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Castelo Interior: Primeiras Moradas – Capítulo I Este Castelo como já antes dissemos é, antes de tudo, o Castelo de Teresa, o da sua alma e da sua vida. Mas não fica simplesmente nela. Estende uma espécie de ponte levadiça e comunicante entre os dois Castelos, o dela e o nosso. A partir do seu humanismo e experiência religiosa, sai uma espécie de fluido comunicante que vem do seu Castelo ao nosso. A Santa Madre dirige-se a cada um de nós, numa atitude positiva, falando-nos da “dignidade e formosura das nossas almas”. É assim que aparece logo no título do Capítulo I, dando uma chave de leitura ao Capítulo inteiro. Diz assim: - Trata da dignidade e formosura das nossas almas - Põe uma comparação para se entender - Diz o lucro que há em entendê-la e saber as mercês que recebemos de Deus - E como a porta deste Castelo é a oração Sublinhemos a palavra “alma/almas”. A partir da primeira linha do livro, “alma e Castelo” equivalem-se na linguagem simbólica da obra. Na nossa linguagem de hoje “alma e Castelo” equivalem ao “homem”. Ela começará a falar “da dignidade do homem”. O mistério do homem É a primeira surpresa. Para introduzir o leitor neste “tratado” de vida espiritual ou de teologia espiritual, a Santa Madre começa por falar do homem. E fá-lo em termos não só elogiosos, mas com o máximo apreço possível da dignidade humana. Como boa pedagoga que é, apresenta uma visão positiva, grandiosa, exaltada do homem. A+ A- A 100%

Castelo Interior

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Castelo Interior:

Primeiras Moradas –

Capítulo I

Este Castelo como já antes dissemos é, antes de tudo, o Castelo

de Teresa, o da sua alma e da sua vida. Mas não fica simplesmente nela. Estende uma espécie de

ponte levadiça e comunicante entre os dois Castelos, o dela e o nosso. A partir do seu humanismo

e experiência religiosa, sai uma espécie de fluido comunicante que vem do seu Castelo ao nosso.

A Santa Madre dirige-se a cada um de nós, numa atitude positiva, falando-nos da “dignidade e

formosura das nossas almas”. É assim que aparece logo no título do Capítulo I, dando uma chave

de leitura ao Capítulo inteiro. Diz assim:

- Trata da dignidade e formosura das nossas almas

- Põe uma comparação para se entender

- Diz o lucro que há em entendê-la e saber as mercês que recebemos de Deus

- E como a porta deste Castelo é a oração

Sublinhemos a palavra “alma/almas”. A partir da primeira linha do livro, “alma e Castelo”

equivalem-se na linguagem simbólica da obra. Na nossa linguagem de hoje “alma e Castelo”

equivalem ao “homem”. Ela começará a falar “da dignidade do homem”.

O mistério do homem

É a primeira surpresa. Para introduzir o leitor neste “tratado” de vida espiritual ou de teologia

espiritual, a Santa Madre começa por falar do homem. E fá-lo em termos não só elogiosos, mas

com o máximo apreço possível da dignidade humana. Como boa pedagoga que é, apresenta uma

visão positiva, grandiosa, exaltada do homem.

Temos que deixar bem assente, como uma pedra angular que o homem é o mais parecido com

Deus e que em si mesmo tem uma capacidade que o transcende: não só está feito à imagem de

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Deus, mas é capaz de contê-Lo. O homem não só tem vocação para Deus, é chamado à comunhão

com Ele, mas o seu próprio ser humano está estruturado como “capacidade de Deus”, como

espaço-morada de Deus, mais e melhor que o cosmos inteiro. O homem é um ser aberto a Deus e

é o homem o cenário das relações com Deus. O encontro interpessoal, Deus-homem, produz-se na

interioridade. Por isso a Santa Madre diz: “Ponde os olhos no centro” (M I, 2,8). É aí que está Deus,

“o lugar onde está Deus” e também onde está o melhor do homem. Pôr os olhos no centro é

orientar a vida para as fontes do ser. Não há homem, ser, sem interiorização, sem enraizamento

em Deus e em si mesmo. Não se trata só de que Deus esteja, mas de que se participe da Sua vida.

O estar autêntico é participação de vida, é comunhão.

A alma do homem é apresentada como um Castelo, “um Castelo todo de diamante ou de mui claro

cristal”. É uma jóia transparente e enorme, em cuja interioridade há muitos aposentos, grande

“como o céu, onde há muitas moradas”.

Logo de seguida, a Santa Madre apresenta também o Castelo, como algo muito terrestre e

realista: um Castelo guerreiro, bem firmado na rocha do nosso corpo e, por dentro, cheio de vida e

de problemas…

Ao longo do livro o Castelo seguirá um processo de iluminação interior; à medida que se aproxima

do centro, mais luz tem, pois Deus vive no centro, sempre, é uma Presença activa, criadora de

vida, fonte de luz.

O Castelo guerreiro desenrolará um processo de luta e de conquista. Será este segundo

simbolismo o que vai prevalecer, pois a Santa Madre tem alma de combatente e sabe bem que a

vida humana é um combate, e ela quer comunicar esta ideia ao leitor, para que este não sucumba

à tentação de imaginar uma falsa paz no caminho que o espera.

Três pedras basilares: fundamentação bíblica do Castelo

A Santa Madre, quase sem se dar conta, ao lado do símbolo do Castelo, recorreu ao apoio da

Palavra bíblica. Extraiu da Palavra de Deus três afirmações, que são três palavras bíblicas:

- Que no Castelo da alma há muitos aposentos, “como no céu há muitas moradas”. É uma palavra

de Jesus no evangelho de João: “Na casa do Pai há muitas moradas” (Jo 14, 2). Já no Caminho a

Santa Madre tinha explicado que a alma do homem é o “céu de Deus”.

- Que a alma do justo é um paraíso onde Ele diz ter as suas delícias. É uma palavra do Livro dos

Provérbios: a Sabedoria “tem as suas delícias em estar com os filhos dos homens” (Pr 8, 31).

- E que o “próprio Deus nos criou à Sua imagem e semelhança”. É o célebre texto do Génesis:

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (…) e criou Deus o homem à Sua imagem, à

imagem de Deus o criou” (Gen 1, 26-27).

Este texto também esteve presente na experiência profunda de Teresa, como ela conta: “Como

estava [eu] espantada de ver tanta majestade em coisa tão baixa como a minha alma, entendi:

“Não é baixa, filha, pois está feita à minha imagem” (Relação 54).

Através da experiência interior, essas três palavras bíblicas passaram ao tecido da vida e

convicções da autora, e agora convertem-se em pedras basilares do Castelo.

E nós, acreditamos nestas maravilhas, que nos esperam no Castelo?

Destas três palavras bíblicas, há uma que serve a Santa Teresa para fazer uma espécie de

catequese preparatória e para dizer a maravilhosa comunicação de Deus com o homem. Deus é o

centro da história que nos vai ser contada, é o protagonista da hominização (= salvação) do

homem. Por isso o Castelo narra o que Deus faz no e ao homem. Esta palavra bíblica que ilustra

esta comunicação de Deus com o homem é do Livro dos Provérbios. Depois de afirmar a dignidade

e formosura do homem, e ante as maravilhas que se encontrarão ao entrar no Castelo, pergunta

se tal é possível. Claro que é possível, pois o plano de Deus acerca do homem é maravilhoso. Só

conhecer esse plano nos deveria despertar a mais amor. Quem puser isto em dúvida, é que muito

dificilmente chegará a sabê-lo por experiência, “porque Deus é muito amigo de que não ponham

(não ponhamos) medida às suas obras”.

Poderíamos escutar aqui aquela pergunta de Jesus: “Tu acreditas que posso fazê-lo…? Tudo é

possível para quem crê…”.

E porque se comunica Deus? Para Se revelar. Deus manifesta-Se, dando-Se. Não dá porque seja

bom o homem, mas porque Ele é bom. É importante saber que Deus Se comunica para nos

despertar a amá-Lo. É preciso estar aberto a Deus que faz mercês, a “um Deus amigo de que não

ponham medida às suas obras”, como já dissemos.

Então é assim que Teresa abre o Castelo interior. Pronuncia uma palavra grande, profunda,

luminosa sobre Deus e o homem em relação de amizade. É como se nos esteja a dizer: com este

Deus vais tratar. Então abramo-nos, agora, desde já, a este Deus, ainda que não nos apercebamos

d’Ele em lado nenhum. É o segredo do “êxito” espiritual.

Entrar no Castelo

“Pois, voltando a nosso formoso e deleitoso Castelo, temos de ver como poderemos entrar nele.

Parece que digo algum disparate; porque, se este Castelo é a alma, claro que não se trata de

entrar, pois se é ele mesmo, pareceria desatino dizer a alguém que entrasse num aposento

estando já dentro. Mas haveis de entender que vai muito de estar a estar; que há muitas almas

que ficam à volta do Castelo”. (M I, 1,5)

A Santa Madre sabe por experiência que o homem se pode esvaziar a si mesmo e derramar-se

como água no exterior.

Destas duas vertentes, de interioridade e exterioridade, que tem o Castelo, esta segunda pode

cancelar a primeira. Podemos exteriorizarmo-nos até à alienação. Ao contrário, quem se

interioriza, converte-se em centro de gravidade do circundante.

A este propósito a Santa Madre atreve-se a escrever uma palavra dura. O homem pode afastar-se

do interior de si mesmo, até se desconhecer e tornar-se quase animal, vivendo “à roda do

Castelo”, ou conviver no fosso do corporal e sensual “com as sevandijas e alimárias que estão à

roda do Castelo” (n. 6). E daí a palavra dura da Santa Madre: “Isto seria grande bestialidade” (n.

2). Seria reduzir o homem à condição de animal. De tal forma era dura a palavra usada pela Santa

Madre, que o Padre Graciano, ao ler o manuscrito, mudou-a para “abominação”. Mas a Santa

Madre necessitava de dizer na forma mais forte possível que o desalojar-se da própria

interioridade é uma das maiores aberrações do homem. No estado de “bestialidade” o homem não

sabe quem é, carece de sensibilidade interior, espiritual. Vive fora de si mesmo. Quando muito

“sabem que têm alma” (n. 2), isto é, uma interioridade, vivendo à roda do Castelo… não se lhes

dando nada de entrar dentro, “nem sabem o que há naquele tão precioso lugar, nem quem está

dentro” (n. 5).

Estas são almas tolhidas, almas sem oração. Destas ela não fala, mas só das que “entram no

Castelo”, isto é, aquelas que se convertem aos valores espirituais, mas arrastam a situação

anterior: “Almas acostumadas a estar em coisas exteriores…” (n. 6). São pessoas que vivem em

dispersão e derramamento, em exteriorização e, consequentemente, em debilidade extrema.

Por isso, não basta conhecer o Castelo, é preciso entrar nele. Como?

A porta do Castelo

A esta pergunta a Santa Madre responde com outra afirmação categórica: “Tanto quanto eu posso

entender, a porta para entrar neste Castelo é a oração e reflexão” (n. 7).

Para entrar no seu Castelo, há só uma porta: a oração. Ao ler estas palavras, Edith Stein ficou

muito admirada e desconcertada, e pergunta: “Quer isto dizer que nós os filósofos e psicólogos

não chegamos a entrar no recinto interior do castelo? Precisamente o psicólogo, que é por

definição o especialista da psique, não tem passagem livre ao interior da alma?”

Edith Stein rapidamente caiu na conta da profunda visão da Santa Madre. Para ela, a interioridade

do homem tem algo de sagrado. O Castelo está habitado por Deus. Entrar nele é relacionar-se com

Deus na morada interior, aí onde a pessoa é pessoa, e se encontra com outra Pessoa. É isso o que

requer um gesto não profano, mas religioso. É uma tarefa reservada à oração. Orar é passar a

porta do Castelo e começar a relacionar-se de forma pessoal com Deus, é entrar no conhecimento

de Deus e de si mesmo, é converter-se a Deus e a si mesmo. Diz a Santa Madre: “Enfim, entram”,

ainda que seja “cheios de mil negócios”. “Já muito fazem em ter entrado.”

A oração serve para tipificar/definir a pessoa na sua totalidade, mostra a situação espiritual do

homem. Eis como nos apresenta a Santa Madre os moradores das Primeiras Moradas que chegam

a entrar no Castelo:

Aspectos positivos:

- “Têm bons desejos”.

- “Algumas vezes, oram”.

- “Procuram algumas vezes desocupar-se” das coisas do mundo.

- “Andam com desejos de não ofender a Deus e fazer boas obras”.

- Entram nas Primeiras Moradas, as mais baixas, e já muito fazem em ter entrado.

Aspectos negativos:

- “Muito metidas no mundo”

- “Muito apegadas a eles” (negócios do mundo)

- “Embebidas no mundo, e engolfadas nos seus contentamentos, e desvanecidas com suas honras

e pretensões”

- “Não têm força os vassalos da alma (que são os sentidos e potências naturais que Deus lhe deu),

e facilmente estas almas são vencidas”

- “Resiste menos, como quem tem em parte perdida a esperança de vencer”

Ao ler estes aspectos positivos e negativos, damo-nos conta de que o alcance ascético do esforço

destas pessoas se valoriza mais pelo início do movimento de interiorização, do que pelos

resultados em si mesmos. Assomar ao mundo que levamos dentro de nós, Deus e o próprio eu,

revela já uma descoberta, ou pelo menos, um despertar “a algo mais”, “a algo distinto”. Com esta

descoberta, nasce a vontade de entrar, decidindo-se o homem a dar outra direcção à sua vida, a

cultivar outros valores. É uma entrada condicionada, já que tudo quanto arrasta consigo não lhe

permite “ver” as riquezas interiores.

A Santa Madre ressalta o positivo: “Enfim, entram”. É um verdadeiro triunfo, dada a atracção que

o “mundo” exerce sobre quem “anda engolfado” nele. O mundo não é só uma força que nos atrai

de fora, mas entrou dentro de nós, empapa-nos, estamos nele engolfados. E isto provoca uma

grande debilidade de todo o nosso ser: tira-nos energia para viver, sangra-nos, embrutece-nos,

isola-nos, tornando impossível toda a comunicação. O mundo rouba-nos o melhor que temos: a

nossa capacidade de relação, não nos deixando escutar a Deus, nem aos outros, nem nos

dizermos a eles. O mundo arrasta-nos atrás de si, desterrando-nos de nós próprios. Torna-nos de

tal forma impotentes, que a Santa Madre diz: “Não há remédio nem podem entrar dentro de si” (n.

6).

Quem entra na Primeira Morada?

A Santa Madre recordou ao longo do Capítulo, três episódios bíblicos singulares. São imagens de

quem, estando fora do Castelo, está convidado a entrar. Ei-las aqui:

- A figura bíblica da mulher de Lot (Gen 19, 26), imagem daqueles que não olham para si, para o

interior. O homem exteriorizado converte-se em estátua de sal.

- O paralítico da piscina de Betsaida, incapaz de se levantar para se lançar na água, mas que tem

a graça de se encontrar com Jesus que o cura (Jo 5, 2-8)

- O cego de nascença, que logo começa a ver, graças ao encontro com Jesus (Jo 9, 7).

O segundo tipo evangélico tem para a Santa Madre uma especial força significativa, como ela

narra: “Dizia-me há pouco um grande letrado, que as almas que não têm oração são como um

corpo paralítico ou tolhido que, embora tenha pés e mãos, não os podem mexer; e são assim: há

almas tão enfermas e tão habituadas às coisas exteriores, que não há remédio nem parece que

possam entrar dentro de si mesmas.” (M I, 1,6)

Doentes, vítimas de certa atrofia espiritual, todos precisamos da graça de Jesus para nos pormos a

andar, e passar essa subtil barreira que faz de diafragma entre a esfera do sentido e o mundo do

espírito. Este paralítico é a imagem do homem sem oração, exilado de si próprio, sem

interioridade.

Em síntese, se queremos entrar nas Primeiras Moradas, temos que caminhar sem olhar para trás,

e confiar em Jesus, que nos livrará das amarras misteriosas que nos impedem de atravessar o

umbral de nós mesmos. Jesus é a presença fortemente vivida ao longo de todo o processo

espiritual, ao longo das Moradas. Por isso a Santa Madre, logo desde o início deste caminho, pede-

nos para pôr os olhos em Cristo. Será Jesus quem dará luz aos nossos olhos, para começarmos a

ver as maravilhas do nosso próprio Castelo, e conseguirmos encontrar-nos com Deus dentro de

nós.

Ficheiro

Castelo_03_1M1.pdf

2013-04-26

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Primeiras Moradas –

Capítulo II

No primeiro Capítulo do livro, a Santa Madre situou o leitor

diante da fachada do seu próprio Castelo. Convocou-o para a zona da interioridade, ajudou-o a

superar essa subtil barreira que medeia entre a esfera dos sentidos e a do espírito. Disse-lhe que a

porta de entrada no Castelo é a oração, que entrar nele é iniciar uma relação religiosa consigo

mesmo e com Deus: orar, mesmo que seja pobremente; e que não volte a cabeça para trás, como

a simbólica mulher de Lot.

Agora, neste Capítulo, a Santa Madre vai ler a cartilha ao principiante. No título do Capítulo, em

três pinceladas, antecipa o perfil do que pretende apresentar:

- atenção ao pecado, que ameaça a ruína do Castelo;

- aprofundar no conhecimento próprio, para estar fundado em humildade;

- dilatar o olhar e esquadrinhar dentro de si a vasta paisagem do Castelo interior.

O espectro do pecado e a sua experiência

O Capítulo começa assim: “Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que será

ver este Castelo tão resplandecente e formoso, esta pérola oriental, esta árvore de vida que está

plantada nas mesmas águas vivas da Vida, que é Deus, quando cai em pecado mortal. Não há

trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e negra que ela o não esteja muito mais.” (M I, 2,1)

O místico tem olhos lúcidos para o mistério do mal. Uma mística tão optimista e clarividente como

a Santa Madre tem uma visão sombria do pecado. Acompanha-a a sua consciência de pecadora:

ela sabe-se e diz-se pecadora convertida. No mal do pecado ela sublinha o aspecto ético: a

desordem que introduz no homem, na estrutura interior do Castelo. Mas mais que este aspecto

ético, interessa-lhe destacar a dimensão teologal: no interior do Castelo, o pecado mortal frustra

simplesmente a relação do homem com Deus, fica quebrado o projecto inicial de Deus para cada

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homem, que consistiu no radical chamamento do homem à comunhão com Ele.

Na linguagem da Santa Madre é como se o homem se desabite a si mesmo, obrigado a abandonar

o próprio Castelo num gesto de alienação, para viver fora ou no fosso, molestado por répteis

venenosos. Pelo contrário, o pecado não consegue desalojar Deus do Castelo, que o continua a

habitar, embora a pessoa esteja incapaz de participar da vida d’Ele.

O homem em pecado é um castelo em ruínas, é um homem tenso pelo des-centramento e o

desenraizamento, é um homem exteriorizado e derramado, escravo e não senhor. É vivido, não

vive.

A esta experiência da alma se encontrar em pecado, chamará a Santa Madre de “negro pez”,

“negríssima água de muito mau cheiro”, “a alma fica feita treva”.

Santa Teresa evoca ainda, neste conhecimento do que é uma alma em pecado, a sua própria

experiência: “Como Deus quis dar a entender algo disto a uma pessoa”.

Em várias relações a Santa Madre evoca esta experiência do que é entender a desventura de uma

pessoa em pecado e estremece interiormente. Para Teresa, esta insistência sobre este estado da

alma em pecado é uma prova de que para ela isto não é marginal, ou secundário, mas algo muito

importante para o leitor, especialmente para o principiante. E porquê?

Medo, ou temor do pecado?

Sempre que Santa Teresa evoca o mistério do mal – concretamente o mal do pecado no homem –

sente um profundo estremecimento e vemo-lo em várias das suas páginas do Caminho, nas

Exclamações e, sobretudo, no Livro da Vida.

Será esta visão do pecado uma visão arcaica, antiquada e pessimista? Que pretende a Santa

Madre com esta visão do pecado? A sua intenção é introduzir o principiante na primeira etapa da

vida espiritual, situando-o entre duas situações limite:

– Por um lado a suma dignidade do homem, a formosura do Castelo inundado de graça;

– Por outro lado, a suma fealdade que o pecado traz ao Castelo: “não há trevas mais tenebrosas”.

Teresa quer deixar bem vincado, e vamos vê-lo ao longo do livro, que quem perde o sentido do

pecado, perde o sentido do risco e, sem este, perderá o sentido da realidade, perderá o caminho,

não chegará às moradas mais profundas. O pecado leva o homem à exteriorização,

despersonaliza-o.

Ela não pretende semear o medo, mas o temor de ofender o Senhor do Castelo: “Dizia aquela

pessoa que tinha aproveitado duas coisas da mercê que Deus lhe fez: uma, um temor grandíssimo

de O ofender, e assim sempre Lhe andava suplicando não a deixasse cair” (n. 5).

É este sentido de orientação que ela quer inculcar, a partir da sua experiência, ao principiante:

lançar a pessoa não no caminho do medo, mas do amor, a partir da imagem de Deus, como

bondade e misericórdia.

Conhece-te a ti mesmo: “Socratismo Teresiano”

É o tema tratado na segunda parte do Capítulo. “Conhecer-se a si mesmo” deverá ser a tarefa

específica desta Primeira Morada. É a tarefa quotidiana da vida que se faz no interior do Castelo.

Não será uma coisa que se faz só no princípio do processo, mas tem que se manter activo até à

última morada, a Sétima: “E quão necessário é isto (vejam se me entendem), mesmo aquelas que

o Senhor tem na mesma morada em que Ele está, pois – por mais elevada que esteja a alma –, não

lhe cumpre outra coisa, nem poderá” (n.8) senão aprofundar no conhecimento próprio, porque “a

humildade sempre fabrica o seu mel, como a abelha na colmeia; sem isto, tudo vai perdido” (n. 8).

Estabelece uma profunda equivalência entre conhecimento próprio e humildade.

Surge espontaneamente a pergunta: em que consiste este conhecimento próprio que a Santa

Madre propõe como programa ao principiante?

Vamos resumir o seu pensamento em alguns enunciados:

1. A primeira coisa que a Santa Madre propõe ao principiante é o símbolo do “Castelo interior”,

para fazê-lo cair na conta na dignidade e formosura da sua alma. Não só está feita à imagem de

Deus, mas é capaz de contê-Lo. O principiante não se conhecerá a si mesmo, se não se sabe

habitado por Deus. O homem não é só uma centelha da divindade: é o próprio Deus que está nele.

2. No entanto, o homem, é capaz de negar-se a si mesmo, é capaz de introduzir o mal no Castelo,

cobri-lo de pez, fealdade e trevas. O homem não se conhece a si mesmo se ignora esta segunda

dimensão do seu ser: grandeza e miséria em contraponto.

3. O risco fatal que corre é ver só esse lado negro de si mesmo. O homem incorre inexoravelmente

neste risco, cada vez que o conhecimento próprio se feche no horizonte da própria história,

desligando-a de Deus. Conseguirá apenas um conhecimento muito pobre e envilecido, acobardado

e frustrante. Daí que a ajuda da psicologia e da psiquiatria a uma pessoa, não seja suficiente, e

não conseguirá os resultados que se esperam, sem esta colaboração íntima e indispensável com a

dimensão religiosa e sagrada do homem, sem ser feita à luz de Deus.

4. Há que apontar mais alto: “por os olhos no centro (do Castelo), que é a morada onde está o Rei”

(n. 8). O conhecimento próprio que a Santa Madre propõe é um acto religioso de oração, capaz de

abarcar com um só olhar o próprio Castelo e o Deus que o habita e dignifica. E Teresa explica

porquê: “E a meu ver, jamais acabamos de nos conhecer se não procurarmos conhecer a Deus;

olhando à Sua grandeza, acudamos à nossa baixeza; e olhando à Sua pureza, veremos nossa

sujidade; considerando a Sua humildade, veremos como estamos longe de ser humildes.” (M I, 2,9)

5. A grande vantagem desta forma de autoconhecimento à luz de Deus é que “o nosso

entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres e mais dispostos para todo o bem, quando,

às voltas consigo mesmos, tratam com Deus. E se nunca saímos do nosso lodo de misérias, é coisa

muito inconveniente.” (M I, 2,10)

São estas as cinco ideias que são o chamado “Socratismo Teresiano”. Agora o principiante está

preparado para aprofundar o símbolo do Castelo, sem o reduzir ou coarctar, nem o imaginar

acanhado ou monótono: “Não haveis de imaginar estas moradas uma após outra, como coisa

alinhada (…). Assim aqui, em redor desta morada, há outras muitas e também por cima. Porque as

coisas da alma devem-se considerar com amplidão, largueza e grandeza, e nisto não há demasia,

pois tem maior capacidade do que nós poderemos considerar (…).” (M I, 2,8). “Por isso digo, que

não considerem poucos aposentos, senão um milhão deles (…).” (M I, 2,12)

E deixa esta última pincelada deste quadro de luz: “Isto importa muito a qualquer alma que tenha

oração, pouca ou muita: que não a tolha nem a aperte [a própria alma].” (n. 8)

Conselhos aos moradores das Primeiras Moradas

Sentido da própria dignidade, sentido de Deus e sentido do pecado foram os conselhos de fundo.

Tendo-os por base, começa a configurar-se a vida nova de quem, pela porta da oração, entra no

Castelo da alma. Agora, no final do Capítulo, a Santa Madre dá ao principiante uma série de

conselhos práticos:

– Antes de tudo, pôr “os olhos em Cristo, nosso Bem” (n.11). É um postulado de pedagogia

espiritual. Já ao começar o Caminho de Perfeição, o tinha formulado assim: “os olhos em vosso

Esposo: Ele vos há-de sustentar” (C 2,1). Voltará a repeti-lo na última morada: “Ponde os olhos no

Crucificado e tudo se vos fará pouco” (M VII, 4,8). É a quinta-essência do seu evangelho. Esta tinha

sido uma das suas primeiras experiências cristológicas. Tinha-a descrito no Livro da Vida. O Senhor

disse-lhe que “pusesse os olhos no que Ele havia padecido, e tudo se me faria fácil” (V 26,3).

Agora este conselho converte-se em “abc” do principiante.

– “Tomar a Sua bendita Mãe por intercessora” (n. 12). E isto por uma razão muito simples: a luta

impõe-se na vida destas Primeiras Moradas. E quem começa, tem pouca força para se defender.

Precisa de acudir a Sua Majestade, à Virgem Maria e aos seus Santos.

– Estar bem consciente da situação precária com que começa. O homem das Primeiras Moradas

vive em risco permanente, inicia o seu caminho espiritual numa situação de grande debilidade,

com muitas forças contrárias, que o tornarão difícil e doloroso. Por isso, diz a Santa Madre, que são

muitas as almas que entram no Castelo mas, como ainda estão “embebidas no mundo e

engolfadas em seus contentamentos e desvanecidas nas suas honras e pretensões, não têm força

os vassalos (que são os sentidos e potências), e facilmente estas almas são vencidas, apesar de

andarem com bons desejos de não ofender a Deus, e façam boas obras” (M I, 2,12).

– A Santa Madre insiste nesta situação de luta e na pobreza de recursos: “Haveis de notar que,

nestas Primeiras Moradas, ainda não chega quase nada da luz que sai do palácio onde está o Rei;

porque, embora não estejam obscurecidas e negras como quando a alma está em pecado, estão

de alguma maneira obscurecidas para poderem ver quem está nelas e não por culpa do aposento

– não me sei dar a entender –, mas porque entraram com a alma tantas coisas más de cobras e

víboras e coisas peçonhentas que não a deixam reparar na luz” (M I, 2,14). Se aspira a penetrar

nas segundas moradas, convém-lhe deixar de lado as “coisas e negócios não necessários, cada um

segundo o seu estado” (n. 14), pois é impossível avançar no caminho empreendido sem esta

decisão.

– O morador das Primeiras Moradas há-de ter têmpera e espírito combativo: “Olhai que em poucas

moradas deste Castelo deixam de combater os demónios” (n.15). A travessia não é para espíritos

medíocres e frouxos. Requer-se vigilância permanente, porque o inimigo transfigura-se em “anjo

de luz”, para melhor enganar (n.15). “É como uma lima surda”: não há que deixar-se surpreender

(n.16).

– Por fim, a Santa Madre apresenta a meta final do Castelo, dando-nos uma ideia clara sobre o que

é a santidade: “Entendamos, minhas filhas, que a perfeição verdadeira é amor de Deus e do

próximo e, com quanta mais perfeição guardarmos estes dois mandamentos, seremos mais

perfeitas. Toda a nossa Regra e Constituições não servem de outra coisa, senão de meios para

guardar isto com mais perfeição” (M I, 2,17). Aquelas “coisas e negócios não necessários” que

tinha falado antes, para as suas monjas, convertem-se em “cuidados alheios”, que são a exaltação

do egoísmo, do “seu” modo de viver a vida espiritual, e que se prolonga em “zelo indiscreto” para

fazer que todos os outros vivam como elas. Daí esta sua palavra sobre a perfeição verdadeira:

“amor de Deus e do próximo”. Por isso, exorta a “não andar olhando nas outras umas ninharias”.

O que se requer é silêncio interior para conservar a paz, e silêncio exterior para não romper com a

Comunidade.

Assim se apresenta a cartilha do principiante. Esta é a sua situação ao iniciar este caminho de

interiorização, podendo-se-lhe aplicar a palavra evangélica: “Onde está o teu tesouro, aí está o teu

coração”. O mundo arrasta o homem, desterra-o de si, deixando-o sem interioridade. A Santa

Madre aponta-lhe uma série de verdades que o podem imunizar contra ilusões e falsos sonhos, ao

dar os primeiros passos no caminho espiritual. Reiteradamente lhe foi insinuando o panorama de

luta que o aguarda nas Segundas Moradas.

O processo mistagógico nas Primeiras Moradas: início de uma longa aventura

A pessoa foi convidada pelo Rei do Castelo para a morada principal. Chegar a ela é a aventura que

inicia a pessoa que aceitou livremente o convite pessoal de Deus.

Começa o trato pessoal com Deus com a oração vocal, especialmente o Pai-Nosso e os primeiros

passos em direcção ao interior. Não esqueçamos que a porta de entrada do Castelo é a oração e,

por isso, a oração consiste, precisamente, em comunicar, dialogar com Deus, estabelecer um

diálogo com Ele. No Caminho a Santa Madre inicia as Irmãs neste processo, convidando-as a

meditar o Pai-Nosso.

Nível teológico: Deus é graça abundantemente derramada para todos

O homem é convidado a tomar consciência de que este Deus com quem vai tratar é Amigo, é fonte

de vida constantemente dada e oferecida, um Deus dador de bênçãos, que procura amizade, para

dar o Seu amor, a Sua misericórdia. O ponto-chave, como já dissemos, é pôr os olhos em Cristo e

receber as Suas virtudes.

O homem deve entender que o desejo de Deus é dar-Se, por isso a atitude que lhe é pedida é a do

acolhimento, da abertura sem medos, nem restrições. Ele é Amigo de dar sem medida. Este

caminho vai ser o caminho da amizade com Deus: tornar-se amigo de Deus.

Se a nossa vida espiritual não se funda nesta certeza de que a relação com Deus é de amor,

proximidade e amizade, torna-se impossível de viver. Por isso, a Santa Madre afirma que é de

grande consolo saber que é possível Deus comunicar-Se connosco: a grandeza de Deus entra em

contacto com a pequenez humana e abaixa-Se a ela, por amor, porque, como dizia Teresinha, “é

próprio do amor abaixar-se”.

O convite da mistagoga Teresa é ensinar que Deus é graça e dom para ser acolhido gratuitamente.

Teresa chama a Deus carinhosamente “uma bondade tão boa e misericórdia tão sem medida” (M I,

1,3). E para receber estes dons tão grandes de Deus, é necessário pôr os olhos em Cristo. O

homem é, então, chamado a tomar asas para voar até Deus, em Cristo.

Nível antropológico: um homem em graça, com dignidade e capaz de Deus

A Santa Madre destaca, como já vimos, a grandeza e a beleza da pessoa, o que ela é capaz de

receber e de ser. É o Castelo “todo de um diamante ou mui claro cristal”, “um paraíso onde Ele

disse ter Suas delícias”. A pessoa é grande e bela, porque criada à imagem e semelhança de Deus.

Por um lado temos um Deus dando-Se em graça e, por outro, a pessoa com capacidade para

acolhê-Lo.

O mistagogo convida a pessoa a tomar consciência do seu valor, da sua beleza interior, à auto-

estima e ao são amor a si mesma.

Um situação diferente desta é a pessoa que não se dispõe a receber as graças de Deus, seja pelo

seu pecado, seja por não saber fazê-lo. Para isso, está o mistagogo para lhe indicar a atitude

adequada e as estratégias a seguir. No entanto, a pessoa é sempre livre para responder, ou não.

Transformação: um orante em caminho

Quem tomou a decisão de transitar por este belo Castelo, deve fazê-lo cheio de ânimo e decisão,

porque Deus está com as mãos cheias de bens para serem gozados. O orante começa a saboreá-

los, e a Santa Madre não deixará de o animar e estimular, porque se começam a perceber os

primeiros frutos que são:

- crescimento do amor

- início do conhecimento próprio

- busca da perfeição verdadeira: amor de Deus e do próximo

A pessoa anima-se a crescer, assumindo com responsabilidade este caminho novo de relação com

Deus, procurando conservar este trato com todo o cuidado e empenho em conservar a beleza do

seu Castelo.

O orante que começa a ser tocado pela graça, começa a dar-se conta de realidades que não

conhecia até agora e que emergem com gozo e esperança, novos ímpetos de vida que procedem

do Deus dador de graça. Esta é ainda uma realidade incipiente e imperfeita, mas saboreia-a

conscientemente. O processo iniciou-se e deverá agora amadurecer e acrisolar-se.

A pessoa olha para o interior e descobre a luz de Deus particularmente presente, o que conduz a

uma descoberta de si mesma.

O orante ao entrar no Castelo, percebe com maior crueza o que tem de positivo e negativo:

começa a entender quem é realmente e operam-se os primeiros movimentos para o amor e a

entrega, como diz a Santa Madre: “o nosso entendimento e nossa vontade se tornam mais nobres

e mais dispostos para todo o bem, quando, às voltas consigo mesmos, tratam com Deus” (n. 10).

O trato natural com Deus desencadeia a bondade natural da pessoa e a busca inicia-se com

dinamismo crescente. Por isso, diz a Santa Madre que no horizonte do orante só deve estar isto:

“Entendamos, minhas filhas, que a perfeição verdadeira é amor de Deus e do próximo e, com

quanto maior perfeição guardarmos estes dois mandamentos, seremos mais perfeitas. (…) Importa

tanto este amor de umas para com as outras, que eu nunca quereria que dele vos esquecêsseis

(…)” (M I, 2,17-18).

Princípios mistagógicos das Primeiras Moradas:

Desde o princípio do processo que a mistagogia da Santa Madre se apresenta como provocativa,

inculcando desejos de entrega, de busca, de experiência; fala de frutos, de “ganhos”, adianta

realidades escatológicas com verbos como “encontrará”, “ entenderá” ao ritmo da graça, isto é,

vai mostrando as mercês que Deus concede aos cidadãos das moradas.

A pessoa é o belo Castelo que se vai encontrar com Deus em pessoa, que é o Rei do Castelo. Este

início do processo não arranca da boa vontade do leitor, nem da muita virtude que possui, mas é o

Rei do Castelo o autor de todo este caminho: o Rei inicia, conduz e completa com o caminhante

toda a senda. O convite do Rei é chegar à morada principal, onde Ele vive, com a explícita

intenção de que viva com Ele, na Sua presença e na Sua morada.

A resposta é decisão da pessoa, e aceitar responder ao convite do Rei é introduzir-se num mundo

novo, cheio de maravilhas, surpresas e descobertas, entre as quais a revelação do nosso próprio

mistério, da sua grandeza e grande dignidade.

Este caminho é possível, porque Deus o quer e nos tornou capacitados para ele, criando-nos à Sua

imagem e semelhança. Por isso, este caminho não é uma loucura, mas chegar à morada principal

e viver aí com o Rei, é a realização plena de todo o baptizado: encontro de amor com a fonte do

Amor. Isto é a santidade.

Como é a oração do morador das Primeiras Moradas?

O tipo de oração das Primeiras Moradas é a vocal, sobretudo o Pai-Nosso, por ser a que Jesus

ensinou.

Por isso, toda a pessoa pode acolher o convite de Deus e começar o caminho só com rezar

vocalmente: o Pai-Nosso, a Ave-Maria, participar na Eucaristia; mas deve unir a oração com a força

do coração, pois dizer palavras sem cair na conta e estar atento a Quem são ditas, não é rezar. Por

isso, para a Santa Madre, oração vocal e mental vão juntas, como ensinou no Caminho.

Ajudas para fazer esta aproximação a Deus:

- contemplar a natureza;

- ler bons livros;

- ter algumas imagens;

- e recorrer confiadamente à Virgem Maria e aos Santos.

Que deve ter em conta a pessoa?

A pessoa deve assumir a sua própria história e este é um dos grandes obstáculos a vencer, já que

na história pessoal de cada caminhante há situações pendentes, dolorosas e não assumidas, que

se não forem integradas, a impedirão de avançar.

O conhecimento próprio, de que já falámos, ajudará a esta aceitação de nós próprios. Este

conhecimento de nós mesmos deverá ser sempre aprofundado ao longo de todo o processo e

nunca se deixar, pois há aspectos da nossa vida que se vão aprofundando e curando por etapas, à

medida que avançamos espiritualmente. A cura é progressiva.

Podemos concluir que o desafio é grande, porque passa pelo encontro com situações dolorosas,

máscaras assumidas durante muito tempo, inadequadas imagens de nós próprios; dito de outra

maneira, será um caminho de libertação profunda e, em muitos casos, doloroso.

Este conhecimento próprio deve estar sempre referenciado a Deus, como já dissemos. De outra

forma, não seria possível o homem ver-se e confrontar-se sozinho com a sua verdade.

Conversão

Esta pessoa que chegou à porta do Castelo é um convertido. Está imersa em situações de pecado,

“embebida no mundo e engolfada nos seus contentamentos”, pelo que a fragilidade não faltará

como sua acompanhante. Por esta razão, deverá tomar a decisão de renunciar a todas aquelas

realidades que a afastam totalmente de Deus (pecado) e recorrer, entre outros auxílios, ao

sacramento da reconciliação.

Com o auxílio da graça de Deus, está o orante predisposto para entrar nas Segundas Moradas.

Ficheiro

Castelo_04_1M2.pdf

2013-05-10

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único

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Castelo Interior:

Terceiras Moradas –

Capítulo I

O homem das Terceiras Moradas tem que passar “a prova do

amor”, que o vai libertar de egoísmos e ilusões narcisistas na vida espiritual. É-lhe pedido que fixe

um programa de vida espiritual e de oração e se estabilize nele. Aparecem as primeiras

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manifestações de zelo apostólico, mas sobrevêm a aridez e as fases de impotência como estados

de prova: “Prova-nos Tu, Senhor, que sabes a verdade…” (n. 9).

Sob a perspectiva bíblica, o cristão das Terceiras Moradas:

- é provado na sua autenticidade: como o jovem rico do Evangelho, como o Apóstolo Tomé

(“morramos por Vós…”);

- vive em risco permanente, até se sentir personificado nas duas figuras paradigmáticas de David

e Salomão: um, que supera o risco da queda; o outro, que sucumbe nela.

Como o jovem do Evangelho

Mais um passo em direcção ao interior do Castelo…, e chegamos às Terceiras Moradas. O primeiro

passo neste processo consistiu em “entrar”. Entrar nas Primeiras Moradas equivale a “começar”,

ser de verdade o que cada um é no profundo de si mesmo e, a partir daí, pôr em movimento um

processo de vida e de relação com Deus e com os outros.

No Castelo luta-se: é a segunda etapa do processo. Para ser e viver é preciso esforçar-se e

batalhar. Agora, ao passar das Segundas para as Terceiras Moradas, o orante espera que à luta se

siga a vitória e a paz. Mas não vai ser assim. A Santa Madre vai falar-lhe, ainda, de uma etapa de

ascese, vigilância e esforço. Vai falar-lhe da prova do amor, dos riscos de ilusão e narcisismo, da

passagem por uma espécie de adolescência do espírito.

Nesta nova etapa Teresa não teme tanto as novas provas, mas a própria pessoa, isto é, a Santa

Madre teme que a situação espiritual se converta em pedra de tropeço para o próprio orante:

- por apoiar-se em si mesmo, naquilo que já fez;

- para exibi-lo como título diante de Deus;

- por ficar parado como se tivesse feito tudo: “Passai adiante de vossas obrazitas” (n. 6).

Para chamar a atenção do leitor da importância de uma leitura atenta, recomenda: “Olhai muito,

filhas, a algumas coisas que aqui vão apontadas, ainda que atabalhoadas” (n. 9).

Nesta etapa Deus actua, responde aos esforços da pessoa, mas não como o orante espera. Deus

não se faz presente “premiando” e aprovando, mas provando. Deus entra em cena provando-nos,

revelando-nos a nossa verdade moral íntima, oculta no meio de tantas “obras” ascéticas.

Vai ser o refrão destas Moradas Terceiras: o homem é submetido por Deus à prova do amor. Como

diz a Santa Madre: “provemo-nos (…) ou prove-nos o Senhor” (n. 7); ou ainda: “Prova-nos, Tu,

Senhor, que sabes a verdade, para que nos conheçamos” (n. 9). O homem engana-se a si mesmo

e Deus inicia a sua ofensiva declarando-lhe a verdade da sua vida.

A Santa Madre vai apresentar-nos um Deus que não Se dobra aos desejos do homem, mas um

Deus que age transcendentemente e, por isso, desconcerta.

A acção de Deus vai pôr de manifesto a inconsistência e pobreza do que o homem fez até aqui:

“Passai adiante das vossas obrazitas” (n. 6); e “Ainda é mister mais para que de todo o Senhor

possua a alma” (n. 5).

Nada do que fizemos nos dá direito a nada: “Não peçais o que não tendes merecido, nem havia de

nos vir ao pensamento que, por muito que sirvamos, o havemos de merecer” (n. 6); “Tenha-se por

servo inútil”. Deus não vem atrás “pagando”, mas vai à frente abrindo caminho de graça.

Com esta sua acção, Deus faz ver ao homem a sua soberba espiritual: o homem quer dominar e

submeter Deus, que Ele Se dobre às suas obras. Por isso, a prova rompe os esquemas espirituais

que tinham regido o homem até agora, ao mesmo tempo que lhe abre o caminho a seguir: deixar-

se conduzir por Deus.

Diante de todas as “obras” feitas até aqui, o “negócio” está em render a nossa vontade à de Deus,

como veremos no capítulo seguinte. E esta será a grande viragem da vida espiritual.

Deus introduz o orante na aceitação do protagonismo de Deus na sua vida, a partir de uma

passividade activa da sua parte. Nesta etapa Deus começa a dar a conhecer que é Ele que assume

a iniciativa, actua, “embora muitas vezes não o queremos entender” (n. 7).

E, por isso, vem a secura e falta de ânimo, um sentimento de desencanto. Deus defrauda. A secura

e a rudeza revelam a falta de humildade, isto é, a pouca verdade em que caminha a pessoa, que

não se abandona a Deus. Diz a Santa Madre: “não posso acabar de crer a quem tanto caso faz

destas securas, senão que é um pouco falta dela” [humildade] (n. 6).

O orante tinha clamado a Deus para que se lhe comunicasse. Deus fá-lo agora e, como o jovem

rico do Evangelho, “lhe voltamos as costas (…) quando nos diz o que havemos de fazer” (n. 7).

Temos aqui a caracterização das “almas concertadas” e da nova fase que se inaugura nestas

Terceiras Moradas.

Como se apresenta o orante das Terceiras Moradas? Apresenta aspectos positivos e aspectos

negativos.

Aspectos positivos:

- “Muito desejosos de não ofender Sua Majestade”;

- “Por coisa alguma fariam um pecado”;

- “Amigos de fazer penitência”;

- “As suas horas de recolhimento”;

- “Gastam bem o seu tempo”;

- “Gastam bem sua vida e fazenda”;

- “Exercitam-se em obras de caridade”;

- “Decerto que é estado para desejar”;

- “Bela disposição” para chegar às Sétimas Moradas.

Aspectos negativos:

- “Almas concertadas”;

- “Dar-lhes conselho, não é remédio”;

- “Parece-lhes que podem ensinar a outros”;

- “Canonizam [as suas faltas] … e assim queriam que outros as canonizassem”;

- “Quereriam a todos tão concertados como eles trazem suas vidas”;

- “Que todos vão pelo seu caminho”;

- “Penitências concertadas”;

- “A sua razão está muito em si”;

- Agem “com tanto senso” e “grande discrição”.

A Santa Madre aprecia aquilo que o orante destas Moradas faz, chama-lhe “bem-aventurado”, mas

põe a tónica no aspecto negativo: o estado em que vive é mais aparente que real. Precisa de uma

orientação de fundo, reorientação que não fará por si mesmo, porque não vê que a necessita e

porque está incapacitado moralmente para levá-la a cabo. Por isso intervém Deus com uma

intervenção de amor: Deus quer que estas almas “passem adiante”. Esta acção de Deus revela o

fundo de egoísmo do orante que permanece intacto sob a aparência de uma vida espiritual

“concertada”, minuciosa e cuidadosamente programada.

O orante das Terceiras Moradas é acreditado pelas suas obras, são o seu troféu, o pedestal sobre o

qual se eleva, como veremos no capítulo seguinte. Considera-se o “cânon” e “norma” de todos,

ensinando a todos e não se deixando ensinar por ninguém. E diante de Deus apresenta-se com

exigências, pensa que Deus lhe está obrigado a fazer mercês, a regalá-lo na oração.

Podemos dizer que o orante das Terceiras Moradas fez muitas coisas, mas ficou intacta a pessoa.

Dá coisas, não se dá. Confia só nas suas obras. Faltou-lhe o amor que é saída de si, esquecimento

de si, viver só por Ele e, para ser curado, o orante das Terceiras Moradas tem que reconhecer que

lhe falta humildade, como veremos também no capítulo seguinte.

Em conclusão, podemos dizer que a libertação do “eu” do orante está por fazer. E esta libertação

só se dá quando o homem se abandona e se confia incondicionalmente, em movimento de amor,

nas mãos do Outro. A mudança a que é chamado o orante é dar-se a si mesmo com amor puro,

sem interesse, por Deus somente. É dar gratuitamente.

Veremos ainda no capítulo seguinte que o orante é chamado a entregar a sua vontade a Deus e

que é o interior, a vontade, que tem que ser curada. A pessoa cura-se na medida em que se abre

total e radicalmente a Deus, rompe o cerco do “eu”, num movimento de amor e doação. Este é o

“negócio”, não a multiplicação das obras externas.

Cristo nas Terceiras Moradas

A figura de Jesus afirma-se e cresce nestas Moradas como “modelo” da nossa vida. Apresenta-se

como Caminho e o orante é chamado a segui-Lo. Ele “pede-nos que deixemos tudo por Ele”, já que

a perfeição está em segui-Lo por caminhos de amor, que consistem em servir o próximo. O orante

é convidado a morrer por Cristo: a morrer ao egoísmo, aos temores e medos que nascem da

natureza, e a viver em comunhão de amizade com um “Deus tão generoso que morreu de amor

por nós”. É convidado a viver as exigências do amor, tal como o expressou Cristo, a pôr toda a sua

confiança e apoio n’Ele.

Também a Santa Teresa passou por esta etapa:

Vocação das suas Terceiras Moradas

Quando a Santa Madre escreve estas páginas das Terceiras Moradas tem já mais de sessenta anos

de idade e claro que tem presente na sua memória a sua passagem por elas. Esta etapa na vida

da Santa Madre ocupa um período demasiado prolongado, cheio de vaivéns e incertezas. Foi a

década dos seus trinta anos, iniciada provavelmente como consequência da morte de D. Alonso,

seu pai, quando ela entrava nos seus vinte e nove anos.

A morte de D. Alonso fá-la regressar, uma vez mais, “à verdade de quando era criança”: que “tudo

passa”, que “tudo é nada”… Recupera os seus ideais, a sua tábua de salvação que é a oração, a

sua determinada determinação de viver a sério a sua consagração religiosa, de ser coerente

consigo mesma e com a voz misteriosa que a chama a partir de dentro.

Mas, neste período tudo em Teresa é tão frágil, tão quebradiço... Faz e desfaz. Luta e sucumbe.

Escreveu no Livro da Vida: “Quisera eu saber descrever o cativeiro em que, nestes tempos, trazia

a minha alma. Bem entendia eu que estava cativa, mas não acabava de entender em quê (…)

Desejava viver, pois bem entendia que não vivia, antes pelejava com uma sombra de morte e não

havia quem me desse vida nem a podia eu tomar. E Quem ma podia dar tinha razão de não me

socorrer, pois tantas vezes me havia chamado a Si e eu O havia deixado” (V 8, 11-12).

O mesmo estremecimento se apodera da sua alma e da sua pena ao abordar agora o tema nas

Terceiras Moradas: “Certo é, minhas filhas, que estou com não pouco temor escrevendo isto, pois

não sei como o escrevo nem como vivo, quando disso me lembro muitas, muitas vezes. Pedi-Lhe,

minhas filhas, que Sua Majestade viva sempre em mim; porque, se não for assim, que segurança

pode ter uma vida tão mal gasta como a minha? (...) Mas bem sabe Sua Majestade que só posso

presumir da Sua misericórdia; e, já que não posso deixar de ser a que tenho sido, não tenho outro

remédio, senão acolher-me a ela e confiar nos méritos de Seu Filho e da Virgem, Sua Mãe…” (n.

3).

Aquilo que a Santa Madre recorda da sua vida nestas Terceiras Moradas, servirá de pano de fundo

à exposição que ela vai fazer desta zona do Castelo.

Teresa está convencida de que todos temos que passar por uma experiência semelhante à sua. É

a experiência agridoce da própria fragilidade, com alternâncias de auto-suficiência e de

incoerência, de ilusões e humilhações, de firmes determinações e de dúvidas envolventes e totais;

experiência da própria insegurança radical e necessidade de descobrir a misericórdia amorosa de

Deus como tábua de salvação.

Quatro tipos bíblicos

Tal como sucedeu nas outras Moradas anteriores, Teresa recorre espontaneamente a quatro

personificações bíblicas. Um dos tipos bíblicos, elabora-o ela própria a partir de um salmo

sapiencial. O outro toma-o directamente do Evangelho. Vai utilizá-los como verso e reverso desta

etapa do caminho espiritual.

A Santa Madre inicia assim as Terceiras Moradas: “Àqueles que, pela misericórdia de Deus,

venceram estes combates e com perseverança entraram nas Terceiras Moradas, que lhes diremos,

senão «bem-aventurado o varão que teme o Senhor»? (...) Por certo, com razão o chamaremos

bem-aventurado, pois, se não volta atrás (…), leva caminho seguro na sua salvação” (n. 1).

Neste quadro de luzes e sombras das Terceiras Moradas, o lado luminoso está plasmado nesta

personagem do salmo 111: “Bem-aventurado o que teme o Senhor”. Bem-aventurado, enquanto

se mantém no temor do Senhor.

Na linguagem bíblica, temor do Senhor, não é medo de Deus. Significa respeito e consciência

amorosa do seu papel de Deus: teme o Senhor quem “ama de coração os seus mandamentos” (v.

2).

E prossegue o salmo apresentando este “varão ditoso”:

- “Em sua casa haverá abundância e riqueza” (v. 3);

- “O seu coração está firme no Senhor” (v. 7);

- “O seu coração é inabalável, nada teme” (v. 8);

- “Reparte com largueza pelos pobres, a sua generosidade permanece para sempre” (v. 9);

- “Os desejos dos ímpios saem frustrados” (v. 10).

Os traços fundamentais retidos pela Santa Madre nesse tipo bíblico são a segurança e a bem-

aventurança. No Castelo, as Terceiras Moradas são um seguro de vida só se o morador delas

deposita toda a sua confiança em Deus. Uma tarefa desta etapa espiritual é educar-se para uma

ilimitada confiança n’Ele. Só a ilimitada confiança n’Ele poderá salvar-nos da instabilidade e

insegurança permanente de nós próprios. Na realidade, o refúgio seguro não é o meu próprio

Castelo; só Deus é garantia de segurança para a minha insegurança e os meus medos.

O segundo tipo bíblico é o reverso da medalha. Já não é uma imagem ideal como a do salmo, mas

um jovem de carne e osso, muito parecido com a Teresa dos seus trinta anos. Na cena evangélica,

narrada por São Mateus, esse jovem vem à procura de Jesus com alma generosa. Fez tudo bem

desde a sua juventude. O que é pena é que tenha feito tudo, menos o que lhe propôs Jesus. E o

jovem retira-se entristecido (Mt 19,16-22).

Sem dúvida que Teresa se revê nesta personagem do Evangelho. Este jovem, tão depressa

generoso como tacanho, é a imagem viva dos trinta anos da Santa Madre, quando ela oferecia ao

Senhor a jóia da sua vontade (o seu amor íntegro), e outras vezes lha retirava, quando o Senhor

estendia a mão para a tomar. Já no Caminho de Perfeição tinha recordado esse gesto e tinha-o

narrado assim: “Não são zombarias estas que se façam a Quem tantas fizeram por nossa causa;

(…) Dêmos-Lhe a jóia de uma vez para sempre, pois tantas tentámos em Lha dar; (…) Somos

repentinamente generosos, e depois tão tacanhos, que, em parte, mais valera que nos tivéssemos

detido em dar” (C 32, 8).

O morador das Terceiras Moradas deve rever-se no jovem do Evangelho e empenhar-se na

complexa tarefa da generosidade, para com Deus e com os Irmãos. Não só oferecer e oferecer-se

(“Vossa sou, para Vós nasci, que mandais fazer de mim?”), mas recuperar-se da humilhação do

fracasso e das incoerências da própria generosidade juvenil. Sobretudo, deve esforçar-se em algo

mais difícil: aceitar que Deus tome a iniciativa, para além dos seus projectos de generosidade.

Mesmo quando a acção d’Ele me apanhe de surpresa na minha vida; quando há intromissão dos

outros no que é meu; ou nos acontecimentos que se atravessam à frente do meu programa

espiritual; ou ainda quando Ele expressamente me ultrapassa e desfaz os meus esquemas, como

ao jovem do Evangelho.

O terceiro tipo bíblico é o Apóstolo Tomé: “Morramos com Ele”. É uma personagem que se mostra

cheia de arrojo e valentia, decisão de seguir o Senhor nos perigos e dificuldades, mas que vacilará

no momento da morte e ressurreição do Senhor.

O quarto tipo bíblico é, como já referimos, David e Salomão. São dois exemplos de pessoas muito

dadas a Deus e favorecidas por Ele mas que desfaleceram na perseverança do bem. Diz a Santa

Madre: “Duma coisa vos aviso: que nem por ser tal e ter tão boa Mãe, estais seguras, que muito

santo era David, e já vedes o que foi Salomão; nem façais caso do encerramento e penitência em

que viveis, nem vos assegureis por tratardes sempre com Deus e exercitar-vos na oração tão

continuamente e estardes tão retiradas das coisas do mundo e tê-las, a vosso parecer,

aborrecidas” (n. 4).

Etapa de imaturidade espiritual?

Se formos à raiz da palavra grega, em Mateus, este apelida o jovem de adolescente (“neaniskos”):

“Ao ouvir Jesus, o adolescente saiu entristecido, porque possuía uma grande fortuna” (19,22).

Na realidade a etapa que a Santa Madre descreve nas Terceiras Moradas corresponde a uma

espécie de “adolescência do espírito”, com os típicos traços dessa etapa da vida humana. Estes

aspectos vai desenvolvê-los a Santa Madre, analisando-os e caracterizando-os melhor, no capítulo

seguinte. Neste capítulo primeiro cingir-se-á a oferecer os traços principais e a preparar o leitor

para tomar consciência de que vai passar por esta zona da sua vida espiritual.

Como poderíamos caracterizar esta adolescência do espírito?

- Adolescência do espírito é, podemos dizer, esse gesto de arrojo e generosidade primária, como a

do Apóstolo Tomé na subida a Jerusalém: “Vamos e morramos com Ele” (Jo 11,16), mas logo se

converte em obstinação e resistência diante de Jesus morto e ressuscitado.

- Adolescência do espírito é uma atitude de segurança fictícia, minada pela realidade de uma

insegurança de fundo, diante das dificuldades que necessariamente hão-de sobrevir no caminho.

- Adolescência do espírito é a arrogância mal dissimulada, a fé secreta em si mesmo, a convicção

de que na vida do espírito – como na profissional – a iniciativa vem de nós próprios, e que Deus e o

Seu amor colaboram como alguém de segunda. Daí que estes tais “não podem levar à paciência

que se lhes cerre a porta para não entrar aonde está o nosso Rei, por cujos vassalos se têm e o

são” (n. 6).

E a Santa Madre conclui o capítulo com uma oração: “Que poderemos fazer por um Deus tão

generoso, que morreu por nós e nos criou e nos dá o ser, que não nos tenhamos por venturosos

em que se vá descontando alguma coisa do que Lhe devemos pelo que Ele nos tem servido (…)?

(n. 8). E conclui com uma petição final: “Prova-nos, Tu, Senhor, que sabes a verdade, para que nos

conheçamos” (n. 9).

Precisamente esta última invocação insinua o tema que irá desenvolver no Capítulo seguinte. É

necessário que o Senhor – que sabe as nossas verdades – nos submeta à prova do amor. Passar

esta prova do amor

marcará a passagem de

fronteira para as Quartas

Moradas.

Castelo Interior: Prólogo

Como acontece com todos os livros, o Prólogo é a primeira

página que, no entanto, se costuma escrever no final, depois de redigida toda a obra. No caso de

Teresa não acontece assim. Ela começa o livro, escrevendo o prólogo e esta página inicial faz de

porta de entrada à autora e aos leitores.

Analisando mais pormenorizadamente o Prólogo, oferecem-se ao leitor três coisas:

1- Permite-lhe assistir de perto à composição da obra.

2- Insinua-lhe três níveis de leitura.

3- Introdu-lo suavemente no diálogo com a autora, pois todo o livro vai ser uma conversação

A+ A- A

100%

familiar com ela.

1 - Composição da obra

Já referimos na Introdução que os tempos não poderiam ser mais adversos para escrever uma

obra destas. A própria Santa Madre se encontra no olho do ciclone, em Novembro de 1577. São

João da Cruz é encarcerado em Toledo. Do outro lado da cidade, em Ávila, as Carmelitas que

tinham votado a Santa Madre para Prioresa são castigadas com a excomunhão. A própria Santa

Madre escreve, nesta altura, cartas sem fim.

Mas nada disto se reflecte no livro. Como se o Castelo Interior fosse o reverso exacto de todos os

castelos guerreiros do mundo. Nem um só eco das turbulências exteriores consegue penetrar nas

páginas da obra, que no entanto, foram escritas em directo, sem rascunhos nem esquemas, como

ela escreve as cartas ou conversa com as Irmãs. O manuscrito que possuímos hoje conserva-se tal

como saiu das suas mãos, sem divisões, nem títulos de Capítulos. Mas, no entanto, percebe-se que

foi muito pensado. E escreve-o por três motivos, como já assinalámos anteriormente:

- Doze anos depois de ter redigido o Livro da Vida, estava consciente de que aquele livro estava

incompleto. Era necessário acrescentar-lhe as suas vivências dos últimos anos, as mais

abundantes e plenas da sua vida mística.

- O Livro da Vida tinha caído nas mãos da Inquisição, sequestrado pelos inquisidores de Madrid e a

ela doía-lhe a alma que aquelas páginas se perdessem definitivamente. Daí o irreprimível desejo

de escrevê-las de novo, numa outra chave, menos autobiográfica, mais ordenada e completa.

- E há um terceiro motivo: a maturidade espiritual da autora. Conta ela sessenta e dois anos

quando se põe a escrever. Mas não são só os anos que contam, mas as experiências e o ângulo

visual do seu olhar, que agora lhe permite abarcá-las e compreender o seu sentido profundo e

unitário. Há cinco anos que entrou na etapa final da sua vida mística. São precisamente os anos

em que escutou dia a dia as lições de João da Cruz. Com ele glosou os versos de um refrão popular

e bíblico: “Vivo sem viver em mim”. Terá sido João da Cruz a abrir-lhe o horizonte expressivo dos

símbolos e com a possibilidade de recorrer a eles para dizer coisas que de outra forma seriam

indizíveis. E será, precisamente, a partir de um símbolo que ela começa o seu livro.

2 - Níveis de leitura

Logo na primeira página do seu caderno, Teresa escreveu: “Este tratado, chamado Castelo

Interior, escreveu Teresa de Jesus, monja de Nossa Senhora do Carmo, para as suas Irmãs e filhas,

as monjas Carmelitas Descalças”.

Detenhamo-nos no título. Convida-nos a perguntar pelo que está dentro. No umbral do livro

perguntamo-nos pelo seu conteúdo, que direcção se há-de dar à leitura.

Santa Teresa une aqui duas perspectivas: a autobiográfica e a doutrinal e assenta-as num símbolo

de fundo, o Castelo, que constituirá o crivo literário da obra. São três planos que oferecem ao leitor

três níveis de leitura:

a) Ler no livro a história de Santa Teresa: o seu Castelo

b) Ler a mensagem do símbolo ou símbolos que dão unidade e constituem a obra

c) Ler o livro como uma lição de teologia espiritual e de alta vida cristã

Vamos deter-nos em cada um desses níveis de leitura:

a) O nível autobiográfico: este Castelo é o Castelo Interior da autora

Já o dissemos: a Santa Madre tinha escrito o Livro da Vida que, mais que uma autobiografia, era

uma história interior, cujo trama, era uma série de acontecimentos “místicos” e, como sabemos, o

místico não é muito historiável. Além disso, já nessa altura o relato se mantém no anonimato: a

autora conta a história de “uma pessoa” que vive num convento e numa cidade nunca citados pelo

seu nome, que se relaciona com uns assessores também anónimos, e funda um Convento de São

José, sem referir onde está localizado.

Agora ao escrever o Castelo usa o mesmo recurso literário. Constantemente aludirá a “uma

pessoa”, “certa pessoa”, “aquela pessoa”… conhecidíssima da autora, a quem foram ocorrendo as

coisas e graças e experiências que se referem no livro. Só ocasionalmente, a “essa pessoa” se

associa outra, também inominada, e que “era homem”: alusão velada, mas transparente, a João

da Cruz.

Pois bem, “essa pessoa” é a autora. O leitor pode estar certo que irá fazer um percurso pelas

moradas do Castelo de Teresa, guiado por ela própria. É convidado a penetrar e a percorrer a sua

alma, o seu itinerário espiritual e os estratos do seu espírito, até às camadas mais secretas do seu

interior mais profundo. E interessam-lhe, sobretudo, estas últimas, porque não as tinha ainda

contado no Livro da Vida. Daí a extensão das Sextas Moradas e o amplo horizonte das Sétimas.

b) O nível simbólico

É normal que ao abrir o espaço interior da sua alma, a Santa Madre optasse por uma atitude de

recato literário, usando o símbolo. O símbolo dispensa a narração explícita. Estende um véu de

pudor sobre as experiências íntimas e inefáveis do divino e, por sua vez, o símbolo diz sem dizer. É

uma espécie de palavra aberta ou de mensagem em surdina, capaz de despertar no leitor

ressonâncias e inteligências segundo a experiência do próprio leitor, segundo a sua capacidade de

escuta ou a sua empatia com a autora.

Teresa vai usar três grandes símbolos: o castelo, o bicho-da-seda, o amor esponsal ou jardim de

flores (este último no Livro da Vida).

- O Castelo é a realidade interior de si própria que, não só dá sentido à sua vida, mas que a abre à

transcendência. Permite-lhe comunicar com Deus. Cada homem é um Castelo interior, como

aquele que ela possui.

- No coração do livro, a Santa Madre introduz o lindo símbolo do bicho-da-seda, que se transforma

em borboleta, e que é símbolo de todo o homem que nasceu para ter asas e voar.

- Nas últimas páginas do Castelo, o seu símbolo preferido será o amor nupcial: desposório e

matrimónio, como plenitude de relações humanas no amor, símbolo realista da plenitude do

homem enamorado de Deus.

Ao adentrar-se na leitura do Castelo, o leitor, vai deparar-se com este níveis de leitura e seus

símbolos. Usará ainda outros que encontraremos ao longo do livro: água, fogo, mar, etc. Todos

estes símbolos mergulham as suas raízes na experiência espiritual da autora.

c) O nível teológico

A Santa Madre não escreve para fazer literatura, nem sequer para contar de novo a passagem de

Deus pela sua vida. Ela pretende explicar o sentido profundo desta vivência interior. A sua história

pessoal e os símbolos que usa para a narrar, servem para apresentar o processo de

desenvolvimento da graça, como vida nova e misteriosa do crente.

Teresa conhece os esquemas tradicionais deste processo, em três etapas: principiantes,

aproveitados e perfeitos, mas não os adopta nem os utiliza.

O símbolo do Castelo permite-lhe fixar o ponto de partida da sua explicação doutrinal no homem:

na sua capacidade e dignidade, no seu ser feito à imagem de Deus, na sua condição de templo do

Espírito, na sua vocação radical à comunhão com Deus.

Isto é o que ela pretende com a sua exposição.

Mas esta sua vocação à relação com Deus passa necessariamente por Cristo. Teresa, introduz,

para explicá-lo, o belo símbolo do bicho-da-seda que se transforma em borboleta. Usa, como chave

bíblica, o lema Paulino “a minha vida é Cristo”. O cristão cresce em Cristo, configura-se com Ele,

até à união plena com Ele.

A fase terminal é Trinitária e eclesial. O cristão que não vive a fundo a inabitação Trinitária, nunca

chegará à plenitude dos gérmenes de vida nova recebidos no baptismo. E se chega a essa

plenitude, reverte-a – como o próprio Cristo – no serviço dos outros, em fazer Igreja.

Resumindo, sobre estas fases se desenvolve o Castelo Interior: o homem, por Cristo, à Trindade,

para a Igreja.

3- Leitura do Prólogo

É um Prólogo original. Dificilmente se encontrará outro semelhante no umbral de um livro sério.

Em que livro começa o autor contando a sua dor de cabeça?

E, no entanto, estas breves pinceladas do Prólogo são a melhor porta de entrada no Castelo do

livro.

Com a maior simplicidade que se pode imaginar, dizem-se ao leitor quatro coisas, que passamos a

enumerar:

1 - A autora faz a sua apresentação: apresenta-se com o realismo físico dos seus achaques de

saúde, com a sua falta de inspiração literária e a sua carga de intenções e preocupações

doutrinais.

2 - Este livro teve um antecedente literário do qual depende: o Livro da Vida, escrito pela autora

há doze anos. Agora não o tem à mão, sequestraram-no, mas a união das duas obras será perfeita,

em díptico: o Livro da Vida é o prelúdio do Castelo e o Castelo é síntese e complemento do Livro

da Vida.

3 - Como sempre, S. Teresa submete o seu pensamento ao magistério superior da Igreja (n. 3).

mas ela é plenamente consciente da sua peculiar e originalíssima maneira doutrinal. Não escreve

ex cátedra. Fá-lo coloquialmente, como quem conversa (“escrevo como falo”), isto é, escreve

conversando. Di-lo às leitoras: “irei falando com elas no que escreverei”.

4 - Finalmente, atenção às leitoras. As destinatárias deste livro – que se elevará até às cotas mais

altas da mística – são as suas monjas, as Carmelitas dos seus Carmelos castelhanos e andaluzes.

São leitoras simples, sem preparação especial, nem literária, nem teológica. A autora está

convencida de que, para ler compreensivamente o seu livro, não se necessitam altos níveis

culturais. Requer-se, ao contrário, a vontade ou o puro desejo de entrar no Castelo com a alma e a

vida, como é o caso das suas leitoras Carmelitas.

O mesmo é para nós hoje, que nos associamos às suas primeiras leitoras. De mão dada com a

nossa Santa Madre, entremos no nosso Castelo Interior.

Castelo Interior:

Introdução

A+ A- A

100%

O “Castelo Interior” ou “Moradas” é mais que um livro, é um

símbolo maravilhoso do mistério do homem.

Este livro é habitualmente considerado como a melhor obra da Santa Madre e um clássico da

teologia espiritual. É o seu último livro doutrinal, escrito por ela. Há menos de cinco anos que a sua

experiência mística ingressou na etapa de plenitude. Mais do que história, este livro contém

biografia, ou melhor, autobiografia.

As primeiras destinatárias são as suas monjas, como diz nesta espécie de dedicatória: “JHS. Este

tratado, chamado Castelo Interior, escreveu Teresa de Jesus, monja de nossa Senhora do Carmo,

para as suas Irmãs e filhas, as monjas Carmelitas Descalças”.

Destinatário da obra é também todo o fiel cristão, candidato à santidade desde o seu Baptismo e

por ele.

A composição do livro, etapas e contexto em que é redigido

Santa Teresa escreve metade do livro em Toledo e metade em Ávila. Começa, então a redigi-lo,

aos 62 anos, como nos conta: “E assim começo a cumpri-la hoje [a obediência], dia da Santíssima

Trindade [2 de Junho], ano de 1577, neste Mosteiro de São José do Carmo em Toledo, onde estou

presentemente”. Isto no Prólogo. E, na conclusão do livro, diz: “Acabou-se isto de escrever no

mosteiro de São José de Ávila, no ano de 1577, véspera de Santo André, para glória de Deus, que

vive e reina para sempre sem fim, Ámen” (M Conclusão, 5).

Um total de seis meses menos dois dias, desde que começou a escrever até que lhe pôs ponto

final. Narra-nos, pelo menos duas vezes, a interrupção da escrita: “Valha-me Deus! Onde me meti!

Já tinha esquecido o que tratava, porque os negócios e a saúde me fazem deixá-lo na melhor

altura.” (M IV, 2,1). Em mês e meio escreve as quatro primeiras moradas. Prossegue a redacção

até adentrar-se nas Quintas Moradas. Mas no dia 18 de Julho ocorre a morte em Madrid do Núncio

Ormaneto, o que vem transtornar os seus planos. Interrompe o escrito e empreende viagem até

Ávila. Tinha chegado ao Capítulo II das Quintas Moradas. Numa pausa – não sabemos onde –

redige o Capítulo seguinte, Capítulo III das Quintas Moradas. Mas seguem mais de dois meses de

interrupção.

Quando por fim retoma a tarefa em finais de Outubro, procura reorientar-se, como ela narra: “Já

passaram quase cinco meses desde que comecei até agora; e, como a cabeça não está para o

tornar a ler, tudo deve ir desconcertado, e talvez diga algumas coisas duas vezes” (M V, 4,1).

Neste momento introduz na exposição o símbolo nupcial (n. 3), e em Ávila escreve num mês a

secção mais profunda e delicada da obra, terminando o manuscrito, no Mosteiro de São José de

Ávila, véspera de Santo André, a 29 de Novembro de 1577.

Ao concluir o livro, dá “… por bem empregado o trabalho, embora confesso que foi bem pouco…”

(M Conclusão, 1).

Tinha sido este um dos meses mais difíceis da sua vida: reeleita Prioresa da Encarnação e deposta

pelo responsável da assembleia comunitária. Partilha as dificuldades de Frei João da Cruz, que logo

será preso no cárcere de Toledo. Dir-se-iam ser os meses mais escabrosos para redigir as moradas

místicas do Castelo Interior.

Em resumo, o livro foi começado em Toledo e terminado em Ávila. Foi escrito em duas fases:

- a primeira até metade das Quintas Moradas;

- e a segunda, a partir do Capítulo IV das Quintas Moradas até ao final.

Quando escreve o livro, embora encontrando-se na sua maturidade humana e espiritual, vive ela

um dos períodos mais adversos da sua vida, como já dissemos. Veio de Andaluzia para Toledo,

castigada e confinada pelas autoridades supremas da Ordem (Capítulo de Piacenza, em 1575). Nos

primeiros meses de 1577 sofreu uma crise de esgotamento psico-físico tão grave, que o médico

lhe proibiu de escrever pela própria mão, excepto em casos de extrema necessidade. Aqui em

Toledo, o Livro da Vida continua sequestrado pela Inquisição. Num momento mais propício, ela e o

Padre Graciano atrevem-se a solicitar a sua devolução ao Grande Inquisidor, Gaspar de Quiroga,

mas com resultado negativo: a Santa Madre tem a sensação de que com o livro está presa a sua

alma. Talvez a maior agravante seja que, pouco depois de começar o livro, morre em Madrid o

Núncio Ormaneto, e ela tem que interromper o escrito durante meses, e esperar a temida

perseguição do novo Núncio Sega, chegado a Madrid em finais de Agosto.

Os factores positivos nesse momento são mais decisivos em ordem à composição do novo livro:

1 - Teresa expressou recentemente o desejo de completar o relato do sequestrado Livro da Vida,

para lhe acrescentar as últimas vivências da sua trajectória mística. Foi esta, sem dúvida, a

semente inicial do novo escrito.

2 - Além disso, em Toledo, a Santa Madre tinha um director espiritual de excepção, o biblista

Alonso Velásquez, bom amigo do Padre Graciano, e os dois animaram-na a escrever.

3 - Mas há, sobretudo, um terceiro factor mais válido. É o máximo e a qualidade de ideias que

amadureceram na sua mente, sobretudo: a ideia da alma habitada por Deus, as especialíssimas

relações mútuas entre Deus e a alma, que se esclareceram nesses últimos anos, depois da frase

escutada: “Busca-te em Mim”. Serão essas as pedras angulares do Castelo Interior.

O autógrafo das Moradas encontra-se no Mosteiro das Carmelitas Descalças de Sevilha, desde

Outubro de 1618. Em 1622, foi levado em procissão pelas ruas de Sevilha por ocasião dos festejos

pela Canonização da autora. E a última e mais prolongada saída do manuscrito, aconteceu em

1961, quando foi levado até Roma, e onde foi devidamente restaurado pelo “Istituto Ristauro

Scientifico del libro” do Vaticano e o “Istituto di Patologia del libro” de Itália. Voltou a Sevilha em

1962 e ali se conserva no Convento das Descalças, num valioso estojo relicário: as muralhas de

Ávila convertidas em castelo para abrigar e custodiar o autógrafo do Castelo Interior. Esta obra

deve-se à ideia e solicitude do então Geral da Ordem, Padre Anastácio Ballestrero.

O episódio decisivo

Conta o Padre Graciano: “O que acontece acerca do livro das Moradas é que, sendo eu o seu

Prelado e tratando, uma vez, em Toledo, muitas coisas do seu espírito, ela dizia-me: “Oh, que bem

escrito está esse assunto no livro da minha vida, em poder da Inquisição!” Eu disse-lhe: “Faça

memória do que se lembrar e de outras coisas, e escreva outro livro, e diga a doutrina em geral,

sem nomear a quem aconteceu tudo aquilo que nele disser”. E assim lhe mandei que escrevesse

este livro das Moradas, dizendo-lhe, para mais a persuadir, que o tratasse também com o Dr.

Velásquez, que a confessava algumas vezes. E assim lho mandou.” (Scholias – BMC)

Este mandato recorda-o ela na primeira página do livro, no Prólogo.

Castelo Interior, um livro de mistagogia

Deus revela-Se em amor ao homem e exige resposta por parte do interlocutor. Só assim o

“Mistério” se torna capaz de ser vivido e experimentado. É uma comunicação pessoal que

transforma e re-configura, dando vida nova. Esta foi a experiência vivida por Santa Teresa e que

ela nos quer transmitir no seu livro.

A mistagogia, no seu actuar pedagógico, aproxima-se deste Mistério e introduz nele a pessoa com

a ajuda do mestre experimentado. Mistagogia integra, na sua raiz grega, o “myste” (mistério) e o

verbo “ago” (condução). O “Mistério” é o conteúdo que vive e transmite o mistagogo; e a

“condução” é a pedagogia-comunicação que emprega para que o “mystes” (pessoa iniciada) a

assuma, apropriando-se do Mistério para fazer o seu próprio caminho. A pessoa é introduzida num

caminho que inicia numa realidade transcendente, desembocando na transformação-vida nova.

Devido aos elementos que integra – mistério e condução – a mistagogia pode ser entendida como

uma “pedagogia do mistério”. A mistagogia está então referida à capacidade de estruturar um

processo de iniciação à experiência cristã, uma disciplina de acompanhamento para o mistério de

ser cristão, isto é, ir entrando na experiência do encontro com o Deus de Jesus. “Sem mistagogia

não aprendemos a aprender, que é na realidade, o importante. Podemos acumular conhecimentos,

mas não mudamos a nossa maneira de ler o mundo, de ver as coisas. Sem treino, sem prática,

sem algo que nos altere interiormente, não vivemos realmente a fé”. (X. QUINZA)

A mistagogia não assumirá só a transmissão de conteúdos da fé, mas para ser verdadeira, terá

que levar a pessoa introduzida neste caminho de se adentrar no Mistério, a uma transformação

efectiva na sua vida.

Elementos constitutivos da mistagogia

1 - O Mistério

É o Absoluto, o Transcendente, o “Deus vivo e verdadeiro, pessoal e comunicativo”, a fonte e

centro de toda a mistagogia. Um Deus-Mistério que se manifesta em graça e deseja ser

compreendido, ainda que não apreendido, em esquemas artificiais. Revela-Se para Se dar a

experimentar, mas nunca deveremos esquecer que o Deus Revelatus é, ao mesmo tempo, o Deus

Absconditus. Como consequência, um Mistério que exige a fé como condição de possibilidade, para

que a sua revelação aconteça como boa notícia e realidade de vida; e esta é uma tarefa árdua.

Acolher em fé o Mistério é o convite feito por Deus ao revelar-Se; e será a pessoa o âmbito onde se

realiza a dita acção de Deus, a pessoa em todo o seu mistério.

2 - O homem

Dizia H.U. Von Balthasar que “O homem é um ser com um Mistério no coração, que é maior que

ele mesmo”. Um mistério – o homem – alcançado por outro Mistério, maior, totalizante, abarcante

e, a partir daí, animado, instruído e incorporado a um processo novo, no qual se vão

desenvolvendo e aparecendo realidades sempre novas e mais profundas. A mistagogia respeitará

os caminhos novos que abre o Espírito, “cuida com particular esmero a pessoa em quem Deus põe

a Sua graça, vocação, missão; tem o propósito de favorecer o acolhimento e o florescimento da

vida do Espírito, em qualquer das Suas manifestações”. (F. RUIZ)

Este florescimento da vida do Espírito é uma transformação radical, uma metamorfose, um novo

nascimento e um desenvolvimento posterior, maduro, profundo, pleno. É uma comunicação de

Deus, que abre perspectivas nunca antes imaginadas e dilata a existência. Este é o objectivo final

da mistagogia, a sua intenção fundamental e serviço concreto.

Em seguida, vamos apresentar o terceiro elemento, o mistagogo, que é a pessoa que acompanha

o processo, ó servidor situado entre dois mistérios: Deus e o homem (mystes).

3 - O Servidor de mistérios

É o mestre a quem se pode definir como “servidor de mistérios”. É a mediação que facilita o

processo; é a testemunha qualificada que conhece o Mistério e a pessoa, pondo ao serviço do

mystes, o que assimilou pessoalmente.

O mistagogo é um guia na fé, diferente do pedagogo, do terapeuta e do mago esotérico. Não

pretende ensinar, ainda que deva fazê-lo; não procura saber, ainda que deva ser sábio; não faz

alarde dos seus conhecimentos, ainda que os deva possuir. O mistagogo é apenas um

acompanhante experimentado no processo que realiza o seu acompanhado; o processo pertence à

pessoa e a sua tarefa é unicamente proporcionar-lhe, sem outras pretensões, luz para que faça o

seu próprio caminho. A sua responsabilidade será facilitar a assimilação, proporcionando-lhe

aquilo, e só aquilo, que na sua circunstância concreta é capaz de compreender e integrar.

O mistagogo terá só como responsabilidade tornar possível o encontro do Mistério com o “mistério

da pessoa”. O mistagogo é alguém que está chamado a facilitar este caminho para gerar

respostas concretas, aceitação, abertura e assimilação por parte da pessoa.

O mistagogo deverá suscitar vida, transmitir experiência, transluzir o Mistério e provocar um

processo; por isso, há-de estar atento à acção do Mistério nessa pessoa concreta, sabendo que o

seu serviço é limitado; a função mistagógica, portanto, é uma proposta para ser reflectida,

analisada, integrada e interiorizada por parte do acompanhado e, em consequência, ser integrada,

vivida e assimilada. O mistagogo está para ajudar o mystes, a fim de que se disponha para que o

Mistério Se revele, e se entregue plenamente a ele. O mistagogo há-de estar em sintonia com os

dois mistérios, o da pessoa e o de Deus que Se revela; o mistagogo situa-se, portanto, entre dois

mistérios.

O processo mistagógico ao longo do Castelo Interior

Várias leituras são possíveis desta obra cume da Santa Madre e esta de ajudar o orante para o

vértice da vida espiritual, é uma delas. Cada morada é uma clara provocação para produzir no

leitor resposta e acolhimento do Mistério, que é o próprio da mistagogia. Nesta obra deixamo-nos

contagiar por Santa Teresa, para que ela nos motive e comunique a sua própria experiência, com o

objectivo de gerar em nós um processo que desemboca, finalmente, na transformação e vida nova

que se vai recebendo progressivamente. Cada morada do Castelo Interior oferece as condições

para passar à seguinte, ainda que em todo o processo seja Deus o Protagonista, que conduz livre e

amorosamente a pessoa, segundo vai encontrando abertura.

Em cada morada do Castelo assistimos sempre ao Mistério que irrompe, ao mistério da pessoa

iniciada e, finalmente, à transformação que se alcança.

Estamos ante o escrito de uma mistagoga que experimentou e percorreu caminhos de

profundidade inimaginável e que se propõe iluminar, orientar e persuadir sem ambiguidades, as

suas próprias descobertas: é servidora dos mistérios. É o que ela pretende a todo o momento:

“Praza ao Senhor que, pois se faz por Ele [escrever a obra], seja para que aproveiteis de alguma

coisa” (M III, 1,3). Contagiar a partir da experiência será o fundamental a ter em conta.

Vamos, então percorrer com a Santa Madre, as várias moradas do Castelo Interior