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MANA 13(1): 63-84, 2007 A REINVENÇÃO DO EU ATRAVÉS DO DISCURSO: NARRATIVA, ESTIGMA E ANONIMATO NAS FAMÍLIAS ANÔNIMAS* Catarina Oliveira Fróis Introdução O caso que irei analisar neste texto exemplifica de que modo práticas dis- cursivas se interligam com processos identitários e com uma permanente reinvenção da pessoa. Por ter como objeto empírico a associação Famílias Anônimas, procuro analisar três aspectos distintos relacionados entre si pela abordagem terapêutica preconizada por esses grupos: a) o uso da narrativa oral e a troca de experiências comuns como forma de aquisição de novos significados e novas maneiras de atuação em relação ao problema que leva os membros a procurarem esta associação; b) o conflito entre o discurso e a prática, considerando sobretudo a dicotomia “Eu, membro de Famílias Anônimas” e “Eu, pai/mãe de um toxicodependente” e c) o recurso ao ano- nimato que, constituindo-se como regra da associação, é o elemento que permite a gestão do estigma e da informação pessoal que cada membro dá de si próprio. Como parte de um work in progress, o material empírico que irá ser tratado foi recolhido nos períodos de 2002 e 2003 e posteriormente retomado em 2004 e 2005, na área da Grande Lisboa, Portugal. Foram acompanhados dois grupos distintos e freqüentadas duas reuniões semanais de cada um, quando foram recolhidos dados através de observação participante, entrevis- tas e ainda um inquérito realizado com aproximadamente 40 desses mem- bros. Concentro-me apenas na associação Famílias Anônimas, chamando a atenção para o fato desta associação (e outras de designação “anônimos” — como os Narcóticos Anônimos ou os Jogadores Anônimos, para referir al- gumas das que existem em Portugal) ter adotado o modelo inicialmente utilizado pelos Alcoólicos Anônimos, associação que surgiu em 1935, nos Estados Unidos da América 1 e que, tal como o seu nome indica, é dirigida a pessoas dependentes de álcool. 2

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  • MANA 13(1): 63-84, 2007

    A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO: NARRATIVA, ESTIGMA E

    ANONIMATO NAS FAMLIAS ANNIMAS*

    Catarina Oliveira Fris

    Introduo

    O caso que irei analisar neste texto exemplifica de que modo prticas dis-

    cursivas se interligam com processos identitrios e com uma permanente

    reinveno da pessoa. Por ter como objeto emprico a associao Famlias

    Annimas, procuro analisar trs aspectos distintos relacionados entre si pela

    abordagem teraputica preconizada por esses grupos: a) o uso da narrativa

    oral e a troca de experincias comuns como forma de aquisio de novos

    significados e novas maneiras de atuao em relao ao problema que leva

    os membros a procurarem esta associao; b) o conflito entre o discurso e

    a prtica, considerando sobretudo a dicotomia Eu, membro de Famlias

    Annimas e Eu, pai/me de um toxicodependente e c) o recurso ao ano-

    nimato que, constituindo-se como regra da associao, o elemento que

    permite a gesto do estigma e da informao pessoal que cada membro d

    de si prprio.

    Como parte de um work in progress, o material emprico que ir ser

    tratado foi recolhido nos perodos de 2002 e 2003 e posteriormente retomado

    em 2004 e 2005, na rea da Grande Lisboa, Portugal. Foram acompanhados

    dois grupos distintos e freqentadas duas reunies semanais de cada um,

    quando foram recolhidos dados atravs de observao participante, entrevis-

    tas e ainda um inqurito realizado com aproximadamente 40 desses mem-

    bros. Concentro-me apenas na associao Famlias Annimas, chamando a

    ateno para o fato desta associao (e outras de designao annimos

    como os Narcticos Annimos ou os Jogadores Annimos, para referir al-

    gumas das que existem em Portugal) ter adotado o modelo inicialmente

    utilizado pelos Alcolicos Annimos, associao que surgiu em 1935, nos

    Estados Unidos da Amrica1 e que, tal como o seu nome indica, dirigida

    a pessoas dependentes de lcool.2

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO64

    As famlias annimas

    As Famlias Annimas definem-se como Irmandade ou Associao direcio-

    nada para familiares de pessoas com problemas de adico3, ou seja, pais,

    mes, cnjuges de pessoas que consomem substncias psicoativas e que

    delas so dependentes. Existem em Portugal desde os finais dos anos 80,

    tendo tido o seu incio em Lisboa e mantendo atualmente 72 grupos espa-

    lhados por todo o pas, ao que corresponde realizar um encontro semanal

    dos seus membros em formato de reunio.

    A base da ideologia desta associao assenta nos 12 Passos e nas 12

    Tradies, representando os 12 Passos as etapas pelas quais um indivduo

    consegue gradualmente libertar-se da obsesso em relao ao seu familiar

    e reaprender uma nova forma de vida perante si prprio e quem o rodeia.

    As 12 Tradies representam o modo como os membros de Famlias Annimas

    devem orientar-se enquanto grupo pertencente a uma associao mais vasta,

    mantendo assim a sua unidade. Esta associao composta exclusivamente

    por pessoas que tm em comum a mesma situao, estando ausentes quais-

    quer profissionais da rea (por exemplo, psiclogos, psiquiatras, assistentes

    sociais) que ali estejam em desempenho dessas funes. A designao grupos

    de auto-ajuda ou ajuda mtua (Kurtz 1997) prende-se precisamente ao

    fato de nas associaes de 12 Passos se defender que, apesar da adico

    ser considerada uma doena terminologia conotada com uma categoria

    mdica entende-se que s mediante o apoio entre pessoas na mesma

    condio possvel encontrar uma situao de reciprocidade no nvel das

    experincias vividas e no entendimento do problema experenciado.

    Ao longo do trabalho de campo, constatei que os participantes de Fa-

    mlias Annimas na zona da Grande Lisboa eram sobretudo mulheres4 com

    idades compreendidas entre os 45 e os 60 anos, na sua maior parte mes de

    toxicodependentes em consumo no ativo5 ou que j estavam na altura em

    processo de recuperao.

    A chegada a um grupo e a uma reunio especfica pautada pelo

    conflito interior e pela desconfiana diante do desconhecido, uma vez que

    conhecem a associao, na maior parte dos casos, por algum que sabe de

    algum que tem um problema semelhante e que vai quelas reunies.

    A reao inicial da maior parte daqueles que ali vo a de que esto perante

    uma seita6 religiosa que promete uma cura qualquer para os seus filhos.

    Esta atitude prende-se sobretudo ao fato de que freqente que os locais

    utilizados para realizar os encontros dos membros sejam igrejas ou centros

    paroquiais, o que sucede, segundo os membros, no por motivos religiosos,

    mas sim porque so entidades que facilmente disponibilizam instalaes para

  • 65A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    o efeito. Apesar dessa primeira impresso, considerando o desespero que

    sentem e tambm por muitas vezes j terem tentado vrias alternativas,

    como o internamento do familiar em instituies mdicas e psiquitricas

    insistem em ficar, como ilustra a afirmao de Maria Ermelinda (65 anos),

    na altura membro de Famlias Annimas h sete anos e me de dois filhos

    em consumo de drogas:

    Eu j tinha feito tanta coisa e nada tinha resultado, que para mim era s ir a

    mais um lado. Fui com uma certa esperana, pensava que ia l buscar qualquer

    coisa para curar. Falavam uma linguagem que eu entendia. Ouvi l pessoas

    falarem de um problema igual ao meu e a gente, quando est assim, est muito

    s, pensa-se que somos nicas, que no h mais ningum.

    A reunio

    Explicarei em seguida de que forma se desenrola uma reunio, nome que

    os membros do a um encontro organizado por um grupo desta associao.

    chegada dos membros a um local e a uma hora j pr-definidos (cada gru-

    po rene-se sempre nas mesmas instalaes, com o mesmo horrio, exceto

    quando anunciada alguma alterao pontual), a sala que vo ocupar

    transformada em local de reunio. So colocados cartazes nas paredes com

    lemas da associao, por exemplo, o S por Hoje, que remete para o conceito

    de ser um programa em que se pensa apenas no dia em que se est a viver,

    sem ter preocupaes relativamente ao que vai acontecer no dia seguinte ou

    em um futuro prximo; ou um cartaz com a Orao da Serenidade7, qual os

    membros se referem como uma orao que proporciona conforto espiritual e

    indica um modo de encarar os problemas. Outro tipo de literatura especfica

    da organizao ainda colocada em cima das mesas. Esto ao dispor dos

    membros brochuras e livros considerados como auxiliares na compreenso

    e na divulgao desta filosofia: Onde encontrar Famlias Annimas, folheto

    com uma lista das reunies em Portugal, ou o folheto Informao para o

    Recm-Chegado, com uma mensagem dirigida especificamente queles que

    tomam contato com esta associao pela primeira vez.

    De uma sala vazia e com numerosas finalidades, cria-se assim um

    ambiente que convida troca de experincias entre os seus participantes.

    Aps os preparativos iniciais, todos os presentes sentam-se em cadeiras

    volta de uma mesa (ou ainda noutras disposies, dependendo da forma

    como se apresenta a sala). O coordenador comea a reunio com algumas

    leituras e convida um dos membros a fazer uma exposio com base na sua

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO66

    experincia pessoal relativa toxicodependncia/alcoolismo do seu familiar.

    Durante os 90 minutos que cada reunio dura, os presentes so incitados

    a participar, cada um na sua vez, e pedido que no o faam durante mais

    de 3 minutos para que todos possam ter oportunidade de falar. No final da

    reunio, a sala arrumada tal como estava anteriormente, sem que haja

    qualquer sinal da passagem do grupo por ali.

    Verifiquei que existe um padro que repetido pelos membros, quer seja

    na interveno principal, que normalmente mais longa do que as restan-

    tes, quer seja nas que se seguem. De fato, todos os membros se apresentam

    pelo seu primeiro nome e em seguida aludem ao porqu de ali estarem, ou

    seja, ao seu familiar. Por exemplo: Sou a Anabela [51 anos], me de um

    adicto em recuperao h seis anos; ou Sou a Elvira [42 anos], me de

    um adicto que est em tratamento.8 Na interveno principal, as pessoas

    contam um pouco da sua histria pessoal no que concerne ao uso de drogas

    e lcool do seu familiar e s suas atitudes em relao a essas situaes. Em

    uma narrativa contnua, falam de como conheceram Famlias Annimas,

    dos conhecimentos ali adquiridos e do modo como houve uma mudana

    nas suas vidas, quer em relao a este problema especfico, quer na forma

    como utilizam, muitas vezes, esta aprendizagem noutras reas das suas

    vidas: profissional, conjugal ou ainda nas relaes com outros familiares.

    Transcrevo em seguida algumas notas do dirio de campo sobre uma dessas

    intervenes principais:

    A partilha principal foi feita pela Teresa9 [57 anos], que freqenta Famlias An-

    nimas h doze anos, sendo um dos membros mais antigos deste grupo. A partilha

    teve como tpico o 1 Passo (impotncia perante as drogas e o comportamento

    dos outros) e fez referncia a sentimentos de culpa que existiam quanto ao uso

    de drogas da sua filha. Falou das tentativas no s de o esconder, mas de como

    se interrogava a si prpria acerca de como que tinha falhado na educao da

    filha que tivesse conduzido sua posterior toxicodependncia. Referiu tambm o

    sentimento de desespero e de isolamento em que se encontrava antes de chegar

    a Famlias Annimas, uma vez que podendo falar desta situao a membros da

    famlia (nada a impedia), mantinha-se no silncio por sentir vergonha e culpa,

    procurando resolver sozinha esta situao. Atravs de uma sua cunhada, Teresa

    tomou conhecimento da existncia de reunies de Famlias Annimas, onde lhe

    foi explicado que ela no era culpada, que a filha tinha uma doena e comecei

    a conseguir falar do assunto. A Teresa disse ainda considerar que o programa

    dos 12 Passos tambm uma filosofia de vida que serve para todas as reas da

    vida e no apenas para saber lidar com a adico do familiar em causa: uma

    mudana de vida, mudana de atitudes, mudana de ver as outras pessoas....

  • 67A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    Quando h uma interveno como a que descrevo acima, opera-se o

    incio de uma transformao no modo como esta pessoa estava habituada a

    lidar com a sua situao junto de outros. Ao afirmar no ter que se esconder

    ou sentir vergonha, este convite a uma partilha dos seus problemas f-la

    sentir-se no s aceite mas compreendida. O que aqui chamo de partilha

    a denominao que os membros utilizam para se referirem s interven-

    es feitas em contexto de reunio as suas ou as de outros membros e

    que est imbuda de forte simbolismo neste contexto: partilhar refere-se ao

    ato de dar de si prprio aos outros, quer a sua experincia, quer a disponi-

    bilidade para ouvi-los. Mas refere-se tambm a um esprito de comunho

    bem expresso no vocabulrio utilizado pelos membros desta associao. Ao

    contarem a sua histria ou ao ouvirem a de outros, os membros dizem sentir

    gratido, humildade ou serenidade.

    Durante uma interveno principal, verifica-se que o modelo se repete

    em todas as reunies, e mesmo aqueles que so recm-chegados rapida-

    mente aprendem a construir a sua narrativa seguindo este formato.10 Em

    primeiro lugar, os membros referem-se ao seu passado e ao modo como se

    encontravam antes de terem um contato efetivo com a associao onde esto:

    o desespero, os problemas em casa com a famlia, no local de trabalho, a

    falta de dinheiro. Em uma segunda fase desta exposio, o membro refere-

    se ao modo como teve conhecimento dessa associao e como foi o incio

    da sua freqncia: ouvir outras pessoas falarem abertamente sobre as suas

    vidas e sobre aquele problema em especfico que por norma ocultado

    a estranheza com o vocabulrio prprio ou com a literatura da associao.

    Em uma terceira fase da narrativa, feito o contrabalano da primeira etapa,

    ou seja, na maior parte dos casos o membro considera ter havido um saldo

    positivo, sobretudo devido s transformaes fsicas, materiais e espirituais

    que percebe ter adquirido graas a este programa.

    importante levar-se em considerao que ser membro de Famlias

    Annimas todo um processo de aquisio de conhecimento, isto , no

    algo que saibam a priori de ali terem chegado. A percepo da organizao

    e da estrutura de funcionamento de Famlias Annimas e de como apren-

    dem a expor os seus problemas parte integrante dessa mesma experincia.

    O fato de ouvirem histrias semelhantes sua, contadas pelos prprios,

    uma forma de encorajamento a participar e at a possibilidade de se ter

    alguma esperana no futuro. Os relatos na primeira pessoa, em presena

    fsica, so primordiais no processo de integrao nas Famlias Annimas:

    este o elemento fundamental que permite o cair da mscara, das aparncias,

    o assumir o estigma, a culpa e a vergonha que sentem e que ocultam nas

    suas relaes com indivduos que no sofrem do mesmo problema.

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO68

    Narrativa e seu uso teraputico

    A primeira interveno de um novo membro feita de uma forma perturba-

    da quando comparada com as dos que j freqentam a associao h mais

    tempo. As pessoas no sabem por onde comear a contar a sua histria,

    tm sempre tendncia a considerar que o seu caso pior do que todos os

    outros ali apresentados, falam apressadamente, misturam vrios assuntos ao

    mesmo tempo, choram, emocionam-se, pedem desculpa por chorar, que no

    agentam, que carregam culpa e vergonha e assumem-no pela primeira vez

    perante outros. Na maior parte dos casos, pedem ajuda para resolver o proble-

    ma do seu filho/familiar, uma cura. Nesta fase, podemos considerar que tais

    pessoas, no sendo ainda verdadeiros membros, so-no j potencialmente.

    A partir do momento em que contam a sua histria, os participantes sentem

    existir aquilo a que chamam de identificao11 com os outros membros,

    pelo que essa pessoa convidada a assistir a mais sesses para que venha

    a apre(e)nder a filosofia do grupo.

    Assumir publicamente que se perdeu o controle da situao e pedir

    ajuda a outros para resolver o problema , segundo os membros desta asso-

    ciao, uma parte importante para que se venha a ter uma integrao plena,

    o que est estreitamente relacionado com o 1 Passo: Admitimos que ramos

    impotentes perante a droga e perante a vida das outras pessoas e que as

    nossas vidas se tinham tornado ingovernveis (Famlias Annimas 1991:3).

    Perda de controle da vida da pessoa, incapacidade perante um problema

    que no consegue resolver e o conflito consigo prprio e com as atitudes

    que comea a ter em funo desta situao a mentira, o encobrimento, o

    esconder-se dos outros motivado por sentimentos de culpa e de vergonha

    passam a ser expostos.

    Ao longo da freqncia a essas reunies comea a existir uma alterao

    na forma como o sujeito se define a si prprio em relao no s ao seu pas-

    sado e sua atuao, mas tambm quanto ao presente, a quem e a como

    se comporta com os outros. As prprias intervenes padronizadas ilustram

    de forma categrica esse processo de aprendizagem, interiorizao e racio-

    nalizao do que tornar-se e ser um membro de Famlias Annimas. No

    sendo um projeto/processo bvio ou que esteja explcito, existe um padro

    nas exposies e nos comportamentos dos vrios membros em grupo. Esse

    processo passa no s pelo uso de novos/velhos termos que expliquem as

    situaes que essas pessoas vivenciam mas, de igual forma, pela maneira

    como os expem, revivendo e recorrendo mentalmente a todo um passado

    que poderia ser considerado como o antes e o depois de terem conhecido o

    programa da organizao. Ao falar de novos/velhos termos utilizados, refi-

  • 69A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    ro-me ao uso de palavras ou expresses que neste contexto assumem outros

    significados e interpretaes e que so, da em diante, utilizados como lemas

    de vida e cuja importncia entendida por todos de igual forma.12

    S para dar alguns exemplos, considerem-se palavras como medo

    e f. No dia-a-dia, quando se fala em medo, pode estar-se a referir a

    inmeras situaes: medo da morte, da dor fsica ou de se ficar desempre-

    gado. No contexto das Famlias Annimas, quando algum fala em medo,

    todos pensam, por exemplo, no receio que tm de uma possvel recada do

    seu familiar ou, pelo contrrio, que encontre a morte antes da recuperao.

    Outros lemas so ainda importantes por atuarem como slogans que se cons-

    tituem por si prprios como modelos de vida: Primeiro as Primeiras coisas

    ou Mantm as coisas simples alertam o indivduo para a necessidade de

    fazer escolhas na sua vida, substituir o medo e a ansiedade pela calma e

    pelo discernimento.

    A narrativa, entendida como o contar de uma histria em que os ele-

    mentos do grupo se constituem como atores-receptores, ou seja, como parte

    de um processo performativo em que partilhado o entendimento comum

    de que todos fazem parte, assumida como um dos principais elementos no

    processo teraputico. O indivduo encontra em si prprio, nas suas palavras,

    nas idias da associao e no confronto com os outros o entendimento que

    lhe permite equacionar a si mesmo e sua identidade a partir de uma nova

    perspectiva, a qual ir pautar a sua vida desde o momento em que toma

    contato com esses grupos e ali se insere.

    Quando falo de processo teraputico, importante salientar que na

    realidade a maior parte dos membros refere-se a si prprios como doen-

    tes no momento em que chegaram a Famlias Annimas. Estamos perante

    pessoas que, devido situao de alcoolismo ou toxicodependncia dos

    seus familiares, se deixaram destruir fsica e emocionalmente, em um

    sentimento de co-dependncia e de abandono da sua prpria vontade e

    identidade pessoal. Consideram, assim, que medida que vo assimilando

    este programa vo entrando em recuperao. Da o fato de acharem que

    no existe uma cura para as dificuldades dos familiares, mas que possvel

    ao prprio membro libertar-se do sentimento de derrota que inicialmente

    sente, encarando esta aprendizagem como um modo de recuperar a sua

    auto-estima e o domnio da sua vida. Vejamos o que diz Maria (59 anos),

    membro de Famlias Annimas h dez anos, salientando bem as questes

    do estigma, do encobrimento, da culpa:

    Eu tambm achei que estava doente porque aquela maneira de funcionar, que

    s pensava no meu filho, no pensava nos outros filhos, que achava que tinha

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO70

    que fazer tudo por ele, que achava normal encobrir as asneiras todas, as culpas,

    tudo; inclusive esconder da polcia que ele roubava. Aquilo era um ambiente

    de morte, eu s pensava quando me deitava: Deus queira que eu no acorde

    amanh e eu no esteja c para o que vem a seguir.

    Faz o que eu digo, no faa o que eu fao. O conito entre o discurso e a prtica

    As interpretaes que se podem fazer deste caso de estudo revelam-se mais

    complexas do que possvel observar em uma primeira anlise. Estamos

    perante uma forte condio de ambigidade, vivenciada sobretudo atravs

    de um dilema moral e pessoal em que os membros se encontram a partir

    do momento em que comea a haver uma integrao plena na associao

    e a interiorizao desta filosofia como um novo modo de vida. Dizer

    Eu mudei muito, tornei-me uma pessoa muito mais inteira13; ou como falou

    a Teresa, um programa de vida: mudana de vida, mudana de atitudes,

    mudana de ver as outras pessoas... revela que atravs deste programa os

    indivduos adquiriram conceitos que lhes permitem equacionar de outro

    modo os problemas que esto a viver. Diz uma das informantes (Aurora, 36

    anos, em Famlias Annimas h dois anos), esposa de um indivduo com

    problemas de adico:

    Eu acho que o programa tem frmulas que fazem com que as pessoas virem

    as coisas na cabea delas, reorganizem-se. A vida de uma me com um filho

    adicto deve ser um inferno, mas o que fato que todas elas quando l chegam

    vm com culpas, sabem que podiam ter feito melhor. Ao libertar as pessoas da

    culpa, conseguem encarar a vida com otimismo e conseguem ter foras para

    pr em prtica aquilo que o programa diz. O programa tambm diz para as

    pessoas viverem a prpria vida, porque a nica soluo que essas pessoas tm.

    L dentro, dizem: a soluo [referindo-se a uma cura] no existe.

    Nas Famlias Annimas, o membro encontra em certos momentos o

    conflito ou o dilema de compreender de um outro modo os seus proble-

    mas e os seus sentimentos, ao mesmo tempo em que ainda no capaz

    de conseguir agir em total conformidade com esta mesma aprendizagem.

    Um exemplo pode ser pensado quando se encontra nessas reunies uma

    pessoa que ali chega pela primeira vez e est profundamente consternada.

    So freqentes as crises de choro, o desabafo do desespero, a incapacidade

    perante fracassadas tentativas de controlar o comportamento destrutivo dos

  • 71A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    familiares (filhos/ filhas, maridos, irms). Ao sentir essa angstia, as pessoas

    procuram ali uma cura. Ao invs, aquilo que encontram algo que entra em

    claro conflito com o que at ento pensavam: -lhes pedido que relativizem

    a sua preocupao para com esses familiares ou, como disse um membro:

    Eles que sigam a sua vida e o caminho que escolheram. Esto perante

    uma situao em que aconselhado a me/ pai/ cnjuge ao contrrio do

    que normalmente considerado, luz dos valores morais dominantes, um

    comportamento adequado que deixem de se preocupar exclusivamente

    com o seu familiar. sugerido: saia de casa, v ao cabeleireiro, saia com

    as amigas, enfim, que continuem as suas vidas sem se deixarem arrastar

    pela toxicodependncia que a/o rodeia.

    medida que vai havendo uma maior integrao no grupo e uma

    interiorizao do modelo das Famlias Annimas, existe tambm a prtica

    acompanhando o discurso. a partir do momento em que os membros

    reconhecem, atravs do 1 Passo, a impotncia perante os seus familiares,

    que se encontram preparados para a mudana. Diz um informante que

    j freqenta a associao h nove anos relativamente mudana que

    se operou nele quanto ao comportamento que adotou para com o filho, na

    altura toxicodependente no ativo:

    Fez-me comear a ter uma outra atitude em relao a ele, deixar de lhe dar

    dinheiro e essas coisas. Houve um dia em que ele levou a chave, e no tinha

    autorizao para ter chave, e nesse dia tivemos de mudar a fechadura; ele s

    entrava aqui se realmente quisesse ir tratar-se. E mesmo assim, ele viveu na

    rua uma srie de tempo, nem no dia dos meus anos veio c, o que me deu um

    grande desgosto (Zacarias, 58 anos).

    O que diz Zacarias est em concordncia com o que refere Joo de Pina

    Cabral acerca da estrutura de poder dentro da casa e, no caso que vimos

    acima, de uma famlia nuclear na qual se procurou impor determinadas

    regras:

    Uma casa tem uma estrutura de poder uma forma de vida, porque uma

    vida onde no vale tudo, onde certas coisas se devem fazer e outras no se

    devem fazer, onde uns falam mais e ouve-se mais o que dizem do que outros,

    onde os silncios de uns dizem muito mais do que as palavras de outros (Pina

    Cabral 2007, no prelo).

    Um outro exemplo no qual so equacionadas essas dicotomias vivido

    por um casal (um dos poucos casos observados em que o casal ia em con-

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO72

    junto s reunies), uma vez que marcado pelo conflito permanente em que

    viviam em virtude de um dos seus filhos (na altura toxicodependente no

    ativo) ser causa de sofrimento permanente e alvo de tentativas vrias de

    mudana de atitudes em relao a ele. Esta famlia, de origem espanhola e

    a residir em Portugal h cerca de dois anos, mudou de residncia sobretudo

    por duas razes: a oferta de um novo emprego ao marido (aqui o informan-

    te) e a toxicodependncia de um dos trs filhos, que estava a atingir uma

    situao que afetava toda a famlia. Perante tentativas de suicdio do filho,

    este casal optou pela mudana de ambiente como uma forma de conseguir

    ajud-lo a deixar o consumo de drogas.

    O conflito entre os ensinamentos das Famlias Annimas e os seus

    sentimentos e a conscincia dos seus deveres enquanto pais, imbudos de

    valores sociais e morais dominantes, era visvel. Ameaavam expulsar de

    casa o filho, argumentando que prejudicava os irmos; puseram-lhe a cama

    na sala de estar da sua casa, de maneira a que no tivesse acesso a outras

    divises, seno a casa-de-banho e a cozinha; eram freqentes as crises de

    choro pelas tentativas frustradas de impor regras de boa convivncia, aliadas

    a no dar dinheiro e a no deixar nada que pudesse ser vendido ao alcance

    do seu filho. At que chegaram a uma situao em que impediram a sua

    entrada em casa, tendo arranjado forma de o rapaz ir trabalhar em outra

    cidade, em um restaurante de um amigo da famlia a quem foi explicada

    a situao. Entre o tentar ajudar e o deixar ir (como os prprios dizem)

    passaram-se anos de sucessivas mudanas de atitudes marcadas pelo con-

    flito entre o que era certo fazer (segundo Famlias Annimas) e aquilo que

    sentiam dever fazer enquanto pais.

    Apresento mais um caso em que este dilema notrio e que foi relatado

    em uma reunio durante a interveno de uma senhora que freqentava

    Famlias Annimas h um ano e cujo filho vivia na rua, mas que ela via todos

    os dias, uma vez que o rapaz mendigava porta da casa da me. O grande

    conflito desta senhora era que depois de o ter expulsado de casa e deixado

    de lhe dar dinheiro continuava, no entanto, a pagar-lhe algumas refeies.14

    No seu entender, esta atitude era contra os ensinamentos das Famlias An-

    nimas, que defendem que todas as facilidades concedidas aos familiares

    adictos devem ser cortadas de maneira a que estes passem por um processo

    de abstinncia e provao e, assim, peam ajuda o quanto antes. Porm, esta

    senhora reconhecia: O que me apetece traz-lo para casa, apaparic-lo,

    dar-lhe tudo o que ele quiser (Laurinda, 38 anos, durante uma reunio).

    O fato de se abandonar o familiar sua sorte no representa negligncia,

    mas sim aquilo que nesta associao se considera como dar a verdadeira

    ajuda, ou seja, responsabilizar o toxicodependente pela sua prpria conduta

  • 73A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    e deixar de sentir que se culpado e responsvel pela mesma, como ilustra

    a afirmao de Manuela15:

    Enquanto eu no percebi que eu no tinha que tratar dele... Eu tinha era que o

    largar e largar no era Desaparece da minha vida, eu j no gosto de ti. Era:

    Enquanto tu estiveres com esse tipo de comportamento, eu no aturo. Eu gosto

    imenso de ti, mas no gosto desse tipo de comportamentos. E eu tenho que te

    deixar fazer as coisas erradas para tu depois te levantares. Isto uma coisa

    horrvel. Uma me que sabe que o filho vai-se matar aos bocadinhos debaixo

    dos nossos olhos...

    Quando se segue de perto a sociloga Janet Finch (1989), verifica-se

    como est presente na famlia, por um lado, a noo de altrusmo, gratuida-

    de, ddiva e entrega e, por outro lado, como existe tambm uma noo de

    obrigao, de dever, de responsabilidade para com os nossos parentes, ou

    seja, h uma moral social que perpassa os limites do familiar e do privado

    um pensamento dominante partilhado pela sociedade, que torna o modo

    com que se atua no seio da famlia um processo espontneo, baseado em

    afetos, memrias e expressividade mas que , no mesmo sentido, condicio-

    nado (no que diz respeito a determinado, exigido) e solicitado por outros

    com quem se tem, ou no, laos de parentesco. A autora equaciona aquilo

    a que chama o conceito de moralidade pblica (Finch 1989:139), isto ,

    o que se deve fazer dentro da famlia, a quem, de que forma, considerando

    especificamente a relao dos indivduos com os seus descendentes, e de que

    modo a conduta adotada pr-determinada pelo exterior, pelo julgamento

    pblico da sociedade em que estamos inseridos.

    Eu, pai/ me e Eu, membro de Famlias Annimas o conflito reside

    de igual forma naquilo que se diz dentro e fora das reunies: seja a pessoa

    que me/pai de outrem a quem tem o dever de ajudar, sustentar, proporcio-

    nar um lar, seja o membro de Famlias Annimas, que aprende a cuidar de si

    prpria(o), a largar o(a) seu filho(a), que fora do grupo (isto , socialmente)

    um marginal, mas dentro do grupo um doente. Esta diferenciao

    importante na medida em que permite ao membro de Famlias Annimas

    livrar-se da culpa, da vergonha e do estigma que sente em relao a si prprio.

    O fato de se saber que o familiar tem uma doena que desencadeia todo um

    comportamento autodestrutivo funciona como um catalisador para o enten-

    dimento que se tem de toda a situao, isto , por ser o familiar um doente e

    no um marginal ou uma pessoa malformada e com maus instintos, o membro

    de Famlias Annimas tem assim uma oportunidade de se livrar do peso da

    responsabilidade que a si prprio imputa perante uma situao destas.16

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO74

    As aparncias enganam: anonimato e estigma o dito e o interdito

    uma doena que se esconde. A base deste programa o anonimato, o suporte

    dos grupos. to evidente e to fundamental.

    (Valentim, 65 anos, em Famlias Annimas h 13 anos)

    O anonimato assume uma importncia fundamental para compreender-

    mos a pertinncia desse processo na sua totalidade, uma vez que sendo

    uma das regras da associao, constitui-se uma necessidade sentida pelos

    membros devido ao estigma17 que enfrentam em face dos problemas que ali

    so tratados. Entre o que se diz e o que se faz, temos a permanente gesto

    da informao que os sujeitos do de si prprios neste contexto. No tendo

    dentro do grupo a obrigao de dizerem quem so em nvel profissional, a

    sua residncia ou outros elementos legais, os membros consideram estar

    em uma situao em que apenas os motivos que os levam ali so pertinen-

    tes, e este um dos fatores de unio, comunho e sentimento de pertena.

    No vejo aqui o anonimato apenas como ausncia do nome, mas um plano

    mais abrangente em relao a formas de identificao dos indivduos em

    sociedade.18 Funciona ainda como um modo de assegurar a igualdade entre

    os membros no que se refere a smbolos de estatuto e diferenciao social,

    como o grau de escolaridade ou os rendimentos auferidos. Se no dia-a-dia

    as pessoas escolhem as suas relaes preferenciais com base neste tipo de

    elementos, atravs da regra do anonimato e de no terem que revelar de

    si prprios nada mais alm do fato de terem um familiar com um proble-

    ma de toxicodependncia, isso facilita que no haja discriminao entre

    os membros e que estejam entre iguais: lado a lado temos empregadas

    domsticas, professores, advogados, pessoas dos mais diversos estratos

    socioeconmicos.

    No seguimento da anlise que venho fazendo, esta questo importante

    na medida em que se compreende como o anonimato veicula neste grupo

    duas idias fundamentais subjacentes: a) o que (no) se diz; b) a quem se

    (no) diz, ou seja, a possibilidade de escolha daquilo que dizemos aos ou-

    tros sem comprometer a relao em si mesma. A importncia do anonimato

    revela-se ainda, por exemplo, na escolha do local da reunio a que se vai:

    no foram raros os casos observados em que as pessoas freqentavam deter-

    minado grupo por ser distante da sua casa ou do local de trabalho. Usavam

    o argumento de que ali haveria menos probabilidades de encontrar pessoas

    conhecidas, existindo ainda uma preocupao com o estatuto que tm na

    sociedade, perante os colegas de trabalho, amigos e familiares.

  • 75A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    Como nos diz Virglio 60 anos de idade e membro de Famlias Anni-

    mas h quinze anos, com dois filhos toxicodependentes, um no ativo e outro

    em abstinncia a propsito do local de reunio onde vai:

    A sala de... muito boa porque ali entram drogados [Narcticos Annimos],

    entram bbedos [Alcolicos Annimos], entra tudo, porque h muitas reunies

    ali, os grupos uns vo para um lado, outros vo para o outro; no se sabe o que

    que aquela gente ali vai fazer. Na nossa reunio, s vezes ao mesmo tempo

    [no mesmo local] est l o grupo folclrico, est l tudo.

    O que este membro reala precisamente o fato desse espao em con-

    creto e que era uma das instalaes de um centro paroquial da rea da

    Grande Lisboa ser j por si totalmente incuo, no sentido de que fazia

    parte das instalaes comunitrias da igreja daquela freguesia, e no um

    local que fosse imediatamente conotado com a finalidade que ali juntava as

    pessoas. De fato, observei que nesse espao existiam encontros de membros

    das Famlias Annimas, Narcticos Annimos, Alcolicos Annimos, um

    ATL (Atividades de Tempos Livres) para crianas e jovens, ensaios do grupo

    folclrico e do coral, para alm de ser uma rea de encontro dos fiis para

    atividades mais diretamente relacionadas com a igreja. Esta polivalncia do

    local tornava possvel a realizao de diferentes atividades e, em simultneo,

    diversas interpretaes por parte daquele que est no exterior e que no

    sabe o que est na realidade a acontecer.

    Por outro lado, dentro de uma reunio, os membros referem-se a si

    prprios como pais de adictos, tendo consciente o cartaz que diz: Quem

    viu aqui, aquilo que ouviu aqui, quando sair daqui, deixe que fique aqui.

    o anonimato como proteo do sujeito ali presente, que no divulga para

    fora o que se passou nem as pessoas que estavam presentes. Fora de uma

    reunio, os membros assumem os outros papis sociais da sua vida.

    Trata-se, para alm de uma forma de gesto da informao que cada

    um d de si mesmo (quer para dentro, quer para fora do grupo), de um outro

    modo de apresentao do eu (Goffman 1993) em sociedade e de como nos co-

    municamos uns com os outros. importante explicar que o anonimato, neste

    caso, no est apenas relacionado com o membro de Famlias Annimas:

    tambm usado como proteo ao familiar que o leva ali. Desta maneira, se

    dentro do grupo tal condio serve como uma forma de concentrar as rela-

    es entre os membros a partir do problema que os une, fora das reunies

    o no dizer que se freqentador e, portanto, o no se assumir como

    membro de Famlias Annimas impede que o seu familiar seja conotado

    com a toxicodependncia, estando assim salvaguardado de juzos de valor

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO76

    pejorativos ou de aes condenatrias por parte de terceiros. Se a maior parte

    dos membros identifica a pessoa que tem o problema atravs da referncia

    direta a filho/filha/marido, verificou-se tambm que outros, ao quererem

    preservar esse anonimato, referem apenas um familiar, defendendo que

    familiar pode ser qualquer um.

    Diz um informante a propsito da necessidade de omitir o problema do

    seu filho e, conseqentemente, a sua pertena a Famlias Annimas19:

    Uma coisa mentir sobre a verdade, outra coisa omitir. A mentira, eu sou

    contra a mentira, porque no acresce nada s pessoas. Agora, a omisso um

    instrumento de defesa. Eu posso omitir alguma coisa de ti e isso no prejudica

    nada, no afeta ningum. Nesse aspecto, o anonimato, a omisso, no afeta

    nada. O conhecimento dos fatos muito mais pesado. Se as pessoas souberem,

    por exemplo, no meu trabalho, do problema do meu filho, isso pode ser usado

    contra minha vontade ou, alheio minha vontade; assim, no sabem, por isso

    no usam esse argumento (Pedro, 42 anos, membro de Famlias Annimas h

    quatro anos, com um filho toxicodependente no ativo).

    Outro informante diz ainda acerca da importncia do uso do anonimato

    como forma de proteo para o exterior:

    Normalmente, quando uma pessoa m me, a sociedade sabe que ela m me

    e aponta-lhe o dedo. Se tu fores annimo... quando h um pai que bate no filho,

    toda a gente sabe que aquele pai um malandro que bate no filho, portanto, a

    sociedade condena-o logo partida. Se tu tens um filho que drogado, se tu

    no te expuseres a pblico, no corres o risco das pessoas dizerem: Pois, ele

    drogado porque tu, em vez de ires para casa dar ateno ao teu filho, andavas

    a coar o rabo pelos cafs, percebes? Portanto o anonimato, na minha opinio,

    importante para isso. Porque as pessoas ficam mais livres de culpas (Elvira,

    40 anos, com uma filha toxicodependente em abstinncia, membro de Famlias

    Annimas h dois anos).

    O dilema moral falado na seo anterior est presente tambm nesta

    (imposta) condio de anonimato e tem relao direta com o estigma: aquilo

    que se diz, quando e onde se diz marcado por uma filosofia que implica

    necessariamente que para fora da associao no se diga que se pertence

    a ela. Assim, em uma situao-limite, se um membro est em conflito por

    ir contra os seus prprios sentimentos ao querer aplicar a filosofia de Fa-

    mlias Annimas, se se pensar em um caso em que o problema da adico

    do familiar conhecido por vrias pessoas, mas no o conhecimento da ida

  • 77A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    s reunies, fica por (conseguir) explicar a adoo da conduta que se tem.

    Vale a pena ler o que diz o livro de reflexo das Famlias Annimas Hoje

    um caminho melhor acerca disto:

    Sempre que a minha irm, que adicta, est em plena crise e eu me viro para

    o meu programa das Famlias Annimas, alguns amigos e membros da minha

    famlia, que no conhecem bem FA, acusam-me de ser cruel e fria e de aban-

    donar a minha irm. [...] nestas alturas que eu mais preciso de telefonar a

    um amigo FA para arranjar foras. Preciso de algum que me lembre que a

    melhor maneira de ajudar a minha irm muitas vezes no fazer nada, embora

    amigos e parentes bem-intencionados, mas mal-informados, que esto fora do

    programa, possam considerar esta minha atitude como desinteresse (Famlias

    Annimas 1991:73).

    Como fazer entender, sem quebrar o anonimato, que se aplica uma

    nova forma de estar, de viver e de resolver os problemas? Quebrar o ano-

    nimato significa que o indivduo escolhe, em determinada situao da

    sua vida, expor-se como membro de Famlias Annimas assumindo a si

    prprio como pai/me/cnjuge de um toxicodependente/alcolico, a toxico-

    dependncia/alcoolismo do seu familiar e, mais do que isso, sujeitar-se

    ao escrutnio daqueles a quem revela esta condio. No entanto, tal deciso

    tomada apenas em casos especiais. Ao levar em conta o que diz Maria,

    As pessoas que no passaram por isto no percebem nada do assunto, quem

    no sofreu isto na carne no sabe o que isto , possvel entender porque

    a maioria dos membros revela a sua pertena a Famlias Annimas apenas

    quando est perante algum que tem o mesmo problema e precisa de ajuda,

    e nunca em uma conversa de caf ou com pessoas que no so, de alguma

    forma, mais ntimas.

    Concluso

    Volto agora ao incio deste texto. Nas Famlias Annimas, o principal veculo

    teraputico o discurso, o uso da narrativa como forma de exposio das

    situaes vividas, da procura de explicaes, de solues; o modo encontrado

    para aliviar o estigma, a culpa. Este processo apresenta-se como conflituoso

    atravs do dilema pessoal, moral e social em que o indivduo se coloca a

    partir do momento em que comea a adotar a conduta preconizada por esta

    associao. Perante o fato da impotncia em face do seu familiar, atravs

    do discurso que apre(e)nde uma nova forma de estar, de se libertar e de se

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO78

    aliviar dos problemas que ali o levam. No encontra uma cura para esses

    problemas nem uma cura para si mesmo. Por sentir, inicialmente, ser a

    causa das situaes vividas, como se fosse o agente que lhes deu origem, e

    tambm alvo de condenao moral e social, encontra nas Famlias Annimas

    (na organizao, na filosofia, no discurso) uma forma nova e libertadora de

    entendimento de todos esses fatores.

    No entanto, este caminho implica renncia a convices e a sentimen-

    tos desde sempre interiorizados e partilhados por toda uma sociedade. Se

    atravs do discurso que se interioriza a filosofia da associao, tambm

    desta forma que se racionaliza, que se reinventa e, a seu tempo, encontra

    uma nova forma de atuao para com os problemas individuais, relativos

    tanto a familiares como sua vida pessoal. O membro das Famlias An-

    nimas depara-se nesta associao com as condies ideais para que tais

    transformaes se operem. Libertado da culpa, da vergonha e do estigma

    e protegido pelo anonimato, ele vai gerir a informao pessoal que quer

    desvendar sem ter quaisquer imposies, seno a de se abster de comentar

    quem v e o que foi dito nas reunies. No entanto, reconhece que a van-

    tagem do anonimato revela-se igualmente ambgua: ele confortvel no

    sentido de que no discrimina dentro do grupo, colocando todos em p de

    igualdade, mas constrangedor a partir do momento em que se julgado

    social e moralmente luz do desconhecimento da prpria situao e das

    transformaes que se operam. O estudo do anonimato, discutido e analisa-

    do no contexto das associaes de 12 Passos, como as Famlias Annimas,

    procurou introduzir formas de equacionar esta temtica com questes

    privilegiadas da antropologia: o estudo da identidade, da narrativa como

    processo teraputico, da reconfigurao na sociedade contempornea e de

    como os indivduos, atravs do recurso ao anonimato, gerem a forma como

    se apresentam ao(s) outro(s).

    Recebido em 23 de maro de 2006

    Aprovado em 24 de janeiro de 2007

    Catarina Oliveira Fris bolsista da FCT, Instituto de Cincias Sociais Universidade de Lisboa. E-mail:

  • 79A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    Notas

    * Uma verso deste texto foi apresentada em uma comunicao com o ttulo A (re)inveno do eu atravs do discurso: o anonimato nas Famlias Annimas, no VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Cincias Sociais, realizado em Coimbra, Portugal, nos dias 16, 17 e 18 de setembro de 2004. Agradeo a Joo de Pina Cabral e aos pareceristas annimos os comentrios a verses preliminares deste paper. Alguns elementos aqui usados so um desenvolvimento de Frois (2003/2004).

    1 Para conhecer em profundidade a histria do surgimento dos Alcolicos Annimos, sugere-se a leitura da biografia do seu co-fundador (Bill W.), em Hartigan (2000).

    2 longa a discusso mdica e cientfica sobre o alcoolismo enquanto doena, que tipos de dependncia podem existir, bem como os problemas que dela podem ou no derivar. Apesar de no se tratar aqui desse assunto em detalhe, remeto o leitor para a seguinte bibliografia: Jellinek (1960); Conrad & Schneider (1992); Valentim(2001); Edwards (1992).

    3 O termo adico usado aqui adotando-se a terminologia utilizada pelos membros desses grupos, referindo-se a uma doena de comportamentos obsessivos e compulsivos neste caso, o consumo excessivo de drogas e lcool que conduzem autodestruio do indivduo que dela sofre. Literatura especfica sobre esta proble-mtica pode ser encontrada, entre outros, em Davies (1997) e Valentim (1998).

    4 No cabe aqui fazer uma anlise da pertinncia do papel de gnero na composio da associao em estudo, no entanto, remete-se o leitor para alguma literatura sobre gnero e famlia no contexto portugus: Lima (2004); Pina Cabral (2003); Wall (2005).

    5 Por consumo no ativo, refiro-me a pessoas que estavam, no momento em que foi realizada a pesquisa, a consumir drogas diariamente.

    6 A designao de seita foi vrias vezes utilizada pelos membros dessas asso-ciaes dada a conotao com elementos e locais religiosos, e com a proliferao em Portugal daquilo que nas cincias sociais se denominou de Novos Movimentos Religiosos(cf., entre outros, Rodrigues & Ruuth 1999; Beckford 1986; Mafra 2002; Prat 1997).

    7 Orao da Serenidade: Concedei-me, Senhor, Serenidade para aceitar as coisas que eu no posso modificar, Coragem para modificar aquelas que posso e Sabedoria para distinguir umas das outras (cf. http://www.prof2000.pt/users/secjes-te/famanopt/Pg010000.htm).

    8 Estar em tratamento significa que o familiar desse membro est inseri-do em uma comunidade teraputica de reabilitao do consumo de drogas ou de alcoolismo.

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO80

    9 Todos os nomes aqui apresentados so fictcios, respeitando-se assim o pedido de anonimato feito pelos membros.

    10 Vide o caso dos Alcolicos Annimos: Antze (2003); Cain (1991); Swora (2004); Greil & Rudy (1983); Rudy (1986).

    11 Nas palavras de um dos membros: Ali ns somos todos iguais, no h julga-mentos, eu entendo o que que eles esto a dizer. Quando ns falamos dos nossos filhos, estamos todos iguais (Elvira, 41 anos, em Famlias Annimas h um ano, me de um rapaz que estava na altura em desintoxicao).

    12 Sobre a importncia dos slogans nas associaes de 12 Passos, vide, entre outros, Valverde & White-Mair (1999); Schiff & Bargal (2000).

    13 Amlia, 46 anos, em Famlias Annimas h 3 anos, me de uma rapariga em abstinncia de drogas h 1 ano.

    14 Atravs de uma espcie de conta aberta em um caf ao p de casa, de maneira que o rapaz pudesse alimentar-se sem ter acesso direto ao dinheiro. No entanto, conforme depois contou em uma reunio, veio a saber que o seu filho pedia grandes quantidades de sanduches e que, em vez de os comer, vendia-os a outros consumidores de herona, arranjando assim dinheiro para o seu prprio consumo.

    15 Com 63 anos, membro de Famlias Annimas h doze anos, me de trs filhos dois rapazes e uma rapariga um deles em abstinncia de drogas h trs anos.

    16 No trato aqui de outras associaes que seguem este modelo (vide Frois, 2005), no entanto, importante referir que processo idntico ocorre com os mem-bros de Narcticos Annimos (neste caso, os sujeitos portadores do problema que os membros de Famlias Annimas vivem), em que feita esta mesma distino entre marginal/toxicodependente e adicto. Segundo os membros de NA, a diferenciao reside no fato de que o toxicodependente o indivduo que consome drogas no ativo e que tem este comportamento como o seu principal problema. Mas, ainda na pers-pectiva dos membros, este toxicodependente pode ou no ser um adicto, uma vez que entendido que um adicto algum com problemas de sentimentos e emoes que se traduzem em comportamentos obsessivos e compulsivos e que encontra no uso de drogas o seu expoente mximo de autodestruio. Assim, consideram que um toxicodependente pode ou no ser um adicto. Tal como acontece nas Famlias Annimas, o membro de Narcticos Annimos, que antes de entrar nesta associao considerava-se um marginal no sentido de haver algo errado com ele e com a sua forma de vida, recebe alguma esperana e alvio a partir do momento em que toma conscincia do fato de ser um doente e, portanto, algum que sofre de um problema a ele inerente.

    17 Segundo Erving Goffman, o estigma a condio de ser diferente, havendo dois tipos de estigmatizados: o desacreditado e o desacreditvel. O estigmatizado desacreditado o portador de um estigma visvel, reconhecvel na primeira impresso

  • 81A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO

    que se tem da pessoa e que, segundo este autor, condiciona imediatamente o modo como a interao se processa. O estigmatizado desacreditvel aquele que, sendo portador de um estigma, este no imediatamente visvel aos olhos dos outros, po-dendo ou no vir a ser revelado; se o for, nesse momento o estigmatizado passa de desacreditvel a desacreditado (vide Goffman 1988:51-ss).

    18 Cf. Marx (1999). Especificamente sobre anonimato nas associaes de 12 Passos, vide Frois (2005).

    19 Embora relativo a outro contexto a relao mdico-paciente vale a pena ler o ensaio da antroploga Sylvie Fainzang (2002), no qual a autora equaciona o papel da mentira e da omisso como elemento de uma relao de poder.

  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO82

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  • A REINVENO DO EU ATRAVS DO DISCURSO84

    Resumo

    Tendo como objeto emprico a associao Famlias Annimas, neste ensaio procuro analisar trs aspectos distintos relaciona-dos entre si pela abordagem teraputica preconizada por estes grupos: a) o uso da narrativa oral e a troca de experincias comuns como forma de aquisio de novos significados e novas formas de atuao em relao ao problema que leva os membros a procurarem tal associao; b) o conflito entre o discurso e a prtica,considerando sobretudo a dicotomia Eu, membro de Famlias Annimas e Eu, pai/ me de um toxicodependente; e c) o recurso ao anonimato como elemento que permite a gesto do estigma e da informao pessoal que cada membro d de si prprio.Palavras-chave: Anonimato, Narrativa, Estigma, Famlias Annimas.

    Abstract

    Taking the Families Anonymous associa-tion as its empirical object, this essay an-alyzes three distinct aspects inter-related by the therapeutic approach adopted by these groups: a) the use of oral narrative and the exchange of shared experiences as a form of acquiring new meanings and new forms of responding to the problem that first led the family members to contact the association; b) the conflict between discourse and practice, focus-ing above all on the dichotomy between I, member of Families Anonymous and I, father/mother of a drug addict, and c) the recourse to anonymity as an ele-ment that allows control of the stigma and personal information that each member gives about him or herself.Key words: Anonymity, Narrative, Stigma, Families Anonymous.