Upload
phamminh
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo: Paz e terra, 1999, p. 411-439
CONCLUSÃO: DEPREENDENDO NOSSO MUNDO
Esta é a conclusão geral de um livro em três volumes. A Era da Informação:
Economia, Sociedade e Cultura. Tentei evitar repetições. Sobre a definição dos
conceitos teóricos empregados nesta conclusão (por exemplo, informacionalismo ou
relações de produção), favor consultar o Prólogo do livro no volume I. Vide também a
conclusão do volume I para uma abordagem do conceito de sociedade em rede e a
conclusão do volume II para uma análise das relações entre identidade cultural,
movimentos sociais e política.
Um novo mundo está tomando forma neste fim de milênio. Originou-se mais ou
menos no fim dos anos 60 e meados da década de 70 na coincidência histórica de três
processos independentes: revolução da tecnologia da informação; crise econômica do
capitalismo e do estatismo e a conseqüente reestruturação de ambos; e apogeu de
movimentos sociais e culturais, tais como libertarismo, direitos humanos, feminismo e
ambientalismo. A interação entre esses processo e as reações por eles desencadeadas
fizeram surgir uma nova estrutura social dominante, a sociedade em rede; uma nova
economia, a economia informacional/global; e uma nova cultura, a cultura da
virtualidade real. A lógica inserida nessa economia, nessa sociedade e nessa cultura
está subjacente à ação e às instituições sociais em um mundo interdependente.
Algumas características cruciais deste novo mundo foram identificadas na
análise apresentada nos três volumes deste livro. A revolução da tecnologia da
informação motivou o surgimento do informacionalismo como a base material de uma
nova sociedade. No informacionalismo, a geração de riqueza, o exercício do poder e a
criação de códigos culturais passaram a depender da capacidade tecnológica das
sociedades e dos indivíduos, sendo a tecnologia da informação o elemento principal
dessa capacidade. A tecnologia da informação tornou-se ferramenta indispensável para
a implantação efetiva dos processos de reestruturação socioeconômica. De especial
importância, foi seu papel ao possibilitar a formação de redes como modo dinâmico e
auto-expansível de organização da atividade humana. Essa lógica preponderante de
redes transforma todos os domínios da vida social e econômica.
A crise dos modelos de desenvolvimento econômico tanto do capitalismo como
do estatismo motivaram sua reestruturação paralela a partir de meados dos anos 70. nas
economias capitalistas, empresas e governos estabeleceram várias medidas e políticas
que, em conjunto, levaram a uma nova forma de capitalismo. Suas características são a
globalização das principais atividades econômicas, flexibilidade organizacional e maior
poder para o patronato em suas relações com os trabalhadores. Pressões competitivas,
flexibilidade de trabalho e enfraquecimento de mão-de-obra sindicalizada levaram à
redução de despesas com o Estado do bem-estar social, alicerce do contrato social na
era industrial. As novas tecnologias da informação desempenharam papel decisivo ao
facilitarem o surgimento desse capitalismo flexível e rejuvenescido, proporcionando
ferramentas para a formação de redes, comunicação à distância,
armazenamento/processamento de informação, individualização coordenada do
trabalho e concentração e descentralização simultâneas do processo decisório.
Nessa economia global interdependente, novos concorrentes, empresas e países,
vieram reivindicar uma participação crescente na produção, no comércio e no trabalho.
O surgimento de uma economia poderosa e competitiva na região do Pacífico e os
novos processos de industrialização e expansão de mercado em várias regiões do
mundo ampliaram o escopo e a escala da economia global, estabelecendo uma base
multicultural de interdependência econômica. Por intermédio da tecnologia, redes de
capital, de trabalho, de informação e de mercados conectaram funções, pessoas e locais
valiosos ao redor do mundo ao mesmo tempo em que desconectaram as populações e
territórios desprovidos de valor e interesse para a dinâmica do capitalismo global.
Seguiram-se exclusão social e não-pertinência econômica de segmentos de sociedades,
de áreas urbanas, de regiões e de países inteiros, constituindo o que chamo de "o
Quarto Mundo". A tentativa desesperada de alguns desses grupos sociais e territórios
para conectar-se à economia global e escapar da marginalidade levou a uma situação
que chamo de "a conexão perversa", quando o crime organizado em todo o mundo tirou
vantagem de sua condição para promover o desenvolvimento da economia do crime
global. O objetivo é satisfazer o desejo proibido e fornecer mercadorias ilegais à
contínua demanda de sociedades e indivíduos abastados.
A reestruturação do estatismo provou ser mais difícil, sobretudo para a
sociedade estatista predominante no mundo, a União Soviética, no centro de uma
ampla rede de países e partidos estatistas. Está comprovado que o estatismo soviético
foi incapaz de assimilar o informacionalismo e, com isso, bloqueou o crescimento
econômico e enfraqueceu, de forma decisiva, seu aparato bélico, fonte básica de poder
em um regime estatista. A conscientização sobre a estagnação e o declínio levou alguns
líderes soviéticos, de Andropov a Gorbachev, a tentarem uma reestruturação do
sistema. Para superar a inércia e a resistência do partido/Estado, os líderes reformistas
franquearam o acesso a informações e pediram o apoio da sociedade civil. A poderosa
expressão de identidades nacionais/culturais e as demandas populares por democracia
não puderam ser facilmente canalizadas para um programa de reformas
preestabelecido. A pressão dos acontecimentos, os erros táticos, a incompetência
política e a eterna divisão dos aparatos estatistas levaram ao súbito colapso do
comunismo soviético em um dos mais extraordinários eventos da história política. Com
ele, o império soviético também desmoronou, e os regimes estatistas em sua esfera
global de influência enfraqueceram-se de forma decisiva. Assim terminou, em espaço
de tempo equivalente a um instante pelos padrões históricos, a experiência
revolucionária mais importante do século XX. Também significou o fim da Guerra Fria
entre o capitalismo e o estatismo, uma guerra que dividira o mundo, determinara
geopolíticas e assombrara nossa vida nesta última metade de século.
Em seu modelo comunista, o estatismo praticamente acabou ali, apesar de o tipo
de estatismo da Chima ter tomado um caminho mais complicado e sutil para sua saída
histórica, como tentei mostrar no capítulo 4 deste volume, a bem da coerência da
argumentação aqui apresentada, deixe-me lembrar o leitor de que nos anos 90, o Estado
chinês, embora sob controle total do Partido Comunista, apresenta uma organização
voltada para a incorporação da China no capitalismo global com base em um projeto
nacionalista representado pelo Estado. Esse nacionalismo chinês com características
socialistas está se afastando rapidamente do estatismo em direção ao capitalismo global
e, ao mesmo tempo, tentando encontrar um modo de adaptar-se ao informacionalismo
sem uma sociedade aberta.
Após o fim do estatismo como sistema, em menos de uma década o capitalismo
prospera no mundo e aumenta sua penetração nos países, culturas e domínios da vida.
Não obstante um panorama social e cultural bastante diversificado, pela primeira vez
na história, todo o planeta está organizado com base em um conjunto de regras
econômicas em grande parte comuns. É, todavia, um tipo de capitalismo diferente
daquele formado ao longo da Revolução Industrial ou do capitalismo resultante da
Depressão dos anos 30 e da Segunda Guerra Mundial, sob a forma de keynesianismo
econômico e ênfase no estado do bem-estar social. É uma forma de capitalismo com
objetivos mais firmes, porém com meios incomparavelmente mais flexíveis que
qualquer um de seus predecessores. É o capitalismo informacional, que consta com a
produtividade promovida pela inovação e a competitividade voltada para a
globalização a fim de gerar riqueza e apropriá-la de forma seletiva. Está, mais que
nunca, inserido na cultura e é equipado pela tecnologia, mas, desta vez, tanto a cultura
como a tecnologia dependem da capacidade de conhecimentos e informação agirem
sobre conhecimentos e informação em uma rede recorrente de intercâmbios conectados
em âmbito global.
As sociedades, contudo, não são apenas o resultado da transformação
tecnológica e econômica, nem pode a mudança social ficar limitada a crises e
adaptações institucionais. Mais ou menos ao mesmo tempo em que esses
desenvolvimentos começaram a ocorrer ao fim dos anos 60, explodiram importantes
movimentos sociais quase simultâneos por todo o mundo industrializado, primeiro nos
Estados Unidos e na França, depois na Itália, Alemanha, Espanha, Japão, Brasil,
México, Tchecoslováquia, com ecos e reações em muitos outros países. Como
participante desses movimentos sociais (era professor adjunto de sociologia no campus
Nanterre da Universidade de Paris em 1968), sou testemunha de seu libertarismo.
Apesar de, muitas vezes, adotarem expressões ideológicas marxistas em suas
vanguardas militantes, eles tinham pouco a ver com o marxismo ou, a esse respeito,
com a classe operária. Eram movimentos essencialmente culturais, querendo mudar a
vida em vez de assumir o poder. Sabiam, por intuição, que o acesso às instituições do
Estado coopta o movimento, ao passo que a construção de um novo Estado
revolucionário perverte o movimento. Suas ambições abrigavam reação
multidimensional à autoridade arbitrária, revolta contra a injustiça e busca por
experimentação pessoal embora quase sempre postos em prática por estudantes, não
eram, em absoluto, movimentos estudantis, visto que permeavam toda a sociedade,
acima de tudo entre os jovens, e seus valores repercutiram em todas as esferas da vida.
É claro que no plano político eram derrotados, pois, como a maioria dos movimentos
utópicos da história, eles nunca visavam à vitória política. Mas desapareciam com alta
produtividade histórica, com muitas de suas idéias e alguns de seus sonhos germinando
nas sociedades e florescendo como inovações culturais que políticos e ideólogos terão
de entender e aceitar nas gerações futuras. Desses movimentos surgiram as idéias que
se transformariam na fonte do ambientalismo, do feminismo e da contínua defesa dos
direitos humanos, da liberdade sexual, da igualdade étnica e da democracia popular. Os
movimentos culturais dos anos 60 e do início da década de 70, com sua afirmação de
autonomia individual contra o capital e o Estado deram nova ênfase à política da
identidade. Essas idéias prepararam caminho para a construção de comunas culturais na
década de 90, quando a crise de legitimidade das instituições da era industrial
obscurecia o significado de política democrática.
Os movimentos sociais não eram reações à crise econômica. Sem dúvida, eles
explodiram no fim dos anos 60, no auge do crescimento sustentado e pleno emprego,
como crítica à "sociedade do consumismo". Embora tenham induzido algumas greves
de trabalhadores, como na França, e auxiliado a esquerda política, como na Itália, esses
movimentos não pertenciam à política de esquerda nem de direita da era industrial que
fora organizada com base nas divisões de classes, próprias do capitalismo, e, embora
em termos gerais eles coexistissem com a revolução da tecnologia da informação, a
tecnologia estava em grande parte ausente dos valores ou críticas da maioria dos
movimentos, se excetuarmos alguns apelos contra o maquinismo desumanizador e a
oposição à energia nuclear (tecnologia antiga na Era da Informação). Todavia, mesmo
que tenham sido fundamentalmente culturais e independentes das transformações
econômicas e tecnológicas, esses movimentos tiveram impacto sobre a economia, a
tecnologia e os resultantes processos de reestruturação. Seu espírito libertário exerceu
influência considerável no movimento para os usos individualizados e descentralizados
da tecnologia. Sua profunda separação da política trabalhista tradicional contribuiu para
o enfraquecimento da mão-de-obra sindicalizada e, com isso, facilitou a reestruturação
capitalista. Sua abertura cultural estimulou a experimentação tecnológica com
manipulação de símbolos, constituindo um novo mundo de representações imaginárias
que evoluiriam para a cultura da virtualidade real. seu cosmopolitismo e
internacionalismo lançaram as bases intelectuais para um mundo interdependente. E
sua aversão ao Estado enfraqueceu a legitimidade dos rituais democráticos, apesar de
alguns líderes do movimento terem prosseguido no intuito de renovar as instituições
políticas. Além disso, ao recusarem a transmissão ordeira dos códigos eternos e dos
valores estabelecidos, tais como o patriarcalismo, o tradicionalismo religioso e o
nacionalismo, os movimentos dos anos 60 prepararam terreno para uma divisão
fundamental nas sociedades de todo o mundo: por um lado, as elites ativas com cultura
auto-definida, construindo os próprios valores embasados em sua experiência; por
outro, grupos sociais inseguros e cada vez mais incertos, desprovidos de informação,
recursos e poder, cavando as próprias trincheiras de resistência exatamente com base
nesses valores eternos execrados pelos rebeldes dos anos 60.
A revolução da tecnologia, a reestruturação da economia e a crítica da cultura
convergiram para uma redefinição histórica das relações de produção, poder e
experiência em que se baseia a sociedade.
UMA NOVA SOCIEDADE
Surge uma nova sociedade quando e se uma transformação estrutural puder ser
observada nas relações de produção, de poder e de experiência. Essas transformações
conduzem a uma modificação também substancial das formas sociais de espaço e
tempo e ao aparecimento de uma nova cultura.
As informações e as análises apresentadas nos três volumes deste livro
representam forte indicação dessa transformação multidimensional neste fim de
milênio. Resumirei as principais características da mudança de cada dimensão,
encaminhando o leitor aos respectivos capítulos que tratam de cada assunto para
material empírico que confere alguma credibilidade às conclusões apresentadas a
seguir.
As relações de produção transformaram-se tanto em termos sociais como
técnicos. Na verdade, elas são capitalistas, mas de um tipo de capitalismo
historicamente diferente que chamo de capitalismo informacional. Para maior clareza,
analisarei, em seqüência, as novas características do processo produtivo, do trabalho e
do capital. Então, a transformação das relações de classes poderá tornar-se visível.
A produtividade e a competitividade constituem os principais processos da
economia informacional/global. A produtividade origina-se essencialmente da
inovação, e a competitividade, da flexibilidade. Portanto, empresas, regiões, países,
unidades econômicas de todas as espécies preparam suas relações de produção para
maximizar a inovação e a flexibilidade. A tecnologia da informação e a capacidade
cultural de utilizá-la são fundamentais no desempenho da nova função da produção,
além disso, um novo tipo de organização e administração, com vistas à adaptabilidade e
coordenação simultâneas, torna-se a base do sistema operacional mais efetivo,
exemplificando pelo que rotulei de a empresa em rede.
Nesse novo sistema de produção, a mão-de-obra é redefinida, no que diz
respeito a seu papel de produtora, e bastante diferenciada conforme as características
dos trabalhadores. Uma diferença importante refere-se ao que chamo de mão-de-obra
genérica versus mão-de-obra auto-programável. A qualidade crucial para a
diferenciação desses tipos de trabalhadores é a educação e a capacidade de atingir
níveis educacionais mais altos, ou sejam, os conhecimentos incorporados e a
informação, deve-se estabelecer distinção entre o conceito de educação e o de
conhecimento especializados. Conhecimentos especializados podem tornar-se
obsoletos com rapidez mediante mudança tecnológica e organizacional. Educação ou
instrução (diferentemente do internamento de crianças e estudantes em instituições) é o
processo pelo qual as pessoas, isto é, os trabalhadores, adquirem capacidade para uma
redefinição constante das especialidades necessárias à determinada tarefa e para o
acesso às fontes de aprendizagem dessas qualificações especializadas. Qualquer pessoa
instruída, em ambiente organizacional adequado, poderá reprogramar-se para as tarefas
em contínua mudança no processo produtivo. Já a mão-de-obra genérica recebe
determinada tarefa sem nenhum recurso de reprogramação, e não se pressupõe a
incorporação de informações e conhecimentos além da capacidade de receber e
executar sinais. É claro que esses "terminais humanos" podem ser substituídos por
máquinas ou por "outro corpo" da cidade, do país ou do mundo em função das decisões
empresariais. Embora, no conjunto, sejam imprescindíveis ao processo produtivo,
individualmente esses trabalhadores são dispensáveis, pois o valor agregado de cada
um deles representa uma pequena fração do que é gerado pela e para a organização.
Máquinas e mão-de-obra genérica de várias origens e locais coabitam os mesmo
circuitos sibservientes do sistema de produção.
A flexibilidade instituída em termos organizacionais pela empresa em rede
requer trabalhadores ativos na rede e trabalhadores de jornada flexível, bem como uma
ampla série de sistemas de trabalho, inclusive trabalho autônomo e subcontratações
recíprocas. A geometria variável desses sistemas leva à descentralização coordenada do
trabalho e à individualização dos trabalhadores.
A economia informacional/global é capitalista; sem dúvida, mais capitalista que
qualquer outra economia na história. Mas o capital está tão mudado quanto o trabalho
nessa nova economia. A norma continua sendo a produção pelo lucro e para a
apropriação privada dos lucros com base nos direitos de propriedade – o que constitui a
essência do capitalismo. Mas como ocorre essa apropriação de lucros? Quem são os
capitalistas? Devem-se considerar três diferentes níveis para responder a essa pergunta
básica. Apenas o terceiro nível é específico ao capitalismo informacional.
O primeiro nível diz respeito aos detentores dos direitos de propriedade que são
basicamente de três tipos: (a) acionistas de empresas, grupo em que acionistas
institucionais anônimos predominam cada vez mais e cujas decisões sobre investimento
e desinvestimento são, muitas vezes, determinadas apenas por análises financeiras de
curto prazo; (b) proprietários familiares, forma de capitalismo ainda importante,
sobretudo na região do Pacífico asiático: e (c) empresários individuais, donos dos
próprios meios de produção (a inteligência é seu maior patrimônio), empreendedores
que correm riscos, e donos de sua própria fonte geradora de lucros. Esta última
categoria, que havia sido fundamental para as origens do capitalismo industrial e depois
foi, em grande parte, sendo extinta de forma gradativa pelo industrialismo empresarial,
retornou de forma notável com o capitalismo informacional, usando a preeminência da
inovação e da flexibilidade como características essenciais do novo sistema de
produção.
O segundo nível de formas capitalistas refere-se à classe de administradores, ou
seja, os controladores dos bens de capital em nome dos acionistas. Esses
administradores, cuja primazia Berle e Means j;á haviam mostrado na década de 30,
ainda constituem o centro do capitalismo no informacionalismo, sobretudo nas
empresas multinacionais. Não vejo motivo para não incluir entre eles. Os
administradores de empresas estatais que praticamente seguem a mesma lógica e
compartilham a mesma cultura, menos o risco de perdas, que são cobertas pelo
contribuinte.
O terceiro nível do processo de apropriação de lucros pelo capital é história
antiga, mas também é característica fundamental do novo capitalismo informacional.
Diz respeito à natureza dos mercados financeiros globais. Nesses mercados, os lucros
de todas as fontes acabam convergindo em busca de maiores ganhos. Na verdade, as
margens de lucro nos mercados acionário, monetário, de títulos, futuros, opções e
derivativos, isto é, nos mercados financeiros em geral, são em média muito mais altas
que na maior parte dos investimentos diretos, à exceção de alguns casos de
especulação. Essa vantagem não decorre da natureza do capital financeiro, a forma
mais antiga de capital na história, mas sim das condições tecnológicas em que o capital
opera no informacionalismo. Ou seja, este último invalida o conceito de espaço e
tempo mediante meios eletrônicos. Sua capacidade tecnológica e informacional de
fazer análises contínuas, por todo o planeta em busca de oportunidades de
investimento, e de mudar de uma opção para outra em questão de segundos faz com
que o capital esteja em movimento constante, fundindo nesse movimento capital de
todas as origens, como em investimentos em fundos mútuos. Os recursos de
programação e previsão dos modelos de gerenciamento financeiro possibilitam
colonizar o futuro e seus interstícios (isto é, possíveis cenários alternativos), vendendo
esse "patrimônio irreal" como direitos de propriedade do imaterial. Jogando-se segundo
as regras, não há nada de errado com esse cassino global. Afinal de contas, se uma
gestão cautelosa e tecnologia apropriada evitam crises drásticas de mercado, as perdas
de algumas frações de capital representam os ganhos de outras, de forma que no longo
prazo o mercado faz um balanço e mantém um equilíbrio dinâmico. Contudo, em razão
do diferencial entre o montante de lucros obtidos com a produção de bens e serviços e
o valor que se pode conseguir com investimentos financeiros, os capitais individuais de
todos os tipos, sem dúvida, dependem da sorte de seus investimentos nos mercados
financeiros globais, visto que o capital nunca pode ficar ocioso. Desse modo, os
mercados financeiros globais e suas redes de gerenciamento são o verdadeiro
capitalista coletivo, a mãe de todas as acumulações. Não quer dizer que o capital
financeiro domine o capital industrial, antiga dicotomia que simplesmente não condiz
com a nova realidade econômica. De fato, nos últimos vinte e cinco anos, em geral as
próprias empresas de todo o mundo financiaram a maioria dos investimentos co m a
receita gerada por suas atividades. Bancos não controlam indústrias nem a si mesmos.
Empresas de todos os tipos, agentes financeiros, produtores industriais, agrícolas e de
serviços, bem como governos e instituições públicas, utilizam-se das redes financeiras
globais como depositárias de suas receitas e fonte potencial de maiores lucros. É dessa
forma específica que as redes financeiras globais são o centro nervoso de capitalismo
informacional. Seus movimentos determinam o valor de ações, títulos e moedas,
trazendo a ruína ou a prosperidade a poupadores, investidores, empresas e países. Mas
esses movimentos não seguem uma lógica de mercado. O mercado é torcido,
manipulado e transformado por uma combinação de manobras estratégicas acionadas
por computadores, psicologia das multidões a partir de fontes multiculturais e
turbulências inesperadas causadas por graus cada vez maiores de complexidade na
interação entre os fluxos de capital em escala global. Embora economistas de primeira
linha estejam tentando elaborar o modelo de comportamento desse mercado com base
na teoria de jogo, os dados desses esforços heróicos para encontrar padrões de
expectativas racionais são baixados de imediato nos computadores de magos das
finanças para obter nova vantagem competitiva desse conhecimento, inovando os
padrões de investimentos já conhecidos.
As conseqüências desses progressos sobre as relações das classes sociais são
tão profundas quanto complexas. Entretanto, antes de identificá-las, preciso
caracterizar os diferentes sentidos de relações de classes. Uma abordagem enfoca a
desigualdade social com base na renda e na condição social, segundo a teoria da
estratificação social. nessa perspectiva, o novo sistema distingue-se por uma tendência
a aumentar a desigualdade social e a polarização, ou seja, o crescimento simultâneo
de ambos os extremos da escala social, o mais alto e o mais baixo. Esse cenário resulta
de três fatores: (a) uma diferenciação fundamental entre mão-de-obra altamente
produtiva e autoprogramável e mão-de-obra genérica dispensável: (b) a
individualização dos trabalhadores, que enfraquece a organização coletiva e abandona
os segmentos mais frágeis da força de trabalho ao próprio destino; e (c) sob o impacto
da individualização dos trabalhadores, da globalização da economia e da
deslegitimação do estado, o fim gradativo do estado do bem-estar-social, com isso
tirando a rede de segurança das pessoas que necessitam dessa assistência. Essa
tendência para a desigualdade e polarização com certeza não é inexorável: pode ser
combatida e evitada por políticas públicas deliberadas. Mas a desigualdade e a
polarização são predefinidas na dinâmica do capitalismo informacional e prevalecerão
a menos que seja tomada alguma ação consciente para contrapor-se a elas.
Um segundo significado de relações de classes diz respeito à exclusão social.
Com isso refiro-me à desassociação entre pessoas como pessoas e pessoas como
trabalhadores/consumidores como trabalhadores na dinâmica do capitalismo
informacional em escala global. No capítulo 2 deste volume, procurei mostrar as causas
e as conseqüências dessa tendência em várias situações. Sob a perspectiva da lógica do
novo sistema de produção, um número considerável, provavelmente em crescimento,
de seres humanos não é mais pertinente nem como produtor, nem como consumidor.
Devo enfatizar mais uma vez: isso não equivale a dizer que há (ou haverá) desemprego
em massa. Dados comparativos revelam que, no geral, em todas as sociedades urbanas
a maior parte das pessoas e/ou suas famílias tem trabalho remunerado, mesmo em
bairros e em países pobres. A questão é: que espécie de trabalho, por qual tipo de
salário, sob quais condições? É isto que está acontecendo: a massa de trabalhadores
genéricos circula por vários empregos, cada vez mais por trabalhos eventuais, com
muita descontinuidade. Portanto, milhões de pessoas estão o tempo todo com e sem
trabalho remunerado, freqüentemente em atividades informais e, em grande parte, no
chão de fábrica da economia do crime, além disso, a perda da relação estável com o
emprego e o pequeno poder de barganha de muitos trabalhadores levam a um nível
mais alto de incidência de crises profundas na vida familiar: perda temporária de
emprego, crises pessoais, doença, vícios em drogas/álcool, perda de empregabilidade,
perda de bens, perda de crédito. Muitas dessas crises ligam-se entre si, provocando a
espiral descendente da exclusão social rumo ao que chamei de "os buracos negros do
capitalismo informacional", dos quais, segundo dados estatísticos, é difícil escapar.
A fronteira entre a exclusão social e a sobrevivência diária está cada vez mais
indistinta para grande número de pessoas em todas as sociedades, após perder boa parte
da rede de segurança, sobretudo no caso das novas gerações da era pós-Estado do bem-
estar social, as pessoas não conseguem acompanhar a constante e necessária
atualização profissional. Com isso, ficam para trás na corrida competitiva e
transformam-se em prováveis candidatas à próxima rodada de "enxugamento" dessa
camada intermediária, que constitui a força das sociedades capitalistas avançadas
durante a era industrial e agora se encolher cada vez mais. Portanto, os processos de
exclusão social não apenas afetam aqueles que estão em "verdadeira situação de
desvantagem", mas também os indivíduos e as categorias sociais que construíram a
vida com base em luta constante para não cair em um submundo estigmatizado de mão-
de-obra desvalorizada e de pessoas socialmente incapazes.
Um terceiro modo de compreender as novas relações de classes, desta vez na
tradição marxista, diz respeito a quem são os produtores e quem apropria os produtos
de seu trabalho. Admitindo-se que a inovação seja a fonte principal de produtividade,
conhecimentos e informação sejam os elementos essenciais do novo processo
produtivo e a educação seja a principal qualidade dos trabalhadores, os novos
produtores do capitalismo informacional são esses geradores de conhecimentos e
processadores de informação cuja ajuda é valiosíssima para a empresa, a região e a
economia nacional. Mas a inovação não ocorre de forma isolada. É parte de um sistema
em que a gestão das organizações, o processamento de conhecimentos e de informação
e a produção de bens e serviços estão interligados. Definida desse modo, essa categoria
de produtores informacionais inclui um enorme grupo de administradores, profissionais
especializados e técnicos que formam um "trabalhador coletivo", ou seja, uma unidade
produtora formada pela cooperação entre vários trabalhadores individuais inseparáveis.
Nos países da OCDE eles podem representar por volta de um terço da população
empregada. A maioria dos outros trabalhadores talvez esteja na categoria da mão-de-
obra genérica, potencialmente substituível por máquinas ou por outros membros dessa
mesma força de trabalho. Esses trabalhadores precisam dos produtores para a produção
de seu poder de barganha. Todavia os produtores informacionais não precisam deles, o
que representa uma divisão básica no capitalismo informacional, levando à dissolução
progressiva dos remanescentes da solidariedade de classe existente na sociedade
industrial.
Mas quem apropria uma fatia do trabalho dos produtores informacionais? Sob
um aspecto, nada mudou em relação ao capitalismo clássico: são os empregadores.
Esse é o motivo básico pelo qual eles dão emprego aos produtores. Entretanto, o
mecanismo de apropriação do excedente é bem mais complicado. Primeiro, conforme a
tendência, as relações de emprego são individualizadas, isto é, haverá um acordo
diferente com cada produtor. Segundo, uma proporção crescente de produtores controla
o próprio processo de trabalho e entra em relações de trabalho horizontais específicas
de forma que, em grande parte, torna-se produtor independente, submetido às forças do
mercado, mas praticando estratégias de mercado. Terceiro, com freqüência suas
receitas vão para o turbilhão dos mercados financeiros globais, alimentados exatamente
pelo segmento abastado da sociedade da população global, de maneira que eles também
são proprietários coletivos de capital coletivo, ficando dependentes do desempenho dos
mercados de capital. Nessas condições, não podemos dizer que haja uma contradição
de classes entre essas redes de produtores bastante individualizados e o capitalista
coletivo das redes financeiras globais. Na verdade, há abuso e exploração freqüente de
produtores individuais, bem como de grandes massas de trabalhadores genéricos por
quem quer que esteja no comando dos processos produtivos. Porém, a segmentação dos
trabalhadores, a individualização do trabalho e a difusão do capital nos circuitos das
finanças globais, em conjunto, provocaram o desaparecimento gradativo da estrutura de
classes na sociedade industrial. Há (e haverá) intensos conflitos sociais, alguns deles
promovidos por trabalhadores e sindicatos, da Coréia à Espanha. Porém, não são a
expressão de luta de classes, e sim, de exigências de grupos de interesses e/ou de
revolta contra a injustiça.
Estas são as divisões sociais realmente básicas da Era da Informação: primeiro,
a fragmentação interna da força de trabalho entre produtores informacionais e mão-de-
obra genérica substituível. Segundo, a exclusão social de um segmento significativo da
sociedade formado por indivíduos descartados cujo valor como
trabalhadores/consumidores já está desgastado e cuja importância como pessoa é
ignorada. E, terceiro, a separação entre a lógica de mercado das redes globais de fluxos
de capital e a experiência humana de vida dos trabalhadores.
As relações de poder também estão sendo transformadas pelos processos sociais
identificados e analisados neste livro. A principal mudança diz respeito à crise do
Estado-nação como entidade soberana e a crise conexa da democracia política, como
foi construída nos dois últimos séculos. Como os comandos do Estado não poderão ser
impostos por completo e visto que algumas de suas promessas fundamentais
incorporadas no Estado do bem-estar social não poderão ser cumpridas, sua autoridade
e legitimidade são questionadas. Como a democracia representativa concretiza-se na
noção de um órgão soberano, a indefinição de fronteiras de soberania leva a incertezas
no processo de delegação da vontade popular. A globalização do capital, a
"multilateralização" das instituições do poder e a descentralização da autoridade para
governos regionais e locais ocasionam uma nova geometria do poder, talvez levando a
uma nova forma de Estado, o Estado em rede. Atores sociais e cidadãos em geral
maximizam as chances de representação de seus interesses e valores, utilizando-se de
estratégias nas redes de relações entre várias instituições, em diversas esferas de
competência. Cidadãos de uma determinada região européia terão melhores
oportunidades de defender seus interesses se apoiarem as autoridades regionais contra o
governo nacional, em aliança com a União Européia. Ou o contrário. Ou ainda
nenhuma, nem outra coisa, ouse já, afirmando a autonomia local/regional contra
ambos, o Estado-nação e as instituições supranacionais. Norte-americanos descontentes
poderão injuriar o governo federal em nome da nação norte-americana. Ou as novas
elites empresariais chinesas poderão cuidar de seus interesses unindo-se ao governo
provincial, ou ao ainda poderoso governo nacional, ou às redes de comunidades
chinesas no exterior. Em outras palavras, a nova estrutura do poder é controlada por
uma geometria em rede em que as relações de poder são sempre específicas a
determinada configuração de atores e instituições.
Nessas condições, a política informacional posta em prática principalmente por
manipulação de símbolos no espaço da mídia combina com este mundo das relações de
poder em constante mudança. Jogos estratégicos, representação sob medida e liderança
personalizada substituem eleitorados de classes, mobilização ideológica e controle
partidário, características da política da era industrial.
À medida que a política se torna um teatro, e as instituições políticas são mais
agências de negociação que locais de poder, os cidadãos de todo o mundo defendem-se
por meio do voto para impedir que o estado os prejudique, em vez de confiarem as ele
a representação de sua vontade. Em certo sentido, o sistema político é destinado de
poder, embora não de influência.
O poder, contudo, não desaparece. Em uma sociedade informacional, ele fica
fundamentalmente inscrito nos códigos culturais mediante os quais as pessoas e as
instituições representam a vida e tomam decisões, inclusive políticas. Em certo sentido,
o poder, embora real, torna-se imaterial. É real, pois, onde quer que e quando quer que
se consolide, dá aos indivíduos e às organizações, por determinado tempo, a capacidade
para impor, suas decisões independentemente de consenso. Mas é imaterial porque tal
capacidade deriva-se da capacidade de compor a experiência de vida em categorias que
predispõem a determinado comportamento e, depois, poderão ser apresentadas de
modo a beneficiar determinada liderança. Por exemplo, se uma população sentir-se
ameaçada por temores multidimensionais inidentificáveis, a composição desses
temores segundo os códigos de imigração = raça = pobreza = Estado do bem-estar
= crime = perda de emprego = impostos = ameaça fornece um alvo identificável, define
um NÓS contra ELES e favorece os líderes que se tornam mais merecedores de crédito
ao apoiarem uma dose razoável de racismo e xenofobia. Ou, em um exemplo muito
diferente, se as pessoas ligarem a qualidade de vida à conservação da natureza e à
serenidade espiritual, poderão surgir novos atores políticos, e novas políticas públicas
poderão ser implementadas.
Batalhas culturais são as lutas pelo poder da Era da Informação. São travadas
basicamente dentro da mídia e por ela, mas os meios de comunicação não são os
detentores do poder. O poder, como capacidade de impor comportamentos, reside nas
redes de troca de informação e de manipulação de símbolos que estabelecem relações
entre atores sociais, instituições e movimentos culturais por intermédio de ícones,
porta-vozes e amplificadores intelectuais. No longo prazo, não importa quem está no
poder porque a distribuição dos papéis políticos torna-se generalizada e rotativa. Não
há mais elites estáveis do poder. Há, contudo, elites resultantes do poder, ou seja elites
formadas durante seu breve período de detenção de poder em que tiram, vantagens da
posição política privilegiada para obter acesso mais permanente aos recursos materiais
e às conexões sociais. A cultura como fonte de poder e o poder como fonte de capital
são a base da nova hierarquia social da Era da Informação.
A transformação das relações de experiência gira sobretudo em torno da crise
do patriarcalismo, uma das causas da profunda redefinição da família, das relações de
gênero, da sexualidade e, portanto, da personalidade. Tanto por motivos estruturais
(ligados à economia informacional) como em razão do impacto dos movimentos sociais
(feminismo, lutas femininas e liberação sexual), a autoridade patriarcal é contestada na
maior parte do mundo, embora sob várias formas e com diferente intensidade
dependendo dos contextos culturais/institucionais. O futuro da família é incerto, mas o
futuro do patriarcalismo não é; este último só poderá sobreviver sob a proteção de
Estados autoritários e do fundamentalismo religioso. Conforme demonstram os estudos
apresentados no capítulo 4 do volume II, nas sociedades abertas a família patriarcal
está passando por crise profunda, enquanto novos embriões de famílias igualitárias
ainda estão lutando contra o velho mundo de interesses, medos e preconceitos. Redes
de pessoas (sobretudo para mulheres) substituem cada vez mais as famílias nucleares
como formas primárias de apoio emocional e material. Os indivíduos e seus filhos
seguem um padrão de família seqüencial e de planos pessoais não-familiares durante a
vida. E, embora exista uma tendência bastante crescente de envolvimento dos homens
com seus filhos, as mulheres – solteiras ou morando juntas – e os filhos representam,
cada vez mais, a forma predominante de reprodução da sociedade, modificando assim
os padrões de socialização de maneira profunda. É verdade que estou tomando como
ponto principal de referência a experiência dos Estados Unidos e da maior parte da
Europa Ocidental (sendo que o sul da Europa e, até certo ponto, exceção no contexto
europeu). Todavia, como afirmei no volume II, pode-se demonstrar que as lutas das
mulheres sejam ou não reconhecidamente feministas, estão se espalhando por todo o
mundo e enfraquecendo o patriarcalismo na família, na economia e nas instituições
sociais. A meu ver, é muito provável que, como a difusão das lutas femininas e a
crescente conscientização das mulheres sobre sua opressão, o desafio feminino coletivo
à ordem patriarcal se generalize, desencadeando processos de crises nas estruturas
familiares tradicionais. Vejo sinais de uma recomposição da família, à medida que
milhões de homens parecem estar prontos para desistir de seus privilégios e trabalhar
ao lado das mulheres para encontrar novas formas de amar, compartilhar e ter filhos.
Na verdade, acredito que reconstrução das famílias sob formas igualitárias seja o
alicerce necessário para a reconstrução da sociedade pela base. As famílias são mais
que nunca as provedoras da segurança psicológica e do bem-estar material em um
mundo caracterizado pela individualização do trabalho, destruição da sociedade civil e
deslegitimação do Estado. Entretanto, a mudança para novas formas de família implica
uma redefinição fundamental das relações de gênero na sociedade de modo geral e,
conseqüentemente, uma redefinição da sexualidade. Como são moldados pela família e
pela sexualidade, os sistemas de personalidade também estão em mudança contínua.
Caracterizei tal estado como personalidades flexíveis, capazes de dedicar-se o tempo
todo à reconstrução do ser, em vez de defini-lo mediante a adaptação a
comportamentos que no passado foram papéis sociais convencionais, mas são viáveis
na atualidade e, portanto, já não fazem sentido. A mudança mais fundamental das
relações de experiência na Era da Informação é sua passagem para um padrão de
interação social construído sobretudo pela experiência real da relação. Hoje em dia,
as pessoas mais produzem formas de sociabilidade que seguem modelos de
comportamento.
As mudanças nas relações de produção, poder e experiência convergem para a
transformação das bases materiais da vida social, do espaço e do tempo . O espaço de
fluxos da Era da Informação domina o espaço de lugares das culturas das pessoas. O
tempo intemporal, como tendência social rumo à invalidação do tempo pela tecnologia,
supera a lógica do tempo cronológico da era industrial. O capital circula, o poder
impera e a comunicação eletrônica rodopia pelos fluxos de intercâmbios entre locais
distantes selecionados, enquanto a experiência fragmentada permanece presa aos
lugares. A tecnologia reduz o tempo a alguns instantes aleatórios e, com isso,
desarticula a seqüência da sociedade e o desenvolvimento da história. Ao encerrar o
poder no espaço de fluxos, permitir que o capital escape do tempo e dissolver a história
na cultura do efêmero, a sociedade em rede desincorpora as relações sociais e introduz
a cultura da virtualidade real. Deixe-me explicar.
Ao longo da história, as culturas foram geradas por pessoas que compartilham
espaço e tempo – sob condições determinadas pelas relações de produção, poder e
experiência e modificadas por seus projetos – e lutam umas contra as outras para impor
valores e objetivos à sociedade. Portanto, as configurações espaciais-temporais eram
importantíssimas ao significado de cada cultura e a sua evolução diferencial. No
paradigma informacional surgiu uma nova cultura a partir da superação dos lugares e
da invalidação do tempo pelo espaço de fluxos e pelo tempo intemporal: a cultura da
virtualidade real. conforme observado no capítulo 5 do volume I, chamo de
virtualidade real um sistema em que a realidade em si (ou seja, a existência
material/simbólica das pessoas) está imersa por completo em um ambiente de imagens
virtuais, no mundo do faz-de-conta, em que os símbolos não são apenas metáforas, mas
abarcam a experiência real. esse sistema não é a conseqüência dos meios de
comunicação eletrônicos, embora estes sejam instrumentos indispensáveis de expressão
da nova cultura. A base material que explica por que a virtualidade real é capaz de
dominar a imaginação e os sistemas de representação das pessoas é op modo de vida
delas no espaço de fluxos e no tempo intemporal. Por um lado, as funções e os valores
predominantes na sociedade são organizados em simultaneidade sem contigüidade, ou
seja, em, fluxos de informação que se libertam da experiência incorporada em qualquer
lugar. Por outro, os valores e interesses predominantes são construídos sem referência
ao passado ou ao futuro no panorama intemporal das redes de computadores e da mídia
eletrônica, em que todas as expressões ou são instantâneas, ou não apresentam
seqüência previsível. Todas as expressões de todos os tempos e de todos os espaços
misturam-se no mesmo hipertexto, reorganizado e comunicado a qualquer hora, em
qualquer lugar, em função apenas dos interesses dos emissores e dos humores dos
receptores. Essa virtualidade é nossa realidade porque está na estrutura desses sistemas
simbólicos intemporais desprovidos de lugar cujas categorias construímos e cujas
imagens, também por nós evocadas, modelam o comportamento, influenciam a
política, acalentam sonhos e provocam pesadelos.
Essa é a nova estrutura social da Era da Informação, por mim chamada de
sociedade em rede porque constituída de redes de produção, poder e experiência, que
constroem a cultura da virtualidade nos fluxos globais os quais, por sua vez,
transcendem o tempo e o espaço. Nem todas as dimensões e instituições da sociedade
seguem a lógica da sociedade em rede, do mesmo modo que as sociedades industriais
abrigaram por longo tempo muitas formas pré-industriais da existência humana. Mas
todas as sociedades da Era da Informação são, sem dúvida, penetradas com diferente
intensidade pela lógica difusa da sociedade em rede, cuja expansão dinâmica aos
poucos absorve e supera as formas sociais preexistentes.
A sociedade em rede, como qualquer outra estrutura social, não deixa de ter
contradições, conflitos sociais e desafios de formas alternativas de organização social.
Todavia, tais desafios são provocados pelas características da sociedade em rede,
sendo, portanto, muito distintos dos apresentados pela era industrial. Assim, eles são
personificados por diferentes sujeitos, mesmo que esses sujeitos trabalhem
freqüentemente com materiais históricos fornecidos pelos valores e organizações
herdados do capitalismo industrial e do estatismo.
A compreensão de nosso mundo requer a análise simultânea da sociedade em
rede e de seus desafios conflituosos. A regra histórica, a saber: onde há dominação há
resistência, continua válida. Mas é necessário um esforço analítico para identificar
quem são os desafiadores dos processos de dominação implementados pelos fluxos
imateriais, porém poderosos, da sociedade em rede.
OS NOVOS CAMINHOS DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Segundo a observação e conforme registrado no volume II, os desafios sociais
contra os padrões de dominação na sociedade em rede em geral assumem a forma de
identidades autônomas em construção. Essas identidades são externas aos princípios da
sociedade em rede. Contra o culto à tecnologia, o poder dos fluxos e a lógica dos
mercados, elas opõem seu ser, suas crenças e seu legado. O que caracteriza os
movimento sociais e projetos culturais construídos com base em identidades na Era da
Informação é que eles não se originam dentro das instituições da sociedade civil. Esses
movimentos e projetos introduzem desde o começo uma lógica social alternativa
diferente dos princípios de desempenho que embasam o estabelecimento das
instituições dominantes na sociedade. Na era industrial, os movimentos de
trabalhadores travavam luta ferrenha contra o capital. O capital e o trabalho, contudo,
compartilhavam os objetivos e valores da industrialização – produtividade e progresso
material – cada um procurando controlar seus desenvolvimentos e obter uma fatia
maior do produto de seu esforço. No final, eles chegaram a um pacto social. na Era da
Informação, a principal lógica das redes globais predominantes é tão difusa e
penetrante, que o único modo de se livrar de seu domínio parece ser ficar fora delas e
reconstruir com base em um sistema de valores e crenças inteiramente distinto. Esse é o
caso das comunas de identidade de resistência por mim identificadas. O
fundamentalismo religioso não rejeita a tecnologia, porém a coloca a serviço da Lei de
Deus, à qual todas as instituições e objetivos deve, submeter-se sem uma possível
negociação. O nacionalismo, localismo, separatismo étnico e as comunas culturais
rompem com a sociedade em geral e reconstroem suas instituições, não a partir da base,
mas de dentro para fora, o "quem somos nós" versus aqueles que não são dos nossos.
Mesmo os movimentos pró-ativos à transformação do padrão global de relações
sociais entre as pessoas, tal como o feminismo, ou entre as pessoas e a natureza, como
o ambientalismo, iniciam-se com a rejeição dos princípios básicos em que nossas
sociedades são construídas: patriarcalismo, produtivismo. É natural que haja todos os
tipos de nuanças na prática dos movimentos sociais como tentei deixar claro no volume
II, mas fundamentalmente, os princípios de autodefinição, uma das fontes de sua
existência, representam um rompimento com a lógica social institucionalizada. Se as
instituições sociais, econômicas e culturais de farto aceitassem o feminismo e o
ambientalismo, transformar-se-iam na essência. Utilizando uma palavra antiga, seria
uma revolução.
A força dos movimentos sociais com base em identidades é a sua autonomia vis-
à-vis as instituições do Estado, a lógica do capital e a sedução da tecnologia. É difícil
cooptá-los, embora, com certeza, alguns dos participantes possam ser cooptados.
Mesmo derrotados, sua resistência e projetos têm impacto sobre a sociedade e a
transformam, como demonstrei em vários casos selecionados e apresentados no volume
II. As sociedades da Era da Informação não podem ser reduzidas à estrutura e à
dinâmica da sociedade em rede. De acordo com minha exploração de nosso mundo,
parece que as sociedades são formadas pela interação entre a Net e o Ser, entre a
sociedade em rede e o poder da identidade.
Contudo, o problema fundamental suscitado pelos processos de mudança social
que são na maior parte externos às instituições e aos valores da sociedade, na forma em
que esta se encontra, é que eles poderão fragmentar-se e não constituir a sociedade. Em
vez de instituições transformadas, teríamos comunas de todos os tipos. Em vez de
classes sociais, presenciaríamos o surgimento de tribos. E no lugar de interação
conflituosa entre as funções do espaço de fluxos e o significado do espaço de lugares
poderemos observar o entrincheiramento das elites globais dominantes em palácios
imateriais feitos de redes de comunicação e fluxos de informação. Enquanto isso, as
pessoas teriam sua experiência confinada a múltiplos locais segregados, sua existência
subjugada e sua consciência fragmentada. Sem nenhum Palácio de Inverno para ser
tomado, focos de revolta poderão eclodir, transformados em insensata violência diária.
A reconstrução das instituições da sociedade pelos movimentos sociais
culturais, colocando a tecnologia sob oi controle das necessidades e desejos das
pessoas, parece requerer um longo caminho a partir das comunas construídas com base
na identidade de resistência até o auge de identidades de novos projetos nascidos dos
valores acalentados nessas comunas.
Estes são exemplos de tais processos observados nos movimentos sociais e na
política contemporânea: constituição de famílias novas e igualitárias; aceitação
generalizada do conceito de desenvolvimento sustentado que insere a solidariedade
integracional no novo modelo de crescimento econômico; e mobilização universal em
defesa dos direitos humanos onde quer que seja necessário. Para que essa transição da
identidade de projeto se realizada, será preciso surgir uma nova política. Será uma
política cultural partindo da premissa de que a política informacional é posta em prática
predominantemente no espaço da mídia e luta contra símbolos, embora se ligue a
questões e valores nascidos da experiência de vida das pessoas na Era da Informação.
DEPOIS DESTE MILÊNIO
Em todas as páginas deste livro, sustentei uma recusa obstinada a praticar
futurologia, mantendo os comentários o mais próximo possível do que sabidamente nos
oferece a Era da Informação, da forma em que se constitui neste último lapso de tempo
do século XX. Ao concluir este livro, porém, contando com a boa vontade do leitor,
gostaria de utilizar apenas alguns parágrafos para comentar certas tendências que
poderão configurar a sociedade no início do século XXI. Quando o leitor estiver lendo
este trecho, estaremos no máximo a dois anos desse século (ou talvez já nele), de forma
que minha análise não se classifica como futurologia. É, ao contrário, uma tentativa de
dar dimensão dinâmica em perspectiva a esta síntese de descobertas e hipóteses.
A revolução das rtecnologia da informação acentuará seu potencial
transformativo. O sçeulo XXI será marcado pela conclusão da Infovia global, pela
telecomunicação móvel e pela capacidade da informática, descentralizando e
difundindo o poder da informação, concretizando a promessa da multimídia e
aumentando a alegria da comunicação interativa. Além disso, será o século do pleno
progresso da revolução genética. Pela primeira vez, nossa espécie penetrará os segredos
da vida e conseguirá fazer manipulações substanciais da matéria viva. Embora tudo
isso vá desencadear acalorados debates sobre as conseqüências sociais e ambientais
dessa capacidade, as possibilidades a nós abertas são verdadeiramente extraordinárias.
Usada com prudência, a revolução genética poderá curar, combater a poluição,
melhorar a vida e poupar tempo e esforço de sobrevivência de modo a nos dar a
oportunidade de explorar a, em grande parte, desconhecida fronteira da espiritualidade.
Todavia, se repetirmos os mesmo erros cometidos no século XX, usando a tecnologia e
a industrialização para nos massacrarmos em guerras atrozes, é provável que
decretemos o fim da vida no planeta com nosso poder tecnológico. Acabou sendo
relativamente fácil interromper o holocausto nuclear em razão do controle centralizado
da energia e das armas nucleares. Mas as novas tecnologias genéticas são difusas, os
impactos da mutação carecem de controle total, e o comando institucional sobre elas é
muito mais descentralizado. Para evitar os efeitos maléficos da revolução biológica,
precisamos não apenas de governos responsáveis como de uma sociedade instruída e
responsável. O caminho a seguir dependerá das instituições da sociedade, dos valores
das pessoas e da consciência e determinação dos novos atores sociais ao traçarem e
controlarem o próprio destino. Deixe-me fazer uma breve revisão dessas perspectivas,
salientando alguns progressos importantes na economia, na constituição política e na
cultura.
É provável que o amadurecimento da economia informacional e a difusão e uso
adequado da tecnologia da informação como sistema liberem o potencial de
produtividade dessa revolução tecnológica. O fato será notado por meio de mudanças
na contabilidade estatística quando as categorias e procedimentos do século XX, já
manifestamente inadequados, forem substituídos por novos conceitos capazes de
mensurar a nova economia. Sem sombra de dúvida, o século XXI testemunhará o
desenvolvimento de um sistema produtivo extraordinário pelos padrões históricos, o ser
humano produzirá mais e melhor com esforço muito menor. O trabalho mental
substituirá o esforço físico na maior parte dos setores produtivos da economia.
Contudo, o compartilhamento dessa riqueza dependerá, para os indivíduos, do acesso à
educação e, para a sociedade em geral, da organização social, da política e das
políticas, ou seja, dos planos de ação.
A economia global expandir-se-á no século XXI, utilizando-se de progressos
substanciais em telecomunicações e informática. Penetrará todos os países, todos os
territórios, todas as culturas, todos os fluxos de comunicação e todas as redes
financeiras em uma exploração contínua do planeta à procura de novas oportunidades
de geração de lucros. Entretanto essa tarefa será seletiva, conectando segmentos
valiosos e descartando locais e pessoas inúteis e não-pertinentes. A irregularidade
territorial da produção resultará uma geografia extraordinária de realização de valor
diferencial que mostrará profundos contrastes entre paises, regiões e áreas
metropolitanas. Locais e pessoas valiosos serão encontrados em todos os lugares, até na
África subsariana, como afirmei neste volume. Mas territórios e pessoas desconectadas
também serão encontrado em todos os lugares, embora em proporções diversas. O
planeta está sendo segmentado em espaços claramente distintos, definidos por
diferentes sistemas temporais.
Duas reações distintas poderão ser esperadas dos segmentos excluídos da
humanidade. Por um lado, haverá profundo aumento na operação do que chamo de
"conexão perversa", ou seja, a prática do jogo do capitalismo global com regras
diferentes. A economia do crime global, cujo perfil e dinâmica tentei identificar no
capítulo 3 deste volume, será característica fundamental do século XXI, e sua
influência econômica, política e cultural penetrará todas as esferas da vida. A questão
não é se nossas sociedades conseguirão eliminar as redes do crime, ao contrário, se as
redes do crime não acabarão controlando uma fatia substancial de nossa economia, de
nossas instituições e de nossa vida diária.
Há outra reação contra a exclusão social e a não-pertinência econômica que, ao
meu ver, desempenhará papel fundamental no século XXI; a exclusão dos que excluem
pelos excluídos. Como o mundo inteiro está (e estará cada vez mais) interligado nas
estruturas básicas da vida sob a lógica da sociedade em rede, a não-adesão de pessoas e
de países não representará uma saída pacífica.
Assume (e assumirá) a forma de afirmação fundamentalista de um conjunto
alternativo de valores e princípios de vida, segundo os quais não há nenhuma
possibilidade de coexistência com o sistema maléfico que prejudica a vida das pessoas.
Como afirmei, nas ruas de Cabul os corajosos guerreiros do Taliban surram mulheres
por estarem vestidas de forma imprópria. Essa atitude não combina com os
ensinamentos humanísticos do Islã. No entanto, conforme analisado no volume II, há
uma explosão de movimentos fundamentalistas que pegam o Alcorão, a Bíblia ou
qualquer outro texto sagrado para interpreta-lo e usá-lo como estandarte de seu
desespero e arma de sua fúria. Fundamentalismos de diferentes tipos e de fontes
representarão o desafio mais ousado e intransigente ao domínio unilateral do
capitalismo global informacional. O acesso potencial de grupos fundamentalistas a
armas de destruição em massa obscurece profundamente as perspectivas otimistas da
Era da Informação.
Os Estados-nação sobreviverão, mas não sua soberania. Eles se unirão em redes
multilaterais com geometria variável de compromissos, responsabilidades, alianças e
subordinações. A construção multilateral mais notável será a União Européia, reunindo
os recursos tecnológicos e econômicos da maioria dos países europeus, porém não de
todos. É provável que a Rússia seja deixada de fora, em razão dos temores históricos do
Ocidente, e a Suíça precisa ficar de fora para manter o papel de banqueiro mundial.
Mas a União Européia por enquanto não incorpora o projeto histórico de construção de
uma sociedade européia. É essencialmente uma construção defensiva em nome da
civilização européia para evitar tornar-se colônia econômica de asiáticos e norte-
americanos. Os Estados-nação europeus continuarão a existir e a negociar de acordo
com seus interesses individuais dentro da estrutura das instituições européias das quais
eles precisarão, mas para com as quais, apesar da retórica federalista, nem os europeus,
nem seus governos nutrirão carinho. O hino extra-oficial da União Européia ("Ode à
Alegria", de Beethoven) é universal, porém seu sotaque alemão poderá tornar-se mais
marcante.
A economia global será regida por um conjunto de instituições multilaterais
ligadas entre si por um sistema de redes. O principal componente dessa rede é o clube
dos países do G7, talvez com alguns membros adicionais e seus braços executivos, o
Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, encarregados da regulamentação e
intervenção em nome das regras básicas do capitalismo global. Tecnocratas e
burocratas dessas e de instituições econômicas internacionais similares acrescentarão
sua dose de ideologia neoliberal e de especialização profissional na implementação de
seu amplo mandato. Encontros informais como os realizados em Davos ou equivalentes
ajudarão a criar os vínculos culturais/ pessoais da elite global.
A geopolítica global também será administrada pelo multilateralismo, com as
Nações Unidas e as instituições regionais internacionais. Associação das Nações do
Sudeste Asiático (sigla em inglês ASEAN). OEA ou Organização da Unidade Africana
(sigla em inglês OAU), desempenhando um papel cada vez mais importante na
administração dos conflitos internacionais ou até mesmo nacionais. Elas tenderão a
aumentar o uso de alianças para a segurança, como a OTAN, na implementação de suas
decisões. Quando necessário, serão criadas forças policiais internacionais ad hoc para
intervir nos lugares com problemas. Por exemplo, em meados do segundo semestre de
1996, a administração Clinton propôs a vários países africanos e à OAU a criação de
uma força africana para intervenção rápida, ligada à ONU, armada e treinada pelos
EUA e financiada pelos EUA, União Européia e Japão. A proposta não vingou, mas
poderá ser o modelo característico dos futuros exércitos internacionais, prontos para
manter a paz das redes globais e de seus eleitorados e/ou evitar genocídios do tipo
ocorrido em Ruanda. É nesse duplo papel de intervenção internacional que reside a
ambigüidade do multilateralismo.
É provável que os problemas globais de segurança sejam influenciados por três
questões principais, caso a análise desenvolvida nesta trilogia venha a ser comprovada.
A primeira é a crescente tensão na região do Pacífico, à medida que a China afirma seu
poderio global, o Japão entra em outra rodada de paranóia, e a Coréia, a Indonésia e a
Índia reagem a ambos.
A segunda é o ressurgimento do poder russo, não apenas como superpotência
nuclear, mas como nação fortalecida que não tolera humilhações. As condições em que
a Rússia pós-comunista será, ou não, conduzida ao sistema multilateral da gestão
global determinarão a futura geometria dos alinhamentos relativos à segurança. É
provável que a terceira questão de segurança seja a mais decisiva de todas e condicione
a segurança para o mundo em geral por longo período de tempo. Refere-se às novas
formas de conflitos que serão usadas por indivíduos, organizações e Estados de fortes
convicções e parcos recursos militares, mas capazes de obter acesso às novas
tecnologias de destruição, bem como de encontrar os pontos vulneráveis de nossas
sociedades. Gangues criminosas também poderão recorre à confirmação intensa
quando não virem outra opção, como ocorreu na Colômbia na década de 90. O
terrorista global ou local já é considerado grande ameaça em todo o mundo neste fim
de milênio. Mas, em minha opinião, isso é só o começo. A crescente sofisticação
tecnológica leva a duas tendências convergentes para o terror total: por um lado, um
pequeno grupo resoluto, bem financiado e bem informado poderá devastar cidades
inteiras ou atacar centros nervosos de nossa existência; por outro, a ínfra-estrutura de
nossa vida diária – de energia a transportes e o fornecimento de água – ficou tão
complexa e interligada, que sua vulerabilidade aumentou de forma exponencial.
Embora melhorem os sistemas de segurança, as novas tecnologias também promovem
uma exposição maior de nossa vida diária. O preço do aumento da proteção será
conviver com sistemas de travas eletrônicas, alarmes e patrulhas policiais on-line.
Além disso, significará crescer com medo. É provável que não difira da experiência da
maior parte das crianças na história. Trata-se também de uma medida da relatividade
do progresso humano.
A geopolítica também será dominada cada vez mais por uma contradição
fundamental entre o multilateralismo do processo decisório e o unilateralismo da
implementação militar dessas decisões. Isso porque, após o fim da União Soviética e
com o atraso tecnológico da nova Rússia, os Estados Unidos são (e serão no futuro
previsível) a única superpotência militar. Portanto, a maioria das decisões sobre
segurança terão de ser implementadas ou apoiadas pelos EUA para entrarem mesmo
em vigor ou ganharem credibilidade. A União Européia, apesar de toda sua retórica
arrogante, deu uma clara demonstração de incapacidade operacional na má condução
da absurda e atroz guerra da Bósnia, que teve de ser interrompida e resolvida de forma
provisória em Dayton, Ohio.
A Constituição da Alemanha proíbe o país de enviar forças de combate para o
exterior, e duvido que seus cidadãos tolerem qualquer mudança ainda por muito tempo,
o Japão proibiu a si mesmo de constituir um exército, e o sentimento pacifista do país é
mais profundo que o apoio a provocações ultranacionalistas. Fora da OCDE, apenas a
China e a Índia terão condições de deter um poderio tecnológico e militar suficiente
para transformar-se em potência global no futuro previsível, mas com certeza não o
suficiente para se equiparar aos Estados Unidos ou mesmo à Rússia. Por conseguinte, à
exceção da hipótese improvável de um extraordinário desenvolvimento do setor militar
chinês, para o qual a China simplesmente ainda não detém capacidade tecnológica, o
mundo fica com uma superpotência, os Estados Unidos. Nessas condições, várias
alianças para a segurança terão de contar com as forças norte-americanas. Os Estados
Unidos, no entanto, estão enfrentando problemas sociais internos tão profundos, que
com certeza não terão os meios nem o apoio político para exercer esse poder, se a
segurança de seus cidadãos não estiver sob ameaça direta, como os presidentes norte-
americanos descobriram várias vezes na década de 90. esquecida a Guerra Fria e sem
nenhum equivalente de uma "nova Guerra Fria" assomando no horizonte, o único modo
de os Estados Unidos manterem seu status militar é emprestar suas forças ao sistema de
segurança global. E mandar os outros países pagarem a conta. Essa é a característica
definitiva do multilateralismo e o exemplo mais surpreendente de perda de soberania
do Estado-nação.
O Estado-nação desaparece, porém. É apenas redimensionado na Era da
Informação, prolifera sob a forma de governos locais e regionais que se espalham pelo
mundo com seus projetos, formam eleitorados e negociam com governos nacionais,
empresas multinacionais e órgãos internacionais. A era da globalização da economia
também é a era da localização da constituição política. O que os governos locais e
regionais não têm em termos de poder e recursos, é compensado pela flexibilidade e
atuação em redes. Eles são o único páreo, se é que existe algum, para o dinamismo das
redes globais de riqueza e informação.
E as pessoas estão (e estarão) cada vez mais distantes dos corredores do poder e
afastadas das instituições falidas da sociedade civil, elas serão individualizadas em
termos de trabalho e de vida e constituirão seu significado com base na própria
experiência e, se tiverem sorte, reconstruirão a família, sua rocha neste oceano bravio
de fluxos desconhecidos e redes incontroladas. Quando forem submetidas a ameaças
coletivas, construirão refúgios comunais de onde profetas poderão proclamar a vinda
de novos deuses.
O século XXI não será uma era de trevas. E, para a maioria das pessoas,
também não trará as recompensas prometidas pela revolução tecnológica mais
extraordinária da história. Ao contrário, é provável que seja caracterizada por
perplexidade consciente.
O QUE DEVE SER FEITO?
Cada vez que um intelectual tenta tratar dessa questão e elaborar uma resposta
séria, segue-se uma catástrofe. Foi o que aconteceu, sobretudo a um certo Ulianov em
1902. Com certeza, não pretendo fazer o mesmo e, portanto, abster-me-ei de sugerir
qualquer cura para os males de nosso mundo. Mas, como de fato estou preocupado com
o que observei ao longo da jornada pelo cenário inicial da Era da Informação, gostaria
de explicar minha abstenção, escrevendo na primeira pessoa, porém pensando em
minha geração e cultura política.
Venho de uma época e de uma tradição - esquerda política da era industrial -
obcecada pela epígrafe no túmulo de Marx em Highgate, sua (e de Engel) décima
primeira tese sobre Feuebach. A ação política transformadora era o objetivo final de
um esforço intelectual verdadeiramente significativo. Ainda acredito que haja
generosidade considerável nessa atitude, com certeza menos egoísta que a busca
ordeira por carreiras acadêmicas burocráticas não afetadas pelos labores das pessoas
em todo o mundo. E, em linhas gerais, não acho que a classificação entre intelectuais e
cientistas sociais de direita e de esquerda resultasse diferenças significativas na
qualidade acadêmica dos dois grupos. Afinal de contas, os intelectuais conservadores
também desenvolvem ação política tanto quanto os esquerdistas, muitas vezes com
pouca tolerância em relação a seus adversários. Portanto, a questão n!o é que o
compromisso político impeça ou deturpe a criatividade intelectual. Com o passar dos
anos, muitos de nós aprendemos a conviver com a tensão e a contradição entre o que
constatamos e o que gostaríamos que acontecesse. Considero a ação social e os projetos
políticos essenciais para a melhoria de uma sociedade que, de fato, precise de mudança
e esperança. E espero que este livro, ao suscitar algumas questões e oferecer elementos
empíricos e teóricos para abordá-las, possa contribuir para uma ação consciente em
busca de transformação social. Nesse sentido, não sou e não quero ser um observador
neutro desligado do drama humano.
Contudo, já vi tanto sacrifício malconduzido, tantos impasses causados por
ideologia e tantos horrores provocados por paraísos artificiais de política dogmática,
que desejo exprimir uma reação salutar contra a tentativa de conceber a prática política
de acordo com a teoria social ou a esse respeito, com a ideologia. Teoria e pesquisa em
geral e também neste livro, devem ser consideradas meios para o entendimento de
nosso mundo e ser julgadas exclusivamente com base em sua exatidão, rigor e
pertinência. O modo de utilização dessas ferramentas e os objetivos de seu uso devem
ser prerrogativa exclusiva dos próprios atores sociais em contextos sociais específicos e
em nome de seus valores e interesses. Basta de metapolítica, basta de “maítres à
penser´ e basta de intelectuais com tal pretensão. A liberação política mais fundamental
é aquela em que as pessoas se libertam da adesão não-crítica a sistemas teóricos ou
ideológicos, constroem sua prática com base na própria experiência, utilizando
quaisquer informações ou análises disponíveis, extraídas de várias fontes. No século
XX, filósofos estão tentando mudar o mundo. No século XXI, chegará a hora de eles
interpretarem o mundo de forma diferente. Daí, minha circunspecção, não indiferença,
sobre um mundo conturbado pela própria promessa.
FINAL
A promessa da Era da Informação representa o desencadeamento de uma
capacidade produtiva jamais vista, mediante o poder da mente. Penso, logo produzo.
Com isso, teremos tempo disponível para fazer experiência com a espiritualidade e
oportunidade de harmonização com a natureza sem sacrificar o bem-estar material de
nossos filhos. O sonho do Iluminismo está ao nosso alcance. Todavia, há enorme
defasagem entre nosso excesso de desenvolvimento tecnológico e subdesenvolvimento
social. nossa economia, sociedade e cultura são construídas com base em interesses,
valores, instituições e sistemas de representação que, em termos gerais, limita, a
criatividade coletiva, confiscam a colheita da tecnologia da informação e desviam
nossa energia para o confronto autodestrutivo. Esta situação não é definitiva. Não há
mal eterno na natureza humana. Não existe nada que não possa ser mudado por ação
social consciente e internacional, munida de informação e apoiada em legitimidade. Se
as pessoas forem esclarecidas, atuantes e se comunicarem em todo o mundo; se as
empresas assumirem sua responsabilidade social; se os meios de comunicação se
tornarem os mensageiros, e não a mensagem,; se os atores políticos reagirem contra a
descrença e restaurarem a fé na democracia; se a cultura for reconstruída a partir da
experiência; se a humanidade sentir a solidariedade da espécie em todo o globo; se
consolidarmos a solidariedade Intergeracional, vivendo em harmonia com a natureza
com a natureza; se partirmos para a exploração de nosso ser interior, tendo feito as
pazes com nós mesmos. Se tudo isso for possibilitado por nossa decisão bem
informada, consciente e compartilhada enquanto ainda há tempo, então, talvez,
finalmente possamos ser capazes de viver, amar e ser amados.
Esgotei as palavras. Portanto, pela última vez, tomarei emprestadas as de Pablo
Neruda:
Por mi parte y tu parte, cumplimos,Comprtimos esperanzas eInviernos;
Y fuimos heridos no solo por losEnemigos mortales
Sino por mortales amigos (y estoPareció más amargo),
Pero no me parece más dulceMi pan o mi libroEntretanto;
Agregamos viviendo la cifra que Falta al dolor,
Y seguimos amando el amor y comNuestra directa conducta
Enterramos a los mentirosos yVivimos com los verdadeiros3
Notas
1. Tradução literal sem pretensões poéticas: Quer dizer que apenas / desembarcamos na vida, / que chegamos como recém-nascidos, / que não enchamos a boca/ com tantas palavras inseguras, com tantas formalidades tristonhas, / com tantas letras retumbantes, / com tanto de ti e tanto de mim, / com tantas assinaturas de papéis. / Penso em misturar as coisas, / uni-las e fazê-las renascer, / pressenti-las, / até que toda a luz do mundo/ tenha a unicidade do oceano, / uma inteireza, / um aroma crepitante.
2. Em discussões ao longo de meus seminários nos últimos anos, uma questão recorrente tem surgimento com tanta freqüência que, a meu ver, seria útil levá-la ao leitor. É a questão do novo. O que é novidade em tudo isso? Por que este é um novo mundo? Acredito que neste fim de milênio está surgindo um novo mundo. Nos três volumes deste livro, tentei dar informações e idéias para embasar essa afirmação. Chips e computadores são novidade; telecomunicação móveis ubíquas são novidade; a engenharia genética é novidade; mercados financeiros globais integrados eletronicamente e funcionando em tempo real são novidade; uma economia capitalista interligada abarcando todo o planeta, e não apenas alguns de seus segmentos, é novidade; uma maioria da força de trabalho urbana no setor de processamento de conhecimentos e da informação nas economias avançadas é novidade; uma maioria de população urbana no planeta é novidade; o fim do Império Soviético, o desaparecimento gradativo do comunismo e o fim da Guerra Fria são novidade; o desafio generalizado ao patriarcalismo é novidade; a consciência universal sobre preservação ecológica é novidade; e o surgimento de uma sociedade em rede com base em um espaço de fluxos e no tempo intemporal é uma novidade histórica. Mas não é isso que quero salientar. Minha principal afirmação é que, na verdade, não importa se se acredita que este mundo, ou quaisquer de suas características é novo ou não. Minha análise sustenta-se por si mesma. Este é nosso mundo, o mundo da Era da Informação. E esta é minha análise deste mundo que devemos compreender, utilizar, julgar por ele mesmo, pela sua capacidade, ou incapacidade, de identificar e explicar os fenômenos que observamos e vivemos, independentemente de ser ou não novidade. Afinal de contas, se nada for novo sob o sol, por que se dar ao trabalho de tentar investigar, pensar, escrever e ler sobre o mundo?
3. Tradução literal sem pretensões poéticas: De minha parte e de tua parte, cumprimos nosso dever, / compartilhamos esperanças e/ invernos; / e fomos feridos não apenas / pelos inimigos mortais / como pelos amigos mortais (e isso / pareceu mais amargo), / mas não me parece mais doce / meu pão ou meu livro: / vivendo, agregamos a cifra que falta à dor, / e continuamos amando o amor e com/ nossa conduta franca/ enterramos os mentirosos e / vivemos com os que dizem a verdade.