Cassirer esboços e resenhas (vinicios figueiredo e Munhoz).docx

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Cassirer esboa teoria da natureza humanaALBERTO ALONSO MUNZESPECIAL PARA A FOLHACassier esboa teoria da natureza humanaALBERTO ALONSO MUNOZNo so poucos os trabalhos filosficos deste sculo que procuram sintetizar os resultados recentes das cincias humanas. Em nossos dias, contudo, ningum mais se arriscaria a uma tentativa asim. a esse projeto ousado que se dedica Ernest Cassier em Ensaio Sobre o Homem - Introduo a uma filosofia da cultura humana, uma das grandes obras do sculo 20 que procuraram apresentar um esboo de unidade para os produtos dos diversos campos da cultura.Ensaio Sobre o Homem, publicado em 1994, procura ser ao mesmo tempo um resumo e uma verso atualizada de uma outra obra, a Filosofia das Formas Simblicas, escrita 25 anos antes e provavelmente o principal trabalho de Cassier. Na primeira parte, O que Homem?, Cassier apresenta o esboo de uma teoria da natureza humana.A nova unidade da natureza humana no poder mais ser encontrada numa essncia ou numa substncia metafsica. Ela ser antes uma funo simblica ou faculdade de criar smbolos que se exprime no sistema duas atividades humanas. O homem se distinguiria do restante do reino animal ao deixar de responder mecanicamente a estmulos e ao produzir uma camada de smbolos que o separa do real e o torna independente do ambiente a seu redor.Por fim, essa faculdade (de que a razo sertia uma forma particular) dever abarcar o conjunto das atividade humanas tradicionalmente tidas por irracionais, como a produo mtica ou a linguagem potica. A funo simblica identifica-se, assim, capacidade de delimitar ou abstrair qualidades gerais a partir da experincia: ela permite o surgimento de noes abstratas de espao ou de tempo, o advento de idias como a de possvel (por oposio ao real) ou, enfim, de idias ticos ou utopias polticas.Na segunda parte, O Homem e a Cultura, Cassier examina cada uma das espcies de produtos culturais que resultam dessa funo simblica: a produo mtica e religiosa, duscutindo boa parte da antropologia da primeira metade do sculo (de Frazer a Malinowski, de Durkheim a Lvy-Bruhl); a linguagem retomando alguns resultados da lingustica estrutural; a arte, a histria e, finalmente, a cincia . Em todos estes campos Cssier identifica a presena constante de uma tenso: de um lado, a tendncia manuteno de padres (estticos, sociais, limgusticos, etc), de outro, um movimento no sentido da produo de inovaes que rompem com a normatividade tradicional. Residiria justamente nesta tenso a regra que d unidade aos diversos produtos culturais, para alm de sua multiplicidade e sua disperso. certo que, para o gosto de nossos dias, a obra de Cassier soa um pouco aultrapassada. No h, contudo, como no admirar a erudio e a clareza de seu trabalho, rico em sugestes e antecipaes dos trabalhos de autores posteriores, como Merleau-Ponty ou mesmo Foucault. Nem j clssico, e no mais contemporneo, nem por isso merece o esquecimento.

ALBERTO ALONSO MUNOZ doutorado em filosofia pela USP, colaborador de pesquisa do CEBRAP (Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento) e professor do departamento de filosofia da UFPR (Universidade Federal do Paran)So Paulo, domingo, 12 de junho de 1994

O animal simblico Uma compreenso filosfica da cultura

A Filosofia das Formas Simblicas - A LinguagemErnst CassirerTraduo: Marion FleischerMartins Fontes(Tel. 0/xx/11/239-3677)416 pgs., R$ 36,50

VINICIUS FIGUEIREDO

Dando sequncia ao intuito de apresentar ao pblico livros consagrados l fora, mas inditos por aqui, a coleo "Tpicos" acaba de publicar o primeiro volume da obra mais importante de Ernst Cassirer, de 1923. O segundo e o terceiro volumes (1925, 1929), que tratam do mito e do conhecimento, devem ser lanados no prximo ano. Consta da mesma coleo "Ensaio Sobre o Homem", em que Cassirer, no fim da vida, retoma a trilogia dos anos 20. O conjunto faz com que o mais renomado filsofo da escola neokantiana ganhe seu merecido lugar entre ns.Cassirer sempre circulou nos meios acadmicos como historiador do pensamento filosfico, literrio e cientfico modernos. Mas j h alguns anos cresce o interesse por sua prpria filosofia. Com isso, suas incurses historiogrficas passam a ser vistas sob seu vis original: o projeto filosfico de compreender a cultura, entendendo por isso o conjunto das formas simblicas abarcadas pelo mito, a linguagem, a esttica e a cincia, como o processo da progressiva autolibertao do homem.Essa oportunidade de devolver a Cassirer suas credenciais especulativas, porm, exige acuidade do leitor. Sua crena na emancipao humana soa como se ouvssemos um iluminista mal acomodado aos tempos sombrios da primeira metade do sculo 20. Da polmica travada entre Cassirer e Heidegger em Davos, em 1929, aos elogios que lhe dirige Merleau-Ponty na "Fenomenologia da Percepo", subjaz sempre uma mesma suspeita de fundo: como empreender uma filosofia da cultura, capaz de fornecer s cincias humanas uma fundamentao crtica, sem ceder ao duplo preconceito, antropolgico e humanista, conforme o qual o homem dispe de uma essncia inscrita em um processo que a realiza historicamente? A presente publicao, restituindo a Cassirer sua cidadania filosfica, permite medir essa objeo e compreender por que ele uma pea essencial no quebra-cabea filosfico contemporneo.

Mtodo regressivo

Reinterpretao de Kant: "As Formas Simblicas" tem por origem a tentativa de estender a epistemologia das cincias naturais, fundada por Kant, s cincias do esprito, cujo advento data do sculo 19. Mas essa aplicao do mtodo regressivo de Kant a todas as formas de simbolizao humana d ao projeto de Cassirer uma feio prpria. Sua novidade -perceptvel na "Introduo" que, precedendo a abordagem da linguagem, do mito e do conhecimento, abre o volume ora traduzido- pode ser compreendida a partir dos trs pontos de inciso que Cassirer realiza sobre a filosofia crtica: o alargamento da noo de teoria, sua interpretao da relao entre forma e matria da experincia e a abordagem de um tema -a cultura- que, ao contrrio da natureza, essencialmente diacrnico. Como o deslocamento configurado por esses trs pontos transcorre sob a noo de "smbolo", compreend-los em sua articulao d idia do que est em jogo com o sistema das formas simblicas.Para Cassirer, as cincias naturais constituem um tipo particular de configurao do Universo, ao lado de outras formas de apreenso do ser pela conscincia. Cada uma -mito, religio, linguagem e arte, alm da teoria- simboliza um aspecto do real, todas envolvendo uma transformao das impresses sensveis "em um mundo de pura expresso espiritual". Mas definir a teoria como conformao do campo sensvel equivale a dizer que ela j opera no nvel pr-cientfico da percepo: como professou Goethe, no tivesse em si mesmo o Sol, o olho no veria sequer a luz. Retomando essa idia, Cassirer submete a conscincia cognitiva a uma anlise fenomenolgica que, aproximando-a de outras formas de compreenso do sensvel, faz dela uma modalidade de inscrio originria do homem no mundo.Revela-se, assim, a segunda inciso operada sobre o kantismo. Se, como diro na trilha aqui aberta os filsofos analticos, a teoria um "framework" -um "esquema de pensamento" ou "horizonte" que pauta nossas aes mais ordinrias-, a razo disso, para Cassirer, est no fato de que o saber se enraza na determinao recproca entre forma e contedo, que precede e condiciona toda unidade objetiva. Da que o objeto no seja seno funo da conscincia, a "forma de sua prpria atividade", enfim, a evidncia material da realizao do esprito.Eis-nos no corao do idealismo crtico pleiteado por Cassirer: s h representao onde a conscincia recuou diante do ser, onde ela se diferenciou das impresses a fim de configur-las em uma idealidade significativa. Por isso, o real jamais reproduzido "ipso facto", ele toda vez uma expresso do esprito. Por certo, esse recuo frente matria admite uma hierarquia. Como mostra esse primeiro volume, a fala representa um ganho simblico frente ao gesto, pois o som "flutua no ter da significao"; quanto maior for o distanciamento da matria, mais complexa a simbolizao.Porm, mesmo no seu grau mais prximo do sensvel, na mmica, a linguagem dispe de pregnncia simblica e, nessa medida, expe em vez de reproduzir contedos. Foi munido dessa convico que Cassirer enfrentou a disputa entre a ontologia de um Hartmann e as filosofias da existncia, em voga na Alemanha do incio do sculo; ele props, no lugar dessa alternativa que via como dogmtica, uma analtica das "diversas leis e formas da expresso" sob as quais se diz o mundo.Essa opo, convm lembrar, projetou a sombra de Cassirer sobre muita coisa produzida no sculo 20. Basta pensar nos "schemata" de Ernest Gombrich ou na sociologia da arte de Pierre Francastel: para ambos, sem mencionar Erwin Panofsky, cuja filiao bvia, a noo de forma, tal como matizada no texto ora traduzido, decisiva.

O passo original

Porm, sem mencionar a terceira inciso realizada sobre o kantismo, no saberamos avaliar a originalidade de Cassirer. O alargamento da teoria e a passagem da imaginao a primeiro plano no trabalho de conformao do sensvel servem ao intuito de oferecer uma filosofia do mundo cultural, cuja diversidade se unifica mediante a definio do homem como animal "symbolicum".Eis o passo mais original e mais controverso de Cassirer. que fornecer as condies de possibilidade do "faktum" da cultura requer uma reconstruo da gnese das formas simblicas, cujo desenvolvimento coincide, nas palavras do autor, com a progressiva marcha do esprito rumo a sua auto-objetivao. Estaramos prximos de Hegel, no fosse o fato de que, passando ao largo da dialtica transcendental, Cassirer reconstri a histria do esprito a partir da ampliao da analtica kantiana.Como faz-lo, todavia, sem atribuir ao homem uma essncia que seja, a um s tempo, tema da anlise e unidade de sua inscrio na histria? Ao revelar todo seu alcance, o projeto de anexar analtica as cincias humanas parece cobrar seu preo: a histria, dissipando os contornos do homem e remetendo sua explicao a causas remotas, devolve-nos sua figura sob tal diversidade de formas expressivas que, sem uma natureza pressuposta pela anlise, no teramos sequer como nos assegurar de que o sujeito desse processo permanece sendo o homem.Vale, ento, a acusao de humanista? O risco de reincidncia dogmtica representado pela premissa antropolgica no passou despercebido a Cassirer: sua definio da humanidade a partir de nossa capacidade de simbolizao faz da cultura um ideal cuja atualizao requer, sempre, nossa iniciativa moral. Com isso, a natureza humana, at aqui sob suspeita, se presta a outra interpretao. Em vez do impensado do epistemlogo, ela reaparece como clusula explcita de leitura, convite e aposta dirigidos a quem, em ltima anlise, detm a palavra -o leitor.

So Paulo, sbado, 08 de setembro de 2001