,correndo para lá. Clary recuou apenas o su ciente para olhar no rosto deSimon. E de nitivamente era Simon. De perto, ela notava as sardas nabochechadireita, a pequena cicatriz no lábio que ele ganhara jogando futebol

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nooitavoano.—Simon—sussurrouela,eemseguida—,você...meconhece?Sabequem

eusou?Eleajeitouosóculosnonariz.Amãotremiaumpouco.—Eu...—Olhouemvolta.—Écomose fosseumareuniãode famíliaem

quequasenãoconheçoninguém,mastodosmeconhecem—falou.—É...— Opressivo? — perguntou Clary. Tentou esconder o tom de decepção

profundaemseupeitoporelenãoareconhecer.—Tudobemsevocênãomeconhecer.Teremostempo.

Eleolhouparaela.HaviaincertezaeesperançanaexpressãodeSimon,eumolhar ligeiramente perturbado, como se ele tivesse acabado de acordar de umsonhoenãosoubesseaocertoondeestava.Entãoelesorriu.

—Eu nãome lembro de tudo— falou.—Ainda não.Masme lembro devocê.— Ele pegou a mão dela, tocou o anel de ouro no indicador direito, ometaldefadamornoaotoque.—Clary—disseele.—VocêéClary.Éminhamelhoramiga.

AlecfoiatéacolinaondeMagnusseencontrava,nocaminhocomvistaparaatenda. Ele estava apoiado contra uma árvore, as mãos nos bolsos, e Alec sejuntouaeleparaobservarenquantoSimon—parecendotãoespantadoquantoumpatinhorecém-nascido—eracercadopelosamigos:Jace,Maia,Luke,eatémesmo Jocelyn, chorando de felicidade ao abraçá-lo, borrando amaquiagem.ApenasIsabellesedestacavadogrupo,asmãoscerradasnafrentedesi,orostoquasesemexpressão.

—Vocêquase caachandoqueelanãoseimporta—disseAlec,enquantoMagnus esticava a mão para ajeitar a gravata dele. Magnus havia ajudado aescolher o terno que ele estava usando, e tinhamuito orgulho por a peça terumalistraazul ninhaquedestacavaosolhosdeAlec.—Mastenhocertezadequeseimporta.

—Temrazão—falouMagnus.—Seimportaatédemais;éporissoqueestáisoladadosoutros.

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—Euiaperguntaroquevocêfez,masnãoseisequerosaber—disseAlec,apoiandoascostasemMagnus,aconchegando-senocalorsólidodocorpoatrásde si.Magnus rmou o queixo no ombro deAlec, e por um instante caramparados,juntos,olhandoparaatendaeparaacenadecaosfelizláembaixo.—Foibondadesua.

—Você faz a escolhaque temque fazernomomento— falouMagnus aoouvido de Alec. — Torce para não haver consequências, pelo menos nãoconsequênciassérias.

— Não acha que seu pai vai car com raiva, acha? — perguntou Alec, eMagnusriusecamente.

—Eletemmuitomaisoquefazerdoqueprestaratençãoemmim—disseMagnus.—Evocê?NoteiqueestavafalandocomRobert.

Alec sentiu a postura deMagnus car tensa enquanto repetia o que o paihavialhecontado.

— Sabe, eunão teria adivinhado isso— comentouMagnus, quando Alecterminou.—EconheciMichaelWayland.—Alecosentiudandodeombros.—Provaviva.Deque“ocoraçãoésempreinexperiente”etudoomais.

—Oquevocêacha?Devoperdoá-lo?—Achoqueoqueelecontoufoiumaexplicação,masnãoumpretextopara

amaneira como se comportou. Se perdoá-lo, faça-o por você, não por ele. Éumaperdadetemposentirraiva—falouMagnus—,sendoquevocêéumadaspessoasmaisamorosasqueconheço.

—Foiporissoquemeperdoou?Pormim,ouporvocê?—perguntouAlec,semraiva,apenascuriosidade.

—Perdoeiporqueteamoeodeio carsemvocê.Euodeio,meugatoodeia.EporqueCatarinameconvenceudequeeuestavasendoidiota.

—Hum.Gostodela.Magnus abraçouAlec, colocando asmãos no peito dele, como se estivesse

sentindoocoração.— E vocême perdoa— disse ele.— Por não torná-lo imortal, ou acabar

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comminhaimortalidade.— Não há nada a ser perdoado — falou Alec. — Não quero viver para

sempre.—EcolocouumadasmãossobreadeMagnus,entrelaçandoosdedos.— Podemos não ter muito tempo — disse Alec. — Vou envelhecer e voumorrer.Mas prometo que não o abandonarei até lá. É a única promessa quepossofazer.

—Muitos Caçadores de Sombras não envelhecem— disse Magnus. Alecsentia a pulsação dele. Era estranho, Magnus assim, sem as palavras quenormalmentelhevinhamtãofacilmente.

Alec virou no abraço de Magnus de modo que caram frente a frente,assimilando todos os detalhes dos quais nunca se cansava: os ossosproeminentesnorostodeMagnus,overde-douradodeseusolhos,abocaquesempre parecia prestes a sorrir, apesar de no momento demonstrarpreocupação.

—Mesmoquefossemapenasdias,euiaquererpassartodoscomvocê.Issosignificaalgumacoisa?

—Sim—respondeuMagnus.—Signi caqueapartirdeagoratornaremostodososdiasimportantes.

Estavamdançando.Lily tocava alguma coisa lenta e suave ao piano, eClary deslizava entre os

outrosconvidadosdafesta,abraçadaaJace.Eraexatamenteotipodedançadequegostava:nãomuitocomplicada,envolvendoapenasseguraroparceiroenãofazernadaquepudesseresultaremumtropeção.

Estava com a bochecha apoiada na camisa de Jace, o tecido amarrotado esedoso sob a pele. Amão dele brincava ociosamente nos cachos que tinhamsoltado do coque, os dedos traçando pela nuca. Ela não pôde deixar de selembrardeumsonhoquetiverahámuitotempo,noqualdançavacomJacenoSalão dos Acordos. Naquela época, ele era tão distante, tão frio; agora ela seespantavaàsvezesquandoolhavaparaele,aoverqueesteeraomesmoJace.OJacequevocêajudouaconstruir , dissera ele.UmJacedequemeugostomuito

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mais.Porémelenãoeraoúnicoquetinhamudado;Clarytambémmudara.Abriu

abocapara falar issoparaele,quando sentiuum toquenoombro.Virou-se eviuamãe,sorrindoparaosdois.

—Jace—disseJocelyn.—Possolhepedirumfavor?JaceeClarypararamdedançar;nenhumdosdoisdissenada.Jocelyntinha

passado a gostar muito mais de Jace nos últimos seis meses; ela até sentiacarinho por ele, Clary ousaria dizer, mas nem sempre se empolgava pelonamoradoCaçadordeSombrasdeClary.

— Lily está cansada de tocar, mas todo mundo está gostando tanto dopiano...evocêtoca,nãotoca?Clarymecontouqueémuitotalentoso.Tocariaparanós?

Jace lançou um olhar na direção de Clary, tão breve que ela só percebeuporque o conhecia bem o su ciente.Mas ele tinha bonsmodos, muito bonsquandoresolviautilizá-los.SorriuparaJocelyncomoumanjoefoiatéopiano.Emseguida,notasdemúsicaclássicapreencheramatenda.

TessaGrayeomeninoqueoutroraforaoIrmãoZachariahestavamsentadosàmesa mais afastada no canto e assistiam enquanto os dedos leves de JaceHerondaledançavamsobreasteclasdopiano.Jaceestavasemgravataecomacamisa parcialmente desabotoada, o rosto minuciosamente concentradoenquantoseperdianamúsicacompaixão.

—Chopin—identi couTessa,comumsorrisosuave.—Ficoimaginando...ficoimaginandoseapequenaEmmaCarstairsvaitocarviolinoumdia.

— Cuidado— alertou seu companheiro, com um riso na voz. — Não sepodeforçaressascoisas.

—É difícil— disse ela, virando-se para encará-lo seriamente.—Gostariaquevocêpudessecontarmaisaelasobrealigaçãoentrevocês,paraqueelanãosesentissetãosozinha.

AbocadeIrmãoZachariahassumiuumaexpressãodetristeza.—Vocêsabequenãoposso.Aindanão.Masdeiaentenderaela.Foi tudo

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quepudefazer.—Vamos cardeolhonela—disseTessa.—Vamossempre cardeolho

nela.—Tessatocouasmarcasnasbochechasdele,resquíciosdesuaépocadeIrmão do Silêncio, quase com reverência. — Lembro-me que você disse queesta guerra era uma história dos Lightwood, Herondale e Fairchild, e é dosBlackthorneCarstairstambém,eéincrívelvê-los.Masquandoosvejo,écomoseenxergasseopassadoseestendendoatrásdeles.QuandovejoJaceHerondaletocar,enxergoosfantasmasqueseelevamnamúsica.Vocênão?

—Fantasmassãolembranças,eoscarregamosporqueaquelesqueamamosnãodeixamomundo.

—Sim—falouela.—Queriaqueeleestivesseaquiparaverissoconosco,sómaisumavez.

Elasentiuasedagrossadoscabelosnegrosdeleaosecurvarparabeijarseusdedoslevemente—umgestocortêsdeumaépocaantiga.

—Eleestáconosco,Tessa.Podenosver.Euacredito. Sinto,domesmojeitoqueeuàsvezessabiaseeleestavatriste,comraiva,solitáriooufeliz.

Elatocouapulseiradepérolanopulso,eemseguidaorostodele,osdedoslevesecarinhosos.

— E como ele está agora? — sussurrou ela. — Feliz, saudoso, triste ousolitário?Nãomedigaqueestásolitário.Poisvocêdevesaber.Sempresoube.

—Eleestáfeliz,Tessa.Estáfelizpornosverjuntos,assimcomoeusemprequei felizaovervocêsdois juntos.—Ele sorriu,aquele sorrisoquecontinha

todaaverdadedomundo,eafastouosdedosdosdelaquandovoltouasesentar.Duas guras se aproximavamdamesa: uma ruiva alta e umamenina com osmesmoscabelosruivoseolhosverdes.—Eporfalarempassado—disseele—,achoquetemalguémaquiquedesejafalarcomvocê.

ClaryestavaentretidaobservandoChurchquandosuamãeparouao seu lado.Ogatotinhasidoenfeitadocomdúziasdesininhosprateadosdecasamento,eemumafúriavingativaroíaumadaspernasdopiano.

—Mãe—disseClary,desconfiada.—Oqueestátramando?

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Amãeaafagounocabelo,parecendoalegre.—Temalguémquequeroqueconheça—disseela,pegandoamãodeClary.

—Jáestánahora.— Na hora? Hora de quê? — Clary se permitiu ser puxada, apenas

semiprotestando, até uma mesa coberta por uma toalha branca no canto datenda.

Ali estava a menina de cabelos castanhos que Clary vira mais cedo. Amenina levantou o olhar quando ambas se aproximaram.O IrmãoZachariahestava se levantando ao ladodela; dandoum sorriso suave paraClary e entãoatravessandoorecintoparafalarcomMagnus,quetinhadescidodacolina,demãosdadascomAlec.

—Clary—disseJocelyn.—QueroqueconheçaTessa.

—Isabelle.Ela levantou o olhar; estava apoiada na lateral do piano, deixando que a

músicade Jace (eo somfracodeChurchroendoamadeira)aembalasse.Eraumamúsicaquelhelembravaainfância,Jacepassandohorasnasalademúsica,preenchendooscorredoresdoInstitutocomumacascatadenotas.

Simonahaviachamado.Eletinhadesabotoadoajaquetajeansporcausadocalordatenda,eIzzynotavaorubordecaloreconstrangimentonasbochechasdele. Havia algo de estranho naquilo, um Simon que enrubescia, sentia frio,calor,cresciaeseafastava—dela.

Seus olhos escuros estavam curiosos quando pousaram nela; Isabelleenxergou reconhecimento neles,mas não pleno.Não era assim que Simon aolhavaantes,desejosoecomaqueladormaravilhosa,masasensaçãodequealihaviaalguémqueaenxergava,enxergavaIsabelle,aIsabellequeelaapresentavaao mundo, e a Isabelle que ela escondia, guardada nas sombras onde muitopoucospodiamver.

Simonforaumdessespoucos.Agoraeleera...outracoisa.—Isabelle—repetiuele, eela sentiu Jaceolhandoparaela,olhoscuriosos

enquantoasmãospercorriamasteclasdopiano.—Querdançarcomigo?

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Elasuspiroueassentiu.— Tudo bem — falou, e deixou que ele a conduzisse para a pista. Com

saltos,ela cavadaalturadele;osolhosnomesmonível.Portrásdosóculos,osolhosdeleexibiamamesmacormarromdecaféescuro.

— Me disseram — começou ele, e pigarreou —, ou pelo menos tenho aimpressãodequeeuevocê...

—Não— interrompeuela.—Não fale sobre isso. Se vocênão se lembra,entãonãoqueroouvir.

UmadasmãosdeleestavanoombrodeIsabelle,aoutranacintura.Apeledeleeramornadeencontroàdela,enãofriacomoelaselembrava.Elepareciaincrivelmentehumanoefrágil.

—Masqueromelembrar—disseele,eelaselembroudecomoelesemprefoiargumentativo; isso,pelomenos,não tinhamudado.—Lembrodeparte...nãoécomoseeunãosoubessequemvocêé,Isabelle.

—VocêmechamariadeIzzy—censurouela,derepentesentindo-semuitocansada.—Izzy,nãoIsabelle.

Eleseinclinouparaafrente,eelasentiuohálitodeleemseucabelo.—Izzy—repetiuele.—Eumelembrodeterbeijadovocê.Elaestremeceu.—Não,nãolembra.— Sim, lembro — falou. As mãos deslizaram para as costas dela, dedos

tocandooespaçologoabaixodoombro,gestoquesempreafezestremecer.—Jáfazalgunsmeses—disseele,baixinho.—Enadapareciacerto.Sempresentique faltava alguma coisa. Agora sei que era isto, tudo isto,mas tambémvocê.Nãomelembravaduranteodia.Masànoitesonhavacomvocê,Isabelle.

—Sonhavacomagente?—Sócomvocê.Ameninadeolhosescuros,muitoescuros.—Ele tocoua

pontinhadocabelodelacomdedosleves.—Magnusdissequefuiumherói—falou.—Equandovocêmeolha,vejonoseurostoqueestáprocurandoaquelecara.Ocaraqueconheciaequeeraumherói,quefezcoisasincríveis.Nãome

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lembrodeterfeitoessascoisas.Nãoseiseessemeunovojeitofezeudeixardeser herói.Mas gostaria de tentar ser aquele cara outra vez. O cara que podebeijá-laporquemerece.Sevocêtiverpaciênciaemedeixartentar.

EraumacoisatãoSimondesedizer.Elaolhouparaele,epelaprimeiravezsentiuesperançacrescendonopeitosemserimediatamentereprimida.

—Possodeixar—disseela.—Digo,tentar.Nãopossoprometernada.—Nãoesperariaqueprometesse.—OrostodeSimonseiluminou,eelaviu

a sombra de uma lembrança no fundo dos olhos dele. — Você é umadestruidoradecorações,IsabelleLightwood—falouele.—Pelomenosdissoeumelembro.

— Tessa é uma feiticeira — disse Jocelyn —, embora seja um tipo muitoincomumdefeiticeira.Lembra-sedoqueconteisobreter cadoempânicoemrelaçãoaojeitodecolocaremvocêofeitiçoquetodososCaçadoresdeSombrasrecebem ao nascer? O feitiço de proteção? E que o Irmão Zachariah e umafeiticeira me ajudaram com a cerimônia? É desta feiticeira que eu estavafalando.TessaGray.

—Vocême disse que foi daí que tirou a ideia para o sobrenome Fray.—ClarysentounacadeiraemfrenteaTessa,àmesaredonda.— FdeFairchild—falou,percebendoemvozalta.—EorestodeGray.

Tessasorriu,eseurostoseiluminou.—Foiumahonra.—Vocêeraumbebê;nãose lembraria—disse Jocelyn,masClarypensou

em como Tessa lhe pareceu familiar na primeira vez em que a vira, e couimaginando.

— Por que só estáme contando isso agora?— perguntou Clary, olhandopara a mãe, que estava perto de sua cadeira, girando ansiosamente a aliançarecém-colocadanodedo.—Porquenãoantes?

— Eu tinha pedido para estar presente quando ela revelasse, caso eladesejasse fazê-lo— respondeuTessa; tinhaumavozmelodiosa, suave e doce,com traçosdeum sotaquebritânico.—E temoque eu já tenhahámuitome

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isolado do mundo dos Caçadores de Sombras. Minhas lembranças dele sãodoceseamargas,àsvezesmaisamargasquedoces.

JocelyndeuumbeijonacabeçadeClary.—Porquevocêsduasnãoconversam?—falou,eseretirou,indoatéLuke,

queconversavacomKadir.ClaryolhouparaosorrisodeTessaedisse:—Vocêéfeiticeira,maséamigadeumIrmãodoSilêncio.Maisqueamiga...

éumpoucoestranho,não?Tessaapoiouoscotovelosnamesa.Umapulseiradepérolabrilhavaemseu

pulsoesquerdo;elabrincavacomajoiaociosamente,comosefosseumhábito.—Tudoemminhavidaéumtantoincomum,maspensandobem,omesmo

podeserditosobrevocê,não?—Seusolhosbrilharam.—JaceHerondaletocapianomuitobem.

—Eelesabedisso.—IssoéacaradosHerondale—riuTessa.—Devolhedizer,Clary,quesó

descobri recentemente que Jace desejava ser um Herondale, e não umLightwood. Ambas famílias honrosas, conheço as duas, mas meu destinosempre foimais entrelaçado aosHerondale.—Olhou para Jace, e havia umaespéciedesaudosismoemsuaexpressão.—Existemfamílias,osBlackthorn,osHerondale, os Carstairs, pelas quais sempre tive uma a nidade especial: osobserveidelonge,emboratenhaaprendidoanãointerferir.Emparteessefoiomotivo pelo qual me recolhi ao Labirinto Espiral depois da Ascensão. É umlugar tão distante do mundo, tão escondido, que pensei que lá eu fosseencontrarapazeesqueceroqueaconteceuaosHerondale.EdepoisdaGuerraMalignapergunteiaMagnussedeveriaprocurarJace,falarsobreopassadodosHerondale,maselerecomendouqueeudessetempoaele.Quesuportarofardodopassado eramuitopesado.Então regressei aoLabirinto.—Ela engoliu emseco.—Este foiumanosombrio,muitocruelparaosCaçadoresdeSombras,para os integrantes do Submundo, para todos nós. Tantas perdas e dor. NoLabirinto Espiral ouvíamos rumores, depois vieram os Crepusculares, e acheique o melhor a fazer era ajudar na pesquisa de uma cura, mas não havia

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nenhuma.Gostaria que tivéssemos encontrado alguma.Às vezes nem sempreexistecura.—Ela touZachariah,umaluznosolhos.—Masàsvezesexistemmilagres. Zachariah me contou sobre como ele se tornou mortal outra vez.Falouquefoi“umahistóriadosLightwood,HerondaleeFairchild”.—Voltouaolhar para Zachariah, que estava ocupado afagando Church. O gato haviasubidonamesadechampanheeestavaderrubandotaçasalegremente.Oolhardelaeradeexasperaçãoecarinhomisturados.—Vocênãosabeoquesigni caparamim, o quanto sou grata pelo que você fez pelomeu... porZachariah, oquetodosvocêsfizeramporele.

—Foi Jace,maisdoqueninguém.Foi...ZachariahpegouChurchnocolo?—Claryencaroucomassombro.Zachariahestavasegurandoogato,queestavaácido, a cauda enrolada no braço do ex-Irmão do Silêncio. — Aquele gato

odeiatodomundo!Tessasorriudiscretamente.—Eunãodiriatodomundo.— Então ele é... Zachariah é mortal agora? — perguntou Clary. — É

apenas...umCaçadordeSombrascomum?—Sim— respondeuTessa.—Eu e elenos conhecemoshámuito tempo.

Tínhamos um encontro xo todos os anos, no começo de janeiro. Este ano,quandoelechegou,paraminhasurpresa,eraummortal.

—Evocêsóficousabendoquandoeleapareceu?Euoteriamatado.Tessariu.—Bem, isso de certa forma teria destruído o objetivo. E acho que ele não

sabiaaocertocomoeuiriarecebê-lo,mortal,sendoqueeunãosoumortal.—A expressão dela fez Clary se lembrar deMagnus, aquela expressão de olhosvelhos,muito velhos em um rosto jovem, a fazia se recordar de uma tristezamuitosilenciosaemuitoprofundapara sercompreendidaporaquelesdotadosdevidascurtas.—Elevai envelheceremorrer, e euvoucontinuarcomosou.Mas ele viveu uma vida longa,mais longa que amaioria, eme entende.Nemele, nem eu temos a idade que aparentamos. E nos amamos. Isso é o queimporta.

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Tessafechouosolhos,eporuminstantepareceudeixarasnotasdamúsicadopianoatocarem.

— Tenho uma coisa para você — disse ela, abrindo os olhos: eramcinzentos, da corda águada chuva.—Para vocês dois; para você e para Jacetambém.—Então tirou algo do bolso e entregou a Clary. Era uma argola deprata,umaneldefamília,brilhandocomaestampadepássarosemplenovoo.—EsteanelpertenceuaJamesHerondale—declarou.—ÉumverdadeiroanelHerondale, demuitos anos. Se Jace decidiu que quer ser umHerondale, deveficarcomele.

Clarypegouoanel;cabianoseupolegar.—Obrigada,masvocêpodeentregarpessoalmente.Talvezagorasejaahora

defalarcomele.Tessabalançouacabeça.—Vejacomoeleestáfeliz—comentou.—Estádescobrindoquemeleé,e

quem quer ser, e encontrando alegria nisso. Ele precisa demais tempo, paracarfelizassim,antesdevoltaracarregarqualquerfardo.—Elapegoualgoque

estavana cadeira ao seu lado, e estendeuparaClary.EraumacópiadoCódexdosCaçadoresdeSombras ,numacapadeveludoazul.—Éparavocê—disse.— Tenho certeza de que já tem seu exemplar, mas este sempre foi preciosoparamim.Temuma inscrição... está vendo?—E virou o livro, demodo queClary pudesse enxergar onde as palavras estavam gravadas em ouro contra oveludo.

— “Livremente servimos porque livremente amamos ” — leu Clary em vozalta, eolhouparaTessa.—Obrigada; éumabeleza.Temcertezadequequerabrirmãodele?

Tessasorriu.—OsFairchildtambémforammuitoqueridosemminhavida—falou—,e

seuscabelosruivosesuateimosialembrampessoasquejáamei,Clary—disseela,eseinclinouparaafrente,sobreamesa,demodoqueseupingentedejadebalançasse livremente.— Sinto uma a nidade por você, também, que perdeutanto o irmão quanto o pai. Sei que foi julgada e xingada por ser a lha de

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Valentim Morgenstern, e agora por ser irmã de Jonathan. Sempre haveráaqueles que vão querer de ni-la com base no sobrenome que carrega ou nosanguequecorreemsuasveias.Nãodeixequeoutrosconcluamquemvocêé.Conclua vocêmesma.— Ela olhou para Jace, cujasmãos dançavam sobre asteclas do piano.As luzes dos círios reluziam em seus cabelos como estrelas efaziam suapelebrilhar.—A liberdadenão éumpresente; éumdireitonato.EsperoquevocêeJaceautilizem.

—Vocêsoatãoséria,Tessa.Nãoaassuste.—EraZachariah,chegandoportrásdacadeiradeTessa.

—Não a estou assustando!— disse Tessa, com uma risada; estava com acabeça inclinada para trás, e Clary cou imaginando se seria assim que elaprópria cava quando olhava para Jace. Torceu para que fosse. Era um olharfelizeseguro,oolhardequemtinhacon ançanoamorquedavaerecebia.—Sóestavadandoumconselho.

—Pareceassustador.—Era estranhoverZachariah falandocomumavozaomesmotempoparecidaediferentedavozquesoavanamentedeClary;navida real, o sotaque britânico dele eramais forte que o deTessa. Ele tambémmostrou alegria na voz quando esticou a mão para ajudar Tessa a sair dacadeira. — Lamento que tenhamos que ir embora; ainda temos uma longajornada.

—Paraondevão?—perguntouClary, segurandooCódex cuidadosamentenocolo.

—LosAngeles—respondeuTessa,eClaryselembroudaoutradizendoqueos Blackthorn eram uma família pela qual tinha um interesse especial. Clarycoufelizemsaber.EmmaeosoutrosestavammorandonoInstitutocomotio

de Julian,masa ideiade teralguémespecialparacuidardeles,umaespéciedeanjodaguarda,erareconfortante.

—Foiumprazerconhecê-la—disseClary.—Obrigada.Portudo.Tessasorriude formaradianteedesapareceupelamultidão,dizendoque ia

se despedir de Jocelyn. Zachariah pegou seu casaco e o xale de Tessa. Clary

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ficouobservando-o,curiosa.—Lembroqueuma vez vocême contou—disse ela—, que amou a duas

pessoasmaisquetudonomundo.Tessafoiumadelas?—Elaéumadelas—respondeueleemtomdeconcordância,meneandoos

ombrosparavestirocasaco.—Nãodeixeideamá-la,nemameu parabatai;oamornãoacabaquandoalguémmorre.

— Seuparabatai?Você perdeu seuparabatai?— indagouClary, comumasensaçãodedorsurpresa;sabiaoqueissosignificavaparaosNephilim.

— Não do coração, pois não me esqueci dele — disse, e ela ouviu umsussurroda tristezadeerasnavozdeZachariah,e se lembroudelenaCidadedo Silêncio, umespectrode fumaçadepergaminho.—Somos todosparte doquenoslembramos.Guardamosemnósasesperançaseosmedosdaquelesquenosamam.Contantoqueexistaamorelembrança,nãoexistiráperdadefato.

ClarypensouemMax,Amatis,Raphael,Jordan,eatémesmoemJonathan,esentiuapontadadaslágrimasnagarganta.

ZachariahenrolouoxaledeTessaemvoltadosprópriosombros.—DigaaJaceHerondalequeele tocamuitobemoConcertonúmero2de

Chopin—falou,edesapareceupelamultidão,atrásdeTessa.Ela couolhandoparaele,agarrandooaneleoCódex.

—AlguémviuChurch?—perguntouumavoz ao seuouvido.Era Isabelle,com os dedos aconchegados no braço de Simon. Maia vinha ao lado deles,mexendoemumprendedordouradoemseuscabeloscacheados.—AchoqueZachariahroubounossogato.JuroqueovicolocandoChurchnobancodetrásdeumcarro.

— Impossível — disse Jace, aparecendo ao lado de Clary; estava com asmangas dobradas até os cotovelos, e ruborizado pelo esforço ao piano. —Churchodeiatodomundo.

—Nemtodomundo—murmurouClary,comumsorriso.Simon estava olhando para Jace como se ele fosse ao mesmo tempo

fascinanteetambémumpoucoalarmante.—Eu...algumdianós...eujámordivocê?

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Jacetocouacicatriznopescoço.—Nãoconsigoacreditarquevocêselembradisso.—Nós...rolamosnofundodeumbarco?—Sim,vocêmemordeu, e sim, eugosteiumpouco, sim,nãovamosmais

falarsobreisso—disseJace.—Vocênãoémaisumvampiro.Foco.—Paraserjusta,vocêtambémmordeuAlec—falouIsabelle.— Quandoisso aconteceu?— perguntouMaia, o rosto se acendendo com

divertimento enquantoMorcego chegava por trás dela. Sem uma palavra, elepegouoprendedordamãodelaeocolocoudevoltaemseucabelo.Elefechouajoia com e ciência.Asmãos permaneceram ali por um instante, delicadas deencontroaocabelodela.

—O que acontece nos reinos demoníacos, ca nos reinos demoníacos—disseJace,queentãoolhouparaClary.—Querdarumavolta?

—Umavoltaouumavolta?—perguntouIsabelle.—Tipo,vocêsvão...—Achoquetodosnósdevemosiratéo lago—falouClary,se levantando,

comoCódexemumadasmãoseoanelnaoutra.—Élindolá.Principalmenteànoite.Gostariaquemeusamigosvissem.

—Eumelembro—disseSimon,e lançouumsorrisoquefezocoraçãodeClaryin arnopeito.Osítioparaoqualelesiamemtodososverões;namentedela, sempreestariaatreladoaSimon.O fatodeele ter se lembradoadeixavamaisfelizdoqueelapoderiaterimaginadoestarnaquelamanhã.

Eladeslizouamãoparaade Jace enquanto se afastavamda tenda, IsabellecorrendoparamandaroirmãobuscarMagnusparaacompanhá-los.MaiscedoClaryqueriaficarsócomJace;agoraqueriaestarcomtodomundo.

AmavaJaceháoquepareciatantotempo,amavatantoqueàsvezesachavaque podiamorrer disso, porque era algo do qual necessitava e não podia ter.Porém agora não mais: o desespero dera lugar à paz e a uma felicidadesilenciosa. Agora que ela não sentia mais que cada instante com ele eraarrancado da possibilidade de um desastre, agora que ela conseguia imaginaruma vida inteira de momentos com Jace, momentos de paz, de diversão,casuais, relaxados ou gentis, não queria nada senão caminhar até o lago com

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todososamigosparacomemorarodia.Aopassaremporumacristasobreatrilha,elaolhouparatrás.ViuJocelyne

Lukepróximosàtenda,olhandoparaeles.ClarynotouLukesorrindoparaela,eamãeerguendoamãonumacenoeentãobaixando-aparaseguraramãodonovo marido. A coisa se deu do mesmo jeito com eles, pensou ela, anos deseparaçãoetristeza,eagoratinhamavidainteira.Umavidademomentos .Elalevantouamão,retribuindooaceno,eemseguidaseapressouparaalcançarosamigos.

Magnus estava apoiado no exterior do celeiro, observando Clary e Tessaabsortas em uma conversa, quandoCatarina se aproximou dele. Tinha oresazuis no cabelo, as quais enfatizavam sua pele azul-sa ra. Ele olhou para opomar,emdireçãoaolago,quereluziacomoáguaretidaemmãosemconcha.

— Você parece preocupado — comentou Catarina, colocando a mão noombrodeleemsinaldecompanheirismo.—Oquehouve?VivocêbeijandoseumeninoCaçadordeSombrasmaiscedo,entãonãopodeserisso.

Magnusbalançouacabeça.—Não.EstátudobemcomAlec.— Vi você conversando com Tessa, também — continuou Catarina,

esticando o pescoço para olhar. — Estranho tê-la aqui. É isto que está lheincomodando?Passadoefuturocolidindo;deveparecerumpoucoestranho.

—Talvez—disseMagnus,apesardenãoestarmuitocertodequefosseisso.—Fantasmasantigos,as sombrasdecoisasquepoderiamter sido.EmboraeusempretenhagostadodeTessaedosmeninosdela.

—Ofilhodeladavaumtrabalhão—lembrouCatarina.— Assim como a lha — riu Magnus, muito embora tenha soado frágil

como gravetos no inverno. — Tenho sentido o peso do passado em meusombrosnosúltimosdias,Catarina.Arepetiçãodeerros.Ouçocoisas,boatosnoSubmundo, rumores de brigas por vir.O Povo das Fadas é orgulhoso, omaisorgulhosodetodos;nãovaireceberahumilhaçãodaClavesemretaliação.

—Elessãoorgulhosos,porémpacientes—disseCatarina.—Podemesperar

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muito tempo, gerações, para se vingar. Você não pode temer que aconteçaagora,quandoassombraspodemnãodescerporanos.

Magnusnãoolhouparaela;olhavaparaa tenda,ondeClary seencontravaconversando com Tessa, onde Alec estava lado a lado comMaia eMorcego,rindo, onde Isabelle e Simondançavam ao somdamúsica que Jace tocava aopiano,asnotasdocesesombriasdeChopinofaziamrecordardeoutrotempo,edosomdeviolinosnonatal.

—Ah—disseCatarina.—Vocêestápreocupadocomeles;estápreocupadocomomalseabatendosobreaquelesqueama.

—Comeles,oucomos lhosdeles.—Alechaviaseseparadodosoutroseestava subindo a colina em direção ao celeiro. Magnus o observava seaproximando,umasombraescuracontraocéuaindamaisescuro.

— Melhor amar e temer do que não sentir nada. É assim que nospetri camos—disseCatarina,eotocounobraço.—SintomuitoporRaphael,aliás.Não tive a oportunidadededizer isso. Sei que você já salvou a vidadeleumavez.

—Eelesalvouaminha—respondeuMagnus,eergueuoolharquandoAlecosalcançou.AleccumprimentouCatarinacomumgestocortêsdecabeça.

—Magnus,estamosindoparaolago—falou.—Quervir?—Porquê?—perguntouMagnus.Alecdeudeombros.—Clary disse que é bonito— respondeu.—Digo, já conheço,mas tinha

umanjoenormesurgindodele,oqueacaboumedistraindo.—Eleestendeuamão.—Vamos.Todomundovai.

Catarinasorriu.—CarpeDiem—falouparaMagnus.—Nãopercatempopensando.—Ela

segurouassaias,erguendo-as,epartiuemdireçãoàsárvores,ospéscomofloresazuisnagrama.

MagnuspegouamãodeAlec.

Havia pirilampos perto do lago. Iluminavam a noite com seus lampejos

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enquanto o grupo espalhava casacos e cobertas no chão, os quais Magnusalegaratercriadousandoapenasoar,emboraClarydescon assequetivessemsidoinvocadosilegalmentedeumaloja.

Olagotinhaumbrilhoprateado,re etindoocéuesuasmilharesdeestrelas.Clary ouviu Alec nomeando as constelações para Magnus: leão, sagitário,pégasus. Maia havia tirado os sapatos e caminhava descalça pela margem dolago. Morcego a seguira, e enquanto Clary observava, ele pegou a mão dela,hesitante.

Eladeixou.SimoneIsabelleestavaminclinadosumcontraooutro,sussurrando.Devez

emquandoIsabellesoltavaumarisadinha.Seurostoestavamaisalegredoqueestiveraemmeses.

Jacesentou-seemumdoscobertoresepuxouClaryconsigo,umapernadecadaladodela.Claryseapoiounele,sentindoasbatidasconfortáveisdocoraçãoem suas costas. Os braços de Jace a envolveram, e os dedos dele tocaram oCódexnocolodela.

—Oqueéisto?—Umpresenteparamim.Etemumparavocêtambém—disseela,epegou

amão dele, esticando os dedos um por um, até que ele estivesse com amãoaberta.Elacolocouoaneldepratalevementegastonapalmadele.

—UmanelHerondale?—Elesoouespantado.—Ondevocê...—EradeJamesHerondale—respondeuela.—Nãotenhonenhumaárvore

genealógica por aqui, então não sei exatamente o que isso signi ca, mas eleclaramentefoiumdeseusancestrais.LembrodevocêfalandoqueasIrmãsdeFerroteriamqueforjarumanelnovo,poisStephennãotinhadeixadoumparavocê...masagoravocêjátem.

Eleocolocounoanelardireito.—Todavez—disseelebaixinho.—Todavezqueachoquefaltaumpedaço

demim,vocêmecompleta.Não havia o que dizer, então Clary não disse nada; apenas se virou nos

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braçosdeleeobeijounabochecha.Eleeralindosobocéunoturno,asestrelasirradiandoluz,brilhandonoscabeloseolhosdele,eoanelHerondalereluzindonodedo,um lembretede tudoque sepassara, e de tudoque ainda estavaporvir.

Somostodospartedoquenoslembramos.Guardamosemnósasesperançaseosmedosdaquelesquenosamam.Contantoqueexistaamorelembrança,nãoexisteperdadefato.

—VocêgostadonomeHerondale?—perguntouele.—Éseunome,entãoeuoamo—respondeu.—EupoderiaterrecebidoalgunsnomesNephilimbemruins—disseele.—

Bloodstick.Ravenhaven.—Bloodsticknãopodeserumnome.— Pode não ser aceito — reconheceu. — Herondale, por outro lado, é

melódico.Doce,pode-sedizer.Pensenosomde“ClaryHerondale”.—Ai,meuDeus,soapéssimo.— Todos temos que fazer sacrifícios por amor.— Ele sorriu e se esticou,

contornandoClaryparaalcançaroCódex.—Esteéantigo.Umaediçãoantiga—comentouele,virandoolivro.—AinscriçãoatrásédeMilton.

—Claroquevocêsabedisso—disseelaafetuosamente,eseapoioucontraeleenquantoeleviravaolivronasmãos.

Magnustinhaacendidoumafogueira,quequeimavaalegrementenabeiradolago, enviando faíscas ao céu.O re exodo fogo re etiunocolarvermelhodeIsabellequandoelasevirouparafalaralgumacoisaparaSimon,ebrilhoufortenoresplendordosolhosdeMagnuseaolongodaáguadolago,transformandoasondulaçõesemlinhasdouradas.EntãoatingiuainscriçãonapartetraseiradoCódex enquanto Jace lia as palavras em voz alta paraClary, com a voz suavecomomúsicanoescurobrilhante.

“LivrementeservimosPorquelivrementeamamos,conformenossoarbítrioDeamarounão;assimnoserguemosoucaímos.”